PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) Reflexões acerca do consumo enquanto assunto na arte moderna e
contemporânea1
Marcio G. Casarotti2
ESPM /SP/ PPGCom – Grupo de Pesquisa (CNPq) “Comunicação, Consumo e
Arte
Resumo
Este artigo busca uma aproximação reflexiva ao território da arte moderna e contemporânea,
para entender como o seu desenvolvimento, entrelaçado ao surgimento da sociedade global de
consumo (e do hiperconsumo), vem constelando nas obras de arte, discursos e estéticas
singulares. Ao acompanhar essas historicidades - dialética e dialogicamente relacionadas encontra artistas e obras que refletem, refratam ou hibridizam diferentes visões e elementos
relacionados ao consumo. O consumo tomado ou citado como “assunto”da obra, desde
Braque e Picasso, o Dada, Hamilton, Warhol, até o universo criativo de Beatriz Milhazes.
Para celebrar ou tensionar o turbilhão atual de mecanismos, estratégias e combustíveis de um
tecido social assim fundamentado no consumo material e simbólico, constata-se uma
produção artística igualmente intensa, fermentada por renovados discursos que, oscilando
entre tradição e ruptura, originam expressividades em constante e diversificada expansão.
Palavras-chave: Consumo, representações do consumo na arte, arte na sociedade
contemporânea, arte moderna e contemporânea
Há cerca de 15 décadas, a partir de meados do séc. XIX, eclodiu um conjunto
de transformações que derrubaram os limites que impediam, durante muitos séculos
de história pregressa da humanidade, o acesso democrático à exposição, visitação,
informação e consumo da arte. As transformações ocorridas atingiram profundamente
os sistemas de produção e consumo, os campos e os mercados, os locais de exibição e
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Consumo, Literatura e Estética Midiática, do 5º
Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015.
2
Marcio Geraldo Casarotti, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo PPGCom ESPM-SP.
Pesquisador das interfaces da comunicação, arte e consumo nas sociedades contemporâneas. E-mail:
[email protected]
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) a caracterização do consumidor de arte. Até chegar aos dias de hoje, quando a arte
está naturalmente integrada ao cotidiano social. O reconhecimento dessas
transformações permite com mais coerência atingir o núcleo específico das reflexões
deste artigo: como artistas e movimentos utilizaram e vem utilizando do “consumo”
enquanto tema ou assunto3 na criação de suas obras de arte?
A partir de análises da produção artística do período e com o apoio de autores
coligidos, pode-se aqui constatar que o consumo vem se mostrando um assunto muito
referenciado na arte. Sobretudo pelo fato da sociedade ocidental ter se tornando
enormemente(senão totalmente) constituída pelas teias de suas relações de produção e
de trocas. Ao acessarem essa temática em seus trabalhos, artistas e movimentos
utilizaram posições ideologicamente diversas, uns mais integrados, celebrando em
suas obras os valores e símbolos hegemônicos, outros em posição de mais
neutralidade e abstração, outros ainda usando suas criações de maneira mais incisiva,
refratários ao establishment, criticando-o e exibindo suas distorções.
Fronteiras sendo ultrapassadas: da modernidade à contemporaneidade.
É importante atentar para a diferença que os termos moderno e contemporâneo
têm quando tratados na esfera da arte ou da história4. Neste artigo, sem prejuízo de
implicações conceituais mais profundas, é utilizado o referencial relativo ao campo
artístico e seus teóricos5. Assim, é um período que se estende da década de 1860 até a
atualidade, o qual carrega em sua historicidade significativas transformações na esfera
da economia e da sociedade, das identidades culturais, da subjetividade, das
3
No campo da arte, quando um artista ou um movimento artístico escolhe ou expressa ou “assunto” ,
isso se traduz por uma temática recorrente, em todo seu trabalho ou em épocas ou séries específicas.
Por exemplo pode-se dizer que um artista acessa a “brasilidade”como assunto. Um outro, as
fragmentações do tempo e do espaço; um outro as experimentaçoes ópticas e cromáticas. Um outro
grupo pode focar as questões de gênero. Ou raciais. Ou os festejos populares de seu lugar.
