Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica e V Jornada de Pesquisa e Pós-Graduação
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS
10 a 12 de novembro de 2010
Intimidade e sexualidade na escrita íntima: uma analogia dos
diários de Altino Arantes e Couto de Magalhães
Acadêmica: Patrícia Simone de Araujo PIBIC/CNPq
Orientador: Prof. Dr. Robson Mendonça Pereira
UEG, CEP: 753110109, Brasil
e-mail da acadêmica: [email protected]
e-mail do orientador: [email protected]
Palavras Chave: Intimidade, sexualidade, diários íntimos, Couto de Magalhães
e Altino Arantes.
1-INTRODUÇÃO
Esse trabalho tem como objetivo analisar os diários íntimos de: José
Vieira Couto de Magalhães e Altino Arantes Marques. Ambos os políticos
ocuparam cada qual em sua época cargos proeminentes na administração
pública brasileira. Também deixaram registradas suas impressões pessoais e
íntimas em diferentes momentos de suas vidas (pública e privada). Neste
exercício cotidiano de escrita auto-referente revelam ansiedade, momentos de
hesitação, frustração e desejo, dentre outros temas, o que constitui excelente
oportunidade para evidenciarmos a legitimidade da sexualidade enquanto
objeto de pesquisa do conhecimento histórico.
Ao nos lançarmos no estudo da intimidade e sexualidade na escrita
de si temos como objetivo nos afastarmos da produção de estudos
historiográficos que tendem muitas vezes a analisar as personagens como
destituídos de desejos, anseios, sem necessidades corporais, mesmo quando
essas personagens são analisadas como participantes de guerras e
revoluções. A História torna-se um saber destituído de sedução se não tem
corpo, se seus personagens estão mortos. Dificilmente é possível seduzir os
vivos com algo que não tem vida, que se faz somente por fórmulas conceituais
como afirma Albuquerque Jr.: “Como podemos atrair leitores da História para
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personagens que não tem sexo, não desejam, não brincam, não jogam?”
(2007, p.175).
A autobiografia ou o diário íntimo surge nesse contexto como
documento significativamente profícuo para o estudo que tem como objetivo
entender os meandros da intimidade e da sexualidade. Nos documentos
autobiográficos
seus
autores
revelam
profundamente
sua
intimidade,
confessam seus desejos sexuais, sonhos eróticos, consignam opiniões, idéias,
valores que dificilmente seriam colocadas em pauta em um ambiente público
ou seriam apreendidos em documentos oficiais. O autor no documento
“privado” desfruta de uma suposta liberdade para pensar e emitir opiniões que
jamais daria no espaço público. Seria como se o indivíduo estivesse em um
estado de suspensão moral ou ética, podendo dar livre impulso as suas
opiniões.
Foucault (1988) ressalta em seus estudos em relação ao século
XVIII que a intimidade e sobretudo a sexualidade não mais se restringe ao
espaço privado dos lares espalha-se e toma conta das prateleiras de livrarias,
das conversas, mas principalmente das confissões. Sente-se uma necessidade
em se falar cada vez mais sobre o sexo, ou seja, “colocar o sexo em discurso”.
Esse autor observa a incitação dos desejos em se colocar os corpos em
atitudes indecorosas e em carregar os discursos de palavras indecentes como
pode ser percebido no caso brasileiro no diário de Couto de Magalhães em que
a sexualidade é tratada de forma exacerbada e no diário de Altino Arantes em
que o sexo é tratado de forma mais comedida. Nesse sentido, o diário íntimo
surge como um dos dispositivos de registros do discurso sobre o sexo, elevado
à condição de segredo sobre o qual todos deveriam falar sempre, de forma
regulada e com moderação.
Deduz-se disso a importância assumida pelos diários íntimos, algo
que se torna mais contundente no caso de personalidades públicas, seja por
envolver
apreciações
privadas
pouco
comuns,
ausente
mesmo
na
documentação epistolar do personagem, revelando circunstâncias especiais,
momentos de hesitação e incertezas que tingem de veracidade os eventos
vividos, semelhante a uma espécie de exame de consciência. Desenvolve-se
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assim uma “imagem da vida interior”, produto da meditação constante com o
qual o indivíduo refaz sua própria biografia, para si mesmo e para os outros.1
2-MATERIAL E MÉTODOS
A escrita de si ou escrita auto-referente assume uma importância
cada vez maior na historiografia atual e especialmente para História Cultural no
campo de análise das representações construídas por indivíduos na sua
subjetividade, isto é, na forma como se percebe e se atribui sentido à realidade
vivida. Neste sentido, os registros privados de políticos (cartas, bilhetes,
diários, etc.) constituem um denso manancial para o estudo do imaginário
político de uma época para o qual os historiadores e cientistas sociais têm se
voltado em larga medida. A pesquisa histórica passou a utilizar muito
recentemente as fontes privadas e as considerá-las como objeto de análise.
