Ricardo Roque Saberes Coloniais, Tecnologias Miméticas
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SABERES COLONIAIS, TECNOLOGIAS MIMÉTICAS:
A administração de usos e costumes em Timor Leste no final do século XIX1
Ricardo Roque
Institute of Social Sciences, University of Lisbon
Av. Prof. Aníbal Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal
[email protected]
This paper is in draft form. You are welcome to cite it, but please reference it appropriately –
for instance in the following form:
Ricardo Roque, ‘Saberes coloniais, tecnologias miméticas: a administração de usos e
costumes em Timor Leste no final do século XIX’, online version of 27th October 2010, available
at http://colonialmimesis.wordpress.com/ (downloaded on [date of access])
This is a version of the paper to be published as:
Ricardo Roque, ‘Saberes coloniais, tecnologias miméticas: a administração de usos e
costumes em Timor Leste no final do século XIX’, in Kelly Silva and Lucio Sousa, ed., collection
of essays on the anthropology of Timor Leste (forthcoming).
Please refer to this book publication for the final text.
*
*
Este texto aborda o programa de conhecimento de usos e costumes do
governo colonial português em Timor Leste, a partir de um enfoque na racionalidade
mimética que presidia à sua concepção e ao seu exercício. Na antropologia e nos
estudos coloniais, marcados desde as décadas de 1970 e 1980 pela ‘viragem cultural’
e pelas leituras de Michel Foucault, Edward Said, ou Bernard Cohn, a ideia de que
conhecimento e poder mantêm uma relação estreita nos processos de administração e
dominação colonial tornou-se central e axiomática.2 O colonialismo enquanto
fenómeno económico, militar, ou político, não é concebível, conforme condensou
Nicholas Dirks, sem estar ‘baseado numa variedade de tecnologias culturais
1
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relacionadas de forma complexa’.3 Neste sentido, surpreende, talvez, se exceptuarmos
as indagações pioneiras de Michael Taussig sobre a lógica do ‘terror colonial’ na
Colômbia do final de Oitocentos, que esta cumplicidade entre saber e poder colonial
não tenha sido espreitada a partir do potencial imaginativo e analítico das ideias de
mimese e imitação. O trabalho de Taussig é bem conhecido na antropologia e no
estudo do (pós)colonialismo. Porém, a sua conceptualização da violência imposta
pelos colonizadores brancos sobre os corpos indígenas enquanto ‘mimese da
mimese’, reflexo, vertido na prática, de uma imagem da alteridade do ‘Índio enquanto
selvagem’ projectada pelos próprios colonizadores sobre os indígenas, não tem sido
efectivamente explorada no que respeita, em particular, ao estudo da relação colonial,
das actividades de administração e das suas formas de conhecimento.4 Este texto
pretende contribuir para colmatar esta relativa ausência, repondo a imitação como
elemento constituinte da teoria e da prática europeias de colonização e propondo
tratar as ‘tecnologias culturais’ do colonialismo enquanto tecnologias miméticas. Duas
questões, duas hipóteses, servem de partida para a breve exploração que aqui ensaio
sobre este tema. Em primeiro lugar, em que medida poderão os regimes coloniais de
saber antropológico ser pensados em conexão com formas coloniais de governo cuja
orientação estratégica reside na produção de imagens de alteridades ‘indígenas’
(objectivadas como diferentes, inferiores, primitivas, e/ou ‘selvagens’) – bem como na
sua respectiva cópia e reprodução? Se assim for, em segundo lugar, poderá o
princípio da relação colonial de governo consistir na subordinação a uma racionalidade
mimética de acção que vise, dominantemente, a incorporação da alteridade e a sua
repetição, na prática e pela prática – ao contrário da suposta subordinação a um
princípio ‘assimilador’ que vise somente a transfiguração do outro colonizado à
imagem do eu colonizador?
