Diferenças entre ‘termo profundo’ e ‘termo de superfície’ e os
mecanismos da variação nas linguagens de especialidade
Enilde Faulstich
Universidade de Brasília - UnB1
1 - Introdução
Neste estudo, pretendo comprovar que a variação lexical em terminologia depende de
como um „termo profundo‟ passa a „termo de superfície‟, no discurso em que aparece,
uma vez que um termo pertence a um determinado domínio do saber.
De forma abrangente, o conceito de pertencer está diretamente relacionado ao de
pertencimento, e este, por sua vez, está diretamente ligado ao de nacionalismo. Em
breves palavras, isso quer dizer que quem não tinha um lugar de „pertencimento‟
deveria criar um. E as nações, com suas línguas, revelaram que esse novo local de
posses era um lugar de pertencimento.
Por analogia, digo que o conceito de pertencimento de um termo a uma área do
conhecimento está condicionado pelo significado expresso na forma e no conteúdo
dessa unidade lexical no discurso de especialidade em que se encontra. Esse discurso,
que inclui o contexto e o cotexto, é o lugar de posse do termo. É o lugar de
pertencimento.
No habitat natural, quer dizer, na textualidade, um termo quanto mais cresce à direita,
mais vulnerável se torna para sofrer derivações e, por consequência, para apresentar
anáfora.
Assim, no exemplo da área da engenharia elétrica:
(1) “alimentação de energia elétrica da carga elétrica por um transformador
independente” – a variável que provoca a derivação é a redundância.
2 - A redundância como variável
A expressão redundante repete um conceito já emitido, por meio de palavras diferentes,
o que nos dá a impressão de estar diante de nova informação, acrescentada à direita do
termo. Porém, a redundância, ao permanecer na estrutura do termo, torna-o obscuro,
embora seja um bom mecanismo de reforço ao espraiamento do conteúdo já presente no
termo. O processo atuante é, no caso, a anáfora, que repete a referência já existente em
algum lugar do termo. E, como sobram informações, a língua se reestrutura e provoca o
surgimento de termo(s) paralelo(s) com a mesma função semântica, resultante de
variáveis, que atuam dentro de determinada classe de termos. O resultado é o
apagamento da informação repetida por meio de diversos recursos, como a seguir.
Departamento de Linguística Português e Línguas Clássicas – LIP. Cento de Estudos
Lexicais e Terminológicos – Centro Lexterm.
1
2.1. A elisão
A elisão tem papel modificador de regras estruturais que atuam na linearidade da
estrutura sintagmática do termo de superfície, porque elimina a redundância. Assim:
(2) “alimentação (0)(0)(0) da carga elétrica por um transformador independente”.
Em comparação com (1), a elisão da estrutura de energia elétrica está sustentada pelo
conceito subsequente do predicado da carga elétrica, e em
(3) “alimentação (0) (0) (0) da carga (0) por um transformador independente”, os
apagamentos por elipse geram o termo de superfície “alimentação da carga por um
transformador independente”, em que o conceito se mantém na composição
sintagmática do termo. Assim, estruturas do termo profundo são eliminadas em favor de
um termo de superfície.
2.2. A zeugma
A zeugma é uma forma de elipse em que a falta lexical é uma estrutura vazia
subsequente porque o termo ausente já se encontra presente na estrutura anterior.
CUNHA E CINTRA (1985, p. 606) incluem, como subclasse de elipse, a zeugma,
“termo que, participante de dois ou mais enunciados, aparece expresso apenas em um
deles”, ou pode estar subjacente e, por isso, subentendido.” Assim:
(4) a) alimentação da carga por um transformador independente
b) alimentação (0)(0)(0) da carga (0) por um transformador independente
c) alimentação [de] [energia] [elétrica] da carga [elétrica] por um transformador
independente
Em (4), os vazios ocorrem sempre na posição de um predicado, que é preenchido pelo
item lexical de energia elétrica ou somente elétrica. A falta lexical se preenche por
zeugma, uma vez que o subentendido é transparente e, por isso, facilmente recuperado
na situação ou no contexto especializado da Engenharia Elétrica2.
