ORIGEM DOS POTENCIAIS ELÉTRICOS
DAS CÉLULAS NERVOSAS
Jorge A. Quillfeldt
Departamento de Biofísica, IB, URGS
A
eletricidade (Figura 1). Sob esta
inspiração, hoje ultrapassada, a literatura
fantástica do século XIX nos legou o
clássico de Mary Shelley, Frankenstein,
uma criatura artificial contruída a partir
de tecidos mortos e animada por...
eletricidade!
Os fenômenos bioelétricos podem
envolver tanto a geração, quanto o
resultado da ação de campos ou correntes
elétricas sobre os processos biológicos.
Em vertebrados como os humanos, são
particularmente notáveis em três tipos de
tecidos, o neural (incluindo suas
interfaces com os diferentes órgãos
sensoriais), o muscular (esquelético, liso
ou cardíaco) e o endócrino (glândulas
secretoras), onde desempenham um papel
central. Podem também manifestar-se
potenciais
elétricos
em
situações
excepcionais,
como
em
tecidos
lesionados. Uma categoria especial de uso
da bioletricidade é encontrada em alguns
peixes, onde um músculo modificado, o
órgão elétrico, pode ser utilizado como
órgão sensorial ou, por vezes, como órgão
de ataque/defesa.
s células vivas dependem de uma
série de reações químicas em seu interior,
que, delicadamente articuladas entre si,
em sequência ou em paralelo, operam
para manter o frágil equilíbrio dinâmico
que significa “estar vivo”. Esse incessante
turbilhão bioquímico libera energia
quebrando
ligações
químicas
de
nutrientes ingeridos, constrói e reconstrói
biopolímeros como proteínas, ácidos
nucleicos, lipídios e glicídios, e também
desfaz e descarta os restos destas
substâncias, uma vez que qualquer
biomolécula é funcional apenas por um
tempo limitado dentro das células.
Mas a atividade biológica não
envolve apenas reações químicas, embora
estas estejam sempre na origem da
captação e distribuição de energia e
síntese de constituintes moleculares em
qualquer organismo vivo. Podemos
encontrar também atividades biológicas
derivadas:
elétrica,
mecânica
(movimentos, comportamentos), térmica
(especialmente
nos
vertebrados
endotérmicos)
e
até
luminosa
(bioluminescência). Aliás, muito antes de
se ter clareza sobre a natureza bioquímica
da vida, achava-se que o impulsionador
deste processo – o chamado élan vital –
era a própria eletricidade. Não é a toa que
a história do descobrimento da
eletricidade
confunde-se
com
os
primórdios da própria biologia, com a
disputa acirrada, no século XVIII, entre
Galvani e Volta acerca da natureza da
I – Alguns conceitos básicos
A atividade elétrica nos tecidos
vivos é um fenômeno que se dá em nível
celular, sendo estritamente dependente da
membrana celular. Em praticamente
todas as células vivas em que isso foi
medido detectou-se alguma diferença de
1
potencial (DDP) elétrico entre o
citoplasma e o exterior das mesmas. Este
é o chamado Potencial de Repouso ou
Potencial de Membrana, cujo valor varia
em diferentes tipos de células, indo de 5 a
100 mV, quase sempre com o interior
negativo em relação ao exterior.
de repouso. Este processo, com suas fases
de despolarização e repolarização,
envolve correntes elétricas (iônicas)
transmembrana - com íons fluindo para
dentro e para fora em diferentes etapas -,
consome cerca de 1 milissegundo, e é
chamado de Potencial de Ação. Os
potenciais de ação propagam-se ao longo
da membrana celular, indo do ponto de
origem até o outro extremo, mobilizando
rigorosamente todos os recursos (canais e
bombas) da membrana; daí, em parte, a
expressão tudo-ou-nada que descreve o
fenômeno. Voltaremos mais tarde a este
assunto em maior detalhe.
QUEM CONDUZ ELETRICIDADE
NOS SERES VIVOS? - Uma vez que
nos
tecidos
biológicos
não
há
disponibilidade de elétrons livres para
movimentar-se de forma análoga à que
ocorre nas bandas de valência dos metais
condutores, as cargas elétricas em questão
só podem estar nos íons de compostos
dissociados no meio aquoso que tudo
preenche, dentro e fora da célula. Deste
modo, a causa principal do potencial de
repouso seria a distribuição desigual dos
íons em solução nos dois lados da
membrana, compartimentados ativa ou
passivamente pelos mecanismos seletivos
de transporte iônico transmembrana. A
membrana, portanto, atua com um
capacitor, armazenando energia nesta
distribuição
espacial
de
íons
eletricamente carregados; esta energia
potencial elétrica está disponível para ser
recuperada rapidamente, além de
estabilizar a membrana evitando que este
sistema seja perturbado por qualquer fator
de menor importância.
Como dissemos, as células vivas
têm um potencial de repouso de cerca de
0,1V ou menos, negativo em relação ao
exterior. Isto é especialmente notável nas
chamas células excitáveis, que são os
neurônios, miócitos e células endócrinas:
nestas células, quando ativadas, o
potencial sai do “repouso elétrico” e
muda de valor, chegando a inverter sua
polaridade e, por um breve período (da
ordem das dezenas de microssegundos), o
interior da célula fica positivo, e o
exterior, negativo; rapidamente, então, a
membrana da célula recobra seu potencial
REGISTROS INCIDENTAIS - Estas
pequenas correntes iônicas percorrem
distâncias físicas pequenas, sendo que a
maioria dos íons permanece sempre muito
próximo à membrana, mas as variações
dos campos elétricos podem ser
detectadas a considerável distância, até
por que seus valores não são desprezíveis.
Nas três classes de células excitáveis dos
animais acima mencionadas, estas
correntes iônicas só têm relevância
funcional no local exato em que
aparecem, portanto, quando medidos à
distância, devemos considerá-las como
registros incidentais, ou seja, seu
significado
só
existe
para
o
experimentador que realiza o registro.
Somente nos peixes elétricos tais
manifestações mensuráveis possuem um
significado fisiológico e adaptativo: neste
caso, a organização citoarquitetônica do
órgão elétrico, com a conexão serial de
muitas células, permite a soma de suas
voltagens até atingir valores bastante
elevados. Para se ter uma idéia, no
eletroencefalograma
e
no
eletrocardiograma, os biopotenciais
incidentais que são medidos a alguma
distância de suas fontes celulares
originais são, respectivamente, da ordem
dos 20-30µV (microvolts) ou do mV
2
(milivolt); nos peixes elétricos, por outro
lado, esta voltagem pode chegar a
1.000V, suficiente para atordoar ou
mesmo matar muitas de suas vítimas.
transmembrana, é, por vezes, tratado
como CC (corrente contínua). Os
potenciais CC são relativamente estáveis
ou de variação muito lenta, como aqueles
que medimos em tecidos lesionados, o
chamado “potencial de ferida”, com cerca
de -50mV e causado pelo “vazamento” de
potássio. São encontrados em outras
situações
também,
como
quando
medimos diferenças de potencial elétrico
entre dois pontos do encéfalo (até 1mV)
ou da pele (até 10mV), no interior de
glândulas ativas (por exemplo, nos
folículos da tireóide, onde chega aos 60mV) ou de órgãos sensoriais (no canal
interno da cóclea medimos cerca de
+80mV).
Para uma noção mais “táctil”
acerca das intensidades de corrente
elétrica e seus efeitos sobre um tecido
vivo, observe-se que uma corrente de
2mA, passando através de uma parte de
nosso corpo, mal será percebida. Acima
dos 10mA, porém, o choque elétrico terá
consequências graves, uma vez que os
elétrons e íons mobilizados à força pelo
tecido, causam seu aquecimento (efeito
Joule) e, consequentemente, lesionam-no.
Entre os 100 e os 200mA, as correntes
elétricas são letais para humanos.
Curiosamente, choques acima destes
valores podem não ser letais se houver
atenção médica imediata; mesmo assim,
podem
causar
queimaduras
e
inconsciência: a letalidade geralmente é
causada pela fibrilação ventricular, que,
contudo, acima dos 200mA, é menos
comum, uma vez que, nesta situação, o
coração fica rigidamente contraído (e,
assim, parcialmente protegido). Os riscos
de lesão aumentam se a pele estiver
molhada, quando a resistência elétrica
diminui muito.
VOLTAGEM E CORRENTE ELÉTRICAS - Mas não nos impressionemos
com valores de voltagem elétrica, pois
estes
nem
sempre
expressam
adequadamente o efeito que podem
causar. De fato, um potencial elétrico é
uma forma de energia potencial, isto é,
uma forma de armazenar energia para
realizar trabalho, como, por exemplo,
fazemos quando armazenamos grandes
quantidades de água no lado de cima de
uma represa (potencial gravitacional), e o
trabalho é recuperado na queda da água,
que, deste modo, aciona uma turbina e
gera corrente elétrica. Neste exemplo, a
quantidade de trabalho obtido depende do
fluxo de água que permitirmos passar,
pois, como sabemos, nenhuma turbina
será acionada se apenas abrirmos uma
pequena torneira. De forma análoga, a
verdadeira expressão do trabalho elétrico
é o fluxo de cargas elétricas que deixamos
passar, isto é, a corrente elétrica: assim,
correntes grandes, mesmo de baixa
voltagem, podem ser letais (como em
baterias de automóvel), e voltagens altas,
com baixas correntes, geralmente não são
(como quando escutamos os “estalos” da
eletricidade estática ao tirar o casaco de lã
em um dia seco de inverno, fenômeno
que pode envolver milhares de volts). As
diferenças de potencial elétrico (ddp) são
medidas em V (Volts), enquanto que as
correntes elétricas, em A (Ampéres).
Apesar das diferenças óbvias com
as fontes elétricas artificiais que tanto
utilizamos, tais correntes elétricas breves
e cambiantes são chamadas de CA
(corrente
alternada)
pelos
eletrofisiologistas. Já o potencial de
repouso, que, como veremos, também
pode envolver correntes elétricas
3
meio aquoso, e explica por que, quando
comparada com outros líquidos de peso
molecular semelhante, a água é aquele
que apresenta o maior ponto de ebulição,
o maior calor específico1 e a maior
capacidade térmica 2 (calor de
vaporização), além de uma das maiores
tensões superficiais (Figura 2).
Outras propriedades sui generis da
água são o chamado ponto anômalo (a
densidade máxima da água se dá em +4oC
3
), a auto-ionização (que gera uma baixa
concentração de íons H+ e OH-, base da
escala de pH) e sua alta solubilidade. Na
verdade a água é considerada o melhor
solvente que existe para sais, ácidos e
bases, ou seja, todas aquelas substâncias
que são polares (dessas, algumas são
carregadas, isto é, possuem cargas
elétricas inteiras 4), e o faz pois combina
II – O Meio aquoso e a Membrana das Células
Antes de entrar na dinâmica iônica
particular que explica os biopotenciais
elétricos do sistema nervoso, convém
ressaltar que estes fenômenos se dão em
uma escala de tamanho da ordem das
dezenas de nanômetros, intermediária
entre
os
fenômenos
puramente
moleculares (nanométricos) e os celulares
(micrométricos). Neste mundo, o
ambiente
molecular
é
totalmente
comandado pelas propriedades físicoquímicas da água, e é essencial
compreendê-las para entender o que
fazem íons e proteínas. O meio aquoso
preenche a maioria dos espaços intra e
extracelulares, e é onde estão suspensas
quase todas as moléculas (solúveis, é
claro) que interagem entre si para animar
o
metabolismo
intermediário,
a
mobilização de fontes energéticas e
nutrientes, e os processos de manutenção
e reparação molecular e celular.
1
Que explica seu poder de verdadeiro “tampão
térmico” ambiental. Por exemplo, a quantidade de
vapor de água na atmosfera determina as
variações de temperatura. Por outro lado, as águas
de lagos, rios e oceanos não variam sua
temperatura tão rápida, nem tão intensamente
quanto a massa de ar adjascente, permitindo
algum conforto à vida presente.
2
Esta propriedade explica, por exemplo, a
sudorese, quando água secretada sobre a
superfície da pele passa ao estado gasoso,
“roubando” boa quantidade de calor, e, assim,
refrescando-nos.
3
Já o gelo de água possui uma estrutura
cristalina, regular e repetitiva, e menos densa que
a água líquida: é por isso que o gelo flutua, e é
também por isso que, no inverno, quando lagos e
rios congelam, este congelamento não vai até o
fundo nos locais mais profundos, pois o peso da
coluna de água impede que ela assuma a forma de
gelo, menos densa. A forma cristalina do gelo, em
células hexagonais, é conhecida como gelo I, uma
vez que há outras seis formas estruturalmente
diferentes, todas elas mais densas que a água
líquida.
4
Por outro lado, a água não “dissolve”,
quimicamente falando, substâncias apolares
(também conhecidas como hidrofóbicas), no
máximo permitindo que fiquem em suspensão,
geralmente mediante agitação mecânica. Em
química, somente “o semelhante dissolve o
PROPRIEDADES DA ÁGUA - A água
é um líquido único, e talvez o fator mais
decisivo a explicar porque a vida é tão
onipresente na terra (e por que é tão
difícil encontrá-la em planetas vizinhos
do sistema solar, ainda que esta
possibilidade exista). À pressão de 1
atmosfera, encontra-se na forma líquida
entre 0oC (273K) e 100oC (373K),
condições encontradas apenas em nosso
planeta. Devido a uma estrutura simples
de dipolo elétrico, as moléculas de água
interagem fortemente entre si, ainda que
de forma rápida: as chamadas pontes de
hidrogênio têm energias apenas 5 a 10
vezes menores que as de ligações
covalentes, e duram cerca de 10-9
segundos. Isto, porém, é suficiente para
conferir uma elevada coesão interna ao
4
outras duas propriedades físico-químicas:
a solvatação (hidratação) dos solutos,
com
sua
consequente
blindagem
eletrostática (a água é um bom isolante
elétrico 5) e a difusibilidade, ou seja, o
fato de a agitação térmica manter as
moléculas de água movendo-se em
direções
aleatórias
e
colidindo
constantemente umas com as outras e
também com os solutos, impulsionandoos: esse movimento errático dos solutos,
muitas vezes chamado de movimento
browniano, fatalmente afastará os solutos
que estão sendo removidos de um cristal
maior (por exemplo, de NaCl),
favorecendo a dissolução do restante.
suspensão na água se encontram, elas
experimentam
a
oportunidade
de
justapor-se e, assim, diminuir o número
de moléculas de água necessárias para
“envolvê-las” no instável esquema recémdescrito. Deste modo, a energia do
sistema diminui, e a tendência é as
moléculas
apolares
permanecerem
justapostas
(não
necessariamente
interagindo entre si com qualquer tipo de
ligação química): isto é o que chamamos
de efeito hidrofóbico, um importante
fenômeno físico que atua na organização
espacial de pelo menos duas estruturas
biologicamente
fundamentais,
as
proteínas e as membranas celulares,
compostas
por
moléculas
ditas
anfipáticas, parcialmente polares e
parcialmente apolares.