4
Historiadores situam o início da era moderna dentre os eventos ocorridos no século XV como a
tomada de Constantinopla, (1453) a chegada de Cristovão Colombo à América (1492) e outros. E
datam a história contemporânea começando com a Revolução Francesa, em 1789
5
Para Gombrich (1985), arte moderna começa com as pinturas de Paul Cézanne (1839-1906) e para
Ferrari (1999), a arte contemporânea pode ser considerada como as criações na pintura e arquitetura, o
neodadaísmo e a pop art, surgidas a partir do fim da II Guerra até a arte do agora, nos dias de hoje
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) tecnologias e da comunicação. Organicamente plasmadas. Transformações que em
sua turbulência foram (e são) vivenciadas e observadas pelos artistas e movimentos
como geradores de referenciais retóricos, estéticos, emocionais, entre outros que,
qual fragmentos de um caleidoscópio, vão sendo recolhidos e utilizados em suas
obras. E então se observa o surgimento de obras contendo tintas e processos fabris,
recortes de jornais, pedaços de embalagens, recortes de fotografias de revistas,
fotogramas de celulóide, parafusos, títulos de anúncios, fragmentos de tecidos, aparas
e descartáveis de fabricação, produtos de consumo icônicos em suas categorias, etc
Um dos principais saltos estruturais das sociedades ocidentais, na
passagem do séc. XIX para o séc XX, e causadores de mudanças fundadoras de novos
paradigmas, se deu na esfera econômica e cultural dos grandes centros industriais,
sobretudo da Europa e Estados Unidos, num movimento de expansão para outros
centros. Essa imbricação entre a economia e a cultura das sociedades é aqui melhor
compreendida sob a conceituação do materialismo cultural de Raymond Williams
(1992) que retoma e amplia Marx, apontando a base material como território de
produção e manifestação social da cultura, afirmando que ela está na totalidade do
processo social e só se pode pensar o que é cultura a partir da reflexão conjunta sobre
economia, sociedade, linguagem, arte e ideologia, e então considerar as várias
expressões formais e simbólicas que dessa conjunção emergem.
Na década anterior à 1ª Guerra Mundial, os modos de produção consolidavamse economicamente em uma sociedade industrial, que intensamente fabricava,
embalava e rotulava suas marcas em produtos destinados a inúmeros mercados
nacionais e internacionais. O que passou a exigir que os meios de comunicação de
massa, que também cresciam e se consolidavam, carregassem mais intensamente
tanto mensagens publicitárias destas empresas e produtos quanto, intencionalmente ou
não, discursos das ideologias hegemônicas que os produziam. Década após década,
interpelados por esses apelos da publicidade, do consumo, ao conhecimento das
novidades e das notícias e informações de outras culturas que surgiam constantemente
das diversas partes do planeta, a eclosão de uma guerra mundial seguida por outra e
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) seus desdobramentos geopolíticos e econômicos, os indivíduos começaram a
experimentar diversas mudanças em suas subjetividades e em seus papéis sociais.
Sintomas do fenômeno da “globalização”, citado por Giddens (1990), para o qual, "à
medida em que áreas diferentes do globo são postas em interconexão umas com as
outras, ondas de transformação social atingem virtualmente toda a superfície da
terra", fazendo cada vez mais as sociedades modernas em “sociedades em mudança
constante, rápida e permanentemente” como observou Hall( 2006), descrevendo
alguns aspectos dessas mudanças da modernidade e pós modernidade.
