MEMÓRIA E DIREITO: AS ORIGENS DO
BACHARELISMO LIBERAL NO
BRASIL IMPÉRIO (1822-1889)
Daniella Miranda Santos (UESB)1*
Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro (UESB) 2*
Resumo:
O presente trabalho tem por escopo fazer algumas considerações acerca dos atores jurídicos
responsáveis pela formação do Estado Nacional, bem como da organização do Poder
Judiciário no Brasil, os bacharéis do século XIX, e sua relação com a memória. Após a
aproximação das relações entre tempo, direito e memória, utiliza-se o conceito de memória
coletiva de Maurice Halbwachs, que por sua vez, também foi utilizado pelo jurista belga
François Ost para compreender a temporalização social do tempo e a instituição jurídica da
sociedade. Apresentar-se-á os aspectos meramente históricos e econômicos do Império para
fazer uma análise histórico-sociológica do Bacharelismo Liberal e da cultura bacharelesca a
fim de relacioná-los com a memória.
Palavras Chaves: direito – memória– bacharelismo liberal
Abstract: The scope of this work is to make some considerations about the legal actors
responsible for the formation of the National State, and the organization of the judiciary in
1
*Mestranda do Curso de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (UESB). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Integrante do Grupo Fundamentos
da Educação: A Relação Estado, Igreja e Educação no Brasil. E-mail: [email protected].
2
*Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Doutora em Educação pela UNICAMP.
Professora Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Orientadora. E-mail:
[email protected]
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Brazil, the lawyers of the nineteenth century, and their relation to memory. After
approximation between time, law and memory, uses the concept of collective memory of
Maurice Halbwachs, who in turn was also used by the Belgian jurist François Ost to
understand the timing of social time and legal institution of society. It will be presented the
historical and economic aspects of the Empire to a historical-sociological analysis of the
liberal baccalaureate and scholastic culture in order to relate them to the memory.
Key Words: law – memory - liberal baccalaureate
Análise histórico-sociológica do período pré-bacharelismo
Nos tempos mais remotos possíveis, a Justiça não era sequer um direito da
humanidade, quando não havia leis, órgãos ou instituições que assegurassem o perpetuamento
deste sentimento de justiça. Neste mesmo sentido:
O homem “pré-Judiciário” não tinha limites para suas ações e nem punições para os
seus atos, ou seja, podia praticar todo e qualquer tipo de infração - que nem podia
ser considerada como tal, uma vez que não havia legislação que a qualificasse como
ilegal - e, mesmo assim, continuava impune.Para que chegasse à Justiça pública,
como a concebemos hoje, foi necessário um longo processo de evolução. Passou-se
da conduta “olho por olho, dente por dente” para a ordem. Indivíduos abriam mão
da sua total liberdade em prol do convívio social, com regras e limitações. Um
sistema de ações legais substituía a barbárie. (ASSOCIAÇÃO DOS
MAGISTRADOS BRASILEIROS, 2005, p. 10).
Diferentemente do que ocorreu em outros países, o Direito no Brasil não foi resultado
de evoluções progressivas e de conquistas populares, aconteceu de maneira imposta, devido a
sua posição de colônia. O Direito brasileiro não foi, portanto, fruto das relações sociais diárias
ou do embate de grupos contrários buscando o reconhecimento dos seus direitos. Em bases
análogas, tal fenômeno ocorreu também na arte, na religião, na educação e em outras formas
de expressão de ideias.
As bases jurídicas e culturais do Brasil Colonial foram desdobramentos das bases da
metrópole, já que os índios e negros que tanto deram a sua contribuição para a cultura não
puderam contribuir neste âmbito. No que tange ao Direito, os negros e índios foram mais
objetos ou coisas que sujeitos de direito. Assim, admite-se ter havido somente a contribuição
portuguesa dos colonizadores que, sem respeitar as outras etnias, organizaram o Judiciário à
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sua maneira, ou seja, segundo os seus interesses próprios. Importante observar que à época,
era a cultura portuguesa que possuía o Direito, do ponto de vista racional e formal, mais
evoluído.
Na fase pós-descobrimento os portugueses encontraram uma civilização que, de
acordo com Machado Neto, era formada de “povos de origem tribal em diferentes estágios
culturais, todos eles beirando, porém, o neolítico, despossuídos por completo de uma
regulamentação realmente jurídica.” (MACHADO NETO, 1979, p. 311) Foi por isso que o
direito português tornou-se base para o direito pátrio, o que significa mais uma espécie de
ocupação e não uma conquista efetiva de direitos.
