CARLOS ALBERTO ALVES
PRÁTICAS CULTURAIS DA REPÚBLICA VELHA DECANTADAS NA LITERATURA DE
LIMA BARRETO E DE MONTEIRO LOBATO
CURITIBA
2014
CARLOS ALBERTO ALVES
PRÁTICAS CULTURAIS DA REPÚBLICA VELHA DECANTADAS NA LITERATURA DE
LIMA BARRETO E DE MONTEIRO LOBATO
Dissertação apresentada como requisito
para a obtenção do Grau de Mestre ao
Curso de Mestrado em Teoria Literária do
Centro Universitário Campos de Andrade –
UNIANDRADE.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Mail Marques de
Azevedo
CURITIBA
2014
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Mail Marques de Azevedo pelo acolhimento, pela paciência,
pela orientação segura e competente, e pela busca constante da melhoria deste
trabalho.
“Ontem explicava o mal da nossa raça: preguiça de pensar”
Monteiro Lobato
“Nunca houve tempo, em que se inventassem com tanta perfeição tantas ladroeiras
legais”
Lima Barreto
SUMÁRIO
RESUMO ............................................................................................................................. VII
ABSTRACT ..........................................................................................................................VIII
INTRODUÇÃO .....................................................................................................................
1
1 REFERENCIAL TEÓRICO METODOLÓGICO.................................................................. 14
1.1 Contexto sócio-histórico-cultural...................................................................................... 15
1.2 Literatura e sociedade..................................................................................................... 18
1.3 Ironia, um risco. .............................................................................................................. 23
2 PRÁTICAS CULTURAIS DA REPÚBLICA VELHA......................................................... 37
2.1 O FUNCIONALISMO ..................................................................................................... 37
2.1.1 Candidatos ao serviço público ................................................................................... 42
2.1.2 O ingresso ................................................................................................................. 43
2.1.3 O funcionário ideal...................................................................................................... 46
2.2 O DOUTORISMO ......................................................................................................... 56
2.2.1 O fetichismo do título.................................................................................................. 60
2.2.2 Formação e ascensão social....................................................................................... 63
2.2.3 Imunidade doutoral .................................................................................................... 67
2.2.4 Personalismo e analogias biológicas ........................................................................
69
2.3 O CONFORMISMO ....................................................................................................
80
2.3.1 A primazia do social sobre o indivíduo ....................................................................
81
2.3.2 Felicidade medíocre .................................................................................................
84
2.3.3 Um caso de inconformismo ......................................................................................
89
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 100
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 104
VI
RESUMO
Tendo como corpus as narrativas de Lima Barreto e a obra adulta de Monteiro
Lobato, este trabalho focaliza, especificamente nos dois autores, a denúncia de
práticas culturais perniciosas no período da República Velha. Pretende-se com a
análise de tais práticas, evidenciar como os autores identificaram as convenções
subjacentes e suas implicações sociais. O embasamento teórico inclui as
considerações de Antonio Candido sobre a relação entre literatura e sociedade, as
questões levantadas por Linda Hutcheon sobre ironia, as reflexões de Jonathan
Culler sobre a relação indivíduo e sociedade, e ainda, textos de sociólogos como
Émile Durkheim e mais especificamente sobre a sociedade brasileira do período em
análise, a obra de Sérgio Buarque de Holanda. A metodologia básica é a
comparação entre “passagens paralelas” em várias obras do mesmo autor, ou em
obras de autores diferentes, sugerida por Antoine Compagnon como método de
pesquisa para verificar a coincidência de ideias. O procedimento permite, no
confronto entre os textos de Lima Barreto e de Monteiro Lobato, observar o emprego
da ironia e da sátira, o que põe em relevo a comunhão de ideias dos autores que,
indignados com a estagnação mental de seus contemporâneos, usam a literatura
como arma no combate às mazelas físicas, sociais e mentais, que apontam como
causa do atraso de um país que se pretendia republicano.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura e sociedade. Ironia e sátira. Lima Barreto e Monteiro
Lobato
VII
ABSTRACT
Having as corpus narratives by Lima Barreto, and Monteiro Lobato´s adult work this
study focuses specifically on the two authors’ denunciation of pernicious cultural
practices in the period of República Velha (Old Republic) in the Brazilian historical
context. The aim of the analysis is to highlight how the authors identified the
underlying conventions of such practices and their social implication. The theoretical
background includes: Antonio Candido’s considerations about the relationship
between literature and society; issues raised by Linda Hutcheon on irony; Jonathan
Culler's reflections on the individual-society relationship, as well as the support of
texts by prominent sociologists such as Émile Durkheim and, more specifically for the
study of Brazilian society in the period, Sérgio Buarque de Holanda’s work. The
basic methodology is the comparison between “parallel passages” in various works
by the same author, or in works by different authors, suggested by Antoine
Compagnon as a research method to verify the coincidence of ideas. The procedure
allows the confrontation between Lima Barreto´s and Monteiro Lobato´s texts which
puts into relief the communion of ideas between the two authors. Outraged at the
mental stagnation of their contemporaries, they make use of irony and satire as
weapons against the physical, mental and social diseases which they believe to be
the causes of the backwardness of a country that intended to be Republican.
KEY WORDS: Literature and society. Irony and satire. Lima Barreto and
Monteiro Lobato
VIII
1
INTRODUÇÃO
Ao observar a sociedade brasileira atual, é impossível não se indignar com
certas práticas, vistas como naturais pelo senso comum, mas que analisadas a
fundo
revelam-se
verdadeiras
manchas
nacionais,
perniciosas
para
o
desenvolvimento social: o apadrinhamento, a exploração da coisa pública – res
publica – e a aceitação passiva de desmandos que a prejudicam.
A aversão que sentimos por práticas tais ganha relevância quando
verificamos que autoridades de representação nacional condenam com veemência
comportamentos vexatórios, que parecem caracterizar a cultura brasileira. A atitude
firme do presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, na condução do
processo rumoroso que galvanizou a opinião pública, empresta autoridade ao
julgamento que faz da sociedade brasileira. Em entrevista ao jornalista Roberto
D’Avila, exibida pela Globo News em fevereiro do corrente, declara: ”O Brasil é o
país dos conchavos, do tapinha nas costas, o país onde tudo se resolve na base da
amizade, e eu não suporto nada disso...”. São comportamentos sociais, conhecidos
popularmente como o jeitinho brasileiro, criticados pelo ministro, mas infelizmente
motivo de orgulho para alguns.
Tais comportamentos ou práticas culturais, enraizadas em nossos costumes
como naturais e aceitáveis, mas que desmoralizam a sociedade brasileira, são
criticadas com veemência por escritores nascidos no quadrante histórico da
República Velha, a exemplo de Lima Barreto e Monteiro Lobato, quando já se
desvanecem as perspectivas de mudanças radicais na vida pública e privada dos
brasileiros, que acompanhassem o alvorecer republicano.
2
A respeito da comunhão dos dois autores na missão de combater mazelas
sociais e literárias, diz Alfredo Bosi: “Dão-se aqui as mãos, para afrontar a
estagnação mental que os revoltava, Lima Barreto e o seu admirador Monteiro
Lobato” (1989, p. 363). Lobato, especificamente, soubera “apontar as mazelas
físicas, sociais e mentais do Brasil oligárquico da I República [...] pela forma irônica e
o gosto da palavra pitoresca” (BOSI, 1989, p. 242). Tal comunhão de objetivos é
ressaltada também por Wilson Martins, na obra História da inteligência no Brasil, ao
comparar o personagem Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, e o Jeca Tatu, de
Lobato: “Ficava, assim, criado, com o Jeca Tatu, o antimito do nacionalismo baboso,
símbolo desmistificador, simétrico ao Policarpo Quaresma [...] os dois autores
voltam, assim, simultaneamente, à literatura, para propor a mesma visão sardônica
da realidade brasileira – e do problema nacional brasileiro” (MARTINS, 1996, p. 14).
Tanto Lima Barreto como Monteiro Lobato, inquietos com o tipo de literatura
da época, não acessível ao público em geral devido à linguagem rebuscada e pouco
significativa, esforçaram-se para corrigir esse distanciamento. Por outro lado,
empenharam-se para que suas obras não se limitassem a fins meramente estéticos,
mas atingissem uma dimensão social de denúncia e de reflexão.
A organização e estudo intensivo da obra de Lima Barreto, a que se dedicou
Francisco de Assis Barbosa, levam-no a conclusões semelhantes. Para Barrreto,
afirma Barbosa, “a literatura era a expressão de um momento da sociedade e não
poderia dela permanecer desligada”. Cita, em confirmação, palavras do próprio
autor:
Parece-me que nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado
todas as velhas regras, toda a disciplina externa dos gêneros, e aproveitar de cada
um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar
reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos,
difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos
3
homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas,
pela revelação das almas individuais e do que elas têm de comum e dependente
entre si. (BARRETO, 2006, p. 79)
Carmem Lucia Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sachetta (2000) na
obra Monteiro Lobato, furacão na Botocúndia, destacam que o trabalho de Lobato:
[...] inaugura estilo próprio, que se confunde com o jornalismo por contemplar, de
forma compreensível para o grande público, temas candentes que, traduzidos
verbalmente, estabeleciam imagens referenciais. [...] para tentar despertar a
consciência social e criar novos padrões de comportamento coletivo. (AZEVEDO;
CAMARGO; SACHETTA, 2000, p. 50)
Comungando os mesmos ideais e nascidos com apenas um ano de
diferença ─ Afonso Henriques de Lima Barreto, em 1881, e José Bento Monteiro
Lobato, em 1882 ─ as diferenças sociais que os separam não poderiam ser mais
profundas. Lima Barreto era pobre, descendente de escravos e, embora tivesse boa
educação ─ frequentou o curso da Escola Politécnica, que não concluiu ─ não
passou de modesto amanuense na Secretaria da Guerra. Sua saúde e equilíbrio
emocional foram destruídos por problemas de alcoolismo. Monteiro Lobato era neto
do Visconde de Tremembé, formou-se em direito, foi proprietário de fazenda,
empreendedor nas suas editoras e chegou a ser adido comercial do Brasil nos EUA.
A diferença de classe social, porém, garante a relevância do julgamento dos
fatos sociais observados. Fossem Lobato e Barreto oriundos do mesmo estrato
social, aquele leitor cético poderia levantar a voz e argumentar que a visão dos
escritores sobre a sociedade, como fruto de condições sociais idênticas, não seria
representativa. No entanto, a coincidência de testemunhos sobre fatos ocorridos no
mesmo espaço e tempo, prestados por testemunhas de antecedentes tão diversos,
torna mais contundentes as denúncias feitas.
4
Pelas lentes de Lima Barreto e de Monteiro Lobato, temos acesso a
microcosmos da sociedade, onde os simples relatos históricos ou ensaios
sociológicos não penetrariam. Assim, seus escritos funcionam como um poderoso
microscópio ou como um “termômetro nervoso de uma frágil República”, expressão
empregada por Lilia Moritz Schwarcs na introdução da obra Contos completos de
Lima Barreto.
A escolha do corpus obedeceu prioritariamente, portanto, à visão comum de
Monteiro Lobato e Lima Barreto sobre o papel da literatura, repetindo as palavras
deste último citadas acima, de “ligar a humanidade em uma maior, em que caibam
todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm de comum e
dependente entre si”. Importa ainda na escolha, o fato da carência da produção
literária no período retratado, primeiras décadas do século XX no Brasil, conforme
comentário de Edgar Cavalheiro que cita Monteiro Lobato e Lima Barreto como
destaques no período:
Por ocasião do aparecimento de Urupês, o movimento literário entre nós,
caracterizava-se por uma completa e absoluta estagnação. Pelo menos com
referência a prosadores. Não se escrevia nem se publicava nada. O jeito era reler o
velho Machado de Assis ou Aluízio de Azevedo, Coelho Neto, João do Rio ou dona
Júlia Lopes de Almeida. Depois desse grupo, que imperou até o começo do século,
somente surgira Afrânio Peixoto, com seus hoje detestáveis romances. Mas na
época era o que de melhor se podia apresentar. No conto, então, a pobreza
passava de franciscana [...] No Rio existia o “caso” de Lima Barreto. Isaías
Caminha é de 1909, e até 1922, embora irregularmente, Lima produziria alguns
contos e romances que desfazem o claro inexistente. (CAVALHEIRO, citado em
CECCANTINI, 2014, p. 45)
Contribuíram para a escolha do corpus, a admiração pessoal pelos autores,
a afinidade com suas ideias e com o inconformismo em relação a aspectos políticosociais deletérios que, surpreendentemente, se observam ainda nos tempos de hoje.
5
As passagens de Lima e Lobato, citadas abaixo, na voz de seus personagens e
narradores, ilustram minha afinidade com o modo de pensar dos autores:
Por que não sou como aquele barrigudo senhor, inconscientemente animalesco,
que não pensa nos fins, nas restrições e nas limitações [...] e ficaria sem a tentação
da analogia, sem o veneno da análise. (BARRETO, 2006, p. 602)
Isto faz-nos lembrar o caso de um sujeito que se apresentou candidato à vereança
e foi derrotado por poucos votos. No dia seguinte à eleição, os jornais davam
notícia da pronúncia do homem como gatuno.
– Que pena esta pronúncia não ter vindo nas vésperas da eleição - disse um cabo
eleitoral.
– Por quê? – interpela um terceiro.
– Porque, se o eleitorado tem certeza de que o homem de fato era gatuno, elegia-o
pela certa. (LOBATO, 2007b, p. 72)
Destaca-se, no trecho de Lima Barreto, o tom de desabafo do crítico social
que desejaria ser simples membro da massa ignara e conformista, a quem pouco se
dá o que acontece à sua volta. A crítica sarcástica de Lobato ao eleitor da época,
por outro lado, repercute ainda hoje, nas esquinas do século XXI, quando o eleitor
brasileiro substitui a reflexão pela atração de nomes famosos.
Decorre das considerações apresentadas o objetivo deste trabalho, qual seja,
analisar como Lima Barreto e Monteiro Lobato retratam as práticas culturais de sua
época, a fim de identificar as convenções subjacentes e suas implicações sociais.
Respaldam nossa abordagem as considerações de Antonio Candido sobre a relação
entre texto literário e contexto sócio-histórico, na obra Literatura e sociedade.
Discute-se ali, em princípio, o movimento pendular diacrônico dos estudos literários
a partir de ênfase sobre o contexto e a biografia do autor, a fim de compreender-lhe
a obra – visão crítica predominante na França, na primeira metade do século XX –
para chegar à consideração exclusiva do texto, característica do estruturalismo.
“Hoje sabemos”, diz Candido, “que a integridade da obra não permite adotar
6
nenhuma dessas visões dissociadas; e que só podemos entender fundindo texto e
contexto numa interpretação dialeticamente íntegra...” (2010, p. 13). É sobre o
alicerce da visão associada de texto e contexto, explanada por Antonio Candido, que
baseamos nossa análise da função social da literatura, em complementação ao seu
valor estético, em obras escolhidas de Lima Barreto e Monteiro Lobato.
Assemelha-se à de Candido a posição de Antoine Compagnon, em O
demônio da teoria (2012), sobre a função da literatura: ainda no início do século XX,
mas principalmente no final do século XIX, a literatura era concebida tanto com a
função de fornecer uma moral social, uma defesa contra a barbárie, um serviço à
ideologia dominante, como a de se opor a essa ideologia, trazendo uma visão
política e social . A literatura pode, portanto, reforçar os costumes e a moral vigente
ou questioná-los (COMPAGNON, 2012, p. 37).
À teorização geral de Candido e Compagnon, acrescentamos estudos
específicos de críticos brasileiros sobre os autores em pauta, relevantes para a
interpretação de sua obra. O já citado Francisco de Assis Barbosa expõe que para
Lima Barreto “[...] a Literatura era a expressão de um momento da sociedade e não
poderia dela permanecer desligada” (BARBOSA, 2006, p.79). João Luiz Ceccantini,
ao comentar a obra Urupês, ressalta que Lobato “... busca uma representação
verista da vida rural brasileira e empenha-se em denunciar as mazelas do país”
(CECCANTINI, 2014, p. 49), comentário que se pode estender às obras do autor
que tratam da vida urbana.
A par de comentários sobre o engajamento social dos autores, a crítica
nacional se pronuncia a respeito de sua criação literária, nem sempre
favoravelmente. O pessoalismo do texto limiano é um dos pontos chave das críticas
7
negativas ao escritor. Seu contemporâneo José Veríssimo censura-lhe o
envolvimento pessoal no retrato de certos aspectos da sociedade do Rio de Janeiro:
Quis o Sr. Lima Barreto [...] representar num quadro de romance certos aspectos
sociais da nossa vida de grande capital [...] O quadro saiu-lhe acanhado e
defeituosamente composto, e a representação sem serenidade, pessoalíssima”
(VERÍSSIMO, 2006, p. 30)
Menos contundente é o julgamento de Tristão de Ataíde: “A história de
Isaías Caminha, como a de Policarpo Quaresma, como a de Gonzaga de Sá, três
encarnações de sua própria personalidade, é esse mesmo contraste entre doçura de
senti e mal de viver” (ATAÍDE, 2006, p.60).
Lília Moritz Schwarcs resume as críticas à representação pessoalíssima de
Lima Barreto, que prioriza aspectos da vida pessoal em sua criação literária: a
condição social inferior e frustrações por não ser incluído em meios intelectuais e
instituições canônicas. Seu inconformismo e ceticismo foram combustíveis para que
colocasse na “boca de seus personagens críticas ao funcionalismo, à mania
nacional de fazer passar por doutor ou aos protecionismos de várias ordens”
(SCHWARCS, 2010, p. 16).
Quanto a Monteiro Lobato, o escritor foi alvo de críticas controversas diante
das polêmicas presentes em sua obra. Marisa Lajolo comenta que:
Até hoje, ele e sua obra pagam um preço alto de um discurso móvel, dinâmico, e
muitas vezes incômodo. [...] No artigo de estreia, a figura do caipira acocorado
desagradou certas vertentes nacionalistas; a férrea oposição lobatiana a regimes
ditatoriais desagradou os políticos no poder; suas campanhas pela exploração do
petróleo e de novos métodos de siderurgia contrariaram inúmeros interesses; seu
desacordo com certas posturas estéticas atraíram críticas acerbas e, mais
recentemente, a representação do negro em sua obra tem gerado muita polêmica.
(LAJOLO, 2014, p. 15)
8
A ironia cortante do texto barretiano e a sátira mordaz da literatura adulta de
Monteiro Lobato põem a nu o panorama social pouco lisonjeiro da chamada
República Velha, em que pululam oportunistas e bajuladores, em busca de
sinecuras que lhes garantam o máximo de rendimento com o mínimo de esforço. O
clientelismo e o apadrinhamento são práticas estabelecidas e aceitas como parte
inerente do modo de ser brasileiro. São práticas culturais, expressão que tomamos
de empréstimo a Jonathan Culler para definir comportamentos que não são
exclusivos do indivíduo e que foram incorporados ao cotidiano das pessoas que
passam a conviver com tais práticas e, às vezes, até a adotá-las, sem a necessária
reflexão. A ausência de crítica leva a crer que tais práticas são naturais. Culler
destaca que “... o principal ímpeto da teoria recente, que é a crítica do que quer que
seja tomado como natural, a demonstração de que o que foi pensado ou declarado
como natural é na realidade um produto histórico, cultural” (CULLER, 1999, p. 22).
Daí, a relevância da corrente dos estudos culturais na atualidade.
Em sua concepção mais ampla, o projeto dos estudos culturais é compreender o
funcionamento da cultura, particularmente no mundo moderno, como as produções
culturais operam e como as identidades culturais são construídas e organizadas,...
(CULLER, 1999, p. 49)
A fim de lançar luz sobre o emprego da expressão práticas culturais,
servimo-nos do conceito de fato social, elaborado por Émile Durkheim:
É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o
indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na
extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência
própria, independente de suas manifestações individuais. (DURKHEIM, 2007, p. 13)
9
O doutorismo, o costume brasileiro de distribuir livremente o título de
doutor, objeto de análise em um dos capítulos deste trabalho, é exemplo de prática
cultural, ou fato social durkheimiano. Primeiramente porque é exterior ao indivíduo,
não foi ele que o criou, já está na sociedade independentemente de sua vontade.
Em segundo lugar, porque é geral e não particular, ou seja, permeia todo o grupo
social. Um terceiro motivo, o mais contundente, porque exerce coerção sobre o
indivíduo: o sujeito que não se ajusta à prática do endeusamento do doutor poderá
sofrer por parte dos membros do grupo algum tipo de coerção – uma reprimenda,
um olhar torto, exclusão, ou seja, será penalizado por não seguir o costume coletivo.
Já Roger Chartier, em À beira da falésia (2002), faz uso da expressão
representação coletiva para designar “o conjunto de formas teatralizadas e
‘estilizadas’ (na expressão de Max Weber) graças às quais os indivíduos, os grupos,
os poderes constroem e propõem uma imagem de si mesmos” (CHARTIER, 2002, p.
177).
Neste trabalho optamos pela expressão práticas culturais por ser a que mais
se aproxima de estudos literários, na tendência atual de buscar compreender a
construção das identidades culturais. Incluem-se nas práticas culturais a serem
observadas nas obras do corpus: política, religião, educação, questão racial,
situação da mulher, estratificação social, condições da agricultura e da urbanização.
Arrolamos como de especial interesse para a análise crítica certas práticas que
funcionarão como balizas do retrato da sociedade brasileira traçado por Lima
Barreto e Monteiro Lobato, o funcionalismo e o doutorismo. São práticas culturais
arraigadas na sociedade brasileira, desde a época colonial, indicativas da ambição
do homem comum de partilhar das benesses da coisa pública (res publica). É
possível associar tais atitudes ao que Pierre Bourdieu chama de poder simbólico,
10
“esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que
não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU,
1989, p. 8). Consciente ou inconscientemente, essa cumplicidade gera o
conformismo, a terceira baliza da estrutura deste trabalho.
Como demonstramos acima, é cabível estabelecer paralelos entre textos de
Lima Barreto e Monteiro Lobato com vistas à sua visão do papel social da literatura.
Tal paralelismo é estabelecido na análise crítica de textos de Lima e Lobato
distribuídos em diferentes capítulos, conforme os temas aglutinadores escolhidos:
funcionalismo, doutorismo e conformismo.
Como metodologia faremos a comparação de textos dos autores do corpus
para identificar críticas e reflexões comuns. É o que Compagnon denomina de
método de passagens paralelas, que ele considera “o método mais geral e menos
controvertido, em suma, o procedimento essencial da pesquisa e dos estudos
literários” (COMPAGNON, 2012, p. 67).
Quanto à não relevância da relação autor-texto, Compagnon argumenta que
há situações em que é necessário considerar a intenção do autor. A ironia e a sátira,
por exemplo, são categorias que apenas fazem sentido quando se considera a
intenção do autor de escrever uma coisa para ser compreendida por outra.
“Implicitamente”, destaca ele “o método das passagens paralelas apela, pois, para a
intenção do autor, se não como projeto, premeditação ou intenção prévia, pelo
menos como estrutura, sistema e intenção em ato” (p. 71). ”Trata-se sempre, a partir
de passagens paralelas, de detectar uma rede latente, profunda, subconsciente ou
inconsciente” (p. 76).
11
Veremos, no decorrer deste trabalho, que ironia e sátira são táticas comuns
nos textos de Lima Barreto e Monteiro Lobato. Compagnon alerta sobre os
pressupostos desse método:
O método das passagens paralelas pressupõe não apenas a pertinência da
intenção do autor para a interpretação dos textos (preferimos uma passagem
paralela do autor a uma passagem paralela de um outro autor), mas também a
coerência da intenção do autor. (COMPAGNON, 2012, p. 74)
O autor recorre à observação, citada em seu trabalho, do crítico americano P.
D. Juhl, para afirmar a importância do método das passagens paralelas: “mesmo os
críticos mais reservados quanto à intenção do autor, como critério da interpretação,
não hesitam em convocar passagens paralelas para explicar o texto sobre o qual
trabalham” (JUHL, citado em COMPAGNON, 2012, p. 71).
No texto intitulado “Ressurreição do autor implícito”, Wayne Booth reforça a
posição expressa em sua obra seminal The Rhetory of Fiction (1961) sobre a
importância da intenção do autor: “Não entendo como é possível acreditar que as
intenções do autor a respeito de um trabalho sejam irrelevantes para o modo como
lemos o texto” (BOOTH, 2005, p. 75)1. Trata-se evidentemente do que Booth chama
de autor implícito, e não do autor de carne e osso em sua existência extratextual.
