Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Módulo
Introdução aos estudos CTS
Carla Giovana Cabral
Guilherme Reis Pereira
Projeto Institucional
Edital nº 015/2010/CAPES/DED
Fomento ao uso de tecnologias de comunição e informação nos cursos de graduação
Carla Giovana Cabral
Guilherme Reis Pereira
Módulo
Introdução aos estudos CTS
Carla Giovana Cabral
Guilherme Reis Pereira
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Módulo
Introdução aos estudos CTS
Natal – RN
Janeiro/2012
Governo Federal
Presidenta da República
Dilma Vana Rousseff
Vice-Presidente da República
Michel Miguel Elias Temer Lulia
Ministro da Educação
Aloizio Mercadante Oliva
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
Reitora
Ângela Maria Paiva Cruz
Vice-Reitora
Maria de Fátima Freire Melo Ximenes
Secretaria de Educação a Distância (SEDIS)
Secretária de Educação a Distância
Maria Carmem Freire Diógenes Rêgo
Secretária Adjunta de Educação a Distância
Eugênia Maria Dantas
FICHA TÉCNICA
EDITORAÇÃO DE MATERIAIS
Criação e edição de imagens
Adauto Harley
Anderson Gomes do Nascimento
Carolina Costa de Oliveira
Dickson de Oliveira Tavares
Leonardo dos Santos Feitoza
Roberto Luiz Batista de Lima
Rommel Figueiredo
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS
Marcos Aurélio Felipe
GESTÃO DE PRODUÇÃO DE MATERIAIS
Luciana Melo de Lacerda
Rosilene Alves de Paiva
PROJETO GRÁFICO
Ivana Lima
Diagramação
Ana Paula Resende
Carolina Aires Mayer
Davi Jose di Giacomo Koshiyama
Elizabeth da Silva Ferreira
Ivana Lima
José Antonio Bezerra Junior
Rafael Marques Garcia
REVISÃO DE MATERIAIS
Revisão de Estrutura e Linguagem
Eugenio Tavares Borges
Janio Gustavo Barbosa
Jeremias Alves de Araújo
Kaline Sampaio de Araújo
Luciane Almeida Mascarenhas de Andrade
Rossana Delmar de Lima Arcoverde
Thalyta Mabel Nobre Barbosa
Módulo matemático
Joacy Guilherme de A. F. Filho
Revisão de Língua Portuguesa
Camila Maria Gomes
Cristinara Ferreira dos Santos
Emanuelle Pereira de Lima Diniz
Janaina Tomaz Capistrano
Priscila Xavier de Macedo
Rhena Raize Peixoto de Lima
Rossana Delmar de Lima Aroverde
IMAGENS UTILIZADAS
Acervo da UFRN
www.depositphotos.com
www.morguefile.com
www.sxc.hu
Encyclopædia Britannica, Inc.
Revisão das Normas da ABNT
Verônica Pinheiro da Silva
Catalogação da publicação na fonte. Bibliotecária Verônica Pinheiro da Silva.
Cabral, Giovana.
Ciência, Tecnologia e Sociedade I / Giovana Cabral e Guilherme Reis Pereira. – Natal:
EDUFRN, 2011.
76 p.: il.
Conteúdo: Aula 1 – A questão da neutralidade da ciência. Aula 2 – Ciência, Tecnologia e
Sociedade: primeiras leituras. Aula 3 – Conversando sobre tecnologia. Aula 4 – Tecnologias
sociais e desenvolvimento.
Aulas 1 e 4 – autoria do professor Guilherme Reis Pereira. Aulas 2 e 3 – autoria da professora
Giovana Cabral.
1. Tecnologia - Ciência. 2. Sociedade. 3. Desenvolvimento. I. Pereira, Guilherme Reis. II. Título.
CDU 62:001.1
C117c
© Copyright 2005. Todos os direitos reservados a Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – EDUFRN.
Nenhuma parte deste material pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização expressa do Ministério da Educacão – MEC
Apresentação Institucional
A
Secretaria de Educação a Distância – SEDIS da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte – UFRN, desde 2005, vem atuando como fomentadora, no âmbito local, das
Políticas Nacionais de Educação a Distância em parceira com a Secretaria de Educação
a Distância – SEED, o Ministério da Educação – MEC e a Universidade Aberta do Brasil –
UAB/CAPES. Duas linhas de atuação têm caracterizado o esforço em EaD desta instituição: a
primeira está voltada para a Formação Continuada de Professores do Ensino Básico, sendo
implementados cursos de licenciatura e pós-graduação lato e stricto sensu; a segunda volta-se
para a Formação de Gestores Públicos, através da oferta de bacharelados e especializações
em Administração Pública e Administração Pública Municipal.
Para dar suporte à oferta dos cursos de EaD, a Sedis tem disponibilizado um conjunto de
meios didáticos e pedagógicos, dentre os quais se destacam os materiais impressos que são
elaborados por disciplinas, utilizando linguagem e projeto gráfico para atender às necessidades
de um aluno que aprende a distância. O conteúdo é elaborado por profissionais qualificados e
que têm experiência relevante na área, com o apoio de uma equipe multidisciplinar. O material
impresso é a referência primária para o aluno, sendo indicadas outras mídias, como videoaulas,
livros, textos, filmes, videoconferências, materiais digitais e interativos e webconferências, que
possibilitam ampliar os conteúdos e a interação entre os sujeitos do processo de aprendizagem.
Assim, a UFRN através da SEDIS se integra o grupo de instituições que assumiram o
desafio de contribuir com a formação desse “capital” humano e incorporou a EaD como modalidade capaz de superar as barreiras espaciais e políticas que tornaram cada vez mais seleto o
acesso à graduação e à pós-graduação no Brasil. No Rio Grande do Norte, a UFRN está presente
em polos presenciais de apoio localizados nas mais diferentes regiões, ofertando cursos de
graduação, aperfeiçoamento, especialização e mestrado, interiorizando e tornando o Ensino
Superior uma realidade que contribui para diminuir as diferenças regionais e o conhecimento
uma possibilidade concreta para o desenvolvimento local.
Nesse sentido, este material que você recebe é resultado de um investimento intelectual
e econômico assumido por diversas instituições que se comprometeram com a Educação e
com a reversão da seletividade do espaço quanto ao acesso e ao consumo do saber E REFLETE O COMPROMISSO DA SEDIS/UFRN COM A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA como modalidade
estratégica para a melhoria dos indicadores educacionais no RN e no Brasil.
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
SEDIS/UFRN
Sumário
Aula 1 A questão da neutralidade da ciência
7
Aula 2 Conversando sobre tecnologia
25
Aula 3 Ciência, Tecnologia e Sociedade: primeiras leituras
39
Aula 4 Tecnologias sociais e desenvolvimento
55
A questão da neutralidade
da ciência
Aula
1
Apresentação
N
esta aula, vamos discutir a ideia de neutralidade da ciência, partindo das origens da
ciência moderna, constituída a partir do século XVI. A questão da neutralidade da ciência
está no centro do debate entre os estudos sobre as características da ciência e seu
papel na sociedade. A questão principal do debate é se a ciência é ou não influenciada pelo
contexto sociocultural, pelos valores sociais, interesses políticos e econômicos. Tal discussão é
importante porque a visão da ciência neutra tem implicações na escolha dos temas, na política
que define as prioridades de pesquisa e influencia as relações entre o ambiente científico e os
outros setores da sociedade.
Faremos um breve resgate das raízes da ideia de ciência neutra, autônoma e universal
a partir do processo de formação da ciência moderna. É importante sabermos que a questão
da neutralidade da ciência está relacionada a um modo de produzir conhecimento sobre os
fenômenos da natureza baseado na matemática, que procurou definir leis gerais de alcance
universal para controlar e transformar a natureza. Esse modo de fazer ciência separa a natureza
(objeto) da sociedade (sujeito).
Veremos que a visão dominante de ciência neutra, autônoma e universal está sendo negada pelo próprio avanço do conhecimento, com o surgimento de novas teorias nas ciências
naturais que superam as anteriores, e por fatos históricos que estão relacionados ao uso da
ciência para fins político-militares no desenvolvimento de armas e aplicação no processo de
produção capitalista.
Objetivos
1
Estabelecer uma relação entre o método científico e a visão
dominante de ciência.
2
Conhecer o debate sobre a questão da neutralidade da
ciência, a qual tem recebido muitas críticas por diversos
autores ao longo do século XX.
Aula 1
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
9
A construção da
ciência moderna
Desde o século XVI, a ciência moderna foi se formando de acordo com um modo de
produzir conhecimento que deveria se diferenciar do conhecimento da época, que estava
ligado ao pensamento religioso. Este pensamento justificava a ordem feudal e o exercício
do poder. De acordo com Hessen (1984, p. 49), as universidades, cujo sistema pedagógico
era escolástico fechado, eram o centro das tradições feudais e toda a ciência era baseada na
lógica aristotélica. “Tudo que não fosse encontrado em Aristóteles não existia”, diz Hessen
(1984, p. 50). As universidades ligadas à Igreja não davam espaço para o desenvolvimento
das ciências naturais. Enquanto os filósofos buscavam a verdade nos textos, os cientistas
naturais buscavam a verdade no mundo, na natureza, inspirados pelos problemas técnicos da
nascente burguesia mercantil.
As grandes descobertas desse período, como o heliocentrismo de Copérnico e os estudos
de mecânica de Galileu e Newton, convergiam para uma lógica da investigação na qual a matemática era um instrumento de análise e também fornecia um modelo de representação da própria
estrutura da matéria. Com base na matemática, eram feitas observação e experimentação para
se alcançar um conhecimento profundo e rigoroso da natureza. Naquela época, o novo modo de
fazer ciência teve a contribuição das reflexões filosóficas de Descartes, que também fundou a
geometria analítica. Descartes introduziu um racionalismo radical, no qual as ideias eram colhidas
independentemente da experiência.
Esse modo de fazer ciência se inicia com ideias claras e simples e não do sensível e dos
fatos. Essas ideias são as ideias matemáticas que podem ser comprovadas. Para Galileu, o
livro da natureza está inscrito em caracteres geométricos. Desse modo, a matemática vai
propiciar um caráter racional para a ciência fazendo assim uma distinção hierárquica entre
conhecimento científico e conhecimento vulgar. Como consequência, para conhecer é preciso
quantificar e o rigor científico é verificado pelo rigor das medições. Eram consideradas boa
ciência as hipóteses que pudessem ser comprovadas.
Outra característica do método científico, que é a base da ciência moderna, é a simplificação da realidade porque a mente humana não consegue compreender a totalidade. Isso quer
dizer que para conhecer é preciso dividir e classificar e depois estabelecer relações sistemáticas.
A primeira divisão consiste em separar as leis da natureza das condições iniciais, presumindo
que essas leis têm uma ordem e estabilidade, isto é, elas não mudam com o tempo, são invariáveis e determinantes. Em função disso, podem-se fazer previsões, controlar e transformar
a natureza. A ciência moderna procura saber a causa formal dos fenômenos naturais, ou seja,
como funcionam as coisas sem se preocupar com a finalidade dessas coisas. Diferente do
conhecimento prático, no qual a causa e a intenção convivem.
A ideia do mundo-máquina presente no determinismo mecanicista se tornou a hipótese
universal da época moderna e foi um dos pilares da ideia de progresso que surgiu no contexto
da ascensão da burguesia e revolução industrial no século XVIII. A capacidade de entender leis
da natureza que apresentam a ordem e estabilidade do mundo vai permitir a transformação
tecnológica da realidade e do mundo. Como exemplo do avanço da ciência que propiciou a
Aula 1
Determinismo
mecanicista
é a ideia de que o mundo
estático da matéria é susceptível a ser determinado
através de leis físicas e
matemáticas.
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
11
O Estado Moderno
é entendido como sendo
um conjunto de instituições
que procura manter a
ordem e a paz social, bem
como promover o desenvolvimento socioeconômico.
transformação da sociedade, podemos citar a descoberta da termodinâmica, que permitiu
a introdução da máquina a vapor na produção industrial, aumentando o ritmo do trabalho e
impulsionando o sistema capitalista industrial.
Como o determinismo mecanicista das leis de Newton possibilitava dominar e transformar a
natureza, era uma forma de conhecimento que teve grande aceitação na época pela sua utilidade
e funcionalidade em pleno período de transformação da sociedade industrial. O estudo dos fenômenos da natureza atendia aos interesses da burguesia de expansão econômica transformando
matéria-prima em produtos industrializados. As demandas por certos conhecimentos, colocadas
pela indústria da época, eram objeto de estudo dos físicos e matemáticos. Se o contexto histórico
estabelece os desafios para a ciência, então não há neutralidade. A racionalidade da ciência era
adequada aos interesses de crescimento da economia capitalista e também contribuiu para a
consolidação do Estado Moderno através das aplicações militares do conhecimento.
Da mesma forma que era possível conhecer as leis da natureza, alguns intelectuais acreditaram que era possível investigar as leis que determinam a forma de organização da sociedade
e prever os resultados das ações coletivas.
O método das ciências naturais foi utilizado pelos pesquisadores que queriam entender
o funcionamento da sociedade. A aplicação desse método nos estudos sobre a sociedade do
século XIX foi chamado de positivismo lógico e foi compartilhado por vários pensadores, entre
eles Saint Simon, August Comte, Spencer, Durkheim e outros intelectuais do Círculo de Viena.
Entre muitos cientistas formou-se um consenso de que era possível explicar os fenômenos da natureza identificando leis invariáveis que não dependiam da ação humana. O método
positivo de conhecimento da sociedade procurava identificar as leis sociais que determinam
o funcionamento da sociedade para prever fenômenos e agir visando à ordem e ao progresso.
Desse modo, as ciências utilizavam regras de como produzir conhecimento que passavam
uma visão determinista do mundo e um discurso de neutralidade da ciência para justificá-la
como verdadeira.
Em seu livro, M. Löwy caracteriza o positivismo por meio de três proposições:
1. A sociedade é regida por leis naturais, isto é, leis invariáveis, independentes da vontade
e ação humanas; na vida social, reina uma harmonia natural.
2. A sociedade pode, portanto, ser epistemologicamente assimilada à natureza (o que
classificaremos como “naturalismo positivista”) e ser estudada pelos mesmos métodos,
démarches e processos empregados pelas ciências da natureza.
3. As ciências da sociedade, assim como as da natureza, devem limitar-se à observação e à
explicação causal dos fenômenos, de forma objetiva, neutra, livre de julgamentos de valor ou
ideologias, descartando previamente todas as prenoções e preconceitos (LÖWY, 1994, p. 17).
Os pioneiros do positivismo, Condorcet e Saint-Simon, faziam a defesa da neutralidade
da ciência em relação às paixões e interesses das classes dominantes da época. Os positivistas
se colocavam contra as doutrinas religiosas e o argumento de autoridade da ordem feudal-absolutista. A intenção deles era livrar o conhecimento da influência das crenças e da política
feudal e absolutista.
