“NAS BORDAS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA: ensaio
psicanalítico sobre um caso clínico borderline
homossexual”
Mírian Cézar Carneiro da Cunha
M.P. da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro
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Rio de Janeiro – RJ – Brasil
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Abril/201
“NAS BORDAS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA: ensaio psicanalítico sobre
um caso clinico borderline homossexual”
Resumo
A autora procura, por meio de um caso clínico, refletir sobre a sua escuta
psicanalítica de uma paciente borderline homossexual. Desta forma, enfoca
as entrevistas iniciais, como também, considerações psicanalíticas sobre
organizações limítrofes e a contratransferência. Inspira-se na demanda da
paciente para iniciar um estudo sobre escuta e abordagem, na clínica
contemporânea, que contribua para a construção de um espaço psicanalítico
para além das fronteiras clássicas.
Palavras chave: Clínica, contratransferência, psicanálise contemporânea.
Resumen
La autora busca, por medio de un caso clínico, reflexionar sobre la su
escucha psicoanalítica de una paciente borderline homosexual. Destaca las
entrevistas iniciales, además, consideraciones psicoanalíticas sobre la
organizacion limítrofe y la contratransferência. Inspirandose en la demanda
de la paciente para iniciar un estudio sobre la escucha e la abordaje, en la
clinica contemporânea, que contribuya con la construcción de un espacio
psicoanalitico más allá de las fronteras tradicionales.
Palabras chave: clínica, contratransferência, psicoanálisis contemporánea.
“A análise é a arte de abrir o imediato aparentemente liso e compacto às
vozes que o habitam, que falam nele com eloquência muda e que pedem
apenas um pouco de atenção para se fazer ouvir” (Mezan , 1993, p.9).
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Este ensaio psicanalítico é uma tentativa inicial de dar conta das inquietações
que minha paciente despertou em mim, como analista e formanda de
psicanálise (caso oficial). Tentarei, com intenção de aprimorar a acolhida
clínica, transformar em palavra escrita, ainda que insipientemente, alguns
“sons” deste atendimento, que reverberaram, para além do setting analítico,
O caso clínico e a construção do espaço analítico
Segundo Fernando Rocha (2011), devemos dedicar especial atenção às
entrevistas preliminares porque, entre outras questões, “... precisamos definir
a maneira mais adequada de investigar e de encaminhar o processo
psicanalítico” (Rocha, 2011, p. 19a); e continua, identificando-se a Quinodz
(en: Rocha, 2011), que, afirma existir um fenômeno estranho na primeira
entrevista, pois parece “conter em germe, tudo o que será a problemática
central do tratamento” (Rocha, 2011, p. 129b). Então, privilegio as entrevistas
iniciais, da paciente, apesar de, ocultar informações, assim preservando-a.
Identifico-a como Edgy.
Em sua primeira entrevista, Edgy chega na hora, limpa os pés no
tapetinho da porta. Ritual que a acompanha durante todo seu processo
terapêutico. Veste camiseta, calça jeans, tênis e apesar de aparência
adolescente, venho a descobrir que tem 30 anos. Afirma que chegou a mim
por indicação de Maria, amiga sua e de uma ex-paciente minha. Diz que
precisa de uma “analista que não passe a mão na cabeça”. Complementa
que, precisa mesmo é “levar porrada”, para aprender, pois não aguenta mais
“sua compulsão a repetição”. Afirma que repete situações que a fazem sofrer.
Mesmo sabendo das consequências, não resiste e “entra em roubadas”. Diz
que se envolve com pessoas difíceis, complicadas, que sempre a
decepcionam. Afirma que está com medo de deprimir pois, anda desanimada
em manter sua rotina, inclusive seu trabalho que lhe dá tanto prazer.
