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PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
CURSO DE LETRAS
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
TRANSITIVIDADE VERBAL:
ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO LINGUÍSTICO-DISCURSIVO
Autor: Milton Tavares de Castro Júnior
Orientadora: Dra. Mariza Vieira da Silva
Brasília - DF
2013
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MILTON TAVARES DE CASTRO JÚNIOR
TRANSITIVIDADE VERBAL:
ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO LINGUÍSTICODISCURSIVO
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Curso de Letras Português e
Respectivas Literaturas da Universidade
Católica de Brasília, como requisito para a
obtenção de título de licenciado em Letras.
Orientadora: Dra. Mariza Vieira da Silva
BRASÍLIA/DF
2013
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Monografia
de
autoria
“TRANSITIVIDADE
de
Milton
VERBAL:
Tavares
de
ESTRUTURA
Castro
E
Júnior,
intitulada
FUNCIONAMENTO
LINGUÍSTICO-DISCURSIVO”, apresentada como requisito parcial para a obtençaõ do
grau de licenciado em Letras – Português e Respectivas Literaturas - da Universidade
Católica de Brasília em 28 de novembro de 2013, defendida e aprovada pela banca
examinadora abaixo assinada:
_________________________________________________________
Profa. Dra. Mariza Vieira da Silva
Orientadora
Curso de Letras - UCB
_________________________________________________________
Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan
Curso de Letras - UCB
_________________________________________________________
Profa. MSc. Dalva Del Vigna
Associação Linguística Evangélica Missionária - ALEM
BRASÍLIA/DF
2013
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DEDICATÓRIA
À Osvairma e ao Milton, meus admiráveis e
amados pais, meus heróis e exemplos de vida, que
nunca deixaram de reconhecer o quão importante é,
para mim, estar envolvido neste projeto de vida.
Aos meus irmãos Assis, Aurélio e Ernane, à
minha
irmã
Ariádna,
todos
verdadeiros
companheiros.
À minha amada noiva, Geanne, que nunca
deixou de acreditar em mim e que tantas vezes
aceitou que eu dividisse minha atenção entre ela e a
escrita deste texto.
Às minhas queridas sobrinhas, Letícia
Medeiros, Letícia Marques e Sofia, aos meus
queridos sobrinhos, Davi, Dudu, Murilo, Henrique e
Lucas.
Ao meu inesquecível amigo Fábio Brito (em
memória), que teria sido um dos primeiros a
compartilhar comigo a alegria dessa realização.
Aos amigos Aurélio Mondego, Hélber
Magalhães e Esdras Marques, que me inspiraram
com seus exemplos de perseverança.
Às amigas Maria de Lourdes, Rhayra, e
Rhayka, ao amigo Ivo Santana, que souberam
reconhecer o valor deste feito.
Aos amigos Fábio Vieira e Ivo Zermatten, às
amigas Vanessa Silva, Kamila Abrantes, Kamila
Duarte, Carliane, e Lunna Lorenna, que
testemunharam as alegrias e os desafios vividos
nesta caminhada.
A vocês dedico este trabalho.
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AGRADECIMENTOS
Foram muitas as alegrias e, também, as dificuldades que encontrei na trajetória
de escrita deste trabalho. Por tudo, quero agradecer especialmente:
A Deus, pela saúde e pelo dom da perseverança.
À professora Mariza Vieira da Silva, por seu carinho e sua paciência ao me conduzir por
este caminho de incríveis descobertas.
Ao professor Maurício Izolan e à professora Dalva Del Vigna, pela respeitosa e
enriquecedora participação na banca examinadora.
À amiga Priscilla Matos Teles, pelos constantes e indispensáveis incentivos,
fundamentais para que eu tenha perseverado nesta escrita.
À amiga Alice Crepory, pelo apoio.
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Precisamos resolver nossos monstros
secretos, nossas feridas clandestinas, nossa
insanidade oculta. Não podemos nunca esquecer que
os sonhos, a motivação, o desejo de ser livre nos
ajudam a superar esses monstros, vencê-los e utilizálos como servos da nossa inteligência. Não tenha
medo da dor, tenha medo de não enfrentá-la, criticála, usá-la.