Neste texto pretendo experimentar uma resposta positiva a estas duas
questões. Tomarei como objecto de reflexão um caso específico: o programa colonial
de estudo de usos e costumes – expressão corrente usada no período colonial para
designar, em geral, as tradições e o ‘direito costumeiro ou consuetudinário’ das
sociedades nativas – promovido e desenvolvido na colónia portuguesa de Timor Leste
pelo então governador da colónia, José Celestino da Silva, na transição do século XIX
para o século XX. Neste contexto, sugiro aqui que o trabalho de conhecer e escrever
sobre costumes e leis timorenses foi concebido e empreendido pelos administradores
no quadro de uma estratégia de governo baseada, prioritariamente, numa pragmática
da preservação e da repetição e, secundariamente apenas, numa pragmática de
transformação de tipo ‘civilizador’. A minha hipótese é a de que o estudo de costumes
2
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indígenas advogado e praticado pela administração colonial neste momento histórico
tomava a forma de tecnologia mimética de governo, isto é, de um saber em gestação
destinado a apoiar instrumentalmente um modo de governo da justiça moldado à
imagem do que se percebia ser a lei tradicional timorense. Interessa-me, pois, o
potencial mimético da imagem colonial dos usos e costumes para constituir
‘realidades’ de colonização, para gerar consequências materiais efectivas e acções
coloniais a ela conformes. Neste contexto, entendo por isso que é irrelevante insistir
na questão de saber se o resultado epistémico desses discursos e imagens mantinha,
ou não, referência a uma putativa legalidade indígena tradicional ‘real’. Para além
deste ponto, portanto, não tenciono envolver-me na literatura sobre o tema do direito
costumeiro ou na discussão da sua ‘realidade’ tradicional ou fictícia invenção colonial,
que tanto tem marcado literatura recente sobre o assunto.5 Não tenciono igualmente
aprofundar aqui as possibilidades comparativas do argumento que proponho para
Timor, o que comportaria pesquisa e exploração empíricas para além do espaço deste
texto. A minha intenção consiste em, partir dos exemplos de Timor colonial, dar corpo
a uma hipótese analítica, sugerindo a interdependência entre um modo de saber
‘antropológico’ objectivador de usos e costumes indígenas e um modo colonial de
governo centrado na preservação e repetição instrumental desses costumes. Desta
perspectiva, portanto, sustentarei que, no contexto histórico analisado, as ‘etnografias
coloniais’ sobre usos e costumes em Timor constituíram um modo de saber implicado
numa pragmática de administração colonial assente num duplo princípio: mimetização
máxima e modificação mínima das tradições político-jurais locais.
O texto está estruturado em duas partes. Começo por descrever,
sumariamente, o programa de administração da lei, da justiça e, em geral, da ordem
político-militar, defendido pelo governador da colónia, em sintonia com certas
doutrinas de colonização correntes na metrópole. Este programa pressupunha que,
tanto a concretização do ideal de ‘civilização’ e evolução social de povos selvagens,
quanto a eficácia do governo das populações da ilha implicava, por um lado, a
produção de conhecimento sobre as sociedades timorenses, e, por outro lado, a
reprodução fiel de ritos e leis observados e descritos como indígenas ou timorenses.
Na segunda parte procuro sugerir que o estudo de costumes timorenses fazia parte
integrante deste programa, referindo-me às expressões que este conhecimento parece
ter assumido.
3
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Os ‘comandos militares’ e a regulação do governo jural
O coronel Celestino da Silva assumiu o posto de Governador da colónia de
Timor em 1894, mantendo-se no posto durante uns longos e invulgares 14 anos. O
seu estilo governativo, pragmático e autoritário, adquiriu aura carismática na literatura
colonial do século XX, valendo-lhe a eleição como grande responsável pelas
campanhas militares que conduziram à dita ‘pacificação’ e ‘moderna’ ocupação da
parte portuguesa da ilha. Em 1896, dois anos apenas após a sua chegada a Timor, o
novo governador conseguia do governo imperial a tão desejada autonomia
administrativa do distrito em relação ao governo de Macau, e mostrava-se
especialmente determinado na repressão de insurreições e na reforma da
administração. Tal como os seus antecessores, o governador lutava com grande
isolamento e com múltiplas dificuldades financeiras e administrativas.6 Perante tantos
constrangimentos, o seu plano de desenvolvimento passava pela reforma do modelo
territorial da administração, doravante totalmente centrado na presença reforçada de
oficiais militares portugueses no interior. O propósito de Celestino da Silva consistia
em expandir e melhorar a existente organização territorial em distritos militares – por si
rebaptizados com o título de comandos militares –, colocando à testa de cada distrito
mais e melhores oficiais portugueses. Aos oficiais cabia representar o governo nas
suas relações com as sociedades indígenas, em especial actuando como executores
da lei e do comando do governador no seio dos vários reinos, expressão utilizada
pelas autoridades coloniais para designar as unidades sociopolíticas timorenses.