A ideia corrente na crítica atual denuncia a pertinência da intenção do autor,
tendo à frente a tese da morte do autor aventada por Roland Barthes e ensaios de
Michel Foucault, em especial “O que é um autor?” Este último resulta da conferência
pronunciada por Foucault, diante da Sociedade francesa da filosofia, em 1969, em
que afirma o apagamento do autor, tornou-se para a crítica um termo corriqueiro.
Mas, o que importa não é verificar ainda uma vez seu desaparecimento, mas
1
Texto traduzido pela Profª Mail Marques de Azevedo.
12
considerar como lugar vazio, a um tempo indiferente e constrangedor, as
localizações em que se exerce sua função.
Estruturamos este trabalho em apenas dois capítulos: no primeiro
construímos o pano de fundo da pesquisa que inclui o contexto sócio-históricocultural da chamada República Velha, e o embasamento teórico necessário para o
desenvolvimento da argumentação. Para analisar a relação entre literatura e
sociedade, explora-se a obra homônima de Antonio Candido. Teoria literária de
Jonathan Culler fornece os conceitos básicos de práticas culturais e subsídios para a
compreensão da agência do indivíduo na sociedade. O trabalho de Linda Hutcheon,
Teoria e política da ironia, é o texto base para tratar da ironia, tropo contundente
para interpretação das narrativas de Lima Barreto e Monteiro Lobato. O aspecto
satírico é discutido como corolário da ironia dos textos como arma de
conscientização do leitor.
O segundo capítulo aponta e analisa as práticas culturais selecionadas: o
funcionalismo, o doutorismo e o conformismo. Para os dois primeiros aspectos
será analisado como o grupo se caracteriza, o espírito de que está imbuído, de que
classe provém, qual sua motivação e como é visto pelos demais indivíduos. Para o
último, a prática cultural que estagnou a sociedade brasileira do início do século XX
e que manteve o status quo imoral que imperava naquela sociedade, analisar-se-á
como os autores denunciaram a ausência de reflexão, a preguiça intelectual e a
felicidade medíocre que favoreceram costumes nefastos para a sociedade.
Importante função estratégica em suas narrativas assume o diálogo, de modo a
elucidar o leitor e desenvolver seus personagens, símbolos que abarcam todos os
indivíduos “oprimidos pela ordem vigente, a tomar consciência de sua situação...”
(DE LUCA, 2014, p. 364).
13
Inicia-se cada subitem – o funcionalismo, o doutorismo e o conformismo –
justificando a escolha das práticas culturais que constituem o motivo central, por
meio de referências a obras discursivas e de ficção de Lima Barreto e Monteiro
Lobato. Nas subdivisões ilustram-se aspectos do motivo central com a análise de
excertos da prosa curta e longa dos autores.
14
1 REFERENCIAL TEÓRICO METODOLÓGICO
Nicolau Sevcenko, em Literatura como missão (1999), dedica-se a rever a
história cultural do Brasil do início do século XX, particularmente da capital federal, o
Rio de Janeiro, a partir de obras literárias do período. Aponta nessa obra que a
literatura é a forma de produção discursiva que
[...] constitui possivelmente a porção mais dúctil, o limite mais extremo do discurso,
o espaço onde ela se expõe por inteiro, visando reproduzir-se, mas expondo-se
igualmente à infiltração corrosiva da dúvida e da perplexidade. É por onde desafiam
também os inconformados e os socialmente mal-ajustados. Essa é a razão por que
ela aparece como um ângulo de estratégia notável, para a avaliação das forças e
dos níveis de tensão existentes no seio de uma determinada estrutura social.
Tornou-se hoje em dia quase que um truísmo a afirmação da interdependência
estreita existente entre os estudos literários e as ciências sociais. (SEVCENKO,
1999, p. 20)
É pertinente associarmos os autores do corpus à passagem de Sevcenko ao
citar a literatura como caminho possível por onde trilham os inconformados e malajustados.
O crítico literário Terry Eagleton, na obra A ideia de cultura, também enfatiza
a relevância de obras literárias para a compreensão da cultura: “É assim que, no
transcorrer do século XIX, o romance realista se torna uma fonte de conhecimento
social incomparavelmente mais vívida e complexa do que qualquer sociologia
positivista” (EAGLETON, 2000, p. 76).
O romance Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, seria um
exemplo de fonte de conhecimento sobre questões sociais, de um período
específico da história de um país, expresso na literatura.
15
Neste trabalho, empregar-se-á o termo cultura como uma teia de
significados que o próprio homem criou e sobre a qual ele age e pensa. Essa ideia
foi baseada no conceito elaborado por Clifford Geertz (1989)
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a
sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas
como uma ciência interpretativa à procura de significado. (GEERTZ, 1989, p. 4)
A relevância das estruturas de poder nas interrelações individuais na vida
em sociedade, discutidas por Roger Chartier em História cultural entre práticas e
representações (1988), complementam o conceito de cultura adotado nesta
pesquisa.
As modalidades de agir e de pensar, [...], devem ser sempre remetidas para os
laços de interdependência que regulam as relações entre os indivíduos e que são
moldados, de diferentes maneiras em diferentes situações, pelas estruturas de
poder. (CHARTIER, 1988, p. 25)
Atinge-se o ponto específico do desenvolvimento deste trabalho, relacionar
literatura e sociedade, literatura e cultura. Como primeiro item discute-se o contexto
sócio-histórico-cultural da Primeira República.
1.1 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO-CULTURAL
A proclamação da República, em 1889, trouxe expectativas otimistas nos
campos político, econômico e social. Na política esperava-se uma separação entre o
público e o privado, e que a escolha dos governantes levasse o país rumo à
moralidade na administração pública. O país era predominantemente agrícola em
termos econômicos. Grande contingente de ex-escravos e imigrantes buscavam
oportunidades nos centros urbanos que cresciam desordenadamente com
16
construções irregulares, sem infraestrutura e políticas públicas para a inclusão de
toda essa gente.
No campo político, os historiadores Jean Carlos Moreno e Sandro Vieira
Gomes, em O Contemporâneo: mundo das rupturas (2010), apontam que com o
advento do federalismo, o poder dos estados cresceu e também o poder local
exercido pelos chamados coronéis:
Os detentores do poder local, durante toda a Primeira República, foram chamados
de coronéis. [...] Oriundos de troncos familiares tradicionais e com a inexistência de
uma carreira para o serviço público, como líderes políticos de suas localidades, os
“coronéis” distribuíam cargos públicos entre seus familiares e agregados,
favorecendo o clientelismo e o nepotismo. [...] A República das Oligarquias
colocava a “coisa pública” sob o domínio privado. Era uma sociedade
extremamente desigual e excessivamente dependente do Estado. (MORENO;
GOMES. 2010, p. 163)
No campo intelectual, imperavam as ideias do positivismo na elite
acadêmica voltada para cultura europeia e distante da nossa realidade. Na esteira
do positivismo, chegavam ao Brasil: o darwinismo social – conjunto de teorias que
defende a diferenciação intelectual e moral dos humanos de acordo com suas
heranças fisiológicas; o método de Taine que busca compreender o homem à luz de
fatores determinantes como meio ambiente, raça e momento histórico; e o
pensamento de Spencer quanto à sobrevivência do mais apto que aplica as leis da
evolução de Darwin a todas as atividades humanas. Trata-se em suma do conjunto
de ideias que privilegia a raça branca ocidental, tida como civilizada e justificava sua
dominação colonial. A miscigenação é considerada deletéria, o que incita a
sociedade a todo tipo de exclusão social. Portanto o positivismo e o ponto de vista
eurocêntrico imperavam no contexto social em que vivem e escrevem Lima Barreto e
Monteiro Lobato.
17
Francisco de Assis Barbosa aponta que Lima teve acesso a essas ideias
ainda muito jovem, quando sua curiosidade intelectual “concentrou-se, então, em
Darwin, Spencer, Taine e Renan, autores da moda, que tanta influência haviam
exercido na geração anterior à sua” (BARBOSA, 2006, p. 77). Leituras que levou
para suas narrativas, quer realizando reflexões por meio dos personagens quer
expondo situações do cotidiano que demonstram a repercussão dessas teorias.
Exemplo é o prefácio de Recordações do escrivão Isaías Caminha, no qual o
próprio Isaías declara que a motivação para escrever suas recordações foi a leitura
de um fascículo de uma revista nacional no qual “um dos seus colaboradores fazia
multiplicadas considerações desfavoráveis à natureza da inteligência das pessoas
do meu nascimento” (BARRETO, 2006, p. 116) Embora essa leitura tenha
provocado ódio e desejos de escrever “[...] algumas verrinas contra o autor...” (p.
116), após reflexão Isaías resolve escrever suas recordações, mas sem deixar de
responder ao colaborador do fascículo. Diz o personagem:
E foram tanto os casos dos quais essa minha conclusão ressaltava, que resolvi
narrar trechos de minha vida, sem reservas nem perígrafe, para de algum modo
mostrar ao tal autor do artigo, que, sendo verdadeiras as suas observações, a
sentença geral que tirava, não estava em nós, na nossa carne e nosso sangue,
mas fora de nós, na sociedade que nos cercava, as causas de tão feios fins de tão
belos começos. (BARRETO, 2006, p. 117)
Quanto às influências de Lobato, Carmem Lucia Azevedo, Marcia Camargos
e Vladimir Sachetta (2000), na obra Monteiro Lobato, furacão na Botocúndia,
apontam que “... logo aos dezoito anos, levando-o a saltar de pensadores como Le
Bon a Augusto Comte, e daí a Herbert Spencer, Lobato aporta em Nietzche,”
(AZEVEDO; CAMARGOS; SACHETTA, 2000, p. 22). Na faculdade de Direito do
Largo São Francisco recebeu influências dos professores Almeida Nogueira e Pedro
18
Lessa, o primeiro, “tendo muito provavelmente incutido em Lobato o interesse pela
economia e negócios” e o segundo as ideias de:
defensor da liberdade de pensamento e expressão como indispensável à dignidade
humana. Os ideais de justiça, que pregava intransigentemente, calaram fundo no
jovem que já sonhava com a utopia, e podem ser divisados ao longo de toda a obra
lobatiana”. (AZEVEDO; CAMARGOS; SACHETTA, 2000, p. 17)
Marcante também foi a influência de Belisário Pena, cujo texto Saneamento
do Brasil alterou profundamente o julgamento de Lobato sobre o mundo rural:
[...] um texto que iria influenciá-lo profundamente, levando-o a repensar seus juízos
sobre o mundo rural: Saneamento do Brasil, de Belisário Pena, obra-chave que
encerrava, como escreveria mais tarde, “a fase brasileira da mentira sistemática em
relação à nossa higidez” e abria “o período fecundo do combate aos males
endêmicos. (AZEVEDO;CAMARGOS;SACHETTA, 2000, p. 55)
1.2 LITERATURA E SOCIEDADE
“Ela (a literatura) é o testemunho triste, porém sublime,
dos homens que foram vencidos pelos fatos”
Nicolau Sevcenko
Lima Barreto e Monteiro Lobato usam dos meios de comunicação
disponíveis na época – livro, jornal e a revista – para despertar a consciência social
e provocar novos padrões de comportamento nos indivíduos, chamando-os à
reflexão. Se sua literatura não poderia reformular o mundo, poderia ao menos
modificar a opinião dos concidadãos.
Compagnon, na obra O demônio da teoria, expõe os vários papéis atribuídos
à literatura ao longo do tempo. Passa pelos papéis de purgação, de instrução e
deleite, e de fornecer uma moral social – vista como contribuinte à ideologia
dominante ou subversiva quando produz dissensão e ruptura. Esta última função
19
contribui para que a literatura assuma “uma perspicácia política e social”
(COMPAGNON, 2012, p. 37) que esclarece o povo. Como veremos adiante, esta é,
segundo Barreto e Lobato, a função principal de sua obra literária.
Costa Lima, em seu trabalho História, ficção, literatura, ao discutir o papel da
ficção como reformuladora do mundo, aponta que “Não foram os romances e
ensaios de Rousseau que provocaram 1789, mas simplesmente seu estímulo a um
estado de revolta que fermentava havia anos e por diversas razões” (LIMA, 2006, p.
284). O autor adverte sobre a relevância do papel do leitor “Não esqueçamos que a
ficção tem uma pragmática própria. Ela exige de seu receptor a capacidade de
romper com os automatismos que presidem as interações cotidianas e,
simultaneamente, o fluxo difuso da fantasia” (LIMA, 2006, p. 284).
Antonio Candido, na obra Literatura e sociedade, comenta que a relação
entre texto literário e contexto sócio-histórico oscila entre momentos em que era
considerada importante e outros em que a critica literária ignora as relações
extratextuais. Mas, “Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar
nenhuma dessas visões dissociadas; e que só podemos entender fundindo texto e
contexto numa interpretação dialeticamente íntegra [...]” (CANDIDO, 2010, p. 13).
Candido ressalta que não se deve confundir o papel da análise literária com uma
sociologia, cujo foco está na pesquisa da voga de um livro, na preferência estatística
por um gênero, o gosto das classes, a origem social dos autores, a economia e a
política. O problema da análise literária é outro e o que “interessa é averiguar que
fatores atuam na organização interna (da obra)” (p. 14). Os fatores sociais levados
em consideração na análise não se devem limitar a fornecer “apenas matéria
(ambiente, costumes, ideias, grupos)” (p. 15), mas ir além, verificar o quanto atuam
na constituição essencial da obra de arte.
Um fato, como a nomeação de um
20
funcionário público baseado nos critérios de simpatia e familiaridade, representa um
sentido
“social
simbólico,
pois
é
ao
mesmo
tempo
representação
e
desmascaramento de costumes vigentes na época” (p. 15).
Ao criar personagens e expor seus comportamentos sociais, o escritor
explicita as raízes e as consequências de suas práticas culturais. Uma análise mais
profunda do texto literário pode sugerir uma explicação para o condicionamento ou
para a agência dos indivíduos na sociedade. Dessa forma, o crítico leva em conta o
social, de maneira explicativa, não meramente ilustrativa e exterior ao texto.
Segundo Candido, se considerarmos os fatores sociais “no seu papel de
formadores da estrutura, [...] veremos que tanto eles quanto os psíquicos são
decisivos para a análise literária” (CANDIDO, 2010, p. 22). Ao indagar sobre a
influência do meio na obra de arte, ou, ao contrário, a influência desta sobre o meio,
Candido aponta para uma interpretação dialética. Ao analisar os elementos
fundamentais na comunicação artística – autor-obra-público – aponta que esse
movimento dialético “envolve a arte e a sociedade num vasto sistema solidário de
influências recíprocas” (p. 34).
Nesse campo de influência, Candido agrupa as obras em “de agregação” e
“de segregação”. De agregação é aquele grupo que incorpora o que já está
estabelecido na sociedade, ou seja, que mantém o status quo. O contrário deste é o
grupo de segregação, o que provoca a renovação e a criação de recursos, uma
espécie de reflexão visando à mudança de comportamento. Monteiro Lobato e Lima
Barreto fariam parte do grupo de segregação.
Candido enfatiza, ainda, a grande influência que o jornalismo exerceu sobre
a literatura, criando novos gêneros como a crônica, gênero que Lima Barreto e
Monteiro Lobato exploraram, com grande sucesso. No período da República Velha,
21
a maior parte da população brasileira era composta de iletrados e mesmo entre os
letrados o interesse direto em obras literárias era restrito. Nesse contexto, o jornal
torna-se uma forma mais popular, capaz de atingir maior número de leitores, pois
circula na rua, trabalha com o cotidiano em linguagem mais acessível a um público
menos refinado. São fatores relevantes para escritores como Lima Barreto e
Monteiro Lobato que tão bem combinam espírito arguto e crítica à capacidade de
expressar em linguagem acessível a sua indignação moral.
Ao tratar da função da literatura, Candido distingue três tipos: função total,
social e ideológica. A função total caracteriza-se por uma representação da
humanidade, com relativa intemporalidade e universalidade, sem se prender a lugar
nem a momentos. A função social abrange o que a obra desempenha na construção
das relações sociais, na realização de necessidades espirituais e materiais e “na
manutenção ou mudança de uma certa ordem na sociedade” (CANDIDO, 2010, p.
55). A função ideológica refere-se a obras que divulgam ideias do autor e objetivos a
atingir, o que depende diretamente da recepção do leitor; assim, é o público leitor
que apontará o grau de aceitação das ideias divulgadas. Neste trabalho ganhará
evidência a função social, como a que melhor caracteriza os textos de Lima e
Lobato.
Jonathan Culler ao abordar a relação entre literatura e ideologia, aponta que
os romances são importantes mecanismos de internalização das normas sociais,
agindo como confirmação da ideologia dominante; mas podem também desacreditála, quando fornecem uma modalidade de crítica social (CULLER, 1999, p.94). O
leitor assume um ponto de vista por meio da identificação com os personagens.
Diz-se que a literatura corrompe através dos mecanismos de identificação. Os
paladinos da educação literária esperam, ao contrário, que a literatura nos
22
transforme em pessoas melhores através da experiência vicária e dos mecanismos
de identificação. (CULLER, 1999, p. 111)
Para discutir a relação entre convenções sociais e os atos individuais,
segundo Culler, duas perguntas subjazem ao pensamento moderno: “[...] primeiro, o
eu é algo dado ou é algo construído e, segundo, ele deveria ser concebido em
termos individuais ou sociais?” (p. 107) Ou seja, a questão levantada é qual a
implicação dos fatores sociais na composição da situação e da compreensão da
realidade pelo indivíduo. “O problema de Emma Bovary, você pode argumentar, não
é sua insensatez ou sua fascinação por aventuras amorosas, mas a situação geral
da mulher em sua sociedade” (p. 110). A situação de Emma é produto da condição
da mulher na sociedade francesa do século XIX – oprimida e sem voz – e não de
sua natureza.
A literatura, como prática discursiva, desempenha um papel contundente
nessa questão, não no sentido de oferecer solução, mas como uma “perspectiva de
mais reflexão” (CULLER, 1999, p. 117). Para essa reflexão, Culler aponta a
relevância da relação entre estudos literários e estudos culturais:
Em sua concepção mais ampla, o projeto dos estudos culturais é compreender o
funcionamento da cultura, particularmente no mundo moderno: como as produções
culturais
operam
e
como
as
identidades
culturais
são
construídas
e
organizadas,[...]. (CULLER, 1999, p. 49)
Desta forma, a literatura desempenha papel relevante na desnaturalização
do conformismo cultural, mostrando que há por trás das práticas culturais
determinadas convenções que acarretam implicações sociais. Como discutido
anteriormente, utilizamos a expressão “práticas culturais” para definir o foco de
nossa análise dos textos.
23
Questão importante para este trabalho é a interpretação sintomática do texto
como um “sintoma de algo não-textual [...] que é a fonte real de interesse, seja ela a
vida psíquica do autor ou as tensões sociais de uma época”. Entretanto, ressalva
Culler, que “quando enfoca a prática cultural da qual a obra é um exemplo, pode ser
útil para uma explicação daquela prática” (CULLER, 1999, p. 71). É este exatamente
o foco deste trabalho: analisar textos de Lobato e Barreto, que expõem ao ridículo
práticas culturais da República Velha, por meio da ironia e da sátira, de modo a
provocar o estranhamento.
1.3 IRONIA, UM RISCO
“Peço desculpas a quem não entendeu a intenção da coluna.
[...] Talvez tenha faltado o aviso ‘Atenção: ironia’.
De qualquer jeito, culpa minha.”
Luis Fernando Veríssimo
A epígrafe foi uma explicação que o escritor Luis Fernando Veríssimo
resolveu publicar devido à repercussão de sua crônica “A audácia”, publicada no
jornal O Globo, de 15 de outubro de 2002. Na crônica, Veríssimo comenta o ato do
presidente Luís Inácio Lula da Silva, de origem humilde, provar um vinho francês
sofisticado. Sobre o fato, Luiz Costa Pereira Junior, editor da revista Língua
portuguesa, comenta que “Mesmo autores de gênio, como Luis Fernando Veríssimo,
passam cada vez mais pelo constrangimento de explicar a leitores incautos a ironia
de seus textos” (PEREIRA, 2013). Em tom de revolta, muitos leitores escreveram à
redação do jornal tachando Veríssimo de preconceituoso e elitista.
Qual o porquê das pessoas não entenderem, ou entenderem mal, a intenção
irônica na linguagem oral ou escrita? Pode-se colocar na conta da ignorância, da
24
inexperiência com textos, da falta de atenção, ou mesmo a preguiça de pensar um
pouco mais?
Linda Hutcheon, na obra Teoria e política da ironia, aponta que:
[...] talvez o que se chama de ignorância (e mesmo falta de prática ou contexto)
seja simplesmente uma questão de o ironista e o interpretador pertencerem a
diferentes comunidades discursivas que não se intersectam ou não se sobrepõem
suficientemente para que se compreenda uma elocução como sendo irônica.
(HUTCHEON, 2000, p. 145)
Comunidades discursivas envolvem aspectos sociais, históricos e culturais.
Se o ironista – o autor da ironia – e o interpretador – o leitor – compartilham de
contextos experienciais e discursos diferentes, o texto irônico corre grande risco de
não ser compreendido como tal e sua interpretação ganhar caminhos tortuosos. “A
ironia, então, significará coisas diferentes para diferentes jogadores” (HUTCHEON,
2000, p. 28). Assim não há nenhuma garantia para o ironista que seu texto atinja o
leitor da maneira desejada.
A polêmica em torno da obra de Monteiro Lobato foi parar no Supremo
Tribunal Federal, em virtude de implicações de racismo. À representação junto à
Controladoria-Geral da União (CGU) contra o uso do livro Caçadas de Pedrinho nas
escolas brasileiras, seguiu-se a ação de autoria do Instituto de Advocacia Racial e
Ambiental (IARA) contra o conto “Negrinha”. Ambas alegam que a legislação
antirracista não foi respeitada quando da aquisição das obras pelo Programa
Nacional da Biblioteca na Escola (PNBE). Uma vez que os conteúdos são racistas,
os livros não poderiam ser comprados com dinheiro público e distribuídos às
escolas, sem ao menos notas explicativas sobre o texto e até que os professores
fossem devidamente capacitados para abordar o tema.
A atitude dos autores das ações judiciais, ao alegarem que os textos
25
lobatianos necessitam de notas explicativas e que os professores não estão
preparados para a leitura de Lobato, ilustra o risco do emprego da ironia, ressaltado
por Hutcheon, quando o autor e o leitor não fazem parte da mesma comunidade
discursiva. A autora adverte que em uma sociedade democrática “onde diferentes
posições ou verdades teoricamente coexistem e são valoradas, a ironia é ainda mais
arriscada”, pois alguns “poderiam também não atribuir ironia e pensar que você
estivesse defendendo o que você na verdade está criticando” (HUTCHEON, 2000, p.
35). O conto “Negrinha” de Monteiro Lobato ilustra a questão.
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, vergões. Batiam nele os da casa todos
os dias, houvesse ou não houvesse motivos. Sua pobre carne exercia para os
cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. [...] A
excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da
escravidão, fora senhora de escravos – e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar
o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo – essa indecência de
negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! (LOBATO, 2008a, p. 21)
Destacam-se no trecho acima, a ironia no emprego do adjetivo “excelente”
referindo-se a Dona Inácia e o discurso indireto livre “essa indecência de negro igual
a branco e qualquer coisinha: a polícia!” no qual o narrador se afasta e deixa a
própria personagem – Dona Inácia – emitir seu pensamento. Uma leitura desatenta,
ou maldosa, deixa passar despercebida a ironia do texto, tanto no adjetivo excelente
como no discurso indireto livre.
À questão do pertencimento a comunidades discursivas diferentes,
acrescenta-se a de que certos assuntos podem ser inapropriados numa certa época
(HUTCHEON, 2000). Talvez essa fosse uma possível explicação para a polêmica
sobre a obra de Monteiro Lobato, principalmente no momento atual, no Brasil, onde
a exacerbação do politicamente correto tem gerado muitas discussões.