Diferente dos pioneiros que atacavam os preconceitos do Antigo Regime, Comte e
Durkheim são autores positivistas que assumiram uma posição de defesa da ordem estabelecida ao reconhecer a ideia de lei social natural, isto é, a existência de elementos imutáveis
12
Aula 1
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
na sociedade. Eles se tornaram conservadores da ordem estabelecida ao atacar os chamados
preconceitos revolucionários do Iluminismo, as ideias socialistas e o marxismo.
A influência do positivismo ao analisar a realidade de forma objetiva, baseada na comprovação das hipóteses com dados empíricos, livre dos preconceitos, interesses e ideologias continuou
no início do século XX com os autores do Círculo de Viena. O Círculo de Viena era um movimento
a favor da concepção científica do mundo em termos de seu conteúdo lógico, epistemológico e
metodológico e contra a teologia e a influência da Igreja Católica. Na medida em que os autores
positivistas davam um papel de destaque para a ciência no projeto político de uma sociedade em
transformação, reconheciam que a ciência podia ter um impacto na sociedade. Então, como fica
a ideia de neutralidade da ciência? Vamos discutir esse ponto na seção a seguir.
1
Você viu que no período de formação da ciência moderna foi preciso estabelecer
formas de conhecer que se diferenciavam do conhecimento tradicional da Idade
Média. Escreva um texto explicando quais características da ciência moderna
permanecem até nossa época. Registre sua reflexão em seu caderno ou em
arquivo eletrônico.
A neutralidade da ciência
O debate sobre se a ciência deve ser neutra, livre de valores e interesses perpassa todo
o século XX. Alguns autores defendem que a ciência deve ser descomprometida e não pode
sofrer influência externa dos políticos e da cultura na qual o cientista está imerso, enquanto
outros autores argumentam sobre a necessidade de orientar o desenvolvimento da ciência
para atender interesses econômicos, políticos e sociais. Mas, antes de entrar nesse debate,
você precisa compreender o que se entende por ciência neutra.
A ideia da neutralidade significa que a ciência não é influenciada pelo contexto social,
político e econômico. Existe uma muralha separando a comunidade científica que protege a
produção de conhecimento científico das interferências dos interesses econômicos e políticos.
Também não pode haver uma influência dos valores da sociedade em que vive o cientista. A
imagem clássica do cientista é de um sujeito genial que fica em uma torre de marfim isolado
da sociedade. Os dados do objeto da pesquisa precisam ser analisados objetivamente sem
serem contaminados pelo olhar do que a sociedade considerar bom ou mau. Uma vez que a
ciência não sofreu nenhum tipo de influência externa ao ambiente científico, ela é considerada
neutra porque se criou uma barreira virtual entre a ciência e a sociedade. Nessa concepção, a
produção de conhecimento científico tem um desenvolvimento livre e espontâneo em busca
da verdade.
Aula 1
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
13
Figura 1 – Imagem clássica do cientista
Apesar de alguns autores, como os humanistas ingleses, defenderem um direcionamento
da ciência para atender objetivos sociais e econômicos específicos, era dominante no início
do século XX a visão da ciência neutra. Só para citar alguns nomes, Polanyi, em sua conferência Autogoverno na Ciência, se opõe à ideia da ciência dirigida e defende uma comunidade
científica baseada na concepção de liberdade da ciência e sua desvinculação de interferências
políticas e religiosas. Outro autor importante foi Merton que, em 1942, introduziu a ideia de
que o cientista deve desempenhar suas atividades de acordo com um conjunto de normas e
valores específicos, entre eles o desinteresse.
É importante lembrar que o mundo estava em plena Segunda Guerra Mundial e sob regimes totalitários, como o nazismo, que obrigava os cientistas a fazer pesquisa para produção de
armas de destruição em massa. A intenção de Merton era mostrar que o nazismo e a ciência não
podiam andar juntos. O autor concebe a comunidade científica como um subsistema autônomo
em relação à sociedade. Dessa forma, Merton reforça a tradição da sociologia do conhecimento
de que a ciência é neutra, isto é, o fenômeno deve ser investigado sem interferência dos valores
sociais, interesses e opinião. Para fazer ciência, a razão precisa estar separada da emoção.
Como você pode notar, havia um consenso sobre a liberdade e autonomia da ciência
em relação à sociedade que começou no Iluminismo, continuou nos estudos da sociedade,
denominado de positivismo, e permanece impregnado nas mentes de muitos cientistas no final
do século XX. A valorização do conhecimento científico baseado na observação dos fenômenos para entender a realidade com ela é colocava a ciência acima da sociedade. Os cientistas
acreditavam que a acumulação pura e simples de conhecimentos científico-tecnológicos seria
suficiente para garantir o progresso econômico e social de todos. Desse modo, essa visão de
ciência introduziu a ideia de progresso como um desenvolvimento linear que começa com o
avanço do conhecimento que transborda e se espalha para a sociedade, beneficiando a todos.
A consequência dessa visão de ciência neutra que prega a necessidade de distanciamento em relação ao contexto social, político e econômico tornou a ciência um assunto técnico
exclusivo dos cientistas. Os demais segmentos e pessoas da sociedade não estariam capacitados a discutir sobre quais problemas os cientistas deveriam se debruçar. Isso fez com que a
política científica, que estabelecia quais eram as prioridades de pesquisa para receber recursos
14
Aula 1
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
públicos, fosse definida pelos próprios cientistas. Só que o conhecimento científico tornou-se
importante demais para ser deixado por conta dos cientistas, demasiadamente ocupados em
fazer ciência.
Existem vários exemplos na História que comprovam o impacto causado pela ciência na
relação entre os países, como exemplo, temos o desenvolvimento de armas como a bomba
nuclear. Você pode perceber o impacto da aplicação da ciência na vida das pessoas com a
popularização de tecnologias, como o automóvel movido a álcool, celular, internet, micro-ondas
etc. Ao longo do século XX, a ciência e a tecnologia assumiram um caráter político, ou seja,
ambas são de interesse público por causa das transformações provocadas na vida das pessoas
e no desenvolvimento socioeconômico. Mesmo com tantas evidências, existe uma tradição
entre os cientistas naturais de manter uma autonomia e liberdade da ciência pura que os fazem
resistir às iniciativas do governo de administração e direção do desenvolvimento científico.
Apresentamos para você como se formou a ideia de neutralidade da ciência a partir da
revolução científica dos séculos XVI e XVII. Na sequência, vamos discutir como essa ideia é
questionada por diversos autores das ciências naturais e sociais.
2
Faça uma pesquisa na internet sobre algum caso de pesquisa em que houve
interferência de valores morais, interesses políticos ou econômicos no desenvolvimento da ciência.
Crítica da neutralidade
da ciência
Nesse tópico, vamos apresentar a crítica de alguns autores à ideia de neutralidade da
ciência. Veremos como as teorias mais recentes de físicos colocaram em xeque as bases da
ciência moderna e também a interpretação de cientistas sociais que destacam a influência do
momento histórico na produção de conhecimento científico.
Crítica dos cientistas naturais
baseada em novas teorias
A partir da segunda metade do século XX, a visão de ciência neutra, construída a partir
das contribuições de Galileu, Newton, Descartes e dos positivistas, é colocada em dúvida em
função do avanço do conhecimento de novas teorias que questionam as bases desse modelo
de ciência. Essa visão também recebe críticas sociológicas de autores que defendem que
Aula 1
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
15
existe influência do contexto sociocultural na produção de conhecimento. Quando teorias
que formam as bases da ciência são negadas por outras, ocorre uma situação chamada de
revolução científica. Se as bases da ciência moderna que deram origem à visão de ciência
neutra estão sendo questionadas, consequentemente a objetividade e neutralidade da ciência
também caem por terra.
O primeiro abalo no alicerce da ciência está relacionado à teoria da relatividade de Einstein. Esse cientista contradisse a lei da física de Newton sobre as ideias de simultaneidade
universal e de tempo e espaço absolutos. Einstein distingue a medição de acontecimentos em
um mesmo lugar de acontecimentos em lugares distantes. Ele questiona como o observador
pode saber o que aconteceu primeiro em lugares diferentes. Mesmo que o observador saiba
qual é a velocidade da luz, não é possível medir porque não sabe qual é a simultaneidade dos
acontecimentos. Nesse sentido, Einstein conclui que é impossível verificar a simultaneidade
temporal em espaços diferentes. Se não há simultaneidade universal, a ideia de tempo e espaço
absoluto de Newton deixa de existir. As leis da física se baseiam em medições locais, não têm
a abrangência universal.
O segundo abalo no alicerce da ciência é o princípio da incerteza de Heisenberg e Bohr, na
área da mecânica quântica. Eles demonstram-nos que o conhecimento que temos da realidade
é, inevitavelmente, afetado pela nossa interferência no objeto. O que conhecemos do real é
a alteração que provocamos nele, não é o real em si. Um objeto que sai de um processo de
medição é diferente de como entrou. Portanto, a mecânica quântica demonstra a interferência
estrutural do sujeito no objeto. Se o rigor do conhecimento é limitado, as leis da física não são
mais que probabilidades. Por outro lado, a hipótese do determinismo mecanicista é inviável
porque a totalidade do real não é a soma das partes que dividimos para observar e medir.
O terceiro abalo no alicerce da ciência é o teorema da incompletude de Gödel, que questiona o rigor da matemática. O resultado puramente matemático desse teorema é que prova
a afirmação de que nenhuma teoria formal pode ser, simultaneamente, poderosa, consistente
e completa. Diz Santos (1988; p. 55-6): “Se as leis da natureza fundamentam o seu rigor no
rigor das formalizações matemáticas em que se expressam, as investigações de Gödel vêm
demonstrar que o rigor da matemática carece ele próprio de fundamento.”
Crítica dos cientistas sociais
Alguns críticos da ideia de neutralidade da ciência adotam a sociedade como foco da
análise para afirmar a não neutralidade da ciência e da tecnologia. Boris Hessen, em “As raízes
sociais e econômicas do Principia de Newton”, descreve os problemas técnicos colocados pela
navegação marítima, pelas indústrias de mineração, metalúrgica e da guerra que demandavam
conhecimento de mecânica.
Os problemas técnicos da navegação impulsionaram estudos de hidrostática, aerostática
e ótica. O problema da trajetória da bala inspirou Galileu a estudar o movimento dos corpos,
resistência e velocidade, a queda livre dos corpos. O recuo do canhão levou ao estudo da lei de
ação e reação. Estes são exemplos de temas que a ciência procurou explicar que foram determinados pelas necessidades da nascente burguesia, pelos interesses econômicos e políticos.
A principal obra de Newton, Principia, sistematizou todos os problemas físicos da mecânica
da época numa linguagem matemática abstrata sem indicar as fontes de inspiração.
16
Aula 1
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Além de Boris Hessen, que descreve o desenvolvimento da física a partir dos interesses
econômicos e políticos, outros autores construtivistas mostram, com base em estudos de
caso, que há influência das relações sociais e econômicas no desenvolvimento da ciência e
tecnologia (C&T). Esses autores entendem que a C&T é uma construção social, ou seja, o
desenvolvimento científico e tecnológico é influenciado pela política, economia e cultura e
também produz efeitos sociais e políticos.
O desenvolvimento tecnológico envolve conflito e negociação entre grupos sociais com
concepções diferentes acerca dos problemas e soluções. O desenho dos artefatos tecnológicos
é definido pelas correlações de força entre os diferentes grupos sociais; portanto, não é um
processo determinista. Um dos exemplos usados pelos construtivistas Wiebe Bijker e Trevor
Pinch de como os usuários interferem no desenho do artefato é a história da bicicleta, que
inicialmente tinha a roda dianteira grande e com tração para alcançar velocidade que servia
como equipamento esportivo, mas não era adequada como meio de transporte devido à instabilidade. O desenho da bicicleta gradativamente foi se adequando para atender melhor o usuário.
1818
1830
1860
1885
1960
1970
1870
Figura 2 – Evolução da bicicleta
Entre os críticos da neutralidade da ciência, o filósofo Lacey faz uma discussão com
foco na diferenciação entre valores cognitivos e valores sociais. Como já dissemos anteriormente, as características da metodologia científica devem seguir o interesse de entender
os fenômenos. As prioridades e direção da pesquisa não devem ser moldadas por valores
sociais particulares, isto é, devem ser neutras em relação a eles. Porém, para Lacey, a ciência
moderna é conduzida de acordo com estratégias materialistas que valorizam o controle dos
objetivos naturais. Só que no momento da aplicação fica evidente que a ciência não está livre
de valores particulares. Para exemplificar, o autor cita o caso das sementes transgênicas cujas
pesquisas seguem uma estratégia materialista, deixando de lado estratégias alternativas, como
a agroecologia, que poderia ser aplicada pelos movimentos sociais rurais nas comunidades.
Para você entender melhor os conflitos de valores que podem ocorrer com o avanço da
ciência, vamos tomar como exemplo o caso da pesquisa em genética. A polêmica em torno da
pesquisa de manipulação genética com embrião humano deu origem a uma discussão sobre a
ética na ciência e os limites do desenvolvimento científico. A possibilidade de clonagem humana
Aula 1
Valores sociais
Segundo Lacey (1999,
p. 124), valor social é
uma característica muito
importante para a sociedade, como por exemplo,
o respeito aos direitos
humanos. Valor cognitivo
é uma característica que
é valorizada em teorias
(hipóteses); é uma característica de teorias aceitas
como “boas”.
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
17
é vista como um risco, principalmente, pelas pessoas ligadas à religião. Mas, por outro lado,
os resultados da pesquisa podem contribuir para evitar doenças transmitidas de pais para
filhos, como o câncer. Veja algumas opiniões a respeito dessa questão:
“Minha concepção de vida faz com que eu prefira a destruição de um embrião
à sua instrumentalização como fábrica de órgãos por um projeto de pesquisa.”
(Arnold Munnich, chefe do serviço de genética do hospital Necker, em Paris)
“Polêmica, que polêmica? Todos os especialistas estão de acordo.” (François
Thépot, então diretor adjunto da Agência de Biomedicina da França, 2008).
“Temos receio que seja um golpe contra a continuidade das pesquisas.”
(Diretora da Agência de Biomedicina demitida pelo governo de Nicolas Sarkosy)
Na década de 1970, vários autores passaram a questionar a visão positiva e neutra da
ciência e denunciavam os impactos negativos que podiam ser observados no uso da ciência e
tecnologia (C&T). Havia vários casos que evidenciavam os efeitos nocivos da ciência. Só para
citar alguns exemplos, os trabalhadores estavam perdendo o emprego por conta da introdução
de novas tecnologias, o pesticida DDT provocava efeitos prejudiciais à saúde humana e o uso
da C&T na Guerra do Vietnã com as bombas de Napalm.
Nesse sentido, a degradação ambiental, o desemprego tecnológico e o uso destrutivo da
C&T vão contribuir para a desconstrução da ciência neutra e conter a euforia sobre os resultados do avanço científico e tecnológico. Vários autores afirmam que a ciência carrega valores e
não está isolada da sociedade e muito menos é neutra e livre de influências externas ao meio
acadêmico. Nesse período, se fortalece o argumento de que a ciência precisa ser controlada
e dirigida para solucionar problemas relevantes da sociedade.