Uma sólida rede territorial de comandos militares formava a espinha dorsal do
projecto de Celestino da Silva para desenvolver e civilizar a colónia. Mas a razão de
ser dos comandos residia no papel a desempenharem na administração dos assuntos
jurais das comunidades – na regulação da justiça e da guerra e, em geral, na relação
do governo com a autoridade das classes aristocráticas timorenses que presidiam aos
destinos políticos e judiciais dos reinos, nomeadamente os liurais que detinham o título
de reis em face do poder colonial. À parte o governador (ele próprio, por norma, um
militar de carreira), visto como uma autoridade superior em matéria de justiça dentro e
entre os reinos, os oficiais do exército eram os delegados europeus do governo cuja
acção em matéria político-jural tinha condições de ser reconhecida entre os
timorenses, desde longa data.7 Tal era, pelo menos, a perspectiva defendida pelo
governador. Entre as razões alegadas para a sua intenção de reforçar a autoridade
dos militares, encontrava-se o facto de a autoridade jural dos oficiais ser exercida
‘desde tempos imemoriais’, e como tal aceite pelos próprios timorenses. Para o
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governador, a aceitação da autoridade militar pelos nativos radicava num motivo
fundamental: é que a justiça praticada pelos europeus nos comandos era executada
em obediência perfeita aos usos e costumes de cada reino, ao direito tradicional
timorense conforme este se apresentava nas suas variações locais, consoante o reino.
‘Os comandantes militares’, argumentou Celestino da Silva numa carta ao Ministro da
Marinha e Ultramar em 1897, ‘já desde épocas muito remotas fazem as chamadas
'justiças' […], decidem não em face do Código Civil, mas segundo os usos e costumes
dos povos, e estes procuram-nos porque a justiça é ministrada gratuitamente, e ficam
satisfeitos com as decisões, que segundo também os usos e costumes são tomados
em termo, feito perante testemunhas e assinado por elas e pelos litigantes.’8
Segundo este governador, então, a autoridade jural e política dos comandantes
militares nos comandos (e bem assim da própria figura do governador, em Dili), era
aceite sem oposição pelos timorenses porque a justiça exercida pelos colonizadores
não era, na verdade, europeia. Era, ao contrário, uma edição, uma réplica, de modelos
indígenas. A seu ver, as justiças dos militares espelhavam aquilo que os timorenses
consideravam ser a sua lei, os seus estilos, os seus usos e costumes. Por outras
palavras, o exercício da justiça colonial dos oficiais europeus era reclamada como
benéfica para o colonialismo português em Timor porque se fazia à imagem da lei
indígena – porque era (e devia ser) uma cópia fiel, uma espécie de facsimile, das leis e
da justiça timorenses. Por conseguinte, a mimetização, na administração colonial,
desses costumes tradicionais percebidos como autenticamente indígenas era
entendida como forma de expandir e reforçar o poder português – ainda que fosse
desejável, num futuro mais ou menos distante ditado pelas universais leis científicas
da evolução, a substituição lenta dos princípios locais pela superior legislação
europeias.9
Esta racionalidade mimética de governação adquiriu expressão visível em
1897-98, no projecto de adaptação a Timor do regulamento de administração da
justiça no ultramar aprovado pelo governo de Lisboa em 1894, proposto pelo mesmo
governador com a assessoria e participação influentes do juiz de direito em Dili,
Albano de Magalhães. Uma afirmação peremptória no relatório que acompanhava a
proposta de regulamento revelava bem a lógica que devia reger a prática do governo
da justiça. Isto é: a primazia a dar à incorporação dos modelos indígenas, em
detrimento da imposição universalista de normas europeias e da acção ‘civilizatória’ de
tipo assimilador: ‘Temos de os amoldar ao nosso modo social,’ afirmava-se,’mas para
isso temos primeiro de nos amoldarmos nós ao modo social deles.’10 Transcrevo um
5
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pouco mais deste trecho iluminador do sentido mimético da acção governativa no que
respeitava à justiça:
‘Pretender obrigá-los a aceitar e respeitar as actuais instituições é demorar-lhe o
familiarizarem-se com a nossa maneira de julgar. Temos de os amoldar ao