EFEITO HIDROFÓBICO - Para os
seres vivos, porém, não só a solubilidade
é importante: também o que a água não
dissolve é decisivo. E também aqui valem
as propriedades tão particulares da água
líquida. Moléculas apolares não são
“dissolvidas” por que não estabelecem
interações com as moléculas de água
(pontes de hidrogênio e outras interações
eletrostáticas, as forças de Van der
Waals), mas, em meio aquoso, ficam em
um estado termodinamicamente instável,
de alta energia, pois as moléculas de água
que a “envolvem”, não podendo interagir
com ela, interagem mais fortemente entre
si. Quando duas moléculas apolares em
TIPOS DE PROTEÍNAS - A maioria
das enzimas metabólicas são proteínas
globulares, formada por uma cadeia
linear (sem ramificações) de resíduos de
aminoácidos ligados covalentemente uns
aos outros e articulados espacialmente,
primeiro em espirais (alfa-hélices) ou
estruturas
ziguezagueantes
(betaestruturas), e, a seguir, em “novelos”
tridimensionais, os domínios. Estes são,
respectivamente os níveis estrutrurais
secundário (alfas e betas) e terciário
(domínios) das proteínas globulares. Um
domínio terciário tem o formato
aproximadamente esférico e enovela-se por efeito hidrofóbico - escondendo a
maioria de seus segmentos alfa e/ou beta
no interior, deixando exposto à superfície
principalmente os trechos sem estrutura
definida (chamados de “alças”); sua
superfície, portanto, é de caráter polar, e,
por isso, a proteína, como um todo, fica
sendo “solúvel”. As proteínas globulares
são todas solúveis e encontram-se
dissolvidas e móveis nos compartimentos
intra ou extracelulares.
semelhante” (simile fac simile), isto é, polar
dissolve polar, apolar dissolve apolar.
5
Isso apela contra o senso comum, mas a água
líquida só atua como condutor quando tem sais em
solução, e seus eletrólitos servem de condutor.
Como toda água que normalmente encontramos
(fora do laboratório) sempre possui algum sal
dissolvido, é natural que, na prática, atue como
um condutor. A quantidade de vapor de água na
atmosfera determina os extremos possíveis de
variação de temperatura. Por outro lado, as águas
de lagos, rios e oceanos não variam sua
temperatura tão rápida, nem tão intensamente
quanto a massa de ar adjascente, permitindo
algum conforto à vida presente.
5
Os outros dois tipos de proteína
também organizam-se em função do
efeito hidrofóbico. As proteínas fibrosas
organizam-se em feixes compactos
geralmente com função estrutural 6; como
são insolúveis, precipitam em meio
aquoso. As proteínas de membrana, como
diz seu nome, encontram-se imersas na
estrutura das membranas celulares, e sua
“forma” se deve a esta intensa associação:
trechos em alfa (ou beta) trespassam a
região hidrofóbica da membrana (ver a
seguir) e apenas as alças, hidrofílicas,
ficam expostas ao meio aquoso, dentro e
fora da célula. Este tipo de proteína é
fundamental para o tema abordado neste
capítulo, pois todos os carreadores e
canais de membrana, bem como os
receptores metabotrópicos, são proteínas
de membrana.
lipídios de duas caudas não conseguem
formar micelas estáveis, preferindo
organizar-se em lâminas, dispondo-se
lado a lado; como uma face dessa lâmina
necessariamente será formada por caudas
apolares, duas dessas lâminas geralmente
ocorrem justapostas, escondendo, assim,
suas porções apolares do meio aquoso.
Essa organização pode constituir uma
vesícula revestida por com duas camadas
concêntricas ou bicamada lipídica, com o
meio aquoso por fora e também no
interior. Tal fenômeno natural está na
origem das próprias células vivas, e
também explica como são as membranas
das organelas intracelulares, todas elas
bicamadas lipídicas.
A MEMBRANA CELULAR - O
modelo atualmente aceito para a
organização
tridimensional
das
membranas biológicas foi formulado por
Singer e Nicholson (1972), e é conhecido
como modelo do mosaico fluido (Figura
3). Este modelo destaca que, além dos
lipídios, abundam as proteínas de
membrana, distribuídas em meio aos
lipídios constituindo o “mosaico”. A
palavra “fluido” descreve o fato de que,
apesar da estabilidade estrutural das
membranas em duas camadas lipídicas,
todos os lipídios em cada camada, são
livres para deslocar-se lateralmente,
fazendo-o com grande desenvoltura e
rapidez. As proteínas integrais trespassam
ambas camadas lipídicas, mas também
podem mover-se lateralmente sem
empecilhos; como são maiores, deslocamse com menos rapidez devido à inércia.
Na prática, as membranas
biológicas
funcionam
como
um
verdadeiro “mar bidimensional”, com
completa liberdade de movimento nas
duas dimensões de sua superfície, mas
com restrição (ainda que não absoluta)
aos movimentos que levariam um lipídio
LIPÍDIOS EM MEIO AQUOSO outro tipo de molécula anfipática,
essencial para compreendermos a vida
como ela é, são os lipídios anfipáticos.
Com uma extremidade polar (“cabeça”) e
outra apolar (“cauda”), também precisam
articular-se coletivamente, em meio
aquoso, para minimizar a energia do
sistema, o que fazem separando-se em
fases distintas (quando as quantidades são
muito grandes), ou formando micelas ou
vesículas com bicamada. Lipídios
anfipáticos com uma cauda têm uma
geometria que favorece aglutinar-se em
micelas, com as caudas reunidas no bojo
de uma partícula, longe da água, e as
cabeças polares recobrindo-a, em
contacto direto com a água, também
polar; a micela, portanto, embora não seja
solúvel, consegue assim manter-se
suspensa em emulsão sem precipitar. Já
6
Podem ser feixes de alfa-hélices, beta-estruturas,
ou de um terceiro tipo de nível secundário, o
colágeno, uma tripla hélice com elevada resistência mecânica.
6
(ou proteína) a “sair” da membrana 7
perdendo-se
no
compartimento
adjascente, ou aos movimentos ditos
“basculantes” (flip-flop em inglês) em que
um lipídio vai espontaneamente de sua
monocamada para a outra atracvessando,
com sua porção polar, a região
hidrofóbica da membrana 8.
Os lipídios são os principais
componentes estruturais das membranas,
enquanto que as proteínas, os agentes
funcionais.
Também
encontramos
glicídios ligados a lipídios e proteínas,
geralmente
na
face
extracelular
(constituindo o glicocálice), geralmente
conferindo uma identidade biológica
única a cada célula, fator decisivo no
reconhecimento antigênico ou durante o
desenvolvimento. Os lipídios constituem
de 20 a 40% do peso das membranas,
enquanto que a contribuição das proteínas
pode ir de 20 a 70% do peso. A maioria
dos lipídios que constituem as
membranas são fosfolipídios, mas
tembém
temos
glicolipídios,
esfingolipídios e esteróis, como o
colesterol. Este último tem a função de
ajudar a manter afastados os fosfolipídios
para que não passem da fase fluida à
chamada fase gel, desprovida de fluidez,
o que mataria a célula, pois as funções
das proteínas de membranas são quase
todas baseadas na sua mobilidade
bidimensional e colisões com outras
proteínas; em excesso, porém, deixa
instável a membrana, o que pode ser fatal
em células de tecidos que costumam
variar muito de volume de forma rápida
(como a musculatura lisa dos vasos
sangüíneos).
FUNÇÕES DAS MEMBRANAS - A
função mais óbvia das membranas é
compartimentalizar,
separar
dois
ambientes
químicos,
papel
que
desempenham à perfeição, pelo menos
com relação a moléculas polares e/ou
grandes. O livre-trânsito de moléculas
para dentro da célula poderia facilmente
comprometer seu metabolismo ou,
mesmo,
“envenená-la”.
Como
a
membrana tem um interior hidrofóbico,
moléculas polares não conseguem
penetrá-la, a não ser que sejam muito
pequenas e velozes, como é o caso da
água (o que explica o efeito osmótico que
promove variação do volume das células
9
); moléculas apolares, porém, passam
pela matriz lipídica das membranas sem
dificuldades. A maioria dos principais
nutrientes bioquímicos, contudo, é de
moléculas polares
com razoáveis
dimensões,
e
estes
precisam,
definitivamente, entrar nas células; o
mesmo vale para os íons, que, com sua
carga elétrica inteira, também não
conseguem passar diretamente pelo
interior hidrofóbico das membranas. Para
estas substâncias existem os carreadores
(passivos ou ativos) e os canais iônicos
(de vazamento – permanentemente
abertos – ou com portão), que, além de
deixá-las passar, o fazem de forma
altamente seletiva.
Os mecanismos de transporte
através da membrana, aliás, dividem-se
em duas classes, dependendo da
7
A rigor os lipídios estão confinados, cada um, a
sua monocamada, enquanto que as proteínas
integrais pertencem a ambas; os dois tipos de
molécula, porém, sofrem restrições a movimentos
na terceira dimensão. Em estudos biofísicos de
membranas, contudo, estes movimentos podem
ser facilitados com o emprego de detergentes ou
dos chamados “agentes caotrópicos”, inclusive
com algum poder de seletividade molecular.
8
O movimento basculante, por ser termodinamicamente desfavorável, ocorre muito raramente.
9
Hoje sabemos que o efeito osmótico não se deve
apenas à água que entra diretamente pela matriz
lipídica ou através dos canais iônicos eventualmente disponíveis, mas também se dá por
canais especiais dedicados, chamados de
aquaporinas.
7
componentes da cadeia respiratória /
fosforilação oxidativa, na mitocôndria).
Também atuam na transdução de sinais
entre compartimentos (via receptores
metabotrópicos) e podem até mesmo
servir de substrato para reações
enzimáticas 12.
termodinâmica que obedecem. Os
mecanismos
passivos,
dão-se
espontaneamente, sem gasto de ATP,
geralmente seguindo as leis da difusão 10,
seguindo o gradiente químico 11 de
concentrações; os ativos, por outro lado,
são realizados contra qualquer tendência
entrópica espontânea, ou seja, contra o
gradiente, e, por esta razão, envolvem
gasto de ATP. As principais classes de
transporte através da membrana estão
esquematizadas a seguir:
III–Potenciais Eletroquímicos
Após toda a contextualização que
desenvolvemos acima, não será muito
difícil reunir toda a informação de forma
a explicar como as células vivas, e, em
especial,
as
células
excitáveis,
estabelecem seus potenciais elétricos.
Como vimos, todas as células vivas
apresentam alguma diferença de potencial
elétrico entre o citoplasma e o espaço
extracelular, sendo geralmente negativa
do lado de dentro (potencial de repouso
das células). Algumas células, porém,
podem sair desta situação de repouso,
propagando,
ao
longo
de
suas
membranas, perturbações que causam
correntes iônicas transmembrana por toda
a célula e que podem chegar a inverter o
perfil elétrico com relação ao repouso,
chegando a deixar, por algum tempo, o
citoplasma positivo com relação ao
exterior: estas são as chamadas células
excitáveis, e incluem os neurônios, as
células musculares e as células secretoras
endócrinas; as demais, são chamadas de
células não-excitáveis.
TRANSPORTE PASSIVO
Difusão Simples: diretamente através da matriz lipídica
(como moléculas apolares ou a água).
Difusão Mediada: por canais seletivos (íons) ou carreadores (ions ou moléculas).
TRANSPORTE ATIVO
Primário: o carreador processa também o ATP, como é
o caso da Bomba Na+,K+ - -ATPase.
Secundário: o gasto de ATP ocorre indiretamente, para
criar um gradiente químico que acumula
energia e, então, é mobilizada (como fazem os
carreadores ativos Na+.glicose, por exemplo).
A compartimentalização – metabólica ou
iônica, porém, não é a única função das
membranas, que também podem atuar
organizando espacialmente complexos
multienzimáticos que precisam operar,
por exemplo, em sequência (exemplo,
10
A primeira lei de Fick diz que o fluxo do soluto
difusível depende da diferença de concentração
entre os compartimentos visitados, da área da
região que comunica os dois compartimentos e da
distância percorrida, sendo que o sentido do fluxo
é da maior para a menor concentração (do soluto).
11
A expressão “gradiente químico” será usada
aqui significando a variação espacial da
concentração de uma determinada substância;
assim, seguir “a favor do gradiente” significa
mover-se de onde está mais concentrado para
onde está menos concentrado, exatamente como
preconizado pela primeira lei de Fick (ver nota
anterior).
MEDINDO BIOPOTENCIAIS – A
medição de diferenças de potenciais
elétricos no nível das células nervosas
12
Por exemplo, a transformação do ácido
araquidônico (um fragmento de fosfolipídio) em
prostaglandina, reação importante na resposta
inflamatória.
8
“rasgará” (nem o interior da célula
vazará) e a micropipeta ficará integrada à
porção hidrofóbica da membrana,
servindo de “canal” de acesso ao interior
da célula (Figura 4a). Preenchida com
uma solução eletrolítica (por exemplo), e
contendo
um
eletrodo
metálico
(geralmente de prata e revestido com
AgCl) imerso nesta solução, tal
configuração permite medir com precisão
as grandezas elétricas do interior da
célula com relação ao exterior, onde
posicionamos o chamado “eletrodo de
referência”. A mesma configuração serve
para medições extracelulares, desde que o
eletrodo de referência (a outra polaridade)
esteja posicionado em lugar distante.
O orifício na ponta do eletrodo,
com cerca de 1 micrômetro de abertura
(Figura 4b), permite uma certa
“continuidade”
do
meio
aquoso
intracelular com o do interior do eletrodo,
mas não necessariamente favorece que os
íons fluam através dele 14. Esta
continuidade favorece uma separação de
cargas dentro do microeletrodo no
momento em que este entra em contacto
com o meio eletrolítico que irá medir.
Uma vez que geralmente o interior da
célula é negativo com relação ao exterior,
os íons K+ dentro do eletrodo, positivos,
serão “atraídos” para a ponta do mesmo, e
os íons Cl–, negativos, serão “repelidos”
para a outra extremidade, próximo a onde
está o fio de prata: este, então,
“perceberá” o entorno de cargas negativas
(os íons Cl -) que fazem uma “imitação”
precisa do interior negativo da célula. O
fio metálico, que é o verdadeiro eletrodo,
afinal, faz a medição sem estar
efetivamente dentro da célula, situação
enfrenta duas dificuldades: (a) as
correntes elétricas (ainda que não as
voltagens) são muito pequenas, e (b)
como são correntes iônicas em meio
aquoso, e as células, geralmente muito
pequenas, o emprego de eletrodos
metálicos é muito ineficiente, pois têm
elevadíssima impedância elétrica 13, a
ponto de não conseguir “ler” nada. A
solução para contornar estes dois
obstáculos
consiste
em
utilizar
amplificadores de corrente elétrica e
eletrodos de vidro, respectivamente.
