Imaginário e narrativa de si: o espetáculo por entre as máscaras do palhaço e da rotina
Marilene Farenzena¹
Fui educado pela Imaginação,
Viajei pela mão dela sempre,
Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,
E todos os dias têm essa janela por diante,
E todas as horas parecem minhas dessa maneira *
Lendo as palavras de Álvaro de Campos penso como a vida do palhaço pode ter
referência nesses ditos, na imaginação que viaja conosco sempre, ou será que imagino a
vida dele mais interessante, sem rotina, cada lugar um espetáculo com públicos
diferentes, seria uma ilusão pensar que só na felicidade de ser um artista do riso? Será
que a liberdade tem morada nessa história? Foi mais ou menos nessa perspectiva que
pensei certa escrita que me foi proposta em aula.
A experiência que estou falando foi vivida no âmbito dos estudos sobre imaginário
que tive a oportunidade de construir ao participar de uma disciplina do Mestrado intitulada
“Imaginário e Narrativas de formação”, ministrada pela Profª PhD. Valeska Fortes de
Oliveira no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSM, onde fomos
desafiados(as) a escrever sobre nossa história, ao recebermos a proposta de escrever
uma narrativa através da criação de um personagem, com o intuito de que
conseguíssemos nos retratar, transfigurando-se numa escrita livre, que fizesse sentido em
relação a como nós vemos, fugindo daquelas sequências cronológicas que trazem datas
e acontecimentos estanques.
Falo em desafio, pois, sem dúvidas ao me deparar com essa proposta gostei
bastante da idéia, recebi com certa empolgação, porém, no instante que me vejo sentada
na frente de uma folha em branco, sozinha e com a tarefa de narrar minha própria
história, ou meus “eus” mais escondidos, como conversávamos, comentando que
teríamos que explorar outros sentidos da escrita que não aqueles convencionais ao
narrar-se, de fato: foi muito difícil realizar essa escrita, mas gostaria de apresentá-la:
Ao anoitecer ela caminhava pisando firme no chão movediço da sua rotina. Mesmo
sem a mínima vontade ela decide aceitar o convite de um amigo que insistentemente a
convidava para sair. Havia chegado na sua cidade uma companhia circense, um circo
antigo, que rodava o mundo. Pois, bem, seu amigo comprou os ingressos e marcaram um
¹ Pedagoga, Participante do GEPEIS – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Imaginário Social –
UFSM.
encontro às 21h00min. Ao chegar ao local do espetáculo olha seu relógio e percebe que
por mais que esteja atrasada, o show ainda não havia começado. No entanto, ao invés de
entrar logo e procurar um lugar na platéia para se acomodar, num súbito impulso decide
dar a volta ao redor do lonão e espiar os bastidores onde os artistas estão se preparando
para entrar no picadeiro.
Ao abrir uma pequena fresta e espiar percebe que o palhaço ainda esta se
maquiando, e decide ficar observando. Ele se aproxima de um espelho retangular cheio
de pequenas lâmpadas coloridas em seu contorno, ele esta com um lápis preto na mão,
terminando de pintar seu rosto. Larga o lápis na estante e se fixa na sua imagem refletida,
faz umas caretas como quem treina para entrar em cena, atira um beijo pra sua própria
imagem, fica parado olhando, parece querer ter a certeza que o público vai gostar do que
só ele vê por enquanto, aqueles olhos tão expressivos, ao mesmo tempo pareciam que
carregavam um tanto de tristeza. Aquele momento era único, observar um artista nos
bastidores era algo totalmente novo pra ela, uma emoção diferente de tudo que já havia
sentido, o tempo parecia que tinha parado para que ela pudesse olhar a intimidade do
brincalhão.
De repente ele se vira e a surpreende espionando sua preparação, que susto!