(Michel Foucault)
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RESUMO
CASTRO JR, Milton Tavares. TRANSITIVIDADE VERBAL: ESTRUTURA E
FUNCIONAMENTO LINGUÍSTICO-DISCURSIVO. 2013. 68 p. Monografia Letras –
UCB. Brasília-DF, 2013
Este Trabalho de Conclusão de Curso inscreve-se no campo da Análise de Discurso de
linha Francesa e da História das Ideias Linguísticas e objetiva compreender os fatos
gramaticais da perspectiva histórico-discursiva, fazendo um recorte na transitividade
verbal, enquanto estrutura, funcionamento e acontecimento linguístico-discursivos,
observando como ali se produzem os efeitos de transparência e de completude da língua
e do sujeito. Tomamos como corpus de descrição e análise de nosso objeto de estudo—
a transitividade verbal—, algumas gramáticas e peças publicitárias, e formulamos uma
primeira questão norteadora para nossa pesquisa: Como a transitividade verbal produz
sentidos, considerando a estrutura e funcionamento linguístico-discursivos presentes em
determinados enunciados? Estruturamos o nosso TCC em quatro capítulos, os quais
descrevem a estrutura e funcionamento da gramática ao longo da história no Brasil e
fora do Brasil, com seus movimentos de mudanças e permanência com relação ao
tratamento dos fatos gramaticais, e também para explicitar o nosso dispositivo de leitura
e realizar a descrição e análise de peças publicitárias. Como resultado, compreendemos
que a língua não é transparente, mas é sujeita a equívocos, e os sentidos não são únicos,
mas são controlados, sendo a língua o lugar em que opera o controle, o assujeitamento
e, ao mesmo tempo, a resistência do sujeito às determinações linguísticas, resultantes
das relações de poder presentificadas numa dada sociedade.
Palavras-chave: Transitividade verbal; sujeito-língua-história; Análise de Discurso;
História das Ideias Linguísticas.
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ABSTRACT
This Work of Course Completion falls within the field of Speech Analysis of french line
and of the History of Linguistic Ideas and aims to understand the grammatical facts
from the historical-discoursive perspective, making a selection in verbal transitivity,
while structure, operation and liguistic-discoursive fact, observing how there are
produced the effects of transparency and completeness of the language and the subject.
We take as corpus of description and analysis of our study object – verbal transitivity -,
some grammars and advertising campaigns, and formulate a first guiding question for
our research: How does verbal transitivity produces meaning, considering the linguisticdiscoursive structure and functioning present in certain statements? We structured our
Work of Course Completion in four chapters, which describe the structure and
functioning of grammar throughout history in Brazil and outside Brazil, with their
movements of changes and permanence regarding the treatment of the gramatical facts,
and also to explain our reading device and make the description and analysis of
advertising campaigns. As a result, we understand that language is not transparent, but
is subject to misconceptions, and the meanings are not unique, but are controlled, being
the language the place in which the control operates, the subjection, and, at the same
time, the resistance of the subject to linguistic determinations, resulting from the power
relations present in a given society.
Keywords: Verbal transitivity; subject-language-history; Discourse Analysis; History of
the Linguistic Ideas.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................. 10
CAPÍTULO I – A CONSTRUÇÃO DE SABERES METALINGUÍSTICOS.............. 13
1.1 Gramática: um instrumento histórico e discursivo......................... 14
1.2 O processo de gramatização no Brasil............................................18
CAPÍTULO II – A HISTORICIDADE DOS FATOS GRAMATICAIS....................... 24
2.1 A determinação na língua: um gesto de liberdade e de
aprisionamento............................................................................ 24
2.2 Transitividade verbal em gramáticas brasileiras: um caso de
completude e de incompletude....................................................33
CAPÍTULO III – GRAMÁTICA: SUJEITO X LÍNGUA X HISTÓRIA.......................39
CAPÍTULO IV – TRANSITIVIDADE VERBAL: ALÉM DA TRANSPARÊNCIA DA
LINGUAGEM E DA CONSCIÊNCIA DO SUJEITO...................................................48
A PROPÓSITO DE UMA CONCLUSÃO.....................................................................64
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................67
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INTRODUÇÃO
Esse Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) surgiu do meu interesse em tratar
dos fatos gramaticais sob uma perspectiva que envolva pensar em como a língua e o
saber sobre ela constituído produzem sentidos. Essa nova perspectiva foi sendo
construída, a partir de questões discutidas na disciplina “História das Ideias Linguísticas
no Brasil”, do contato, principalmente, com textos de Sylvain Auroux (1992) e de Luiz
Francisco Dias (2006, 2010), que tratam a gramática, os fatos gramaticais em sua
historicidade e em relação aos efeitos de sentido que produzem. Esse interesse pelo
estudo dos fatos gramaticais, que já trouxera quando cheguei à universidade,
considerando minha experiência como professor de gramática em cursinhos e aulas
particulares, levou-me, ainda, a organizar e coordenar um Grupo de Estudo de
Gramática no Curso de Letras, que funcionou por um semestre, e que reuniu outros
alunos também interessados na temática. Tomando a gramática denominada tradicional
(GT), em sentido amplo, como ponto de partida para as discussões, as nossas reflexões
foram tomando como centro a sintaxe, o que me fez avançar em termos de delimitação
do objeto de estudo deste TCC: a transitividade verbal.