Embora medições extracelulares
possam ser feitas com relativo sucesso
utilizando-se eletrodos que consistem de
um simples fio metálico revestido com
material isolante (exceto a extremidade),
as medidas intracelulares são muito mais
delicadas e só foram possíveis com o
desenvolvimento dos microeletrodos de
vidro (Figura 4) a partir da metade do
século XX (anos 1940-1950), quando
finalmente a tecnologia necessária
tornou-se disponível; somente a partir
deste período foi possível obter-se
conhecimento detalhado acerca da
natureza da atividade elétrica nos seres
vivos.
Os microeletrodos de vidro para
medições intracelulares servem-se de uma
vantagem descoberta por Plowe em 1931:
se empalarmos uma célula viva com uma
micropipeta de vidro utilizando um
“golpe” brusco, sua membrana não se
13
“Impedância” é o termo técnico para
resistência elétrica no caso de correntes
alternadas, isto é, correntes que variam (de
intensidade e/ou sentido de fluxo de cargas), que é
exatamente a realidade quando medimos
potenciais em células nervosas. Difere da
resistência elétrica convencional por que depende
de forma complicada da frequência da corrente e
da própria natureza do circuito, mas também
obedece à lei de Ohm (V é diretamente
proporcional a I, e V=RI) caso o condutor seja
ôhmico, isto é, quando a resistência à passagem da
corrente elétrica não depende da própria corrente.
14
Isso, porém, pode ser feito forçadamente se
aplicarmos uma ddp no fio metálico ali imerso, o
que expulsará, por repulsão eletrostática, ions de
mesma carga para o citoplasma da célula-alvo,
porcesso conhecido como microiontoforese.
9
negativa) não-difusíveis 16; como sempre
há um ou mais íons capazes de atravessar
a membrana nas células e isso
determinará o potencial eletroquímico
através da membrana, é necessário
conhecer o comportamento elétrico de
íons difusíveis.
A Figura 5 mostra os dois tipos de
equilíbrio possíveis com cargas difusíveis
movendo-se entre dois compartimentos
separados por uma membrana dita
semipermeável17, isto é, permeável
apenas a uma de duas ou mais espécies
iônicas em solução. Na primeira situação
(Figura 5 a e b), ilustramos o equilíbrio
químico verdadeiro, que depende apenas
da concentração da espécie difusível; no
exemplo mostrado, o soluto é o K+ (mas
poderia ser de outra carga ou, mesmo,
eletricamente neutro) e, após difundir-se
através da membrana semipermeável,
atinge o equilíbrio com concentrações
iguais dos dois lados, situação em que
permanece enquanto não for gasta energia
para modificá-la. É importante notar que
ao chegar neste equilíbrio os movimentos
dos solutos não cessam, pois esses são
em que a impedância (resistência)
dificultaria um registro adequado 15.
Neste ponto, devemos tentar
responder à pergunta: por que o
citoplasma das células vivas é geralmente
negativo com relação ao espaço
extracelular? A aposta mais óbvia é a de
que o fato se deve a um excedente de
cargas negativas (íons solúveis) naquele
compartimento.
Bastaria,
então,
determinar que cargas negativas são estas
e o potencial de repouso das células
estaria explicado? Infelizmente a coisa
não é tão simples.
POTENCIAIS ELETROQUÍMICOS
EMERGEM DA SEPARAÇÃO DE
CARGAS
RESULTANTE
DE
DIFUSÃO
IÔNICA
Se
os
biopotenciais medidos são, efetivamente,
potenciais
eletroquímicos,
devemos
compreender um pouco melhor sua
natureza. Potenciais eletroquímicos são
medidas termodinâmicas que refletem a
energia
resultante
de
fenômenos
entrópicos e eletrostáticos e se
manifestam sempre que processos
moleculares envolvem a difusão de íons
em solução. A “complicação” acima
mencionada surge do fato de que as
cargas negativas em excesso dentro das
células, em particular dentro dos
neurônios, constitui-se de proteínas
aniônicas (com carga residual externa
16
Seria absurdo que fossem “difusíveis”, pois
proteínas citoplasmáticas são geralmente tão
grandes que se a membrana permitisse sua livre
passagem ... seria inútil como barreira seletiva:
tudo passaria. O trânsito de proteínas só é possível
mediante complexos processos que envolvem
além de componentes da membrana, a própria
dinâmica do citoesqueleto, a exocitose (ou
endocitose). Os mecanismos de transporte
transmembrana só atuam com moléculas
relativamente pequenas (ou íons, que são
menores), e, ainda assim, o fazem de forma
seletiva, isto é, transportam apenas aquelas
moléculas reconhecidas estereoespecificamente
(ver item II – Funções das Membranas, acima).
17
Por definição, uma membrana semipermeável
ideal é permeável apenas a uma das espécies
iônicas em solução nos dois compartimentos. Na
prática, essas membranas são muito difíceis de
fabricar (geralmente são de cerâmica) e só
funcionam idealmente nos primeiros minutos dos
experimentos, mas o princípio aqui mostrado
continua válido.
15
A causa disso é que o eletrodo, se fosse apenas
um “fio” cortado na extremidade, teria que (a) ser
revestido por alguma resina isolante para não
causar “curto circuito” na hora do empalamento, e
(b) somente a secção circular da extremidade
estaria livre para o contacto elétrico: como é uma
área muito pequena e as cargas não são elétrons
livres, mas, sim, íons em solução, não há área
suficiente para que estes íons se acumulem junto
àquela região e ali “reúnam” a carga total real a
ser medida. A impedância (resistência) elétrica é
imensa, da ordem dos gigaohm (109 ohm).
10
cargas assimétricas é chamado de
equilíbrio eletroquímico de GibbsDonnan. Note-se que apesar de uma
maior quantidade de cargas positivas ficar
concentrada do lado esquerdo, este
compartimento terá uma carga elétrica
“líquida”
negativa,
determinada
precisamente pela carga (negativa) dos
ânions não difusíveis que ficaram “a
descoberto”, sem quem as “neutralize”
daquele lado. Na seção seguinte veremos
como calcular exatamente o valor desse
potencial elétrico atingido no equilíbrio
eletroquímico
de
Gibbs-Donnan
utilizando a equação de Nernst, que, além
de prever o valor quantitativo exato deste
potencial, determina também seu sinal
(negativo no compartimento da esquerda).
causados pela agitação térmica das
moléculas de água 18; o que cessa é o
movimento “líquido” (no sentido
matemático do termo) de solutos de um
lado a outro e vice-e-versa. Como os
movimentos aleatórios prosseguem, é
possível até que algum íon acabe indo
para
o
outro
lado
criando
momentaneamente uma nova, embora
pequena, assimetria de cargas, mas tal
situação será muito passageira, pois o
sistema rapidamente retornará à situação
de equilíbrio. Aliás, esta é a própria
definição termodinâmica de “equilíbrio”
19
, um estado que não varia com o tempo
pois está em um mínimo de energia, um
estado para o qual o sistema sempre
retorna caso “flutue” (espontaneamente)
para longe dele.
Como
dissemos,
equilíbrios
químicos verdadeiros como o do exemplo
acima,
dependem
somente
da
concentração do soluto difusível, sendo
indiferente à carga elétrica. A presença de
cargas elétricas, porém, introduz mais um
nível de complexidade no sistema pois há
mais um tipo de interação para se levar
em conta. Como cargas elétricas podem
atrair-se ou repelir-se mutuamente, as
situações em que cargas móveis de sinais
opostos coexistem tendem a atingir
somente equilíbrios em que as cargas
ficam estavelmente distribuídas de forma
assimétrica. A situação é exemplificada
na Figura 6 (c e d), em que a carga
(negativa), não permeável, retém, do seu
lado, um excedente de cargas positivas
difusíveis (o K +), fazendo com que as
medições elétricas acusem voltagens
diferentes de zero; este equilíbrio com
A
EQUAÇÃO
DE
NERNST
CALCULA O POTENCIAL ELETROQUÍMICO GERADO POR CARGAS MÓVEIS ASSIMETRICAMENTE DISTRIBUÍDAS – Como o íon
potássio é o principal íon difusível na
maioria das células, sejam elas excitáveis
(como os neurônios) ou não (como a
glia), o sentido em que tende a deslocarse ao atravessar a membrana, bem como a
propensão com que o fará, dependerá da
diferença de potencial eletroquímico entre
os dois lados da membrana. Esta DDP,
por sua vez, será determinada por três
fatores: (a) a diferença de concentração
do soluto nos dois lados da membrana,
(b) a carga elétrica (ou “valência”) da
molécula solúvel, e (c) a diferença de
voltagem entre os dois lados da
membrana
(o
chamado
potencial
transmembrana). Quando a diferença de
potencial eletroquímico entre os dois
lados for zero (o chamado potencial de
inversão), o fluxo líquido de cargas
através da membrana será também zero,
ou seja, há uma situação de equilíbrio
eletroquímico. Se a espécie difusível
consistir de apenas um íon, podemos usar
18
Os movimentos aleatórios e colisões ente
solutos e/ou moléculas de água só cessariam, de
fato, na temperatura de zero absoluto, isto é, em 0
(zero) graus Kelvin.
19
Esta é a definição de equilíbrio “estável”,
existindo também equilíbrios do tipo “instável” e
“indiferente”.
11
previsto pela equação de Nernst (1)
acima.
a equação derivada em 1888 pelo físicoquímico alemão Walter Nernst (1) para
predizer teoricamente este potencial
eletroquímico:
RT
Víon X =
IV – O Potencial de Repouso
das células não-excitáveis
[X]e
----- . ln ( ------- )
zF
[X]i
(1)
onde R é a constante universal dos gases
ideais (8,314570 J K-1 mol-1), T a
temperatura em graus Kelvin, z a valência
do íon em questão 20, F a constante de
Faraday (96,485 C mol-1). O logaritmo
natural (base e=2,7172...) da razão das
concentrações [X] extracellar (e) e
intracelular (i) do íon móvel em questão.
A Figura 6 ilustra o tipo de
situação
em
que
um
potencial
eletroquímico emerge em função da
distribuição assimétrica de um íon
difusível (o outro não é permeável). Na
primeira situação (Figura 6a), com dois
compartimentos isolados, apesar de haver
concentrações diferentes do sal dissolvido
(KCl) em cada lado, em nenhum
compartimento há diferença “líquida” no
número de cargas positivas e negativas:
para cada carga positiva há uma negativa,
e o soma final é zero, garantindo a
eletroneutralidade do compartimento. Se
posicionarmos eletrodos nos dois
compartimentos,
mediremos
uma
diferença de potencial igual a zero, isto é,
V=0. Na segunda situação (Figura 6b),
separamos os dois compartimentos com
uma membrana semipermeável - no caso
permeável apenas às cargas positivas, e
assim obtemos um movimento “líquido”
dessas cargas para o lado direito até
atingir um novo equilíbrio no qual temos
uma distribuição assimétrica de cargas. A
V medida, consequentemente, será
diferente de zero e seu valor pode ser
O POTENCIAL DE REPOUSO DAS
CÉLULAS NÃO-EXCITÁVEIS É UM
POTENCIAL
DE
EQUILÍBRIO
ELETROQUÍMICO
DE
GIBBSDONNAN – Tanto no meio aquoso
(extracelular) que banha a maioria das
células vivas reais, quanto em seu
citoplasma (intracelular), encontramos
diversos íons potencialmente móveis (i.e.,
difusíveis através da membrana), que
dependem, para sê-lo, da existência de
canais
transmembrana
específicos.
Macromoléculas
eletricamente
carregadas, contudo, predominam apenas
no interior das células, como é o caso das
proteínas aniônicas, incapazes de
atravessar a membrana.
Nas células gliais 21, nosso
exemplo de célula não-excitável, apenas
o K+ é permeável através da membrana,
geralmente “saindo” da célula seguindo
seu gradiente de concentração. Na Figura
7a vemos a situação da glia, com sua
típica distribuição assimétrica dos três
principais íons inorgânicos (K+, Na+ e Cl)22 além das proteínas aniônicas, que
fazem o papel de ânions não-difusíveis
(ver Figura 5d 23): fica evidente, portanto,
21
As células gliais, juntamente com os neurônios,
são os principais constituintes do SNC - mas, à
diferença desses, não são capazes produzir
potenciais de ação.
22
Denominados, respectivamente, “potássio”,
“sódio” e “cloreto” (e não “cloro”, como
erradamente se usa).
23
Que, aliás, é semelhante à situação mostrada na
figura 6b; observe-se, entretanto, que se tratam de
dois exemplos hipotéticos mostrando situações
20
Por exemplo, K+ z = +1, Cl- z = -1, Ca++
z= +2.
12
vertebrados (de fato,
são muito
parecidas). Apesar de somente dispormos
de dados precisos referentes a células
excitáveis, estes valores são semelhantes
aos encontrados nas células nãoexcitáveis em geral; assumiremos, por
exemplo, que os dados do axônio da lula
são
representativos
de
valores
encontrados nas células gliais.
que o potencial de repouso da glia é o
próprio
potencial
de
equilíbrio
eletroquímico de Gibbs-Donnan para o
K+. Isto é confirmado pelo fato de que a
maioria das células gliais exibe um
potencial de repouso de cerca de –75 mV,
que é exatamente o potencial previsto
pela equação de Nernst (1) para uma
distribuição iônica análoga àquela
registrada no axônio (do neurônio)
gigante da lula, aqui tomada como
representativa dos valores que ocorrem
nas células gliais (ver tabela I).
CANAIS
DE
VAZAMENTO
SELETIVOS PERMITEM QUE O
POTÁSSIO SAIA DA CÉLULA - A
permeação dos íons K+ se faz através de
canais
proteicos
permanentemente
abertos, os chamados canais de
vazamento 24. Como todo transportador
transmembrana,
estes
canais
são
altamente seletivos e somente deixam
permear uma espécie iônica, no caso o
K+. A seletividade de canais iônicos não
pode ser feita por “estereoespecificidade”,
como
fazem
os
carreadores
transmembrana, até porque os íons têm,
todos,
um
formato
“esférico”
semelhante... a seletividade, no caso é
determinada por dois fatores: (a) o
tamanho da abertura do próprio canal
protéico, pelo qual outros íons
semelhantes não têm “espaço” para passar
(por exemplo, o Na+), e (b) a presença de
cargas opostas intracanal que favorecem a
passagem do potássio (de carga positiva)
e repelem íons de carga oposta.