Para Gomes (2004, p.10) isto suscitou todo um investimento téoricometodológico novo, sistematizando um conhecimento acerca da guarda e uso
dessas fontes.
Artières (1998) analisa os motivos pelos quais os indivíduos são
levados, a partir da era moderna, a arquivar as próprias vidas, isto é, os
processos de guarda de materiais ligados diretamente à escrita de si
propriamente dita (autobiografias, diários, correspondência passiva) ou à
constituição de uma memória de si (fotografias, cartões-postais, etc.). Para
Artières respondemos a certas “injunções sociais”, isto é, as pressões sociais
para mantermos nossas vidas organizadas, pondo o “preto no branco, sem
mentir, sem pular, nem deixar lacunas” (1998, p.10-1). Neste processo
manipulamos a existência, rasuramos, riscamos, sublinhamos ou damos
destaque a certas passagens de nossas vidas. No entanto, esse esforço é
comparável a análise de uma arte de fazer, isto é, o sujeito constitui uma
“imagem íntima de si próprio” para escapar do elemento de arbítrio contido no
1
CALLIGARIS, Contardo. Op. Cit., p. 46. Este definiu quatro tipos de autobiografia: a) no
sentido restrito; b) o diário íntimo (journal), c) o diário (diary); e d) memórias (memoirs).
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exercício da escrita auto-referente podendo se comparar a um “dispositivo de
resistência”:
Eu quis mostrar, enfim, que a constituição pelo indivíduo de arquivos
pessoais, longe de restringir e de circunscrever, é formidavelmente
produtiva. Enquanto alguns poderiam crer que essa prática participa
de um processo de sujeição, ela provoca na realidade um processo
notável de subjetivação (1998, p.32).
Para Ângela de Castro Gomes, essa tentativa do indivíduo de
construir uma identidade para si através de seus documentos, constitui então
uma emergência histórica em contraste com as sociedades tradicionais que
tendiam a se sobrepor aos interesses individuais, reprimindo sua manifestação
(2004, p.12). Porém, no contexto da sociedade moderna, o indivíduo
desempenha uma série de papéis sociais sobrepostos e geralmente
desarmônicos, que dificultam enfim a construção de uma identidade coesa.
Podemos afirmar assim que a produção de si constitui uma forma de se
proteger da fragmentação do eu própria da vida moderna.
Na modernidade observa-se a necessidade do indivíduo de produzir
discursos em que a temática principal seja sua própria vida. Personalidades
como os políticos passaram a escrever diários de governo que muitas vezes
eram redigidos no intuito de serem publicados ou pagavam para que seus
“grandes feitos” fossem narrados em biografias. Assim, sendo as barreiras
impostas pela sociedade para proteger do domínio público o que antes era
sagrado, o lar, perderam força no momento em que os próprios indivíduos
lançaram o convite ao público de conhecer as esferas de sua intimidade. O
privado deixa de simbolizar a zona maldita, proibida e obscura e passa enfim a
ser reconhecido, visitado e legitimado.
No século XVIII o sexo pertencia ao ambiente do lar, do privado.
Todavia, o limiar da temática erótica frequentemente e cada vez mais
intensamente transbordava-se para o mundo público exterior ao lar.
Até
mesmo a produção historiográfica que antes dedicava-se aquela tradicional
abordagem das temáticas história do Estado, da economia e sociedade cede
lugar – mesmo que mínimo diante da complexidade acerca do tema
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sexualidade – ao estudo da intimidade e conseqüentemente aos assuntos de
ordem sexual.
Contudo, é no século XIX que se evidencia de fato o tilintar da idade
de ouro do privado, a partir deste período há uma crescente e incessante
petição da vontade de saber sobre o sexo. Lançam-se livros, revistas, fala- se e
ouve-se mais sobre o sexo principalmente nas confissões dos órgãos
institucionais da Igreja Católica (FOUCAULT, 1988). Não é por acaso que é
justamente em fins do século XIX que são lançados no Brasil romances que
abarcam o tema sexualidade, com narrativas homossexuais como O cortiço em
que Aluísio de Azevedo (1890) narra uma cena lésbica, e Bom crioulo de Adolfo
Caminha (1895), que aborda o amor entre Aleixo, um loiro grumete (aprendiz
de marinheiro), e Amaro, um marinheiro negro e ex-escravo.
3-RESULTADOS E DISCUSSÃO
Qualquer estudo que tenha como objetivo explorar a intimidade de
personagens históricos a partir da análise de seus diários íntimos não poderia
deixar de abordar um ponto crucial da vida íntima, a sexualidade. Não são
poucos estudos que tratam de personalidades históricas sem desejos e
anseios sexuais, ou seja, nossos heróis são abordados como verdadeiros
seres assexuados. Como destaca Mott (2003):
Gente importante, personalidades históricas, heróis nacionais,
geralmente têm suas biografias despojadas de qualquer menção ou
fato que pudessem embaçar o brilho de suas virtudes intelectuais ou
patrióticas. Nossos luminares parecem-nos com anjos- sem sexo e
sem vida sexual. Várias biografias de Santos Dumont, por exemplo,
omitem seu suicídio e sua provável homossexualidade (p.174).