26
Para evitar interpretações errôneas, Luis Carlos Pereira Junior comenta que:
Para garantir que a preguiça interpretativa, a velocidade da leitura ou o pouco
espaço para a escrita não desperdicem uma intenção sarcástica, uma voz de
comando ou o ardor de um escritor despreparado, tipógrafos de várias épocas
tentaram tornar mais flagrantes, já na pontuação, a existência de intenções
discursivas. (PEREIRA, 2013, p. 18)
Pereira aponta que é de 1668 o primeiro emprego de sinal diacrítico para
sinalizar declarações irônicas, que era dada por um ponto de exclamação invertido
no final da frase (ꜟ). Monica Alvarez Gomes das Neves, na sua tese de doutorado
“Aspectos cognitivos na constituição da ironia”, defendida na UFRJ, destaca o alto
percentual do uso de aspas como recurso para marcar a ironia. Atualmente, nos
discursos orais, não tem sido raro encontrarmos pessoas utilizando o gesto manual
de aspas para indicar ao seu interlocutor que aquela expressão não significa o que
está sendo dito.
Mas, marcar a ironia com sinais seria um modo de explicá-la, o que a
enfraqueceria, ou até mesmo desqualificaria (HUTCHEON, 2000). A autora aponta
que alguns marcadores têm a capacidade de funcionar como estruturantes, sem
necessidade de apresentar qualquer outra marca gráfica. Exemplos extraídos do
corpus ilustram alguns mecanismos da ironia, apontados por Hutcheon:
Emprego de litotes.
Um exemplo é o modo como Monteiro Lobato, no conto “Negrinha”, se refere
à personagem “A excelente D.Inácia era mestra na arte de judiar crianças”
(LOBATO, 2008a, p. 21, ênfase acrescentada). Marca também empregada por Lima
Barreto, em Recordações do escrivão Isaías Caminha: “[...] e não sem uma certa
elegância, chegou o fósforo aceso ao seu e depois de esperar que eu também
acendesse, falou-me:” (BARRETO, 2006, p. 132, ênfase acrescentada).
27
Emprego da contradição.
No romance Numa e a ninfa, Lima Barreto usa da contradição para ironizar o
positivismo. No trecho abaixo, o narrador onisciente faz comentários sobre Inácio
Costa, um político companheiro de Numa na Câmara:
Julgava-se com a certeza: e, firmado na ciência, pois tirava toda a sua
argumentação do positivismo, todo ele baseado na ciência, da matemática,
condenava os adversários à fogueira. Escusado é dizer que pouco sabia de
matemática e falava por fé. Era um crente que tinha certeza da revelação política...
(BARRETO, 2006, p. 419)
O personagem fala de positivismo sem ter noção de sua essência racional e
científica. Notem-se expressões como “fé”, “condenava os adversários à fogueira” e
“revelação” todas contraditórias em relação ao positivismo.
Em Lobato, no conto “Gens ennuyeux”, os personagens vão a uma
conferência na Sociedade Científica, e lá adentram “com religiosa compostura,
pisando com passos humílimos o augusto Pagode da Ciência”, e um deles comenta:
“– Está-me apetecendo conhecê-los aos nossos sábios.” Depois da abertura pelo
presidente da Sociedade, passa-se a palavra ao conferencista: “– Minhas senhoras
e meus senhores! Me parece que a outro e não a mim [...] – Entreolhamo-nos àquele
me com piscadelas gramaticas, e entregamos nossos quatro ouvidos às palavras do
Sábio” (LOBATO, 2007b, p. 101). A incompatibilidade está na posição do
conferencista, tido como sábio que, logo às primeiras palavras, tropeça na colocação
pronominal.
Emprego de incompatibilidade.
Exemplo de Lima Barreto, em Os bruzundangas, sobre profissionais e seus
ofícios:
28
Quando lá estive, conheci um bacharel em direito que era consultor jurídico da
principal estrada de ferro pertencente ao governo, inspetor dos serviços
metalúrgicos do Estado e examinador das candidatas a irmãs de caridade. Como
veem, eles exercem conjuntamente cargos bem técnicos e atinentes aos seus
diplomas. (BARRETO, 2006, p. 770)
Nota-se a incompatibilidade entre a formação jurídica e as funções exercidas
pelo bacharel, supervisionar serviços metalúrgicos e selecionar freiras. A descrição
das atividades inicia-se de modo sério (consultor jurídico, atividade compatível com
sua formação), vai se afastando aos poucos (serviços metalúrgicos) e atinge o
epítome do absurdo (seleção das irmãs de caridade), o que torna a situação cômica
e ridícula. O ridículo é uma arma poderosa para satirizar práticas culturais bizarras.
A incompatibilidade entre formação profissional e as atividades exercidas
também é explorada por Monteiro Lobato, no conto “O luzeiro agrícola”: “O novo
ministro era bacharel em ciências jurídicas e sociais, ex-chefe de polícia e tão
entendido em agricultura como em arqueologia inca” (LOBATO, 2007b, p. 139). No
caso, o ministério citado é o da agricultura.
Emprego do exagero.
Na obra Coisas do reino do Jambom, Lima Barreto emprega o mecanismo
irônico em uma sequência de adjetivos que qualificam o Estado de São Paulo: “Isto,
concluímos nós, deve se dar com os míseros mortais, mas não com o magnífico,
rico, opulento, abastado, golcondesco Estado de São Paulo” (BARRETO, 2006, p.
903).
No já citado “Gens ennuyeux” de Lobato, o exagero atinge o ápice, nos
comentários do personagem sobre o discurso do conferencista a respeito da História
da Terra:
Depois agarra os trilobitas, os amonitas e mói, remói, tremói, pulveriza os pobres
29
bichinhos, digressiona, gesticula, sua: o amonita... porque o trilobita...não obstante
o amonita...bita...nita...e nita e bita, lá borbota ele ciência pura, híspida, hirsuta,
inexorável, num fluxo que berra por tampões de percloreto de ferro. (LOBATO,
2007b, p. 102)
Confirma-se o argumento de Hutcheon: “[...] nada é sinal irônico em si e por
si só” (HUTCHEON, 2000, p. 227). A ironia depende sempre de uma comunidade
discursiva que a reconheça. O público leitor brasileiro, tanto de Lobato quanto de
Lima Barreto, percebe o exagero do discurso do personagem que tripudia com
termos coloquiais cunhados ao acaso sobre a erudição ennuyante do conferencista.
Além das marcas mencionadas por Hutcheon, existem outras próprias de
Monteiro Lobato e Lima Barreto, a exemplo do emprego do adjetivo no grau
superlativo absoluto sintético, de que citamos exemplos a seguir.
Lobato, no conto “A cruz de ouro”:
Chegaram ambos àquele alto posto militar pela razão estratégica de colherem mais
de dez mil arrobas de café. Se em vez de dez colhessem apenas cinco mil, seriam
majores ou capitães. Este inteligentíssimo critério do nosso militarismo é garantia
de paz muito mais segura do que a Liga das Nações.” (LOBATO, 2007b, p. 145)
No conto “Eficiência militar” de Lima Barreto, a repetição do grau superlativo
sintético absoluto no discurso de um general de exército que pretende reverenciar o
vice-rei, estampa a ironia: “– É verdade o que Vossa Excelência Reverendíssima,
Poderosíssima, Graciosíssima, Altíssima e Celestial diz;” (BARRETO, 2006, p.
1098). O desejo de agradar o vice-rei com tantos epítetos laudatórios, numa
gradação que chega ao “celestial”, faz do bajulador objeto do ridículo e da sátira.
Mas, se a ironia pode provocar falsas interpretações, por que usá-la?
Possivelmente porque funciona como uma espécie de oposição ao sistema vigente
opressor, o que se pode associar a Lima Barreto. Sua condição sócio-histórico-
30
cultural - pobre, mulato, vivendo no contexto histórico imediatamente pós-libertação
dos escravos, onde vigoravam ideias racistas – faziam-no sentir-se oprimido e
cético. “Operando como uma forma de guerrilha, a ironia é vista como se
trabalhasse para mudar a maneira de interpretar das pessoas” (HUTCHEON, 2000,
p. 56). Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto é explícito sobre
o emprego da ironia como instrumento da sátira para mudar o que está incorreto:
“Mas, não é ambição literária que me move a procurar esse dom misterioso para
animar e fazer viver estas pálidas Recordações. Com elas, queria modificar a
opinião dos meus concidadãos, obrigá-los a pensar de outro modo” (BARRETO,
2006, p. 163).
Monteiro Lobato, embora de classe social diversa da de Lima Barreto, mas
não menos indignado com o sistema, anuncia pretensões semelhantes no conto “O
plágio”:
“Fazer literatura” é a forma natural da calaçaria indígena. Em outros países o
desocupado caça, pesca, joga o murro. Aqui beletra. Rima sonetos, escorcha
contos ou tece desses artiguetes inda não classificados nos manuais de literatura,
onde se adjetiva sonoramente uma aparência de ideia, sempre feminina, sem pés e
raramente sem cabeça, que goza a propriedade, aliás preciosa, de deixar o leitor na
mesma. (LOBATO, 2007b, p.117)
A crítica de Lobato aos literatos do Brasil evidencia-se no emprego irônico
dos termos “beletra”, “artiguetes” e “preciosa”, e no comentário sobre a inutilidade
desses textos que para nada contribuem, pois deixam “o leitor na mesma”. Infere-se,
assim, que Lobato partilha da ideia de Lima Barreto de que o texto literário deveria
mexer com o leitor, provocar, ao menos, uma reflexão.
Hutcheon argumenta que devido à natureza transideológica da ironia, se ela
pode ser usada “para reforçar a autoridade, também pode-se usá-la para fins de
31
oposição e subversão” (HUTCHEON, 2000, p. 52) como é o caso do uso da ironia
por Lima e Lobato.
A ironia vai além de simples crítica: é carregada de julgamentos por parte do
ironista, como o deboche e o escárnio (HUTCHEON, 2000, p. 65). Deboche e
escárnio são pratos favoritos de Monteiro Lobato e Lima Barreto. Se alguém desejar
encontrar na literatura brasileira um exemplo clássico de ironia, em forma de
escárnio e deboche, vá diretamente a Os bruzundangas de Lima Barreto. A narrativa
trata dos usos, dos costumes, das instituições civis e políticas da República
Federativa dos Estados Unidos da Bruzundanga. No capítulo II, que trata da nobreza
daquela República, o narrador é interrogado por um leitor que solicitou mais
informações sobre tal Estado, já que não encontrara nada sobre ele. A resposta do
narrador é um primor de ironia:
O meu simpático leitor não me disse que obras consultou, mas certamente ele não
procurou informações nos livros que o governo da Bruzundanga manda imprimir,
dando fabulosos lucros aos impressores e editores, livros escritos em várias línguas
e destinados a fazer a propaganda do país no estrangeiro. [...] Pode ter acontecido,
entretanto, que o meu leitor amigo os tivesse procurado nas livrarias principais; mas
não é aí que eles podem ser encontrados. [...] Onde o meu leitor poderá encontrálas, se quer ter informações mais ou menos transbordantes de entusiasmo pago, é
nas lojas de merceeiros, nos açougues, nas quitandas, assim mesmo em
fragmentos, pois todos as pedem nas repartições públicas para vendê-las a peso
aos retalhistas de carne verde, aos vendeiros e aos vendedores de couves.”
(BARRETO, 2006, p. 768)
De Monteiro Lobato, vejamos uma passagem típica de deboche dirigida a um
figurão da República Velha, o senador Pinheiro Machado, no conto “A facada
imortal”, cujo narrador descreve o personagem Indalício Ararigbóia, que confessa sua
inspiração oratória:
32
Lembro-me bem: era um rapaz lindo, de olhos azuis e voz suavíssima; as palavras
vinham-lhe como pêssegos embrulhados em paina, e sabiamente camaralentadas,
porque, dizia ele, o homem que fala depressa é um perdulário que deita fora o
melhor ouro da sua herança. Ninguém dá tento ao que esse homem diz, porque
quod abundat nocet. Se não valorizamos nós mesmos as nossas palavras, como
pretendemos que os outros as prezem? Meu mestre nesse ponto foi o general
Pinheiro Machado, num discurso que lhe ouvi certa vez. Que astuciosa e bem
calculada lentidão! Entre uma palavra e outra o Pinheiro punha um intervalo de
segundos, como se sua boca estivesse perdigotando pérolas. E a assistência o
ouvia com religiosa unção, absorvendo pérolas o que como pérolas era emitido.
Substantivos, adjetivos, verbos, advérbios e conjunções caíam sobre os ouvintes
como seixos lançados à lagoa; e antes que cada um chegasse bem lá no fundo, o
general não soltava outro. Cacetíssimo, mas de alta eficiência. (LOBATO, 2008a, p.
148)
Não há como desvencilhar ironia da intencionalidade do autor (HUTCEHON,
2000). Mas como ter acesso à intenção irônica do autor? “A única maneira de se ter
certeza de que uma declaração foi intencionalmente irônica” diz a autora, “é ter um
conhecimento detalhado das referências pessoais, linguísticas, culturais e sociais do
falante e do seu público” (p. 169). Por isso colocaram-se neste trabalho informações
sobre o contexto histórico-cultural da época, e sobre a biografia dos autores, como
embasamento da análise de sua produção literária. Por meio da comparação de
vários textos, extraídos das obras, buscaremos a reiteração de ideias, mas sempre
com a preocupação levantada por Compagnon de “que o paralelismo de duas
passagens será pertinente se, e somente se, elas remeterem a uma intenção
coerente” (COMPAGNON, 2012, p. 74). Assim, pretende-se fazer uma análise de
temas que congreguem ideias de Lima e Lobato, tanto em obras discursivas –
ensaios, prefácios, cartas, colunas em jornais – como na prosa de ficção.
33
Ressalte-se que a intenção, mesmo declarada pelo próprio autor, não
garante a concretização do intento. Robert John Oakley (2011), na obra Lima
Barreto e o destino da literatura, aponta que:
A intenção da obra que inaugurou Lima Barreto como romancista era, segundo ele
mesmo declarou, demonstrar por meio dos fracassos do herói o preconceito e a
hostilidade que o negro enfrentava na sociedade brasileira no início do século XX.
Frisamos aqui os intentos do autor, precisamente por ser tão gritante a diferença
entre esses propósitos declarados (e os do narrador) e as intenções evidenciadas
no romance publicado no fim de 1909. (OAKLEY, 2011, p. 49)
A obra a que Oakley faz referência é Recordações do escrivão Isaías
Caminha, publicada em 1909, romance que não evidencia, conforme a declaração
do próprio autor, a questão racial.
Mas se, conforme Hutcheon, para entendermos a ironia é imprescindível
conhecer a intencionalidade do autor, chega-se ao debate sobre a figura do autor.
Eurídice Figueiredo (2014), no artigo “Roland Barthes da morte do autor ao seu
retorno”, analisa artigos de Maurice Blanchot, Michel Foucault e Roland Barthes, no
que concerne à questão sobre a figura do autor e constata que “uma análise desses
três textos pode detectar diferenças significativas na abordagem do assunto, ou
seja, de que ‘autor’ cada um deles estava falando”. Nesse trabalho, Eurídice aponta
que “Durante os anos de 1960 havia a percepção de que não interessava à crítica
estruturalista a vida do autor empírico” e levanta a questão “[...] de que ‘autor’ cada
um deles estava falando” e constata que “o autor que escreve não se confunde com
o ser empírico que tem o nome do autor” (p. 182).
Hutcheon realiza uma ordenação das várias funções que críticos, ao longo
dos anos, atribuíram à ironia. Destaco como pertinente aos autores do corpus, as
funções de autoproteção, a corretiva e a assaltante.
34
A função autoprotetora pode ser interpretada como um mecanismo de
defesa por parte do ironista que ao lançar mão:
... de um uso autodepreciador da ironia como um modo de sinalizar sua modéstia
relutante,
seu
autoposicionamento
(como
marginalizados
e
talvez
automarginalizados), suas dúvidas a respeito de si mesmos e talvez mesmo sua
rejeição
da
necessidade
de
presumir
ou
assumir
uma
superioridade...
(HUTCHEON, 2000, p. 80)
Não é raro encontrarmos Lima Barreto fazendo uso dessa função, fruto de
sua condição social e de seu posicionamento depreciativo e excludente de si
próprio. Como exemplo da função acima, recorro ao prefácio do romance
Recordações do escrivão Isaías Caminha, assinado pelo próprio personagem Isaías
Caminha
Perdoem-me os leitores a pobreza da minha narração. Não sou propriamente um
literato, não me inscrevi nos registros da Livraria Garnier, do Rio, nunca vesti
casaca e os grandes jornais da Capital ainda não me aclamaram como tal – o que
de sobra, me parece, são motivos bastante sérios, para desculparem a minha falta
de estilo e capacidade literária. (BARRETO, 2006, p. 117)
A função corretiva visa a provocar uma mudança de pensamento nos
leitores, um modo de tornar o indivíduo mais crítico em relação a situações que no
cotidiano passam por ele como naturais (HUTCHEON, 2000).
Lobato, no conto “O luzeiro agrícola”, faz da fala do Ministro da Agricultura
uma denúncia da ineficiência da máquina administrativa governamental, que cria
secretarias e repartições, com a única função de lotar funcionários, sem nenhum
retorno prático para a sociedade. Elas existem simplesmente para fazer funcionar
outras, tão inúteis quanto as primeiras. O leitor fará necessariamente comparações
com a máquina governamental, de que tem conhecimento.
35
Vejamos o discurso do ministro que inicia com uma exclamação irônica:
– Está claro, homem! Para que diabo despendeu o governo tanto dinheiro na
montagem do forno? Está claro que para incinerar as notas velhas e os relatórios
novos. Deste modo se conservam em perpétua atividade o pessoal da Imprensa, o
do Forno e o dos Ministérios. Veja como é sábia a nossa organização
administrativa! A montagem do forno foi a melhor ideia do governo passado. Antes
dele a Imprensa Nacional vivia entulhada de impressos; a produção de relatórios,
função capital deste Ministério, periclava. E era tudo uma desordem, um
desequilíbrio capaz de induzir o governo à supressão da Imprensa e do meu
Ministério. O forno sanou a situação. (LOBATO, 2007b, p. 138)
O excerto acima expõe a veia satírica de Lobato. Segundo Hutcheon, a
sátira é “melhorativa em intenção, é a sátira em particular que frequentemente se
volta para a ironia como um meio de ridicularizar – e implicitamente corrigir – os
vícios e as loucuras da humanidade (HUTCHEON, 2000, p. 84).
Paulo Astor Soethe, no artigo “Sobre a sátira: contribuições da teoria literária
alemã na década de 40” (1988), aponta que a sátira apresenta uma finalidade
moralizadora e que faz uso da irreverência e da troça para criticar o que se
considera errado. No excerto, a não-percepção do absurdo da própria fala – realizar
tarefas desnecessárias para fazer funcionar a máquina governamental – expõe o
Ministro ao ridículo e provoca a reflexão do leitor.
A função assaltante da ironia, segundo Hutcheon, é um “ataque cortante,
derrisório, destrutivo ou às vezes de uma amargura que pode sugerir não um desejo
de corrigir, mas simplesmente uma necessidade de registrar desprezo e zombaria”
(HUTCHEON, 2000, p. 85).
Como exemplo, cito o comentário do narrador sobre o doutor Armando
Borges, personagem do romance Triste fim de Policarpo Quaresma: “Não contente
com isso, escrevia artigos, estiradas compilações, em que não havia nada de
36
próprio, mas ricos de citações em francês, inglês e alemão” (BARRETO, 2006, p.
356). Evidencia-se o desprezo e o tom de zombaria que Lima Barreto imprime a
determinados textos que mais se preocupavam com aparências do que com
conteúdos.
Recorro a Balzac para finalizar esta seção sobre ironia:
Por isso, quando me quiserem opor a mim mesmo, isto decorrerá por fazerem má
interpretação de alguma ironia, ou, então, reverter contra mim as palavras de uma
das minhas personagens, manobra costumeira dos caluniadores. (BALZAC, 2012,
p. 109)
37
2 PRÁTICAS CULTURAIS DA REPÚBLICA VELHA
Durante a leitura das narrativas do corpus, várias aspectos socioculturais
surgiram como alvo das farpas dos autores: a política, o liberalismo, a questão
racial, o casamento, a literatura, o positivismo, o papel da mulher, entre outros. Mas
os que mais se destacaram em quantidade de passagens e veemência nas críticas,
por isso selecionados para este trabalho, foram o funcionalismo, o doutorismo e o
conformismo. O primeiro, gerado pela ignorância, pela falta de qualificação dos
nacionais para assumir cargos de responsabilidade, e pela promiscuidade entre o
público e o privado. O segundo, fruto da mania nacional de tratar com respeito
abjeto a qualquer indivíduo que possua o menor resquício de superioridade de
classe. O último emerge da preguiça e desmazelo em alterar o status quo.
2.1 O FUNCIONALISMO
“O Estado não é uma ampliação do círculo familiar, ...”
Sérgio Buarque de Holanda
Inicialmente, convém esclarecer como
o termo funcionalismo será
empregado aqui. No dicionário encontramos o termo definido como “o conjunto de
funcionários públicos: [...] o trabalho como funcionário público” (BORBA, 2011, p.
654); ou seja, aqueles que prestam seus serviços, braçais ou intelectuais, ao Estado
e deste advêm seus vencimentos. Mas, seu emprego aqui vai além do significado do
dicionário, inclui toda uma relação social da classe com a sociedade brasileira.
Como declarado na introdução, examinam-se a caracterização do grupo, os
interesses que o movem, e, principalmente, a maneira como é visto e tratado pelos
outros membros da sociedade.
38
Um primeiro motivo da atração exercida pelo funcionalismo público é a
carência de oportunidades de empregos à época. O país dava seus primeiros
passos rumo à urbanização, passos que se restringiam a pouquíssimas cidades,
geralmente as capitais. Nas primeiras décadas após a abolição, o Brasil era ainda
um país predominantemente rural, com técnicas agrícolas rudimentares, onde
encontrar emprego compensador equivalia a tirar a sorte grande. Lobato explora, de
maneira jocosa, o assunto no conto “Sorte grande”:
A vida em tais lugarejos lembra a dos liquens na pedra. Tudo se encolhe no “limite”
– no mínimo que a civilização comporta. Não há “oportunidades”. Os meninos mal
empenam emigram. As meninas, como não podem emigrar, viram moças; as
moças passam as “tias”; e as tias evoluem para velhinhas enrugadas como o
maracujá murcho – sem que nunca venha ensejo para a realização dos dois
grandes sonhos: casamento ou ocupação decentemente remunerada.
Os empreguinhos públicos, de paga microscópica, são tremendamente disputados.
Quem se aferra a um, dali só é arrancado pela morte – e passa a vida invejado.
Uma só saída para as mulheres, afora o casamento: a meia dúzia de cadeiras das
escolinhas locais. (LOBATO, 2008a, p. 175)
Destaca-se nessa passagem, a crítica às instituições e ao comportamento
das pessoas, dissimulada pelo riso. Uma análise mais aprofundada, porém,
evidencia insatisfação com a mesmice, a estagnação e a falta de iniciativa para
buscar algo melhor na analogia estabelecida com a vida provinciana da mulher, à
qual a expressão “sem que nunca venha ensejo...” empresta ênfase especial. O
emprego do diminutivo no sintagma “empreguinhos públicos”, permite inferir o tom
irônico e depreciativo do texto.
Mas será que mesmo esses “empreguinhos públicos, de paga microscópica”
eram interessantes? Lobato nos dá resposta no conto “A nuvem de gafanhotos”:
39
Ser empregado público de inferior categoria e por mal de pecados demissível: será
isso programa que seduza alguém?
–É
E para Pedro Venâncio mais que seduzia – sorria. Foi, pois, com enlevo de alma
que recebeu a notícia de sua nomeação para fiscal da Câmara Municipalzinha de
Itaoca.
– “Vou sossegar” – disse consigo, esfregando as mãos de contentamento. – “Cavei
o osso e agora é roê-lo pela vida em fora na santa paz do Senhor.”
E ferrou o dente no ossinho. (LOBATO, 2008b, p. 33)
As vantagens do sossego, motivo primeiro porque muitos procuravam o
serviço público, Lobato explora no conto “Um suplício moderno”. A passagem abaixo
mostra como o personagem, nomeado funcionário do correio por indicação política,
vê o cargo público:
[...] o governo, por malévola indicação dum chefe político, hodierno sucedâneo do
“familiar” do Santo Ofício, nomeia um cidadão estafeta do correio entre duas
cidades convizinhas não ligadas por via férrea.