Segundo ela, é profissional liberal e apesar de “ser tímida”,quando trabalha,
”sente-se outra pessoa”, solta, “como se entrasse num palco”. Afirma que
seu atual emprego foi conseguido com ajuda de uma “dessas pessoas”, com
quem, se envolveu. Descreve-me como conheceu “a pessoa” dizendo que foi,
pela Internet, e como, por conta de envolvimento e paixão, elas (Edgy e “a
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pessoa”), “radicalizaram”. Ambas largaram tudo: amigos, família, para
morarem juntas. Porém, segundo Edgy, para ela foi pior, pois trocou,
inclusive, a cidade onde morava. Complementa dizendo que, contudo,
decepcionou-se. Diz ter terminado a relação porque “foi traída” e isto ela
(Edgy) não aceita. Quando soube da traição “enlouqueceu”, foi atrás e fez um
“escândalo”. Afirma que “essa pessoa” a está “tentando” novamente. Pede
minha ajuda para “acabar de vez com essas histórias”. Ao ser requisitada a
falar mais sobre “essas histórias” ,afirma que “não duram mais do que seis
meses”.Em sua segunda entrevista, Edgy mostra-se mais a vontade e
“cooperativa”. Diz que comprou um livro sobre psicanálise, “para me ajudar a
lhe ajudar”. “Apresenta-me” sua família e informações sobre “coisas da
infância”, pois “sabe que” , é “importante para o tratamento”. Informa que é a
segunda filha de uma família com mais três filhos homens. Seu pai e sua
mãe trabalham na mesma área, mas foi sua mãe quem obteve sucesso
profissional. Afirma que eles conheceram-se num evento religioso e casaramse. Segundo ela, por conta do trabalho, os pais deixavam os filhos na casa
dos avós maternos, num bairro próximo, e os pegavam, depois do
expediente. Afirma que foi praticamente criada pela sua avó , e que, segundo
Edgy, (a avó) era
alguém muito rígida na educação. Enfatiza ter algo
importante para falar, faz pausa, reticências e diz que “aos 9 anos tomou
banho com a empregada e que, por conta disso,sua avó lhe deu uma surra”.
Olha para mim, meio que aguardando alguma reação minha. Segue dizendo
que quando pequena tinha medo de escuro e ia para cama dos pais. Fato
que a levou para terapia. Fez terapia um mês. “Curou em um mês”.
Complementa, “só tinha medo até meia noite, quando voltava para sua
cama”. (ri) Afirma “hora de mudar”. Digo-lhe, ao final da entrevista
que...”marcaremos outra por entender que ela teria mais coisas a serem ditas
.Em sua terceira entrevista Edgy diz como entendeu minha intervenção sobre
mais coisas a serem ditas.. “Você me surpreendeu, como sabia que tenho um
segredo?” Após me colocar quase como uma guru afirma que “gostava de
mulheres”, reformula, “gosto de mulhere”.. Diz ainda que viveu em várias
cidades e isso se deve a que tende a fugir de seus problemas. Geralmente
fica uns 3 meses em cada local onde se estabelece.
detalhistas e não conseguí transcrevê-lo totalmente.
Seu relato é longo e
Sobre a hipótese
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diagnóstica, fico confusa. Esta pouca clareza me leva às organizações
psíquicas bordelines.
Minha inquietação, encontra ajuda em Mezan (1993), pois identifico que
Edgy representa, como afirma Green (en: Mezan, 1993), um “paciente típico
de nosso tempo... (Mezan,1993, p.124, b). Por vezes, me sentia inundada e,
ao mesmo tempo, vazia ao final de suas sessões. Inundada de personagens
que ela trazia, mas, como se não houvessem representações significativas
para serem trabalhadas. Em certo momento do processo, preciso mudar o
endereço de meu consultório. Monto-o em minha residência. Havia-lhe
informado com tempo suficiente para trabalhar eventuais manifestações.