Assim, o potássio “escapa” pelos
seus canais de vazamento (permanentemente abertos) até que a atração
eletrostática do excedente de cargas
negativas intracelulares não-difusíveis
(predominantemente proteínas aniônicas),
PERFIL
DA
DISTRIBUIÇÃO
IÔNICA DENTRO E FORA DAS
CÉLULAS - A Tabela I, a seguir, mostra
uma distribuição dos principais íons que é
típica da maioria das células. Fica claro
que, enquanto o potássio concentra-se
dentro das células, o espaço extracelular é
uma solução salina mais concentrada na
qual predominam os íons sódio e cloreto;
as proteínas aniônicas concentram-se
maciçamente dentro das células e o cálcio
é um cátion divalente raramente
encontrado no citoplasma no repouso
elétrico da célula (veremos, adiante, como
isso serve para controlar uma infindade
de processos). A tabela mostra os
exemplos específicos do axônio gigante
de neurônio de lula, um invertebrado
marinho, e nas células de músculo
esquelético de mamíferos, ambas células
excitáveis (e por isso mais bem
estudadas). É notável a semelhança entre
os perfis iônicos dessas duas células, e,
embora os valores absolutos possam
diferir, proporções semelhantes são
mantidas. Para os fins deste capítulo,
assumiremos que as concentrações
mostradas para o caso das células de
músculo esquelético são representativas
daquelas encontradas em neurônios de
24
Estes canais passivos distingüem-se daqueles
“ativos”, chamados de canais com portão (ver
item VI, mais adiante), que podem regular seu
estado aberto/fechado. Estes canais, porém,
podem ser bloqueados por agentes naturais ou
sintéticos, geralmente em situações nãofisiológicas.
extremamente simplificadas: a figura 7a mostra
uma situação mais próxima ao real.
13
que vai se acumulando no interior, detém
o processo.
A difusão do K+ para fora da
célula é um fenômeno autolimitante, pois
ao atingir um equilíbrio estável, isto é,
um estado de energia mínima (equilíbrio
termodinâmico de Gibbs-Donnan, no
caso), o K+ o faz de forma completamente
espontânea, sem gasto de ATP em
nenhuma etapa. Este sistema em
equilíbrio
responde
a
qualquer
“perturbação” do perfil iônico ajustandose automática e espontaneamente,
reorganizando os gradientes sempre sem
consumir energia (ATP). Seus únicos de -
terminantes são (a) o gradiente de
concentração do K+, (b) seus canais de
vazamento, e (c) a grande concentração
intracelular de proteínas aniônicas nãodifusíveis (abreviadas como “PAND” na
Figura 7a). Os gradientes dos demais
íons,
mesmo
que
desigualmente
distribuídos dentro e fora da célula, não
afetam tal equilíbrio, pois são íons que
não se difundem através destas
membranas: por definição, portanto, não
entram no cálculo da equação de Nernst,
que, aliás, só permite computar o
gradiente de concentração de uma única
espécie iônica móvel.
Tabela I
Distribuição típica de íons dentro e fora das células vivas
(concentrações
em mM)
Músculo Esquelético
de Vertebrado
Axônio (de neurônio)
da Lula
Íon
Intracelular
(mM)
Extracelula
r (mM)
Potencial de
Nernst (mV)
400
20
- 75
155
4
- 98
Na
+
50
440
+ 55
12
145
+ 67
Cl
-
52
560
- 60
4,2
123
- 90
Ânion nãodifusível
385
-
-
-
-*
0,4
10
+81
1,5
+ 129
+
K
++
Ca
*
Intracelular Extracelular
(mM)
(mM)
-
**
-7
10 M
Potencial de
Nernst (mV)
Fontes: Shepherd, 1994; Kandel et al., 1999; Hille, 2001. (*) Não calculável pela equação de Nernst, pois não é difusível;
(**) dado não localizado, mas que pode ser assumido como semelhante ao medido no axônio de lula para os efeitos deste
capítulo. Alguns valores são, na verdade, estimativas baseadas na eletroneutralidade entre cátions e ânions. Fica evidente
também que estas distribuições não asseguram o equilíbrio osmótico entre o interior dessas células e o meio externo.
excedente de cargas negativas internas (as
proteínas
aniônicas)
distribuem-se
próximas à membrana em sua face
citoplasmática, e as cargas positivas que
se difundiram para fora (os íons K+), por
sua vez, distribuem-se próximas à
A
MEMBRANA
PLASMÁTICA,
PALCO CENTRAL DA BIOELETRICIDADE - A Figura 7b mostra, em maior
detalhe, como efetivamente se distribuem
as cargas dentro e fora da célula nãoexcitável em seu repouso elétrico: o
14
membrana em sua face extracelular. A
negatividade interna exibida pela célula
(seu potencial de repouso) é causado por
este excedente de cargas negativas
internas não-difusíveis, que não está
“neutralizado” uma vez que as cargas
positivas que o fariam saíram da célula
obedecendo à lei de Fick. Os íons
potássio, únicos para os quais há canais
de vazamento na glia, difundiram-se até
estabelecer-se
um
equilíbrio
eletroquímico de Gibbs-Donnan, que já
explicamos acima. Porém, mesmo saindo
da célula, as proteínas aniônicas
confinadas do lado de dentro da
membrana continuam exercendo alguma
atração eletrostática sobre este excedente
externo de íons K+, fazendo com que não
se afaste muito da membrana. Estes íons,
então, ficam distribuídos nas proximidades dela, como que formando uma
espécie de “névoa” de cargas.
Olhada em perspectiva (Figura
7b), isto confere à membrana plasmática
as propriedades de um capacitor elétrico,
que (a) retém cargas opostas frente a
frente (b) separadas por um material
dielétrico (isolante), porém (c) atraídas
mutuamente por seus campos elétricos.
Estes campos elétricos, inclusive, são de
grande intensidade, pois a membrana,
apesar de isolante, é pouco espessa (cerca
de 20nm), e convém ter sempre isto em
mente quando pensamos no que são
capazes de fazer as moléculas que
integram o mosaico fluido das
biomembranas 25. A principal propriedade
de um capacitor é a de que ele funciona
com uma reservatório de cargas elétricas,
prontas para serem disponibilizadas e
realizar trabalho: de fato, o gradiente
assimétrico
de
cargas
elétricas
estabelecido pode mobilizar outras cargas
de diferentes formas. Por exemplo, no
caso do potencial de ação (que
estudaremos na próxima seção), este
gradiente impulsionará, em parte, a entrada brusca e maciça de íons sódio para o
interior da célula, despolarizando-a.
A membrana plasmática está,
portanto, no centro dos principais eventos
causadores dos potenciais elétricos de
repouso e de ação. A Figura 7b também
sugere outra consequência importante
desta membrana como “palco”: em cada
um dos compartimentos a maioria das
cargas elétricas tem alguma carga oposta
em suas vizinhanças, de modo que o
grosso do compartimento é eletroneutro.
Voltagens como a da glia (-75mV) não
são desprezíveis, mas é notável que
possam ser geradas através das
membranas
celulares
mediante
a
mobilização de tão pequeno excedente de
cargas26, atestando a grande economia de
recursos deste processo biológico,
característica que certamente ajudou a
selecioná-la ao longo da evolução da
vida.
25
AS CÉLULAS EXCITÁVEIS SÃO
PERMEÁVEIS A MAIS DE UM ÍON
– As células excitáveis (capazes de
realizar potenciais de ação) - como os
neurônios, as células musculares e as
V – O Potencial de Repouso
das células excitáveis
Isso quer dizer que todos os lipídios bem como
todas as proteínas intramembrana estão imersas
em um forte campo elétrico. Como várias dessas
moléculas possuem cargas elétricas – as proteínas,
principalmente – é fácil entender que seu
comportamento será influenciado por este campo
elétrico. Esta propriedade é decisiva para
compreendermos a dinâmica dos chamados canais
com portão dependentes de voltagem, que
estudaremos na seção VI – Potencial de Ação.
26
A rigor, não mais que algumas dezenas de
milhares de íons trocam de lado no processo.
15
Na+ é mais permeável através da
membrana e (b) como está mais
concentrado fora da célula, ele tenderá a
entrar na célula. Parte das cargas
positivas (K+) que saíram deixando de
“neutralizar” proteínas aniônicas do
citoplasma, será “substituída” por cargas
igualmente positivas 27, os íons Na+, e,
deste modo, o citoplasma não ficará tão
negativo... em consequência, mais íons
K+ poderão sair. O processo se repetiria
iterativamente, como que “erodindo” os
gradientes iônicos, até que, com o passar
do tempo, as concentrações de K+
ficariam iguais dentro e fora, em um
simulacro
de
equilíbrio
químico
verdadeiro, situação em que a equação de
Nernst preveria V=0 (ver Figura 5b).
Neste caso, com gradientes nulos, a DDP
entre os compartimentos também seria
zero, e o potencial de repouso
desapareceria.
Como não vemos este tipo de
“erosão”
dos
gradientes
iônicos
ocorrendo
nos
neurônios,
somos
obrigados a reconhecer que algum outro
processo está atuando no sentido de
manter os gradientes estáveis, constantes.
Este processo, ao contrário do que
observamos nas células não-excitáveis,
não poderá dar-se espontaneamente, pois
deixado fluir livremente, o que acontecerá
é a “erosão” acima descrita. Deverá ser,
portanto, um processo ativo, com gasto de
energia.
endócrinas
são
caracterizadas
primariamente por serem permeáveis a
mais de um íon. Nelas, além do K+,
também o Na+ e o Cl- passam pela
membrana através de canais seletivos
próprios para cada tipo. O que vai
diferenciá-los é apenas a taxa de
vazamento que cada íon exibirá, ou seja,
sua permeabilidade, fator que é
determinado pelo número de canais
disponíveis: quanto mais portas de saída,
mais “fácil” será para um íon “vazar”.
Nestas células, apesar do cenário mais
complicado que no caso da glia, o K+
ainda é o principal íon difusível, uma vez
que tem a maior permeabilidade, e, como
está mais concentrado dentro das células,
tende a sair através de seus canais de
vazamento da mesma forma que faz nas
células não-excitáveis. A Tabela II,
abaixo, mostra o perfil de permabilidades
destes três íons:
Tabela II
Permeabilidade relativa dos íons:
repouso elétrico dos neurônios
+
Espécie iônica
K
Permeabilidade
1
+
-
Na
Cl
0,04
0,45
(repouso)
O POTENCIAL DE REPOUSO DAS
CÉLULAS EXCITÁVEIS É UMA
SITUAÇÃO DE NÃO-EQUILÍBRIO
PORQUE HÁ MAIS DE UM ÍON
DIFUSÍVEL. O problema é que em
sendo permeável também ao sódio, as
células nervosas jamais alcançarão
qualquer tipo de equilíbrio eletroquímico.
Explicamos: o K+ sai da célula e tende ao
já descrito equilíbrio eletroquímico de
Gibbs-Donnan; porém, (a) como o íon
A BOMBA Na+,K+-ATPase É O
CARREADOR ATIVO QUE MANTÉM OS GRADIENTES IÔNICOS
NO POTENCIAL DE REPOUSO DOS
NEURÔNIOS.
Quem faz isso é a
Bomba
Sódio-Potássio
ATPase,
27
Os íons sódio e potássio, apesar do número
atômico e da massa atômica diferentes, têm,
ambos, a mesmíssima carga elétrica +1, ou seja,
do ponto de vista elétrico são indistingüíveis entre
si.
16
o resultado final é muito parecido com
aquele mostrad na Figura 7b e valem as
mesmas idéias ali mostradas: (a) o
pequeno excedente de cargas iônicas de
cada lado da membrana concentra-se nas
proximidades dela, dentro (PAND) e fora
(K+), (b) a maior parte do volume de cada
compartimento
é,
grosso
modo,
eletroneutra, e (c) tudo isto é produzido
de forma muito econômica, com a
mobilização de relativamente poucas
cargas.
descoberta em 1957 por Jens Skou (que
lhe deu o prêmio Nobel de química de
1997). Esta complexa estrutura proteica
localizada nas membranas de quase todas
a células vivas é um carreador de
transporte ativo (ver item II, acima).
Recordemo-nos
que
“ativo”,
em
linguagem
biológica,
significa
envolvendo gasto de ATP 28. Desta forma,
este carreador liga-se a 3 íons Na+ na face
citoplasmática (além do ATP, é claro), e 2
íons K+ na face extracelular; quando o
ATP é hidrolisado em ADP e Pi (fosfato
inorgânico), a energia química é liberada,
e o carreador sofre uma extensa mudança
conformacional que carreia os íons
citoplasmáticos
para
fora,
e,
simultaneamente, os íons extracelulares
para dentro da célula (Figura 8). Note-se
que todos os cinco íons foram
transportados contra seus gradientes
químicos, isto é, foram levados do
compartimento em que estão menos para
o em que estão mais concentrados,
situação termodinamicamente impossível
de ocorrer espontaneamente, daí a
necessidade de ser um processo realizado
ativamente.
A Figura 9 mostra uma visão geral
de todos os componentes do potencial de
repouso das células excitáveis, ou seja,
(a) os três íons (K+, Na+ e Cl-) com suas
diferentes permeabilidades (tabela II), (b)
as proteínas aniônicas não-difusíveis
junto à face citoplasmática da membrana
(PAND, na figura), e (c) as bombas
Na+,K+-ATPase,
que
mantêm
os
gradientes iônicos. Apesar de não ser uma
situação de real equilíbrio eletroquímico,
QUEM É O PRINCIPAL RESPONSÁVEL PELO POTENCIAL DE
REPOUSO
DOS
NEURÔNIOS,
AFINAL? Se o potencial de repouso
(PR) emerge da distribuição assimétrica
dos íons dentro e fora da célula, é fácil
ver que a própria bomba sódio-potássio
contribui para essa DDP já que sua
estequiometria envolve a retirada de 3
cargas positivas e a reposição de apenas
2; a cada ciclo da bomba, a célula ficará
um pouco mais negativa do lado de
dentro (função eletrogênica da bomba).
Significa isto dizer que a bomba é o
principal responsável pela manutenção do
potencial de repouso dos neurônios? Na
verdade, não, pois, como vimos, sua
causa é muito parecida com a do
potencial de repouso de células nãoexcitáveis, ou seja, o vazamento do K+
rumo ao seu equilíbrio de Gibbs-Donnan
(com seu consequente potencial V de
Nernst); ocorre que como também há
permeabilidade para o Na+, este íon se
difunde através da membrana no sentido
contrário daquele e acaba fazendo as
vezes do K+ no citoplasma (já que do
ponto de vista elétrico, são idênticos).