O ingênuo vê no caso honraria e negócio. É honra penetrar na falange gorda dos
carrapatos orçamentativos que pacientemente devoram o país; é negócio lambiscar
ao termo de cada mês um ordenado fixo, tendo arrumadinha, no futuro, a cama fofa
da aposentadoria. (LOBATO, 2007a, p. 71)
Ressalta-se nas passagens acima o tom depreciativo com que o
funcionalismo é retratado. Mostram-nos isso as expressões: “inferior categoria”, “a
cama fofa”; e “cidades convizinhas não ligadas por via férrea.” Nesta última
expressão a importância das duas cidades é diminuída, pois nem via férrea passa
por elas! Os diminutivos “ossinho”, “arrumadinha” e “Câmara Municipalzinha”
reforçam a depreciação. Não desprezemos a tarja de “ingênuo” aplicada ao
personagem. A honra não está no trabalho, mas em fazer parte da “falange gorda
dos carrapatos orçamentativos”. A semântica dos substantivos “falange” e
40
“carrapatos” indica qualidades depreciativas que, reforçadas pelos adjetivos “gorda”
e “orçamentativos”, denunciam a atmosfera amoral da sociedade.
Para esses personagens, a vida estava ganha. Nada os tiraria desse
sossego, nada mais se exigiria deles para o sustento próprio e dos seus.
Procuremos em Lima Barreto passagem que reforce essas ideias:
Quando acabou, procurou conhecidos que já tinha; e, em breve, entrou para o
serviço de empregado de escritório de um grande advogado, seu patrício, isto é,
mineiro.
– Não te darei coisa que valha a pena – disse-lhe logo o doutor – mas aqui irás
travando conhecimentos e podes arranjar coisa melhor mais tarde.
Viu bem que o “doutor” lhe falava a verdade, e toda a sua ambição se cifrou em
obter um pequeno emprego público que lhe desse direito a aposentadoria e a
montepio, para a família que ia fundar. (BARRETO, 2006, p. 638, ênfase
acrescentada)
Sérgio Buarque de Holanda, na obra Raízes do Brasil (1995), destaca que a
busca pela segurança e estabilidade do serviço público, sem que este lhe exija muito
esforço e subordinação da sua personalidade, era costume comum do homem
daquela época
Não é outro, aliás, o motivo da ânsia pelos meios de vida definitivos, que dão
segurança e estabilidade, exigindo, ao mesmo tempo, um mínimo de esforço
pessoal,
de
aplicação
e
sujeição
da
personalidade,
como
sucede
tão
frequentemente com certos empregos públicos. (HOLANDA, 1995, p. 157)
As hostes de oportunistas, de preguiçosos e de acomodados aparecem em
vários textos de Lima Barreto. Passagem selecionada do romance Triste fim de
Policarpo Quaresma ilustra tais ideias
Essas secretas esperanças eram mais gerais do que se pode supor. Nós vivemos
do governo e a revolta representava uma confusão nos empregos, nas honrarias e
41
nas posições que o Estado espalha. Os suspeitos abririam vagas e as dedicações
supririam os títulos e habilidades para ocupá-las; além disso, o governo, precisando
de simpatias e homens, tinha que nomear, espalhar, prodigalizar, inventar, criar e
distribuir empregos, ordenados, promoções e gratificações.
O próprio doutor Armando Borges, marido de Olga e sábio sereno e dedicado
quando estudante, colocava na revolta a realização de risonhos anelos.
(BARRETO, 2006, p. 355)
No romance Numa e a ninfa, no qual se evidencia crítica severa e sarcástica
ao sistema político brasileiro, encontramos evidente paralelismo com as ideias da
passagem acima:
O grande debate que provocara na Câmara o projeto de formação de um novo
Estado na Federação Nacional apaixonou não só a opinião pública [...] Em torno do
projeto, interesses de toda a ordem gravitavam. Um grande número de cargos
políticos e administrativos iam ser criados; e, se bem que a passagem do projeto de
lei não fosse para já, os chefes, chefetes, subchefes, ajudantes, capatazes políticos
se agitavam e pediam, e desejavam, e sonhavam com este e aquele lugar para
este ou aquele dos seus apaniguados. (BARRETO, 2006, p. 415)
A revolta a que se refere o primeiro texto foi a Revolta da Armada, conflito
ocorrido durante o governo de Floriano Peixoto. Note-se que não há preocupação
com o conflito em si, ou comprometimento com qualquer ideologia, mas sim
interesse nas possibilidades de renovação e criação de novos cargos. O mesmo
ocorre no segundo texto. Ou seja, prevalece o interesse pessoal em tirar proveito da
situação do Estado, sem qualquer consideração de prestar serviço ao país, de
idealismo ou de convicção política.
A questão que nos ocorre neste ponto é identificar quem são os candidatos
ao funcionalismo.
42
2.1.1 Candidatos ao serviço público
De modo irônico, Lobato aponta aqueles que não tiveram sucesso em outra
atividade e então recorrem ao emprego público, a exemplo do piadista Pontes, no
conto “O engraçado arrependido”:
A sua reputação de pândego, de impagável, de monumental, de homem do chifre
furado ou da pele, estava construída com muito boa cal e cimento para que assim
esboroasse de chofre. Urgia, entretanto, mudar de tecla, e Pontes volveu as vistas
para o Estado, patrão cômodo e único possível nas circunstâncias, porque abstrato,
porque não sabe rir nem conhece de perto as células que o compõem. Esse patrão,
só ele, o tomaria a sério – o caminho da salvação, pois, embicava por ali.
(LOBATO, 2007a, p.37)
É comum nos contos lobatianos o uso da sátira como ridicularização de
comportamentos dos indivíduos. Paulo Astor Soethe, no artigo “Sobre a sátira
alemã; contribuições da teoria alemã na década de 60”, aponta que a sátira, em
literatura “pode referir-se a qualquer obra que procure a punição ou ridicularização
de um objeto através da troça e da crítica direta; ” (SOETHE, 2003, p. 3).
Observemos o exemplo do personagem Ernesto no conto “O plágio”:
Foi quando o pai, farto das atitudes teatrais do filho, meteu-o numa roda de
guatumbu e pô-lo fora de casa com um valente pontapé: – “Vá ganhar a vida, seu
anarquista de borra!”. Ernesto, jururu, achegou-se a um tio influente na política e
afinal cavou o empreguinho. (LOBATO, 2007b, p. 118)
Em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, Lima Barreto aponta que os
intelectuais “que a vulgaridade do público não sabe apreciar” (BARRETO, 2006, p.
569) também vão bater às portas do funcionalismo
Certos de que as suas aptidões não lhes darão um meio de vida, os que nascem
tão desgraçadamente dotados, se pobres procuram o funcionalismo, fugindo ao
nosso imbecil e botafogano doutorado. Não são muitos; são raros em cada
43
repartição, mas consideráveis em todo o funcionalismo federal. (BARRETO, 2006,
p. 569)
Por ironia, Lima Barreto estaria criticando sua própria situação de intelectual
aboletado no serviço público. São tão diversas as motivações dos candidatos à
sinecura pública que o autor as sintetiza no conto “Três gênios de secretaria”:
Mas, como dizia, todos nós nascemos para funcionário público. Aquela placidez do
ofício, sem atritos, nem desconjuntamente violentos; aquele deslizar macio durante
cinco horas por dia; aquela mediana de posição e fortuna, garantindo
inabalavelmente uma vida medíocre – tudo isso vai muito bem com as nossas
vistas e os nossos temperamentos. Os dias no emprego do estado nada têm de
imprevisto, não pedem qualquer espécie de esforço a mais, para viver o dia
seguinte. Tudo corre calma e suavemente, sem colisões, nem sobressaltos,
escrevendo-se os mesmos papéis e avisos, os mesmos decretos e portarias, da
mesma maneira, durante todo o ano, exceto os dias feriados, santificados e os de
ponto facultativo, invenção das melhores da nossa República. De resto, tudo nele é
sossego e quietude. O corpo fica sem cômodo jeito; o espírito aquieta-se, não tem
efervescências nem angústias; as praxes estão fixas e as fórmulas já sabidas.
(BARRETO, 2006, p.1044)
Como amanuense de Secretaria, Lima Barrreto conheceu muito bem a
“tranquilidade” do funcionalismo, que lhe permitiu dedicar-se às atividades de
escritor mesmo durante as horas de expediente. Com essa experiência, pôde
colocar na voz de seus personagens críticas irônicas ao serviço público. Em Lima
Barreto, conforme comentário de Antonio Candido, a biografia desliza para a criação
literária e a análise social ganha um tom confessional.
2.1.2 O ingresso
Alfredo Bosi (1989) comenta que Os bruzundangas, obra satírica por
excelência, “traz forte empenho ideológico e mostra o quanto Lima Barreto podia e
44
sabia transcender as próprias frustrações e se encaminhar para uma crítica objetiva
das estruturas que definiam a sociedade brasileira do tempo” (BOSI, p. 366). Nela, o
funcionalismo não foi ignorado. Vejamos como a passagem abaixo ilustra o ingresso
no funcionalismo público:
Andava o poderoso secretário de Estado atrapalhado para preencher um simples
cargo de amanuense que havia vagado na sua secretaria. Em lei, o caminho estava
estabelecido: abria-se concurso e nomeava-se um dos habilitados; mas Pancôme
nada tinha que ver com as leis, embora fosse ministro e, como tal, encarregado de
aplicá-las bem fielmente e respeitá-las cegamente. A sua vaidade e certas quizílias
faziam-no desobedecê-las a todo o instante. Ninguém lhe tomava contas por isso e
ele fazia do seu ministério coisa própria e sua. (BARRETO, 2006, p.125)
A lei mandava realizar um concurso público e na sequência convocar e
nomear o melhor classificado. Conforme o texto, nada disso se cumpria; a regra era
outra: o interesse pessoal. Destaca-se a crítica do autor ao ministro: “embora fosse
ministro”. No conto “Três gênios de secretaria”, Lima Barreto reforça a crítica ao
costume.
Houve um exame na Secretaria dos Cultos, e o “sogro”, sem escrúpulo algum, fezse nomear examinador do concurso para o provimento do lugar e meter nele “o
noivo”. Que havia de fazer? O rapaz precisava. O rapaz foi posto em primeiro lugar,
nomeado e o velho sogro (já o era de fato) arranjou-lhe o lugar de ”auxiliar de
gabinete” do ministro. (BARRETO, 2006, p. 1045)
Essa passagem retoma, mas às avessas – expediente típico da ironia – a
epígrafe deste item sobre o funcionalismo: a mistura do público com o privado, das
relações familiares com os interesses do Estado.
Essa forma de corrupção, de desonestidade, nos concursos públicos para o
preenchimento das vagas no funcionalismo, nem sempre era necessária. Em certos
casos nem esse pseudo concurso público era necessário. Em Os bruzundangas
45
aparece a denúncia de outra variante de favorecimento, que permitia ignorar não só
o concurso, mas a própria responsabilidade com o trabalho: a concessão de
pensões a familiares
Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando
cargos no Estado; não há político influente que não se julgue com direito a deixar
para os seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro
da República. (BARRETO, 2006, p. 777)
No trecho acima, Barreto critica o nepotismo na estrutura governamental,
que permite transformar pensões em herança familiar. Encontramos paralelismo no
excerto seguinte de Numa e a ninfa:
Lembrou-se de que era republicano, e seu tio, o coronel Fortuna, amigo íntimo de
Deodoro, tomou conta de seu Estado natal e ele foi feito deputado enquanto os
seus primos, concunhados, sobrinhos, aderentes e afins ocupavam outros cargos
no Estado, implantaram nele o domínio dos Cogominho de que ele se fez chefe por
morte do venerando Fortuna. (BARRETO, 2006, p. 431)
Nesses exemplos explicitou-se a incapacidade, enraizada nos costumes
nacionais, de separar a vida privada da vida pública, caracterizando promiscuidade
entre o familiar e as coisas do Estado. No conto “Sorte grande”, Lobato nos traz
outro exemplo de que se houver um “pistolão” adequado no governo, pode-se
permitir ingresso de qualquer candidato mesmo os mais improváveis: “O doutor
Cadaval coçou a cabeça. Colocar uma poetisa não é nada fácil – mas veria. Há
empregos do governo, nos quais cabem até os poetas” (LOBATO, 2008a, p. 181).
Note-se que a expressão “até os poetas” sugere depreciação do artista.
Mesmo para estes, porém, sempre haverá uma vaga no governo, desde que tenham
um “pistolão” influente.
46
2.1.3 O funcionário ideal
Há vários tipos de funcionários públicos, mas um deles merece atenção
especial: o auxiliar de gabinete. Vejamos como Lima Barreto, no conto “Três gênios
de secretaria”, retrata essa figura:
É este a figura mais curiosa do funcionalismo moderno. É sempre doutor em
qualquer coisa; pode ser mesmo engenheiro hidráulico ou eletricista. Veio de
qualquer parte do Brasil, da Bahia ou de Santa Catarina, estudou no Rio qualquer
coisa; mas não veio estudar, veio arranjar um emprego seguro que o levasse
maciamente para o fundo da terra, donde deveria ter saído em planta, em animal e,
se fosse possível, em mineral qualquer. É inútil, vadio, mau e pedante, ou antes,
pernóstico. Instalado no Rio, com fumaças de estudante, sonhou logo arranjar um
casamento, não para conseguir uma mulher, mas, para arranjar um sogro influente,
que o empregasse em qualquer coisa, solidamente. Quem como ele faz de usa
vida, tão-somente caminho para o cemitério, não quer muito: um lugar em uma
secretaria qualquer serve. Há os que vêem mais alto e se servem do mesmo meio;
mas são a quintessência da espécie. (BARRETO, 2006, p. 1045)
O objetivo desse tipo de funcionário não é, em hipótese alguma, o trabalho.
O deslocamento de sua cidade para a capital está claro: “não veio estudar, veio
arranjar um emprego seguro”. Note-se o termo utilizado para o casamento,
“arranjar”, expressão que sintetiza a finalidade do casamento para o personagem:
fornecer-lhe um trampolim. O que lhe interessa não é a esposa, mas o sogro, que
lhe possa ajeitar as “coisas”. Não demorou a arrumar “O sogro ideal, o antigo
professor, [...] Tinha ele uma filha a casar e o “auxiliar de gabinete”, logo viu no seu
casamento com ela, o mais fácil caminho para arranjar uma barrigazinha estufadinha
e uma bengala com castão de ouro” (BARRETO, 2006, p. 1045).
Esse sogro é o mesmo, já referido acima, que facilitou as coisas no concurso
para o genro. Mais uma vez reforça-se a ideia de comodismo, vadiagem e pouco
empenho e suor. Destaca-se a expressão “arranjar uma barrigazinha estufadinha”, o
47
que indica posição social tranquila simbolizada aqui pela “bengala com castão de
ouro”.
O nome próprio do personagem “auxiliar de gabinete” não é citado. Nem é
preciso. Sua função é marcar um “tipo”, isto é, exemplo característico, protótipo,
modelo. Exceções não vêm ao caso. Lobato usa o mesmo termo quando se refere
ao personagem Jeca Tatu: “Representa este freguês o tipo clássico [...] Exceção,
díscolo que é, não vem ao caso. Aqui tratamos da regra...” (LOBATO, 2007a, 174).
Entre todos os candidatos ao funcionalismo público criados por Lima Barreto
e Lobato nenhum incorpora o “tipo” com mais propriedade do que Sizenando
Capistrano, herói do conto “O luzeiro agrícola” de Monteiro Lobato, narrativa
escolhida para fechar esta seção.
O conto inicia-se com a identidade do personagem, nome próprio, o que faz
e onde: “Sizenando Capistrano é o inspetor agrícola do vigésimo distrito” (LOBATO,
2007b, p.133).
O que leva o autor a escolher a profissão de “inspetor agrícola” para seu
personagem e o numeral “vigésimo” para identificar o distrito? Num país
predominantemente rural, a agricultura tem papel relevante. Para melhorá-la faz-se
mister alguém que a fiscalize, e tenha competência para propor melhorias. Em
suma, um inspetor agrícola. E quanto ao numeral do distrito? Clara referência ao
século que se inicia, o vigésimo.
Na sequência narrativa apresentam-se as funções do inspetor:
Incumbe-lhe fomentar a pecuária, elaborar relatórios, ensinar o uso de máquinas
agrícolas, preconizar a policultura, combater a rotina e ao fim de cada mês perceber
na coletoria a realidade de setecentos mil-réis. (LOBATO, 2007b, p.133)
48
Suas obrigações são justamente combater as mazelas que assolavam o
país: pecuária primitiva, falta de informações para planejar, emprego de maquinarias
rudimentares, a monocultura e a rotina, repetir sem reflexão o que se faz sempre.
Para verificar se essa situação corresponde à realidade da época, retiramos
do ensaio sociológico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, passagens
que confirmam o caráter rotineiro e ineficiente da agricultura no Brasil:
Sem embargo disso, sabemos por depoimentos da época que, para puxar cada
arado, era costume, entre fazendeiros, empregarem junta de dez, doze ou mais
bois, o que vinha não só da pouca resistência desses animais no Brasil, como
também de custarem as terras mais a abrir pela sua fortaleza. (HOLANDA, 1995, p.
50)
Além da má qualidade de nossa pecuária, Holanda enfatiza a questão da
rotina e da falta de iniciativa do homem do campo:
A regra era irem buscar os lavradores novas terras em lugares de mato dentro, e
assim raramente decorriam duas gerações sem que uma mesma fazenda mudasse
de sítio, ou de dono. Essa transitoriedade [...], servia apenas para corroborar o
caráter rotineiro do trabalho rural. Como a ninguém ocorria o recurso de revigorar
os solos gastos por meio de fertilizantes, faltava estímulo a melhoramentos de
qualquer natureza. (HOLANDA, 1995, p. 51)
Na sequência a narrativa lobatiana nos informa quem era Sizenando antes
de se tornar inspetor: “Antes de inspetor Capistrano fora poeta. Cultivar as musas.
Não sabia que coisa era pé de café,” (LOBATO, 2007b, p.133). Era um artista, mas
o que se destaca na informação é sua ignorância em relação à agricultura. Tentando
ganhar a vida como artista, Sizenando vai atrás de editores a fim de publicar seus
versos. Para sua infelicidade, não era muito bem vindo: “O editor artilhava a cara de
carrancas más quando Capistrano lhe surgiu escritório adentro com a maçaroca de
versos candidatos à edição” (LOBATO, 2007b, p. 133).
49
O poeta tinha que encarar o diretor e tentar vender seu trabalho, mas a
conversa não lhe saía bem
– São versos puros, senhor, versos sentidos, cheios de alma. Virão enriquecer o
patrimônio lírico da humanidade.
– E arruinar o meu patrimônio econômico – retorquiu a fera. – Rapazes – berrava o
livreiro à caixeirada -, ponham-me este vate no olho da rua! (LOBATO, 2007b, p.
134)
Destaca-se no diálogo o valor econômico invadindo e prevalecendo na
cultura. Nessa situação “Todo mundo o recomendou ao Gaúcho Onipotente, porque
todos andavam fartos daquela perpétua fome lírica a deambular pelas ruas, caçando
rimas e filando cigarros” (LOBATO, 2007b, p. 134).
As atitudes de Sizenando “deambular,... caçando... filando cigarros”,
provocaram pena naqueles que o viam, então aconselharam uma saída: “Que fosse
acarrapatar-se ao Estado. [...] O Estado é um boi gordo” (LOBATO, 2007b, p.134).
Os homens, por mais que busquem o livre arbítrio, inevitavelmente, acabam
por se sujeitar às condições dadas e herdadas. Nosso personagem não é exceção
Cansado, entretanto, de ouvir estrelas em jejum, de amar a lua no céu sem possuir
um queijo na terra, acatou a voz do estômago e quebrou a lira – para viver. Meteu a
tesoura nas melenas, deu brilho aos sapatos, desfatalizou o semblante, substituiu o
ar absorto do aedo pelo ar avacalhado do pretendente, e à força de pistolões
guindou-se às cumeadas do Morro da Graça. (LOBATO, 2007b, p.134)
No Morro da Graça ficava a residência do então importantíssimo Senador da
República, o General José Pinheiro Machado. Note-se na passagem acima a
expressão “à força de pistolões”, termo muito usado no Brasil para se referir a
alguém que pode ajudar, dar uma “mãozinha”, um “jeitinho”... Assim, Sizenando
Foi apresentado ao Pinheiro.
– Então, menino, o que quer?
50
– Um empreguinho qualquer que Vossa Onipotência haja por bem conceder-me.
(LOBATO, 2007b, p.135)
O diminutivo “empreguinho”, demonstra a humildade do solicitante que
ficaria satisfeito com qualquer tipo de atividade. E ainda, usando de um trato formal
“Vossa Onipotência”, ele não apresenta nada para justificar a solicitação, apenas
espera a concessão.
Holanda destaca que no Brasil as relações sociais são fundadas em “laços
de afeto e de sangue” (HOLANDA, 1995, p.143). Vejamos como essa ideia vai ao
encontro da passagem a seguir na conversa do Senador com Sizenando “Tu me
caíste em graça e, pois, acolho-te sob o meu pálio. Que queres ser?” (LOBATO,
2007b, p.135).
Normalmente, quando se escolhe alguém para qualquer cargo, faz-se
primeiro uma inquirição ao candidato que, depois da sabatina, poderá ser nomeado
ou não. Vejamos como se deu o processo de seleção de Sizenando:
– Inspetor.(... ) - Sê-lo-ás do vigésimo distrito. Conheces as culturas rurais?
– Já cultivei batatas gramaticais.
– E de pecuária, entendes? Distingues um Zebu dum galo Brama? Um pampa dum
murzelo?
– Já cavalguei Pégaso em pelo.
– Conheces a suinocultura? Sabes como se cria o canastrão?
– Sei trincá-lo com tutu de feijão.
– És um gênio, não há que ver. Talvez faça de ti, um dia, presidente da República.
Teu nome?
– Sizenando. Capistrano é sobrenome. (LOBATO, 2007b, p. 136)
Observamos que o processo de seleção se deu ao contrário. Primeiro foi
nomeado pelas palavras do senador “ – Sê-lo-ás” a quem somente depois ocorreu a
sabatina. Claro que essa às avessas. No final da passagem, já se nota Sizenando
51
querendo se tornar íntimo do senador ao dispensar o uso do nome de família.
Tornando-se íntimo, como se fora agora um amigo, as chances da concessão
aumentariam muito. Holanda tece comentário sobre esse detalhe comum ao
brasileiro “[...] tendência para a omissão do nome de família no tratamento social.
Em regra é o nome individual, de batismo, que prevalece” (HOLANDA, 1995, p.148).
Nomeado, Sizenando começa a regalar-se com sua nova condição social:
“Sizenando Capistrano [...] casou, luademelou três meses e por fim compareceu
perante o ministro para saber em que rumos nortear a sua atividade” (LOBATO,
2007b, p.136).
Salta aos olhos nessa passagem o tempo decorrido na narrativa: três meses
de lua de mel! E só depois é que foi comparecer à secretaria para tomar ciência de
seus afazeres! O trabalho, definitivamente, não aparece em primeiro lugar em seus
interesses. E quando se apresentou ao chefe, o ministro, só lhe causou
aborrecimento:
O ministro franziu a testa: é tão difícil dar ocupação aos fósforos ministeriais...
– Escreva um relatório – sugeriu.
– Sobre o que V. Excia.?
– Sobre qualquer coisa. Relate, vá relatando. A função capital do nosso ministério é
produzir relatórios. (LOBATO, 2007b, p. 136)
Dar ocupação aos funcionários, eis a dificuldade do chefe. Ao utilizar “dar
ocupações” entende-se que o funcionário existe antes da atividade. Note-se o
desprezo “fósforos ministeriais”, ou seja, um cargo sem importância na visão do
ministro. Relatar, função por excelência do ministério, “qualquer coisa” deixa claro a
insignificância do assunto do documento. Uma clara ironia de Lobato que critica a
falta de objetividade e praticidade dos órgãos governamentais.