Após minha mudança, uns dias depois, já atendendo-a no novo endereço; ela
falta algumas sessões, e ao retornar, informa: “estou feliz da vida”... “Mudei
também.” Isso desperta em mim um sinal de perigo. O que Edgy comunica
em sua atuação? Sua mudança soava “para ela” independência. Realizando
um desejo antigo. Porém, para mim, apontava para ataque ao vinculo. Meus
questionamentos me levam, a posteriori, ao encontro com Berenstein (en:
Green,,2001), e seu estudo sobre contemporâniedade e vínculo, onde
afirma:, “o certo é que o outro não poderá ter o status de ausente”
(Berenstein, 2001, pag.196) Sobre sua mudança, Edgy afirma: “Não
aconteceu nada do que queria, com minha mudança”, chora. Não teve
tempo, nem dinheiro para ter uma infraestrutura básica, não tinha, panelas,
geladeira etc., o que veio, aos poucos, a se regularizar...Sobre o prédio onde
foi morar, afirma: “pensei que teria privacidade, que nada, perdi a
privacidade”... interpreto que me dizia também como se sentia, aqui comigo,
sem privacidade, mudei para minha residência... ela muda o tom da voz,
parecendo animada, e diz: “que nada, adorei sua ‘casa’, comprei uma
mesinha igual à sua, você não vai ficar chateada, vai?”. Fico com a
impressão de ambiguidade, satisfação ambígua, por um lado, feliz por “me
levar” para perto dela e ao mesmo tempo, certo tom de vingança —
satisfação por ter feito algo errado... Após minha interpretação, ela associa e
lembra da satisfação vingativa que sentiu por ter visto a carteira e não ter
falado nada para a mãe, que acaba esquecendo-a (carteira) antes de se
afastar para ir trabalhar... Afirma que sabia que a mãe ia “voltar
enlouquecida” atrás de sua da carteira... o que ocorreu... Cena psíquica que
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me remete à sua entrevista — ela enlouquecer quando traída... interpreto...
“Então você fez mamãe sentir o que você sente, quando ela não está por
perto... Ela surpreende-se: “Enlouqueço?”….:“Estranho, bateu forte, mas não
doeu”... Foi um desses momentos significativos, que revela seus diferentes
“contornos”. Como se saísse de estágio regressivo, quando atua ao mudar-se
repentinamente — para um estado de amadurecimento egóico, capaz de
associações e insights, Passagem clínica, que é apasiguada, ao estudar
Pelegrin (1992) ao descrever sobre o processo de atendimento do paciente
borderline “...o terapêuta pode ser surpreendido por manifestações de
diferentes setores da organização da personalidade, muito divergentes entre
si durante o processo terapêutico”... (Persano e Ventura, 2006, p. 109.).
Permito-lhe então, ela me ensinar a, como devo comunicar-me com ela. Por
vezes, estranhamente, eu mesma, me sentia mais confortável, quando fazia
intervenções espetaculares, repetindo ou explicando racionalmente, sobre
ela, o que se passava com ela — na tentativa de abrir espaço para
interpretações transferenciais, que, por vezes, a afugentava, sentidas por ela,
como invasivas ou evasivas. Então, apoio-me em Green (2002), ao referir-se
às variações necessárias para sair de momentos de impasse, com pacientes,
com estruturas limites ou narcísicas — não neuróticos “ ... todas as medidas
se justificam pela busca de algo que possa ser colocado em andamento para
salvar um processo parado” (Green, 2002, p. 114). Suspeito que, ao
reassegurar-se, comigo, Edgy consegue afastar-se, “diferenciando-se”, mas
se mantendo, ainda assim, ligada. Certa sessão, parece-me que, ela
surpreende-se ao entrar em contato com sua transferência amorosa, ao falar
de suas relações:.. “Vera, ela saiu fora, se desinteressou, não sei o que
houve... se ela me ligar vou conversar... não sei se vou... o que importa é que
não pirei com isso, acho que é porque estou mais próxima de Patrícia (a
ex)... interpreto-lhe: “E de mim também”... Edgy continua. “É surpreendente...