Esse trabalho analisou os diários íntimos de Couto de Magalhães e
Altino Arantes como homens de carne e osso que sentem e que obviamente
possuem desejos sexuais. Sendo que encontra-se no diário de Couto de
Magalhães escritos que esbanjam sensualidade e erotismo em contraposição a
Altino Arantes que tenta esconder ao máximo os seus anseios sexuais, mas
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que nem por isso seu diário deixa de ser interessante no estudo que tem por
objetivo entender os meandros da sexualidade.
José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898) natural da província de
Minas Gerais foi um típico político do século XIX. Pode-se dizer que a vida de
Couto de Magalhães foi uma coleção de sucessos: formado em Direito, foi
presidente das províncias Goiás, Pará, Mato Grosso e São Paulo. Foi sócio do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Autor de uma dezena de livros de
caráter histórico, destacando-se O Selvagem (1876), encomendado por D.
Pedro II para figurar na Biblioteca Americana da Exposição Universal do
Centenário da Independência Americana, na Filadélfia, livro traduzido para
várias línguas. Publicou várias outras obras entre os quais: Viagem ao rio
Araguaia (1863) e Ensaios de antropologia (1894).
Considerado herói da Guerra do Paraguai, foi brigadeiro honorário
do Exército por seu vitorioso comando na tomada de Corumbá. Já no final de
sua vida tornou-se presidente do Clube dos Oficiais Honorários do Exército.
Escritor fecundo, político influente, Couto de Magalhães foi igualmente bem
sucedido homem de negócios, diretor do Banco do Brasil, fundador de
empresas de transporte fluvial e ferroviário. Couto fundou o Colégio de Línguas
Princesa Imperial Dona Isabel, voltado para a educação de crianças indígenas.
Montou às margens do rio Tietê um observatório astronômico (mais tarde
doado à Universidade de São Paulo).
Ao se estudar os diários íntimos redigidos por personalidades
históricas brasileiras observa-se que pouco desses escritos deixaram revelar
tanto da temática sexualidade quanto o de Couto de Magalhães. Através de
suas rememorações, fantasias e principalmente na descrição de seus sonhos
Couto deixa aflorar ao máximo sua sexualidade revelando uma tendência
homossexual.
Diante do debate amplo e caloroso em torno do termo homossexual
optei por utilizá-lo no intuito de caracterizar uma tendência sexual de Couto de
Magalhães em vez de outras como “homoeróticos”, “homoafetivos” e dentre
tantas outras, por entender assim como Márcio Couto Henrique (2009) em seu
livro Um toque de Voyeurismo: o diário íntimo de Couto de Magalhães (18806
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1887) que o termo homossexual assim que foi lançado originalmente em 1869,
pelo jornalista Karl Maria Kertbeny, tinha como objetivo defender os direitos dos
amantes do mesmo sexo como esclarece Halperin: “La palavra „homossexual‟
es asi, en su origen, una invención de militante pro-gay” (2004, p.1). Kertbeny
escreveu seu texto no intuito de lutar contra um parágrafo do Código Penal
Alemão que condenava os praticantes do “amor pelo mesmo sexo” à prisão
com trabalhos forçados. Para Karl o homossexualismo era uma condição inata,
não adquirida, sendo, portanto, um absurdo criminalizá-la (HALPERIN, 2004).
Sendo assim o termo homossexual foi usado pela primeira vez quando Couto
de Magalhães ainda estava vivo e não acarretava sentido pejorativo. A
associação do termo homossexualismo a uma doença só foi feita bem mais
tarde.
Outro ponto importante a se esclarecer é que o uso do termo
homossexual para caracterizar os sonhos, rememorações e fantasias relatados
pelo personagem Couto de Magalhães em seu diário não é anacrônico.
Considerando que o anacronismo diz respeito ao ato de ler determinadas
atitudes do passado com os olhos do presente, o uso que faço não é
anacrônico, pois homossexual é um termo contemporâneo ao período que
pesquisei, já que ele surgiu quando Couto de Magalhães tinha 32 anos e
originalmente é utilizado “em defesa” dos amantes do mesmo sexo. Além disso,
autores
fundamentais
para
a
discussão
a
respeito
da
temática
homossexualidade como Dover (1994) em seu texto A homossexualidade na
Grécia Antiga e Veyne (1985) no seu texto A homossexualidade em Roma
utilizam o termo homossexualidade para períodos bem mais recuados no
tempo.
Logo de início gostaria de deixar claro que não foram encontrados
nenhum tipo de documento que pudesse nos fornecer a certeza de que Couto
de Magalhães era de fato um homossexual. Mesmo quando o autor Luiz Mott
(2003) escreve um artigo que tem como título um tanto sugestivo Um herói gay
na Guerra do Paraguai ao se referir ao personagem Couto de Magalhães ele
conclui que:
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Se Couto de Magalhães passou da intenção à ação homoerótica, não
podemos saber. Seus escritos e sonhos identificam-no quando menos
como homossexual latente. Se até Oscar Wilde, apesar de toda a
evidência, negou praticar este amor na época tratada como crime,
seria demais esperar de um brigadeiro honorário do Exército Imperial
assumir uma prática de um amor criminoso. Para bons entendidos,
contudo, bastam seus sonhos (MOTT, 2003, p.177).
