PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014)
Narrativas publicitárias e práticas de consumo: a experiência do
tempo no capitalismo contemporâneo1
Felipe Correa de Mello2
ESPM
Resumo
A partir das pistas apontadas por Baccega (2010; 2012) acerca dos desafios que o campo da
comunicação e educação articulado ao consumo deve se ocupar, propomos, neste artigo, fazer
alguns apontamentos sobre a experiência de fragmentação e de efemeridade do tempo na
sociedade de consumo contemporânea. Nosso percurso expositivo envolve uma primeira parte
teórica na qual apontamos algumas características do campo da comunicação/educação e
consumo, para, em seguida, fazermos alguns apontamentos sobre a experiência do tempo nas
práticas de consumo e narrativas publicitárias — uma das mediações que o campo deve melhor
compreender, se temos em mente uma concepção mais científica acerca de nossa sociedade.
Palavras- chave: comunicação e educação; consumo; narrativas publicitárias,
temporalidades
Introdução
A partir das pistas apontadas por Baccega (2010; 2012) acerca dos desafios que
o campo da comunicação e educação articulado ao consumo deve se ocupar, propomos
fazer alguns apontamentos sobre a experiência de fragmentação e de efemeridade do
tempo na sociedade de consumo contemporânea.
Sem termos a pretensão de realizar uma abordagem quantitativa, propomos
apontar alguns aspectos sociais e culturais acerca das práticas de consumo em nossa
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 8 – Comunicação, Educação e Consumo do 4º Encontro
de GTs - Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014.
2
Doutorando em Comunicação e Práticas de Consumo (PPGCOM-ESPM, São Paulo), pesquisador do
Grupo CNPq de Pesquisa em Comunicação, Educação e Consumo (ESPM).
[email protected]
1
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sociedade.
Como corpus nos servimos de análises gerais acerca de contextos
socioculturais contemporâneos, bem como de análise de duas peças publicitárias.
O consumo se relaciona com o campo da comunicação em diversas dimensões.
Ele está presente nas conversas cotidianas, nas manifestações culturais, entre outras
situações de comunicação (BACCEGA, 2009b, 2010, 2012). Está presente sobretudo
nos meios de comunicação, destacando-se a publicidade — principal sistema voltado
para a divulgação e estetização das coisas/mercadorias.
Enquanto importante ponto de convergência de linguagens, a publicidade
relaciona-se com o cotidiano de seus interlocutores e desse diálogo extraí sentidos,
imaginários, representações, estereótipos etc. — matérias primas de seu discurso.
Constituí-se como importante mídia na produção e circulação dos sentidos sociais.
Compreender o discurso publicitário é, portanto, fundamental para melhor
entendermos nossa sociedade. Como informa Baccega (2009b, p. 19):
Metáforas e narrativas que definem o consumo e o consumidor, muito
usadas pela linguagem publicitária e pela sociedade como um todo,
constroem um espaço conceitual no qual se entrecruzam tendências
que, embora pareçam contraditórias, acabam por revelar a
complexidade do ato mesmo de consumir, no qual aparecem tanto os
traços das representações promovidas pela mídia e pela
transformação intensa das relações sociais em mercadoria, quanto as
múltiplas formas de sua manifestação [...].
Nosso percurso expositivo envolve uma primeira parte teórica na qual
apontamos algumas características e desafios do campo da comunicação e educação
articulado ao consumo, para, em seguida, fazermos alguns apontamentos sobre a
experiência do tempo nas práticas de consumo e narrativas publicitárias — uma das
mediações culturais que o campo deve melhor compreender, se temos em mente uma
concepção mais científica, menos senso comum, acerca de nossa sociedade.
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1.