Já os críticos mais radicais da neutralidade, como os marxistas Coriat e Gorz, vão defender a tese de que a C&T é gerada sob a égide da sociedade capitalista e, por isso, é construída
de forma que seja útil e funcional para aquela sociedade, isto é, ela faz parte da engrenagem
do sistema capitalista. A ciência e tecnologia estão comprometidas com a manutenção da
sociedade onde foi produzida e, por isso, não seria funcional e nem adequada em um sistema
social muito diferente, como se imaginava o socialismo. Também não poderia ser utilizada
para a construção de uma nova sociedade em uma direção diferente daquela que orientou o
seu desenvolvimento.
Os marxistas argumentam que as ciências e as técnicas de produção trazem a marca das
relações de produção e da divisão de trabalho capitalistas na sua orientação e especialização.
Para ficar mais claro para você, vamos exemplificar com o caso do socialismo da União Soviética. Coriat afirma que um dos principais motivos da falência do socialismo soviético foi ter
copiado o modelo de organização de produção capitalista. Foi mantida a hierarquia na divisão
do trabalho e a burocracia assumiu o papel que era da burguesia no capitalismo.
18
Aula 1
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Assim, pode-se dizer que C&T não existe historicamente de forma abstrata como é ensinada nos diversos cursos. A C&T tem características de sua época e da sociedade onde se
desenvolve. O sucesso do cientista está ligado à utilidade do conhecimento para alcançar os
objetivos da sociedade. No caso da sociedade capitalista, esse objetivo é promover a inovação
para gerar mais riqueza para as grandes empresas. Desde os tempos de Galileu e Newton,
a C&T tem sido predominantemente uma ferramenta utilizada na sociedade capitalista para
dominar a natureza e explorar os desprovidos de meios de produção. Por isso, por mais que
a C&T tenha se desenvolvido, isso não implicou em desenvolvimento social e nem em uma
relação sustentável com a natureza.
3
Com base no que foi apresentado anteriormente, escreva um texto argumentando a favor ou contra a neutralidade da ciência, respondendo à seguinte questão:
Para você, a busca de conhecimento é independente de interesses pessoais,
econômicos e políticos ou procura atender objetivos específicos?
Nova concepção da ciência
A ideia da neutralidade da ciência que se desenvolve a partir de uma lógica interna, da
curiosidade do cientista desprovido de interesse que se isola no laboratório, passou a conviver com a visão de que a ciência é condicionada pelo contexto social, pelas circunstâncias
do momento histórico e orientada por objetivos de desenvolvimento econômico e social. A
ciência também deixa de ser vista como ponto de partida para se alcançar desenvolvimento
tecnológico e passa a atender as necessidades dos usuários. Dito de outra forma, não é mais
a ciência que empurra a tecnologia de forma linear, mas o mercado e as necessidades dos
usuários que puxam o desenvolvimento científico.
Essa mudança de entendimento sobre como é produzido o conhecimento científico e,
principalmente, sobre os impactos benéficos ou maléficos que podem ser gerados, provocou
uma mudança da política de C&T, na qual as agências de financiamento passam a definir
temas e áreas do conhecimento que recebem recursos visando o desenvolvimento científico
e tecnológico em áreas consideradas mais importantes para o país. Nesse novo contexto
do final do século XX, os cientistas continuam a ser os principais atores da política de C&T,
mas tiveram que dividir espaço com os gestores públicos, os empresários e os políticos na
definição das prioridades.
Aula 1
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
19
Política científica e tecnológica
Agora vamos mostrar como essa mudança da política ocorreu na prática usando a experiência do governo brasileiro.
No caso do Brasil, foram elaborados os Planos Básicos de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (PBDCT) a partir da década de 1970, visando à geração e transferência de conhecimento científico e tecnológico para diversos setores produtivos nacionais, principalmente
investir nas áreas de energia, agropecuária, transporte, telecomunicações e defesa. Em função
da crise do petróleo, o País precisava descobrir mais reservas para diminuir a dependência
de importação. Além de financiar pesquisa de fontes alternativas de energia como biomassa,
geração de energia hidrelétrica e o Programa Nacional do Álcool.
No final da década de 1990, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP) financiou uma pesquisa científica de sequenciamento do genoma da bactéria Xylella
fastidiosa, causadora da doença chamada amarelinho que ocorre na produção de laranja. A
pesquisa foi realizada por uma rede de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento.
O projeto foi reconhecido por duas das mais conceituadas revistas científicas: a americana
Science e a inglesa Nature publicaram um artigo sobre a pesquisa.
Figura 3 – Imagem dos genes da bactéria Xylella fastidiosa
20
Aula 1
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Considerações finais
Quando se faz uma crítica à herança da ciência moderna, não podemos esquecer os
benefícios propiciados pelo seu avanço como a melhoria das condições de vida. Quero dizer
que devemos reconhecer que a ciência desempenhou um papel importante na transformação
da sociedade e na geração de riqueza. Através dela, também passamos a conhecer melhor o
mundo em que vivemos. A lógica de conhecer para poder dominar os recursos naturais foi útil
para um estágio de desenvolvimento, mas teve como consequência uma relação predatória
com o meio ambiente. Nos últimos anos, a humanidade tem sido afetada pelos desastres naturais que são provocados pela própria ação do homem. Ademais, a visão determinista e de
neutralidade da ciência mascara a utilização do conhecimento pelo capital e dificulta projetar
estratégias alternativas de desenvolvimento.
Leituras complementares
PIZANI, Marilia. Tecnologia e Política em Marcuse. Revista Cult, ed. 127, mar. 2010. Disponível
em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/tecnologia-e-politica-em-marcuse/>. Acesso
em: 23 fev. 2011.
A autora faz uma análise da crítica de Marcuse à neutralidade da ciência presente no livro
Ideologia da sociedade industrial. Segundo Pizani, Marcuse argumenta sobre o uso da tecnologia como forma de controle e coesão social que começa com a introdução das máquinas
nas fábricas e se estende para a vida social.
A ILHA. Direção de Michael Bay. EUA: DreamWorks Distribution LLC, 2005.
O filme retrata uma situação em que cientistas e empresários inescrupulosos produzem
clones humanos. O filme é um bom exemplo para se pensar os objetivos da ciência e os limites
éticos para seu desenvolvimento. Veja detalhes no endereço: <http://www.planetaeducacao.
com.br/portal/artigo.asp?artigo=472>.
Aula 1
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
21
Resumo
Nesta aula, você aprendeu que a ideia de neutralidade da ciência tem sua
origem no modo de produzir conhecimento científico que procurava identificar
as leis que determinam o mundo, o que permitia que a sociedade pudesse
controlar e transformar a natureza. De acordo com esse objetivo da ciência de
conhecer as leis de funcionamento da natureza para poder dominar os fenômenos
naturais, as ciências naturais foram úteis para o desenvolvimento da sociedade
industrial. Exemplificamos como os estudos da mecânica foram importantes para
o desenvolvimento da navegação e da indústria do sistema capitalista. Entretanto,
a ciência moderna deixou como herança uma forma de conceber o mundo na
qual a sociedade se vê separada da natureza e o progresso significa controlar e
transformar a natureza. Também foi passada uma visão determinista, na qual a
evolução social e econômica da sociedade é resultado do desenvolvimento científico
e tecnológico. Mostramos que a ciência não é neutra, isto é, ela é influenciada pelos
interesses econômicos, políticos e valores de um determinado período.
Autoavaliação
22
Aula 1
1
Você concorda ou discorda com a ideia de neutralidade da ciência?
2
Explique as implicações da visão de neutralidade da ciência na relação entre ciência e sociedade.
3
Discuta a relação entre natureza e sociedade com base nos desastres naturais,
identificando a forma de ocupação nas cidades.
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Referências
BIJKER, W. et al. The Social construction of Technological systems. Cambridge: MITPress, 1990.
DAGNINO, Renato. Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico: um debate sobre a
tecnociência. Campinas: Editora Unicamp, 2008.
HESSEN, Boris. Raízes Sociais e Econômicas do Principia de Newton. Revista Brasileira do Ensino
de Física, v. 6, nº1, pp.37 - 55, 1984. Disponível em: <http://www.sbfisica.org.br/rbef/pdf/vol06a06.
pdf>. Acesso em: 23 fev. 2011.
LACEY, H. Is science value-free? values and Scientific Understanding. Londres: Routledge, 1999.
LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento, 5ª ed. revista. São Paulo, Cortez, 1994.
OLIVEIRA, Marcos. Sobre o Significado Político do Positivismo Lógico. Revista Espaço Acadêmico,
ano II, n. 13, jun. 2002.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estud. av. [online]., v. 2, n. 2, p. 46-71, 1988. ISSN 0103-4014.
Anotações
Aula 1
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
23
Anotações
24
Aula 1
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Conversando sobre tecnologia
Aula
2
Apresentação
N
ós todos temos um entendimento do que seja tecnologia. Esse entendimento pode se
originar das nossas vivências e experiências cotidianas, do que assistimos na televisão,
lemos na internet, em livros, de aulas que tivemos na escola e na própria universidade.
O que vamos discutir nesta aula é o quanto do que entendemos por tecnologia está impregnado
de uma visão restrita e como essa visão restrita limita um entendimento ampliado e crítico. O
que estamos tentando dizer? No senso comum, na mídia, e também teoricamente, há uma visão
de tecnologia que a considera apenas ciência aplicada. Isso deixa de lado todo o conhecimento
tecnológico que o homem construiu ao longo de sua existência, da história da humanidade e
leva-nos a acreditar que a tecnologia e o seu avanço são as responsáveis pelo bem-estar e a
qualidade de vida das pessoas. É sempre assim?
Refletir sobre esse assunto implica conhecer as imagens mais correntes sobre tecnologia – intelectualista e instrumentalista – e um conceito que desconstrói essa ideia, atraindo as
dimensões social, ambiental, ética para ampliar o nosso entendimento. Esse conceito é o de
tecnologia como prática cultural ou prática tecnológica.
Com isso, a exemplo do que discutimos no texto anterior sobre a não-neutralidade da
ciência, vamos tentar compreender que a tecnologia não é neutra: há interesses, crenças,
valores envolvidos; há relações de poder, um tempo, uma história.
Essas questões permeiam os objetivos desta aula. Vamos conhecê-los?
Objetivos
1
Compreender que a tecnologia não é neutra e está per
meada por interesses, crenças, valores.
2
Conceituar prática tecnológica.
3
Refletir sobre a relação entre tecnologia e desenvolvimento
social e humano.
Aula 2
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
27
A tecnologia nossa de cada dia
Vamos começar a nossa aula com uma pesquisa. Vamos lá!
Escolha um site de busca e coloque a palavra-chave “tecnologia”. O que você
encontrou? Liste os três primeiros links e faça um resumo (até 30 linhas) do que
eles contêm sobre tecnologia. Vamos discutir os seus achados em sala de aula.
Em sua pesquisa, você encontrou uma série de textos e figuras representando a tecnologia. De uma forma geral, elas simbolizam a visão preponderante, que é a de perceber/entender
a tecnologia como aplicação da ciência. Uma vez que se tenha um conhecimento científico e
este seja aplicado, temos uma tecnologia. Essa ideia se concretiza especialmente em artefatos.
A visão de tecnologia como aplicação da ciência é restrita e traz vários problemas que
limitam nossa visão de mundo, o que se reflete no modo como pensamos e agimos em sociedade, seja no âmbito da esfera privada (nossa casa, família, amigos, companheiro/a), seja na
esfera pública (trabalho, cidade, país, etc.). Vamos discutir alguns desses problemas.
Em primeiro lugar, pensar em tecnologia apenas como artefato leva-nos a não considerar a
ideia de tecnologia como um conhecimento que não está necessariamente relacionado à ciência
na forma como a conhecemos hoje. Ciência pode ter vários significados. Aqui, simplificando,
estamos considerando-a como o resultado do trabalho e da decisão dos cientistas, não esquecendo as relações que empreendem com outros grupos e os contextos social e histórico
em que se realizam. Automóveis, telefones celulares, computadores, relógios, televisores
são exemplos de artefatos. Em sua pesquisa na internet, você encontrou vários deles, não é
mesmo? Pense no significado desses artefatos em sua vida, em seu cotidiano.
Outro problema é que ao entendermos tecnologia apenas como um resultado da aplicação
da ciência mostramos certo desprezo por uma análise singular do que é tecnologia, ou seja,
a vemos como redutível à ciência.
Em outro sentido, a tecnologia como aplicação da ciência está relacionada ao chamado
modelo linear de desenvolvimento, que tem influenciado sobremaneira as políticas públicas
em ciência e tecnologia de vários países, inclusive o Brasil, nos últimos tempos. Nesse modelo, tudo começa com a pesquisa científica, que depois é aplicada. Convertida em tecnologia,
levaria ao desenvolvimento científico e tecnológico que, por sua vez, geraria desenvolvimento
econômico, e a partir dele, desenvolvimento social e humano. Esse é um modelo que embute
a ideia de determinismo tecnológico. Em poucas palavras, que a ciência e a tecnologia determinariam a vida em sociedade, trariam bem-estar e qualidade de vida, necessariamente.
Aula 2
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
29
Veja que apresentamos duas importantes questões: pensar a tecnologia apenas como
artefato e aplicação da ciência (reducionismo); entendê-la como determinante da vida em
sociedade (determinismo). Vamos discutir essas questões?
O fenômeno técnico
A cultura distinguiu o homem de outros animais e uma série de atributos seus o levou a
desenvolver ferramentas técnicas. Pedras, paus e ossos empunhados habilmente foram usados
pelos hominídeos para caçar ou se defender. Logo, essas pedras, paus e ossos transformaram-se em lanças, facas e machados, suprindo de certa maneira no homem a falta de garras,
presentes em predadores melhor dotados anatomicamente (PALACIOS et al, 2001, p. 35). O
homem desenvolveu uma habilidade técnica (BAZZO; PEREIRA, 2009, p. 66).
Assim, essa habilidade técnica dotou a pedra de outro sentido. Podemos dizer que deu
ao homem mais poder e, a grosso modo, ele passou de “caça” a “caçador”. A habilidade técnica do homem evoluiu: ele dominou o fogo, aprendeu a cozinhar os alimentos, domesticar
os animais, construir casas, fundir metais, etc. Isso não se deu sem intervenções no meio.
Segundo Palacios et al (2009, p. 36), a técnica transforma o meio e/ou recria as condições
da existência humana: (1) ela permitiu a transformação do meio em que os seres humanos
desenvolveram sua vida, mudou as formas de vida humana; (2) também criou obras para durar
longo tempo, prolongou a vida das pessoas, por exemplo.
Em certo sentido, a existência humana é um produto técnico, tanto quanto os próprios
artefatos que a fazem possível. Não se pode pensar, portanto, em separar a técnica da essência
do ser humano. Seguramente, a técnica é uma das produções mais características do homem,
mas também é certo que os seres humanos são, sem dúvida, o produto mais singular da
técnica. (PALACIOS et al, 2009, p. 36).