No início da colonização brasileira, ainda no período das Capitanias Hereditárias, seus
donatários, além de administradores, eram também legisladores e juízes. Eram os donatários
que legislavam, acusavam e julgavam e não repartiam com ninguém tais poderes. Com o
sistema das capitanias hereditárias, que não obteve o sucesso pretendido por Portugal, fez-se
necessária a nomeação de um governo-geral. A partir daí, os rumos do Poder Judiciário e do
direito em si foram modificados, já que se iniciou um processo de profissionalização e de
burocratização.
A estrutura do Poder Judiciário, à época, tinha como característica a descentralização
do poder local. Quando da designação do governador-geral, Tomé de Souza, houve também a
nomeação de Dr. Pedro Borges para o cargo de ouvidor-geral. O ouvidor-geral, por
designação real,
Conhecia por ação nova dos casos crimes e tinha alçada até a morte natural,
inclusive nos escravos, gentios e peões cristãos livres. Nos casos, porém, em que,
segundo o direito, cabia a pena de morte, inclusive nas pessoas das ditas qualidades,
o ouvidor procederia nos feitos afinal e os despacharia com o governador sem
apelação nem agravo, sendo ambos conformes nos votos. No caso de discordarem,
seriam os autos com os réus remetidos ao corregedor da corte. (GARCIA, 1956, p.
73).
Deste modo, era o ouvidor-geral a maior autoridade naquele Judiciário primitivo. A
sua nomeação estendia-se por três anos, desde que desempenhasse bem a sua função, caso
contrário, seria exonerado. A administração da justiça era realizada por diferentes operadores
jurídicos que algumas vezes possuíam competências muito próximas, a saber: os juízes de
fora, de órfãos de vintena, os ordinários, e seus auxiliares (escrivães do público e notas,
tabeliães judiciais, os inquiridores e os quadrilheiros).
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O objetivo da Metrópole era perpetuar o seu domínio, buscando assim formar um
Poder Judiciário que a representasse. Dessa maneira, formou-se um corpo burocratizado de
agentes públicos que procurou manter-se hierarquicamente afastado da população para que
dela não sofresse nenhuma espécie de pressão ou quaisquer influências.
A Metrópole não tinha interesse de que se formasse no Brasil um Judiciário
independente que privilegiasse os interesses locais e, contudo, a premissa de que os
representantes da metrópole não sofressem influência da população não se validou e os
acontecimentos perpassaram os temores de Portugal: houve a interpenetração da burocracia,
representada pelos atores jurídicos, e pelas relações de parentesco.
Durante muito tempo, a formação e a organização do Poder Judiciário foram baseadas
na integração da elite e dos membros integrantes do mesmo. Embora Portugal quisesse um
Poder Judiciário afastado da população, isso não aconteceu. No entanto, isso não significa que
os agentes jurídicos representassem os anseios populares, já que era a elite local que se unia
aos operadores jurídicos. O objetivo de tal união não era a de estabelecer em uníssono um
grupo para interceder em prol dos anseios locais, muitos menos resguardar o direito dos
negros ou dos indígenas. Por conseguinte,
o modelo jurídico predominante durante os primeiros dois séculos de colonização
foi, por conseqüência, marcado pelos princípios e pelas diretrizes do Direito
Alienígena - segregador e discricionário com relação à própria população nativa_revelando, mais do que nunca as intenções e o comprometimento da estrutura elitista
do poder. (WOLKMER, 1994, p. 12).
Para a elite local era extremamente interessante a união com o corpo jurídico e a
recíproca também era verdadeira. Ao passo que a elite buscava a manutenção dos esquemas
de corrupção preexistentes, os agentes jurídicos queriam cercar-se de privilégios, o que
resultava, na época, em uma troca mútua de favores. Muitas vezes, os magistrados que
vinham para a Colônia não eram provenientes da nobreza, tentando a ela se igualar. Firmado
esse objetivo buscavam recriar os símbolos da aristocracia brasileira na composição desse
status.