Couto de Magalhães em seu diário esclarece que teria lido o Tratado
dos Sonhos de Hipócrates o qual “não pareceu grande coisa” (MAGALHÃES,
1998, p.189). Mesmo ao consignar essa opinião, Couto demonstra estar
preocupado em compreender no que consistem os sonhos, dedicando uma
parte significativa de seu diário na narrativa de suas experiências oníricas. a se
perceber na análise que Couto empreendeu para tentar entender o seu
universo onírico, é que esse interesse surge antes das publicações
Observa-se que os sonhos de Couto são carregados de cenas
eróticas homossexuais: “eu quero muito fazer sexo com ele, meu galho preto
endurecido quer estar escondido no ânus” (MAGALHÃES, pp. 203 e 204). Além
disso, os sonhos de Couto em diversos momentos do diário apresentam-se
povoados por figuras masculinas:
Pessoas que aparecem em meus sonhos: o Barbosa caboclo – o
Benedito Marcondes Homem de Mello e o irmão me dando almoço; o
sargento hoje alferes Espírito Santos de Goiás, o Chiquinho Caiapó
do Araguaia, o capitão José Manoel; uma companhia de soldados
ingleses; um crioulo quase como o Brás mas que não era o Brás, e
finalmente mrs. Clench. (MAGALHÃES, 1998, p.190).
Apesar dessas manifestações de tendências homossexuais, Couto
expõe a presença concreta, embora notavelmente opaca em termos afetivos,
de Lily Grey sua amante constante e com quem ele vivia uma experiência de
intimidade sexual. Contudo ele demonstra certa insatisfação com as relações
heterossexuais como fica claro no seguinte trecho:
Tenho ultimamente discutido comigo mesmo se há ou não vantagem
em ter a companhia de uma mulher. Há dois anos que eu conservo tal
companhia e realmente não tenho juízo formado. No Araguaia eu
tinha essa companhia, e uma vez só me vieram saudades disso. A
que tive no Pará igualmente não deixa saudades; a que tive em
Londres a mesma coisa. Para o meu gênio independente e pontual é
um pesadelo, escravidão disfarçada que me tira grande parte do meu
tempo e que me dá compensação pouco satisfatória (MAGALHÃES,
1998, pp.125 e 126).
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Diferentemente da ordem apregoada pela medicina social no século
XIX que a normalidade se expressava em uma família higiênica tratada Couto
de Magalhães assume uma postura “original” a se declarar orgulhosamente um
solteirão. Como destaca Mott (2003) Couto “não quis esconder que foi pouco
convencional em questões de moral sexual: solteirão convicto, reconheceu em
seu testamento a paternidade de três filhos naturais” (p.174).
A construção que Couto de Magalhães fez de seu universo íntimo
valeu-se de um vocabulário próprio, o qual mescla passagens em tupinheengatu com a utilização de códigos pessoais. O uso do tupi-nheengatu,
surge no diário, conforme Maria Helena P. T. Machado: “como recurso
distanciador e mediador dos materiais reprimidos, que dessa maneira afloram
de forma elíptica, permitindo o registro daquilo que obviamente estava proibido
de ser expresso na linguagem corrente dos princípios religiosos e morais”
(MAGALHÃES,1998, p.37).
Em diversos momentos do diário de Couto pode-se observar a
utilização da língua tupi-nheengatu como um código que serve para
escamotear seus desejos homossexuais aflorados principalmente em seus
sonhos: “Capitolino: No sonho oiko*** pupé apohu sak. san.ipuxuna sakanga
pupé aphu ramé sak. iche ce rori catu. Aramé iche onhahen ixupe: chaput.
chan. ndo x.pu --- Ahe osuacharaca? Icatú” antes porém vamos mfumar”
(MAGALHÃES, p 203-204). A tradução desse trecho que Couto pretende
“esconder” é a seguinte: “ele
pegava***dentro o galho preto e endurecido
enquanto eu também pegava seu galho dentro e estava muito alegre. Então
quero que amarres minha mão. [Ao que] ele respondeu?: Está bem [...]”
(MAGALHÃES, p.204).
Essa codificação que Couto faz das partes do diário em que trata
dos desejos homossexuais não é feita por acaso. Em uma época em que os
homossexuais eram tratados como loucos, eram forçados a se internar em
hospícios, passando a ser definidos como “doentes do instinto sexual”
(FOUCAULT, 1988) tornava-se necessário escamotear partes que poderiam
comprometê-lo de alguma forma. Mas ao mesmo tempo em que pretende
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“esconder” seus sonhos homossexuais através de códigos é perceptível que
Couto sente a necessidade de confissão sobre sua sexualidade.