nosso modo social, mas para isso temos primeiro de nos amoldarmos nós ao
modo social deles; a mudança há-de ser gradual, suave, imperceptível quase
para não causar constrangimentos e abalos no espírito receoso dos indígenas.’11
O argumento em defesa da adaptação das leis a Timor advogado por Celestino
e secundado por Magalhães era sustentado por uma teoria da administração jurídica
colonial, em voga na Europa ilustrada da época, cristalizada em torno da noção de
‘doutrina da especialização’: a ideia segundo a qual as leis deviam conformar-se ao
estado social e cultural de cada povo, ‘especializando-se’ em função da sua posição
na escala da evolução humana. ‘As colónias’, escreveria o Juiz Albano de Magalhães
no seu compêndio de 1907, ‘organismos especiais nos seus modos de ser, têm de ter,
como todos os organismos, leis adequadas à sua existência, moldadas no seu estado
social, adaptadas às suas condições morais, económicas e políticas; leis formuladas
pela observação serena das condições existentes, e nunca abstractamente feitas, ao
capricho da fantasia!’12. Assim, uma estratégia mimética de administração apoiada no
princípio da ‘observação’ das ‘condições existentes’ – e equilibrada retoricamente por
um vocabulário racialista e pela adesão a princípios evolucionistas de lenta e gradual
mudança sociocultural – atravessou as várias reflexões sobre o desenvolvimento do
distrito manifestadas pelo governador Celestino na sua correspondência com a
metrópole. É no contexto deste modelo que, julgo, ganha significado o apelo expresso
pelo mesmo governador para que os administradores militares estudassem, a fundo,
os usos e costumes timorenses – chegando a empenhar-se directamente o
governador nesse trabalho. Passemos então aos projectos de saber articulados no
âmbito deste estilo administrativo que parecia querer instaurar-se em Timor no fim do
século XIX e inícios do século XX.
Saberes coloniais de usos e costumes na prática da administração
A necessidade de conhecer, de forma engajada, as leis locais estava na base
da administração. Celestino da Silva orgulhava-se de falar várias línguas indígenas, de
conhecer diferentes costumes locais e de, escreveu, ‘administrar a justiça segundo os
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estilos timores’, ao abrigo de um programa político de preservação dos antigos
costumes e organizações locais, o qual abdicava, temporariamente, da ‘civilização’
dos povos.13 ‘Para dar o desenvolvimento necessário ao progresso agrícola,’ afirmou
este governador em 1897, ‘para manter a ordem, para acabar com as guerras, é
necessário mais alguma coisa do que criar escolas e quintas modelos; é necessário
estudarmos o direito consuetudinário dos povos, o regímen de propriedade; enfim, os
usos e costumes, e promulgar para eles leis especiais’.14
Os oficiais do exército à frente dos comandos militares estavam em posição
ideal para cumprir este desiderato. A eles, sobretudo, cabia a tarefa de adquirir
conhecimento sobre os tantos e tão diversos usos e costumes das comunidades sob
sua jurisdição. Era, para mais, um dever de cada oficial conhecer de cor as leis e
preceitos tradicionais, a tomar em conta nas suas sentenças judiciais e nas relações
com a aristocracia timorense. Assim, nas Instruções aos comandantes militares
preparadas sob a égide de Celestino da Silva e publicadas em 1896, era ordenado aos
oficiais nos comandos o estudo ‘do carácter dos povos e a sua história’.15 Os oficiais e
administradores eram pois idealizados como conhecedores e reprodutores fiéis de
outras normas, timorenses, estabelecidas por tradição, as quais deviam incorporar
deliberadamente no seu quadro de competências. O estudo e a observação
sistemática dos diferentes costumes e usos do indígena eram a auto-disciplina a
seguir até à sua desejada incorporação no habitus do administrador militar, a ponto de
este poder aplicá-las, de cor, sem hesitação, nos arbítrios judiciais. Na medida em que
esta incorporação da idealizada alteridade da norma e do direito europeus fosse
conduzida de forma fidedigna, constante, conscienciosa por todo o oficial português
com responsabilidades administrativas, as frequentes guerras de Timor poderiam
mesmo ser evitadas e assistir-se-ia, por fim, ao desejado desenvolvimento agrícola.