Um dos textos trabalhados nesse Grupo de Estudo intitulava-se O Silêncio
Sintático como Elemento Constitutivo do Sentido (2011), de Luiz Francisco Dias, em
que propõe uma série de reflexões acerca do funcionamento gramatical, trazendo para o
estudo da sintaxe conceitos advindos da Semântica da Enunciação e da Análise de
Discurso, como os de “memória”, “interdiscurso”, “acontecimento enunciativo”,
“equívoco” e “silêncio”, conceitos que iria compreender, de forma mais consistente na
disciplina de “Análise de Discurso”, cursada posteriormente. O autor faz um recorte do
campo da transitividade verbal, analisando o lugar sintático chamado objeto verbal
projetado pelo verbo e não ocupado no enunciado, em sentenças que contêm verbos que
são classificados pela tradição gramatical como transitivos, mas que foram utilizados,
numa dada sentença, intransitivamente, e considera que a língua é marcada pela
incompletude, pelos não ditos, pela multiplicidade de sentidos e pelo simbólico, o que
nos leva a compreender o silêncio sintático como elemento constitutivo do sentido.
Considerando esse percurso, comecei a vislumbrar outras possibilidades de
compreensão da transitividade verbal trazida nas gramáticas normativas e em alguns
11
estudos linguísticos, e a construir meu dispositivo de análise, com o aporte teórico e
metodológico da História das Ideias Linguísticas (HIL) e da Análise de Discurso de
linha francesa (AD). No primeiro caso, a gramática é tomada como uma tecnologia
intelectual que descreve e instrumentaliza uma língua, e um instrumento linguístico que
amplia o acesso do sujeito a outros funcionamentos linguísticos além dos que ele
domina. Quanto à AD, ela será adotada como uma teoria e uma metodologia de leitura e
interpretação dos fatos gramaticais em sua historicidade.
Assim, esse TCC tem como objetivo compreender os fatos gramaticais da
perspectiva histórico-discursiva, fazendo um recorte na transitividade verbal, enquanto
estrutura, funcionamento e acontecimento linguístico-discursivos, observando como ali
se produzem os efeitos de transparência e de completude da língua e do sujeito.
Tomamos como corpus de descrição e análise de nosso objeto de estudo – a
transitividade verbal –, algumas gramáticas e peças publicitárias, e formulamos uma
primeira questão norteadora para nossa pesquisa: Como a transitividade verbal produz
sentidos, considerando a estrutura e funcionamento linguístico-discursivos presentes em
determinados enunciados?
A partir da construção desse dispositivo analítico, estruturamos esta monografia
em quatro capítulos. No primeiro capítulo, fizemos um percurso histórico-discursivo
pelo processo de construção de uma tradição secular em se tratando de gramáticas.
Assim como há uma história presente nas gramáticas brasileiras, há também uma
historicidade presente nos conceitos dessas gramáticas, o que foi objeto de trabalho de
nosso segundo capítulo; agora, incidindo mais diretamente sobre as questões envolvidas
na transitividade.
No terceiro capítulo, trabalhamos detalhadamente certos conceitos da Análise de
Discurso, de forma a dar mais consistência à descrição e análise das peças publicitárias,
que viriam no capítulo seguinte, o que irá criar condições para a formulação de novas
abordagens no tratamento linguístico e pedagógico da transitividade verbal.
O capítulo IV traz a descrição e análise de um corpus constituído de peças
publicitárias. Os resultados mostraram que a transitividade verbal é um espaço
linguístico suscetível às movimentações de sentidos, onde o Estado trabalha o equívoco
da língua para a consecução de seus objetivos sociais e políticos.