Apesar do risco de se assumir ter desejos homossexuais, Couto de
Magalhães revela sua atração pelo mesmo sexo: “... vi na ponte um jovem
melancólico encostado a um poste de lampião que me despertou certas
curiosidades...” (MAGALHÃES, 1998, p.105). Além desse relato se torna mais
explícito as descrições de uma dezena de sonhos de Couto com forte presença
do falo, referido em tupi-nheengatu como sakanga ou rakanga e como destaca
Machado (1998) significa galho que possui o mesmo sentido de pênis. Couto
diz textualmente: “eu quero fazer sexo com um mestiço, com um preto; eu falo
que o membro viril foi tirado de dentro” (MAGALHÃES, p.200)... “eu quero
muito fazer sexo com ele, meu galho preto endurecido quer estar escondido no
ânus” (MAGALHÃES, pp. 203 e 204)... “dava com meu galho *** em sua
barriga; depois [...] para fazer sexo em sua perna. Dei a cabeça de meu galho
preto, [ele] chupa bem [...] não acabei” (MAGALHÃES, p.205).
Diante das teorias “científicas” que lançaram-se nos estudos sobre a
homossexualidade segundo uma concepção biológica em que classificaram os
homossexuais como anormais e pervertidos, Couto de Magalhães interpretou
seus sonhos sem sentimento de culpa, sem autocondenação, sem referência
às tentativas de criminalização de suas práticas oníricas. Assim sendo, Couto
“[...] ao responder à incessante petição de saber sobre o século XIX lançou
sobre homens e mulheres – e fazê-lo em forma de desafio -, entrou
definitivamente para a história como um grande herói, defensor da liberdade de
escolher a própria forma de amar” (HENRIQUE, 2009, p. 319). O diário íntimo
de Couto é de significativa importância, pois tem muito a dizer a “sociedade
heterossexista que discrimina e persegue de forma cruel os amantes do
mesmo sexo” (MOTT, 2003, p. 124).
A sexualidade aparece de forma menos recorrente no diário de Altino
Arantes Marques. Contudo, pois trata deste tema mais comedidamente quando
analisado em relação ao diário redigido por Couto de Magalhães. Assim como
o general a sexualidade é manifestada principalmente através de sonhos,
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contudo, diferente deste as práticas oníricas de Altino são de caráter
heterossexual.
Altino parece que ao mesmo tempo em que deseja expor seus
momentos e anseios mais íntimos em relação a sua sexualidade também tem a
preocupação em não se deixar revelar por completo. A todo o momento,
mesmo que seja em pequenos trechos, Altino escreve em um tom de confissão
os seus anseios sexuais. Essa vontade contraditória de deixar se revelar e
simultaneamente tentar se “esconder” é o que torna o diário de Altino Arantes
um objeto intrigante e estimulante para o conhecimento histórico.
Altino Arantes Marques (1876-1965) era natural de Batatais,
próspero município cafeeiro do nordeste paulista. Filho de importante coronel e
negociante na localidade, veio a cursar o secundário no Colégio São Luís, em
Itu, estabelecimento confessional dirigido por padres jesuítas, algo que
certamente colaborou para reforçar certos ideais católicos em Altino.
Matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, vindo a bacharelar-se aos
dezenove anos em 1895. Ao retornar à terra natal iniciou uma bem-sucedida
carreira jurídica. Mais tarde, com o apoio e a significativa influência de sua
tradicional parentela, posteriormente reforçada através dos fortes laços com o
grupo dos Junqueiras, elegeu-se deputado federal na legislatura de 1906 a
1908, vindo a se destacar na defesa do famoso Acordo de Taubaté. Em 1911
assumiu interinamente a Secretaria do Interior no final do governo de
Albuquerque Lins. Reconduzido a essa mesma pasta pelo Conselheiro
Rodrigues Alves acabaria se tornando um dos mais fiéis defensores do político
de Guaratinguetá (EGAS, 1927, v.2, p.481).
A indicação oficial de seu nome para chapa oficial do PRP à
sucessão do conselheiro exemplifica essa fidelidade. A indicação de seu nome
por imposição do próprio Rodrigues Alves e contra boa parte dos chefes
políticos regionais levaria a uma grave cisão interna no partido em fins de 1915.
Apesar desse entrave Altino foi eleito para um mandato no qual enfrentou
muitas dificuldades devido a uma série de fatores negativos decorrentes da
conflagração mundial em curso desde 1914, que afetaram a cafeicultura,
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atingida por pragas e pelas geadas em 1918, além das quizilas políticas
(SEVCENKO, 1992, p.24).
Altino começa a escrever seu diário em primeiro de maio de 1916,
indo até 28 de abril de 1920, coincidentemente início e término de seu mandato
como governador paulista. Nele, o autor relata cronologicamente fatos ou
acontecimentos do dia-a-dia, consigna opiniões e impressões, registra
confissões e/ou meditações.