52
Ciente de sua missão no ministério, Sizenando segue sua nova rotina, muito
preocupado em achar um assunto para seu trabalho. Foi no âmbito familiar que lhe
ocorreu o insight para a tarefa. Segundo Holanda (1995) a grande dificuldade do
brasileiro em separar o público do privado sempre foi uma tragédia para a
organização política do país. Vamos ao contexto em que surgiu a ideia de
Sizenando:
Como por essa época a lua de mel entrasse em plena minguante, houve certo dia
rusga brava ao jantar, e a consorte, mulherzinha de pelo crespo no nariz,
pespegou-lhe pela cara com um prato de salada de beldroega.
[...]
– Eureca! Berrou ele radiante. (LOBATO, 2007b, p. 137)
Foi justamente nessa disputa doméstica que veio à tona a ideia da
beldroega como motivo principal para o trabalho no ministério. E assim empenhouse na produção do relatório, e “transcorridos dez meses, dava a prelo o Relatório
sobre o Papalvum brasiliensis, vulgo Beldroega, e sua aplicação na culinária”
(LOBATO, 2007b, p. 137).
Destaca-se o tempo gasto na confecção de um relatório: “dez meses”.
Quanto ao trabalho intelectual consumido e a eloquência vocabular utilizada pelo
personagem, comparemos com a passagem abaixo de Holanda:
O trabalho mental... Não significa forçosamente, neste caso, amor ao pensamento
especulativo – a verdade é que, embora presumindo o contrário, dedicamos, de
modo geral, pouca estima às especulações intelectuais – mas amor à frase sonora,
ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara. É que
para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos,
inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de conhecimento e de
ação. (HOLANDA, 1995, p. 83)
Concluído o relatório, chegou o momento de entregá-lo ao ministro:
53
– [...] venho comunicar a V. Excia. que se acha pronta a edição do relatório sobre o
Papalvum.
– Que papalvo? Que relatório? – inquiriu o ministro, deslembrado.
– O que V. Excia. me incumbiu de escrever.
– Quando?
– Haverá dois anos.
– Não me recordo, mas é mesmo. Mande a papelada para o forno de incineração
da Casa da Moeda. [...] Se é assim, se sempre foi assim, se sempre será assim
com todas as publicações deste Ministério, o mais prático é passar a edição
diretamente da tipografia ao forno. (LOBATO, 2007b, p. 137)
Observa-se a rotina, a estagnação nos comentários do ministro no último
parágrafo. À passagem acima pode-se associar o comentário de Holanda:
O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa época, uma acentuação
singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional, e uma estagnação,
ou antes, uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras,
racionalizadoras. Quer dizer, exatamente o contrário do que parece convir a uma
população em vias de organizar-se politicamente. (HOLANDA, 1995, p. 61)
Nosso personagem até tenta se indignar:
– E depois, que devo fazer? – indagou Sizenando, ainda tonto com o expeditismo
ministerial.
– Escrever outro relatório – respondeu sem vacilar o ministro.
– Para ser queimado novamente? – atreveu a murmurar o poeta-inspetor.
– Está claro, homem! Para que diabo despendeu o governo tanto dinheiro na
montagem do forno? Está claro que para incinerar as notas velhas e os relatórios
novos. Deste modo se conservam em perpétua atividade o pessoal da Imprensa, o
do Forno e o dos Ministérios. Veja como é sábia a nossa organização
administrativa! (LOBATO, 2007b, p. 138)
A passagem acima nos remete ao conceito de instituição total de Goffman
(2007), que analisava certas instituições cuja atividade fim acaba se perdendo,
passando então a ser a sua subsistência a finalidade capital de sua existência.
54
Na sequência do conto foi designado um novo ministro para a pasta: “O
novo ministro era bacharel em ciências jurídicas e sociais, ex-chefe de polícia e tão
entendido em agricultura como em arqueologia inca” (LOBATO, 2007b, p. 138).
Assim como ocorrera com a contratação de Sizenando, o novo ministro também era
leigo em assuntos agrícolas. Atentemos para os comentários de Holanda sobre as
nomeações: “A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de
acordo com a confiança pessoal muito menos com suas capacidades próprias. A
gestão política como assunto de seu interesse particular” (HOLANDA, 1995, p. 146).
O novo ministro atribuiu nova tarefa a Sizenando:
Sizenando recebeu ordem de ir desatolar a vigésima região da atascal da rotina.
Aquela gente vivia em pleno período da pedra lascada do café; era mister tangê-la
à estação áurea da policultura, da avicultura, [...] da criação de canários
hamburgueses etc. (LOBATO, 2007b, p. 139)
Note-se que o discurso vai bem: policultura, avicultura... Aí se volta a cair na
falta de objetividade e de racionalidade. Como se pode colocar no mesmo interesse
público a “criação de canários hamburgueses”?
No início do século XX, aqui no Brasil, as ideias positivistas predominavam
em qualquer campo. Sobre elas, Holanda teceu alguns comentários que nos
interessam para analisar a sequência do conto.
O mundo acabaria irrevogavelmente por aceitá-las, só porque eram racionais, só
porque a sua perfeição não podia ser posta em dúvida e se impunha
obrigatoriamente a todos os homens de boa vontade e de bom senso [...] O
mobiliário científico e intelectual que o Mestre legou à Humanidade bastaria para
que se atendesse em todos os tempos e em todas as terras a semelhantes
necessidades. E nossa história, nossa tradição eram recriadas de acordo com
esses princípios inflexíveis. (HOLANDA, 1995, p. 158)
55
O “Mestre” a que se refere o excerto acima é Augusto Comte, filósofo e
mentor intelectual do positivismo. A partir dessa crítica, voltemos a Sizenando,
quando faz seu primeiro discurso na nova função:
Sizenando trepou a um cupim e pronunciou breve alocução alusiva à personalidade
sobre-excelente do ministro, e ao papel dos novos métodos racionais na agricultura
moderna.
– O novo método, meus senhores, é baseado na ciência pura. [...] Eis, meus
senhores, um arado de disco. Esta parte se chama cabo, esta é a roda, serve para
rodar... (LOBATO, 2007b, p.140)
A expressão “ciência pura” refere-se ao positivismo, destaca-se em sua
explanação ao público a sua tautologia vã: roda para rodar. Passado o discurso,
vamos à prática, aos resultados:
Meses mais tarde procedeu-se à colheita. As cebolas haviam apodrecido na terra,
devido às chuvas; os alhos vieram sem dentes devido ao sol; as batatas não foram
por diante, devido às vaquinhas; as outras “policulturas” negaram fogo devido à
saúva, à quenquem, à geada, a isto e mais aquilo.
Não obstante, seguiu para o Rio um soporoso relatório de trezentas páginas onde
Capistrano, entre outras maravilhas, notava: ‘Os resultados práticos do nosso
método demonstrativo in loco têm sido verdadeiramente assombrosos! Os
lavradores acodem em massa às lições, aplaudem-nos com delírio e, de volta às
suas terras, lançam-se com furor à cultura poli, em tão boa hora lembrada pelo
claro espírito de V. Excia. O Senhor Ministro pode felicitar-se de ter aberto de par
em par as portas da idade de ouro da agricultura nacional. (LOBATO, 2007b, p.
142)
Apesar dos resultados desastrosos, o relatório encaminhado à sede do
governo, Rio de Janeiro, tem nítido interesse em apenas bajular a seus superiores,
nada tem de realidade. Não havia qualquer interesse construtivo, reflexivo. Mais
uma vez predominam os interesses pessoais sobre os públicos.
56
Lia Cupertino Duarte (2006) aponta que a sátira, de modo geral, mostra “o
desvio, a distorção a ser evitada, tornando-se um método corretivo, exemplar” (p.
268), e “possibilita de modo lúdico, cômico, o exercício da reflexão e da contestação,
a capacidade de penetrar nas tensões dialéticas” (p. 280). Embora a análise da
autora foi construída sobre a obra de Lobato, faço extensão de seus comentários à
obra de Lima Barreto, que juntamente com Lobato percebem a realidade do
descalabro da situação do funcionalismo público no Brasil, e de maneira direta ou
irônica, usando da irreverência ou da ridicularização, fazem a denúncia dos
costumes brasileiros em uma República, ainda incipiente, mas já viciosa.
2.2 O DOUTORISMO
“O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível
o qual só pode ser exercido com a cumplicidade
daqueles que não querem saber que lhe estão
sujeitos ou mesmo que o exercem.”
Pierre Bourdieu
Em A história cultural entre práticas e representações (1988), Roger
Chartier, apresenta dois significados para a representação. O primeiro é a
“Representação como dando a ver uma coisa ausente, [...] por outro, a
representação como exibição de uma presença, como representação pública de algo
ou de alguém” (p. 20). Interessa-nos, mais de perto, o último. Chartier indica que
uma das modalidades de a representação articular-se com o social está nas práticas
[...] que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria
de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim,
as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns “representantes”
(instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada
a existência do grupo, da classe ou da comunidade. (CHARTIER, 1988, p. 23)
57
Tais práticas requerem reconhecimento e aceitação dos outros membros da
sociedade, conforme observação de Chartier em À beira da falésia:
No entanto, eles não são uma expressão imediata, automática, objetiva, do estatuto
de um ou do poder do outro. Sua eficácia depende da percepção e do julgamento
de seus destinatários, da adesão ou da distância ante mecanismos de
apresentação e de persuasão postos em ação. (CHARTIER, 2002, p. 177)
Pierre Bourdieu (2013), em A distinção, ressalta que esse reconhecimento
não passa, necessariamente, por uma conscientização intelectual:
O julgamento de atribuição prático pelo qual atribuímos a alguém uma classe pela
maneira como nos dirigimos a essa pessoa (e, ao mesmo tempo, nos atribuímos
uma classe) nada tem a ver com uma operação intelectual que implique a
referência consciente a indícios explícitos e a implementação de classes produzidas
pelos e para o conceito. (BOURDIEU, 2013, p. 439)
Sobre o tema desta seção, convém analisarmos seu título, à luz de um
dicionário, e dele extrairmos o que nos interessa aqui. Dividimo-lo em três unidades:
douto, doutor e ismo. Douto: (lat. doctu), aquele que aprendeu muito, instruído
erudito, sábio. Doutor: aquele se diplomou na universidade; o profissional da
medicina, o médico; o que defendeu uma tese científica, filosófica, artística, em um
curso de pós-graduação em uma universidade. O sufixo -ismo: ação, conduta ou
qualidade característica de... (FERREIRA, 1986, p. 610).
Teríamos, então, um segmento de profissionais sábios em seu ofício, com
formação acadêmica e que aplicam o conhecimento obtido em sua área de atuação.
Vejamos como isso se desenvolve na República que Lima Barreto chamou de
Bruzundangas. O narrador anuncia sua constituição:
A aristocracia doutoral é constituída pelos cidadãos formados nas escolas,
chamadas superiores, que são as de medicina, as de direito e as de engenharia. Há
58
de parecer que não exista aí nenhuma nobreza; que os cidadãos que obtêm títulos
em tais escolas vão exercer uma profissão como outra qualquer. É um engano. Em
outro qualquer país, isto pode se dar; na Bruzundanga, não.
Lá o cidadão que se arma de um título em uma das escolas citadas obtém
privilégios especiais, alguns constantes das leis e outros consignados nos
costumes. O povo mesmo aceita esse estado de coisas e tem um respeito religioso
pela sua nobreza de doutores. Uma pessoa da plebe nunca dirá que essa espécie
de brâmane tem carta, diploma; dirá: tem pergaminho. Entretanto, o tal pergaminho
é de um medíocre papel de Holanda. (BARRETO, 2006, p. 769)
Lima Barreto antecipa aqui a questão das classes sociais e nos mostra que
o doutorismo forma uma classe especial, distinta da popular ou trabalhadora, e da
burguesia. Ela é em essência uma classe aristocrática: “a aristocracia doutoral”;
portanto nobre e formada nas escolas “chamadas superiores”. Note-se a ironia do
autor ao se referir a essas escolas. Poderia ter usado diretamente o adjetivo ao
substantivo. Mas interpôs entre eles o termo “chamadas”. Essa construção permite
inferir que essas escolas eram chamadas de “superiores”, mas o que havia de
superior nelas? Quem as chamava assim? O costume, o povo, sem qualquer
reflexão sobre o adjetivo. E quanto à nobreza nas três áreas: medicina, direito e
engenharia? O próprio narrador, como que desejando chamar a atenção do leitor –
ou desse público – questiona no que esses profissionais diferem dos de outras áreas
de atuação. A seguir na narrativa, surgem as comparações entre o lá,
Bruzundangas, e outro país qualquer. O narrador utiliza a comparação a fim de
criticar o comportamento dessa sociedade, para que não pensem os leitores que
esse comportamento é normal, que as coisas são assim mesmo, isso acontece em
qualquer cultura e não é exclusividade da sociedade bruzundanguense. A crítica
continua ao chamar a atenção para o fato de que essa aristocracia doutoral tem
“privilégios especiais”, muitos deles previstos em leis, além de outros, incorporados
na cultura local. Ao utilizar a expressão “o povo mesmo aceita”, o narrador coloca o
59
próprio povo como formador e cúmplice dessa prática, inclusive em sua relação
religiosa com esses doutores. Ainda explorando a ironia como recurso de denúncia,
o narrador compara os doutores de Bruzundanga aos brâmanes, definidos como
homens “da mais alta das castas hindus, a dos homens livres” (FERREIRA, 1986, p.
281). Encerrando essa passagem, nem o modo como é chamado o diploma pelo
povo é poupado, pois o que valorizam tanto não passa de papel “medíocre”
holandês.
Nessa passagem do romance o autor derrama sua verve crítica muito mais
sobre o povo do que propriamente contra a aristocracia doutoral. O que mais o deixa
indignado e inconformado é a aceitação e a proclamação da nobreza dos doutores
por parte daqueles que acabam sem o saber, sendo as vítimas, desse fato social.
Na obra Monteiro Lobato, furacão na botocúndia, Azevedo, Camargos e
Sachetta informam que a ideia de doutor foi colocada para Lobato desde garoto.
Mas a carreira do irrequieto Juca estava determinada desde pequeno. No país dos
bacharéis – como alguns definiam o Brasil daquele período – um diploma de
médico, engenheiro ou advogado significava garantia de acesso às esferas
institucionais da República. Obter o título de “doutor” tornava-se condição sine qua
non para os rapazes bem-nascidos – mesmo para os que não pretendessem
exercer a profissão. (AZEVEDO;CAMARGOS;SACHETTA, 2000, p. 15)
Mais tarde, Lobato ironiza, em Mundo da lua, a proliferação de doutores em
diversas áreas, ao comentar que tínhamos:
[...] doutores em leis, doutores em comércio, doutores em farmácia, doutores em
dentaduras, doutores em engenharias, doutores em medicina. E academias sobre
academias se fundam lá e cá, de Comércio, de Letras, de Poucas Letras, de
Nenhuma Letras, de Costura. (LOBATO, 1948, p. 143)
60
2.2.1 O fetichismo do título
Em A distinção, Pierre Bourdieu (2013) traz-nos reflexões importantes sobre
a percepção do mundo social
A percepção primeira do mundo social, longe de ser um simples reflexo mecânico,
é sempre um ato de conhecimento que faz intervir princípios de construção
exteriores ao objeto construído apreendido em seu imediatismo, mas que, por ser
destituído do controle de tais princípios e de sua relação com a ordem real que eles
produzem, é um ato de desconhecimento, implicando a forma mais absoluta de
reconhecimento da ordem social. (BOURDIEU, 2013, 438)
Essa aceitação encontra apoio na superstição popular, como nos mostra o
narrador de Bruzundanga na passagem abaixo:
A nobreza dos doutores se baseia em alguma coisa. No conceito popular, ela é
firmada na vaga superstição de que seus representantes sabem; no conceito das
moças casadeiras é que os doutores têm direito, pelas leis divinas e humanas, a
ocupar os lugares mais rendosos do Estado; no pensar dos pais de família, ele se
escuda no direito que têm os filhos graduados nas faculdades em trabalhar pouco e
ganhar muito. (BARRETO, 2006, p. 772)
Destaca-se que a própria nobreza dos doutores repousa “em alguma coisa”.
Essa expressão não transmite a ideia de racionalidade, o que tão bem caberia a
uma classe que deveria ser científica. Mas, ao contrário, encontra amparo em algo
sobrenatural, supersticioso, na contramão da racionalidade na qual deveria se
pautar. Essa ideia vai ser também encontrada em Triste Fim de Policarpo Quaresma
na passagem em que o narrador tece comentários sobre o personagem Cavalcante,
um dentista:
Nos intervalos da conversa, todos olhavam o novel dentista como se fosse um ente
sobrenatural. Para aquela gente toda, Cavalcante não era mais um simples homem,
61
era um homem e mais alguma coisa sagrada e de essência superior; (BARRETO,
2006, p. 284)
Portanto, a sociedade cria uma aura em torno do doutor, uma espécie de
fetichismo que o distingue de qualquer outro ser. Lima Barreto, farto desse
comportamento, faz um desabafo em O cemitério dos vivos:
Esta nossa sociedade é absolutamente idiota. Nunca se viu tanta falta de gosto.
Nunca se viu tanta atonia, tanta falta de iniciativa e autonomia intelectual! É um
rebanho de Panúrgio, que só quer ver o doutor em tudo, [...] Nos grandes países de
grandes invenções, de grandes descobertas, de teorias ousadas, não se vê nosso
fetichismo pelo título universitário que aqui se transformou em título nobiliárquico. É
o Don espanhol. (BARRETO, 2006, p. 1402)
Ressalta-se aqui uma crítica à organização política do país. País que,
embora republicano, mantém as características da monarquia. Não é o que se
observa nesse país. Os títulos nobiliárquicos continuam em alto prestígio, só que
agora incorporados pelos doutores. Voltemos ao Triste fim de Policarpo Quaresma e
recortemos uma passagem na qual o narrador fala das intenções de Coleoni,
compadre de Quaresma, em casar a filha:
Ele se havia habituado a ver no doutor nacional, o marquês ou o barão de sua terra
natal. Cada terra tem a sua nobreza; lá é visconde; aqui é doutor, bacharel e
dentista; e julgou muito aceitável comprar a satisfação de enobrecer a filha com
umas meias dúzias de contos de réis. (BARRETO, 2006, p. 294)
Nessa passagem reaparece e mesma ideia sobre a relação entre títulos
nobiliárquicos e a classe de doutores, logo a importância de casar a filha com um
doutor, o que a tornaria pertencente à nobreza.
Normalmente, o grupo social adota um símbolo como talismã, uma espécie
de amuleto para representar algo que não está presente. Nossos doutores,
62
evidentemente, deveriam adotar um símbolo que os distinguisse dos demais. O
diploma, ou melhor, o pergaminho, não bastava. Era necessário um símbolo visível a
todos. Adotou-se, então o uso do anel, mais um costume monárquico, que a
República não dispensou.
Quaresma mesmo recebeu-o com as maiores marcas de admiração e o doutor,
gozando aquele seu sobre-humano prestígio, ia conversando pausadamente,
sentenciosamente, dogmaticamente; e à proporção que conversava, talvez para
que o efeito não se dissipasse, virava com a mão direita o grande anelão
“simbólico”, e o talismã que cobria a falange do dedo indicador esquerdo, ao jeito
de marquise. (BARRETO, 2006, p. 335)
O autor compara o anel de doutor com um talismã, curiosa mistura de
ciência e do sobrenatural. Se o talismã é capaz de atribuir ao seu possuidor um
poder mágico de conseguir seus intentos, o doutor também possui esses poderes
sobrenaturais, simbolizados pelo anel. Mas há aqueles que levam tão a ferro a
simbologia, que sua ausência os leva ao desespero. Exemplo disso recortamos de
Vida e morte de M. J. Gonzada de Sá quando uma esposa conta da situação em
que o marido esqueceu o símbolo e saiu à rua: “Contava pequenas histórias de sua
vida, a viagem próxima do papai, à Europa, o desespero do marido no dia em que
saiu sem anel” (BARRETO, 2006, p. 348).
Roger Chartier, em A história cultural entre práticas e representações, faz
comentários elucidativos sobre símbolos como representação.
[...] se os médicos não tivessem sotainas e mulas e os doutores não tivessem
barretes quadrados e becas demasiado longas e de quatro panos, nunca teriam
enganado o mundo, que não consegue resistir a essa monta autêntica. Se aqueles
últimos detivessem a verdadeira justiça e os médicos possuíssem a verdadeira arte
de curar, não teriam necessidade de barretes quadrados [...] Mas lidando com
ciências imaginárias, é-lhes necessário lançar mão desses vãos instrumentos que
63
impressionam a imaginação daqueles com quem têm de tratar; e é deste modo, que
se dão ao respeito. (CHARTIER, 1988, p. 22)
2.2.2 Formação e ascensão social
Preza a lógica que, para ser chamado de doutor, o indivíduo deveria ter
formação acadêmica. Mas não se pode esperar isso da Bruzundanga de Lima
Barreto, onde o deputado Felixhimino bem Karpatoso era tratado respeitosamente
de doutor, embora não se soubesse bem “se era advogado, médico, engenheiro ou
mesmo dentista” (BARRETO, 2006, p. 764).
Ou seja, a formação e o conhecimento são irrelevantes. As autoridades, os
políticos, obtêm automaticamente o status de doutor. Ressalte-se o deboche de
Lima Barreto ao dar ao deputado de sua república um nome que parece
escandinavo, que nada tem da terra que representa.
A relação entre formação acadêmica e conhecimento deveria ser óbvia no
mundo doutoral. Por princípio o que se estudava na academia deveria ser aplicado
na vida prática profissional dos doutores. No entanto, ainda durante o curso, os
doutores já adotavam a política de negar às disciplinas acadêmicas qualquer valor
prático para a atividade profissional. O personagem-título de Numa e a ninfa, o
deputado Numa, por exemplo, confessa sua relação com o conhecimento.
O jovem Numa não separava o conceito das disciplinas do da formatura; Economia
Política, Finanças e Medicina Legal não respondiam a certas necessidades de
comunhão humana; e se tais matérias foram criadas, descobertas ou inventadas, o
foram somente para fabricar bacharéis em Direito. Com as outras carreiras,
acontecia o mesmo. Tal idéia pautava e regia o seu curso. Instantes depois de
acabado o exame Pompílio esquecia a disciplina. (BARRETO, 2006, p. 420)
Ou seja, as disciplinas acadêmicas tinham finalidade em si mesmas.
Terminadas as provas, jogava-se fora o que fora estudado. Dessa forma, como
64
associar conhecimento e profissional? A formação era totalmente desconexa da
atividade profissional. Talvez contribuísse para isso a aceitação do costume vigente
entre os doutores de não exercer necessariamente sua atividade de formação, e
valer-se do titulo apenas para obter cargos e influência. Vejamos o exemplo do
doutor Bulhões, personagem de Triste fim de Policarpo Quaresma
O doutor Bulhões [...] Esse doutor tinha uma grande reputação nos subúrbios, não
como médico, pois que nem óleo de rícino receitava, mas como entendido em
legislação telegráfica, por ser chefe da Secretaria dos Telégrafos. (BARRETO,
2006, p. 266)
Novamente o uso do deboche por parte do autor “nem óleo de rícino
receitava” para descaracterizar a atividade do “médico”, que, no entanto, ocupava
alto cargo em uma Secretaria distinta de sua formação. Em Os Bruzundangas, Lima
Barreto observa a mesma prática difundida entre vários profissionais da medicina:
“Há médicos que são ao mesmo tempo clínicos do Hospital dos Indigentes, lentes da
Faculdade de Medicina e inspetores dos telégrafos” (BARRETO, 2006, p. 770).
Note-se o interesse de alguns doutores em ocupar cargos muito mais por motivos
políticos do que profissionais.
Não bastasse tudo isso, o povo em geral costuma bajular seus doutores e
tratá-los como sábios. Notemos essa passagem para reforçar essa ideia
Não há médico afreguesado que não seja considerado um sábio pela gente da
Bruzundanga e, para firmar tal reputação, não fabrique uma compilação escrita em
sânscrito. O médico sábio não pode escrever em outra língua que não o sânscrito.
Isto lhe dá foros de literato e aumenta-lhe a clínica. (BARRETO, 2006, p. 838)
Nessa passagem o autor acrescenta outra característica aos doutores: o
“foro de literato” – destaca-se o termo pejorativo para se referir à pretensão dos
chamados doutores em serem, também, homens de Letras. E por que escreviam em
65
sânscrito? Porque o objetivo não era o entendimento do que se escrevia. Se
ninguém entendesse, melhor. O texto ganhava ares de “intelectualidade”. Lima
Barreto estende sua crítica ao modelo de literatura valorizado na época.