Os membros pertencentes àquela que seria a aristocracia brasileira, ostentavam suas
riquezas através da aquisição de terras, motivo pelo qual os magistrados tornaram-se
proprietários de fazendas de cana-de-açúcar e de engenhos. Outra forma da interpenetração
entre os agentes jurídicos e os interesses pessoais foi o casamento de vários magistrados com
filhas de fazendeiros ricos. Esse casamento “servia de laço principal entre as famílias e era o
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método mais eficiente de incorporar magistrados na sociedade local de forma permanente.”
(SCHWARTZ, 1979, p. 271). Diante disso, percebe-se que não existia imparcialidade ou
neutralidade e que as decisões eram pautadas na troca de favores e no tráfico de influências.
Portanto, é possível afirmar que a organização do Poder Judiciário ocorreu por meio
da burocracia e das relações de parentesco. Os agentes públicos eram enviados à metrópole
para ocuparem os postos no Judiciário, tendo como objetivo principal a representação dos
interesses da metrópole e não as aspirações locais. Apesar disso, os magistrados não ficaram
distantes da sociedade e a ela se uniu. A crítica a esse acontecimento não reside no simples
fato de ter havido essa aproximação, já que todo agente jurídico também está inserido na
sociedade, mas na opção que os magistrados fizeram de realizar essa interpenetração na
aristocracia obedecendo a seus próprios interesses, sem se preocupar com todo o conjunto
social, ocupando-se apenas dos problemas da elite dominante a que se incorporou. Desde a
gênese, confundiu-se o âmbito público e o privado, não havendo distinção entre este e os
interesses da coletividade.
Wolkmer (1998), quando descreve o perfil ideológico dos atores jurídicos no século
XIX, reafirma a idéia de que no cenário composto por uma cultura marcada pelo
individualismo político e pelo formalismo legalista, percebe-se a necessidade de um agente
profissional que tinha como encargo a composição dos quadros políticos burocráticos do
Império e de grande parte da República. Com os primeiros cursos jurídicos, o aparecimento
do bacharel em Direito acabou se tornando uma constante na vida política brasileira. Isso se
revestia de um significado muito grande para uma sociedade escravocrata para a qual o
trabalho manual era desprezado em função do trabalho dos letrados que iam ocupando as
múltiplas atividades públicas nos centros urbanos.
A supervalorização dos homens letrados é uma questão histórica de raízes muito
profundas. Incontestavelmente, a posse do saber era uma maneira de detenção do poder. E
esse saber realçava as diferenças entre as classes sociais da época. Wolkmer (2006, p. 99),
afirma que “[...]Ninguém melhor do que eles para usar e abusar do uso incontinente do
palavreado pomposo, sofisticado e ritualístico.”
Entendendo, pois, o bacharelismo como um conjunto político de usos e costumes, não
como uma instituição jurídica, há que se afirmar essa dicotomia entre bacharelismo e
jurisdicismo, associando o primeiro exclusivamente à atividade política. Na tentativa de
definição, segundo Nelson Nogueira (apud VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 294): “Falar em
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bacharelismo é pouco menos que alimentar um mito, (...) uma forma mentis tendente a ver o
jurídico como essência do social.”
Admite-se, portanto, que o bacharelismo não foi apenas um fenômeno político-social,
mas também, linguístico e sociológico. Autores como Sergio Buarque de Holanda, Caio
Prado Junior e Gilberto Freyre analisaram em suas obras o bacharelismo liberal no Brasil e, a
partir de então, foi possível perceber que este não foi um fenômeno típico da sociedade
brasileira e sim um acontecimento mundial.3 No Brasil, no entanto, esse fenômeno ganhou
contornos próprios em virtude do diferente processo histórico a que se submeteu o país.
O Brasil, desde o início, foi visto como o resultado de uma aventura mercantilista
portuguesa, já que foi descoberto e só obteve sua “independência” no início do século XIX.
Para explicar tal fato, faz-se imprescindível o uso do conceito de “monarquia patrimonial” de
Weber(1994). Assim, pode-se dizer que Portugal vivenciou uma monarquia patrimonial, na
qual o rei possuía todas as terras e detinha todo o poder e riqueza dela proveniente. Era o
monarca quem distribuía funções e cargos, o que criava, seguindo a tipologia weberiana, entre
os “servidores” e o rei, uma relação de dependência. A distribuição desses cargos não seguia
uma linha racional e baseava-se em relações pessoais de confiança. Assim, como o país foi
estruturado sob o patrimonialismo português, herança histórica da metrópole, até hoje não se
faz distinção entre o público e o privado quando da apropriação de cargos e funções públicas,
muitas vezes tratados como se particulares fossem.