Como destaca a autora Ângela de Castro Gomes (2004), certas
circunstâncias e momentos da história de vida de uma pessoa ou de um grupo
– períodos esses que a autora caracteriza como excepcionais – estimulam a
prática da produção autobiográfica. Essa constatação pode ser evidenciada no
caso de Altino Arantes, já que este escreve um diário de governo de um
homem que parecia ter alcançado o auge na vida pública ao tomar posse da
presidência do Estado de São Paulo. Diferentemente de Altino, Couto escreve
seu diário no final de sua vida, em Londres, em uma narrativa realizada por
uma mescla de reminiscências e registro do cotidiano.
Altino
Arantes
revela
constantes
sonhos
eróticos
que
lhe
despertavam, ao mesmo tempo, excitação e prazer, mas também que lhe
suscitavam sentimentos mórbidos já que eram sonhos em sua maioria
povoados pela figura de sua esposa falecida. A ambiguidade de Altino não se
manifestava somente nesses sentimentos, mas também na imagem que
construiu de sua esposa, ora ela era vista como uma santa ou devota, ora
como um fantasma erótico que atenta sua lembranças:
É meia noite, recolho-me. Acorda-me do primeiro sono um pesadelo
angustioso: alguém se insinuava devagarinho na cama e se
acomodava mansamente a meu lado: era ela, a Maria – a obsessão
constante de minha saudade. Por mais que me esforçasse por
enxergar-lhe as feições, não o conseguiria, enquanto que ela, a seu
termo, lutando debalde por falar-me, expelia apenas do peito,
ofegante sobre o meu, uns sopros guturais, insonoros, frios, que me
regulavam as faces.... Desperto, então, na ansiedade deste estranho
debate de vontades incompreensivas; e fico a cismar, pelo resto da
noite, no deserto infindo de minha vida, ouvindo o rumorejo
encachoeirado e incessante das vagas, não evocação torturante de
horas deliciosas, que elas me viram passar neste mesmo lugar e que
2
– ai de mim! – nunca mais voltarão.....
2
AESP. APAA. Locus: AP91.01.001. vol.1. [26/6/1916].
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Diferentemente de Couto de Magalhães não são raras as vezes que
Altino Arantes deseja adoentar-se para alcançar a morte como uma forma de
se reencontrar com sua esposa falecida. A morbidez é uma característica
constante no diário de Altino Arantes. Observa-se nitidamente a falta que Altino
sentia de sua esposa Maria Teodora Arantes, falecida quase exatamente um
ano antes de sua posse (12/3/1915). É justamente por esse sentimento de
saudosismo e de amor dedicado a sua esposa morta que Altino Arantes
justifica a não destruição desse diário íntimo. Como fica explícito abaixo no
trecho introdutório do diário, Altino deixa claro que desde a adolescência já
possuía o hábito de escrever diários, contudo, todos os outros teriam sido
destruídos:
Este caderno de notas íntimas é absolutamente reservado. Destinase, como tantos outros que o precederam – desde os longínquos
tempos do colégio de Itú, – à destruição pelo fogo purificador , no
periódico auto de fé das caixas velhas e imprestáveis. Um só deles
guardo ainda, no meu cofre, junto das modestas jóias da minha
querida morta. Não o consumi porque foi escrito expressamente para
ela, durante os dias de sua última viagem ao interior. Intitulei-o, por
isso, numa dolorosa antevisão do meu destino, “Soledade”. E foi ela
própria que – terminada a sua leitura, ainda em casa do [Bié] em
Batatais, disse-me, sorridente e quase vaidosa: “É o mais precioso
presente, que tenho recebido de tuas mãos; não o rasgarei, como
pedis; guardá-lo-ei, sim, entre as minhas jóias”. Estou, pois,
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cumprindo neste particular um voto da Maria...
Contudo, esse argumento explicativo para a preservação de seu
diário parece uma tentativa de dissimular a sua verdadeira intenção. Mesmo
depois de se casar pela segunda vez com Gabriela da Cunha Diniz Junqueira,
ele não cessa a escrita do seu texto autobiográfico. Provavelmente Altino
Arantes ao redigir seu diário tinha como objetivo deixar para posterioridade a
imagem que ele próprio formulou de si mesmo, um político honesto e cristão.
A devoção ao cristianismo já acompanhava Altino desde a infância.
Contudo, desde a morte de sua esposa Altino passara a freqüentar a igreja
mais constantemente, na tentativa de encontrar consolo e conforto para suas
angústias. A igreja de certo modo servia aos mesmos propósitos da escrita
autobiográfica para Altino Arantes. Tanto no seu diário quanto em suas
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AESP. APAA. Locus: AP91.01.001. vol.1. [1º/5/1916].
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confissões ele revelava seus pensamentos íntimos, desejos, anseios, angústia
e sonhos.