O campo da comunicação e educação articulado ao consumo
No mundo contemporâneo as agências tradicionais de socialização — família,
igreja e escola — se deparam com a presença dos meios de comunicação como agência
privilegiada na conformação dos sentidos sociais. Dentre outras implicações, essa
situação aponta para o fato de que a escola deixa de ser o único espaço socialmente
consagrado e legitimado de produção do saber, tendo que concorrer com os meios de
comunicação o papel de formação dos indivíduos.
É no espaço de intersecção entre os meios e a escola que o campo da
comunicação/educação tem a base de sua configuração. Interessado na disputa pela
hegemonia dos significados sociais em direção à construção de uma nova variável
histórica, mais justa, inclusiva e igualitária, o campo tem como uma de suas tarefas
iluminar as possibilidades de diálogo entre as duas agências (BACCEGA, 2009a).
Nesse âmbito de relação entre as agências de socialização, e perpassando elas,
emerge a questão do consumo (BACCEGA, 2010, p. 51). Marca da sociedade
contemporânea, o consumo atravessa nossas práticas sociais e opera como importante
mediação na constituição dos sujeitos e dos sentidos sociais.
Assim, todo o esforço que objetive conhecer devidamente nossa sociedade e que
tenha como projeto fornecer ao sujeito as condições de pensar-se a si mesmo enquanto
sujeito crítico, apto para atuar na transformação da realidade social, deve incorporar o
consumo como objeto de conhecimento e reflexão. Nesse sentido, o consumo está
relacionado fortemente “com a educação, formal ou não, por ser aí o locus privilegiado
do cidadão crítico” (BACCEGA, 2010, p. 52).
O campo da comunicação/educação, constituído como lugar privilegiado na
construção dos sentidos sociais, deve, no processo de desvelar as práticas socioculturais
em suas autênticas inter-relações, contribuir para a reflexão acerca das concepções e
das práticas de consumo que perpassam o conjunto da vida social. Nesse caminho,
deve mostrar que o consumo não se reduz ao consumismo e que “é indispensável à
existência de qualquer sociedade” (BACCEGA, 2010, p. 52).
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O consumo, em nossa perspectiva, é compreendido como uma prática
significativa (MCCRACKEN, 2013) que manifesta e concretiza as práticas
socioculturais e o imaginário de uma sociedade (BACCEGA, 2012). Uma linguagem
que comunica determinados valores, posições de classe, gostos e estilos de vida etc. Já
o consumidor é concebido como sujeito que de alguma forma encontra na prática de
consumo a possibilidade de compor sua identidade — através de processos de inclusão
em grupos e coletividades e/ou através de processos de distinção social.
Assim, o campo da comunicação/educação articulado ao consumo não se
resume a posturas simplistas como a de fornecer uma espécie de manual de
comportamento do consumidor ou a prática de garantia dos direitos básicos do
consumidor — como o de verificar a data de validade no rótulo de um alimento
(BACCEGA, 2012) ou a de exigir das empresas preço razoável e qualidade adequada
em relação aos produtos e serviços ofertados. Vai mais além: faz parte de um processo
formativo que venha a contribuir para conhecimento crítico e reflexivo que articule as
práticas de consumo com a realidade cultural total onde se dão as relações sociais.
Nesse processo podem ser destacados pelo menos quatro desafios fundamentais
que o campo da comunicação/educação articulado ao consumo deve enfrentar: em
primeiro lugar, o campo deve reconhecer que a produção do conhecimento sobre a
realidade social implica um enfoque integrador que se sirva do diálogo com outras
disciplinas.
Nesse sentido, o campo é constituído a partir da multi, inter e
transdisciplinaridade. Esse processo é tanto mais necessário, em direção à formação
geral e humanística dos sujeitos, quanto mais complexa são as dinâmicas sociais em
tempos de mudanças tecnológicas e digitais e do crescente poder das marcas e
corporações transnacionais (SCHOR, 2007, p. 25).