Esta situação de um equilíbrio “frustrado”
é, na verdade, um não-equilíbrio, que,
como vimos, se não contraposto
ativamente (pelas bombas), desorganizará
completamente os gradientes iônicos.
Ainda assim, é o K+ principal agente
28
ATP: adenosina 5’-trifosfato, molécula
descoberta por Lohman em 1929, armazena e
transporta energia química livre em duas ligações
fosfato de alta energia, recuperável mediante sua
hidrólise. O mecanismo de síntese do ATP foi
decifrado por Paul Boyer e John Walker, que
dividiram o prêmio Nobel de química com J. Skou
em 1997.
17
do cloreto os índices e e i aparecem
trocados, o que dá conta da carga
(negativa) deste íon.
causador deste potencial fora-deequilíbrio dos neurônios, uma vez que
ainda é o íon mais permeável (como
mostra a tabela II, o K+ chega a ser 25
vezes mais permeável que o Na+ no
repouso elétrico destas células): quem é
mais permeável, comanda o processo.
NAS CÉLULAS EXCITÁVEIS SÃO
OS ÍONS CLORETO QUE SE
DISTRIBUEM PASSIVAMENTE –
Dissemos que os íons Cl- eram também
permeáveis através da membrana
utilizando canais específicos (com cargas
intracanal positivas) e que sua
contribuição precisa ser leva em conta no
cálculo do PR mediante a equação GHK,
mas o que fazem este íons, afinal? Estes
íons tendem a entrar passivamente por
seus canais de vazamento seguindo seu
gradiente químico, mas, como o interior
da célula é negativo, eles sofrerão
repulsão eletrostática. A rigor, as
concentrações de Cl- dentro e fora da
célula serão determinadas por um
equilíbrio eletroquímico de GibbsDonnan que é `simplesmente uma versão
às avessas do mesmo equilíbrio exibido
pelo potássio nas células gliais: este íon,
portanto, distribui-se passivamente em
função do perfil elétrico definido, em
última instância, pelos outros dois íons
permeáveis. Como está em equilíbrio,
sempre que suas concentração variar,
voltará rápida e espontaneamente aos
valores mostradas na tabela I. Teria no
máximo
um
papel
coadjuvante
“tamponando” rapidamente flutuações
que ocorressem no PR destas células.
Apesar de serem os íons
diferencialmente permeáveis os principais
causadores do PR das células excitáveis
(como prova a equação GHK), não está
errado dizer que este papel é feito
predominantemente pelos íons sobre os
quais a bomba ATPase atua ativamente
(i.e., o K+ e o Na+). Em células que
possuem transporte ativo de cloreto30, por
A EQUAÇÃO GHK CALCULA O
POTENCIAL
ELETROQUÍMICO
GERADO POR TRÊS TIPOS DE
ÍONS DIFUSÍVEIS ASSIMETRICAMENTE DISTRIBUÍDOS – Então
podemos calcular o valor do potencial de
repouso com a equação de Nernst? Na
verdade, não, porque muito embora o K+
domine ao ser o mais permeável, ele não
é o único íon a passar pela membrana e
isto deve ser levado em consideração no
cálculo do PR. A equação de GoldmanHodgkin-Katz 29 (2) é mais completa pois
contempla os três íons e suas diferentes
permeabilidades:
+
+
-
RT
PK[K ]e + PNa[Na ]e + PCl[Cl ]i
VGHK = ---- .ln (----------------------------------------)
+
+
F
PK[K ]i + PNa[Na ]i + PCl[Cl ]e
(2)
onde os termos têm o mesmo significado
que na equação (1): R é a constante
universal dos gases ideais (8,314570 J K-1
mol-1), T a temperatura em graus Kelvin,
e F a constante de Faraday (96,485 C
mol-1). Dentro do logaritmo natural
aparecem as concentrações extra (e) e
intracelular (i) de cada íon, cada qual
ponderada (multiplicada) por sua
permeabilidade relativa P (ver Tabela II).
Notem que onde aparece a concentração
29
E equação GHK foi derivada a partir dos
estudos em torno da “teoria do campo constante”
realizados por Goldman (1943) e Hodgkin e Katz
(1949), sendo, na verdade, uma generalização da
equação de Nernst, o que pode ser comprovado
simplesmente fazendo-se PNa=PK=0.
30
Para o cloreto, existem diversos tipos de
transporte ativo “secundário” (aqueles em que o
18
exemplo, uma vez que este íon estaria
sendo ativamente bombeado, ele também
poderia ser considerado causa do PR ali
registrado.
que pelos canais de vazamento para o
sódio, o potássio, se passar, terá de fazêlo fluindo na direção oposta à do fluxo do
sódio – em “contrafluxo”, que entra na
célula seguindo seu gradiente químico, o
que não garante grande permeabilidade a
ele por esta via alternativa 33.
PERMEABILIDADE DIFERENCIAL:
QUAL O TAMANHO DOS ÍONS
HIDRATADOS DE K+ E DE Na+ ?
Não esqueçamos que os íons que se
difundem no meio aquoso estão, em
função da solvatação que os suspende em
solução, envolvidos por algumas camadas
de moléculas de água 31. Isso implica que
seu tamanho real em solução é sempre
maior que o do simples átomo ionizado
“nú”, e o tamanho da luz do canal deve
adequar-se a isto. Deste modo, os canais
de vazamento do K+ são permeáveis
apenas a este íon. O íon Cl-, apesar de ter
o mesmo tamanho que o K+ quando
hidratado, não passa por este canal porque
as
cargas
“seletoras”
intracanal
(negativas, no caso) oferecem resistência
por repulsão eletrostática.
Já os canais de vazamento do Na+
(que também têm cargas “seletoras”
intracanal negativas) geralmente são
também permeáveis ao K+, o que se deve
ao fato de o íon hidratado de Na+ ser
maior que o do K+ também hidratado, e
onde passa um, passa o outro 32. É claro
VI – Potenciais de Ação: a
sinalização
propagada
nos
neurônios
A pergunta natural que se segue é:
por que um sistema tão complexo de
causação do PR nas células excitáveis? Se
o objetivo é apenas “possuir um PR”,
bem, a multidão de células não-excitáveis
também os têm, mas de forma muito mais
simples e econômica, mediante um
equilíbrio eletroquímico e sem qualquer
custo energético (ATP) para a célula. A
opção por um sistema mais complexo e
custoso deve ter algo a ver com o fato de
apenas estas células conseguirem fazer
potenciais de ação.
DEFININDO ALGUNS TERMOS Sempre que uma célula sai da voltagem
(negativa) de repouso elétrico passando a
valores menos negativos (inclusive
rumando a valores positivos), dizemos
que a célula está sendo despolarizada;
quando, pelo contrário, a célula fica mais
negativa que no repouso, dizemos que
ATP não é processado diretamente na própria
molécula carreadora), mas a comprovação de uma
verdadeira bomba Cl--ATPase ainda é controversa
(Gerencser & Zhang, 2003).
31
Cada íon possui uma carga elétrica inteira (de
1,6.10-19 C). Esta carga, positiva no caso do
potássio e sódio, atrai eletrostaticamente a porção
negativa das moléculas de água, que, como vimos,
são polares (logo, formam dipolos elétricos).
Como a carga elétrica de cada pólo da molécula
de água é muito pequena (não é uma carga inteira)
cada íon consegue atrair muitas moléculas de água
simultaneamente, criando, assim, uma verdadeira
esfera de hidratação ao seu redor.
32
Este fato é surpreendente se considerarmos que
o átomo do sódio (Z=11, A=23) é, isoladamente,
menor que o do potássio (Z=19, A=39); mas se
lembrarmos que, apesar dessa diferença, ambos
têm a mesmíssima carga elétrica +1, o que vai
determinar quantas moléculas de água serão
“atraídas” para envolver o íon em solução será o
raio do átomo em questão, pois a força elétrica,
como bem sabemos, é inversamente proporcional
ao quadrado da distância (Fe ~ q1.q2/r2): assim, o
átomo pequeno terá a maior esfera de hidratação,
e o grande, a menor.
33
Este movimento em “contrafluxo” também
contribui para a seletividade do canal ao íon Na+,
pois como são maiores (hidratados) não dão muita
chance aos menores, como o K+, que acabam
literalmente “atropelados”.
19
está hiperpolarizada34. A despolarização
é, de fato, a redução progressiva da
separação de cargas que era mantida no
repouso elétrico do neurônio; já a
hiperpolarização corresponde a um
aumento na separação de cargas 35.
Podemos promover artificialmente a
variação da voltagem de uma célula
estimulando-a eletricamente (o que a
despolariza) ou, se quisermos ter um
controle mais preciso da resposta
neuronal, injetando cargas elétricas em
seu
citoplasma
mediante
36
microiontoforese .
Para registrarmos potenciais de
ação (PA), temos de colocar eletrodos
junto ao (externo) ou dentro do (interno)
axônio do neurônio desejado, pois é nesta
porção da célula que os PA se propagam,
geralmente indo do soma às regiões
telodêndricas, isto é, aos terminais, que
podem ser sinápticos (sobre outras
células) ou livres. Os eletrodos
intracelulares farão registros mais claros
e de maior amplitude, como o mostrado
na Figura 1037.
Como axônios são pequenos e
delicados (e os V medidos, de valor
reduzido), não é difícil entender porque
os primeiros estudos, entre os anos de
1930-1950, foram todos realizados em
axônios de neurônios de lula gigante (ver
Figura 12), invertebrado marinho que
possui um dos maiores neurônios
conhecidos no reino animal (daí não ser
exagero chamá-los de “gigantes”). Alguns
desses
axônios
gigantes
são
macroscópicos, chegando a medir quase
um milímetro de diâmetro, dimensões que
contornam
quaisquer
dificuldades
técnicas advindas do tamanho e da
amplificação eletrônica do sinal (ver
detalhe na Figura 12).
SE DESPOLARIZARMOS UM NEURÔNIO, PODEREMOS OU NÃO TER
UM POTENCIAL DE AÇÃO - Se
promovermos a despolarização de um
neurônio por uma das técnicas acima
mencionadas, observaremos que a V - que
parte de valores típicos do repouso
elétrico (no exemplo da figura, -70mV) –
muda para valores menos negativos. Se as
despolarizações forem de pouca monta, a
ascenção da curva se dará até um certo
ponto, e a V logo retornará aos valores do
repouso (repolarização). A Figura 10
mostra dois desses pequenos picos de
despolarização (“disparos frustrados”).
Note-se que, neles, a ascenção
(despolarização) se dá mais ou menos no
mesmo
tempo
que
a
descida
(repolarização), dando a estas curvas um
34
A célula que está exatamente no potencial de
repouso poderia ser denominada “polarizada”,
mas essa terminologia nunca é, na realidade,
empregada.
35
Enquanto despolarizações são capazes de
promover PA no neurônio, hiperpolarizações
somente produzem PEs, que são respostas
passivas que, como dissemos, afastam a célula do
seu limiar de disparo, ou seja, hiperpolarizações
não produzem respostras celulares ativas.
36
Técnica em que injeção de cargas é feita por
um microeletrodo de vidro muito parecido ao
descrito na III1, onde o fio metálico é usado não
para registrar, mas para aplicar uma DDP que o
deixa com uma carga positiva ou negativa; deste
modo, o microeletrodo “expulsa” pela sua
extremidade aberta (ver figura 4b) – por repulsão
eletrostática – os íons de mesma carga, injetandoos no citoplasma. Se o eletrodo ficar positivo,
injetará cargas positivas (K+, por exemplo), que
farão a célula despolarizar; se ficar negativo,
injetará cargas negativas (como o Cl-), que
hiperpolarizarão a célula.
37
As curvas de registro de PA serão diferentes
conforme o eletrodo seja intra ou extracelular,
pela simples razão de que cada um parte de uma
voltagem diferente (e de sinal oposto) e muda para
a outra, retornando a seguir, para os valores de
repouso. Uma medição extracelular do PA
mostrado na figura 10 seria como uma imagem
invertida do mesmo, com amplitude menor.
20
surge, tem sempre a mesma amplitude
(para uma mesma célula) e exibe suas
diferentes fases (ver diagrama abaixo)
sempre com a mesma duração. O pico de
ultrapassagem é o momento (breve) em
que o potencial da membrana “ultrapassa”
o limite da V=0 e fica momentaneamente
positivo. A curva é evidentemente
assimétrica,
com
uma
ascenção
(despolarização) rápida e uma descida
(repolarização) mais lenta e com certas
peculiaridades, como o fato de que, antes
de atingir o repouso, ficar hiperpolarizado
por algum tempo.
As fases do PA (com suas
subfases) mostradas na figura, são, então,
as seguintes:
aspecto simétrico. Estes picos são,
inclusive, relativamente lentos, e são, na
verdade, respostas passivas da membrana
chamadas de potenciais eletrotônicos (por
vezes
denominados
potenciais
sinápticos). A intensidade (amplitude)
destes PE é proporcional à intensidade
dos pulsos de corrente que os criaram,
isto é, eles nem sempre são idênticos
entre si numa mesma célula.
Quando, porém, a despolarização
produzida for elevada o suficiente a ponto
de ultrapassar um certo valor (específico
de cada célula) denominado limiar (ver
seção VI), o eletrodo intracelular
registrará um verdadeiro PA, semelhante
ao mostrado na Figura 10. O PA, quando
V < limiar Despolarização parcial: Potencial Eletrotônico (Sináptico)
Despolarização
V > limiar Despolarização completa: Potencial de Ação
pico de ultrapassagem (V>0)
Potencial Pós-Despolarização
Repolarização
Potencial Pós-Hiperpolarização
A fase de repolarização do PA é
mais complexa e demorada que a de
despolarização (daí a assimetria) e inclui
(a) uma demora em retornar ao valor do
repouso – o chamado potencial pósdespolarização38, e (b) uma fase em que
fica temporariamente mais negativa que o
repouso
–
o
potencial
póshiperpolarização39.
NO PERÍODO REFRATÁRIO UM
SEGUNDO PA NÃO PODE SER
DISPARADO DURANTE O PRIMEIRO - Paralelamente ao registro do PA,
observamos o que chamamos de Período
Refratário, uma fase em que a célula
exibe menor excitabilidade: se tentarmos
forçar um segundo PA enquanto o
primeiro ainda estiver em andamento,
nada acontecerá. O período refratário
inicia-se logo após o estímulo que
provoca a despolarização que leva ao PA,
e encerra-se no meio do potencial póshiperpolarização. Não se trata, porém, de
um limitante muito rigoroso, pois ele
38
Que antigamente se chamada de “pós-potencial
negativo”, nomenclatura hoje em desuso.