No final da Idade Média, com a transformação da sociedade estamental,
surge a oportunidade de ascensão social, ideia que se tornaria presente na
sociedade brasileira séculos mais tarde, no período republicano. Então a classe
baixa passa a traçar planos para atingir uma camada mais alta na escala social. Em
História e sonhos, Lima Barreto discorre sobre o tema ao comentar a distinção que
alguns faziam à época entre advogados e rábulas
Advogava unicamente no cível e no comercial. Isto de “crime”, dizia ele com asco,
“só para os rábulas”. Pronunciava – “rábulas” – quase cuspindo, porque devem ter
reparado que os mais vaidosos com os títulos escolares são os burros e os de
baixa extração que os possuem. Para estes, ter um pergaminho, como eles
pretensiosamente chamam o diploma, é ficar acima e diferente dos que o não têm,
ganhar uma natureza especial e superior aos demais, transformar-se até de alma.
(BARRETO, 2006, p. 1071)
O sujeito de “Advogava” no início da citação é o advogado, portanto na
classe dos doutores. Note-se o tom pejorativo “rábula” com que trata o outro – que
não é doutor. Mas Lima Barreto ao comentar o caso dirige-se ao leitor “devem ter
reparado”, chamando a atenção que não são todos os advogados, ou portadores de
diplomas que assim se comportam, mas justamente os mais “burros e os de baixa
extração”. No último período da passagem, volta a criticar aqueles que ao atingirem
o doutorado passam a menosprezar os de sua classe anterior. Essa situação de
desconsideração do novo doutor com seus ex-pares, Lima Barreto torna a mostrar
em Histórias e sonhos
66
Quando fui empregado da Secretaria da Guerra, havia numa repartição militar, que
me ficava perto, um sargento amanuense com um defeito numa vista, que não
cessava de aborrecer-me com as suas sabenças e literatices. Formou-se numa
faculdade de Direito por aí e, sem que nem porque, deixou de me cumprimentar.
São sempre assim... (BARRETO, 2006, p. 1072)
A ascensão social via o doutoramento torna-se uma obsessão entre as
classes menos favorecidas. O deputado Ninfa, do romance Numa e a ninfa, traça
seus objetivos logo cedo.
O filho do escriturário, desprezado pelos doutores, percebeu logo que era preciso
ser doutor fosse como fosse. [...] De quando em quando, arranjava um emprego
efêmero, lições e munia-se de roupas. Formou-se aos vinte e quatro anos, tendo
vivido desde os dezessete sobre si. Parecia que uma energia dessas se devesse
empregar em altos intuitos; há aí uma questão de ponto de vista. No seu entender,
o máximo de escopo de vida era formar-se e formou-se com grande tenacidade.
(BARRETO, 2006, p. 419)
O personagem Numa em uma reflexão tempos depois:
Lembrava-se bem da casa, baixa, caiada, meio de telha-vã, meio forrada, com um
largo quintal, tendo, aqui e ali, uma árvore, um cajueiro e os urubus teimosos
misturados com as aves domésticas. E agora? Habitava um palácio, no meio da
abundância, ao lado de uma linda mulher bem educada, onde iria?... Muito pode a
formatura! Se ele não se fizesse doutor, que seria?...[...] Tinha a saber? Não sabia.
Tinha talento? Não sabia. Que é que sabia ao certo? É eu era formado.
(BARRETO, 2006, p. 426)
O título de doutor muito que mais que uma possibilidade de ascensão social
representava uma distinção social. Àqueles oriundos de famílias de classe
privilegiada era quase um destino certo e, aos oriundos de classe econômica mais
baixa – o que era quase uma conquista sobrenatural – ia muito além de uma
melhoria de situação financeira.
67
2.2.3 Imunidade doutoral
Uma característica do doutorismo era sua distinção, o que implicava um
tratamento diferenciado. Enquanto a população em geral estava sujeita a certas
normas, leis e costumes, o mesmo não acontecia com os doutores. Observemos
essa passagem sobre a penalização, quando se refere a doutores, na república das
Bruzundangas
O nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dos mais repugnantes
crimes. Ele não pode ser preso como qualquer do povo. Os regulamentos rezam
isto, apesar da Constituição etc. etc. [...] A Constituição não faz exceção, mas os
doutores hermeneutas acharam uma. (BARRETO, 2006, p. 770)
Ao tratar da sátira, Massaud Moisés (1974) expõe que “(a sátira) pressupõe
uma atitude ofensiva, ainda quando dissimulada: o ataque é uma marca indelével, a
insatisfação perante o estabelecido, a sua mola básica.” (MOISÉS, 1974, p. 470). Na
passagem de Os Bruzundangas acima, Lima Barreto demonstra sua indignação com
o fato atacando a classe doutoral e por meio da inversão de significados – marca da
ironia – chama os doutores de “hermeneutas”. Tal adjetivo significa um especialista
em hermenêutica, na arte de interpretar textos. No texto barretiano, o termo ganha
significado oposto – os tais doutores não são especialistas em nada. Ao analisar a
Constituição, os tais doutores fuçam-na até adaptá-la, ou mesmo torcê-la, a fim de
atender seus interesses pessoais.
As desigualdades sociais reforçam-se. Se o título de doutor é uma distinção
em si, há outras situações que, se acrescidas ao título, dão uma ênfase ainda maior
à classe social do possuidor. O personagem Bogóloff, um russo que chegou a nossa
república e que trouxe consigo alguns ideais da revolução bolchevista, espanta-se
com os conselhos que lhe deram
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– És tolo, Bogóloff; devias ter-te feito tratar por doutor.
– De que serve isso?
– Aqui, muito! No Brasil, é um título que dá todos os direitos, toda a consideração...
Se te fizesses chamar doutor, terias um lote melhor, melhores ferramentas e
sementes. Louro, doutor e estrangeiro, ias longe! Os filósofos do país se
encarregavam disso. (BARRETO, 2006, p. 455)
Note-se a acumulação de fatores que corroboram as desigualdades sociais:
a cor da pele, louro; o título, doutor; e ainda ser estrangeiro. Persiste, além disso, a
ideia de que o povo aceita como de direito os privilégios do doutor. Na concepção do
bolchevique tudo isso é um absurdo. Destaca-se a inversão de significado quanto à
atitude dos filósofos que deveriam ser reflexivos e críticos, mas que, segundo o
texto, contribuem para a irreflexão e homologam a situação dos doutores. A inversão
é uma característica básica da sátira, como da ironia, recursos que Lima Barreto tão
bem explora na construção da narrativa.
Expedientes que Monteiro Lobato não dispensou em seus textos. DUARTE
(2006) comenta o emprego da inversão e do cômico nas obras de Lobato
[...] o autor que produz seu texto com uma postura consciente e reflexiva, [...] além
de granjear a atenção do jovem leitor seduzido pelo prazer da comicidade, na
maioria das vezes, reveste-se também de um papel crítico-reflexivo, manifestado
pela inversão e subversão da ordem vigente. (DUARTE, 2006, p. 30)
Lobato não deixou passar despercebido a cultura do doutorismo que
imperava na sociedade brasileira durante a República Velha. No conto “Barba azul”,
o autor reproduz um diálogo no qual faz questão de ressaltar, em tom irônico, a
associação da questão financeira como modo de pertencer a essa classe:
– Doutor, dizes tu?
69
– Está claro. O diploma veio logo atrás dos seguros, como consequência lógica.
Quem nesta terra, com algumas centenas de contos no banco, permanece senhor?
(LOBATO, 2008a, p. 110)
A passagem refere-se ao personagem Panfilo, que sobrevivia à custa de
golpes por meio de casamentos, previamente planejados, visando a sua viuvez e,
consequentemente, o acúmulo de bens em seu nome. Ao ouvir que se referiam a ele
como doutor, há uma espécie de indignação, pois era de conhecimento de todos a
péssima fama de vigarista desse sujeito, e que de “doutor” ele não tinha nada. No
entanto, o dono do discurso se defende, rebatendo a dúvida, esclarecendo a lógica
do tratamento – observe-se a expressão “Está claro” – fazendo lembrar que nessa
terra o título estava diretamente relacionado às condições financeiras e não,
necessariamente, à formação ou à prática profissional do indivíduo.
2.2.4 Personalismo e analogias biológicas
Uma característica do “nosso doutorismo” abordada por Lobato, que reforça
o já tratado por Lima Barreto, é a questão do personalismo, ou seja, o interesse
próprio se sobrepondo ao coletivo. No conto “Sorte grande”, a personagem
apresenta um problema físico no nariz, o que a torna vítima de comentários jocosos
em sua cidade: “– Se aquilo pega, ninguém mais planta rabanetes em Santa Rita. É
só levar a mão no rosto e colher um...” (LOBATO, 2008a, p. 177). Curioso com a
origem do problema, um médico, o doutor Cadaval vê na situação incômoda e no
sofrimento da paciente, um ótimo trampolim em sua carreira
A maldade dos lugarejos tem a insistência de certas moscas. [...] Nos galinheiros
também é assim. Quando aparece uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a
bicadas – e bicam-na até destruí-la. Em matéria de maldade o homem é galináceo.
[...] A expressão do médico lembrava a do garimpeiro que encontra um diamante de
valor fabuloso – um Cullinan! Nervosamente ele insistia:
70
– Conte, conte...
Queria saber tudo; como aquilo começara, como se desenvolvera, que perturbação
ela sentia e outras coisinhas técnicas. E as respostas da moça tinham o condão de
aumentar-lhe o entusiasmo. Por fim:
– Maravilhoso! – exclamou. – Um caso único de boa sorte...
Tais exclamações desnortearam a doente. “Maravilhoso?” Que maravilhamento
poderia causar a sua desgraça? Chegou a ressentir-se. (LOBATO, 2008a, p. 179)
O autor apresenta, nesse conto, como o interesse pessoal supera a
preocupação com o bem estar da paciente ou em amenizar-lhe o sofrimento. Assim,
o doutor que deveria, por dever do ofício, cuidar do paciente, vai se interessar pela
promoção pessoal que o caso possa lhe dar, trata-o até como uma “boa sorte”.
Embora uma pessoa simples, a portadora da enfermidade não deixa de se espantar
com a reação do médico sobre seu caso.
Quanto à comparação entre o reino animal e a sociedade humana, o escritor
francês Honoré de Balzac, no prefácio da obra A comédia humana, comenta
Não há senão um animal. O Criador se serviu de um só e único padrão para todos
os seres organizados. O animal é um princípio que adquire sua forma exterior, ou,
para falar com mais rigor, as diferenças de sua forma, nos meios em que ele se
desenvolve. As espécies zoológicas resultam dessas diferenças. [...] Compenetrado
desse sistema, muito antes dos debates aos quais deu ensejo, compreendi que,
desse ponto de vista, a sociedade se assemelhava à natureza. Não transforma a
sociedade o homem, segundo os meios em que se desenvolve sua ação, em outros
tantos indivíduos diferentes, à semelhança das variedades em zoologia? [...]
Existiram pois, e existirão sempre, espécies sociais, como há espécies zoológicas.
Se Buffon fez um trabalho magnífico tentando apresentar num livro o conjunto da
zoologia, não seria desejável fazer-se uma obra desse gênero com relação à
sociedade? (BALZAC, 2012, p. 103)
Auerbach, na obra Mimesis, conclui que Balzac “tenta fundamentar as suas
opiniões acerca da sociedade humana (tipo humano diferenciado pelo meio)
mediante analogias biológicas” (AUERBACH, 2013, p.425), influência que recebeu
71
de Geoffroy Saint-Hilaire e transferiu a Hippolyte Taine. A palavra “meio” tem, aqui,
sentido sociológico. Taine, assim como em geral os franceses, fazia parte das
leituras dos intelectuais brasileiros do final do século XIX e início do XX. Não é raro
encontrar essa influência nas obras de Monteiro Lobato e Lima Barreto. A passagem
do conto lobatiano acima analisado é um exemplo explícito dessa influência, a que o
autor brasileiro acrescenta humor – “sociedade galinácea” – com fins de expressar
suas opiniões acerca da sociedade. De maneira não tão direta como Lobato, o que
exige maior atenção do leitor, Lima Barreto explora a tática em Triste fim de
Policarpo Quaresma
Levava sempre o pedaço de pão, que esfarelava em migalhas no galinheiro, para
ver a atroz disputa entre as aves. Acabando, ficava um instante a considerar
aquelas vidas, criadas, mantidas e protegidas para sustento da sua. (BARRETO,
2006, p. 334)
Se a comparação aqui não é explícita, como no conto lobatiano, o que exige
minuciosa atenção do leitor, a reflexão de Quaresma ganha consistência quando
associada a uma análise das relações entre as classes sociais.
Para fechar essa seção sobre o doutorismo, faremos uma análise do conto
“Pollice verso” de Monteiro Lobato, que agrega as práticas culturais denunciadas
pelos autores até este ponto.
O título do conto é uma expressão latina que significa polegar virado. Era
usada pelo público das arenas romanas para decidir o destino dos gladiadores
derrotados. O texto inicia-se com a observação do coronel Inácio da Gama sobre
seu filho caçula e suas:
[...] singulares aptidões para médico. Pelo menos assim julgara o pai, como quer
que o encontrasse na horta interessadíssimo em destripar um passarinho
agonizante. – Descobri a vocação de Nico – disse o arguto sujeito à mulher. – Dá
72
um ótimo esculápio. Inda agorinha o vi lá fora dissecando um sanhaço vivo.
(LOBATO, 2007a, p. 89)
Note-se o superlativo “interessadíssimo” que demonstra o empenho do
menino pela atividade. O curioso da observação do pai é que a atividade
desenvolvida pelo menino não é exatamente a de um médico, que, a princípio, seria
a de zelar pela saúde e vida do paciente. O interesse está em “destripar”, ou seja,
arrancar órgãos internos, e ainda de um paciente – “o passarinho” – já em agonia.
Essa colocação inicial será útil no desenvolvimento da narrativa. Outra importante
informação é o adjetivo “arguto” atribuído ao coronel Inácio, pois significa alguém
perspicaz, com capacidade de percepção aguçada dos fatos.
Quanto ao ato do filho, interpretação bem diferente teve dona Joaquininha
que “fechou a cara, e quando o pequeno facínora entrou no quintal pediu-lhes conta
da perversidade, asperamente” (LOBATO, 2007a, p. 89). Nota-se a oposição de
ideias que se cria entre a mãe – dona Joaquininha – e o pai – o coronel Inácio da
Gama – em relação aos comportamentos do filho caçula. Enquanto o pai se gabava
das habilidades do caçula, a mãe já o tratava como “facínora” e perverso. A
oposição é reforçada no vocabulário do casal, o que leva o narrador a pedir
desculpas pelo coronel Inácio: “Perdoem-lho à guisa de compensação à parcimônia
da esposa, cujo vocabulário era dos mais restritos” (LOBATO, 2007a, p. 90).
Enquanto o pai não via mal no comportamento do filho, a mãe o ameaçava “- Eu que
saiba que o senhor anda com judiarias aos pobres animaizinhos, que te disseco o
lombo com aquela anatomia, ouviu, seu carniceiro” (LOBATO, 2007a, p. 90).
Anatomia, para dona Joaquininha, era uma vara de marmelo que ela mantinha
pendurada atrás da porta.
73
Entretanto, não se altera o comportamento do menino, que apenas se torna
mais cauteloso
Acautelava-se. Era às escondidas que depenava moscas, brinquedo curioso,
consistente em arrancar-lhes todas as pernas e asas para gozar o sofrimento dos
corpinhos inertes. Aos grilos cortava as saltadeiras, e ria-se de ver os mutilados
caminharem como qualquer bichinho de somenos. (LOBATO, 2007a, p. 90)
As expressões “gozar o sofrimento” “ria-se de ver os mutilados” evidenciam
o sadismo do candidato a médico. Assim, foi o menino se desenvolvendo, “Em casa,
um anjinho. [...] anjo internamente e demônio extramuros” (LOBATO, 2007a, p. 90)
até ser matriculado em medicina. Os planos dos pais era que o filho retornasse à
cidade de Itaoca a fim de desbancar os “quatro esculápios locais, uns onagros.”
(LOBATO, 2007a, p. 91). O recém formado doutor volta a Itaoca, impressionando a
população com seu aspecto doutoral
[...] trazia barba de médico francês, coisa que muito avulta a ciência do proprietário.
Doentes há que entre um doutor barbudo e um glabro, ambos desconhecidos,
pegam sem tir-te no peludo, convictos de que pegam no melhor. (LOBATO, 2007a,
p. 91)
Nota-se aqui o símbolo da barba copiado do modelo francês, país
considerado pela sociedade brasileira como referência de civilização à época. A
barba funciona como uma representação que o personagem utiliza para camuflar
sua pouca ciência. Chartier, em A história cultural entre práticas e representações
(1988), comenta que “Assim deturpada, a representação transforma-se em máquina
de respeito e de submissão” (CHARTIER, 1988, p. 22).
O personagem, agora doutor Inacinho, aborrecia-se com os outros médicos
da região acusando-os de “perfeitas vacas de Hipócrates, estragadores de pepineira
com suas consultinhas de 5 mil-réis. [...] Estes rábulas é que estragam o negócio”
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(LOBATO, 2007a, p. 91). Aborrecia-se porque os colegas não compartilhavam, a
princípio, de sua visão da medicina como negócio. O narrador denuncia a motivação
do doutor Inacinho “Negócio, pepineira, grandes lances – está aqui a psicologia do
novo médico. Queria pano verde para as boladas gordas” (LOBATO, 2007a, p. 91).
Se Inacinho aborrecia-se com os médicos locais, os mesmos também se indignavam
com o novo doutor, recém-egresso da faculdade de medicina “– Uma bestinha –
dizia um – Eu fico pasmado é de saírem da Faculdade cavalgaduras daquele porte!
É médico no diploma, na barbicha e no anel do dedo. Fora daí, que cavalo!”
(LOBATO, 2007a, p. 92). Reforça-se aqui a importância dos símbolos – diploma,
barbicha, anel – os quais afirmam a distinção do ser doutor, embora este fique a
dever no exercício da profissão.
A reação do pai, coronel Inácio da Gama, era ainda gabar-se do filho, “Era
de moer de inveja aos mais” ainda mais que o filho abusava de um vocabulário que
ninguém entendia: “– A terminologia inteira da ciência alopata, coisas em grego e
latim, circunvolve naquela cabecinha – disse ele uma vez ao vigário, que olhou de
revés, por cima dos óculos, ao som daquele mirífico circunvolve” (LOBATO, 2007a,
p. 92). Expressa-se nessa passagem o deleite paterno com a distinção social do
filho.
Mas o tempo passava e como “o sonho do moço era de enriquecer às
rápidas” e o tempo corria “sem que nenhuma piabinha de vulto lhe caísse na rede”
(LOBATO, 2007a, p. 92), a ansiedade tomava conta do jovem doutor. Nota-se que
sua ansiedade não repousava na aplicação da profissão, mas sim, única e
exclusivamente, nos dividendos do negócio.
Até que, finalmente para o doutor Inácio, surge uma oportunidade de monta:
“Entrementes adoeceu o major Mendanha, capitalista aposentado com trezentas
75
apólices federais, o Rockfeller de Itaoca” (LOBATO, 2007a, p. 93). E para sua sorte
o major não se dava bem com os médicos mais antigos do local, alguns por
desavenças políticas, o que o fez optar por chamar o doutor Inacinho, embora sob
protestos da mulher “– Este, Mendanha, é moço bonito, que o que quer é dinheiro e
pândega, você não vê? [...] Olhe, olhe! Depois não se arrependa!...” (p. 94). A
esposa chegou a sugerir o doutor Fortunato, a que de imediato o marido retrucou
“Fortunato! Já esqueceu você do que me ele fez por ocasião do júri, o tranca?
Cobrar 50 mil-réis por um atestado falso? Não me pilha mais um vintém, o pirata...”
(p. 93). Observa-se aqui que até mesmo um dos médicos antigos, um dos desafetos
do doutor Inacinho, também se inclinava para o comércio ilícito que a profissão lhe
propiciava.
Chamado para o caso do major Mendanha, o doutor Inacinho deu o
diagnóstico “– É uma pericardite aguda agravada por uma flegmasia hepático-renal”
(LOBATO, 2007a, p. 95). Na verdade o médico ignorava a doença do major e “O
lindo diagnóstico de Inacinho não passava de mera sonoridade pelintra” (p. 95).
Destaca-se a crítica do narrador ao vocabulário científico, neste caso, que não ia
além de sonoridade para esconder a trama que o doutor Inacinho já desenhava
Além do mais, quem sabe lá se não estaria ali o sonhado lance? Prolongar a
doença... Engordar a maquia... Inácio não enxergava em Mendanha o doente, mas
uma bolada maior ou menor, conforme a habilidade do seu jogo. [...] Como
desadorasse a medicina, não vendo nela mais que um meio rápido de
enriquecimento, nem sequer lhe interessava o caso clínico em si, como a muitos.
Queria dinheiro, ...” (LOBATO, 2007a, p. 95)
A passagem acima mistura o discurso indireto livre, voz do personagem,
com a voz do narrador onisciente que explica ao leitor o verdadeiro intento do doutor
Inacinho.
76
O tratamento sugerido ao paciente não deu certo “O velho piorou com a
medicação” (LOBATO, 2007a, p. 96). situação que o doutor Inacinho soube
aproveitar “ – É mais grave o caso do que eu supunha – disse o doutor à mulher – e
os escrúpulos do meu sacerdócio aconselham-me a pedir conferência médica” (p.
96), o termo escrúpulos usado pelo personagem não combina com suas intenções, e
a sugestão de ouvir os demais médicos não passava de uma estratégia pois sabia
da repulsa do major em ouvi-los.
Assim, “Inacinho voltou para casa esfregando as mãos” (LOBATO, 2007a, p.
96). O que o doutorzinho não esperava era uma repentina melhora de seu paciente,
ao que reagiu “Sarava, o patife!” (p. 96). Essa recuperação do doente fez com que
Inacinho refizesse seus cálculos: “... trinta visitas, trinta injeções e tal e tal: 3 contos.
Uma miséria! Se morresse, já o caso mudava de figura, poderia exigir 20 ou 30” (p.
96). Reforça-se aqui a intenção do doutor Inacinho que passava longe do que seria
esperado de um médico, ou seja, o compromisso com a saúde e a vida do paciente,
mas que nesse caso desviava para o egoísmo e dirigia-se tão somente para a
possibilidade de ganho. Nessa linha, começou o personagem a imaginar o que
aconteceria se os parentes do morto não concordassem com o pagamento
[...] a questão subia aos tribunais, com base no arbitramento. Os árbitros, mestres
do mesmo ofício, sustentavam por coleguismo, dizendo em latim: “Hodie mihi, cras
tibi”, cuja tradução médica é: “Prepara-se você para me fazer o mesmo, que
também pretendo dar a minha cartada” (LOBATO, 2007a, p. 96)
Note-se que nos tribunais a decisão era arbitrária, e não baseada na
impessoalidade e em momento algum se cita alguma lei. O fato dos árbitros também
serem médicos, aumenta a crença na impunidade e não deixa dúvidas do desfecho
favorável a si. O doutor Inacinho consultou acórdãos, que não lhe deixaram dúvidas
77
sobre o sucesso de seus planos. A consulta a acórdãos mostra que era comum à
época que médicos se apossassem de boa parte dos bens de pacientes mortos.
Diante dessa trama, o narrador expõe sua reflexão:
O que a sua cabeça pensou ninguém saberá jamais. Tem as ideias para escondêlas a caixa craniana, o couro cabeludo, a grenha; isso por cima; pela frente tem a
mentira do olhar e a hipocrisia da boca. Assim entrincheiradas, elas, já de si
imateriais, ficam inexpugnáveis à argúcia alheia. E vai nisso a pouca de felicidade
existente nesse mundo sublunar. Fosse possível ler nos cérebros claro como se lê
no papel e a humanidade crispar-se ia de horror ante si própria. (LOBATO, 2007a,
p. 97)
Enquanto o personagem trama e o narrador filosofa, o outro personagem, o
major Mendanha “piorou subitamente e lá agoniza. Morreu” (LOBATO, 2007a, p. 97).