A análise sociológica do período pré-bacharelismo permite perceber que o Brasil era
uma sobreposição de experiências liberais de outros países numa sociedade totalmente
desarticulada e subordinada, o que tornava o país incompatível com o ideal capitalista-liberal.
Neste mesmo sentido, afirma Sergio Buarque de Holanda:
Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais de naturalizou
entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a
negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo
horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A
democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido (HOLANDA, 1993,
p.119)
Diferentemente da colonização que tinha como objetivo o povoamento para escoar o
excesso de população das zonas temperadas, a colonização no Brasil era meramente
extrativista e predatória, e a utilização da mão-de-obra escrava veio para finalizar a
3
Inclusive, Holanda (1993, p. 115) utiliza a expressão “praga do bacharelismo” para descrever o bacharelismo
nos Estados Unidos.
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composição desse cenário patrimonialista peculiar. Para Prado Jr. (1994) a adoção da mão-deobra escrava foi um fato absolutamente anômalo na evolução natural da civilização ocidental.
Além de constituir um corpo absolutamente estranho na estrutura social da época e de ser uma
monstruosa aberração do ponto de vista ético-moral, essa involução trouxe consequências
sérias na história dos povos que estiveram ligados a ela, e do ponto de vista econômico,
significou o “naufrágio da civilização ibérica” já que não seguiu a lógica do liberalismo
econômico que se baseava na mão-de-obra assalariada.
A peculiaridade fundada na utilização da mão-de-obra e as profundas mudanças
ocorridas no panorama político-social são, do ponto de vista sociológico, determinantes para o
processo de desvalorização do trabalho manual e, em sentido contrário, de um
reconhecimento significativo da beca como meio de aristocratização. No entanto, o caminho
percorrido desde a educação jesuítica até a criação dos primeiros cursos de Direito foi muito
longo.
Embora, na América Espanhola já existissem cursos superiores desde o início da
colonização, as experiências concernentes a formação do espírito acadêmico na colônia
brasileira foram efetivamente provocadas pelos jesuítas até o ano de 1759, quando da sua
expulsão. Para Luiz Antônio Cunha (1980), a ausência de cursos superiores é facilmente
atribuída à formação centralizada que era pretendida pela Metrópole.
A atitude de não promover a implantação de cursos jurídicos no Brasil (que só foi
acontecer em 1827), decorria de um “método de controle ideológico”. 4 Durante esse período
de visível “desamparo” intelectual por parte da Metrópole, os padres oriundos da Companhia
de Jesus organizaram uma espécie de “pedagogia jesuítica” baseada na ratio studiorum
(sistematização de regras padronizadas) focando especialmente o estudo da retórica e
incentivando a leitura de autores como Aristóteles e Tomás de Aquino. Para Romita (1976),
foi quando se deu início a cultura retórica e formalista que seria o meio de propagação dos
ideais bacharelescos brasileiros. Acerca do tema:
Desenvolvendo antes de tudo as atividades literárias e acadêmicas e “dando um
valor exagerado ao menino inteligente com queda para as letras”, os jesuítas criaram
muito cedo, com a tendência literária e o gosto que ficou tradicional pelo diploma de
bacharel, o desprezo pelo trabalho técnico e produtivo [...] (VENÂNCIO FILHO,
1982, p.5)
4
Importante lembrar que Althusser (1980, p. 78), de acordo com categorias marxistas, considera o “aparelho
escolar” na sociedade capitalista, como o aparelho ideológico dominante.
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As leituras incentivadas pelos jesuítas influenciaram, num todo, o pensamento
intelectual da época: é atribuída a Aristóteles, bem como a Platão e Cícero a difusão do ideal
de que o trabalho manual é “degradante, indigno do homem livre.” (Romita, 1976, p. 28).5
Assim como, não é possível conceber o estudo do latim sem os textos de Marcus Túlio e
Cícero.
Durante um período, a preocupação com ensino superior se resumia à formação militar
e outras áreas como Economia, Engenharia e Medicina. Embora seja possível afirmar que
todos fossem “bacharéis”, preserva-se o termo para aqueles que, oriundos das escolas de
Direito, tornaram-se o elemento de formação do fenômeno chamado de “bacharelismo”.