“O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e
estável, está se tornando fragmentado; composto de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. (...) O próprio processo de
identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais,
tornou-se mais provisório, variável e problemático”(Hall, 2006, p.12)
Estas constatações sobre as subjetividades no tecido social, tratadas por Hall
como identidades culturais, na medida que atingem e explicam os estados mentais e
emocionais dos indivíduos, desde muitas décadas também inundam e inspiram artistas
e movimentos a traduzirem em suas obras estas conjunturas, discursos e visualidades
em trânsito e colisão no mundo exterior. O autor continua, apontando que a identidade
se torna uma “celebração móvel (...)à medida em que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais
poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente.” (Hall, 2006, p.13)
O manancial de discursos, materialidades e referências estéticas, levou ao que
Debord(1997) viria a chamar de “sociedade do espetáculo”.
“O espetáculo, é simultaneamente o resultado e o projeto do modo de
produção existente.(...)Sob todas as suas formas de informação, propaganda
consumo direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente
da vida socialmente dominante. É a afirmação onipresente da escolha já feita
na produção, e no seu corolário — o consumo. Forma e conteúdo do
espetáculo são a justificação total das condições e fins do sistema
existente.(...) O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação
social entre pessoas, mediatizada por imagens.”(DEBORD, 1997, p.14-15)
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) No centro desse fluxo sócio-econômico instaurado pela modernidade estão os
produtos e seu consumo. E os indivíduos ao redor dos quais esses vórtices giram: os
consumidores cidadãos, como aponta Canclini (2008).
Essas ações políticas pelas quais os consumidores ascendem à condição de
cidadãos, implicam na concepção do mercado não como simples lugar de
troca de mercadorias, mas como parte de interações socioculturais mais
complexas. O consumo não é visto como mera possessão individual de
objetos mas como apropriação coletiva, em relações de solidariedade e
distinção com outros, de bens que oferecem satisfação biológicas, simbólicas,
e servem para enviar e receber mensagens. (CANCLINI, 2008, p.66)
Pierre Bourdieu (2000) já havia apontado os embates simbólicos dos
indivíduos pelas posições em seus campos instáveis de pertencimento. Para ele,
campos são espaços estruturados e dinâmicos, de posições e de detentores de capitais
materiais e simbólicos, entre os quais a hegemonia de definir o que é de bom gosto e
estabelecer distinções. O gosto serviria para classificar socialmente, operar distinções
e se relaciona com essa estratégica utilização de poder. Baccega (2011) amplia a visão
da subjetividade atingida pela “transformação intensa das relações sociais em
mercadorias ” e conclui:
“...são formas que se desenvolvem de acordo com os novos territórios de
pertencimentos que formam a subjetividade e constituem as identidades do
sujeito. A linguagem do consumo transformou-se numa das mais poderosas
formas de comunicação social, um dos indicadores mais efetivos das práticas
socioculturais e do imaginário.(...) Revela a identidade do sujeito, seu "lugar"
na hierarquia social, o poder de que se reveste. Como os meios de
comunicação,o consumo também impregna a trama cultural.”(BACCEGA,
2011, pg 33-34)
Todos esses fenômenos confluem nas décadas recentes para uma exacerbação
generalizada: o capitalismo de mercados globais frigindo nas contradições capitalismo
tardio; a tecnologia mostrando sua face invasiva para além da face utilitária, a colisão
de discursos e interpelações aos indivíduos nas múltiplas plataformas de comunicação
de massa quanto nas abordagens pessoais; a explosão da oferta de produtos e serviços,
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) as tensões nas subjetividade e a formação das tribos, entre outras. E a arte tentando
refletir esses tempos. Tempos complexos que seguem dividindo pesquisadores e
teóricos, a exemplo de Lipovetsky (2007) e Maffesoli (2010). Lipovetsky crê que o
conceito de pós-moderno é incapaz de entender a contemporaneidade e cunha a visão
da hipermodernidade, e com ela, o hiperconsumo. Entende os problemas da
atualidade, mas celebra algumas benesses. Já Maffesoli, aponta para o esgotamento
do tentativa de superação do pós-moderno, levando a atualidade a um estado cíclico
de desestruturação e reestruturação a partir dos mesmos conteúdos, explicado pelo
conceito de saturação. Saturação que veremos estar representada nas obras de
diversos artistas. “A matriz social moderna revela-se cada vez mais infecunda. A
economia, os movimentos sociais, o imaginário e até mesmo a política estão sofrendo
a ressaca de uma onda gigantesca cuja real amplitude ainda não se pode avaliar.