Em segundo lugar, compete ao campo uma concepção mais ampla e inclusiva
de campo cultural, para que nela esteja contemplado o “conjunto de relações sociais
que incluem atores, instituições e empresas, públicas ou privadas, que se voltam para a
produção e circulação de bens simbólicos” (BACCEGA, 2009a, p. 24). Quer dizer, para
o campo da comunicação/educação articulado ao consumo, a cultura não deve ser
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compreendida somente como os bens culturais tradicionalmente reconhecidos —
literatura, música, artes plásticas —, mas sim como o conjunto de toda produção
simbólica. Em terceiro, compete ao campo o conhecimento de que o mundo a que temos
acesso é o mundo editado e entregue para nós pelos meios de comunicação e que é
justamente neste mundo e com este mundo que o campo deve se ocupar no projeto de
transformação de nossa sociedade. Cabe ao campo mostrar aos sujeitos que o mundo
entregue pelos meios enquanto totalidade é tão somente um recorte da realidade eivado
de ideologia e interesses, sobretudo econômicos, e que contribui fortemente para a
naturalização das situações de injustiça, exclusão e desigualdade social.
Finalmente, em quarto lugar, compete ao campo “conhecer e vivenciar os
desafios das novas concepções do tempo e espaço” (BACCEGA, 2009a, p. 24). Quer
dizer, compreender o “impacto” que as novas mídias e o sistema produtivo têm em
produzir sentidos de fugacidade e instantaneidade do tempo.
Intimamente relacionados, esses desafios implicam levar o sujeito a ter
consciência das mediações culturais que fazem parte de sua vida e da importância da
comunicação e do consumo (bem como dos dispositivos tecnológicos enquanto bens,
materiais e simbólicos, de consumo e de comunicação) na construção da trama cultural
— condição indispensável para a construção de consumidores e receptores críticos e
reflexivos.
2. A experiência do tempo na sociedade de consumo
No livro “A condição pós-moderna”, David Harvey (2001) nos mostra que a
transição do fordismo para a acumulação flexível é inseparável de mudanças na
experiência social do espaço e do tempo. Designada pelo autor como “compressão do
tempo- espaço” essa nova experiência tem tido, a partir da década de 1970 até os dias
de hoje, “um impacto desorientado e disruptivo sobre as práticas político-econômicas,
sobre o equilíbrio do poder de classe, bem como sobre a vida social e cultural”
(HARVEY, 2001, p. 257).
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Em linhas gerais, a aceleração do tempo de giro da produção econômica,
característica do novo modelo, implica dois processos sincrônicos e contraditórios: por
um lado, a dispersão e a fragmentação espacial e temporal; por outro, a compressão do
espaço – a ruptura de fronteiras e distâncias espaciais – e a compressão do tempo –
“tudo se passa agora, sem futuro e sem passado” (CHAUI, 2008. p. 62). Em outros
termos: o capitalismo contemporâneo é marcado pela vivência de um espaço
indiferenciado (composto por uma multiplicidade de imagens sobrepostas) e um tempo
efêmero e volátil, desprovido de profundidade.
No domínio das trocas comerciais, essas mudanças implicam um crescente
aumento no ritmo de consumo de bens materiais e dos bens simbólicos que envolvem
esses primeiros – valores, estilos de vida, tendências etc. Nessa nova forma de
acumulação do capital, as pessoas, estimuladas pelas empresas e pelos campos de
produção simbólica (sobretudo a publicidade), são instadas “a lidar com a
descartabilidade, a novidade e as perspectivas de obsolência instantânea” (HARVEY,
2001, p. 258). Instaura-se, assim, um ciclo de “compra-descarte-compra-descarte” que
garante o escoamento e o consumo dos bens, que são produzidos cada vez em maior
velocidade e em maior quantidade, garantindo a manutenção do sistema capitalista.
Nesse contexto, Baudrillard (2007) fala da sociedade de consumo como marcada pela
dinâmica da abundância de objetos e produtos.