Em cada época há um tipo de intervenção humana em especial. Em outras palavras, desde
que percebeu suas habilidades, o homem vem modificando o meio em que vive. Essa não é
uma questão simples e requer uma permanente contextualização.
Se no Paleolítico, por exemplo, o homem vivia em poucos grupos na terra e os materiais que utilizava para acender uma fogueira provocavam pequeno impacto sobre o meio,
isso mudou radicalmente ao longo da história da humanidade: florestas foram devastadas,
rios desviados ou cobertos por cidades, vilarejos inundados por barragens e hidrelétricas,
praias e morros invadidos por construções ilegais e clandestinas. E o que isso tem a ver com
tecnologia? Bombas nucleares mataram milhares de pessoas, navios derramaram oceanos
de petróleo no mar, pesticidas contaminam fauna, flora e seres humanos, reatores de usinas
nucleares explodiram; contas bancárias e bases de dados são invadidas por crackers; nossa
vida é controlada por celulares e vigiada por câmeras a que se atribui segurança. Vamos perguntar mais uma vez: e o que isso tem a ver com tecnologia?
30
Aula 2
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
As imagens da tecnologia
Nós vimos no início deste texto que uma das visões mais usuais sobre tecnologia define-a
como aplicação da ciência. Já pontuamos que isso traz uma série de problemas e restringe
nosso entendimento, especialmente se buscamos uma visão mais ampla da relação entre
ciência, tecnologia e sociedade. Vamos discutir um pouco esse conceito usual. Em primeiro
lugar, vejamos este trecho de Palacios et al (2001, p. 37).
“A tecnologia poderia ser considerada como o conjunto de procedimentos que
permitem a aplicação dos conhecimentos próprios das Ciências Naturais à produção industrial, ficando a técnica limitada ao momento anterior do uso dos
conhecimentos científicos como base do desenvolvimento industrial.”1
Ele nos traz diversas questões para discutirmos. Tratemos de pelo menos duas:
1)
A dependência da tecnologia de outros saberes;
2)
A utilidade da tecnologia.
Quando consideramos a tecnologia como aplicação da ciência, esta, na sua forma tradicional, exerce enorme influência nos produtos e processos resultantes. Isso quer dizer que
o caráter de atividade pretensamente neutra, autônoma e universal da ciência se reflete na
tecnologia, que é entendida apenas como a sua aplicação. Em outras palavras, ciência seria o
conhecimento teórico; tecnologia, o conhecimento prático.
Uma tradição acadêmica que amparou e respaldou essas ideias foi a que se originou
do Positivismo Lógico. Na opinião dos positivistas, segundo Palacios et al (2001, p. 38), as
teorias científicas explicavam o mundo por meio de enunciados objetivos, racionais e livres
de valores externos à ciência.
Na mesma linha, o conhecimento científico era visto como um processo progressivo e
acumulativo, que substituía a ciência anterior. Essas teorias poderiam ser aplicadas em alguns
casos, já a ciência pura não tinha qualquer relação com a tecnologia.
1
Positivismo Lógico
é uma filosofia oriunda
das discussões de um
grupo de pensadores que
se reunia no chamado
Círculo de Viena, no início
do século 20. Eles foram
responsáveis por uma retomada da ideia de ciência
pretensamente neutra e
autônoma em relação à
sociedade.
Tradução livre da autora, em julho de 2011.
Aula 2
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
31
Tomas Kuhn criticou essa ideia oferecendo como alternativa a teoria das revoluções científicas. Segundo essa teoria, a ciência evoluiu por rupturas: há períodos
normais (ou estáveis) e momentos de “anomalias”, que dão origem às revoluções científicas. São construídas, então, novas teorias, que apresentam melhores
resultados para um determinado problema, constituindo um novo paradigma.
Assim, uma consequência marcante dessa concepção é que, ao se conferir um estatuto
de neutralidade à ciência, este é diretamente transferido à tecnologia (BAZZO; PEREIRA; VON
LINSINGEN, 2008, p. 182). Como vimos, conferir neutralidade à tecnologia a destitui de relações com a sociedade, seja em sua produção ou aplicação. Essa visão constrói a imagem
intelectualista de tecnologia. E a relação entre tecnologia e utilidade?
Há quem considere, como Bazzo, Pereira e von Linsingen (2008, p. 182), que a percepção
do caráter utilitarista da tecnologia é a mais presente no meio técnico, ou seja, nos lugares em
que circulam profissionais como os/as engenheiros/as. Acreditamos que fora desse meio, no
chamado senso comum, também é habitual que se veja a tecnologia como algo que auxilia,
melhora a vida das pessoas, torna certas tarefas mais fáceis, traz bem-estar. O que você pensa
sobre isso? Já parou para pensar nessas questões?
Vista de uma maneira utilitarista, a tecnologia acaba restringindo-se a uma analogia com
ferramentas e produção de bens e serviços oriundos da aplicação de conhecimentos científicos.
Esta é a visão instrumentalista da tecnologia. Também temos aqui o problema da transferência
do estatuto de pretensa neutralidade da ciência. Não é raro que ouçamos que a tecnologia não
é boa nem ruim, e que os prejuízos são advindos do seu uso.
Quer dizer, então, que os usuários é que são responsáveis por seus benefícios ou malefícios? E quanto a quem projetou? A empresa ou indústria que produziu e comercializou não
teriam nenhuma responsabilidade?
Isso é bastante problemático. Vejamos o que dizem Bazzo, Pereira e von Linsingen (2008,
p. 183).
“Segundo essa visão, a universalidade associada à tecnologia avaliza a transferência de tecnologia entre sociedades independentes e, muitas vezes, em
detrimento de suas especificidades culturais. Por conta disso, o ensino das
técnicas, a princípio, pode ser vinculado à ética da responsabilidade social apenas em sentido restrito. Por extensão, permite-se ao engenheiro a isenção da
responsabilidade pública do que produz e de seus efeitos”.
32
Aula 2
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Os/As engenheiros/as e outros/as profissionais das áreas científicas e tecnológicas estão
realmente isentos de eventuais “efeitos colaterais” de seus projetos, cálculos, processos,
produtos e serviços? O que sabem sobre assumir uma postura ética?
Uma postura ética e comprometida com uma sociedade mais igualitária e justa requer a
superação de entendimentos de tecnologia que passam pelas visões intelectualista e instrumentalista. Isso pede que se veja a tecnologia não apenas como artefato, mas que se tenha
em conta seu caráter sistêmico.
O conceito de prática tecnológica
Ao desconstruir o conceito de tecnologia apenas como ciência aplicada, podemos
defini-la também como uma série de sistemas que são projetados para realizar alguma
função, instrumentos materiais e tecnologias de caráter organizativo (PALACIOS et al,
2001, p. 42).
“O tecnológico não é somente o que transforma e constrói a realidade física, mas também
aquilo que transforma e constrói a realidade social.” (PALACIOS et al, 2001, p. 42)
Na concepção de Radder (1996 apud PALACIOS et al, 2001, p. 42), há cinco características que distinguem a tecnologia. Vejamos o quadro a seguir (Quadro 1).
Características da tecnologia
Realizabilidade
Confere concretude à tecnologia, ou seja, a tecnologia tem que estar realizada;
perguntar “onde”, “quando”, “por quem”, “para quê” e “por quê” são fundamentais para
estudá-la.
Caráter sistêmico
Uma tecnologia não se resume a artefatos. Qualquer tecnologia está inserida em um
ambiente sociotécnico que a viabiliza. Por exemplo, um automóvel é uma tecnologia
que necessita de uma série de elementos para funcionar – rodovias, postos de
abastecimento, refinarias, gasodutos, publicidade, consumidores, etc.
Heterogeneidade
Tecnologias são constituídas de componentes que não são iguais, têm diferentes tipos
e procedência.
Relação com a ciência
Há uma ampla e diversa relação entre a ciência e a tecnologia. Além do conhecimento
científico, há o “saber como fazer”, materializado em habilidades, técnicas teóricas,
observacionais e experimentais, assim como resultados científicos objetivados em
produtos, materiais e instrumentos.
Divisão do trabalho
A realização de uma tecnologia pressupõe uma dependência entre os agentes
envolvidos, não um funcionamento incondicional. Há uma divisão do trabalho e
diferentes relações de poder entre quem desenvolve, produz, opera e usa a tecnologia.
Quadro 1 – Características da tecnologia
Fonte: Palacios et al (2001, p. 42-43), com base em Radder (1995). Traduzido e ligeiramente modificado pela autora.
A considerar o caráter sistêmico, a interpretação de tecnologia como prática tecnológica
é um dos conceitos mais interessantes e contributivos para desconstruir a ideia reducionista
de tecnologia como ciência aplicada.
Aula 2
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
33
O conceito de prática tecnológica foi proposto por Arnold Pacey na década de 1980. Ele
expressa diferentes aspectos envolvidos na tecnologia: o organizacional, o técnico e o cultural.
Antes de discutirmos, vamos conhecê-los de maneira esquematizada nesta figura.
Definições de tecnologia e prática tecnológica
ASPECTO CULTURAL
ASPECTO ORGANIZACIONAL
Objetivos, valores e códigos
éticos; crença no progresso
consciência e criatividade
Atividade econômica e industrial;
atividade profissional; usuários e
consumidores; sindicatos
Significado geral
de tecnologia
ASPECTO TÉCNICO
Significado geral
de tecnologia
Conhecimento, destreza e técnica;
ferramentas, máquinas, químicos,
pessoal, recursos e resíduos
Figura 1 – Definições de tecnologia e prática tecnológica
Fonte: Pacey (1990, p. 19).
Nesta figura, vemos que aos aspectos organizacional, cultural e técnico correspondem
diferentes questões. Em geral, eles são compreendidos de maneira estanque. Ao aspecto
cultural, por exemplo, vinculam-se valores, questões éticas; o aspecto organizacional vincula
a atividade industrial, profissional e usuários/consumidores; já conhecimento, destreza, máquinas e ferramentas pertencem à esfera do técnico.
Erroneamente se acredita que essa esfera funcione de maneira independente às demais.
Assim, costuma-se tratar as dimensões social e humana e seus problemas no âmbito dos
aspectos cultural e organizacional da tecnologia. Dessa forma, isentamos a técnica de seu
conteúdo humano e social, ignorando a existência de valores nessa atividade (PACEY, 1990,
p. 18; CABRAL, 2006, p. 28-50).
O que o conceito de prática tecnológica propõe é um diálogo entre os aspectos organizacional, cultural e técnico, mostrando-nos que a tecnologia não é autônoma em relação à
sociedade, tão pouco neutra em termos de valores. Segundo Palacios et al (2001, p. 44), o
conceito de prática tecnológica permite uma relação que não é linear: entre indivíduos e grupos (os que desenvolvem, produzem, comercializam e consomem), agentes (individuais e/ou
coletivos), materiais e meios disponíveis e fins a desenvolver.
Agora, comece a prestar mais atenção no que você ouve, lê, assiste sobre tecnologia(s).
Tente perceber se a ideia de tecnologia que está sendo construída corresponde a uma imagem
intelectualista, instrumentalista ou ambas. Veja se em algum dos espaços (virtuais também!)
se trata da tecnologia considerando suas relações com a ciência e a sociedade, ou seja, se é
34
Aula 2
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
promovido um diálogo entre os aspectos cultural, organizacional e técnico. Este texto termina
aqui, mas a nossa conversa sobre tecnologia está apenas começando.
Resumo
Neste texto, vimos que todos nós temos um entendimento do que seja
tecnologia e que, muitas vezes, esse entendimento nos condiciona a ver
tecnologia apenas como ciência aplicada. Discutimos que essa é uma visão muito
restrita, limitada. Isso traz uma série de problemas, por exemplo, ignora-se todo
o conhecimento tecnológico que o homem construiu ao longo de sua existência,
da história da humanidade; leva-nos a acreditar que a tecnologia, seu avanço,
são, por si só, responsáveis pelo bem-estar e a qualidade de vida das pessoas.
Nesta aula, percebemos que a relação entre avanço tecnológico e bem-estar e/
ou qualidade de vida das pessoas não é tão direto. Refletimos sobre as imagens
mais correntes sobre tecnologia – intelectualista e instrumentalista. Conhecemos
o conceito de prática tecnológica, ou seja, o fazer tecnológico desconstrói a ideia
restrita de tecnologia como ciência aplicada, considerando os aspectos cultural,
organizacional e técnico, há uma série de interesses, crenças, valores envolvidos.
Em outras palavras, quer dizer que a tecnologia não é neutra.
Autoavaliação
1
No princípio desta aula, você pesquisou sobre tecnologia na internet e elaborou
um resumo a respeito. Nós discutimos vários aspectos concernentes aos seus
achados de pesquisa. Agora, retome o seu resumo e, a partir dele, escreva um
comentário crítico com base nas questões do texto Conversando sobre tecnologia.
2
Com base nas discussões desta aula, vamos refletir sobre as tecnologias e o nosso
cotidiano. Primeiro, pense em um período do seu cotidiano (manhã, tarde ou noite) e com quais tecnologias você interage. Depois, imagine esse mesmo período
sem as tecnologias as quais você está habituado a usar e escreva um texto de até
30 linhas.
Aula 2
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
35
Referências
BAZZO, Walter Antonio; PEREIRA, Luiz Teixeira do Vale. Introdução à Engenharia. Florianópolis: EDUFSC, 2009.
BAZZO, Walter Antonio; PEREIRA, Luiz Teixeira do Vale; VON LINSINGEN, Irlan. Educação
Tecnológica: enfoques para o ensino de engenharia. Florianópolis: EDUFSC, 2008.
CABRAL, C. G. O conhecimento dialogicamente situado: histórias de vida, valores humanistas e consciência crítica de professoras do Centro Tecnnológico da UFSC. 2006. 205 f.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Pós-Graduação em Educação
Científica e Tecnológica, Florianópolis, 2006.
PACEY, Arnold. La cultura de la tecnología. México: Fondo de Cultura Económica, 1990.
PALACIOS, Eduardo Marino García et al. Ciência, tecnología y sociedad: una aproximación
conceptual. Madrid: Organizacíon de Estados Iberoamericanos, 2001.
Anotações
36
Aula 2
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Anotações
Aula 2
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
37
Anotações
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Aula 2
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Ciência, Tecnologia e
Sociedade: primeiras leituras
Aula
3
Apresentação
V
ocê sabe o que é CTS? CTS não é apenas a disciplina que você cursa na Escola de
Ciências e Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ECT/UFRN), tão
pouco somente é uma sigla que embute Ciência, Tecnologia e Sociedade. Em um sentido
mais geral, estamos falando das inúmeras possibilidades de relacionar a ciência, a tecnologia
e a sociedade; já em um sentido mais específico, falamos de um campo interdisciplinar, cujas
reflexões buscam desconstruir a ideia de que ciência é um conhecimento neutro e tecnologia
somente artefatos e sistemas que trazem sempre benefícios para as pessoas.
Nesta aula, você vai conhecer as origens do campo Ciência, Tecnologia e Sociedade e
como suas discussões têm sido apropriadas na educação científica e tecnológica em diversos
países. Vamos dialogar sobre o significado dessas discussões para a sua formação no Ensino
Superior e a sua atuação profissional.