Mutação social que pede uma transmutação de linguagem: pós-modernidade é
isso“(MAFESOLLI, 2010, pg 11-12)
A arte e o mundo em turbilhonamento
Viu-se até aqui como o amadurecimento da revolução industrial no séc. XIX e a
consolidação de uma nova burguesia e dos assalariados empregados na indústria,
comércio e serviços, levaram em poucas décadas, a uma sociedade mercados
globalizada, que crescia retroalimentando-se de seus mais importantes combustíveis:
novas tecnologias e produtos, comunicação de massa e intenso consumo. E como isso
foi gerando um oceano de materialidades e discursos, atingindo e interpelando os
indivíduos. Como a noção de consumo e do que podia ser consumido se ampliava e
consumir, cada vez mais representava algo além do que a obtenção e consumação de
objetos e adquiria papéis simbólicos, identitários, distintivos, políticos.
Os
movimentos artísticos foram intensamente tangidos pelo “espírito dessas épocas” em
evolução. E as reverberações que o tema “consumo” , “consumir” tiveram em suas
obras mostraram-se – e mostram-se – eloqüentes, quer caracterizado como assunto
central de seus trabalhos, quer agregando-se a uma articulação temática ou
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) propositiva mais ampla. Pode-se então observar estas características, a partir da
análise de algumas obras relevantes.6 Se o referencial apontado nesse artigo foram as
últimas décadas do século XIX é também ali que pode ser encontrado um período
libertador da arte. O que Cézanne (1839-1906), a quem Matisse e Picasso chamavam
de “pai de todos nós”, e seus contemporâneos fizeram ao construir a ponte do
impressionismo para os movimentos estéticos que radicalizaram ainda mais a forma e
o conteúdo.
O Cubismo foi um dos mais importantes movimentos que surgiram no início
do século XX,
por volta de 1907, já na fase da arte moderna. Seus principais
protagonistas, Braque (1882-1963) e Picasso (1881-197), moravam em Paris e
portanto embebidos na pulsação de uma grande metrópole européia, ainda recendindo
o encantamento da grande exposição mundial de 1900. Os artistas traduziam essa
atmosfera experimentando ao máximo a composição, os materiais e os temas. O
consumo aparece como assunto em suas obras de maneira a mais revolucionar a
forma e o uso dos materiais do que com algum viés crítico. Produtos que os artistas
consumiam, ou estavam sendo consumidos naquela época. À partir do Cubismo, o uso
nas obras desses elementos começou a significar um indício de atualidade instantânea,
referências visuais conhecidas coletivamente, além de surpreender pela liberdade
instigante de se usar um material atipicamente deslocado de sua “função” estabelecida
pragmaticamente na sociedade. Na tela “Guitarra, folha de música e taça” de Picasso
(fig.1) pode se perceber o uso de um tipo de papel de embrulho decorado, na qual a
colagem de um retalho de partitura, e mais abaixo um recorte de capa de jornal,
convivem com massas de tinta coloridas, numa composição que fragmentadamente
lembra os objetos do título da obra. Em diversas outras obras da dupla, podem ser
encontrados fragmentos de embalagens, tickets de espetáculos, invólucros de produtos
ou guloseimas convivendo com tinta e outros materiais,na tela ou projetando-se dela
6
A maioria das obras discutidas neste artigo estão presentes no “Apêndice” e figuram como
reproduções de pequeno tamanho. Como algumas obras sao de grandes dimensões, o autor recomenda
que sejam acessados os links das imagens após as “Referencias bibliográficas”, para que a totalidade
de detalhes, tambem referenciados neste texto, possa ser admirada em maior grau.