Através do ato de confessar e refletir sobre estas confissões Altino
realizava um exame de autoconsciência e construção de sua própria imagem a
partir da relação que tinha consigo mesmo e com os outros. Apesar, de Altino
solicitar que o conteúdo de seus escritos não fosse tornado público, por
constituir-se em registros de interesse estritamente privado, na verdade isto
não condizia com a natureza do “ato autobiográfico”. Caligaris (1998) considera
uma ingenuidade esse tipo de afirmação uma vez que a intenção subjacente do
autor de textos autobiográficos seria a de ficcionalizar sua própria vida com o
objetivo de construir uma imagem mais apropriada de sua personalidade.
A Igreja ao incentivar o ato de confessar também incitava a Altino a
revelar segredos que provavelmente não teria coragem de expor nem em seu
próprio diário. O ato de confissão tem como uma de suas finalidades fazer o
indivíduo a revelar seus pecados com a finalidade de redenção destes. É neste
momento que o indivíduo se despe por completo e revela seus desejos e
anseios mais íntimos principalmente em relação à sexualidade. Segundo
Foucault a Igreja incita “a falar do sexo e a falar dele cada vez mais; obstinação
das instâncias do poder a ouvir e a fazê-lo falar ele próprio sob a fórmula da
articulação explícita e do detalhamento acumulado” (1988, p.22).
Um dos momentos que deveriam ser um dos mais felizes na carreira
de um político que significa alcançar um dos mais altos cargos políticos do
período da Primeira República como o de presidente do Estado de São Paulo e
num período relativamente curto para época (já que as carreiras políticas
passavam por vários trâmites burocráticos o que levaria um tempo razoável
para um político alcançar o cargo de presidente de Estado e Altino assumiu
esse posto quando tinha menos de quarenta anos) Altino mostrava-se triste por
não ter sua esposa ao seu lado pra compartilhar esse momento como fica claro
no seguinte trecho:
Mas quanto me dói que à inesquecível companheira dos melhores
quinze anos da minha existência, que a minha fiel e doce Maria não
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esteja ao meu lado para compartilhar do meu triunfo! Ela, que só
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pensava e sentia através do meu sentir e do meu pensar!” .
Altino Arantes demonstra certo cuidado ao redigir seu diário, tem a
preocupação em limitar temas acerca de sua intimidade e sexualidade que
podem de certa forma comprometê-lo. Risca certos trechos do diário o que
demonstrava que precisava esconder algo ou que o trecho riscado poderia
denunciá-lo de certa forma a um possível leitor. Assim, a escrita de si não tem
autores propriamente ditos, e sim editores. “É como se a escrita de si fosse um
trabalho de ordenar, rearranjar, e significar o trajeto de uma vida no suporte do
texto, criando através dele um autor e uma narrativa” (GOMES, 2004, p.21).
Couto de Magalhães, pelo contrário, trata o seu diário como uma “válvula de
escape” ao expressar tudo àquilo que ele não poderia deixar transparecer em
um espaço público e que estaria fora dos padrões de “normalidade”
apregoados no período histórico em que estava inserido, como por exemplo,
desejos sexuais por outros homens.
Ao evitar escrever explicitamente sobre sua sexualidade Altino
estava provavelmente tentando conservar a imagem que ele próprio construiu
de si mesmo ao longo do diário como um católico fervoroso e devoto já que
talvez estivesse cumprindo o preceito do apóstolo Paulo na Epístola ao Efésios
que ao se referir ao sexo ele diz “Que estas coisas não sejam nem sequer
mencionadas entre vós!”
Apesar de transparecer no seu diário esse nítido amor dedicado a
sua amada Maria, em certo momento do seu texto explicita uma dúvida que se
deve ou não confessar uma possível amante que teria tido quando já se
encontrava casado com sua esposa, e como ele mesmo declara que causou
tanto sofrimento a esta.
Entre outras visitas, tive a da Judith F..., meu antigo – e porque não
confessa-lo? – saudoso conhecimento dos bons tempos do Rio ....
Não dói sem alguma comoção que a revi, quase dez anos decorridos
após o nosso último encontro. É ainda uma bela mulher: mas a ação
dos anos e dos sofrimentos – disse-o ela própria – já se faz
tristemente evidente no seu rosto e no seu porte, outrora tão esbelto
e tão senhoril!
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AESP. APAA. Locus: AP91.01.001. vol.1. [1º/5/1916].