O que você pensa a respeito e as suas expectativas têm muito a contribuir nesse diálogo.
Vamos começar?
Objetivos
1
Conceituar ciência e tecnologia, levando em consideração
aspectos históricos e sociais.
2
Identificar as dimensões sociais e éticas da atuação de
cientistas e engenheiros.
Aula 3
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
41
1
Antes de continuarmos a nossa leitura, vamos realizar uma atividade. Escreva
em seu caderno ou em um arquivo eletrônico um breve texto (até 20 linhas) que
responda a seguinte questão: o que são relações entre a ciência, a tecnologia
e a sociedade? Esse registro é importante para que o(a) professor(a) possa
considerar o seu entendimento, e que você mesmo possa verificar se houve
alguma mudança em sua forma de pensar sobre o tema.
Após a conclusão dessa atividade, retome a aula. Boa leitura!
Um campo interdisciplinar,
uma disciplina nova
Nesta aula, aproximamo-nos da ciência e da tecnologia por meio da História e Filosofia das
Ciências. Agora, vamos inter-relacionar ambas com o ambiente de sua realização: a sociedade.
Quer dizer que vamos discutir como ciência e tecnologia interagem entre si e com a sociedade
e também como nos situamos nessa relação.
Vamos ver que a expressão Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) tem uma história
e que essa história começa em meados da década de 1960 e início dos anos 1970, quando
diversos grupos passam a contestar com mais veemência o uso da ciência e da tecnologia em
guerras, seu impacto ambiental, o controle da aplicação dos conhecimentos pelo Estado. De lá
para cá, vários países se apropriaram da expressão CTS. No Brasil, por exemplo, há diversos
grupos que realizam pesquisas com base no campo interdisciplinar CTS em universidades
públicas. Há também uma discussão sobre a relação ciência, tecnologia e sociedade que não
necessariamente se utiliza do pensamento desse campo interdisciplinar.
De qualquer forma, essa é uma discussão nova e que aos poucos integra currículos de
pós-graduação e de graduação. A Escola de Ciências e Tecnologia é um exemplo. Pensando
em uma formação mais ética e responsável de seus alunos, integrou a discussão CTS em seu
currículo, criando três componentes curriculares CTS obrigatórios e outros eletivos. Isso quer
dizer que você terá a oportunidade de se qualificar diferenciadamente em relação a outros estudantes, entender o importante lugar que você ocupa como profissional e cidadão. Lembre-se
que ciência e tecnologia são atividades humanas e construídas social e historicamente, e você
se relaciona com elas o tempo todo.
Os textos didáticos que estamos começando a escrever e as aulas que construímos
com vocês levam em conta finalidades. Vamos conhecer algumas delas (PALACIOS; OTERO;
GARCÍA, 1996, p. 25).
Aula 3
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
43
FINALIDADES
RELACIONAR conhecimentos de campos acadêmicos que estão habitualmente separados, por exemplo, Filosofia
da Ciência, História da Tecnologia, Sociologia do Conhecimento, Economia.
REFLETIR sobre os fenômenos sociais e as condições da existência humana a partir da perspectiva da ciência e
da técnica/tecnologia.
ANALISAR as dimensões sociais do desenvolvimento tecnológico.
Quadro 1 – Alguns objetivos da Educação CTS.
Fonte: Baseado em Palacios, Otero e García (1996, p. 25).
Esses aspectos aliam-se a propósitos formativos. Quer dizer que buscamos, com o
componente curricular CTS 1, que você desenvolva competências e habilidades afins com
esses propósitos (Idem, 1996).
PROPÓSITOS FORMATIVOS
ANALISAR e avaliar criticamente as realidades do mundo contemporâneo e os antecedentes e fatores que
nele influem.
COMPREENDER os elementos fundamentais da investigação e do método científico.
CONSOLIDAR uma maturidade pessoal, social e moral que lhe permita atuar de forma responsável e autônoma.
PARTICIPAR de forma solidária no desenvolvimento e melhoria do seu entorno pessoal.
DOMINAR os conhecimentos científicos e tecnológicos fundamentais e as habilidades básicas da área/profissão
que você escolher.
Quadro 2 – Ações para uma leitura crítica do mundo
Fonte: Baseado em Palacios, Otero e García (1996, p. 25).
Aspectos e objetivos assim já são trabalhados no Ensino Médio, em países como a Espanha. Naquele país, a trajetória de discussão crítica da relação ciência, tecnologia e sociedade e
também do campo interdisciplinar CTS é um pouco mais longa que no Brasil. E tem influenciado
fortemente o que tem sido feito aqui e em outros países da América Latina. Mas Brasil e outros
países latino-americanos também têm sido influenciados por correntes do pensamento CTS
oriundas da Inglaterra e dos Estados Unidos da América do Norte.
Por meio do chamado “silogismo CTS” (VON LINSINGEN, 2004, p. 2), grupos de pesquisadores buscam uma educação científica e tecnológica que abandone o lugar de partícipe
tímido e contribua na busca de soluções para os problemas sociais (BAZZO; PEREIRA; LINSINGEN, 2008, p. 159).
44
Aula 3
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Esses autores, que são professores de Engenharia há muitos anos no Brasil, entendem que:
A inclusão de estudos no campo CTS toma importância ímpar em países que começam
a aprofundar suas análises na imbricada relação entre desenvolvimento tecnológico e
desenvolvimento humano. E parece consenso que, apesar da importância dos avanços
dos conhecimentos que permitem dominar mais e mais a natureza, por mais paradoxal
que possa parecer, a maior parte da civilização experimenta ainda necessidades básicas
ainda não atendidas que se configuram como absurdas, dadas as muitas possibilidades
técnicas que dominamos para resolver os problemas que as geram. Também é consenso que, para resolver tais problemas, bastaria, em princípio, animar a vontade política
de nossas sociedades e dos que elegemos como representantes (BAZZO; PEREIRA;
LINSINGEN, 2008, p. 160).
Vamos refletir?
As questões que seguem serão preferencialmente trabalhadas em grupo e
em sala, com a orientação de seu/sua professor/a. Mas você pode escolher duas
delas e refletir a respeito. Registre sua reflexão em seu caderno ou em arquivo
eletrônico. Escreva quantas linhas desejar.
1)
Quais são os elementos tecnológicos do meu entorno?
2)
Poderíamos suprimir esses elementos das nossas vidas?
3)
Que relações você acredita haver entre ciência, tecnologia e sociedade?
4)
Alguns grupos estão à margem do desenvolvimento tecnológico. Há algo
a corrigir?
5)
Poderia descrever alguma mudança na sua vida cotidiana que tenha relação
com a aparição de elementos tecnológicos?
A origem do campo interdisciplinar CTS
A expressão CTS representa tanto um objeto de estudo quanto um campo interdisciplinar.
O que isso quer dizer? Vamos nos apropriar do texto de um pensador espanhol do campo CTS,
José A. López Cerezo (2003), para explicar.
Quando nos referimos ao objeto de estudo, estamos levando em conta os fatores sociais
que influenciam a mudança científico-tecnológica e também as consequências sociais e ambientais dessa mudança. Há muitos exemplos. Pense sobre o impacto de uma guerra que se
Aula 3
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
45
utiliza de armas biotecnológicas e nucleares. Qual o objetivo das tecnologias produzidas em
guerras? E os resultados do Projeto Manhattan, você conhece?
Também encontramos muitos exemplos de sérios impactos ambientais relacionados
à ciência e tecnologia, desde derramamentos de petróleo, acidentes com usinas nucleares,
poluição industrial, intoxicação de fauna, flora e seres humanos por pesticidas e outras substâncias tóxicas.
Veja este quadro! Ele faz uma cronologia que nos interessa conhecer.
1957
A União Soviética lança o Sputnik, o primeiro satélite artificial ao redor da Terra. Causou
uma espécie de convulsão social, política e educacional nos Estados Unidos da América do
Norte e outros países ocidentais.
O reator nuclear de Windscale, Inglaterra, sofre um grave acidente, criando uma nuvem
radioativa que se espalha pela Europa Ocidental.
Explode nos Urais o depósito nuclear Kyshtym, contaminando uma grande extensão circundante
à União Soviética.
1958
A NASA é criada como uma das consequências do Sputnik.
1959
Conferência de C.P. Snow, em que se denuncia o abismo entre as culturas humanística e
científico-tecnológica.
Anos 60
Desenvolvimento do movimento de contracultura, em que a luta política contra o sistema vincula
o seu protesto em relação à tecnologia.
1961
A talidomida é proibida nos Estados Unidos, após causar mais de 2.500 defeitos de nascimento.
1962
Publicação de Silent Spring, de Rachel Carson. Essa autora denuncia, entre outras coisas,
o impacto ambiental de pesticidas sintéticos como o DDT. É o que deflagra o movimento
ecológico.
1963
Tratado de limitação de provas nucleares.
Afunda o submarino nuclear USS Thresher, seguido pelo USS Scorpion (1968).
1966
Um B 52 com quatro bombas de hidrogênio explode perto de Palomares, Almeria, contaminando
com radioatividade uma grande área.
Com base em motivos éticos e políticos, profissionais de informática constituem um movimento
de oposição à proposta de criar um banco de dados nacionais nos EUA.
1967
O petroleiro Torry Canyon sofre um acidente e verte uma grande quantidade de petróleo nas
praias do Sul da Inglaterra. A contaminação por petróleo começa a ser algo comum em todo o
mundo desde então.
1968
O papa Pablo VI torna público um rechaço à contracepção artificial.
Graves revoltas nos EUA contra a Guerra do Vietnã (a participação norte-americana incluiu
sofisticados métodos bélicos, como o napalm).
Maio de 68 na Europa e EUA: protestos generalizados contra o sistema.
Quadro 3 – Breve cronologia de um fracasso
Fonte: Adaptado de García et al (1996 apud PALACIOS, 2001).
46
Aula 3
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Repare na cronologia e você verá que os eventos registrados em nosso quadro se situam,
principalmente, nas décadas de 60 e 70 do século XX. É um período de intensa movimentação
social, de reivindicações e contestações contra regimes ditatoriais, preconceitos contra mulheres, negros, grupos étnicos, homossexuais – um tempo que mudou a história.
Esse é o contexto em que se origina o campo interdisciplinar CTS. Ele reuniu as reflexões
das Ciências Sociais e das Humanidades para pensar esse momento de crise em relação à
credibilidade da ciência e da tecnologia e seu apoio público; voltou seu olhar a um uso irracional
dos recursos naturais e à falsa crença da neutralidade científica e sua autonomia em relação
à sociedade. Cientistas e engenheiros também são pessoas com valores, crenças, interesses
e tudo isso se enreda nas pesquisas em que eles investem. O problema é que o entendimento
ainda corrente do que é ciência “neutraliza” as relações sociais que uma determinada pessoa
tem e até mesmo sua história. Isso continua sendo ensinado aos cientistas, aos engenheiros
que, por sua vez, continuam pensando que as suas pesquisas e projetos são neutros, ou seja,
não têm impacto social, ambiental, político. Essa seria uma postura ética?
No contexto em que o campo CTS surgiu também circulava certo ceticismo em relação à
ciência e à tecnologia, divinizadas após a Segunda Guerra. Um conceito que se tornou muito
conhecido foi o de Síndrome de Frankenstein.
Esse conceito remete diretamente ao texto publicado em 1818 por Mary Shelley –
Frankenstein, ou o moderno Prometeu. Remete-se à relação homem e natureza, referencia
um temor de que as mesmas forças que são utilizadas para controlar a natureza podem se
voltar contra nós, homens e mulheres, destruindo-nos. O trecho do livro em que o “monstro”
diz a Victor Frankenstein “tu és o meu criador, mas eu sou o teu senhor” expressa essa possibilidade (CEREZO, 2003, p. 117). Frankenstein faz uma citação ao mito de Prometeu. Você
conhece esse mito?
2
Pesquise em sites da internet sobre o mito de Prometeu e escreva um resumo
entre 10 e 20 linhas.
Aula 3
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
47
Frankenstein é um exemplo de literatura
que entremeia em seu discurso a
TECNOFOBIA, ou seja, um medo
exagerado da tecnologia moderna.
Em um outro extremo, ao aceitarmos
os desenvolvimentos da ciência e da
tecnologia e suas inovações de forma
acrítica, nos vinculamos à TECNOFILIA.
Adaptado de: João Garcia – Os cientistas. Disponível em: <http://jaogarcia.blog.uol.com.br/>. Acesso em: 18 jan. 2011.
Vamos pensar a respeito? Você tem ou já teve atitudes tecnofóbicas e tecnofílicas? Compartilhe essas experiências com seus colegas.
Leia a tirinha a seguir.
Não temos os 100
mil genes com que
sonhávamos...
Mas, em
compensação...
Temos carrões...
DVD... fornos
mico-ondas!!!
Tirinha “Os Cientistas”, de João Garcia.
48
Aula 3
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Posso viver sem televisão, celular e internet? Eu não consigo, e você? Ninguém precisa
deixar a tecnologia de lado. Ser crítico em relação a ela não é desconsiderá-la, mas procurar
enxergá-la sob vários prismas e não permanecer passivo. Langdon Winner (1987) chamou
esse comportamento apassivado de “sonambulismo tecnológico”.
Esse sonambulismo se origina da ideia de que não podemos criticar, interferir ou mesmo
participar das decisões que dizem respeito aos desenvolvimentos científicos e tecnológicos.
Você já pensou por quê?
Um outro conceito do campo CTS que vale a pena conhecer é o de alfabetização científica
e tecnológica. Para entendê-lo, vamos comentar alguns aspectos relacionados aos entendimentos que temos do que é ciência e do que é tecnologia.
Concepções de ciência?
Há uma concepção tradicional, que ainda impera no senso comum (por exemplo, o
imaginário popular) e também entre os pesquisadores de que ciência é um empreendimento
objetivo, neutro, baseado em um código de racionalidade não influenciada por fatores externos
e autônomo em relação à sociedade (PALÁCIOS et al, 2001, p. 12). Esse é um dos entendimentos. Pode ser o mais comum, ainda, mas não é o único e vem sofrendo fraturas desde a
segunda metade do século 20. Nós lemos sobre isso ao comentar a origem do campo CTS.
Nós podemos denominar essa concepção como ciência neutra, mas também podemos
nos utilizar da expressão concepção essencialista e triunfalista da ciência.