Os timorenses, escrevia o governador:
‘só recorrem às armas quando não são atendidos, ou quando o oficial não se
dedica ao estudo dos seus costumes, por isso estabelecer comandos militares e
entregá-los a oficiais honrados e dedicados ao exercício das suas
complicadíssimas atribuições é pôr termo às guerras e ao atraso agrícola que
elas causam.’16
Era também intenção do referido governador que este trabalho de observação e
verdadeira incorporação através da prática dos costumes locais culminasse, no futuro,
na formalização escrita de um código de leis indígenas, à imagem, aliás, do que se
fazia, ou tencionava fazer, em outras colónias e impérios. O projecto de ‘codificação
7
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de usos e costumes’ estava em voga na política colonial do fim do século XIX,
parecendo formatar a racionalidade mimética através da fixação escrita de uma
imagem idealizada e inflexível da alteridade do direito indígena. No caso de Timor,
quer durante, quer após o governo de Celestino, a codificação permaneceu um ideal
perseguido, mas talvez nunca realizado plenamente, não obstante os esforços de
alguns dos seus sucessores, nomeadamente Eduardo Marques.17 É pois possível que,
em lugar da implantação de uma codificação efectiva, se tenha estado perante um
modo de conhecimento entrosado em práticas e quotidianos de administração. Na
verdade, ainda que não vertido na forma de um código escrito de leis, o conhecimento
dos costumes esteve intimamente articulado com o sentido prático da acção e do
quotidiano político, judicial e guerreiro dos militares portugueses.18 Este era ainda um
saber que aparecia muitas vezes na forma e no conteúdo de relatos literários de
circuito administrativo. Com frequência apenas em formato manuscrito, não publicado,
o saber colonial sobre usos e costumes circulava no interior dos trâmites
informacionais da actividade administrativa, na qualidade de relatórios, ofícios, cartas
e, talvez, questionários.19
É exemplar, a este respeito, o próprio trabalho de Celestino da Silva. Em 1901, o
governador remeteu ao Ministro dos Negócios da Marinha e Ultramar, na forma e no
estilo de relatório, um desses peculiares produtos literários resultantes da observação
de usos e costumes timorenses.20 No relatório, o governador alongava-se em
comentários, digressões e descrições ‘antropológicas’ sobre história, raças, línguas e
costumes de Timor, detendo-se em especial nos procedimentos costumeiros
referentes à eleição e nomeação de reis indígenas. Celestino da Silva afirmava aqui
que adoptava, na sua prática de governação, os antigos usos e costumes timorenses
de eleição e nomeação de reis ou régulos – embora mantivesse como vagamente
desejável num futuro mais ou menos longínquo terminar-se com o poder dos régulos e
a vigência do direito costumeiro. Contudo, no mesmo passo que confessava a sua
obediência exacta aos usos timorenses relativos a esse costume imemorial de eleição
de chefes, explicava que os portugueses tinham participado activamente na sua
formação histórica. Nas palavras de Celestino da Silva: ‘o régulo foi imposto aos
pequenos estados submetidos pelo governador, e da autoridade deste lhe deriva todo
o poder. A eleição foi uma condescendência dos primeiros governadores, uma
artimanha política, de que se serviram para diminuir ou anular dificuldades, e que
passou para os costumes, para os 'estylos' como regra’.21 A ressalva é importante,
uma vez que abre um novo e importante eixo de questionamento sobre a
racionalidade mimética da governação colonial em Timor. Trata-se da possibilidade de
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os costumes indígenas tomados como referente de alteridade para a estratégia
colonial de imitação da justiça possuírem, afinal, uma origem colonial, uma quota-parte
portuguesa. Isto é: o que os portugueses do século XIX percebiam como costumes e
instituições timorenses no domínio da política e da justiça podia também corresponder
a práticas e regras introduzidas pelos próprios portugueses em séculos passados.