Importante destacar que a atividade jurídico-política dos bacharéis se manifestou na
sociedade como um todo, especialmente na produção literária e jornalística. Para Venâncio
Filho (1982, p. 136): “Ser estudante de Direito era, pois, sobretudo, dedicar-se ao jornalismo,
fazer literatura, especialmente a poesia, [...] ser bom orador, participar dos grêmios literários e
políticos, das sociedades secretas e das lojas maçônicas.” Diante disso, percebe-se que as
aptidões literárias dos estudantes puderam ser desenvolvidas nos jornais acadêmicos e o que
parecia ser apenas um espaço para exposição de opiniões, tornou-se meio de
profissionalização dos bacharéis nas atividades jornalísticas e literárias.
No que tange à disseminação de bacharéis na literatura, pode-se considerar que, além
de todos os fatores expostos anteriormente, tem-se como elemento expressivo da cultura
bacharelesca, a aproximação da literatura com a retórica.
[...] o professor de retórica, requisitado após o professor de gramática, que já terá
ensinado as regras da língua racional dita correta, será instado a fornecer as receitas
para tornar a língua elegante. Como essa língua elegante concerne a uma elite social,
a missão normativa latente da retórica muda de caráter. Tal ornamento não é mais
preconizado, como para os Antigos, porque é mais conforme à eficácia do discurso
ou porque é a melhor forma de colocar uma idéia ou um arrazoado [...] A
normatividade retórica não é mais cogitada em termos de eficácia linguística , mas
de estética sociocultural. Torna-se um código de marcas sociais valorizadas
esteticamente. (BARTHES, 1975, p.19)
No entanto, a cultura bacharelesca não é apenas retórica, mas também literária: é
retórica quando privilegia a eloqüência, quando muitas vezes, em contradição aos recursos
retóricos, despreza o conteúdo e é literária quando seus bacharéis desenvolvem suas aptidões
5
Embora seja utilizado um excerto de Romita (1976, p. 28) para corroborar o desprezo pelo trabalho e
caracterizar essa repulsa, faz-se necessário ressaltar que o autor discorda da idéia de que o “desprezo” ao
trabalho manual é decorrente da Antiguidade. Faz referência à Sócrates, Hesíodo, Protágoras e Pródigo que
defendiam a dignidade do trabalho, inclusive o manual.
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de escrita através da poesia e de atividades jornalísticas, mas demonstram-se indiferentes à
realidade concreta.
Uma geração de intelectuais, influenciada por filosofias materialistas fortaleceu a
importância do papel do escritor em centros culturais da época. Um desses centros era a
Faculdade de Direito do Recife, na qual os bacharéis eram liderados por Tobias Barreto,
estudioso da cultura alemã, do direito moderno e do “modernismo” filosófico-científico. Foi
ele também quem cuidou de limitar as influências portuguesas e francesas no ideário liberal
da época.
Para o ingresso nas Faculdades de Direito até então, era preciso ser maior de 15 anos e
ser aprovado nos exames de latim e francês, retórica, filosofia racional e moral, geometria e
aritmética. Vale asseverar que os cursos jurídicos não ofereciam estudos preparatórios para as
provas, apenas, realizavam o exame, o que notadamente, evidenciava as diferenças abissais
entre as classes daquela sociedade escravocrata.
A Faculdade de Direito de Recife foi o berço ideológico desta elite intelectual e
também da elite dirigente na tentativa da construção do Estado Nacional. Não obstante, a
importância desta na formação da cultura jurídica nacional, a qualidade do ensino era
extremamente questionada, como se o processo ensino-aprendizagem não fosse o objetivo
naquela época:
As permanentes críticas dirigidas contra a má qualidade de ensino e contra a própria
habilitação do corpo docente, formuladas até mesmo por acadêmicos que
vivenciaram esse processo educativo àquela época, sugerem que a
profissionalização do bacharel se operou fora do contexto das relações didáticas
estabelecidas entre o corpo docente e o corpo discente, a respeito das doutrinas
jurídicas difundidas em sala de aula (ADORNO, 1988, p. 164).
A Escola de Recife destacou-se pela erudição e dedicação às artes e letras, tornando-se
palco do bacharelismo liberal. De fato, as faculdades de Direito da época foram o meio
disseminador do intelectualismo, já que em consonância com o pensamento de Alberto
Venâncio Filho (1982, p. 182): “além dos cargos públicos, da ascensão social, consideram-se
alguns argumentos de que se buscava também no curso de direito, uma cultura geral, [...]
oferecida nesses cursos penetrados de filosofia e de letras.”