Com efeito, o filósofo francês (2007, p. 15) argumenta que na sociedade de
consumo os indivíduos são rodeados por uma multidão de objetos, de serviços e de bens
materiais, num fenômeno que implica uma “mutação fundamental na ecologia da
espécie humana”. Na compreensão do autor (2007, p. 15-6), as pessoas na sociedade
de consumo, vivem o tempo dos objetos. Quer dizer, existem de acordo e em
conformidade com o ritmo e a sucessão permanente dos objetos: ao contrário de outras
civilizações, nas quais os objetos (instrumentos ou monumentos) sobreviviam às
sucessivas gerações humanas, na era contemporânea, são os indivíduos que presenciam
o nascimento, produção e morte dos objetos (BAUDRILLARD, 2007, p. 15-6).
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A despeito dessa perspectiva encerrar uma visão “totalizante” da sociedade,
uma visão homogênea do mercado e de dar pouco crédito à capacidade ativa do
consumidor, um dos méritos da obra de Baudrillard reside em, por outro lado, mostrar
a centralidade do consumo na sociedade contemporânea — e, dessa forma, a
impossibilidade dos indivíduos rejeitarem o consumo como uma forma de vida —; por
outro, enfatizar a dimensão simbólica do consumo (SCHOR, 2007, p. 24).
Harvey (2001, p. 260) alude à obra de Baudrillard e identifica a centralidade
que a imagem ocupa em nossa sociedade. Segundo a leitura de ambos, o capitalismo
contemporâneo tem como preocupação fundamental a produção de sistema de signos e
de imagens e não a produção das próprias mercadorias. Assim, os valores de utilidade
dos produtos são suplantados pelo valor simbólico que carregam.
Na sociedade do descarte e da abundância, a obsolência programada não reside
no tempo de vida curto do bem material, mas sim no tempo de vida curto das imagens
e sistemas simbólicos. Passa-se para a era da obsolência dos significados. Os produtos
e bens não são descartados porque eventualmente se desgastaram e assim perderam seu
valor de utilidade; são descartados porque foram substituídos por novos produtos que
apontam para novos valores.
Nesse contexto, jogam papel fundamental os sistemas de produção e circulação
de signos e imagens. A propaganda e as imagens midiáticas ocupam a função de
integradoras das práticas culturais, “tendo assumido agora uma importância muito
maior na dinâmica do crescimento do capitalismo” (HARVEY, 2001, p. 259). Como
observa Lazzarato (2006, p. 102), hoje as empresas chegam a investir mais dinheiro em
comunicação do que investir em máquinas e fábricas (“os meios de produção”). A
marca e a imagem são os ativos mais importantes e valiosos que as empresas possuem.
Por conta da revolução eletrônica e da informatização dos meios de
comunicação, nos dias de hoje, essas imagens circulam pelo globo num curto espaço
de tempo e em grande quantidade, dando a sensação não só de efemeridade, mas
também contribuindo para a superação das barreiras espaciais. Um acontecimento do
outro lado do planeta, chega a nós no mesmo instante de sua ocorrência e faz com que
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experimentemos como se estivessem acontecendo aqui e agora, no mesmo espaço que
ocupamos.
Mais: a sobreposição de imagens vindas de todos os lugares do globo faz com
que experimentemos todas as culturas globais num só instante. No campo do consumo
esse fenômeno, atrelado à fragmentação e a globalização econômica, possibilita o
acesso de bens produzidos em diversas partes do mundo. Nos shopping centers e
supermercados, os produtos e marcas franceses, italianos, norte-americanos, chineses
etc. estão “ao alcance de uma compra”. Na sociedade contemporânea perde-se a
sensação de profundidade do tempo e do espaço, mas nesse mesmo fenômeno as
empresas buscam a conquista de mercado. A efemeridade e a comunicabilidade
instantânea no espaço são exploradas e apropriadas pelo capitalismo e tornam-se
virtudes (HARVEY, 2001, p. 260).