Conclusão
No tocante à administração colonial da justiça e da autoridade política, sugeri
aqui que, em Timor Leste na transição para o século XX, nos deparamos com o que
parece consistir numa aliança entre um modo de governo estrategicamente
organizado por uma racionalidade mimética, e um modo de saber, arquitectado ao seu
serviço, que toma a forma de tecnologia mimética de conhecimento e poder. Para esta
orientação administrativa, contava, em primeiro lugar, a capacidade de fazer reger a
autoridade europeia por princípios, regras, tradições e costumes locais – costumes
reconhecidos como distinta e genuinamente ‘timorenses’, com força de lei, os
chamados estilos. Este modo de governo era desenhado de modo a implicar
processos de saber de tipo antropológico que, ao constituírem os usos e costumes
indígenas enquanto realidade diferente da ordem jurídica europeia, serviriam a
incorporação na própria prática administrativa da alegada alteridade dos usos e
costumes timorenses. Ou seja: um conhecimento orientado para gerar relatos,
descrições, imagens do Outro capazes de articular, na prática, a reprodução desse
mesmo Outro – não importando aqui se essas imagens eram ‘reais’ ou ‘fictícias’.
É possível que, muitas vezes, os usos e costumes timorenses descritos por
estes relatos não correspondessem à idealizada alteridade perfeitamente fixa e
delimitada. Pois o que nos sugere também os conteúdos desse mesmo saber colonial
sobre usos e costumes é o importante papel que os portugueses parecem ter tido na
sua formação e activação, ao longo dos séculos da sua presença em Timor. Este
elemento adiciona complexidade à linearidade aparente da racionalidade mimética
advogada pelos colonizadores. Afinal, em alguns casos, os colonizadores de
Oitocentos, ao argumentarem copiar o Outro, estariam também a reeditar-se a si
mesmos, a incorporar na prática colonial a representação parcial de um Eu passado.
Neste sentido, em especial no caso de Timor, o estudo histórico e antropológico da
pragmática da imitação colonial inscrita no que chamei de racionalidade mimética de
governo deverá atender a uma importante dimensão: a profundidade e longevidade
histórica das interacções entre Europeus (os portugueses, mas na zona de fronteira,
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também os holandeses) e Timorenses no plano jural, nomeadamente o facto de, ao
longo dos séculos, esta interacção se ter alimentado, de forma variável e contingente
no tempo e no território, de processos de imitação mútua.
Tendo em conta futuros desenvolvimentos da hipótese apresentada neste
ensaio dois aspectos adicionais devem ser apontados. Por economia do argumento
privilegiei aqui os materiais empíricos que dão desta racionalidade mimética a sua
expressão local ou colonial, no quadro restrito do governo de Timor num curto
momento histórico. Referi-me já a importância de ver estes processos na longa ou
média duração das interacções entre Europeus e Timorenses desde, pelo menos, os
séculos XVII e XVIII. Todavia, e não obstante a autonomia relativa destes processos
no caso timorense, importa sublinhar ainda dois pontos comparativos que, embora não
explorados aqui, devem ser contemplados numa compreensão mais ampla deste
fenómeno. O primeiro diz respeito às relações variáveis que a racionalidade
governativa em Timor manteve com a política imperial proposta a partir da metrópole,
ao longo do tempo. Essa relação, no caso de Timor, foi em muitos momentos
problemática e conturbada. Mas no período em análise, por exemplo, essa relação foi
virtuosa. O modelo mimético advogado em Timor foi reconhecido e legitimado pela
metrópole através da aprovação da adaptação do regulamento geral da justiça
ultramarina à colónia de Timor. Tal facto revela a sintonia que os argumentos locais
mantiveram então com os princípios tardo Oitocentistas de administração jurídica
colonial e de constituição da cidadania em Portugal que sublinhavam o valor do
princípio da diferenciação e da ‘especialização’ em oposição ao modelo ‘liberal’
‘assimilador’ e universalista.22 O segundo aspecto prende-se com as circulações de
modelos e ideologias administrativas relativas a usos e costumes, entre diferentes
impérios e diferentes colónias (quer dentro do império português, quer para além dele)
– circulações também elas potencialmente imitativas. Refiro-me à possibilidade de ver
na administração mimética de costumes um modelo de governamentalidade colonial
mais abrangente na política imperial e colonial do século XIX, cujas articulações não
se restringem ao que defendiam os administradores portugueses. Com efeito, é
provável que, na defesa deste modelo nesse período histórico, se tenha procurado
inspiração e legitimação em imagens e doutrinas originárias de outras nações
europeias ou de outras colónias e impérios. No caso de Timor, isto inclui não só a
referência das vizinhas colónias do império holandês, mas também o imaginário do
‘exemplo inglês’, o império britânico tantas vezes elogiado e elegido no discurso
colonial português da época como modelo a imitar. Estas relações e circulações,
contudo, estão por investigar.