2.3. A categoria vazia
A noção de categoria vazia está diretamente ligada à do imperceptível linguístico, razão
pela qual, em muitos estudos do passado, essa categoria era interpretada como
subentendido ou ausência a suprir. Por ser um fenômeno de natureza sintática, a
categoria vazia estabelece propriamente uma relação entre a linguagem e o vazio. Essa
concepção tem sido motivo de investigação, no sentido de saber-se até que ponto esse
vazio é uma lacuna - a intuição de uma ausência -, ou uma propriedade intrínseca da
estrutura sintática3. Assim:
2
Ver Faulstich, 2010
3
Ver Faulstich, 2010
(5)4 a) bens de consumo duráveis
b) bens (0) duráveis
c) bens de consumo(0)
3. Termo profundo e termo de superfície
Atribuo ao dado (6), abaixo, o papel de termo profundo e aos dados (7) e (8) o de
termos de superfície cuja derivação se dá como a seguir:
(6) “alimentação de energia elétrica da carga elétrica por um transformador
independente” – termo profundo;
(7) “alimentação (0)(0)(0) da carga elétrica por um transformador independente”
– termo de superfície.
(8) “alimentação (0)(0)(0) da carga (0) por um transformador independente” –
termo de superfície.
Em decorrência das derivações, a nova predicação na superfície, no nível discursivo,
advém dos apagamentos suficientes na proposição terminológica inicial, como resultado
da desnecessidade de realização fonética das expressões apagadas. Porém, como a
realização conceitual deve permanecer, as operações cotextuais só cessam quando o
termo elipsado possibilita que, na superfície, o conceito da origem, do termo profundo,
seja mantido.
A interpretação possível para (7) é ou a „alimentação da carga elétrica‟ se dá por um
„transformador independente‟, daí o termo de superfície alimentação da carga elétrica
por um transformador independente, ou a „carga elétrica‟ (é alimentada) por um
„transformador independente‟, daí o surgimento de um não-termo de superfície carga
elétrica de alimentação por um transformador independente.
3.1. Termo profundo
Neste estudo, lanço uma nova denominação aos termos sem variação e aos termos que
passam pelo processo da variação. Aos termos que não sofrem variação, atribuo a
denominação de termo profundo.
Assim, um termo profundo é a representação de um termo composto, ou unidade
terminológica complexa, UTC, que mantém todas as entidades léxicas por solidariedade
gramatical e referencial. A solidariedade entre os itens lexicais, no entanto, pode ser
modificada por regras morfossintáticas para derivar um termo de mesma natureza
semântica, a que denomino de termo de superfície. Na ordem linear de um termo
profundo, os apagamentos não podem modificar o conceito. Caso contrário, o termo
será „novo‟ e não uma „variante‟.
4
No Houaiss (2001): bens de consumo Rubrica: economia. Os que atendem diretamente à demanda a médio ou
longo prazo (p.ex., um automóvel, um eletrodoméstico); b. duráveis Rubrica: economia. Os que permanecem úteis
por muito tempo, abrangendo, portanto, os bens de consumo e os de capital.
3.2. Termo de superfície
Aos termos que sofrem variação, atribuo a denominação de termo de superfície. Então,
um termo de superfície é a representação linear de um termo composto, ou UTC, tal
como efetivamente se apresenta no discurso, após as derivações. As regras
morfossintáticas, que atuam na linearidade sintagmática do termo profundo, apagam
estruturas que não afetam o conceito. Se os apagamentos modificarem o conceito, o
termo é novo, porque passa a ter autonomia referencial no discurso em que aparece. Os
apagamentos são representados por (0), que simboliza uma „casa vazia‟.
4. A variação lexical na linearidade de uma UTC e os processos de variação
4.1. Casa vazia é igual a zero
A questão que discuto é: na linearidade de uma UTC, uma CASA VAZIA é elipse ou
categoria vazia?5. Argumento com 3 postulados.