Os modos como a transitividade verbal produz os seus efeitos de sentido
apontam para aspectos relevantes em torno do funcionamento da língua, do que seja
12
linguagem, língua e gramática. As descobertas reafirmam as suposições iniciais,
segundo as quais a língua tem uma materialidade e tem, também, uma abertura para o
simbólico, e que a linguagem é ação, é movimento do sujeito na história, sujeito este
que pela linguagem se significa, se simboliza e resiste. Por outro lado, pela língua o
sujeito é individualizado, disciplinado e dominado. No campo da transitividade verbal,
vimos como se dão esses processos de assujeitamento e resistência do sujeito.
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CAPÍTULO I
A CONSTRUÇÃO DE SABERES METALINGUÍSTICOS
Auroux (1992) defende que o surgimento das ciências linguísticas só se tornou
possível graças ao surgimento da escrita, porquanto proporcionou ao homem uma visão
simultânea e espacializada da fala, permitindo-lhe segmentar a cadeia falada, o que
viabilizou o estudo das relações entre as unidades linguísticas. Dessa forma, o
aparecimento da escrita foi decisivo na passagem dos saberes epilinguísticos, que são os
saberes inconscientes que todo locutor tem de sua língua, aos saberes metalinguísticos,
que são aqueles representados, construídos e manipulados enquanto tal, com a ajuda de
uma metalinguagem. A invenção da escrita, por essa e outras razões, é vista por ele
como uma verdadeira revolução tecnológica, a primeira.
Ainda segundo Auroux (1992), outras duas grandes revoluções estão atreladas
aos estudos linguísticos: a da gramatização e a da informação. Neste trabalho, nos
ocuparemos
da
segunda:
a
revolução
tecnológica
da
gramatização,
mais
especificamente, no Brasil, fazendo um recorte sobre a questão da transitividade verbal,
da determinação, no capítulo seguinte.
Para ele:
Por gramatização deve-se entender o processo que conduz a descrever
e instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda
hoje os pilares de nosso saber metalingüístico: a gramática e o
dicionário (AUROUX, 1992, p. 65).
Nesse sentido, a gramática e o dicionário tanto descrevem uma língua como a
instrumentalizam, ou seja, tornam a língua um instrumento para diversas práticas de
uma sociedade, principalmente as pedagógicas. Esse processo de se produzirem
dicionários e gramáticas de todas as línguas do mundo se faz com base no modelo
greco-latino, o que cria uma tradição ao longo dos séculos de produção de
conhecimentos linguísticos, que irá sofrer uma ruptura com a chamada Linguística
Moderna, no final do século XIX e início do XX, notadamente com Saussure. Esse
processo de gramatização massiva, como ele conceitua, constituiu de fato em uma
revolução que mudou profundamente a comunicação humana. Com a gramatização
“constituíram-se espaços/tempos de comunicação cujas dimensões e homogeneidade
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são incomparáveis ao que pode existir em uma sociedade oral, isto é, numa sociedade
sem gramática” (AUROUX, 1992, p. 71).
Quanto à revolução tecnológica da informação, consiste na difusão, em mundo
globalizado, da informação, pelo surgimento de novas tecnologias de linguagem, de
escrita, como a internet e os demais meios eletrônicos de informação.
1.1 A GRAMÁTICA: UM INSTRUMENTO HISTÓRICO E DISCURSIVO
Tratar a gramática como instrumento histórico e discursivo significa dizer que
ela é produzida sob determinadas circunstâncias históricas, e que, ao mesmo tempo,
dispõe de uma abertura, um espaço para interpretação desta história. Significa que a
gramática é tratada tanto como instrumento linguístico, com a função de trazer um
corpo de regras ou uma descrição de fatos gramaticais, quanto como um objeto que
pode ser analisado também para se compreenderem os modos de constituição de uma
sociedade com suas divisões de classes, suas relações de poder, suas contradições.
O conceito de gramática está longe de ser homogêneo, pois ele parte de uma
concepção de língua que difere em função da filiação teórica que sustenta os estudos da
linguagem, os quais, segundo Orlandi (2007), podem se dar de muitas maneiras:
Concentrando nossa atenção sobre a língua enquanto sistema de
signos ou como sistema de regras formais, e temos então a
Linguística; ou como normas de bem dizer, por exemplo, e temos a
Gramática normativa. Além disso, a própria palavra gramática como a
palavra língua podem significar coisas muito diferentes, por isso as
gramáticas e a maneira de se estudar a língua são diferentes em
diferentes épocas, em distintas tendências e em autores diversos.