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Notas
1
Uma versão inicial deste artigo foi apresentada no IV Congresso da Associação Portuguesa de
Antropologia, em Setembro de 2009. O texto constitui um produto preliminar de uma pesquisa sobre o
estudo e governação de usos e costumes em Timor, enquanto modalidade das múltiplas expressões da
imitação colonial no império português dos séculos XIX e XX. Este trabalho resulta do projecto Mimetismo
Colonial na Ásia e África Lusófonas, em curso no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (PTDC/CS-ANT/101064/2008).
2
A bibliografia a este respeito é longa. As referências seminais desta tradição podem localizar-se nos
trabalhos de Edward Said, em especial Orientalism (Londres: Penguin, 1978), e de Bernard S. Cohn,
coligidos em An Anthropologist Among the Historians and Other Essays (Oxford: Oxford University Press,
1987) e Colonialism and Its Forms of Knowledge (Princeton: Princeton University Press, 1995).
3
Nicholas Dirks, ‘Introduction: Colonialism and Culture’, in Nicholas Dirks (ed.), Colonialism and Culture,
Ann Arbor, University of Michigan Press, 1995, p. 3.
4
Cf. Michael Taussig, Shamanism, Colonialism, and the Wild Man. A Study in Terror and Healing
(Chicago: University of Chicago Press, 1987). Ver também: Michael Taussig, Mimesis and Alterity: A
Particular History of the Senses (New York: Routledge), esp. pp. 59-63. Compare-se, para outro tipo de
usos recentes do trabalho de Taussig no contexto da história imperial e colonial, Natacha Eaton, ‘Between
Mimesis and Alterity: Art, Gift, and Diplomacy in Colonial India, 1770-1800’, Comparative Studies in
Society and History, 46:4 (2004), pp. 816-844. Da perspectiva sobretudo da literatura e dos estudos
culturais: Barbara Fuchs, Mimesis and Empire. The New World, Islam, and European Identities
(Cambridge: Cambridge University Press, 2001). Importa observar que, na esteira dos influentes estudos
de Paul Stoller e de Homi Bhabha, o tratamento convencional dos temas da mimese e da imitação tem
privilegiado quase em exclusivo os fenómenos miméticos protagonizados pelos ‘colonizados’. Cf. Homi
Bhabha, ‘Of Mimicry and Man: The Ambivalence of Colonial Discourse,’ October 28 (1984): 125-133; Paul
Stoller, Emboding Colonial Memories: Spirit Possession, Power, and the Hauka in West Africa (New York:
Routledge, 1995).
5
A tensão atravessa em especial a reflexão e as controvérsias sobre a questão do ‘pluralismo jurídico’,
nomeadamente em contextos africanos. Para um texto em português que oferece uma concisa revisão
crítica deste debate veja-se Sara Araújo, ‘Pluralismo jurídico em África. Ficção ou realidade?’, Revista
Crítica de Ciências Sociais, 83 (2008), pp. 121-139.
6
Aprofundo noutro texto os múltiplos componentes associados aos constrangimentos da presença
colonial portuguesa em Timor neste período. Veja-se Ricardo Roque, ‘The unruly island: colonialism’s
predicament in late nineteenth century East Timor’, Portuguese Literary and Cultural Studies, 19 (2010), in
press.