Como era de se esperar, o doutor Inacinho “apresentou no inventário uma conta de
chegar: 35 contos de réis” (p. 98). Também como previsto e desejado pelo doutor, a
disputa foi parar no tribunal: “Move-se a traquitana da Justiça” (p. 98). Segundo o
dicionário traquitana é uma carruagem de quatro rodas para duas pessoas
(FERREIRA, 1986, p. 1705), mas também temos o vocábulo traquinada que exprime
a ideia de trama ou tramoia. Para o momento, nesta análise, caberia reunir os dois e
interpretá-los como uma trama que se move para o destino desejado para os dois,
no caso, do médico e dos árbitros.
Apesar dos comentários condenativos de Fortunato e Moura, árbitros no
processo e antigos desafetos de Inacinho, o resultado do processo foi favorável ao
doutor.
A Justiça engoliu aquele papel, gestou com outros ingredientes de praxe e, ao cabo
de prazos, partejou um monstrozinho chamado sentença, o qual obrigava o espólio
a aliviar-se de 35 contos de réis em proveito do médico, mais as custas da
esvurmadela forense.” (LOBATO, 2007a, p. 98)
78
Destaca-se dessa passagem o sintagma esvurmadela forense. O dicionário
aponta esvurmar como um ato de limpar a ferida do vurmo (o pus das úlceras), como
também o sentido figurado: por a descoberto e criticar (defeito ou paixão de alguém)
(FERREIRA, 1986, p. 732). Assim, uma possível interpretação para o sintagma seria
de que o trabalho forense deveria limpar as injustiças e mostrar os defeitos; mas, no
texto em análise, apresenta-se justamente de modo a esconder os defeitos. O
narrador por meio de uma simples expressão, um tanto jocosa, expressa dura crítica
ao sistema judicial da época.
Diante do veredito, Inacinho “radiante, embolsou os cobres e reconciliou-se
com os dois colegas que, afinal de contas, não eram os cretinos que supusera”
(LOBATO, 2007a, p. 98), e recebeu o comentário de Fortunato “O coleguismo: eis a
nossa grande força” (p. 98). Os inimigos iniciais tornam-se parceiros no conluio
necessário para garantir-lhes as distinções e prerrogativas da classe.
Com a verba embolsada, Inacinho partiu para Paris, e de lá escreveu ao pai
dizendo que estava a operar em três hospitais, frequentava as aulas em Sorbonne, e
que ficaria por lá, enquanto durassem seus 35 contos. Na verdade, “A Sorbonne é o
apartamento em Montmartre onde compartilha com o apache de Yvone o dia da
rapariga. Os três hospitais são os três cabarés mais à mão” (LOBATO, 2007a, p.
99). Todo baboso do filho, o coronel Inácio da Gama, mostrava a carta do filho aos
médicos reconciliados
– Isso de hospitais – gemeu o invejoso Fortunato – é uma mina. Dá nome. Para
botar nos anúncios é de primeiríssima. [...] – É isso mesmo – concluiu Moura,
relanciando um olhar a Fortunato num comentário mudo àquele mirífico
apropinquamento. E os dois enxugavam, a uma, os copos de cerveja comemorativa
mandada abrir pelo bem-aventurado coronel. (LOBATO, 2007a, p. 99)
79
O conto mostra, por meio dos personagens e reflexões do narrador, algumas
características que foram levantadas a respeito da prática cultural que denominamos
doutorismo. Primeiro a mística que havia em ter na família um filho doutor, nota-se
que o fato não estava necessariamente na questão financeira, pois a família já
possuía, mas na distinção social que o título trazia ao seu proprietário,
transformando-o no que Lima Barreto chamou de aristocracia doutoral. Mesmo que
fosse de origem burguesa ─ a única classe economicamente viável da época ─ o
titulo de doutor catapultava o indivíduo para a aristocracia doutoral, uma camada
social superior e restrita.
A segunda questão levantada é a existência entre os doutores, a exemplo do
personagem Inacinho, aqueles que não visavam o trabalho, o ofício da ciência, o
compromisso em cuidar da saúde e da vida de seus pacientes, mas sim o lucro
rápido e, por vezes, inescrupuloso.
Finalmente, o conto denuncia o corporativismo dos integrantes da profissão
que se unem, não para defender direitos e melhores condições de trabalho, mas
para esconder falcatruas e defender-se de possíveis acusações, beneficiando-se
das falhas do incipiente sistema judiciário republicano.
Para concluir, voltamos ao título do conto, apenas mencionado no início
desta análise. É possível associar o gesto romano de pronunciar o veredito de vida
ou morte ao gladiador, que jaz moribundo na arena, ao poder do médico sobre o
paciente. Embora o faça apenas mentalmente, o personagem Inacinho Imagina com
deleite o sucesso que adviria da disputa judicial pelos bens do Major, caso este
morresse. Em segundo plano, está o conchavo dos médicos, membros do tribunal,
que encobrem a atuação desastrosa de Inacinho, visando, possivelmente, cobrar o
favor, em futuro próximo.
80
2.3 O CONFORMISMO
“...Oh! A sociedade repousa sobre a resignação dos humildes!”
(Lima Barreto)
Em A distinção (2013), Pierre Bourdieu comenta a percepção do mundo
social pelos menos favorecidos socialmente:
Ao implementar, a fim de apreciar o valor de sua posição e de suas propriedades,
um sistema de esquemas de percepção e apreciação que nada é além da
incorporação das leis objetivas segundo as quais se constitui objetivamente seu
valor, os dominados tendem a se atribuir, em primeiro lugar, o que a distinção lhes
atribui; recusando o que lhes é recusado ( “isso não é para nós”), contentando-se
com o que lhes é concedido, avaliando sua expectativas mediante suas
oportunidades, definindo-se como a ordem estabelecida os define; no veredicto que
proferem a seu próprio respeito, [...] aceitando ser o que que têm de ser, ou seja,
“modestos”, “humildes”, e “obscuros”. (BOURDIEU, 2013, p. 438)
Assim, segundo Bourdieu, as aspirações e os desejos individuais são
ajustados e conformados à realidade.
Jonathan Culler em sua abordagem sobre a narrativa afirma que “os
romances na tradição ocidental mostram como as aspirações são domesticadas e os
desejos, ajustados à realidade social” (CULLER, 1999, p. 93); e questiona “em que
medida podemos ser sujeitos responsáveis por nossas ações e em que medida
nossas escolhas aparentes são limitadas por forças que não controlamos ” (p. 51).
Duas abordagens, ambas nascidas no final do século XIX e consolidadas ao
longo do XX, permitem-nos refletir sobre essa questão. Uma é a psicanalítica, cujo
mentor intelectual é Freud, que atribui ao Inconsciente a responsabilidade por muitas
das atitudes dos indivíduos. A segunda é a sociológica, que tem Durkheim como um
dos principais mentores: “Se a vida coletiva não deriva da individual, uma e outra
estão intimamente relacionadas; se a segunda não pode explicar a primeira, ela
81
pode, facilitar sua explicação.” (DURKHEIM, 2007, p.112). Durkheim não ignora a
importância da vida individual, mas afirma que, em seus estudos, vai priorizar o
social nas explicações da realidade em que vive o homem. É exatamente sobre essa
segunda abordagem que o presente item se debruça.
2.3.1 A primazia do social sobre o indivíduo
Após a publicação de Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima
Barreto redige uma carta, datada de 1910, na qual rebate as críticas negativas que
recebera.
O meu fim foi fazer ver que um rapaz nas condições do Isaías, com todas as
disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas,
batido, esmagado, prensado pelo preconceito com seu cortejo, que é, creio, cousa
fora dele. (BARRETO, 2006, p. 22)
Nessa nota, o autor explica que se o personagem é falho em muitos
aspectos, não o é por “suas qualidades intrínsecas”, mas sim por uma força superior
e externa a ele: a sociedade. Ao tratar das “condições” do personagem, o autor
refere-se à situação de mulato, pobre, sem padrinho influente, e que não conseguiu
ser doutor; em “disposições” refere-se aos costumes da época. A ausência do ato
voluntário por parte do personagem aparece no emprego dos verbos na voz passiva
– “batido, esmagado, prensado” – em sequência gradativa de intensidade que se
avoluma sobre Isaías. Ao utilizar “creio”, Lima Barreto procura ser polido e ao
mesmo tempo atacar o destinatário, pois para ele, parece óbvio que as causas das
falhas de Isaías estão no social, fato que o ilustre crítico não percebeu.
Procuremos na obra, que originou a crítica e a carta acima analisada,
passagens que ilustram como as aspirações individuais são frustradas pelo social.
82
O próprio personagem Isaías Caminha faz uma nota introdutória a suas
recordações, na qual fica explicita o pensamento que Culler destacou como
domesticação dos desejos individuais que devem ser ajustados à realidade social.
Não sei bem o que cri; mas achei tão cerrado o cipoal, tão intrincada a trama contra
a qual me foi debater, que a representação da minha personalidade na minha
consciência, se fez outra, ou antes esfacelou-se a que tinha construído. Fiquei
como um grande paquete moderno cujos tubos da caldeira se houvessem rompido
e deixado fugir o vapor que movia suas máquinas. (BARRETO, 2006, p. 117)
Nota-se que o personagem, já no início do texto, queixa-se da pesada
pressão social a que foi sujeito, expressa em metáforas feitas – “cipoal” – e símiles –
como “paquete”. O termo cipoal indica local de travessia difícil pelo emaranhado de
cipós, enfatizado pelo emprego do advérbio “tão” e do adjetivo “cerrado”. A repetição
do “tão” junto da palavra “trama” aponta para a semântica de algo planejado e
armado propositadamente para provocar a queda do indivíduo. Apesar de toda luta
do personagem, ele foi vencido: “esfacelou-se”; transformou-se em “paquete”
moderno sem energia própria, à mercê de situações que fogem ao controle de seu
comandante. Ao final da introdução, assinada por Isaías, o personagem conclui que
as causas de todas essas adversidades: “não estava em nós, na nossa carne e
nosso sangue, mas fora de nós, na sociedade que nos cercava, as causas de tão
feios fins e tão belos começos” (BARRETO, 2006, p. 117).
Começar bem e ter um fim tão adverso são fatos para os quais destacamos
algumas passagens. A primeira extraída do romance Vida e morte de M. J. Gonzaga
de Sá, no diálogo entre o narrador e dona Escolástica sobre as possibilidades de
futuro do menino Aleixo Manuel
– É inteligente o rapaz – disse eu à velha senhora.
83
– Bastante. Que desejo de saber tem este pequeno! O senhor nem imagina! Brinca,
é verdade; mas, à noitinha, agarra os livros, os deveres e os vai estudando, sem
que ninguém o obrigue. Quem me dera que fosse assim até o fim.
– Por que não irá?
– Ora! Há tantos que como ele começam tão bem e...
– É verdade! Mas, virá deles mesmos a perda da vontade, o enfraquecimento do
amor, da dedicação aos estudos; ou tem tal fato raízes em motivos externos,
estranhos a eles que, só numa idade mais avançada, acabam percebendo, quando
a consciência lhes revela o justo e o injusto, fazendo que se lhes enfraqueça
deploravelmente o ímpeto inicial? (BARRETO, 2006, p. 631)
A expressão de dona Escolástica – “Quem me dera” – é uma súplica, pois a
senhora tem a certeza que o comportamento do menino vai se alterar ao longo do
tempo. À pergunta do narrador, ela aplica um “Ora!”, ou seja, como se ele fosse
ingênuo e não soubesse como as coisas são. A seguir, vem a reflexão conformista
do narrador sobre a razão da mudança de rumo, se é do indivíduo “deles mesmos”
ou “estranho a eles”?
Excerto similar vamos encontrar em Numa e a ninfa, nas reflexões do
personagem Lucrécio sobre seu filho
Ele acabou de vestir-se e sentou-se logo à mesa do almoço. O filho voltou com um
jornal; e, um instante, Lucrécio olhou a criança com um olhar mais preocupado.
– A benção, papai?
– Deus te abençoe, meu filho.
O pai viu ainda os olhos luminosos da criança, carbunculando nas escleróticas
muito brancas, e pensou de si para si: que vai ser dele? Lembrou-se de dar-lhe
dinheiro para os sapatos com que fosse à escola, mas estava atrasado na casa. A
desordem de sua vida; antigamente... Que vai ser dele? Bem, arranjaria um
emprego, fá-lo-ia estudar e havia de tomar caminho. Que vai ser dele? E logo lhe
veio o ceticismo desesperado dos imprevidentes, dos apaixonados e dos que
erraram; há de ser como os outros, como eu e muita gente. É sina! (BARRETO,
2006, p. 454)
84
Destaca-se a expressão “carbunculando nas escleróticas” que sugere a
ação de um tumor que vai afetando o branco dos olhos da criança, assim como ele
acredita que vai acontecer com a vida do infante; a escolha dessas expressões dá
um tom de cientificidade à analogia que ele faz da ação do tumor com a da
sociedade. O pai recorda o próprio afetado pelo mesmo tumor, e não vê saída para
o filho, vem-lhe o “ceticismo desesperado dos improvidentes” e acaba por
abandonar a reflexão e se resigna: “É sina!”.
2.3.2 Felicidade medíocre
Na introdução que precede Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima
Barreto adverte o leitor sobre seu personagem: “Deus escreve direito por linhas
tortas. Dizem. Será mesmo isso ou será de lamentar que a felicidade vulgar tenha
afogado, asfixiado um espírito tão singular? Quem sabe lá?” (BARRETO, 2006, p.
119).
O termo vulgar, empregado aqui, não possui o sentido pejorativo de reles,
grosseiro, mas o sentido de comum, de uso popular. Dessa forma, o autor refere-se
à felicidade das pessoas comuns como uma felicidade medíocre, que se contentam
com as satisfações elementares de sobrevivência, e condena esse comportamento
complacente pelo aniquilamento de seres “singulares” como Isaías Caminha. Outra
passagem corrobora a ideia lançada na introdução
Vinham uma a uma, invadindo-me a personalidade insidiosamente para saturar-me
mais tarde até ao aborrecimento e ao desgosto de viver. Vivia, então, satisfeito,
gozando a temperatura, com almoço e jantar, ignobilmente esquecido do que
sonhara e desejara. [...] E notei essa ruína dos meus primeiros estudos cheio de
indiferença, sem desgosto, lembrando-me daquilo tudo como impressões de uma
festa a que fora e a que não devia voltar mais. Nada me afastava da delícia de
almoçar e jantar por sessenta mil-réis mensais. (BARRETO, 2006, p. 233)
85
O uso do advérbio “ignobilmente” – desprezível, torpe – é uma crítica ao
comportamento resignado com a “felicidade vulgar” do personagem; ratificados
pelos termos escolhidos “gozando” e “da delícia de” ao se referirem à adaptação
fácil e simplista do indivíduo à realidade circundante.
Em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá encontra-se outra explanação do
narrador sobre o conformismo que consome os dotados de inteligência que
procuraram o serviço público, simplesmente com o intuito de prover as necessidades
financeiras.
Em começo, procuram-no com o fim de manter a integridade do seu pensamento,
de fazê-lo produzir, a coberto das primeiras necessidades da vida; mas, o enfado, a
depressão mental do ambiente, o afastamento dos seus iguais e o estúpido desdém
com que são tratados, tudo isso, aos poucos, lhes vai crestando o viço, a coragem
e mesmo o ânimo de estudar. Com os anos, esfriam, não lêem mais, embotam-se e
desandam a conversar. (BARRETO, 2006, p. 569)
As intenções iniciais alteram-se; o meio os carrega em outras direções; com
o passar do tempo, perdem a motivação e adotam os costumes vulgares.
A busca pela “felicidade vulgar” é especialmente prioridade da mulher. Ao
olharmos para o papel social da mulher até o início do século XX, verificaremos o
pouco espaço que tinha na divisão social do trabalho, geralmente restringia-se ao
magistério, algumas atividades na saúde, mas na sua maioria limitava-se aos
cuidados do lar. Duas passagens de Triste fim de Policarpo Quaresma ilustram a
influência decisiva do social no comportamento feminino em detrimento de seus
próprios anseios. Olga, a afilhada do major Quaresma, vai visitá-lo para lhe
comunicar seu casamento:
– Gostas muito dele? Indagou o padrinho.
86
Ela não sabia responder aquela pergunta. Queria sentir que gostava, mas estava
que não. E por que casava? Não sabia... Um impulso do seu meio, uma coisa que
não vinha dela – não sabia...” (BARRETO, 2006, p.303)
Como não tinha resposta ao padrinho, Olga fica em silêncio. O autor utiliza
do discurso indireto livre para penetrar no silêncio da personagem e sondar seus
pensamentos. Desse modo, o leitor tem acesso aos questionamentos internos da
personagem e verifica que Olga não se casa por vontade própria, mas para atender
a um costume social. No caso de Olga, a reflexão, sua característica, desperta-lhe a
consciência de que seu ato não era voluntário, embora não atina a razão da força
que a impulsiona. Na sequência da narrativa, Olga casa-se. Os festejos do
casamento deixam a noiva indiferente, enquanto o noivo:
Julgava que a noiva o aceitara pelo seu maravilhoso título, o pergaminho; é
verdade que foi, não tanto pelo título, mas pela sua simulação de inteligência, de
amor à ciência, de desmedidos sonhos de sábio. Tal imagem que dele fizera,
durara instantes em Olga; depois foi a própria inércia da sociedade, a sua tirania e
a timidez natural da moça em romper que a levaram ao casamento. Tanto mais que
ela, de si para si, pensava que se não fosse este, seria outro a ele igual, e o melhor
era não adiar. (BARRETO, 2006, p. 329)
Destacam-se os termos ligados ao substantivo sociedade: inércia e tirania.
Ou seja, uma sociedade estagnada sem perspectiva de mudança e que age sobre
os indivíduos como um tirano: um domínio arbitrário e opressor sobre seus
membros.
A personagem feminina de Numa e a ninfa, dona Edgarda, esposa do
deputado Numa, parece, a princípio, constituir exceção à regra da submissão da
mulher. O primeiro nome do título do romance é o do deputado; o segundo,
expliquemos com a passagem a seguir, no momento em que outro deputado proferiu
esse comentário “– O Numa ainda não ouviu a Ninfa; quando o fizer – ai de nós!”
87
(BARRETO, 2006, p. 416). O comentário maldoso anuncia algo ainda obscuro
naquela altura do romance. O deputado Numa era medíocre em sua atividade
política, salvo quando proferia algum discurso, lido na tribuna. Nas tramas da
narrativa descobrimos que, na verdade, quem escrevia os discursos de Numa era
sua esposa, dona Edgarda – “a Ninfa”. Ao menos era a convicção do marido e
passada ao leitor ao longo do texto. Dona Edgarda seria então, grande conhecedora
de política, exceção ao papel apagado da mulher na vida política do país.
Representaria o poder da mulher de minar, gradativamente, as forças que a
mantinha alienada quanto à política e à vida pública em geral. Ledo engano, ao
menos no campo político, que será removido no último parágrafo da narrativa.
Pensou em ir ver a mulher; em ir agradecê-la com um abraço o trabalho que estava
tendo por ele. Calçou as chinelas e dirigiu-se vagarosamente, pé ante pé, até o
aposento onde ela estava. Seria uma surpresa. As lâmpadas dos corredores não
tinham sido apagadas. Foi. Ao aproximar-se, ouviu um cicio, vozes abafadas... Que
seria? A porta estava fechada. Abaixou-se e olhou pelo buraco da fechadura.
Ergueu-se imediatamente... Seria verdade? Olhou de novo. Quem era? Era o
primo... Eles se beijavam, deixando de beijar, escreviam. As folhas de papel eram
escritas por ele e passadas logo a limpo pela mulher. Então era ele? Não era ela?
Que devia fazer? Que descoberta? Que devia fazer? A carreira... o prestígio...
senador... presidente... Ora bolas! E Numa voltou, vagarosamente, pé ante pé, para
o leito, onde sempre dormiu tranquilamente. (BARRETO, 2006, p. 554)
Ressalta-se a ironia na descrição de toda situação: inicia-se com ele indo
“agradecer” a mulher pelo “trabalho” que ele lhe dava. Os termos destacados
mostram a ingenuidade de Numa: era o marido traído e ainda iria agradecer, e o
trabalho que não era da esposa, e sim do outro. A “surpresa” deveria ser para ela,
mas quem foi surpreendido foi ele. Depois da revelação, o personagem sai do local
da cena da mesma maneira como entrou “pé ante pé”. Se no início era para não
despertá-la, agora era para não incomodá-los. As duas descobertas – o adultério e a
88
verdadeira autoria dos discursos – esperava-se que abalassem o deputado.
Nenhuma uma coisa nem outra. Sua situação social como carreira, prestígio,
senador, e quem sabe um futuro “presidente”, o fizera resignar-se. Aceitou tudo de
bom tom. Embora a personagem dona Edgarda já apresente uma ruptura ante os
costumes da época – o adultério feminino – o desmascaramento do papel intelectual
de dona Edgarda frustrou a participação feminina nas ideias políticas.
Por sua vez, Monteiro Lobato deixou-nos caricaturas puras de conformismo
social. Exploraremos um excerto do conto “Cabelos compridos” na figura da
personagem Das Dores, já caracterizada nas frases iniciais do conto:
– Coitada da Das Dores, tão boazinha...
Das Dores só faz o que as outras fazem e porque as outras o fazem. Vai à igreja
aos domingos de livrinho na mão, ouve a missa, ouve a prédica, reza. Nunca falhou
um dia. Se lhe perguntarem o porquê daqueles atos, responderá, muito admirada
da pergunta:
– Mas se todas vão!
O grande argumento de Das Dores é esse: as outras. Ouve o sermão do padre e
chora nos lances trágicos, não porque compreenda algo daquela retórica, nem
porque sinta vontade de chorar – mas porque as outras choram, (LOBATO, 2007b,
p. 72)
Diferentemente da personagem Olga, de Lima Barreto, a personagem Das
Dores lobatiana não possui o dom da reflexão filosófica. Suas atitudes são meras
cópias dos comportamentos das outras mulheres de seu meio. Age como um
carneiro em seu bando. As perguntas sobre a razão de seus atos causam-lhe
espanto.
O emprego do discurso direto na primeira frase do conto, sem a menor
menção do sujeito, é prática comum de Lobato. Essa tática lobatiana sugere o
sujeito como sendo uma voz do senso comum, de opinião geral, de unanimidade.
89
Nesse discurso anunciam-se as características da personagem: coitada e
“boazinha...”. O primeiro adjetivo nos passa uma ideia de passividade e vitimização.
O segundo traz o sentido de um ser incapaz de fazer o mal, que o diminutivo e as
reticências reforçam. Na sequência da narrativa o emprego do “só” deixa claro que
Das Dores não tem iniciativa própria, e quando toma atitude, o faz por cópia. Nem
mesmo o sermão católico foge às críticas – de maneira velada – aos costumes das
carolas. O que elas fazem, conforme a descrição dos rituais: “Vai à igreja aos
domingos de livrinho na mão, ouve a missa, ouve a prédica, reza.” e “choram”,
fazem sem entendimento, apenas por um único motivo: os costumes ditados pela
sociedade. Essa caricatura não é exclusividade dessa personagem, é apenas
representação de um comportamento comum à época: o conformismo.
2.3.3 Um caso de inconformismo
O indivíduo pode reagir de maneiras diferentes à pressão da sociedade.
Uma delas seria superá-la e impor-se sobre sua força, saída das mais raras em
nossa sociedade, em especial na República Velha, quando o indivíduo dispunha de
poucas armas. Outra seria, e mais comum, dobrar-se a ela, render-se e deixar que
ela o guie. E uma terceira porta, mais estreita, mas à qual alguns recorrem e quando
o fazem causa grande comoção social onde acontece: abandoná-la de vez.
Émile Durkheim (2000), no final do século XIX, dedicou uma monografia a
essa última. Seus estudos analisaram as possíveis causas das taxas de suicídio na
sociedade. Não cabe reproduzir esses estudos, mas vamos direto à conclusão da
obra, e vejamos o que nos serve como instrumento para nosso trabalho:
90
De todos esses fatos resulta que a taxa social de suicídios só se explica
sociologicamente. É a constituição moral da sociedade que estabelece, a cada
instante, o contingente de mortes voluntárias. Existe portanto, para cada povo, uma
força coletiva, de energia determinada, que leva os homens a se matar. Os
movimentos que o paciente realiza e que, à primeira vista, parecem exprimir
apenas seu temperamento pessoal são na verdade a consequência e o
prolongamento de um estado social que eles manifestam exteriormente. [...]