fazemos coisas juntas hoje... antes era só briga... agora está tudo tão
estranhamente natural”... Edgy, parece estranhar, também, sua capacidade
de envolver-se sem destruir, nem ser destruída. Nesses momentos sinto-a
caminhando na direção de insights, quando o pensar não é tão enfaticamente
utilizado contra o sentir e o sentir não é “carregadamente” vivenciado,
impedindo o elaborar. Trabalhamos sua vinda transferida, a busca de uma
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analista-avó, que lhe “dê porradas” por causa de suas “transgressões” —
suas saídas noturnas, representando sua ida para a cama dos pais, gerando
punições, por causa de fantasias edípicas mal resolvidas e assustadoras..
Chora a lembrança da morte da avó, que na época do falecimento “não havia
lhe trazido nenhuma lágrima”. Contudo, ao mesmo tempo, “apronta”, como
ela mesma diz. “se drogando”,e “me drogando”, “me deixando” preocupada.
Encontro um grande aliado terapêutico na contratransferência — no sentido
que Paula Haimann (en: Persano, 2006) sugere — é ... “todos os sentimentos
que o analista sente pelo paciente “(Persano e Ventura, 2006, p. 109b), pois,
para mim, apresenta-se como um interlocutor natural, um tradutor para suas
“falas”, quando inaudíveis. Surge em mim um questionamento. Se a
transferência é uma ferramenta de trabalho psicanalítico com pacientes
“neuróticos”, nos casos limítrofes, será a contratransferência, que nos
possibilita trabalhar? Suas sessões, aos poucos são preenchidas com
associações, sonhos e insights. “Harmonias” e “momentos desafinados”,
alternam-se, nesse nosso “ensaio” quase diário, que reverbera para além do,
“instrumento psicanalítico”, para além da psicanálise de Edgy.
RESUMO
A autora procura, por meio desse ensaio psicanalítico, dar conta de
inquietações surgidas durante atendimento, elaboração, defesa e aprovação
do Relatório de caso oficial – paciente bordeline e homossexual. Por tanto,
transita pelas ilustrações clínicas e seus comentários com intenção de
aprimorar sua aprendizagem advinda das contribuições teórico-técnicas.
Enfoca fenômenos resistênciais expressos na transferência e “decodificados”
na contratransferência, entre outros, revelados durante o processo. Apoia-se
em conceitos freudianos e concepções de autores contemporâneos, sobre
casos bordeline. Por conseguinte, sem pretenção de aprofundar-se no campo
teórico, levando em conta as demandas da paciente como fonte de
inspiração, reflete sobre a possibilidade de uma clínica contemporânea, para
além das fronteiras da psicanálise clássica, resultande da necessidade de
acolhida de sofrimentos, que estão para além de contornos teóricos-técnicos
pré-estabelecidos.
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BIBLIOGRAFIA
BERENSTEIN,I.
“Reflexões sobre uma psicanálise do vinculo” En:
Psicanálise Contemporânea – Revista francesa de psicanálise (2001) Green, A. (org.) ed.Imago,RJ, 2003, p. 196
GREEN, A. (2002). “Orientações para uma Psicanálise Contemporânea:
Desconhecimento e Reconhecimento do Inconsciente”, ed. Imago, RJ,
2008, p. 114.
MEZAN, R. (1993). “A Sombra de Don Juan: e outros ensaios”, ed. Casa
do Psicólogo, segunda edição, SP, 2005, p. 9, a / p.124b.
ROCHA, F. “Entrevistas Preliminares em Psicanálise: incursões clínicoteóricas”, ed. Casa do Psicólogo, SP, 2001, p.19, a/ 129, b.
PERSANO, H e VENTURA, A.
transtornos
da
“Contratransferência em pacientes com
personalidade
borderline
e
narcisistas”,
En:
“Contratransferência: Teoria e Prática Clínica”, Parte II – ZASLAVSK,J,
SANTOS, M & colaboradores, ed. Artmed, SP, 2006, p. 109, a/ b.
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