Para o dado (1) “alimentação de energia elétrica da carga elétrica por um transformador
independente”, que é um termo profundo, apresento um postulado.
Postulado I: para haver ELIPSE:
a) o vazio deve ser reconhecido como uma falta lexical, própria de zeugma;
b) a propriedade de zeugma é suprimir alguma expressão e deixar, no lugar, a
estrutura vazia, em que o termo elipsado é recuperado na conjunção conceitual de, pelo
menos, duas estruturas.
Como nos dados:
UTC não-elipsada:
(c) alimentação de energia elétrica da carga elétrica por um transformador
independente
UTC com elipse:
(d) alimentação da carga de energia por um transformador independente
(e) alimentação da carga por um transformador independente. Este termo, que
apresenta falta lexical – zeugma -, é o termo de superfície, com as derivações como
aparecem nas descrições seguintes:
(9) alimentação (0) (0) (0) da carga elétrica por um transformador independente
(10) alimentação (0) (0) (0) da carga (0) por um transformador independente
(11) e (12) são termos de superfície, produzidos por zeugma ou elipse, a partir
do termo profundo (6).
5
Ver Faulstich, 2010
Postulado II: para haver CATEGORIA VAZIA:
1) o vazio (0) deve ser reconhecido como uma lacuna sintática;
2) a propriedade de uma lacuna sintática é supressão de uma estrutura em que de
dois elementos relacionados um é categoria vazia porque entra em relação de condição,
na mesma posição estrutural, em que, por definição, um exclui o outro.
Como nos dados:
Categoria preenchida:
(13) programa fractal com efeito de zoom
Categoria vazia:
(14) programa (0) com efeito de zoom
(15) programa com efeito de zoom. Este termo, que apresenta casa vazia, é o
termo de superfície, que passou pela derivação suficiente.
Postulado III: para haver CATEGORIA VAZIA + ELIPSE, ou o contrário: o vazio
(0) deve ser reconhecido como uma lacuna sintática e, no mesmo termo, um outro vazio
deve ser reconhecido como falta lexical, própria de zeugma.
Nos dados seguintes, algumas casas vazias correspondem à categoria vazia, e outras
resultam de elipse
(16) programa (0) com efeito de zoom
(17) programa (0) com efeito (0) zoom
(18) programa fractal (0) (0) (0) (0)
(19) programa (0) com (0) (0) zoom
(20) programa (0) (0) (0) de zoom
(21) programa (0) (0) (0) (0) zoom
Os resultados do postulado III são:
a) todos os dados, excetuando o (18), apresentam „fractal‟ na condição de categoria
vazia por causa a presença de „zoom‟, na estrutura do termo;
b) excetuando o dado (16), todos os outros apresentam elipses;
c) no conjunto de dados (16) a (21), todos são termos variantes, que devem entrar num
dicionário como remissões.
5 – Conclusões parciais
No conjunto da análise, os dados mostram que:
A - a elipse, porque pertence à gramática do discurso, alterna livremente com outra
entidade subentendida na extensão de uma UTC, já que é recuperável no léxico;
B - a categoria vazia, que pertence à gramática da frase, é condicionada e, por isso, não
alterna livremente, já que, por definição, exclui uma entidade similar na mesma posição
estrutural.
Esta análise, apresentada num artigo de 2010, serviu de ponto de partida para uma nova
investigação, acerca da variação em terminologia, que já está em curso e que apresento
aqui. Em síntese, e com o apoio das análises, concluo que a variação lexical resulta de
um o vazio (0) por zeugma ou por categoria vazia. Postulo que esse é o ponto de partida
para o surgimento de variante terminológica lexical6, porque o termo sofre
apagamento, mas o conceito desse termo não se altera e gera dicionário com registro
obrigatório de variantes lexicais.
Para incluir as novas palavra(s)-entrada(s) num dicionário, o terminógrafo precisa
controlar todas as possibilidades de entrada por remissão. Para isso apresento algumas
propostas ilustrativas. Nas ilustrações, n.f. ou n.m. corresponde à categoria e ao gênero;
[def.] significa definição e V. indica veja.