7
De notar que também os reis podiam partilhar dessas condições de legitimidade, na medida em que
eram reconhecidos como delegados do governo e executores da justiça. Trato com maior detalhe o
funcionamento do governo político-jural colonial português em: Ricardo Roque, Headhunting and
Colonialism. Anthropology and the Circulation of Human Skulls in the Portuguese Empire, 1870-1930
(Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2010), esp. caps. 2 e 3.
8
Celestino da Silva para Ministro da Marinha e Ultramar, 5 Junho 1897, Arquivo Histórico Ultramarino,
Lisboa, Macau e Timor, ACL_SEMU_DGU_1R_002_Cx 10, 1897-1900.
11
Ricardo Roque Saberes Coloniais, Tecnologias Miméticas
9
colonialmimesiswordpress.com
Cf. Cristina Nogueira da Silva, ‘‘Missão civilizacional’ e codificação de usos e costumes na doutrina
colonial portuguesa (séculos XIX-XX)’, Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno,
33-34 (2004-2005), pp. 899-921.
10
Celestino da Silva para Secretário Geral do Ministério da Marinha e Ultramar, 11-1-1898, Lisboa,
Arquivo Histórico, Macau e Timor, ACL_SEMU_DGU_1R_002_Cx 10, 1897-1900.
11
Ibidem.
12
Albano de Magalhães, Estudos Coloniaes. I – Legislação colonial. Seu espírito, sua formação e seus
defeitos (Coimbra: F. França Amado Editor, 1907), p. 17.
13
Celestino da Silva para Ministro e Secretário da Marinha e Ultramar, 25 Jan. 1901, Lisboa, Arquivo
Histórico Ultramarino, Macau e Timor, 11, 1901-1904; Celestino da Silva, Relatório das operações de
guerra no Districto Autónomo de Timor no anno de 1896 enviado ao Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios da Marinha e Ultramar (Lisboa: Imprensa Nacional, 1897), p. 38.
14
Ibidem, p. 42.
15
Celestino da Silva, Instrucçoes para os commandantes militares (Macao: s.ed., 1896), p. 5.
16
Celestino da Silva, Relatório das operações de guerra, p. 43.
17
Em 1908-1909, o governador Eduardo Marques terá promovido um inquérito sistemático de
levantamento dos usos e costumes tradicionais, através de um questionário lançado a oficiais e
funcionários. Pouco se sabe actualmente dos processos e dos resultados desse inquérito, embora não
haja notícia de qualquer código de usos e costumes timorenses com força legal, até pelo menos a década
de 1930. Cf. Luís da Cunha Gonçalves, ‘Direito Consuetudinário dos Indígenas de Timor’, Memórias da
Academia de Ciências de Lisboa (Classe de Letras), I (1936), 203-204.
18
Neste sentido, o tema do estudo de usos e costumes era visível também em relatórios de guerra. Foi,
por exemplo, em sintonia com este programa que o secretário de governo de Timor em 1894-95, capitão
Eduardo da Câmara, apresentou a Celestino da Silva o seu relatório da campanha contra a ‘rebeldia’ dos
povos de Obulo e Marobo, com a intenção de descrever alguns usos e costumes guerreiros das tropas
auxiliares sob o seu comando. Cf. Eduardo da Câmara to Celestino da Silva, 25 Maio 1895, Lisboa, AHU,
Macau e Timor, ACL_SEMU_DGU_RM_005_Cx 1, 1890-1899.
19
Este, porém, é um campo de pesquisa que não se encontra ainda devidamente explorado, pelo que
importa resguardar a possibilidade de o trabalho de pesquisa nos vir a mostrar as configurações exactas
deste tipo de saber, no que toca, entre outros aspectos, aos géneros literários em que descrições de usos
e costumes eram produzidos; aos circuitos de leitura em que apareceram; ou aos efeitos concretos
gerados nas práticas de administração.
20
Celestino da Silva para Ministro e Secretário da Marinha e Ultramar, 25 Jan. 1901, Lisboa, AHU, Macau
e Timor, ACL_SEMU_DGU_1R_002_Cx 11, 1901-1904. O estudo detalhado deste relatório encontra-se
actualmente em curso.
21
22
Ibidem.
Cf. Cristina Nogueira da Silva, Constitucionalismo e Império: A Cidadania no Ultramar Português
(Coimbra: Almedina, 2009).
12
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