Ainda bem que seu olhar não parece de quem está com raiva por estar sendo vigiado. Ela
saiu com pressa e o palhaço a chama: ei menina, volte aqui! Ela volta tímida, receosa,
com vergonha pela sua atitude, e sem demora adianta-se em pedir desculpas. Imagina!
diz o simpático artista, não fique precoupada, se você tem curiosidade sobre o meu
trabalho podes vir nos nossos ensaios um dia. Ela aliviada fala que talvez apareça e vai
saindo, porém o palhaço lhe pede pra voltar mais uma vez, e pegando na sua mão diz a
ela que se deseja fazer alguma pergunta, que fique a vontade, eu já tinha percebido que
você estava me espiando, mas continuei me maquiando. Bem, diz ela, você deve
conhecer muitos lugares e pessoas diferentes, sua vida não tem rotina, deve ser
maravilhoso! Comentou com emplogação! Menina agora eu preciso ir, o show tem que
continuar, mas antes quero lhe dar um presente.
Ela volta correndo para dentro da grande lona onde o espetáculo já tinha iniciado,
em seguida avista seu amigo ansioso a chamando: vem pra cá! Tem um lugar reservado
pra você, vem logo! Ela senta com seu livro na mão. Seu amigo pergunta: que livro é
esse? Não sei, acabei de ganhar, responde ela ainda confusa com o que tinha
acontecido. Ela abre o livro ao mesmo tempo em que o palhaço Narciso entra no
picadeiro dando cambalhotas. Ao abrir o livro percebe que tem uma página marcada com
uma flor já seca, nela, um poema que inicia assim:
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero*. [...]
(*Trechos do poema Passagem das horas de Álvaro de Campos)
Com a realização dessa escrita pude perceber as metáforas são aliadas para
contar as histórias que vivemos, e é através da ficção que muitas vezes nossa escrita faz
ainda mais sentido, dando vazão aos sentimentos que permanecem vivos na nossa
história e que podem ser (re)contados sem o peso dos fatos estéreis, sem sabor poético.
Pelo contrário embarcar numa escrita que transfigura nossa maneira de escrever,
nos levando a outros modos de invenção de si, é um (re)encontro com nós mesmos, ao
nos perguntarmos: como escrevo sobre a minha história como nunca fiz antes? De que
maneira posso contar quem sou sem ser o mesmo das escritas de memoriais que já fiz?
Não são perguntas simples, não foi assim comigo, ao estar com um papel em branco na
mão e uma história pra contar, a minha.
Penso que talvez não fosse possível contar toda minha história cronologicamente
dita, isso não! Mas ao me aproximar das coisas que realmente gostaria de escrever sobre
mim, fiz um caminho mais livre, fixando-me em sentidos vividos e (re)inventados ao gosto
da criação que desenha a poética do existir. Nesse sentido, concordo com Silva (2006,
p.51): “os melhores cartógrafos de imaginários são os escritores, os romancistas, os
cronistas do cotidiano e os repórteres. Todos aqueles que procuram captar os flagrantes
do vivido, livres da obsessão explicativa [...]”.
Se for questionada sobre a “verdade” dos fatos que muitos pensam encontrar nas
narrativas, posso mencionar as contribuições dos estudos do imaginário para
compreendermos que o concreto se move pelas forças da imaginação, como aponta Silva
(2006, p. 7) ao explicitar que “o concreto é empurrado, impulsionado e catalisado por
forças imaginais”.
Acredito que ao narra-se o imaginário do indivíduo pode ultrapassar os limites do
real, não cabe a quem lê ou escreve a negação da realidade, mas as percepções e
representações singulares do escritor(a). Nesse sentido, concordo com Laplantine (1996,
p. 8) quando diz que “em suma o imaginário não é a negação do real, mas apóia-se no
real para transfigurá-lo e deslocá-lo, criando novas relações no aparente real”.
O intuito de narrar fatos cotidianos que trazem as subjetividades construídas e
retocadas ao longo da trajetória de vida, me fez compreender que as faces da rotina, do
cotidiano são possíveis flagrantes do nosso imaginário, olhar pra si, em suas ações
rotineiras, descomprometida com explicações, com o dizível, com a verdade dos fatos, foi,
sem dúvida, foi uma experiência de aproximação das vertentes imaginárias que inundam
o cotidiano, nos subjetivam a todo instante, nos constituem como sujeito.
REFERÊNCIAS:
CAMPOS, A. Passagem das horas. Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa.
Lisboa: Ática, 1944.
LAPLANTINE, F.; TRINDADE, L. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1996.
SILVA, J. M. da. As Tecnologias do Imaginário. Porto Alegre, RS: 2º Ed. Sulina, 2006.
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