Variantes terminológicas lexicais e ilustrações de como remeter estas variantes para
compor entradas de dicionário:
[Ilustração 1]:
alimentação da carga elétrica por um transformador independente, n. f. [def.] V. alimentação da
carga por um transformador independente
nova entrada: alimentação da carga por um transformador independente, n.f. V. alimentação da carga
elétrica por um transformador independente
Ilustração 2]:
programa fractal com efeito de zoom, n.f. [def.] V. programa com efeito de zoom; programa com efeito
zoom; programa fractal; programa com zoom; programa de zoom; programa zoom
nova entrada:
programa com efeito de zoom, n.f. V. programa fractal com efeito de zoom; programa
com efeito zoom; programa fractal; programa com zoom; programa de zoom; programa zoom
nova entrada: programa com efeito zoom, n.f. V. programa fractal com efeito de zoom; programa com
efeito de zoom; programa fractal; programa com zoom; programa de zoom; programa zoom
nova entrada:
programa fractal, n.f. V. programa fractal com efeito de zoom; programa com efeito
de zoom; programa com efeito zoom; programa com zoom; programa de zoom; programa zoom
nova entrada: programa com zoom, n.f. V. programa fractal com efeito de zoom; programa com efeito
de zoom; programa com efeito zoom; programa fractal; programa de zoom; programa zoom
nova entrada:
programa de zoom, n.f. V. programa fractal com efeito de zoom; programa com efeito
de zoom; programa com efeito zoom; programa fractal; programa com zoom; programa zoom
nova entrada: programa zoom, n.f. V. programa fractal com efeito de zoom; programa com efeito de
zoom; programa com efeito zoom; programa fractal; programa com zoom; programa de zoom
Finalmente, observo que a redundância, uma das variáveis na formulação de formas
variantes, atua na estrutura de uma UTC e demonstra que o termo:
a) detém excesso de “poder de conteúdo” ;
b) passa, por isso, por derivações contextuais e cotextuais, para entrar no uso do
discurso de especialidade;
c) varia na forma da expressão, e passa de termo profundo a termo de superfície.
A redundância é, portanto, uma invariante no conteúdo lexical.
REFERÊNCIAS
6
Ver Faulstich, 2001
COMBINATORY VOCABULARY of CAD/CAM in Mechanical Engineering.
Terminology. Canada, 1993
CUNHA, C. e CINTRA, L. F. Nova gramática do português contemporâneo, Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1985
DAMIANI, F. Metáfora e formativos terminológicos: uma aplicação na linguagem de
especialidade da Engenharia Elétrica. Dissertação apresentada ao Departamento de
Linguística, Línguas Clássicas e Vernácula, como parte dos requisitos para obtenção do
grau de Mestre em Lingüística, pela Universidade de Brasília, Brasília, agosto de 2005,
182 p.
FAULSTICH, E. Formação de termos: do constructo e das regras às evidências
empíricas. In FAULSTICH, E e ABREU, S. P (orgs.). Linguística aplicada à
Terminologia e à Lexicografia. Porto Alegre, UFRGS, 2003.
FAULSTICH, E e ABREU, S. P (orgs.). Linguística aplicada à Terminologia e à
Lexicografia. Porto Alegre, UFRGS, 2003
FAULSTICH, E. Na extensão de uma UTC: elipse ou categoria vazia? In NEGRI, A. et.
alii. As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande;
Porto Alegre, UFMS; UFRGS, 2010, 13p.
FAULSTICH, E. O lugar da variação linguística em Terminologia. In I Congresso
Internacional de Estudos do Léxico - I CIEL. Salvador-BA, UFBA, 2011
GLOSSÁRIO de termos neológicos da economia. I. ALVES (coord.). São Paulo,
Humanitas, FFLCH, USP, 1998
PAVAM, Rosane. A invenção da pátria. In Carta Capital, 02/05/2008
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Enilde Faulstich