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) para a tridimensionalidade. Avançando uns poucos anos pode-se ver surgir outro
vigoroso movimento artístico. O Dadaísmo. No entanto, um evento divisor de águas
separa os dois: a I Guerra Mundial. No Cubismo, a tentativa de tornar na tela tempo e
espaço ubíquos, como se experimentava no mundo exterior, inspirou uma
determinada sintaxe de visualidades fragmentada, festejando a tentativa de traduzir
aquele “tudo ao mesmo tempo agora”. No Dadaísmo, ficava mais claro o que a
presença de tantas máquinas, objetos, informações, novos papeis e rotinas de trabalho
estavam trazendo. Houve a percepção terrível que esse fluxo “de maravilhas” havia
conduzido as sociedades a uma sangrenta guerra. E a arte, entretida no turbilhão de
novidades, incapaz de ser uma força de continência dessas barbáries. O Dada se se
apropriava da fragmentação anterior cubista, para transmutá-la num caleidoscópio de
significados, lógicas e composições formais em choque. Uma modalidade de anti-arte,
ou de negação amoral dos significados, que embora impactante e disruptiva, exprimia
o beco ético e estético a que a humanidade havia se conduzido. A colagem
“ABCD”(fig.2) do austríaco Raoul Hausmann(1886-1971 exibe essa visualidade
esfacelada. Fragmentos de embalagens, reproduções de cédula de dinheiro, retalhos
fotográficos, carimbos, vocábulos sem nexo e grandes letras como manchetes
disléxicas. Para o Dada, a sociedade industrial, mercantil, e por extensão do consumo,
cobrava um alto preço dos indivíduos. Marcel Duchamp (1887-1968) também um
dadaísta em suas fases iniciais, explicitava
que caracteristicas dessa sociedade
deveriam ser agora questionadas. A escultura “ Roda de Bicicleta” (fig. 3), desloca
dois objetos de consumo, cotidianos, para fora de seus papéis pré estabelecidos e os
propõe como arte, como “ready-mades”, como se o sistema produzisse suas novas
tintas e essas poderiam ser os produtos e os discursos reendereçados de seus contextos
para os quais foram naturalmente produzidos. As linguagens artísticas nunca mais
abandonariam os caminhos abertos por esses
movimentos que as libertara.
Mais uma guerra mundial sobreveio. Ao final dela, novas hegemonias
nacionais tomaram a ponta do desenvolvimento das sociedades ocidentais. Poucos
anos depois sobreveio o que se denominou Pop Art. A intensidade dos discursos
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) publicitários, da imprensa, da produção massiva de produtos, a televisão, os discursos
ideológicos, tudo isso começava a ganhar densidade que inaugurava uma sintaxe
visual igualmente densa, e critica, composta igualmente dessas inúmeras referências
do mundo exterior. A colagem “O que exatamente torna os lares de hoje tão
diferentes, tão atraentes?”(fig.4) de Richard Hamilton (1922-2011) reproduz, a partir
de colagens intencionalmente grosseiras, a sala de uma residência da classe media
repleta de produtos de consumo, revistas, jornais, um fisiculturista, eletrodomésticos,
posters, reproduções antigos. Elementos alocados numa inútil tentativa de expressar
“naturalidade” de uma cena doméstica rotineira, a partir da transposição direta de
produtos “em estado de anúncio” ou em suas fotos de embalagem, para a composição.
Na obra, a sociedade de consumo, apregoando seus produtos e determinados “estilos
de vida”. Essa incapacidade do que era moderno de resolver as questões de seu
próprio tempo, começou a ser denominado de pós-modernidade, em alguns aspectos
estéticos e de apontados por Carrascoza (2011)
“A onda pós modernista, em contraponto as vanguardas modernistas do início
do século XX, contribuiu para o desaparecimento de varias fronteiras na arte
e na maneira de pensar. O pós modernismo tem, entre outras características, a
apropriação do passado, misturando elementos de várias épocas e estilos,
provocando a quebra de barreiras entre cultura popular e cultura de elite. Essa
adoção de múltiplos estilos influência e estética e a percepção das artes
quando é incorporada pela publicidade, pelo design e pela moda, entre outras
manifestações, legitimando a fusão entre o popular e o erudito e usando
objetos cotidianos como meio. (CARRASCOZA 2011, p.48)
Na década de 60, o americano Andy Warhol, traduzia o território de fetichização
extrema que os produtos, o consumismo e a ideologia hegemônica operavam seus
capitais simbólicos. Intensificando as cores nas “celebridades”, alçou também
produtos a condição de celebridades. As 32 telas “Campbell’s Soup Cans” (fig.5)
reproduzem, em pintura quase fotográfica, as latas de sabores da sopa mais popular
nos EUA. O produto, multiplicado, estandartizado, estampado para ser consumido.