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Veio acompanhada de uma filha, já mocinha, e muito parecida com
ela. Expôs-me as peripécias de sua vida, a sua peregrinação pelo
Amazonas, as suas dificuldades aqui em S. Paulo, – sempre em
companhia do homem, com quem vive desde que deixou o Rio e a
quem tributa amor e fidelidade de esposa. Esta agora resolvida a ir
para o sertão, para Bauru, “para a “Cafelândia” – afirma: ela, num
sorriso desconsolado, – afim de tentar a vida e obter algum conforto
material. Ainda sente-se com coragem para lutar e ainda alimenta
esperanças de vencer”, E, ao proferir estas palavras textuais,
encarava-me fixamente, mostrando-me no brilho inalterado dos lindos
olhos negros e fundos, os últimos esplendores de uma formosura,
que me fascinara algum tempo e que tantas angústias causou à
minha pobre Maria.... Esta já não existe mais – ai de mim! -; viva que
fosse, porém, não me dissuadiria, com certeza, de atender agora à
modesta suplica da outra: a concessão de um passe na Estrada de
Ferro para três pessoas, que emigram para o sertão, em demanda do
pão, que lhes escasseia na cidade.... E foi assim, com este pedido
banal, pronta e gostosamente atendido, que se encerrou a entrevista,
– quiçá, a última entre nos dois.... Ninguém sabe jamais, com efeito,
do destino que tomou as estrelas cadentes!...
As pungentes impressões deste encontro entristeceram-me o resto
do dia e só se dissiparam à noite, no Teatro Municipal, com a
representação da linda e espirituosa opereta “La principessa del
5
gramófono.” .
A possível infidelidade do “casto” Altino Arantes fica de forma mais
concisa e clara quando revela o “saudoso conhecimento dos bons tempos do
Rio ....”. O ambiente que Altino se encontrava com a suposta amante, o Rio de
Janeiro, era propício a boemia e a casos amoroso, devido a vida cultural
agitada da capital do país no período em questão.
Um fato intrigante que envolve essa mulher denominada de Judith F.
por Altino Arantes- nome este que pode não ser verdadeiro já que Altino
mantinha certas precauções pra não deixar revelar sua intimidade e
principalmente a respeito de sua sexualidade de forma exacerbada em seu
diário- consiste no modo como o autor em análise se refere a esta mulher, de
forma afetuosa e carinhosa exaltando sua beleza física, de uma maneira que
não é próprio do seu modo de escrever principalmente no que tange a
descrição das características dos indivíduos que são citados ao longo de seu
texto.
Tanto Altino Arantes como Couto de Magalhães redigem seus diários
praticamente todos os dias. Em oposição Altino Arantes que consigna suas
opiniões sobre política relatando episódios de sua atuação como governante de
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AESP. APAA. Locus: AP91.01.001. vol.4. [23/07/1917].
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São Paulo, Couto de Magalhães não faz o registro de seu trabalho ou de sua
atividade política como presidente da província, mas sim de situações do
cotidiano.
Ambos costumam organizar seus diários datando-os. Um fato
peculiar no diário de Couto de Magalhães é que ele costuma datar na maior
parte dos seus escritos utilizando o idioma inglês. Tal ocorrência pode ser
explicada no fato de que Couto de Magalhães encontrava-se em Londres no
período em que escreveu o diário (1880-1887).
Por se tratar de dois personagens políticos e conseqüentemente
públicos os olhares da sociedade voltavam-se não só para sua atuação
enquanto políticos, mas também para suas vidas particulares. Esses
personagens representavam papéis sociais adequados enquanto homens
públicos para melhor se inserirem no meio social em que se encontravam.
4-CONCLUSÃO
As leituras dos diários íntimos aqui estudados, tanto de Couto de
Magalhães como de Altino Arantes, não tem como objetivo destruir a imagens
de homens políticos, fortes, no caso de Couto como herói da Guerra do
Paraguai, e colocando em seu lugar homens atemorizados e permeados por
atribulações sexuais. Ambos eram homens de seu tempo, e assim devem ser
pensadas suas ambigüidades. O importante a se perceber é como ambos
procuraram construir suas imagens através da estruturação, ordenação e
rearranjo de seus textos com o objetivo de dar um sentido ao trajeto de suas
vidas.
Fontes:
Manuscritas Altino Arantes
Arquivo Público do Estado de São Paulo (AESP)
Lócus: AP91.01.001 – Diário escrito por Altino Arantes durante seu período
na presidência de São Paulo, relatando todos os seus acontecimentos [período:
01/05/1916 a 31/10/1917 - 5 volumes - Atuação de Altino Arantes no Governo de
São Paulo - fotocópia] - Título original: Meu diario – Registro intimo de factos e
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impressões (redigido ao correr da penna, sem preoccupação litteraria de qualquer
especie, e destinado a meu uso pessoal e exclusivo).
Lócus: AP92.01.001 – Diário escrito por Altino Arantes durante seu período
na presidência de São Paulo, relatando todos os seus acontecimentos [período:
1918/1919 - 5 volumes - Atuação de Altino Arantes no Governo de São Paulo fotocópia].
Lócus: AP93.01.001– Diário escrito por Altino Arantes durante sua terceira
legislatura como Deputado Federal [período: 1919/1924 – 5 volumes - Atuação de
Altino Arantes no Governo de São Paulo - fotocópia].
Impressa
EGAS, Eugênio. Galeria dos presidentes do Estado de São Paulo e vice-presidentes.
v.2 (Período republicano 1889-1920). São Paulo: Seção de obras d‟ “O Estado de S.
Paulo”, 1927.
MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Diário Íntimo. Organização de Maria Helena P. T.
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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