(ORLANDI, 2007, p. 15)
Segundo Dias (2006), por exemplo, para que a obra resultante do estudo de uma
língua seja considerada gramática, ela precisa atender a dois parâmetros: apresentar uma
visão integral da língua, e apresentar uma diretriz pedagógica. O primeiro diz respeito
ao tratamento dos aspectos que compõem uma representação unitária da língua face à
diversidade real das línguas, produzindo, assim, discursivamente, o que chamamos de
efeito de completude: um imaginário de que ali o leitor encontrará tudo para resolver
suas dúvidas sobre o modo correto de se escrever um enunciado. O segundo diz respeito
à sua utilização como instrumento de ensino da língua, devendo ser uma obra adequada
à prática da consulta por parte de alunos, revisores, tradutores, entre outros, já que
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abriga, imaginariamente, num só livro, o saber sobre a língua, concebido como
consolidado, estável, adequado.
De acordo com o referencial teórico da História das Ideias Linguísticas, a
gramática é um instrumento linguístico.
Do mesmo modo que um martelo prolonga o gesto da mão,
transformando-o, a gramática prolonga a fala natural, a partir de
conhecimentos teóricos específicos, e dá acesso a um corpo de regras
e de formas que não figuram juntas na competência de um mesmo
locutor. (AUROUX, 1992, p. 70)
Trata-se, também, segundo o mesmo autor, de uma tecnologia intelectual, que se
constrói através de técnicas de segmentação da cadeia falada, de categorizações e
procedimentos que propõem regularidades, de construção de paradigmas. Tal produção
deu ao Ocidente um meio de conhecimento/dominação sobre as outras línguas e culturas
do mundo. Essa tecnologia será transmitida ao longo dos séculos, dando forma a uma
tradição secular, ou ainda ao chamado modelo clássico, que mesmo adequando-se às
estruturas de diferentes línguas, mantém pontos, procedimentos de descrição em
comum. No Prefácio da 1ª edição da “Moderna Gramática Portuguesa”, de 1961, de
Evanildo Bechara, podemos observar a menção a essa tradição.
Não se rompe de vez com uma tradição secular: isto explica porque
esta Moderna Gramática traz uma disposição da matéria mais ou
menos conforme o modelo clássico. A nossa preocupação não residiu
aí, mas na doutrina. Encontrarão os colegas de magistério, os alunos e
quantos se interessam pelo ensino e aprendizado do idioma um
tratamento novo para muitos assuntos importantes que não poderiam
ser encarados pelos prismas por que a tradição os apresentava.
(BECHARA, 2003, p. 21)
Tradição secular essa que se sustenta em uma estrutura e em um conteúdo, que
foram se adequando às diferentes línguas do mundo.
Uma gramática contém (pelo menos): a) uma categorização das
unidades; b) exemplos; c) regras mais ou menos explícitas para
construir enunciados (os exemplos escolhidos podem tomar seu
lugar). [...] O conteúdo das gramáticas é relativamente estável:
ortografia/ fonética (parte opcional), partes do discurso (cf. Apêndice
I), morfologia (acidentes da palavra, compostos, derivados), sintaxe
(frequentemente muito reduzida: conveniência e regime), figuras de
construção. (AUROUX, 1992, p. 66-67).
16
Nesse sentido, para Auroux: “Entre todas as disciplinas cientificas, a gramática é
a que possui o vocabulário próprio mais estável e mais antigo: trata-se das categorias
gramaticais, e, mais especialmente das classes de palavras ou partes do discurso”.
(AUROUX, 1992, p. 101)
Quanto à Análise de Discurso, a gramática é tomada como um objeto discursivo,
ou seja, que produz determinados efeitos de sentido entre os locutores, pelo
funcionamento do discurso “da” gramática e “sobre” a gramática. Ela toma a gramática
e os dicionários como “objetos históricos que podem e devem ser trabalhados de modo
a promover a relação do sujeito com os sentidos. São um excelente observatório da
constituição dos sujeitos, da sociedade e da história” (ORLANDI, 2001, p.9). A Análise
de Discurso propõe, pois, novas práticas de leitura, possibilitando que a história seja
lida e interpretada, “percorrendo os caminhos dos sentidos” que sustentam a produção
de um conhecimento linguístico que se foi elaborando junto à constituição de nossa
língua. (ORLANDI, 2001, p. 8).