Como arte. Mas, Canclini (2008) pontua um certo esmorecimento dessa época.
A efervescência inovadora dos anos sessenta (...) esse impulso vanguardista
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) arrefeceu. Dos anos 70 aos 90, as artes visuais mostraram certa monotonia,
como se tivessem chegado a um topo criativo. O pensamento pós moderno
abandonou a estética da ruptura e propôs reavaliar diversas tradições,
fomentando a citação e a paródia do passado mais do que a invenção de
formas inteiramente inéditas. (CANCLINI, 2008, pg 35)
Pouco mais de uma década depois o trabalho “ I shop therefore I am”( fig.8) e outros
da série, da artista Barbara Kruger (1945- ) atinge o cerne da relação consumosubjetividade. Minimalista, a artista utiliza uma foto close p&b com uma frase em
letras vermelhas fortes, como um slogan publicitário. Em 2006 a artista Raquel Perry
Welty (1962- ) realiza a serie “Lost in my Life”. Nos trabalhos “(stickers)” (fig.6) e
“(boxes)”(fig.7), a artista
utiliza embalagens, fios de fechamento de invólucros,
etiquetas de preço, de marcae de origem, de milhares de produtos de consumo para
constituir um quadro-território e nele se fundir, num mimetismo entre indivíduo e
assunto tratado na obra. Os trabalhos que se utililizam do consumo como tema se
multiplicam. Em todo mundo. Poderia-se descrever inúmeras obras e artistas, Tom
Sachs, Keith Haring, Jeff Koons entre muitos. Mas analisar a produção artística da
mineira Beatriz Milhazes (1960- ) sob a óptica do consumo, tanto tomado como
assunto quanto, em sua obra, como processo, pode mostrar a amplificação das
abordagens, estéticas e posições que tal tema parece constantemente inaugurar.
As quatro obras elencadas aqui são “Santo Antonio Albuquerque”(fig. 9), “O
mágico” (fig. 14), “Sonho de Valsa”(fig.15) e “Dancing”(fig.16). Milhazes atua
como uma pesquisadora consumidora dos materiais e referências que irá utilizar em
suas grandes telas. A despeito de seus quadros serem exemplos de uso superior do
domínio das cores, é nos elementos adicionais vindos da perspectiva histórica cultural
que repousa a construção de suas melhores proposições. Dessa assemblage resultam
obras que tensionam o juízo do gosto, tanto pela crítica especializada, quanto pelo
público. A artista pesquisa e adquire produtos e matérias primas de utilização popular
na cultura brasileira para suas composições: cores primarias e secundárias, formas
simples, texturas de tecidos populares, plásticos decorativos, rendas, azulejaria. Ao
conjugar estes elementos em suas telas o faz de maneira a ressignificá-los. A
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) padronagem de flores que outrora servira a um tecido de chita, no espaço e no tempo
em que era usado, se ressignifica no uso em outra época que seus quadros propõe.