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Memória, Bacharelismo Liberal e a Formação do Estado Nacional
Sempre foi de extrema importância a retomada dos estudos em História do Direito
uma vez que se torna necessário, por vezes, reorganizar uma tradição normativa ou,
criticamente, refinar a análise de certas práticas sociais. No entanto, a historicidade jurídica
sempre esteve baseada num ideal téorico-empírico, dotado de certa previsibilidade e
formalismo.
Quando se objetiva comprender, por exemplo, um viés mais sociopolítico de um
fenômeno jurídico, é preciso abandonar qualquer tipo de influência do historicismo formalista
e legalista.
Assim, nessa perspectiva desmistificadora do Direito e na real apreensão da memória
do bacharelismo liberal é preciso compreender a cultura jurídica e as instituições jurídicas do
século XIX, num outro contexto interpretativo. Dentro dessa perspectiva, far-se-á uma
reanálise do saber histórico, tomando por base a memória coletiva. Para esse estudo crítico da
historicidade jurídica, é preciso que se faça um reexame dialético do contexto sócio-político,
da vida produtiva do Brasil-Império e das relações sociais da época, tomando por base os
estudos em memória, em busca das raízes do bacharelismo liberal no Brasil. Segundo
Halbwachs:
Não se pode concentrar num único quadro a totalidade dos acontecimentos
passados senão na condição de desligá-lo da memória dos grupos que deles
guardavam a lembrança, romper as amarras pelas quais participavam da vida
psicológica dos meios sociais onde aconteceram, de não manter deles senão
o esquema cronológico e espacial. Não se trata mais de revivê-los em sua
realidade, porém de recolocá-los dentro de quadros nos quais a história
dispõe os acontecimentos, quadros que permanecem exteriores aos
grupos. (HALBWACHS, 2004, p. 90, grifo nosso)
Assim, a escolha pela percepção da memória do bacharelismo liberal no Brasil
Império (1822-1889), justifica-se por sua relevância, uma vez que se tenta analisar após a
instituição do Império no Brasil, em 1822, como se deu o “liberalismo brasileiro” numa
sociedade analfabeta e alienada trazendo para a sua constituição sérias distorções e limitações.
E é a partir dessa análise que se busca a compreensão de como se deu a formação da cultura
jurídica brasileira, dentro de uma perspectiva formalista, juridiscista, individualista,
patrimonialista e retórica. Salientando que, no Brasil, tanto o liberalismo, como o
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bacharelismo ganharam contornos próprios, levando em consideração todas as peculiaridades
da nossa formação histórica.
É notório, após uma breve análise, que no final do período colonial, o Brasil não
possuía condições de se firmar como nação: de cada três brasileiros, dois eram escravos; a
maioria da população vivia em miséria e era, em sua maioria, analfabeta; era dominada pelo
latifúndio e, ainda existia a escravidão. Existia um temor que houvesse uma rebelião de
escravos, além do que, tudo indicava para uma guerra civil que resultaria na fragmentação
territorial.
Uma das explicações coerentes que indicam para a manutenção da integridade do
território e o fez se firmar com nação independente é o fato de a elite brasileira conseguir
envolver o Príncipe D. Pedro I em seus planos: declarar a independência do Brasil. Portanto,
faz-se claro a importância que os bacharéis tiveram para a vida sócio-política do país, a ponto
de colaborar com a construção do Estado nacional e, consequentemente, com a constituição
do Poder Judicário:
O país foi edificado de cima para baixo. Coube à pequena elite imperial,
bem-preparada em Coimbra e outros centros europeus de formação, conduzir
o processo de construção nacional, de modo a evitar que a ampliação da
participaçao para o restante da sociedade resultasse em caos e rupturas
traumáticas. (GOMES, 2010, p. 23)
Foi longo o caminho percorrido para que houvesse o aprimoramento do ideal de
Justiça no Brasil. Desde a organização primitiva do Poder Judiciário, ainda na época da
colonização portuguesa, até a Constituição Federal de 1988, quando se inaugura a era dos
direitos fundamentais, ainda que controverso, o papel do bacharel foi essencial na
configuração desse cenário jurídico Segundo, Gomes (2010):
Apesar do isolamento e do atraso, as ideias revolucionárias chegavam ao
Brail, mas geralmente de forma clandestina, em publicações
contrabandeadas ou reuniões de sociedades secretas [...]. Viajavam também
na bagagem da pequena elite brasileira que tivera a oportunidade de estudar
em Coimbra e em outras universidades europeias no final do período
colonial. (GOMES, 2010, p. 51)
O primeiro curso jurídico, no entanto, só foi implantado no Brasil em 1827,
(inicialmente em Olinda, transferido posteriormente para Recife), já que a formação de
bacharéis não foi uma necessidade imediata. No entendimento de Américo Lacombe(1985):
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A formação de juristas não era urgente. A Universidade de Coimbra
forneceu-nos bacharéis em Direito em número suficiente [...]. A relação de
nossos estadistas, magistrados e professores é toda de bacharéis de Coimbra.