Neste trabalho, fazemos, pois, uma articulação entre a HIL e a AD, conforme
esclarece Nunes (2008, p. 110)
Visto que a AD se constitui como um modo de leitura, sustentado por
um dispositivo teórico e analítico, que considera a historicidade dos
sujeitos e dos sentidos, ela traz uma contribuição considerável para o
estudo da história das ideias linguísticas. Tomando as diversas formas
de discurso sobre a(s) língua(s) para análise, efetuam-se leituras que
remetem esses discursos a suas condições de produção, considerandose a materialidade linguística na qual eles são produzidos e evitandose tomá-los como documentos transparentes ou simplesmente como
antecessores ou precursores da ciência moderna. Tais discursos
atestam, de fato, modos específicos de se produzir conhecimento em
determinadas conjunturas históricas. (NUNES, 2008, p. 110)
Um pouco dessa história e dessa articulação é do que trataremos nesse TCC, de
forma a compreendermos esse processo de produção de saberes sobre as línguas do/no
Brasil, no que diz respeito à transitividade.
Em decorrência do processo de gramatização, ocorre uma transferência de
tecnologia de uma língua para outras línguas, porquanto a produção de gramáticas e
dicionários de uma língua se baseia em modelos de gramáticas e dicionários de base
Greco-latina, como dissemos anteriormente. Assim, além de consistir em uma
transferência de tecnologia, a gramatização significa também uma transferência cultural
mais ampla, que segundo Auroux pode ser de dois tipos: endotransferência e
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exotransferência e, consequentemente, em endogramatização e exogramatização. A
primeira refere-se à transferência de tecnologia das tradições linguísticas gregas para a
língua latina, feita por latinos, e também à gramatização dos vernáculos europeus a
partir das tradições latinas, feita por europeus. O segundo refere-se à transferência de
tecnologia feita por um locutor não nativo, como é o caso da gramatização das línguas
indígenas, pelos portugueses, como a gramática do tupi elaborada por Anchieta. Isso
significa que é importante saber quem é o sujeito (em termos de ser falante nativo ou
não daquela língua) que produz a gramática, as relações e compromissos que mantém
com a língua e a história que a sustenta.
O primeiro compêndio gramatical da história ocidental, Tekhné Grammatihé
(Arte da gramática), é de autoria de Dionísio Trácio que, supostamente, viveu entre 170
e 90 a.C. Essa obra abrange aspectos do estudo dos sons e a estrutura e classes de
palavras da língua grega. Já no século II d. C, Apolônio Díscolo escreve outra
gramática, dessa vez abordando a sintaxe das partes do discurso. Ainda no século V a.
C, o gramático hindu Panini escreveu um compêndio que analisava os sons e a estrutura
das palavras da língua sânscrita. Séculos depois, Varrão e Quintiliano se destacaram na
elaboração das primeiras gramáticas do latim. (DIAS, 2006)
Reportando-nos à “gramatização massiva” dos vernáculos europeus e de línguas
de povos por eles colonizados, que se dá a partir do Renascimento, podemos afirmar
que esta ocorreu num contexto econômico marcado pela passagem do feudalismo para o
capitalismo, período que coincide também com as grandes navegações européias, que
visavam à conquista de novos territórios além-mar. Essas condições de produção levam
o colonizador europeu a estabelecer contatos com novas línguas, surgindo, assim, a
necessidade do emprego de técnicas que permitissem a gramatização das línguas dos
habitantes dos países colonizados.
Ainda pensando nas condições de produção dessa gramatização massiva na
Europa Renascentista, observamos, no que tange à passagem do feudalismo para o
capitalismo, profundas transformações das relações sociais pelo surgimento de uma
nova classe de poder: a burguesia, que nem sempre tinha o latim como língua materna
ou o dominava para ler e escrever. Os Estados Nacionais que então começam a ganhar
forma fazem surgir uma nova necessidade: a de construir uma língua nacional com
escrita, instrumentos de aprendizagem próprios – gramáticas e dicionários - e uma
literatura que legitimasse os vernáculos locais. O conhecimento e o uso da língua
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nacional serão, pois, utilizados como um dos critérios para a ascensão social dessa
burguesia nascente.