São essas tendências da coletividade que, penetrando nos indivíduos, os
determinam a se matar. (DURKHEIM, 2000, p. 384)
Durkheim, nesse trabalho intitulado O suicídio, após abordar várias
possibilidades, e afastar muitas que o senso comum acusa, aponta que se
desejarmos procurar as causas mais perniciosas pelas taxas de suicídio, devemos
procurá-las no coletivo, no social, e não no indivíduo.
No conto “Um homem honesto”, Monteiro Lobato expõe um exemplo
clássico de suicídio, cuja análise leva-nos a concordar com a teoria durkheimiana.
Como de hábito, Lobato inicia o conto com o mesmo recurso utilizado no
conto “Cabelos compridos”: uso do discurso direto não tendo um sujeito específico –
“todos” – como uma voz do senso comum “– Excelente criatura! Dali não vem mal ao
mundo. E honesto, ah!, honesto como não existe outro – era o que todos diziam do
João Pereira” (LOBATO, 2008b, p. 69).
Na sequência, apresenta os ofícios desempenhados pelo personagem e os
motivos que o fizeram trocar de emprego:
João Pereira trabalhava em repartição pública. Estivera a princípio num tabelionato
e depois no comércio como caixeiro do empório Ao Imperador dos Gêneros. Deixou
o empório por discordância com a técnica comercial do imperante, que toda se
resumia no velhíssimo lema: gato por lebre. E deixou o cartório por não conseguir
aumentar com extras o lucro legal do honradíssimo tabelião. Atinha-se ao
regimento de custas, o ingênuo, como se aquilo fora a tábua da lei de Moisés, coisa
sagrada. (LOBATO, 2008b, p. 69)
91
Por opção trocou de emprego duas vezes, o que demonstra o conflito que
travava com os costumes, não aceitando a situação vigente. Notemos o emprego
dos adjetivos no grau superlativo “velhíssimo” e “honradíssimo”. O primeiro sugere
que o costume comercial não é recente, é algo antigo que já está enraizado na
nossa cultura. O segundo traz o eruditismo, como uma atitude nobre, o que
comparado com a prática à qual se refere, resulta em uma ironia jocosa. Ainda
nesse trecho temos o segundo adjetivo atribuído ao João Pereira: “ingênuo”, alcunha
que lhe impuseram por ter a lei como sagrada e a guiar sua conduta. Esse adjetivo
somado ao anterior – “honesto” – vai construindo a personalidade do personagem.
Na repartição vegetava já de dez anos sem conseguir nunca mover passo à frente.
Ninguém se empenhava por ele, e ele, por honestidade, não orgulho, era incapaz
de recorrer aos expedientes com tanta eficácia empregados pelos colegas na luta
pela promoção. (LOBATO, 2008b, p. 69)
Nesse trecho, é nítido que o comportamento de João Pereira difere dos
demais da repartição, o que lhe rendia uma pena. Destaca-se o termo “Ninguém”
dessa passagem em contraste com “todos” do início do conto. Embora todos o
tinham por honesto, ninguém era capaz de fazer algo – “se empenhava” – por ele.
Guardemos esse contraste para retomá-lo em outro momento mais oportuno da
análise.
Surge, pela primeira vez, a voz de João Pereira “– Quero subir por
merecimento, legalmente, ho-nes-ta-men-te! – costumava dizer, provocando risinhos
piedosos nos lábios dos que “sabem o que é a vida” (LOBATO, 2008b, p. 69). Seu
discurso soa como autodefesa, a fim de justificar sua estagnada carreira na
repartição. Esse discurso permite concluirmos o seguinte: o personagem tinha
ciência de sua situação e das formas pelas quais pretendia alcançar êxito –
reparemos a referência à legalidade e as sílabas separadas do advérbio sugerindo
92
como se estivessem sendo gritadas por ele. Ou seja, o personagem assume seu
comportamento diferente e anuncia que não pretende mudar. Os termos escolhidos
para se referirem aos demais na repartição – “os que sabem o que é a vida” –
obviamente excluem João Pereira desse conhecimento. A recepção do discurso foi
com “risinhos piedosos”: o substantivo no diminutivo e o adjetivo selecionado
transmitem a ideia de que riam procurando disfarçar a fim de não colocá-lo em
situação constrangedora, por mera compaixão ao ingênuo.
Na sequência, temos uma descrição da vida tranquila, digna e pautada na
moral, da família de João Pereira:
João Pereira casara cedo, por amor – não compreendia outra forma de casamento
– e já tinha duas filhas mocetonas. Como fossem sobremaneira curtos os seus
vencimentos, a pequena família remediava-se com a renda complementar dos
trabalhos caseiros. Dona Maricota fazia doces; as meninas faziam crochê – e lá
empurravam a pulso o carrinho da vida.
Viviam felizes. Felizes, sim! Nenhuma ambição os atormentava e o ser feliz reside
menos na riqueza do que nessa discreta conformidade dos humildes.
– Haja saúde que vai tudo muito bem – era o moto de Pereira e dos seus.
(LOBATO, 2008b, p. 69)
Observa-se a intensidade na afirmação da felicidade familiar. À primeira
frase “Viviam felizes”, o autor, imediatamente, enfatiza “Felizes, sim!”. Essa
construção é um diálogo que o narrador pretende travar com o leitor. Como se a
primeira afirmativa houvesse provocado um espanto no leitor: como poderiam ser
felizes com essa vida simplória? E após a reafirmação enfática, o autor traz uma
reflexão filosófica sobre a felicidade. Comparemos essa frase lobatiana “discreta
conformidade dos humildes” com a frase de Lima Barreto “felicidade vulgar” e
notaremos, em ambas, uma crítica, de forma irônica, à aceitação pelas camadas
mais simples da população, dos descalabros sociais. O conformismo, reapresentado
93
no discurso direto no final do trecho, aparece como uma voz do senso comum, como
dito popular adotado na íntegra pela família Pereira.
A seguir, a narrativa apresenta o primeiro ponto de inflexão do conto:
Mas veio um telegrama...
Nos lares humildes é acontecimento de monta, anunciador certo de desgraça.
Quando o estafeta bate na porta e entrega o papelucho verde, os corações
tumultuam violentos.
– Que será meu Deus?
Não anunciava desgraça aquele. (LOBATO, 2008b, p. 70)
No período inicial do trecho, a conjunção adversativa e as reticências no final
criam a expectativa para o desenrolar da narrativa. Após a referência sobre os
costumes dos humildes, o autor antecipa e tranquiliza o leitor anunciando que
contrariando a crença popular, ao menos aquele telegrama, não trazia desgraça.
Ressalta-se que essa tática usada pelo narrador ao criar uma expectativa de
desgraça e em seguida a desfaz, não foi sem intenção. Mais adiante, com o
desenvolvimento da análise, isso se tornará claro.
O telegrama nada mais era que um convite para João Pereira ser padrinho
de casamento de uma sobrinha que morava no interior. João aceita, mas prudente
que era “E muito naturalmente foi de segunda classe, porque nunca viajara de
primeira, nem podia” (LOBATO, 2008b, p. 70). E tudo transcorreu normalmente no
casório. No embarque de retorno, os parentes, anfitriões de João Pereira
protestaram:
[...] protestaram indignados ao vê-lo meter a maleta num carro de segunda.
– Não admitimos!... Tem que ir de primeira.
– Mas se já comprei o bilhete de volta...
– É o de menos – contraveio o tio. – Mais vale um gosto do que quatro vinténs.
Pago a diferença. Tinha graça!...
94
E comprou-lhe bilhete de primeira, sacudindo a cabeça:
– Este João... (LOBATO, 2008b, p. 70)
Note-se o tom imperativo dos parentes nas expressões “Não admitimos!...”
“Tinha graça!...” “contraveio o tio” e por último uma de piedade “- Este João...”
(LOBATO, 2008b, p. 70). Assim, João Pereira embarcou de volta para casa em uma
casta diferente da qual estava acostumado. A passagem que segue o trata não
como João Pereira, mas com seu predicativo incorporado ao nome próprio.
João Honesto, assim forçado, pela primeira vez na vida embarcou em vagão de
luxo, e o conforto do Pullman, mal o trem partiu, levou-o a meditar sobre as
desigualdades humanas. A conclusão foi dolorosa. Verificou que é a pobreza o
maior de todos os crimes, ou, pelo menos, o mais severa e implacavelmente
punido. (LOBATO, 2008b, p. 70)
Ressalta-se expressão “foi forçado” mostrando o ato não-voluntário. A
viagem em outra classe o fez filosofar sobre as classes sociais e verificar sobre qual
a pena tem maior intensão e extensão. No desembarque toma contato com o pacote
que iria mudar sua vida – o segundo ponto de inflexão do conto.
Era dinheiro, muito dinheiro, um pacotão de dinheiro!
Pereira sentiu um tremelique de alma e corou. Se o vissem naquele momento,
sozinho no carro, com o pacote a queimar-lhe as mãos... “Pega o larápio!”
Esqueceu do jornal lido e partiu incontinenti à procura do chefe da estação.”
(LOBATO, 2008b, p. 72)
A gradação da primeira frase enfatiza que não era uma questão de uns
trocados, era um montante contundente. Isso repercutiu nele como um choque. Não
era o “pacote” que lhe queimava as mãos, pois não estava quente. O que ardia era a
reflexão imediata que condenava a apropriação do pacote. Uma voz, embora
interna, repercutia o que ele havia introjetado em sua formação moral: “Pega o
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larápio!”, ou seja, ficar em posse daquele objeto seria um ato imoral. Todo processo
educativo pelo qual passamos não é fruto do indivíduo, mas da cultura do meio em
que ele vive, portanto oriunda do social. Imediatamente, o personagem age de
acordo com a moral incorporada.
O chefe da estação trata-o com “displicência” até ouvir a palavra mágica
“pacote de dinheiro”. Ao ver o pacote o chefe “Pasmou,” e encarou João Pereira
como “o homem sobrenatural”, para ele “Dinheiro perdido é dinheiro sumido.” Essa
expressão enfatiza o costume difundido na população, que vai de encontro com a
moral de João Pereira, o que causou espanto em todos naquela repartição.
Passado o choque provocado, João Pereira saiu da estação orgulhoso de
sua atitude. Logo que chegou em casa contou à mulher, sem citar o “quantum
achado.” Imediatamente a esposa o apoiou, até que questionou: “Mas quanto havia
no pacote?”
Quando, porém, soube que a soma atingia a vertigem de 360 contos, sofreu o
maior abalo de sua existência. Esteve uns momentos estarrecida, com as ideias
fora do lugar. Depois, voltando a si de salto, avançou para o marido num acesso de
cólera histérica, agarrou-o pelo colarinho, sacudiu-o nervosamente. [...] – Idiota!
Idiota!...Idioooota... (LOBATO, 2008b, p. 73)
João Pereira não compreendeu por que o comportamento da mulher mudou
tanto simplesmente porque “variava a quantia” e tentou convencê-la de sua boa
atitude recorrendo à moral. Atitude que foi de pronto rechaçado pela mulher e
também pelas filhas “furiosíssimas contra a tal honestidade que lhes roubava uma
fortuna” (LOBATO, 2008b, p. 74). O pai vive uma situação de conflito entre a moral,
que lhe fora inculcada, e a oportunidade de consumo que daria às meninas a “vida
de regalos que teriam se o pai possuísse melhor cabeça. [...] – Coitado! Até da dó!”
(p. 74). Na visão das filhas ele passa de idiota a um ser digno de piedade, e diante
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dessas desavenças familiares, ele chega a se questionar “Teria, acaso, errado?” (p.
74).
O pior ainda estava por vir. Os jornais noticiaram seu ato: “gesto raro,
nobilíssimos, denunciador das finas qualidades morais que alicerçam o caráter do
nosso povo” (LOBATO, 20008b, p. 75). Primeiro que se o “gesto” é “raro” não é
popular; segundo o emprego do adjetivo em grau superlativo absoluto sintético
“nobilíssimo”; e ainda o chama de “denunciador das finas qualidades morais do
nosso povo”, ou seja, há uma ironia alocada no discurso de jornal.
A mulher, para debochar do marido diante do jornal, convoca a filha “ – Leva,
Candoca, leva este elogio ao armazém e vê se nos compra com ele meio quilo de
marmelada” (LOBATO, 2008b, p. 75). A repetição do verbo levar, com a interposição
do vocativo, enfatiza o deboche, finalizando que toda aquela moral de João Pereira
é insuficiente para comprar sequer um pedaço de “marmelada”.
Não foi só em casa que João Pereira passou a ser debochado. No trabalho
virou motivo de zombaria deixando-o de “cara amarrada e coração pungido.” Nem
no leito do casal o infortúnio o abandonava. Lembremos que no início do conto há
firmes frases sobre a vida feliz que vivia a família, como se anunciasse ao leitor a
mudança que estaria por vir. Observemos o diálogo entre ele e a esposa no leito:
[...] – Mas, olhe, João, você nunca pensou bem. Você não tem cabeça. É por isso
que vivemos toda a vida esta vidinha miserável, comendo o pão que o diabo
amassou...
– “Vidinha miserável!”... Sempre fomos felizes, nunca percebemos que éramos
pobres...
– Sim, mas percebo-a a gora, porque só agora nos surgiu a ocasião de enriquecer.
Foi uma sorte grande que Deus nos mandou. (LOBATO, 2008b, p. 76)
E ela continua, inclusive a citar o vizinho, um gatuno.
97
– Mas é um passador de nota falsa, mulher!
– Passador de nota falsa, nada! Tem boa cabeça, é o que é. Não vai na onda. Não
é um trouxa como você. (LOBATO, 2008b, p. 77)
No trabalho, o deboche e as ironias com sua pessoa prosseguiam sem fim:
“É um homem honeeeesto.” (LOBATO, 2008b, p. 77). Diante disso, João “entrou a
cair socialmente” (p. 77). Em casa, dona Maricota que sempre fora feliz e cuidadora,
agora vivia “num desânimo, lambona, descuidada dos afazeres domésticos, sempre
aos suspiros” (p. 78). Situação que contaminou João que “enojou-se da vida e
perdeu o ânimo de vivê-la até o fim” (p. 78).
Para piorar as coisas, o aluguel subiu muito além de suas condições. João
reclamava da exploração à mulher, que, ao invés de apoiá-lo acirrava ainda mais a
revolta.
– Pois é. E quando uns diabos destes perdem pacotes – porque você bem sabe
que só eles possuem pacotes para perder –, inda aparece quem lhos restitua...
Você está vendo agora como eles formam os tais pacotes. Arrancando o pão da
boca duns miseráveis como nós – dos honestos... (LOBATO, 2008b, p. 78)
O destaque em itálico, feito pelo narrador, enfatiza a ironia sobre os
honestos, talvez a expressão que dona Maricota queria usar seria: idiotas. João não
se contendo mais, pede a mulher:
– Pelo amor de Deus, Maricota, não me fale mais assim que sou capaz duma
loucura!...
– Está arrependido? Está convencido de que foi tolo? Pois quando encontrar outro
pacote faça o que todos fariam: meta-o no bolso. Quem rouba a ladrão tem cem
anos de perdão. (LOBATO, 2008b, p. 78)
Aqui dona Maricota traz à tona o costume habitual – realçando a ironia vista
acima sobre o “gesto nobilíssimo, denunciador das finas qualidades morais que
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alicerçam o caráter do nosso povo”. Eis o caráter do nosso povo, explicitado agora
pela raiva de dona Maricota. Descontrolada a fúria de dona Maricota, mesmo
titubeando se deveria ou não, ainda acrescentou:
– E você não sabe de uma coisa ...
– Que é?
– Disse-me a Ligiazinha que você anda por aí de apelido às costas...
– Quê?
– João trouxa! Ninguém diz mais Pereira...” (LOBATO, 2008b, p. 79)
Essa última frase de dona Maricota faz-nos voltar às palavras iniciais do
conto “E honesto, ah!, honesto como não existe outro – era o que todos diziam do
João Pereira.” Observa-se o contraponto entre “todos diziam” do início, com
“Ninguém mais diz...” agora do final. A estrutura da narrativa foi criada a fim de
ressaltar o antes e o depois do “pacote”, lembremos o “eram felizes, sim felizes” e a
situação atual da família. Ainda sobre a estrutura, vale a pena repetir a passagem
em que o narrador comenta sobre a chegada do telegrama convidando João para o
casamento “Nos lares humildes telegrama é acontecimento de monta, anunciador
certo de desgraça.” Mas qual desgraça? Na sequência, àquela altura, o narrador
ameniza “Não anunciava desgraça aquele.” Não àquele instante! Mas o autor já
preparava a situação para o desfecho do conto. Tratando João Pereira por mártir, o
narrador finaliza:
– Basta! – exclamou num tom de desvario que assustou a mulher, e largando de
chofre a xícara retirou-se para o quarto precipitadamente. [...]
Reboara no quarto um tiro – o tiro que matou o último homem honesto... (LOBATO,
2008b, p. 79)
O conto, desde o início, mostra o confronto da moral de João Pereira com a
realidade circundante. Teve de sair do trabalho no comércio, e depois também no
99
cartório, por resistir às maneiras lucrativas dos negociantes. Na repartição, não se
permitia usar dos mesmos expedientes de seus companheiros na concorrência, o
que lhe sobrava à preterição nas promoções. Seu casamento fora por amor, não por
interesse – muito comum segundo os costumes à época. Todas essas situações
foram narradas para firmar a constituição do caráter de João Pereira, sempre
pautado na moral e na honestidade; duas características que serão contestadas, de
forma irônica e debochada, por todos a seu redor.
Se procurarmos a causa do suicídio de João Pereira encontraremos a
pressão social. João agiu conforme sua moral e tentou sustentar-se baseado nela.
Mas, sua honestidade esbarrou em outra moral: a dos costumes. Se em várias
situações, o ajustamento necessário é o dobrar-se à realidade, esse personagem
não cedeu. Manteve firme sua posição e preferiu retirar-se a conformar-se aos
costumes.
Retornemos ao discurso sociológico de Durkheim para fecharmos o capítulo:
Quanto aos acontecimentos privados que geralmente são considerados como as
causas imediatas do suicídio, sua única ação é a que lhes atribuem as disposições
morais da vítima, eco do estado moral da sociedade. (DURKHEIM, 2000, p. 384)
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“O Brasil é uma Jecatatuásia de
oito milhões de quilômetros quadrados.”
(Monteiro Lobato)
O tema deste trabalho foi a representação literária das práticas culturais que
caracterizaram a cultura brasileira na República Velha. O objetivo foi demonstrar
como o tema permeou as narrativas do corpus e o modo como foi retratado.
Nas primeiras décadas do século XX, foi restrita a publicação de obras
literárias que atendessem ao tema, exceções às obras de Euclides da Cunha, de
Lima Barreto e de Monteiro Lobato. Optou-se pelos dois últimos por motivos de
identificação pessoal e pela quantidade de assuntos comuns em suas obras. Por
meio de estilos irônicos e satíricos, acrescentado de humores pessimistas, Lima e
Lobato esmiuçaram os vícios perniciosos da insipiente sociedade republicana
brasileira. Contudo, foi necessário que, ao escreverem o texto, disfarçassem as
críticas, daí empregarem com maestria a ironia – tropos que analisamos segundo o
trabalho de Linda Hutcheon.
A expressão “práticas culturais” que aparece no tema, retirei-a da Teoria
literária de Jonathan Culler, e quando a associei ao conceito de fato social de Émile
Durkheim, não foi como sinônimos, mas apenas para um explicação teórica
possível.
Se desejarmos compreender certas práticas culturais vigentes no momento
atual da nossa sociedade, não será possível se olharmos apenas como aparecem
hoje. Mas, devemos analisá-las em momentos passados, em seus primórdios, onde
ainda não ganharam a complexidade que a modernidade lhes deu, de modo a
encobrir suas raízes com camadas de terra.
101
Halbwachs, em A memória coletiva (2012), aponta a relevância para a
sociedade contemporânea de seus retratos em épocas anteriores:
No final, tirando-se gravuras e livros, o passado deixou na sociedade de hoje
muitos vestígios, às vezes visíveis, e que também percebemos na expressão de
imagens, no aspecto dos lugares e até nos modos de pensar e de sentir,
inconscientemente conservados e reproduzidos por tais pessoas e em tais
ambientes. Em geral nem prestamos atenção nisso... mas basta que a atenção se
volte desse lado para notarmos que os costumes modernos repousam sobre
camadas antigas que afloram em mais de um lugar. (HALBWACHS, 2012, p. 87)
Assim, para retratar algumas práticas culturais, recorri aos primórdios da
sociedade republicana brasileira, a República Velha. E foi com este intento que
selecionei Lima Barreto e Monteiro Lobato como corpus, autores reconhecidos por
teóricos e historiadores literários como intérpretes por excelência desse período de
nossa sociedade. De Lima Barreto explorou-se os romances Recordações do
escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma, Numa e a ninfa, Vida e
morte de M. J. Gonzaga de Sá, Clara dos anjos, Os bruzundangas; a coletânea de
contos Histórias e sonhos, e as narrativas memorialísticas Diário íntimo e O
cemitério dos vivos. De Lobato, a coletânea de contos Urupês, Cidades mortas,
Negrinha, O macaco que se fez homem; e o romance O presidente negro. Os
autores seletos formam um conjunto coerente não só pela similaridade de seus
pensamentos, como também pelo caráter denunciador dos costumes da cultura
brasileira da época.
Das análises feitas das obras de Lima Barreto e Monteiro Lobato, conclui-se
que seus escritos confirmam as ideias acima de Halbwachs. Nos personagens-tipo
apresentados por Lima e Lobato, encontramos as atitudes que estão na base dos
102
temas selecionados para análise – funcionalismo, doutorismo e conformismo –
que ainda sobrevivem e regem muitos dos costumes atuais da cultura brasileira.
Utilizando o método das passagens paralelas, analisaram-se para cada tema
textos de Lima e Lobato, para pôr à prova não apenas a coerência de assuntos, mas
principalmente, o pensamento dos autores.
Constatou-se a importância do entendimento sobre ironia e sátira para a
interpretação das narrativas. A desatenção a esses instrumentos pode levar o leitor
a interpretações equivocadas, que colocam o autor em situação difícil perante a
opinião pública, principalmente nos casos de impossibilidade de qualquer
esclarecimento de sua parte.
Precisar a intenção do autor em literatura é algo delicado, devido à falta de
consenso entre os teóricos da literatura sobre esse assunto. Mas pela análise
realizada nos capítulos precedentes, observou-se a presença marcante da denúncia
crítica das práticas culturais que se enraizaram na nossa cultura, muitas delas
presentes até os nossos dias. Intenção encontrada em suas narrativas ficcionais e
também declarada pelos próprios em seus escritos não ficcionais.
É difícil conter o riso ao ler as narrativas lobatianas ou as limabarretianas.
Em suas obras desfilam a indignação e o ceticismo diante da realidade social que os
circunda, sem, no entanto, desistir de fazer de seus escritos verdadeiros panfletos,
que investem contra as práticas sociais nocivas à sociedade que pretende ser
republicana.
Marco Antonio de Moraes, no artigo “Cartas escolhidas: (auto)retrato
póstumo” cita que Lobato “Em 1948, pôde afirmar que, a despeito de tanta
imbecilidade, tanta maldade, tanta falta de bom-senso e sobretudo de justiça” no
país, prestara o “serviço social, que é como o serviço militar dos moços”,
103
apregoando o seu “não-safadismo, não-conformismo” (MORAES, 2014, p. 433).
Embora a citação refere-se a Lobato, pode muito bem ser estendida a Lima Barreto.
Os personagens literários que vimos desfilar ao longo deste trabalho, são
representantes de tipos reais, cujos comportamentos e ideias não podem ser
tomados como gerados em si, mas por fatores externos a eles, por circunstâncias
locais que os tornam quem são. Finalizo a reflexão acima, com a contribuição de
Erving Goffman:
Ao analisar o “eu”, então, somos arrastados para longe de seu possuidor, da
pessoa que lucrará ou perderá mais em tê-lo, pois ele e seu corpo simplesmente
fornecem o cabide no qual algo de uma construção colaborativa será pendurado
por algum tempo. E os meios para produzir e manter os “eus” não residem no
cabide. Na verdade, frequentemente estes meios estão aferrolhados nos
estabelecimentos sociais. (GOFFMAN, 2007, p. 231)
104
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