Instantaneidade e o valor da inovação nos discursos publicitários
Aludindo à clássica obra de Alvin Toffler, “O choque do futuro” (1970), Harvey
(2001) nos informa que numa sociedade em que o tempo é experimentado como
descontínuo e efêmero, o sentido do futuro se perde, só podendo ser recuperado se
descontado no presente. Podemos notar esse fenômeno em diversos discursos
publicitários e práticas de marketing: empresas de ramo da moda que antecipam suas
coleções e antes que o inverno tenha começado já lançam a coleção de primavera;
produtos que prometem resultados instantâneos, como cremes dentais que garantem o
clareamento em duas semanas, uma, ou até imediatamente; escolas de inglês que
entregam a fluência em “mágicos” dezoito meses etc.
Um exemplo particularmente representativo desse fenômeno são propagandas
de automóveis que oferecem a possibilidade de seus consumidores experimentarem as
benesses do futuro já no “aqui e agora” do presente. Conforme podemos observar nos
dois anúncios abaixo:
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O primeiro anúncio faz parte da campanha de lançamento do Novo Ford Focus
2014, foi primeiramente veiculada no final de 2013. Além de propaganda impressa, a
campanha conta com uma série de filmes, hotsites e mídias digitais, nos quais são
apresentados os atributos e valores que envolvem o novo modelo do carro da Ford.
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Num dos comerciais, o Novo Ford Focus aparece rodando numa cidade que emula o
cenário de filmes de ficção científica como Blade Runner e Minority Report. Enquanto
transita junto a carros voadores e em meio a edifícios futurísticos, o narrador pergunta
ao espectador se ele se lembra de como nos “filmes futuristas os carros eram
supertecnológicos”. Uma a uma, o narrador vai elencando as características desses
carros do futuro: os carros falam; os carros dirigem sozinhos; os carros são inteligentes;
os carros “até voam”. À medida em que o narrador menciona essas características é
estabelecido um paralelo com o Novo Ford Focus, que possui atributos análogos a cada
uma dessas características dos carros do futuro: sistema de GPS e de gerenciamento por
áudio (falam), sistema de Estacionamento automático (dirigem sozinhos), faróis de
xênon com acendimento automático (inteligentes), motor 2.0. 128cv (voam). O
comercial é encerrado com o slogan “Novo Ford Focus, tecnologia do futuro em sua
garagem”.
Já o segundo anúncio faz parte da campanha do novo Mitsubishi Lancer 2013,
que foi veiculada em 2012. Essa campanha teve bastante repercussão nos meios de
comunicação especializados em marketing e propaganda e em parte do público, pois
contou com cenas do clássico filme De volta para o Futuro de 1985. O slogan da
campanha foi “O futuro é mesmo surpreendente”.
Como é fácil notar, nos dois anúncios o futuro é trazido até o presente através
da tecnologia dos novos carros. Em ambos, o efeito de sentido produzido é defesa da
noção de progresso da sociedade via desenvolvimento científico e tecnológico. Esses
dois atributos, ciência e tecnologia, colocados como valores fundamentais e
inquestionáveis da sociedade capitalista; e, a adjacente a eles, o reforço do sentido
positivo atribuído ao novo e ao inovador.
O novo como virtude é traduzido também no modo como são nomeados os
automóveis. O ano do carro ao lado de seu nome, constitui-se como elemento
fundamental para diferenciá-lo, logo para lhe atribuir valor. O mesmo ocorre com o
adjetivo “novo” que opera como um reforço, caso o sentido tenha por um acidente
escapado. Aqui o excesso e a tautologia são usados como recursos retóricos para
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reforçar a presença da marca, a identidade do produto. Não se trata do Ford Focus. Mas
sim do Novo Ford Focus 2014. Não se trata do Mitsubishi Lancer. Mas sim do Novo
Mitsubishi Lancer 2013.