39
Este, por sua vez, denominava-se antigamente
“pós-potencial positivo”, nomenclatura não mais
usada. “Positivo” referia-se a particularidades da
montagem experimental que fazia com que estes
valores aparecessem (arbitrariamente) acima de
zero.
21
fisiológica do PA passava por fluxos
iônicos cambiantes.
No repouso elétrico, em particular
no caso das células excitáveis (que são
mantidas assim com gasto de ATP), os
três íons podem atravessar a membrana
através de seus canais de vazamento, mas
suas permeabilidades estão ajustadas para
que o K+ ainda seja o íon dominante,
saindo da célula; o Na+, que entra na
célula, o faz em muito menor taxa que o
K sai (ver tabela II), e o resultado disso é
que as células excitáveis nunca atingem
um equilíbrio eletroquímico de GibbsDonnan. Pelo contrário, ficam “fora do
equilíbrio”, mantidas ativamente em um
estado que se denomina estado
estacionário, que pode parecer-se a um
equilíbrio termodinâmico, mas não é. O
terceiro íon, o Cl-, que não é transportado
ativamente contra seu gradiente químico,
distribui-se passivamente.
Neste cenário, o Na+ “represado”
fora da célula tem não um, mas dois bons
motivos para entrar na célula se puder
fazê-lo: entraria (a) seguindo seu
gradiente químico, pois está menos
concentrado no citoplasma, e, como se
não bastasse, entraria (b) seguindo seu
gradiente elétrico, pois o interior da célula
é, no repouso, negativo do lado de dentro.
Ou seja, o Na+ tem uma grande “avidez”
por entrar na célula, e, se puder fazê-lo,
entrará
causando
uma
extensa
despolarização, que pode ou não
promover um PA dependendo do limiar
da célula. Resta saber como um íon 25
vezes menos permeável que o K+ no PR
pode passar, subitamente, a ser muito
mais permeável (Tabela III, a seguir).
também se divide em duas subfases: o
período refratário absoluto, durante o
qual nenhum tipo de estímulo consegue
produzir um segundo evento de PA; a
seguir, vem o período refratário relativo,
etapa em que um novo PA pode ser
provocado se a intensidade do estímulo
despolarizante for mais alta que a
normalmente usada para causar um PA, e
este segundo evento se “acumula” sobre o
anterior.
O POTENCIAL DE AÇÃO É UM
FENÔMENO TUDO-OU-NADA – Pelo
menos dois motivos podem ser elencados
até aqui para justificar a caracterização do
PA como fenômeno “tudo-ou-nada”. O
primeiro é o fato de ele só se dar quando
a despolarização ultrapassa o valor do
limiar, caso contrário, não acontece (“é
tudo, ou nada”). O segundo motivo é
sugerido pelo período refratário, a
resistência do neurônio em iniciar um
segundo evento após iniciado o primeiro,
sugere que cada PA, de alguma forma,
consome todos os recursos disponíveis na
célula, não podendo ser estimulado
novamente enquanto o primeiro evento
não se concluir.
O QUE CAUSA O PA? Como dissemos
acima, as células excitáveis utilizam um
sistema mais complexo e custoso para
estabelecer seu PR, e a razão disso é que,
assim fazendo-o, estas células estão em
total prontidão para mudar seu potencial.
No final da seção IV discutimos a
membrana “polarizada” como um
capacitor pronto para fornecer energia
para deslocar cargas de lado a lado. Em
1938, K. S. Cole e H. J. Curtis
registraram, em um osciloscópio, um
potencial de ação sobreposto a um
registro (simultâneo) de condutância
elétrica através da membrana, mostrando
pela primeira vez que a explicação
OS CANAIS COM PORTÃO PODEM
SER ATIVADOS E CAUSAR A
VARIAÇÃO
DO
POTENCIAL
ELÉTRICO DAS CÉLULAS – Se um
grande número de canais adicionais for
disponibilizado, por exemplo, ao íon Na+,
22
quantidade de CCPs seletivos para o K+,
ambos aguardando em “prontidão” para
serem recrutados coletivamente e
produzir o PA. A Figura 11a mostra
esquematicamente algumas diferenças
entre estes dois CCPs, com destaque para
o fato de que o CCP do Na+ tem dois
portões (o 1o chamado de portão de
ativação, e o 2o, de inativação), enquanto
que o do K+ só tem um 41.
ele poderá entrar e fará exatamente o que
mostra a Figura 10 na fase de
despolarização do potencail de ação. Isto
é exatamente o que fazem os chamados
canais com portão (gated channels), ou
CCPs. Os CCPs envolvidos no PA podem
ser abertos por dois tipos básicos de
estímulo, (a) a variação da voltagem
transmembrana, ou (b) a ligação de uma
molécula transmissora, respectivamente
denominados,
canais
com
portão
dependentes de voltagem e canais com
portão ativados por ligante 40.
Geralmente esse último tipo de CCP é o
responsável pelos potenciais sinápticos
gerados na árvore dendrítica do neurônio,
enquanto que o primeiro tipo de CCP
ajudará a propagar o potencial de ação ao
longo da membrana axonal.
A CURVA DO POTENCIAL DE
AÇÃO É DETERMINADA PELA
CINÉTICA INDIVIDUAL DE CADA
TIPO DE CCP – Outra diferença
importante entre estes dois CCPs é que o
CCP do Na+ é rápido para abrir (logo,
abre primeiro), enquanto que o CCP do
K+ é lento. A ativação destes dois tipos de
CCPs em momentos subsequentes,
portanto, cria uma verdadeira coreografia
temporal que é ilustrada pela curva da
Figura 10 (mais dados da Tabela IV, a
seguir).
O CCP do Na+ também se inativa
rapidamente fechando seu portão de
inativação logo após ter aberto o de
ativação; isso garante que não fique
aberto muito tempo, pois já vimos quão
“ávido” para entrar na célula é o íon Na+.
O preço desta rapidez é que ficará inativo
por um certo tempo, geralmente bem
maior que o tempo que ficou aberto, até
ser reengatilhado (o que só pode ser feito
movendo-se os dois portões na ordem
inversa).
Assim, no início do PA, a
permeabilidade do Na+ aumenta cerca de
500 vezes de forma súbita, para então
Tabela III
Variação da permeabilidade dos íons
no potencial de ação dos neurônios
Espécie iônica
K
Pot. Repouso
+
+
-
Na
Cl
1
0,04
0,45
Despolarização
1
20
0,45
Repolarização
100?
0,04
0,45
Volta ao repouso
1
0,04
0,45
Nas membranas das células
excitáveis há um grande número de CCPs
seletivos para o Na+, e também boa
41
Foge ao escopo deste capítulo detalhar qual a
real natureza destes “portões”. As evidências
sugerem canais bastante parecidos com os de
vazamento, mas dotados de certos estados
conformacionais “fechados” intreconversíveis que
respondem aos estímulos de abertura. A
representação da figura 11a é, de fato, altamente
esquemática.
40
Estes são os dois tipos mais importantes para
compreender o PA, mas não são os únicos que
existem. Por exemplo, nas células sensoriais
existem canais com portão ativáveis por outros
estímulos, por exemplo, estímulo mecânico.
23
rapidamente voltar ao valor de repouso
(pela inativação dos CCPs).
A
+
permeabilidade do K leva mais tempo
para aumentar, e só está plenamente
disponível quando a do Na+ já voltou ao
“normal”. Os valores estimados das
permeabilidades relativas estão mostrados
na Tabela III, acima. E os valores de
“volta ao repouso” só são alcançados
quando findo o potencial póshiperpolarização.
Tabela IV
+
Diferenças entre os CCPs de Na e de K
referido, adentraram o citoplasma. A
repolarização, por sua vez, tem duas
etapas: a primeira é rápida, com a V
retornando rapidamente do pico de
ultrapassagem para valores negativos, o
que se explica pelo término da abertura
dos CCPs de K+, que, saindo, ajudam a
repolarizar rapidamente a membrana; a
segunda é bem mais lenta, e se subdivide
nos já mencionados potenciais pósdespolarização (a demora em chegar à V
do repouso) e pós-hiperpolarização (o
período em que a V fica hiperpolarizada.
Ambas subfases caracterizam-se pela
demora em retornar ao PR, e podem ser
explicadas pela mesma lentidão intrínseca
ao CCP de K+ (ver Tabela IV, acima). É
importante recordar mais uma coisa: após
a abertura dos dois tipos de CCP, os
gradientes iônicos estarão completamente
desorganizados, o que exigirá o
bombeamento ativo de ambos, o que
implica em um aumento da demanda
sobre as bombas Na+,K+-ATPase préexistentes 42. A “demora”, conhecida
como
potencial
pós-despolarização,
portanto, explica-se pelo fato de os CCP
de K+ estarem abertos e serem bastante
lentos para se fechar (mais que para
abrir), de modo que o excesso de íons K+
que pode escapar conflita com o esforço
feito pelas bombas Na+,K+-ATPases, ou
seja, enquanto não estiverem totalmente
fechados,
estes
CCPs
atuarão
“desfazendo” parte da reconstrução dos
gradientes iônicos pelas bombas. A
lentidão em fechar-se é tal que, inclusive,
mesmo após as bombas terem conseguido
+
CCP do Na+
CCP do K+
2 portões
1 portão
Rápido para
abrir-se
Lento para abrir-se /
mais lento p/fechar-se
Inativa-se
Não se inativa
Precisa
reengatilhar-se
Apenas fecha-se
( mais lento )
( processo lento )
Conhecendo-se
estes
canais
dinâmicos,
podemos
construir
a
explicação das fases do PA em função de
suas características: A Figura 11b mostra
a cinética diferenciada de cada um destes
CCPs, deixando claro que a fase de
despolarização é causada basicamente
pelo fluxo entrante de Na+, enquanto que
a repolarização deve-se ao fluxo
(adicional) de saída de K+. Como eles se
abrem em tempos diferentes, isso explica
cada etapa do PA. A ascenção
(despolarização) é rápida e dura enquanto
estiverem abertos os CCPs de Na+. O pico
de ultrapassagem se deve a um “excesso”
de íons Na+ que, no “entusiasmo”
42
Ao contrário de que muitos pensam, as bombas
não passam a “trabalhar mais” em função da
necessidade, sendo apenas recrutadas, pelos
próprios gradientes desorganizados, dentro de
uma população pré-existente de bombas que
estava em prontidão mas inoperante, em uma
versão da lei de ação de massas que governa o
recrutamento estequiométrico de enzimas
citoplasmáticas nas vias metabólicas.
24
trazer a membrana a um potencial igual
ao do repouso original, ainda restam
muitos CCPs de K+ abertos, o que explica
a hiperpolarização da última subfase da
repolarização
(potencial
póshiperpolarização).
sabemos sobre o funcionamento dos
CCPs dependentes de voltagem.
A compreensão mais detalhada
destes e outros CCPs dependentes de
voltagem (como os diversos tipos
existentes de canais para Cálcio, por
exemplo) precisou aguardar outro avanço
técnico, proposto por E. Neher e B.
Sakmann em 1976 (Nobéis de Fisiologia
de 1991): a técnica da fixação de
membrana, onde uma micropipeta
consegue (literalmente) “sugar” uma
pequena
extensão
da
membrana
plasmática que contém uns poucos CCPs
e, ali, controlá-la de forma semelhante ao
que se faz na fixação de voltagem (ou de
corrente), só que em muito menor escala.
Com alguma sorte, consegue-se isolar
canais
únicos
e
estudar
seu
comportamento individual (ver Figura
13),
evidenciando
sua
natureza
estocástica.
A COMPREENSÃO DOS CANAIS
IÔNICOS DEVE-SE AO ESFORÇO
DE GRANDES CIENTISTAS - As
Figuras 12 e 13 ilustram um pouco da
história da descoberta e compreensão do
papel destes canais com portão. O passochave foi a invenção do método de
fixação de voltagem por Kenneth Cole
(Figura 12) em 1946 (o mesmo que em
1938 medira o potencial de ação
juntamente
com
uma
variação
concomitante da condutância iônica,
abrindo caminho para as descobertas
posteriores). Com isso estava driblada a
dificuldade técnica de estudar os CCPs
dependentes de voltagem, pois o sistema,
com dois eletrodos, um dentro e outro
fora do axônio (da lula gigante, é claro),
permitia contrabalançar qualquer resposta
autoestimulada da membrana mantendo
os potenciais “fixados” em qualquer valor
desejado. Esta técnica está na raiz dos
trabalhos de Hodgkin e Huxley (Figura
12), que elaboraram um modelo teórico
para explicar o PA - o chamado modelo
HH – que propunha canais iônicos com
cinéticas diferentes e previa a forma exata
e a velocidade de propagação medidos do
PA; posteriormente, os dois, juntamente
com Bernard Katz (Figura 12), realizaram
uma série de experimentos decisivos que
comprovaram o completo acerto da
teoria, num dos grandes feitos da história
da ciência no século XX. Katz seguiria
seu caminho estudando as bases da
neurotransmissão química que ocorre na
extremidade do axônio percorrido com
um PA. O modelo de Hodgkin-Huxley é,
ainda hoje, a base de muito do que
DENDRITOS,
ESPINHOS
E
SINALIZAÇÃO LOCAL - Nas células
neurais reais, geralmente o potencial de
ação é iniciado no cone de implantação
do axônio, em uma região conhecida
como zona de gatilho, onde abundam os
CCPs de Na+ prontos para disparar (ver
Figura 16). É nesta região que o limiar é
atingido, e a decisão, tomada. Tal
computação analógica é feita mediante o
somatório
de
diversos
pequenos
potenciais sinápticos oriundos de
diferentes pontos da árvore dendrítica do
neurônio, que é onde são “coletadas” as
sinapses que vêm de milhares de outros
neurônios. A Figura 14 evidencia esta
organização polarizada (agora no sentido
funcional, não apenas elétrico) em que a
extremidade do soma / dendritos recebe
as “entradas”, computando seu somatório,
e a outra, do axônio / terminações, envia a
“saída”; as entradas são potenciais
sinápticos (eletrotônicos), de natureza
25
(digamos, o glutamato) são receptores
ionotrópicos
excitatórios,
pois
despolarizam a região pós-sináptica (o
mesmo acontece com CCPs de Ca++
ativados por ligante); por outro lado,
canais com portão para o Cl- ativados por
ligante (por exemplo, o GABA) são
receptores ionotrópicos inibitórios, pois
hiperpolarizam a região pós-sináptica
(aqui também ocorreria o mesmo se
fossem CCPs de K+ ativados por ligante)
44
.
passiva, e a saída, potenciais de ação,
ativos.