Esse entendimento fundamenta um modelo clássico de política científica baseado no que
denominamos “modelo linear de inovação”, ou seja:
Uma das questões que está na origem desse entendimento e das suas repercussões na
política de ciência e de tecnologia é a própria metodologia da ciência. Em vários momentos
da história da humanidade, defendeu-se a ideia de que havia uma forma infalível de se obter a
verdade e essa forma seria por meio do método científico. Cerezo (2003, p. 119) descreve o
método científico como uma combinação de racionalidade lógica e observação cuidadosa. A
avaliação por pares, ainda segundo o mesmo autor, “se encarregará de velar sobre a integridade intelectual e profissional da instituição” (CEREZO, 2003, p. 119-120). Em outras palavras,
quer dizer que a correta aplicação do método é que vai garantir o bom funcionamento desse
código de conduta. Assim,
Aula 3
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
49
[...] nessa visão clássica, a ciência somente pode contribuir com um maior bem-estar
se esquece da sociedade para buscar exclusivamente a verdade. Quer dizer, a ciência só
pode avançar perseguindo o fim que lhe é próprio, o descobrimento de verdades sobre a
natureza, se mantém livre da interferência dos valores sociais por mais beneméritos que
sejam. Analogamente, só é possível que a tecnologia possa atuar como cadeia transmissora no desenvolvimento social se se respeita sua autonomia, se esquece da sociedade
para atender unicamente a um único critério de eficácia técnica (CEREZO, 2003, p. 120).
Dessa forma, ciência e tecnologia são apresentadas à sociedade como formas que sobrevivem autonomamente em relação à cultura, como atividades com valor neutro, uma espécie
de “aliança heroica de conquista da natureza”.
No século 20, essa ideia foi bastante fortalecida por um movimento que ficou conhecido
como Empirismo Lógico, que surge nos anos 1920 e 1930, por meio de Rudolf Carnap, que
acaba se aproximando da sociologia funcionalista da ciência desenvolvida por Merton nos
anos 1940 (CEREZO, 2003, p. 120; PALACIOS et al, 2001, p. 14).
Esse tipo de pensamento foi contestado e uma de suas críticas mais conhecidas é a que
Tomas Kuhn escreveu, em 1962, no livro A estrutura das revoluções científicas.
Kuhn buscou responder à clássica questão “O que é ciência?” pesquisando episódios
da história da ciência, como o desenvolvimento da teoria dos corpos celestes da era moderna
(heliocentrismo). Na teoria de Kuhn, a ciência tem períodos estáveis, que ele denominou
ciência normal. São períodos sem alterações bruscas na dinâmica da ciência, sem alterações
que levem a uma mudança mais pronunciada. Para esse pensador, esse é um período em que
os cientistas se dedicam a resolver “quebra-cabeças” por meio de um paradigma que é compartilhado em determinada comunidade científica. A acumulação de problemas não resolvidos
nesse período pode acarretar o surgimento de anomalias, que podem fraturar o paradigma
vigente. Isso pode dar lugar a um outro período, extraordinário, que Kuhn denominou revolução
científica (KUHN, 2000).
Veja que, dessa forma, o critério para definir o que é ciência deixa de ser empírico e
passa a ser social.
Concepções de tecnologia?
E a tecnologia? Veja que a maneira como entendemos a ciência influencia diretamente
a forma como concebemos a tecnologia, ainda mais se a considerarmos tão somente uma
aplicação da ciência (conceito ainda mais corrente). Se a tratamos assim – uma aplicação da
ciência – a vemos de forma determinista. O que é isso? É pensar que a ciência determinará a
tecnologia, em outras palavras, que a tecnologia deriva da ciência.
Uma olhadela na história da ciência e da tecnologia vai nos mostrar que a habilidade
técnica diferenciou o homem de outros animais que habitam no planeta Terra. As alavancas,
polimento de pedras e o fogo são técnicas milenares (BAZZO; PEREIRA, 2009, p. 66). O alfabeto
e a escrita são sistemas de símbolos organizados que o homem desenvolveu há pelo menos
2 mil anos. Esses sistemas são técnicas ou tecnologias?
Lembremos, por exemplo, que o fogo é um legado da pré-história e que esse é um momento em que o homem ainda não tinha investido em um sistema de conhecimento racional
50
Aula 3
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
e que dará origem, na Grécia, especialmente, ao pensamento ocidental de onde deriva o que
entendemos por ciência.
É importante observar que a ciência atual, essa que é produzida nos laboratórios, especialmente os das universidades e institutos de pesquisa, está longe da forma como os gregos
estudavam a natureza ou mesmo astrônomos célebres, como Copérnico, ou criadores fantásticos, como Leonardo da Vinci, realizavam seus trabalhos.
Se a ciência e a tecnologia têm uma história, esta não se deu aleatoriamente. O ambiente
social (cada época teve o seu) e a forma como as pessoas (mulheres e homens, ricos e pobres,
negros, brancos, indígenas etc.) se relacionavam são elementos a ser considerados.
Falar em prática tecnológica (PACEY, 1990), levando-se em conta que sistemas e artefatos
tecnológicos não são apenas produtos técnicos, mas estão ligados a aspectos organizacionais
e imersos numa cultura, é mais adequado se queremos discutir valores e sua incorporação.
Um entendimento mais restrito de tecnologia reduzirá dimensões sociais e humanas e seus
problemas ao aspecto organizacional da tecnologia – é um dos terrenos do seu significado mais
geral. Esse entendimento solapa o conteúdo humano no fazer tecnológico, ignora a existência
de valores nessa atividade (CABRAL, 2006, p. 46).
Vamos refletir?
1)
Os cientistas e os engenheiros são alheios às aplicações sociais de suas
investigações?
2)
Os consumidores têm alguma responsabilidade no desenvolvimento tecnológico?
3)
Você conhece instrumentos que permitam ao cidadão intervir nos processos
de controle da pesquisa?
À discussão do conceito de tecnologia, especialmente a partir do século 20, também se
agregam aspectos econômicos, como os advindos do sistema capitalista. É quando se institucionaliza a inovação na maior parte dos países do mundo.
Toda essa discussão está relacionada ao conceito de alfabetização científica e tecnológica:
uma formação das pessoas para que possam entender a ciência e a tecnologia de maneira
crítica e reflexiva e como parte das suas vidas, não apenas como realização de cientistas sob o
controle do Estado; trata-se, também de problematizar com os próprios cientistas e engenheiros
a maneira como compreendem e realizam ciência e tecnologia, os valores, interesses, contextos
que estão em jogo. Pense você também sobre esse conceito e como ele poderia ser aplicado.
Esta aula buscou apresentar elementos para uma aproximação ao campo CTS e a discussão
que ele enseja sobre as relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Há muito mais a ser debatido, certamente, e você se dará conta disso no decorrer do nosso curso. Aproprie-se desses
Aula 3
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
51
conhecimentos como uma espécie de primeira leitura. Esperamos que você possa refletir sobre
o papel da CTS e entendido melhor essa relação, levando em conta aspectos sociais e históricos,
sejam os mundiais, do seu país ou da cidade em vive. Até a próxima aula!
Resumo
Vamos retomar importantes aspectos do que estudamos nesta aula? Em
primeiro lugar, procuramos situar você quanto ao estudo das relações entre
ciência, tecnologia e sociedade e à sua formação no Ensino Superior, à carreira que
escolheu ou vai escolher e à sua atuação como profissional, respeitando princípios
éticos e sendo responsável socialmente. Vimos também uma apresentação
do campo de estudos interdisciplinar Ciência, Tecnologia e Sociedade, afinal,
como, onde e por que surgiram sérias críticas à ciência e tecnologia? Depois,
retomamos a discussão sobre o conceito de ciência e de tecnologia e refletimos
sobre o modelo linear de inovação. Por fim, destacamos a importância de uma
alfabetização científica e tecnológica crítica.
Autoavaliação
52
Aula 3
1
No início desta aula, você escreveu sobre a relação entre a ciência, a tecnologia
e a sociedade. Agora, reelabore o que você respondeu anteriormente a partir da
discussão realizada em grupo na sala de aula, ou mesmo com base no que você
escreveu individualmente.
2
Pesquise em um jornal da sua cidade uma situação do cotidiano e a analise do
ponto de vista da CTS.
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Referências
BAZZO, W. A.; PEREIRA, L. T. V. Introdução à engenharia. Florianópolis: EDUFSC, 2009.
BAZZO, W. A.; PEREIRA, L. T. V.; VON LINSINGEN, I. Educação Tecnológica: enfoques para
o ensino de engenharia. Florianópolis: EDUFSC, 2008.
CABRAL, C. G. O conhecimento dialogicamente situado: histórias de vida, valores humanistas e consciência crítica de professoras do Centro Tecnológico da UFSC. 2006. 205 f.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Pós-Graduação em Educação
Científica e Tecnológica, Florianópolis, 2006.
CEREZO, J. A. P. Ciencia, tecnologia y sociedad. In: IBARRA, A.; OLIVÉ, L. Cuestiones éticas
em ciencia, tecnologia y sociedad em el siglo XXI. Madrid: OEI, 2003.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2000.
LISINGEN, I. V. O Enfoque CTS e a Educação Tecnológica: Origens, Razões e Convergências Curriculares. Florianópolis: Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Tecnológica,
2004. Disponível em: <http://www.nepet.ufsc.br/Artigos/Texto/CTS%20e%20EducTec.pdf>.
Acesso em: 20 ago. 2010.
PACEY, A. La cultura de la tecnología. México: Fondo de Cultura Económica, 1990.
PALACIOS, E. M. G. et al. Ciência, tecnologia y sociedad: uma aproximación conceptiual.
Madrid: OEI, 2001.
PALACIOS, F. A.; OTERO, G. F. P; GARCÍA, T. R. Ciencia, tecnología y sociedad. Madrid:
Ediciones del Laberinto, 1996.
Aula 3
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
53
Anotações
54
Aula 3
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Tecnologias sociais
e desenvolvimento
Aula
4
Apresentação
N
esta aula, vamos explicar o que são tecnologias sociais, para que servem, qual é seu
público-alvo e como elas estão sendo desenvolvidas no Brasil. Para isso, é feita uma
comparação entre as características das tecnologias sociais e das tecnologias capitalistas e suas funções, na qual a as primeiras são apresentadas como alternativa para as
segundas. Procuramos mostrar que a utilização das tecnologias sociais está associada a um
modelo de desenvolvimento alternativo que promove a inclusão social. Estamos falando de um
tipo de desenvolvimento que busca gerar oportunidade de trabalho e renda para as pessoas
desempregadas, excluídas do mercado de trabalho ou em condições de vida precárias.
As tecnologias sociais são voltadas para as pessoas que se encontram em uma situação
de pobreza, ou seja, não têm as necessidades básicas atendidas como alimentação, saúde, educação, transporte, moradia. Vamos esclarecer que as pessoas envolvidas no desenvolvimento
e difusão das tecnologias sociais são pesquisadores e lideranças de movimentos sociais e
organizações não governamentais (ONGs). Para exemplificar são apresentados alguns casos
dessas tecnologias que foram desenvolvidas em diferentes regiões do país.
Objetivos
1
2
Compreender o conceito de tecnologias sociais e identificar
quais são os atores envolvidos.
Descrever o estágio de desenvolvimento dessas tecnologias no Brasil.
Aula 4
Movimentos Sociais
Para Touraine (2006, p.
18), movimento social
é uma ação coletiva que
procura questionar um
modo de dominação social
que tem um impacto
generalizado na vida das
pessoas. O exemplo mais
evidente de movimento
social são as manifestações nos países árabes
(Egito, Tunísia, Líbia, Irã,
etc) contra os regimes
ditatoriais em 2011.
ONGs
Já as ONGs, são definidas
como entidades civis
sem fins lucrativos que
realizam trabalhos em benefício de uma coletividade como dar assistência a
menores carentes, defesa
da mulher, preservação do
meio ambiente, etc.
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
57
Tecnologias sociais
Q
uando se fala em tecnologia, a noção mais corriqueira é o produto inovador que acaba de
ser lançado nos Estados Unidos ou Japão. Muitos se esquecem que várias tecnologias
fazem parte de nosso cotidiano como a luz elétrica, telefone, TV, internet, antibiótico,
etc. Nesse mesmo raciocínio, o entendimento mais comum sobre desenvolvimento tecnológico
se refere aos esforços relacionados às guerras e ao processo de industrialização do sistema
capitalista nos países desenvolvidos.
A literatura que trata da inovação tecnológica analisa a trajetória das grandes empresas
sediadas, em grande parte, nos países desenvolvidos. Isto não quer dizer que não tenha havido
tentativas de buscar desenvolvimento tecnológico alternativo compatível com a realidade social
e econômica de países subdesenvolvidos, pensando na satisfação das necessidades básicas
da sociedade, como água tratada, alimentação, energia, emprego e renda ou melhorar os
processos produtivos de pequena escala. Desse modo, a finalidade desta aula é mostrar que
há possibilidade de desenvolver tecnologias adequadas à realidade de países subdesenvolvidos, onde as necessidades básicas da maioria da população não foram atendidas, visando
o desenvolvimento social. Da mesma forma que foram criados projetos de pesquisa durante
a II Guerra Mundial, que envolviam equipes muitos grandes com vários tipos de formação,
financiados pelo governo e voltados para fins militares, denominado de Big Science, também
podia haver uma política de criação de projetos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico
voltados para as demandas sociais e redução da pobreza.
Desde já, colocamos algumas questões que precisam ser discutidas levando em conta
as potencialidades da ciência e tecnologia. Cabe lembrar que a história nos mostra que esforços concentrados em pesquisa e desenvolvimento (P&D) resultaram na transformação do
mundo em que vivemos, mesmo que estes esforços tenham atendido interesses econômicos
e/ou políticos de busca de hegemonia através do poder militar. Será que as profundas desigualdades entre as pessoas tendem a se cristalizar ou poderemos vislumbrar um cenário em
que o abismo socioeconômico seja reduzido? É possível construir um modelo de desenvolvimento que procure reduzir a pobreza humana e ausência de cidadania se valendo do avanço
do conhecimento e desenvolvimento de tecnologias? Para tentar responder estas questões,
discutiremos o conceito de tecnologias sociais.
1
Escreva um texto curto explicando o que você entende por tecnologia.
Aula 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
59
Desenvolvimento desigual
Estado
é um conjunto de instituições que são responsáveis
por garantir a ordem e a
paz social em um dado
território através do monopólio da força.
60
Aula 4
Existem países e regiões que não atraem o interesse das grandes corporações para realização de investimentos e promoção do desenvolvimento tecnológico, econômico e social. Estas
regiões subdesenvolvidas que estão na periferia do sistema capitalista mundial têm processos
produtivos que utilizam técnicas tradicionais, implicando em baixa eficiência e produtividade,
degradação ambiental e, consequentemente, qualidade de vida precária. Nesse sentido, em
lugares que não interessam ao capital há uma demanda por desenvolvimento tecnológico
adequado às características econômicas, sociais e culturais do local. Neste caso, o Estado
pode estabelecer políticas que promovam um desenvolvimento tecnológico alternativo para
pequenos empreendimentos de regiões menos desenvolvidas como o Nordeste do Brasil.