Somando elementos díspares, de gosto popular em suas utilizações mais tradicionais,
reconstrói um novo padrão decorativo, pictórico e autoral, a partir da utilização do
intenso adensamento imagético. Da saturação de matérias primas decorativas
utilizadas, extrai um renovado rearranjo. As telas parecem querer subverter os
julgamentos de gosto e lembrar, como disse Boudieu, que são sempre relativos a
campos. A chita, os azulejos, as rendas, não se originaram nas camadas populares de
lugares distantes do Brasil. O tecido de chita é originario Índia no sec. XVII, como
tecidos finamente estampados, e mercadores holandeses e portugueses o levaram,
primeiro as cortes da época, e muito depois às colônias. Azulejos e rendas tem
histórias semelhantes, primeiro servindo a aristocracia e a nobreza para, séculos
depois, e em outras terras que não as suas originais, tornarem-se “populares” ao
consumo. Os quadros de Milhazes, ao serem vendidos em leilões da Europa por
preços elevados, refazem de certa forma, um caminho de volta, rememorando a
história de produtos, padronagens, simbologias visuais e seu consumo. E a artista
ainda adiciona lógicas de composição que aludem desde aos ritmos da natureza na
ebulição que suas formas surgem nos quadros até, por referencias mais avançadas,
como a geometria dos fractais, que pode ser observada na estrutura de seus quadros.
O consumo é citado como assunto em diversos de seus quadros. Em “Sonho de
Valsa”, embalagens de guloseimas tomam a tela. Em “Dancing”,matérias primas
usadas em acabamentos de costura de roupas, padrões de revestimentos plásticos ,
entre outros. Ela também assume uma posição em que não se pode afirmar se critica
ou celebra a sociedade de consumo, exagerada em suas cores, padronagens
intensamente decorativas e maneirismos. Mas, como relembra Maffesoli (2010), “há
futilidade no ar. Mas corre o risco de ser fútil quem não se interessa por ela. Pois é
freqüente na história humana que a superfície das coisas ganhe importância
primordial. (MAFFESOLI , 2010, p. 25). Relevâncias, de se entender o consumo pela
visão que nele pousam os artistas.
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) Apêndice:
Referências visuais, obras e reproduções fotográficas
Figura 1. Pablo Picasso, “Guitar, sheet music and glass” 1012, colagem e pintura, 48 x 36,5 cm,
MacNair ArtMuseum, San Antonio, Texas, EUA. Figura 2. Raoul Hausman, “ABCD”, 1923-1924 ,
colagem e pintura, 40,6 x 28,6 , Musée National d’Art Modern, Paris, França. Figura 3. Marcel
Duchamp “Roda de Bicicleta” 1913, ready-made .
. Figura 4. Richard Hamilton “Just What is it that makes today’s homes, so different, so appealing?
1956, colagem. Figura 5. Andy Warhol. Campbell's Soup Cans,1962. Tinta sintética sobre 32
telas, cada uma medindo 50.8 x 40.6 cm
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) Figura 6. Raquel Perry Welty, Lost in My Life (price tags), 2009. Pigmented ink print, 230 x 160 cm
Figura 7. Raquel Perry Welty, Lost in My Life (boxes), 2009. Pigmented ink print, 230 x 160 cm.
Figura 8. Barbara Kruger, “I shop therefore I am”, 1987 , fotografia, silk screen, vinil , 282 x 287 cm
Figura 9. Beatriz Milhazes, “Sto Antonio
Albuquerque” 1984 , colagem, acrilico sobre tela,
161 x 191 cm
Figura 10. reprodução fotografica de padronagems de azulejos portugueses. Figura 11. reprodução
fotografica de bordado de renda artesanal. Figura 12. reprodução fotografica de padronagens de tecido de
chita. Figura 13. imagem gerada por computador sobre o fenomeno matematico “Conjunto de Julia
Figura 14. Beatriz Milhazes, “O mágico”, 2001,
acrilico sobre tela, 188 x 298 cm , Beatriz Milhazes
Studio
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) Figura 15. Beatriz Milhazes, “Sonho de Valsa 2004-2005 colagem - embalagens de bombom sobre
papel 172 x 146 cm Figura 16. Beatriz Milhazes, “Dancing”, 2007, acrilico sobre tela, 247 x 350 cm,
Beatriz Milhazes Studio
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Reflexões acerca do consumo enquanto assunto na arte moderna e