Nessa operação de produção de novos modelos e de produção de discursos que
revestem esses bens materiais de uma rede de valores simbólicos os modelos dos anos
passados são lançados à vala comum da obsolência.
A pressão pela urgência do tempo e pela instantaneidade é materializada no
discurso publicitário das duas peças através dessa operação de trazer o futuro para o
presente. O efeito de sentido é de que o consumidor não precisa esperar o desenrolar da
história para ter em sua garagem o carro do futuro. Esse, já está disponível em qualquer
revendedora Ford ou Mitsubishi.
E como estamos falando de uma lógica temporal cada vez mais marcada pela
efemeridade, o processo de obsolência simbólica torna-se também cada vez mais
rápido. Hoje em dia, não só o modelo do ano 2014 “desloca” o modelo do ano 2013,
como também já no início de 2014 a imagem do próximo modelo começa a aparecer
nos discursos publicitários; conforme podemos observar no vídeo do comercial do
Novo Ford Focus, disponibilizado no youtube em fevereiro de 2014, e que nos convida
a conhecer, com um clique, o Novo Ford Focus 2015 “que já foi reestilizado na
Europa”.
Cabe ressaltar que o campo publicitário não instaura os discursos que expressam
a sensação de efemeridade e a celebração do “novo”. Seus discursos estão inseridos
numa cadeia discursiva. Eles dialogam com o “espírito do tempo” do capitalismo
contemporâneo e desse diálogo extraem parte de sua eficácia comercial e retórica:
O publicitário é um comunicador, sujeito que assume o discurso
da comunicação, com sua natureza de redesenho dos discursos
sociais em circulação. Como enunciatário dos discursos sociais,
tem, como qualquer sujeito, a condição de reelaborá-los. Na
construção dessa reelaboração utiliza-se predominantemente da
sensibilidade, matéria prima da sua prática profissional, a qual
se destina, em geral, à divulgação de um produto, de um
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serviço, uma ideia ou um comportamento. É essa sensibilidade
diferenciada que lhe possibilita respeitar o universo social de
seus enunciatários, modo de dar-lhes voz, com eles dialogando
(BACCEGA, 2008, p. 32).
Por outro lado, não podemos ignorar a assimetria de capitais (social, simbólico
e financeiro) entre o campo publicitário e os consumidores. A relação de diálogo entre
o polo emissor (a publicidade) e os receptores é uma relação não equivalente. Quer
dizer, a despeito da dimensão ativa dos receptores, o campo publicitário dispõe de
maior poder para conformar os significados sociais, os imaginários, as representações,
os gostos etc. Dessa forma, contribui em muito na construção e reforço dos sentidos
sociais vinculados ao senso de efemeridade e ao elogio do “novo”.
Lazzarato (2006) argumenta que no capitalismo contemporâneo as máquinas de
expressão (opinião pública, comunicação e marketing) desempenham um importante
papel nas estratégias “de constituição e captura de consumidores”. Esse autor
caracteriza a sociedade contemporânea como “sociedade do controle” e defende que as
empresas possuem poder suficiente para produzirem mudanças nas “almas” e “corpos”
dos consumidores.
Nos dias de hoje, as empresas estão voltadas, em primeiro lugar, para a
construção de mundos possíveis — erigidos por meio de signos, imagens, apelos
publicitários etc. — que a todo instante e de forma sistemática convocam e comandam
os consumidores a fazerem parte deles. Nesse cenário, o poder de escolha do
consumidor é relativizado: sua liberdade é possível tão somente no interior das
virtualidades constituídas pelas empresas (LAZZARATO, 2006)3.
Para Lazzarato, a publicidade nada mais é que esse mundo possível
(LAZZARATO, 2006, p. 105). Ela, ocupa, assim, para além de seus fins comerciais, a
função “de inserir o que é anunciado —instituições, bens, serviços — em cenários do
3
O poder de escolha existe, uma vez que estamos falando de regimes de convocação por parte das
máquinas de expressão, logo da possibilidade de recusa desses; entretanto esse poder é limitado dentro
de uma lógica de assimetria de poderes e de estruturas do sistema capitalista em relação aos contextos
individuais. A esse respeito ver: SCHOR (2007).