Para você entender melhor, vamos lembrar que ao longo do século XX no Brasil a intervenção do Estado foi no sentido de fortalecer os setores produtivos mais dinâmicos e promover a
concentração industrial no Sudeste, o que fez aumentar a desigualdade regional. Como o Estado
não conseguiu estimular o desenvolvimento de todas as regiões do país simultaneamente por
meio de políticas federais, outros atores ligados à sociedade civil começaram a se articular
com universidades e centros de pesquisa para desenvolver tecnologias que visam à inclusão
social e melhoria das condições de vida nas regiões subdesenvolvidas. Esta mobilização de
instituições da sociedade civil em parceria com determinados segmentos de pesquisadores
é um fenômeno recente que merece nossa atenção, uma vez que procuram orientar a ciência
e tecnologia para o desenvolvimento social. Tais experiências apontam a possibilidade do
fortalecimento de um modelo de desenvolvimento descentralizado, baseado em pequenos
empreendimentos familiares e solidários com uso de tecnologias de baixo custo adequadas
às características socioeconômicas locais.
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Reforça essa ideia, a evidência da impossibilidade de universalizar o padrão de consumo
dos países desenvolvidos devido à limitação dos recursos naturais existente no planeta Terra.
Desde a década de 1970, autores como Celso Furtado (1974) no livro Mito do Desenvolvimento,
e os pesquisadores do Clube de Roma já afirmavam que não era viável estender o padrão de
consumo dos países desenvolvidos para o restante do planeta e falavam da necessidade de
crescimento zero por causa da insuficiência dos recursos naturais disponíveis.
É cada vez mais urgente a necessidade de se pensar em novos modelos de desenvolvimento que procurem conciliar a geração de riqueza (econômico) com a ampliação da melhoria
das condições de vida para toda a população (social) de forma sustentável para garantir que as
próximas gerações possam ter acesso aos recursos naturais (ambientais). Pensar em soluções
para esses problemas envolve necessariamente a orientação do desenvolvimento científico e
tecnológico de modo que ela possa responder aos desafios que estão postos no contexto atual.
No caso do Brasil, a tentativa de copiar o elevado padrão de consumo de países como os
Estados Unidos levou a um modelo de desenvolvimento que concentrou a renda e aumentou
a desigualdade social e regional. Só para você ter uma noção desse modelo de desenvolvimento desigual, nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste alguns indicadores sociais são
comparáveis a países africanos. Menos de 20% da população nestas regiões tem acesso a
saneamento básico e água tratada. No Nordeste, cerca de 30% da população está abaixo da
linha da pobreza. Em 2008, a taxa de analfabetismo na região Nordeste era de 17,7%, sendo
que na Paraíba, Piauí e Alagoas ficava entre 19 e 24%, enquanto que nas regiões Sul e Sudeste
as taxas eram de 5% e 5,4%, respectivamente (IBGE/PNAD, 2009).
Rio Grande do Norte
O estado do Rio Grande do Norte contava com uma população de 3.137.541, segundo a
Pesquisa Nacional de Domicílio do IBGE de 2008, sendo 45% de pessoas de 0 a 24 anos. Em
2008, a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais era de 20%, dos quais 52,1 %
são pessoas com mais de 60 anos. 56% das famílias com crianças de 0 a 6 anos de idade tem
rendimento familiar per capita até 1/2 salário mínimo. Os domicílios que possuem microcomputador com acesso à internet representam 13,56%. Apenas 17,68 % dos domicílios possuem
serviços de rede coletora de esgoto e 30% fossa séptica (PNAD, 2008). Planejar soluções
para estes problemas requer necessariamente a utilização da base científica e tecnológica de
universidades como a UFRN e outras instituições de pesquisa.
Esta aula está organizada da seguinte forma. Na primeira parte será feita uma breve
discussão da trajetória das tecnologias alternativas em contraposição à tecnologia capitalista
até chegar ao conceito de tecnologias sociais. Na segunda parte será associada a emergência
das tecnologias sociais no Brasil à organização de entidades da sociedade civil. Na terceira,
serão apresentados casos de tecnologias sociais que foram desenvolvidas por instituições
de pesquisa, organizações não governamentais (ONGs), associações de trabalhadores em
interação com as comunidades de diversas regiões do país.
Aula 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
61
Trajetória da
tecnologia alternativa
Na Índia do final do século XIX houve a tentativa de lutar contra a injustiça social do sistema de castas e do domínio britânico através do desenvolvimento das tecnologias tradicionais.
Gandhi procurou despertar a consciência da população hindu sobre a possibilidade de ser dona
de seu destino (autodeterminação do povo) por meio da popularização da roca de fiar manual.
A estratégia se baseava no desenvolvimento tecnológico a partir da base técnica existente e
não através de importação de um padrão tecnológico europeu. A proposta de desenvolvimento
de Gandhi era a popularização da máquina de fiar e o melhoramento das técnicas locais, tendo
como objetivo final a transformação da sociedade hindu.
A ideia de tecnologia alternativa foi aplicada na República Popular da China e influenciou
pesquisadores que estavam preocupados com o desenvolvimento econômico nos países periféricos e percebiam que as tecnologias convencionais das empresas capitalistas não eram
adequadas a esses países por terem um custo elevado (intensiva em capital) e por gerar desemprego. Um economista alemão - Schumacher - cunhou a expressão “tecnologia intermediária”
para designar uma tecnologia de baixo custo de capital, pequena escala, simplicidade e respeito
ao meio ambiente. Para o autor, esta tecnologia, também conhecida como tecnologia apropriada, seria mais adequada aos países pobres (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004, p. 20).
Durante as décadas de 1970 e 1980 cresceu o número de partidários da tecnologia apropriada, pensando na redução da pobreza nos países periféricos e em fontes alternativas de
energia para os países avançados. Os pesquisadores que procuravam pensar em alternativas de
desenvolvimento tecnológico levavam em conta também o contexto socioeconômico e político
no qual eram construídos os artefatos e processos. Passava-se a refletir a nova relação entre
ciência, tecnologia e sociedade (CTS), incorporando a questão da participação de diferentes
grupos sociais no processo decisório de escolha tecnológica, baseado em critérios de baixo
custo dos produtos e do investimento, pequena ou média escala, facilidade de operação e,
principalmente, geração de benefícios sociais para as comunidades envolvidas.
Os pesquisadores preocupados com a temática do desenvolvimento tecnológico para
inclusão social nos países periféricos questionavam o modelo linear de inovação, segundo
o qual o desenvolvimento social seria uma consequência do progresso técnico baseado na
ciência básica. Esse modelo ainda está arraigado entre os cientistas e burocratas.
Nos anos 1990, o movimento intelectual que procurava refletir sobre um novo estilo de
desenvolvimento baseado nas noções de tecnologia apropriada, também chamada de democrática, popular, libertária, limpa, etc., entrou em declínio em função da hegemonia do pensamento
neoliberal e do processo de globalização que provocou o aumento da competitividade das
empresas, reorganização da produção em escala mundial e reestruturação industrial em países
como o Brasil. A reestruturação produtiva na indústria brasileira combinada com a abertura
comercial e baixa taxa de crescimento econômico aumentou o desemprego e enfraqueceu o
movimento sindical que passou a ter uma postura mais defensiva de preservação de emprego. A adesão ao pensamento neoliberal resultou na renúncia a um projeto nacional baseado
em uma trajetória própria mediante a busca de maior autonomia tecnológica. Os programas
62
Aula 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
tecnológicos nas áreas estratégicas (espacial, defesa, aeronáutico) foram sucateados com a
redução de recursos disponíveis.
Em 2000, a estabilização macroeconômica, crescimento e redução da dependência externa criaram as condições para investir mais em ciência e tecnologia com a expectativa de
gerar impactos no desenvolvimento do país. Em função disso, o dispêndio em C&T triplicou
nos últimos dez anos no Brasil, acompanhando uma tendência dos países desenvolvidos e
os chamados emergentes. No entanto, a pobreza, a desigualdade regional e o uso predatório
dos recursos naturais ainda não são tratados como problemas centrais da política de ciência,
tecnologia e inovação. Em 2008, apenas 1% dos recursos do Ministério da Ciência e Tecnologia
foi destinado à rubrica do desenvolvimento social.
2
Pesquise na internet exemplos de tecnologias alternativas utilizadas em pequenas
unidades de produção ou empreendimentos solidários (cooperativas).
Obstáculos para uma política de CTI
voltada ao desenvolvimento social
Existem vários fatores que contribuem para que a política de CTI fique circunscrita ao
mundo científico ou, como denominam os especialistas tecnocratas, ao sistema de ciência,
tecnologia e inovação. Um dos principais fatores é a permanência da concepção de ciência
autônoma e neutra que acabou mantendo a atividade científica distante da sociedade e do
debate público. Associado a isso, a comunidade científica não aceitava interferências de interesses políticos ou econômicos no desenvolvimento científico. Quem estabelecia a política
científica eram os cientistas mais influentes. Como consequência, a política científica ficava
condicionada aos interesses das elites do ambiente científico de preservação do prestígio social, do capital científico, em uma palavra do status quo. O ambiente científico é conservador
e tem uma estrutura desigual. A agenda de pesquisa está mais condicionada à lógica interna
do ambiente científico que procura estar na fronteira da ciência universal e, por isso, é pouco
contextualizado. Na maioria das vezes, as prioridades para o desenvolvimento científico e
tecnológico financiadas pelo Estado não respondem aos problemas reais, como a pobreza e
a baixa qualidade de vida, de países periféricos.
Aula 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
63
Outro fator, que está relacionado à forma de organização autônoma do ambiente científico
e o distanciamento das demandas sociais, é a limitada percepção pública da temática ciência
e tecnologia e a dificuldade dos diferentes grupos sociais de levar à “academia” as demandas
mais prementes da população para o processo decisório.
Existem fóruns e conferências na área de C&T que, em tese, deveriam debater os problemas e estabelecer diretrizes para alocação de recursos, mas mantêm espaço privilegiado para
os cientistas. Contudo, paulatinamente, tem havido um avanço na participação de organizações
da sociedade civil e movimentos sociais na proposição de prioridades visando à inclusão social
e a solução dos problemas mais imediatos da sociedade. Esta mobilização de novos atores
da sociedade civil possibilitou a inclusão de propostas relacionadas ao incentivo e financiamento do desenvolvimento de tecnologias sociais na política de CTI expressa no Livro Azul,
divulgado em 2010. Este documento sinaliza o aumento de aporte de recursos para ações e
estratégicas que procurem orientar a geração de conhecimento científico e tecnológico para
o desenvolvimento social. No contexto desta mobilização de entidades da sociedade civil,
tem sido elaborado o marco analítico-conceitual da tecnologia social como uma alternativa
mais eficaz na solução de problemas sociais, que procura estabelecer uma nova relação entre
ciência, tecnologia e sociedade.
No entanto, em 2010, algumas políticas de combate à pobreza ainda têm um caráter
assistencialista e não promovem a emancipação. Outra característica das instituições que
trabalham com o conceito de tecnologias sociais é a forma de organização em rede, visando
reutilizar soluções tecnológicas em diferentes locais que tenham a mesma necessidade.
64
Aula 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Tecnologias sociais entendidas
como processo de construção social
Quando falamos em tecnologia como processo de construção social, queremos dizer que
as características de um determinado artefato tecnológico é fruto da negociação de diferentes
grupos sociais que têm preferências e interesses. Desse modo, o desenho da tecnologia está
relacionado aos interesses políticos, econômicos ou sociais. Para alguns autores (PINCH;
BIJKER, 1990; FEENBERG, 1999) a decisão sobre o desenho da tecnologia passa pelo crivo
da escolha social, reflete as práticas sociais e culturais de um determinado período e local.
Esta concepção pode ser verificada no conceito de tecnologias sociais. Os próprios atores da
sociedade civil concebem as tecnologias sociais “como aquelas que compreendem produtos,
técnicas e metodologias desenvolvidas na interação dos saberes científico e popular e que
representam efetivas soluções de transformação da sociedade” (RTS, 2010). A perspectiva
destes atores parte da premissa de que a sociedade também tem um conhecimento baseado
na experiência de vida e que, em interação com pesquisadores que detêm um conhecimento
científico, produzem soluções para os seus problemas relacionados ao processo produtivo
ou para o atendimento de necessidades básicas como acesso a água, tratamento de doenças,
alimentação, etc. Desse modo, tal perspectiva é diferente da visão de que o único detentor
de conhecimento é o pesquisador. Ao contrário, o conceito de tecnologias sociais parte do
entendimento de que o conhecimento é produzido em diferentes lugares como resultado de
interação social e a tecnologia é o resultado de uma construção coletiva que leva em conta
os recursos materiais e humanos disponíveis. O conceito de tecnologias sociais tem uma
proximidade com o conceito de tecnologia estudado pelos construtivistas. Os construtivistas
entendem que a tecnologia é construída na interação de diferentes grupos sociais que dão um
significado para os artefatos tecnológicos. Para eles, a tecnologia é o resultado da negociação
de diferentes grupos sociais que compartilham um significado, uma imagem do artefato.
É possível identificar uma convergência entre estudiosos da tecnologia da corrente
construtivista, os autores do campo de Ciência, Tecnologia e Sociedade e as lideranças das
instituições da sociedade civil que trabalham com o conceito de tecnologias sociais. Os pontos
em comum entre estes três segmentos são: o conhecimento é produzido em diferentes lugares
como empresas, hospitais, ONGs, não sendo exclusividade da universidade; o processo de
construção da tecnologia sendo processo participativo que envolve a interação de diferentes
grupos sociais, inclusive aqueles que detêm o saber popular. Esta visão estabelece forte vínculo entre democratização e desenvolvimento tecnológico, na medida em que o desenho da
tecnologia se dá num processo de interação do conhecimento científico e popular, o que requer
formas de organização mais democráticas.
A visão de tecnologias construídas a partir das demandas sociais se aproxima da teoria
crítica da tecnologia de Andrew Feenberg (1999). Segundo o autor, a concepção de neutralidade da tecnologia desconsidera que está enraizada nela valores antidemocráticos comum à
lógica capitalista que visa o controle dos trabalhadores e recursos para aumento de eficiência
e lucros. Para Feenberg, o poder tecnocrático está presente nas decisões sobre o desenho da
tecnologia, em função da necessidade de controle do processo produtivo. Nesse sentido, existe
Aula 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
65
uma dimensão política na construção dos artefatos e processos tecnológicos. O conceito de
tecnologias sociais considera esta dimensão e se caracteriza por ter relação estreita com a
prática democrática de envolver as comunidades no desenvolvimento da tecnologia, levando
em conta o saber popular para atender suas necessidades.
Para você entender as principais diferenças entre as tecnologias empregadas nas grandes
empresas e as tecnologias sociais, apresentamos uma comparação no Quadro 1. No contexto
do sistema capitalista mundial, as tecnologias convencionais visam à maximização do lucro,
o que não significa bem estar social. Como exemplo, podemos destacar o caso do Fordismo,
uma tecnologia de processo que maximizou o volume de produção e do lucro, desqualificou
a mão de obra com a subdivisão do trabalho e reduziu o trabalho humano a movimentos
repetitivos. Desse modo, enquanto as tecnologias capitalistas são utilizadas nas grandes empresas, as tecnologias sociais são empregadas entre os pequenos produtores e cooperativas
de trabalhadores. Ao contrário das tecnologias capitalistas que tendem a substituir o trabalho
humano por máquinas, as tecnologias sociais melhoram o processo produtivo e geram mais
oportunidade de trabalho e aumentam a renda dos pequenos produtores. Outra diferença entre
as tecnologias, é que no caso capitalista há a necessidade de controle do ritmo do trabalho
através da hierarquia e velocidade das máquinas para garantir um aumento do lucro das empresas, enquanto no caso dos pequenos empreendimentos e cooperativas de trabalhadores,
os produtores também tomam decisão, têm funções administrativas e têm o controle do
processo. Portanto, não há uma separação entre os que pensam e os que executam, como há
nas fábricas capitalistas.