Todo o Brasil político e intelectual foi formado em Coimbra, único centro
formador do mundo português. Era um ponto básico da orientação da
Metrópole essa formação centralizada. (LACOMBE, 1985, p. 361).
Destacam-se alguns juristas que possuíram inegável importância na configuração do
Estado Nacional: José Bonifácio, Azeredo Coutinho, Teixeira de Freitas, Epitácio Pessoa,
Nilo Peçanha, Pontes de Miranda, Clóvis Beviláqua, Tobias Barreto, Washington Luis, Castro
Alves, Olavo Bilac e Rui Barbosa.
Portanto,
o
bacharelismo
entendido
como
“a
situação
caracterizada
pela
predominância de bacharéis na vida política e cultural do país” (Holanda, 1993, p. 115) revela
a importância que os bacharéis tiveram na estruturação do Estado. Analisando a historiografia
brasileira e a estreita relação entre a formação do Estado Nacional e os núcleos formadores do
bacharelismo, faz-se imprescindível asseverar que o Segundo Reinado foi o “reinado dos
bacharéis”.66 Foi nesta época que D. Pedro II, o “imperador-bacharel”, incentivou as artes de
um modo geral, dando ênfase às letras e a música, além de ter sido também durante o
Segundo Reinado que foram produzidos o Código Penal, o Código de Processo Criminal, o
Código Comercial e o Regulamento 737 (que deram origem ao Código de Processo Civil).
Considerações finais
Dentro dessa perspectiva, buscando explicar o presente e relacioná-lo com o futuro
através do passado, demonstram-se como objetivos dessa investigação o de relacionar a
estruturação do Estado Nacional com os núcleos do bacharelismo liberal. Destacando como
os bacharéis ainda formados em Portugal, na Universidade de Coimbra, influenciaram na
construção de uma cultura jurídica e como a mesma esteve diretamente ligada à formação do
Estado Nacional. Nessa época, todos os magistrados e professores eram bacharéis de
Coimbra, todo o Brasil político e intelectual era oriundo do único centro formador do mundo
português. Assim, foi somente em 1827 que ocorreu definitivamente a implantação dos cursos
jurídicos no Brasil. Já declarada a independência e tendo em vista a necessidade de não se
A expressão “reinado dos bacharéis” foi muito felizmente utilizada por Gilberto Freyre, já que para ele
“ninguém foi mais bacharel nem mais doutor neste País que Dom Pedro II”. (FREYRE,1981, p. 579)
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“importar” bacharéis portugueses, mas de fundar as bases jurírdicas para a construção do
Estado Nacional.
Para tanto, ao realizar essa análise historiográfica do período do Brasil Império e do
período colonial que antecedeu o bacharelismo, fez-se necessário o conceito de memória
coletiva de Maurice Halbwachs igualmente utilizado pelo jurista belga François Ost para
correlacionar tempo e direito.
Após breve relato acerca das bases sociológicas e ideológicas da historicidade dos
atores jurídicos no Brasil, foram analisados os fatores e as influências que o bacharelismo
liberal sofreu, demonstrando quais foram as origens do bacharelismo liberal no Brasil Império
(1822-1889).
Assim, o desejo de realizar essa pesquisa esteve pautado na tentativa de compreender
como as características culturais no âmbito sócio-jurídico, presentes na época do Império,
manifestam-se até hoje como gerador de diretrizes patrimonialistas e burocráticas que
consolidaram o Brasil como um Estado, mas sem identidade nacional.
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