No contexto religioso, a Reforma protestante, liderada por Martin Lutero,
também contribuiu para o processo de gramatização das línguas vernáculas, já que
colocava em questão a leitura da Bíblia não só em latim. Os fiéis deveriam poder ler o
texto religioso em uma língua que lhes fosse acessível, sem a intermediação de
intérpretes. Para tanto, precisavam de instrumentos para efetuar a tradução do latim para
as outras línguas. Assim, a produção de dicionários e gramáticas visava não só a
interesses econômicos, mas também religiosos. Com base nessa transferência de
tecnologia, surge, por exemplo, em 1409, a primeira gramática do francês, de autoria de
J. Barton, e em 1492, a primeira gramática do espanhol, de autoria de Antônio de
Nebrija.
Concentrando agora nossas atenções sobre a questão da gramatização da língua
portuguesa de Portugal, tem-se que a primeira gramática surge em 1536, escrita pelo
português Fernão de Oliveira, intitulada Grammatica da Lingoagem portugueza. Outras
gramáticas que se destacaram foram a Arte da grammática da língua portugueza, de
autoria de Antônio José dos Reis Lobato (1770), a Grammática philosóphica da língua
portugueza, de autoria de Jerónimo Soares Barbosa (1822), além de duas gramáticas
portuguesas que apresentavam o mesmo título: Gramática da língua portuguesa. A
primeira foi publicada em 1983, e foi organizada por Maria Helena Mira Mateus, Ana
Maria Brito, Inês Duarte e Isabel Hub Faria; a segunda foi publicada em 1995 e teve
Mário Vilela como autor (DIAS, 2006).
1.2 O PROCESSO DE GRAMATIZAÇÃO NO BRASIL
A primeira gramatização – construção de gramáticas e dicionários – ocorrida em
território brasileiro diz respeito à produção de uma gramática da língua tupi, que era
falada por índios que viviam especialmente na costa brasileira e com os quais os
colonizadores tiveram os primeiros contatos. A gramatização de uma língua indígena
consistia numa estratégia de colonização e de catequese, já que era necessário, em nome
da política destas, arrecadar riquezas para Portugal e converter os índios para a fé cristã,
na medida em que a obediência aos dogmas da Igreja articulava-se à total obediência e
submissão dos sujeitos colonizados ao Rei. A primeira gramática foi elaborada por José
de Anchieta, após o aprendizado da língua tupi, e intitulava-se Arte de Gramática da
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Língua Mais Falada na Costa do Brasil, publicada em 1595, com base na gramática
latina, uma vez que era naquele mesmo século XVI que se construía a primeira
gramática do português de Portugal. O sistema de colonização, exploração e dominação
dos habitantes do Brasil irá ter, na gramatização, então, uma das bases de apoio, a
administração da heterogeneidade linguística, na busca de construir um imaginário, que
é o da unidade linguística, em relação a uma diversidade real. Essa língua, assim
construída, denominava-se língua geral, ou língua brasílica ou ainda tupi jesuítico.
Já a gramatização da língua portuguesa no/do Brasil ocorre a partir do século
XVIII-XIX, em condições de produção bem distintas da gramatização das línguas
europeias, movida por interesses e necessidades próprias de um país colonizado. Tratase de um período de extrema contradição no tocante à questão linguística.
No século XVIII, o Marquês de Pombal promove mudanças na estrutura
administrativa e política da Colônia, numa tentativa de aumentar seu poder sobre ela. A
língua era então um lugar estratégico de ação, já que o conhecimento que os jesuítas
tinham das línguas indígenas os deixava em condições de superioridade com relação à
influência que estes tinham sobre os colonizados. O Marquês determina, assim, a
expulsão dos jesuítas do solo brasileiro, a extinção das línguas gerais, e a
obrigatoriedade do ensino de língua portuguesa nas escolas, baseado, porém, nos
padrões da língua escrita vigente em Portugal, e que era dominado pela elite brasileira.
Evidenciava-se, assim, uma acentuada distância entre a língua portuguesa falada pela
elite brasileira nos principais centros urbanos e a língua portuguesa falada por uma
grande população que, ou na zona rural ou nas cidades, era analfabeta. O distanciamento
da língua da elite se mantinha também em relação às línguas indígenas e africanas, que
compunham a matriz linguística da Colônia, cujos falantes, da mesma forma, não
tinham acesso à escolarização. Vale lembrar que quando se põe a questão de uma língua
gramatizada, põe-se também a questão da escolarização.