Tecnologias capitalistas
Tecnologias sociais
Utilizada na propriedade privada.
Utilizada na propriedade coletiva, cooperativas e associações.
Voltada para produção em grande escala.
Os empreendimentos são pequenas unidades produtivas
Poupadora de mão de obra.
Geradora de ocupação e renda.
Controle coercitivo do trabalho.
Autonomia no trabalho e estrutura ocupacional homogênea.
Segmentada para evitar o controle do produtor no
processo de trabalho.
Controle social (produtor) do processo produtivo.
Visa o lucro em detrimento do social e meio
ambiente.
Atende necessidades básicas e procura conciliar o social e o
manejo sustentável.
Quadro 1 – Características das tecnologias
Fonte: Adaptado de Dagnino, Brandão e Novaes (2004).
O desenvolvimento tecnológico das multinacionais está orientado para o atendimento
do mercado formado por pessoas de alta renda. O destino preferencial dos produtos de alta
tecnologia são os países desenvolvidos e as classes mais abastadas dos países periféricos.
Vale lembrar que a industrialização no Brasil esteve associada a um processo de concentração de renda para que uma camada privilegiada da sociedade formasse o mercado interno
(FURTADO, 2003).
66
Aula 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Somos induzidos a pensar que existe apenas um único caminho de desenvolvimento
tecnológico, que é a trajetória dos países desenvolvidos e suas multinacionais, e países como
Brasil precisam dar saltos (catting-up) para alcançar este estágio tecnológico. Em outras
palavras, segundo a visão dominante, para países como o Brasil ser desenvolvido é preciso
dominar as tecnologias dos países avançados, isto é, seguir o padrão tecnológico.
A ideia da possibilidade de desenhar alternativas tecnológicas para novos estilos de desenvolvimento fica restrita a poucos pesquisadores e militantes das causas sociais. Perdeu-se
a capacidade de criar, imaginar e projetar desvinculado da visão dominante. A ideia da trajetória
única dos países desenvolvidos está tão arraigada na mente das pessoas, inclusive na comunidade de pesquisa que procura seguir as tendências dos centros mundiais. O determinismo
tecnológico não modifica a relação de dependência entre países centrais e periféricos.
3
Com base no que você viu sobre o filme “Tempos Modernos” que indicamos na
Aula 4 (algumas cenas estão disponíveis no Youtube), descreva as características
do Fordismo como uma tecnologia capitalista.
Organização da sociedade
civil e tecnologias sociais
Organização da
Sociedade Civil
Para Dagnino, Brandão e Novais (2004) o marco analítico-conceitual das tecnologias
sociais trata a tecnologia como processo e não como produto. Isto quer dizer que consideram
o processo de produção da tecnologia. No caso do conceito de tecnologias sociais, há uma
ênfase no processo de produção da tecnologia que considera a interação entre pesquisadores
que detêm o conhecimento técnico-científico e a comunidade que participará do desenvolvimento das tecnologias para melhorar sua condição de vida. Este caráter de rede atribuído às
tecnologias sociais, que articula diferentes grupos sociais e diversas instituições, estabelece um
novo padrão de governança no qual o Estado deixa de ter o papel protagonista na consecução
de políticas de C&T voltadas para os problemas sociais. A rede é uma forma de organização
aberta, descentralizada e não hierarquizada.
Concomitantemente à evolução do entendimento sobre a produção de tecnologia orientada para o desenvolvimento social em países periféricos, foram sendo criadas algumas instituições na sociedade civil para promover o desenvolvimento e a difusão de tecnologias sociais
a partir dos anos 2000.
Aula 4
Nesta aula, a sociedade
civil é entendida como
um espaço onde se manifestam os interesses e
necessidades de diversos
setores da sociedade,
incluindo as camadas
mais carentes, e ocorre
um esforço de geração de
consenso e definição de
uma direção política no
sentido de promover um
desenvolvimento qualitativamente distinto do existente. Um projeto político
de desenvolvimento que
sintetize as necessidades
sociais, a vontade coletiva
e a garantia da preservação dos recursos naturais
para as gerações futuras.
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
67
Primeiras instituições a atuar
na área de tecnologia social
Fundação Banco do Brasil (FBB): Uma das primeiras instituições a atuar na área de tecnologia social foi a Fundação Banco do Brasil (FBB). Dada a ausência de programas, projetos
e publicações sobre tecnologias sociais, a Fundação Banco do Brasil resolveu lançar em
2001 o Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social e o Banco de Tecnologias
Sociais. O Banco de Tecnologias Sociais serve para armazenar soluções, desenvolvidas
em um determinado local, para atender as necessidades de geração de energia, acesso à
água, educação, habitação, agricultura, renda, e estimular o desenvolvimento de projetos
semelhantes em outras regiões que enfrentam os mesmos problemas.
Instituto de Tecnologia Social (ITS): Criado em 2002, o ITS é uma ONG que desenvolve
e aproveita tecnologias voltadas para o interesse social. O ITS desenvolveu o Sistema de
Acompanhamento das Tecnologias Sociais (SATECS) que possibilita identificar, caracterizar,
fortalecer e potencializar as atividades da política pública.
A Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social (SECIS), do Ministério de Ciência
e Tecnologia: Foi criada em 2003 para financiar projetos de desenvolvimento de tecnologias.
O Centro Brasileiro de Referência em Tecnologia Social: criado em 2004; e o Centro
Avançado de Tecnologias Sociais Ayrton Senna também fazem parte da rede de instituições ligadas às tecnologias sociais.
Tais instituições passaram a se articular por meio da organização de fóruns e conferências
que discutem a formulação de política de CTI voltada para o desenvolvimento social. Entre 2000
e 2002, nos preparativos da II Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, Irma Passoni,
uma das fundadoras do Instituto de Tecnologias Sociais, foi convidada pelo ministro Ronaldo
Sardenberg para auxiliar na organização do evento e mobilização de parlamentares e movimentos sociais1. A partir da II Conferência, um conjunto de instituições da sociedade civil vem se
articulando para contribuir na elaboração da Política de CTI voltada para a inclusão social. Em
2005, as ONGs formularam diretrizes e propostas para a III Conferência. Na ocasião decidiu-se
criar um Fórum Nacional das ONGs que atuam com tecnologia social para consolidar e aprofundar a participação das ONGs no processo de construção de CTI, no Brasil, em articulação
com o poder público, universidades, instituições de pesquisa, agências de fomento de CTI e
empresas. Entre as propostas apresentadas no “Manifesto do Fórum Nacional de CTI para a
III Conferência Nacional”, destacam-se: o fortalecimento da Secretaria de C&T para Inclusão
Social (SECIS) como órgão de articulação interministerial e entre governo e sociedade civil para
execução das ações de C&T visando à inclusão social; criação de espaços de participação de
representantes da sociedade civil em órgãos colegiados como o Conselho Nacional de Ciência e
1
68
Aula 4
Entrevista da gerente executiva do Instituto de Tecnologia Social concedida a Rede de Tecnologias Sociais.
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Tecnologia, Conselho Deliberativo do o CNPq, agência federal que financia pesquisas, Comitês
Assessores do CNPq e Comitês Gestores dos Fundos Setoriais2. A questão da necessidade
de fortalecimento institucional da SECIS com aumento do aporte de recursos foi levantada
novamente na Conferência Regional do Nordeste em 2010. Telles et al. (2010) afirmam que a
maior parte dos recursos da SECIS tem como fonte as emendas parlamentares e sugerem a
criação e manutenção de um fluxo de recursos orçamentários de forma regular. Desse modo,
apesar de haver abertura por parte do governo federal para participação das instituições da
sociedade civil no Eixo IV - C&T para o Desenvolvimento Social das Conferências, a mobilização
de instituições da sociedade civil e participação nas discussões não implicam na implementação
de políticas que orientam a produção e aplicação do conhecimento para gerar desenvolvimento
inclusivo e beneficiar os segmentos mais carentes da sociedade. Na IV Conferência Nacional de
Ciência, Tecnologia e Inovação, foi apresentada proposta de criação de um Programa Nacional
de Tecnologias Sociais pelo Fórum Brasileiro de Tecnologia Social e Inovação com recursos
da Finep para financiar atividades de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias sociais. As
propostas do movimento da TS foram atendidas na Política Nacional de CTI.
4
Agora que você conhece algumas entidades da sociedade civil que promovem
as tecnologias sociais, faça uma pesquisa nos sites das instituições envolvidas
com tecnologias sociais, identificando tecnologias que poderiam ser utilizadas
na Região Nordeste e no Rio Grande do Norte.
Casos de tecnologias sociais
Nesta seção, faremos uma descrição de alguns exemplos de tecnologias sociais que foram
finalistas do concurso realizado pela Fundação Banco do Brasil com o objetivo de esclarecer a
você, através de casos, o que são tecnologias sociais. Você pode perceber que as tecnologias
sociais são desenvolvidas para aperfeiçoar processos produtivos de pequenos empreendimentos, aumentar a renda dos produtores e melhorar as condições de vida das comunidades.
Podemos citar como exemplo o projeto da Minifábrica de Castanha de Caju - Módulo
Agroindustrial Múltiplo de Processamento e Comercialização de Amêndoa de Castanha de Caju
realizado no interior do Ceará. A tecnologia visa organizar minifábricas para reduzir a quebra
de 40% a 45% através da adoção do processo e linha de equipamentos desenvolvidos pela
Embrapa em parceria com a iniciativa privada; da formação de um conjunto de minifábricas e
a implantação de uma unidade central responsável pelo fornecimento da castanha previamente
classificada. Com isso, houve o aumento em 50% de amêndoas inteiras.
2
Manifesto do Fórum Nacional de CT&I para a III CNCTI, 2005.
Aula 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
69
Figura 1 – Minifábrica de Castanha de Caju
Em 2003, foi premiada a Solução Compacta e de Baixo Custo para Tratamento de Esgotos
Domésticos, desenvolvida pelo Núcleo de Bioengenharia Aplicada em Saneamento da UFES
desde 1995 em Vitória - Espírito Santo. O projeto consistia numa estação de tratamento baseada em tecnologias limpas para aplicação na urbanização de zonas de baixa renda que utiliza
um reator anaeróbio no início do tratamento biológico, 70% da matéria orgânica presente no
esgoto é removida sem consumo de energia. O resultado foi a redução significativa do nível
de contaminação dos corpos d’água; eliminação do contato direto da população com o esgoto;
redução dos gastos com tratamento médico-hospitalar.
A Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas da ilha das Cinzas em parceria com a
FASE (ONG) e a prefeitura do município de Gupurá – PA implantou um sistema de produção
para melhorar a qualidade do camarão a partir da adaptação das armadilhas, introdução de
viveiros para estocagem in natura, capacitação das famílias em produção, gestão ambiental
e gestão de organizações associativas. Os resultados alcançados foram: aumento no tamanho dos camarões comercializados (de 4,5 para 9,2 cm); aumento do preço recebido pelos
produtores (de R$ 0,80 para R$ 2,50) e da renda familiar mensal oriunda do camarão (de 1/2
para 1,2 salário mínimo); estabilização da produção e, consequentemente, da renda anual
proveniente do camarão; garantia de mercado para o produto com preço justo, mesmo em
época de pico de produção.
O Centro de Estudos e Projetos de Energias Renováveis de Recife – PE desenvolveu dispositivo de geração de energia solar para bombeamento de água dos poços em pequenas áreas
de irrigação, visando à produção de culturas alimentares consorciadas com frutíferas, melhorando a alimentação e a renda na agricultura familiar de comunidades rurais do semiárido. A
adoção desta tecnologia permitiu o aumento da produtividade nas áreas irrigadas e aumento da
renda familiar. Estes são alguns exemplos de tecnologias sociais que foram desenvolvidas com
poucos recursos para atender demandas socioeconômicas de comunidades de baixa renda.
70
Aula 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Perspectiva de longo prazo
Ainda que a mobilização de diversas instituições para estabelecer uma estratégia alternativa de desenvolvido seja um fenômeno recente, é possível identificar avanços tanto na discussão
sobre o conceito das tecnologias sociais, quanto nas ações empreendidas de desenvolvimento
de tecnologias em interação com as comunidades de diversas regiões. Embora tenha ocorrido
uma abertura do governo federal para aproximar a ciência e tecnologia das questões sociais,
os dispêndios têm sido muito reduzidos. Iniciativas de gerar tecnologias para inclusão social
não têm o peso compatível com as necessidades da população.
Numa perspectiva de longo prazo, vislumbra-se a multiplicação de ações de C&T para
o desenvolvimento social na medida em que fortaleça as articulações entre as instituições da
sociedade civil e organizações de pesquisa, permitindo o avanço do processo de democratização do país. De todo modo, está cada vez mais evidente que é preciso investir em trajetórias
tecnológicas para pequenos empreendimentos, alternativas ao avanço tecnológico das multinacionais para estimular o desenvolvimento de regiões menos desenvolvidas que estão na
periferia do sistema capitalista mundial.
5
Identifique no seu cotidiano que necessidades poderiam ser atendidas por meio
do desenvolvimento de tecnologias sociais.
Resumo
Nesta aula, você aprendeu que existem tecnologias que são desenvolvidas
para solucionar problemas sociais, aumentar a eficiência de processos produtivos
de pequena escala como as minifábricas de castanha de caju e melhorar as
condições de vida das comunidades de baixa renda. Você aprendeu também
que as tecnologias sociais são fruto da interação do conhecimento popular
e científico e os novos atores envolvidos nesse processo são originários de
movimentos sociais e ONGs. Estes atores se organizam em rede, isto é, de forma
não hierárquica. Entre as diferenças descritas na aula, as tecnologias sociais
possibilitam ao trabalhador o controle dos meios de produção, enquanto as
tecnologias capitalistas utilizadas pelas grandes empresas procuram manter o
controle sobre os trabalhadores e o processo produtivo para obtenção de lucros.
Aula 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
71
Autoavaliação
1
2
3
72
Aula 4
Agora que você compreendeu o que são tecnologias sociais, pesquise na internet
alguns exemplos de tecnologias sociais que se enquadrem no conceito apreendido.
Tomando como referência a cidade onde você mora, aponte que demandas poderiam ser atendidas pelas tecnologias sociais e quais segmentos da sociedade
poderiam ser beneficiados.
Pesquisa qual é o estágio de desenvolvimento das tecnologias sociais no Rio Grande do Norte ou na Região Nordeste.
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
Referências
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FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
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amostra de domicílios: síntese de indicadores. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em:
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Aula 4
Ciência, Tecnologia e Sociedade I
73
Anotações
74
Aula 4
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