Em cada sinapse 43 sobre a árvore
dendrítica, a porção pós-sináptica,
posicionada
sobre
uma
estrutura
subcelular especializada chamada de
espinho dendrítico (Figura 15), o
potencial de ação chega e desencadeia
uma série de eventos neuroquímicos que
resultarão
em
sua
excitação
(despolarização)
ou
inibição
(hiperpolarização). Em suma, a chegada
do PA abre canais de cálcio dependentes
de voltagem na terminação (telodendro)
ou porção pré-sináptica. A entrada destes
cátions divalentes aciona diversas
respostas, entre elas, a mobilização e
exocitose de vesículas contendo os
quanta de neurotransmissores químicos
característicos daquele neurônio. Os
neurotransmisores, por sua vez, invadem
a fenda sináptica e atingem certos alvos
moleculares (pelos quais têm alta
afinidade) na porção pós-sináptica, os
chamados receptores. Os receptores
podem
ser,
ou
canais
iônicos
propriamente
ditos
(receptores
ionotrópicos),
ou
mediadores
de
transdução transmembrana sem nenhum
tipo de transporte em particular
(receptores metabotrópicos); ambos tipos,
porém, acabam por produzir – direta ou
indiretamente – uma variação no
potencial elétrico local nas proximidades
daquela sinapse. Se os receptores levarem
à despolarização local, são ditos
excitatórios; caso contrário, se a
hiperpolarizarem, são ditos inibitórios.
Por exemplo, canais com portão para o
Na+ ativados por neurotransmissor
INTEGRAÇÃO
NEURAL
PELA
PARTICIPAÇÃO COMPLEMENTAR
DE DOIS TIPOS DE POTENCIAIS,
OS PE E OS PA - Cada um destes
efeitos
–
despolarização
ou
hiperpolarização - se traduz em um
pequeno potencial passivo (eletrotônico)
que se propaga de forma decremental ao
longo da árvore dendrítica e do soma
neuronal até encontrar outro(s) e, com
ele(s), somar-se. Estes potenciais, como
já dissemos, também são chamados de
sinápticos e são um exemplo de
sinalização local, em contraposição à
sinalização propagada representada pelos
PA. Os PE, quanto mais longe tiverem de
deslocar-se, mais amplitude perderão pelo
caminho e menos chance terão de
contribuir à “somação” neural. A tabela
V, abaixo, resume estas várias
propriedades dos PE em contraposição às
dos PA. Não se trata de que um deles seja
a resposta “certa” (o PA), e a outra, sua
“mera ausência” (o PE), como alguns
livros-texto parecem sugerir quando
omitem a descrição dos PE: ambos os
tipos de potencial têm propriedades
importantíssimas que permitem exercer
43
As sinapses aqui descritas são todas sinapses
químicas. Não tratamos das chamadas sinapses
elétricas (junções comunicantes) que, a rigor,
fazem com que duas células adjascentes sejam
uma só do ponto de vista elétrico (compartilhando
100% dos seus fluxos iônicos) – o sincício, ainda
que sejam metabolicament independentes.
44
Os receptores metabotrópicos apenas disparam
cascatas de sinalização intracelulares (com seus
2os e 3os mensageiros) que indiretamente modulam
e favorecem (ou não) a abertura de determinados
CCP, ativados por ligante ou dependente de
voltagem.
26
grande porte, é necessário que exista um
fenômeno ultra-estável como este para
levar a informação de forma confiável de
uma extremidade a outra.
funções altamente especializadas na
porção neuronal onde surgem, funções
que inclusive se complementam.
Assim, os PE (ou potenciais
sinápticos),
que
se
propagam
passivamente na membrana, apesar da
desvantagem de serem decrementais, são
os únicos potenciais que podem (a)
codificar fidedignamente um sinal com
amplitude proporcional à intensidade do
mesmo, e (b) adicionar-se efetivamente a
outros potenciais semelhantes, e, desta
forma, tentar atingir o limiar de disparo
do neurônio, emprestando todo um
significado funcional a sua pequena
contribuição. Tudo isto é feito na porção
dendrítica/somática do neurônio (Figura
14), em particular nesta verdadeira
“floresta de antenas” que são os espinhos
dendríticos (Figura 15), ancoradores das
sinapses e sede dos principais eventos
plásticos relacionados com funções tão
nobres como aprendizado e memória 45.
Já os PA, a sinalização propagada,
ativa, não permitem aditividade, uma vez
que são “tudo-ou-nada”, nem servem para
codificar informação sensorial, pois a
amplitude do sinal é sempre a mesma
para um neurônio, independe da
intensidade do estímulo 46; esta
“desvantagem”, contudo, é seu trunfo,
pois, por suas propriedades, os PA são o
melhor tipo de sinal para viajar longas
distâncias sem perdas decrementais de
amplitude, o que comprometeria a
comunicação ao longo da célula. Como
axônios longos são uma constante para
integrar
respostas
sensoriais
e
comportamentos em animais de médio e
A PROPAGAÇÃO DO PA NO
AXÔNIO
É
UM
FENÔMENO
COLETIVO DOS CCPs – A Figura 16
mostra como se propaga um PA ao longo
de um axônio. Neste caso, o exemplo
mais simples de um axônio nãomielinizado, onde o PA tem de se
propagar ponto a ponto ao longo de toda a
superfície. Quando a zona de gatilho
integra o somatório de potenciais
sinápticos que ali chegaram e detecta que
ultrapassou-se o limiar de disparo da
célula, uma grande quantidade de CCPs
de Na+ abre-se iniciando uma verdadeira
cascata de auto-ativação ao longo do
axônio: a rigor, a abertura dos primeiros
CCPs deixa entrar localmente grande
quantidade de íons Na+, invertendo o
potencial da membrana naquela região;
em consequência, as linhas de indução do
campo elétrico existente entre as cargas
elétricas opostas internas e externas
mudam de sentido, e, como falamos no
final da seção IV, é inevitável que
quaisquer moléculas carregadas dentro da
membrana (como proteínas constituintes
de canais, por exemplo) e nas
proximidades dessa inversão do potencial
elétrico sejam influenciadas. Na verdade,
esse campo elétrico faz com que se abram
CCPs dependentes de voltagem nas
adjascências da membrana, promovendo a
despolarização nestas vizinhanças. O
processo se repete iterativamente,
sucessivamente, até que toda a superfície
crivada de CCPs dependentes de
voltagem
disponíveis
tenha
sido
percorrida. O sentido do PA será do soma
ao telodendro, pois inicia-se na zona
45
Uma excelente revisão deste tema encontra-se
em Lamprecht e LeDoux, 2004 (Nature Reviews
in Neuroscience, 5: 45-54).
46
Isto não quer dizer que não se possa codificar
informação utilizando-se PA: apenas terão de ser
códigos diferentes. Por exemplo, padrões
temporais de disparo, ou padrões espaciais, ou
combinações destes.
27
combinam: como a despolarização é
rápida, várias despolarizações só poderão
se “somar” se acontecerem dentro de uma
janela temporal restrita 49.
gatilho e normalmente prossegue rumo
aos terminais 47 (ver Figura 14).
O PA propaga-se ao longo do
axônio em um sentido apenas (dito
anterógrado), portanto. A razão pela qual
normalmente o PA não “anda para trás”
(nem retornando ao soma, nem
naturalmente “voltando” pelo axônio
rumo ao soma 48) é o próprio período
refratário de que falamos (Figura 16): os
CCPs
de
Na+
necessários
à
despolarização naquela direção estão
temporariamente indisponíveis para se
abrir novamente. Isto inclui tanto aqueles
canais que foram ativados pela passagem
de PEs decrementais, quanto os que
foram ativados pela passagem de um
verdadeiro PA não-decremental.
Fica claro que um único CCP não
pode explicar toda a dinâmica da cascata
de ativação auto-sustentada de uma célula
inteira: trata-se, na verdade, de um
fenômeno coletivo com CCPs. Além do
PA, outros fenômenos que só se pode
compreender considerando-se muitos
CCPs sendo recrutados em sequência,
incluem (a) o limiar de disparo do
neurônio, (b) o período refratário, (c) o
PA em platô (por exemplo, do músculo
cardíaco), a (d) acomodação de
membrana (somação temporal) e a (e)
somação espacial. Estes dois últimos, são
exemplos típicos de computações feitas
entre diferentes potenciais sinápticos em
tempos e/ou sobre distâncias diferentes, e
explicam muito do que fazem os
potenciais
sinápticos
quando
se
ANALOGIA DO PA COM O
“EFEITO DOMINÓ” - Mas o que se
propaga ao longo do axônio, afinal?
Correntes iônicas? Somos tentados a fazer
uma analogia com a condução de elétrons
ao longo de um condutor metálico. Nada
mais equivocado. Se lembrarmos que as
correntes iônicas se dão sempre através
da membrana, pelos CCP, o que está de
fato se propagando é uma perturbação em
cadeia, de caráter auto-sustentado, e não
uma corrente iônica “longitudinal”. A
abertura em sequência de novos canais
adjascentes
leva
o
PA
adiante
despolarizando seus arredores, o que abre
novos canais, o que despolariza a região
adjascente, o que por sua vez abre novos
canais mais adiante, e assim até percorrer
toda a superfície. O fenômeno propagante
lembra o efeito dominó, em que cada peça
só precisa ter energia para derrubar a peça
vizinha, e esta se encarregará da seguinte,
e assim por diante. Nenhuma peça precisa
ter “força” para derrubar todas as demais,
mas, mesmo assim, todas acabarão sendo
derrubadas, basta dar tempo ao tempo. Ou
seja, este fenômeno não pode ser
instantâneo, sempre levará algum tempo
para transcorrer, logo, terá uma certa
velocidade de condução 50 (ou de
propagação).
47
Algumas vezes, porém, detectam-se PAs que
“retornam” ao soma e ascendem pela árvore
dendrítica, modulando os diferentes CCPs
dependentes de
voltagem ali
presentes
(especialmente os diversos tipos de CCDVs canais de cálcio dependentes de voltagem) o que
interfere com a computação que ali será
executada.
48
Situação que, porém pode ser produzida
artificialmente, gerando os chamados PAs
retrógrados.
49
Quando isto não acontece, temos o fenômeno
da acomodação de membrana mesmo que o
sistema registre uma soma de potenciais capaz de
superar o limiar
50
A terminologia é importante: PAs são
“conduzidos” (ou “propagam-se”) ao longo dos
axônios, e não “transmitidos”. Transmissão é o
que fazem os neurotransmissores na fenda
sináptica.
28
correntes locais têm de avançar até o
próximo nodo (Figura 17). Mas continua
valendo a observação de que o PA não é
uma única corrente iônica longitudinal ao
longo do axônio, como se fosse uma
corrente elétrica ao longo de um fio
condutor.
O PA saltatório também se
propaga em um único sentido, pois vai
deixando a membrana para trás em
período refratário (Figura 16), mas tem
um preço menor a pagar que o PA “ponto
a ponto”, pois somente precisa de CCPs e
bombas (e ATP para alimentá-las) nos
nodos de Ranvier. Comparativamente,
axônios não-mielinizados precisam de
uma quantidade muito maior de proteínas
de membrana, ou seja, muito mais canais,
CCP, bombas, etc: isso significa células
maiores com um núcelo grande e muitos
ribossomos, enfim, para abrigar a grande
fábrica de proteínas de que necessitará.
Como terá mais bombas (e fará mais
síntese proteica), consumirá mais ATP,
logo esta célula também precisará de mais
e/ou maiores mitocôndrias para dar conta
desta demanda. Juntando tudo, neurônios
amielínicos estão condenados a serem
neurônios grandes; isto explica o axônio
gigante da lula, ele próprio, amielínico.
Os neurônios dos vertebrados, ao se
mielinizarem, não apenas ganharam
velocidade, o que é importante
adaptativamente para lidar com corpos
membros distais grandes e articulados,
mas também puderam miniaturizar suas
células neurais em função da economia na
síntese protéica e na geração de ATP.
Como essa segunda vantagem foi
explorada pelos seres vivos? Com células
menores, podia-se colocar muito mais
neurônios onde antes só cabiam uns
poucos. Isso favoreceu a complexificação
das redes neurais e o surgimento de
comportamentos novos e cada vez mais
sofisticados. Podemos arriscar dizer que a
mielina está na raiz da grande inteligência
O ALTO PREÇO ENERGÉTICO E
METABÓLICO
DE
PAs
EM
AXÔNIOS NÃO-MIELINIZADOS Axônios como o da Figura 16 são
chamados de amielínicos e ocorrem
principalmente em organismos mais
simples, como os invertebrados, sendo
pouco frequentes nos vertebrados. A
maioria dos axônios dos vertebrados é
revestida por uma capa isolante, a
mielina, constituída por células gliais.
Nos axônios do sistema nervoso
periférico, a glia que reveste é a das
células de Schwann, e cada trecho
revestido, entre dois nodos de Ranvier, é
uma célula independente (até por que
podem ser axônios muito longos). No
SNC, quem reveste os axônios são os
oligodendrócitos e uma mesma célula
pode projetar vários, senão todos, os
trechos de mielina.
A bainha de mielina é uma
aquisição recente na história da vida, e
veio trazer diversas vantagens, em
especial, um aumento na velocidade de
condução, pois esta ocorrerá de forma
saltatória, como que “pulando” de nodo
de Ranvier a nodo de Ranvier (Figura
17). Na verdade, em cada nodo de
Ranvier a condução é idêntica, ponto a
ponto, àquela descrita na Figura 16 para o
axônio não-mielinizado, apenas há uma
maior concentração de CCPs de Na+ (e de
K+, além de bombas) em cada nodo,
como se ele fosse uma pequena zona de
gatilho. O resultado disso é que a
despolarização de um nodo consegue
“alcançar” o nodo seguinte. Já dissemos
que o PA não é uma grande corrente
iônica longitudinal, mas em função dos
íons que entram e saem em cada ponto a
cada momento, há, de fato, pequeníssimas
correntes locais, inclusive longitudinais
(apenas que por uma distância
insignificante, até a região adjascente da
membrana – veja na Figura 16). No caso
do PA no axônio mielinizado estas
29
Tabela V
Diferenças entre os potenciais eletrotônicos e os de ação
POTENCIAL ELETROTÔNICO *
POTENCIAL DE AÇÃO
Forma
simétrica
Assimétrica
Propagação
decremental
não-decremental
(“tudo-ou-nada”)
Amplitude
dependente do estímulo
Independente do estímulo
(“tudo-ou-nada”)
Aditividade
aditivo
(somação temporal e/ou espacial)
não-aditivo
(“tudo-ou-nada”)
Natureza
passiva
ativa / “auto-sustentável”
Localização
dendritos & soma
Axônio
Função
codificação & integração neural
comunicação propagada fidedigna
(*) Sinônimo de “potencial sináptico” para os fins deste capítulo.
exibida pelos vertebrados, e, em
particular, pelos mamíferos conhecidos
como humanos. A grande capacidade
mental exibida pelos seres humanos pode
dever-se, em boa parte, a este pequeno
mas eficente aperfeiçoamento evolutivo.