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cotidiano e do imaginário dos consumidores, narrativiza a existência humana em torno
da presença de marcas” (CASAQUI, 2010, p. 4-5).
Na publicidade os objetos são envolvidos por uma aura e por uma
espiritualidade que transcendem as características puramente materiais desses. Em cena
não são colocados tão somente os bens e os serviços, mas também todo um universo de
magia, fascinação e imaginação predisposto a seduzir e trazer para dentro de si o
consumidor, que num ato de comunhão quase religiosa passa a fazer parte do mundo
possível em questão.
Assim, notamos que, embora nas duas peças sejam colocados os valores de uso,
materializados nos dispositivos tecnológicos dos automóveis, a linguagem publicitária
é revestida de um senso de fantasia — esse, reforçado pela alusão ao cinema norteamericano. O futuro que encontra o presente não é construído a partir de uma
preocupação realista. A tecnologia e o futuro trazidos pelas duas publicidades fazem
parte mais de um universo de ficção do que do universo da ciência. Ou melhor, fazem
parte do universo da ficção-científica: da mescla entre razão e imaginação, da síntese
entre realidade objetiva e fantasia “aurática”. Assim, a verossimilhança da narrativa é
garantida e o efeito de sentido de compressão temporal bem sucedido.
Considerações finais
A partir dos referenciais teóricos que trazemos neste trabalho, nos apegamos a
duas posturas sobre o consumo que devem se relacionar dialeticamente: por um lado,
uma postura que compreende de forma crítica o poder das empresas e dos sistemas
simbólicos sobre os consumidores — são as considerações de Harvey, Lazzarato e
Baudrillard —; por outro, uma postura que enfatiza a dimensão ativa e significativa do
sujeito consumidor.
Nesse sentido, seguimos as recomendações de Schor (2007) que argumenta que
os trabalhos de críticos do consumo como Baudrillard, Veblen, Adorno /Horkheimer e
Galbraith não deva de todo ser descartado. Segundo essa autora, devemos reter o que
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há de analiticamente fértil nas obras desses autores num processo de construção de “um
paradigma novo e crítico, que envolva as maneiras em que o consumo tem crescido e
transformado radicalmente as noções de individualidade, comunidade e relações sociais
no século XXI” (SCHOR, 2007, p.29).
Sem perder de vista as contribuições dos autores que apontam o consumo como
prática cultural significativa, bem como que iluminam a dimensão ativa das práticas de
consumo, a autora defende que a retenção do potencial crítico é fundamental para que
não se recaia numa visão romantizada da liberdade e do poder de escolha do
consumidor (SCHOR, 2007). Quer dizer, a despeito da consideração acerca da agência
do consumidor, é necessária uma reflexão sobre o consumo que contemple a força que
as empresas e o sistema capitalista possuem em conformar sentidos sociais — e nesse
sentido, a força que têm em conformarem subjetividades e identidades; ou para usar os
termos de Lazzarato (2006, p.102), “produzirem consumidores”.
É importante ressaltar que nossas observações sobre as estratégias empresariais
não tendem para o moralismo. Ao apontarmos algumas características da relação
consumo e efemeridade do tempo não estamos fazendo julgamentos de valores — não
estamos valorando negativamente o discurso publicitário—, mas sim estamos buscando
compreender alguns aspectos do consumo em nossa era, para melhor conhecê-lo e, se
for o caso, criticá-lo.
Afinal, para além de simplificações, compreendemos que “nos encontramos
com uma mescla realista de manipulação e liberdade de compras, de impulso e reflexão,
de comportamento condicionado e uso social dos objetos e símbolos da sociedade de
consumo (ALONSO, 2006, p.99).
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