VII – Atividade Elétrica em
Massa do SNC: Bases do EEG
A maioria dos registros elétricos
mencionados até aqui neste capítulo são
bastante focalizados, referindo-se à
atividade de um, ou - quando muito alguns
neurônios
disparando
conjuntamente. Estes potenciais são
chamados de unitários (referindo-se a um
único neurônio) ou multiunitários
(medindo a atividade de vários
neurônios). São, em sua maioria,
ferramentas primariamente dedicadas a
estudos básicos, e raramente são
empregadas para fins de diagnóstico, até
porque sua interpretação é muito
DIFERENTES TIPOS DE POTENCIAIS, DIFERENTES FUNÇÕES
COMPLEMENTARES – A Tabela V,
logo acima, resume as principais
diferenças existentes entre os dois tipos
de potenciais que podem surgir em
função da despolarização de um neurônio,
os potenciais eletrotônicos (ou sinápticos), passivos, e os potenciais de ação,
ativos.
30
estiverem posicionados sobre o córtex
cerebral, ou, se abaixo deste, o
Eletrograma.
Com
o
Estereoeletroencefalograma
(EEEG)
podemos investigar a atividade elétrica de
núcleos profundos utilizando métodos
estereotáxicos. Registros de Potenciais
Provocados
(PPs)53
e
Potenciais
Relacionados com Eventos (PREs) são
enfoques complementares da enorme
importância na clínica e em diversos
procedimentos cirúrgicos atuais. Podemos
acrescentar o Eletromiograma (EMG),
outro registro bioelétrico de apoio em
diferentes procedimentos.
Todos estes tipos de registro são a
simples representação gráfica da evolução
temporal da diferença de potencial
elétrico (DDP) entre os eletrodos de
registro. Esta DDP pode variar
continuamente no tempo, e apresentar
diferentes amplitudes e/ou freqüências em
função da região estudada. Com o
emprego de macroeletrodos externos
(superficiais),
porém,
registramos
principalmente a atividade da substância
cinzenta (i.e., da massa de neurônios).
A atividade eletroencefalográfica
é notavelmente persistente, ainda que
possa manifestar-se de diferentes formas
segundo a situação: alerta/vigília,
excitação/estresse, sonolência, sono,
anestesia, crise epiléptica ou coma.
Apenas na morte cerebral aparece o que é
conhecido como “silêncio elétrico”. Foi o
médico inglês Richard Caton que, em
1875, descobriu a atividade bioelétrica
cerebral utilizando um galvanômetro e
registrando a atividade cortical em
coelhos e macacos. Em 1913 PrawdwiczNeminski descreveu o ECoG no cão
utilizando eletrodos cirúrgicos. Até o
final dos anos 20, o máximo que podia
ser
feito
eram
esses
registros
intracerebrais, pois ainda não havia forma
complexa e difícil de padronizar /
codificar a ponto de poder ser usada no
contexto clínico.
Por outro lado, como a maioria
dos procedimentos diagnósticos ou
terapêuticos no atual campo da neurologia
clínica opera geralmente no nível de
sistemas e subsistemas funcionais do
SNC, é evidente que registros muito
focalizados não têm, por ora, muita
utilidade prática. É por isso que as
aplicações
clínicas
de
registros
eletrofisiológicos centram-se basicamente
no EEG, que (a) é um registro de
atividade elétrica em massa do SNC, e,
portanto, tem maior probabilidade de
refletir a operação de sistemas e
subsistemas funcionais, e (b) exibe
padrões de atividade regulares (ritmos de
sincronização coletiva), de caráter
predizível e com alta correlação funcional
51
. Estes registros de massa são, como a
expressão usada sugere, registros de
grandes populações neuronais e são
denominados potenciais de campo. Os
potenciais de campo podem ser do tipo
CC (“corrente contínua”)52, geralmente de
flutuação lenta, ou do tipo CA (“corrente
alternada”), potenciais cuja polaridade
alterna-se com frequências mais ou
menos regulares, situação típicamente
encontrada no EEG.
TIPOS DE REGISTRO DE POTENCIAIS DE CAMPO - Posicionando-se
um par de eletrodos sobre a superfície do
couro cabeludo, podemos registrar o
chamado Eletroencefalograma (EEG). Se
os eletrodos tiverem acesso direto à
massa nervosa (durante um procedimento
cirúrgico, por exemplo), teremos o
Eletrocorticograma (ECoG) quando estes
51
Embora muitas destas “correlações” estejam
mal ou apenas fragilmente demonstradas, e menos
ainda possam ser consideradas, com segurança,
relações “causais”.
52
Ver item I, “Voltagem e Corrente Elétricas”.
53
31
Do inglês Evoked Potentials (EPs).
de se medir potenciais tão pequenos como
aqueles que se medem no EEG normal.
Foi o neuropsiquiatra Hans Berger quem
demonstrou, entre 1925 e 1929, que a
atividade bioelétrica podia ser captada
sobre o couro cabeludo do homem, com
procedimentos não-invasivos e indolores.
Berger também descreveu várias das
atividades elétricas “normais” (nãopatológicas), em especial um ritmo de 10
ciclos/s (10 Hz) que hoje leva seu nome;
demonstrou, ademais, as variações do
EEG durante o sono e em algumas
patologias. Em que pese seus achados
terem sido inicialmente recebidos com
ceticismo, pouco depois, em 1934, Adrian
e Mathews, realizando experimentos com
equipamentos
mais
sofisticados,
comprovaram
amplamente
aquelas
descobertas. A partir dos anos trinta, o
EEG já era uma técnica de amplo
emprego clínico.
No EEG, os dois principais
parâmetros são a amplitude e a
frequência. A amplitude dos potenciais
captados na superfície do crânio depende
de vários fatores: por exemplo, da
localização, diâmetro e distância entre os
eletrodos, da própria frequência da onda,
do estado funcional e mesmo do estágio
de maturidade neural do indivíduo. Em
adultos, por exemplo, vale a chamada Lei
do EEG: a amplitude do EEG é função
decrescente de sua frequência. As
amplitudes registradas em humanos na
superfície do crânio são da ordem dos
microvolts, variando de 50 a 200 µV
conforme o tipo de atividade e a região
cortical estudada. As frequências, por sua
vez, podem variar entre 0,5 e 100 Hz e há
bons motivos para classificá-las por
bandas de frequência (ver Tabela V,
abaixo). Ainda que tenham um aspecto
visual relativamente diferenciado (ver
Figura 18), a distinção entre estas bandas
é algo bastante arbitrário, uma vez que o
espectro de frequências é, de fato,
contínuo.
DISTINÇÃO ENTRE BANDAS DE
FREQUÊNCIAS E “RITMOS” - Um
“Ritmo” cerebral é identificado quando as
ondas de potencial possuem uma
frequência e forma relativamente
constantes durante um certo tempo.
“Ritmo” não é sinônimo de “Banda de
Frequência”, conceitos que, por vezes,
são confundidos. É possível detectarmos
certas ondas posicionadas dentro de uma
determinada banda, mas estas podem não
caracterizar um verdadeiro ritmo pois sua
frequência pode não se manter constante
e, além disso, podem estar associadas
com ondas de outras bandas. É incomum
encontrarmos ritmos, por exemplo, dentro
da banda Beta pois, ali, as ondas de
diferentes frequência costumam mesclarse de forma irregular.
ORIGEM DAS ONDAS DO EEG –
Sugere-se que, em função da amplitude
elétrica
observada,
os
neurônios
piramidais
seriam
os
principais
responsáveis pelas ondas do EEG,
especialmente em sua região dendrítica,
onde se realizam as maciças computações
com seus padrões sinápticos cambiantes
que se integrarão para decidir se cada
neurônio em particular disparará ou não
seu potencial de ação. Neurônios
piramidais fazem sentido também se
considerarmos que (a) são as maiores
células excitáveis no SNC, (b)
comunicam-se utilizando o glutamato, o
principal neurotransmissor excitatório no
SNC, e (c) suas sinapses são palco dos
principais eventos plásticos estudados na
atualidade, como a potenciação de longa
duração (LTP) e a depressão de longa
duração (LTD), ambos fenômenos
subjascentes a funções encefálicas
32
decisivas, como, por exemplo, o
aprendizado e a memória.
É quase consenso entre os
neurofisiólogos que eventos intracelulares
geram correntes iônicas no meio
extracelular que, por sua vez, somam-se
algebricamente e de forma linear. Tais
correntes, juntamente com uma profusão
de potenciais sinápticos estabelecidos em
inúmeros espinhos dendríticos (incluindo
todo um repertório de respostas elétricas
destas estruturas), contribuem para fazer
emergir os padrões oscilatórios que
conhecemos como EEG.
Tabela V
Bandas de Frequência das Ondas do EEG
Banda
Frequências
Ocorrência
Origem
Alfa (α)
de 8 a 13 Hz
Sujeito normal / desperto (olhos
fechados) / amplitude de 20-200µV
Occipital
Beta (β)
de 13 a 40 Hz
(50Hz?)
Sujeito tenso, ativo ou concentrado
(beta2) / Patológico
Parietal / frontal
Delta (δ)
de 0,5 a 3 Hz
Sono profundo ou bebês /
Lesões ou encefalopatias
?
Gama (γ)
30-80 Hz
Atividade mental superior, percepção e
consciência (some c/anestesia)
Áreas
associativas?
Teta (θ)
de 4 a 8 Hz
Sonolência / infância ou juventude /
Estado hipnagógico / “meditação” /
hipnose
Hipocampo?
SMR - Ritmo
Sensorimotor
de 12-16 Hz
Tranquilidade física c/ sensação de
presença corporal: junto c/β é usado
p/o Neurofeedback em casos de déficit
de atenção ou epilepsia
-
Ondas de Berger
Os neurônios piramidais também
ajudam a amplificar as correntes
sinápticas em função de possuir múltiplas
“zonas gatilho” em seus dendritos.
Complementarmente,
interneurônios
inibitórios vizinhos também colaboram na
construção do EEG: a presença de
poderosas sinapses inibitórias junto ao
soma piramidal permite (a) a geração de
potenciais inibitórios de grande amplitude
e com duração 10-20 vezes maior que a
da maioria dos potenciais inibitórios
conhecidos; por outro lado, a ocorrência
de (b) minúsculos
pós-potenciais
hiperpolarizantes de curta duração
favorece a ocorrência de disparos de alta
freqüência, fazendo com que algumas
ondas oscilem em até 100 Hz. Por fim, as
próprias células gliais, com suas
mudanças elétricas passivas diante das
correntes geradas pelos neurônios,
juntam-se a esta grande coreografia
elétrica que é o EEG; muitos trabalhos
recentes têm mostrado o papel claramente
ativo da glia nestes processos dinâmicos,
sepultando a velha concepção de que as
33
células gliais são apenas coadjuvantes
inertes, “células de suporte” dos
neurônios.
O EEG é, portanto, resultado do
registro
incidental
das
correntes
extracelulares associadas à atividade
somada de grande número de células
individuais. Os potenciais pós-sinápticos
desempenham um papel fundamental na
produção das ondas, mas os potenciais de
ação, não, exceto quando um grande
número deles viaja sincronizadamente ao
longo das fibras talamocortiais ou quando
registramos potenciais provocados54 por
estímulos sensoriais.
Várias áreas corticais e subcorticais
parecem colaborar para gerar o EEG, mas
nem sempre o córtex é o principal
articulador destes padrões complexos: as
evidências sugerem, por exemplo, que o
ritmo gerador básico, ou marcapasso
atuante sobre o córtex, residiria em
circuitos subcorticais, mais precisamente
em núcleos talâmicos, capazes de
provocar a propagação de sinais rítmicos
que se projetam ao córtex cerebral.
Quando chegam ao seu destino,
promovem a despolarização rítmica dos
dendritos apicais das células piramidais o
que, por sua vez, estimula fluxos de
corrente iônica dentro e fora das células.
Se as células piramidais estão ativas e
sincronizadas, suas correntes se somam e
as ondas do EEG serão de considerável
amplitude. Isto explica o que verificamos
durante o sono, no ritmo alfa ou em
qualquer das atividades mais “salientes”
do EEG. Se os potenciais piramidais
estão dessincronizados, as ondas serão
também dessincronizadas e de baixa
amplitude.
Não desenvolveremos muito mais este
tema aqui, pois, por sua extensão e
complexidade, fugiria ao escopo de um
capítulo como este 55. Diante deste
cenário de atividade elétrica neural em
massa, ficamos atônitos por sua enorme
complexidade, mas também por sua
incomparável beleza. Isto só faz rebrilhar
a poética assertiva de Sir Charles
Sherrington acerca da natureza da
atividade encefálica:
“É como se a Via Láctea
iniciasse algum tipo de dança
cósmica. Prontamente o encéfalo
transforma-se
em
um
tear
encantado, no qual milhões de
lançadeiras cintilantes tecem uma
nebulosa trama, sempre formando
um padrão significativo, ainda que
efêmero; uma inconstante harmonia
de subpadrões” 56.
55
Uma boa revisão sobre este assunto encontra-se
em Buzáki, Traub & Pedley, "The Cellular Basis
of EEG Activity" (IN: Current Practice of Clinical
Electroencephalography, 3rd ed., J.S. Ebersole
and T.A. Pedley Eds. Philadelphia: Lippincott
Williams & Wilkins, 2003, pp. 1-11). Outro artigo
interessante é o de Florin Amzica, “Physiology of
sleep and wakefulness as it relates to the
physiology of epilepsy” (J Clin Neurophysiol.
19(6):488-503, 2002). Walter Freeman, ao nosso
ver o maior conhecedor da natureza do EEG – ver
também livro citado nas referências abaixo,
publicou recentemente um estudo muito detalhado
sobre este assunto em uma série de 3 artigos que
saíram em Clinical Neurophysiology (“Origin,
structure, and role of background EEG activity”,
partes 1 a 3, Clin. Neurophysiol. 115(9):2077-107,
2004, e 116(5): 1118-29, 2005).
56
''It is as if the Milky Way entered upon some
cosmic dance. Swiftly the brain becomes an
enchanted loom, where millions of flashing
shuttles weave a dissolving pattern, always a
meaningful pattern though never an abiding one; a
shifting harmony of subpatterns. '' IN: Sherrington
C.S. (1941) Man On His Nature, Cambridge
University Press, London.
54
Em português, a expressão potenciais
provocados traduz “evoked potentials” com mais
precisão.
34
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Jorge A Quillfeldt - v.3
35
12mai2005
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origem dos potenciais elétricos das células nervosas