O século XIX interessa-nos de maneira especial no que diz respeito à questão
linguística, pois, além de ser marcado por vários movimentos de emancipação, como a
Independência, proclamada em setembro de 1822, nele se busca a construção de uma
identidade nacional, que se apóia em elementos que possam dar legitimidade a esta
identidade. É preciso dar legitimidade à língua falada no/do Brasil, à sua literatura, aos
demais elementos que simbolizam essa identidade.
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O século XIX, no Brasil, é um momento crítico na reivindicação por
uma língua e sua escrita, por uma literatura e sua escritura, por
instituições capazes de assegurar a legitimidade e a unidade desses
objetos simbólicos sócio-históricos que constituem a materialidade de
uma prática que significa a cidadania. A forma política dessa
cidadania é a Independência e, em seguida, a República. A forma
simbólica e a forma do sujeito que lhe corresponde não são menos
decisivas. Essas práticas têm, de um lado, as Instituições, de outro, a
sua textualidade: gramáticas, dicionários, obras literárias, manuais e
programas de ensino. (ORLANDI, 2001, pp. 8-9)
No século XIX, o gramático ocupa, portanto, uma posição de sujeito que lhe dá
um lugar de autoridade e de responsabilidade na construção de nossa identidade: uma
posição de saber, de autoria em relação aos gramáticos portugueses, visto que a
transferência de tecnologia se faz por falantes nativos, com conhecimento epilinguístico
da língua. Ele dá visibilidade a um saber próprio a nossa língua, que pertence à
sociedade brasileira.
Essa gramatização não se dá, contudo, sem contradições. Embora os gramáticos
defendessem o Português do Brasil, ao se construir a norma escrita brasileira, esta vai
tomar como base a norma culta do português europeu, segundo Pagotto (2001). A
construção de uma norma escrita brasileira era fundamental nesse processo de
legitimação da identidade nacional, pois a escrita é dotada de um significado social.
O significado social das formas linguísticas define uma posição de
sujeito à qual os sujeitos falantes vão se identificar, podendo
significar-se como classe social, como grupo etário, como grupo
regional. Esse significado social não decorre de um desejo individualou coletivo- mas é fruto da própria dinâmica macro-social que define
a ideologia e os discursos. (PAGOTTO, 2001, p. 40)
Assim, a adoção da norma culta do Português europeu, que deveria reger a
escrita e o “bem-falar”, no século XIX, tinha dois objetivos: constituir uma identidade
nacional e estabelecer certas barreiras em relação aos demais segmentos da sociedade,
já que o acesso ao português-padrão europeu ocorria por meio da escolarização, que
estava ao alcance apenas da elite. A constituição de uma norma escrita constrói,
imaginariamente, a ideia de unidade linguística, que faz funcionar as relações de poder
na sociedade: quando o sujeito se depara, na escrita normatizada, com uma forma
discrepante em relação à forma por ele falada, isso produz nele o efeito de nãopertencente à língua, ou seja, ele é excluído do processo de identidade pela língua.
21
Dessa forma, a gramatização da língua no século XIX apresenta-se como
bastante complexa e contraditória, pois ao mesmo tempo em que busca a construção de
uma identidade nacional, ela produz a exclusão do sujeito, pelo imaginário que ela
também, paradoxalmente, sustenta: o de que no Brasil não se fala corretamente o
português. A gramatização produz o efeito tanto de independência como de
inferioridade do sujeito brasileiro, que ao não se identificar com as formas
normatizadas, se vê excluído da língua. O importante é compreender essa história, que
não se faz em linha reta, nem de forma consensual, nem por oposição, mas por
contradição, observando como se constroem as gramáticas brasileiras e uma posição
teórica, como se produzem artefatos de descrição e de ensino e compreender como nos
inserimos de modo próprio nela, re-significando a transferência tecnológica, nessa
tradição secular de produção de gramáticas, em que se estabelecem relações entre
língua-sujeito-história. Como diz Orlandi (2002):
O modo como elas [as gramáticas] se estabelecem certamente afeta os
seus sentidos, entretanto não se trata, como dissemos, no plano
metodológico, de dizer quais são os precursores de nossas gramáticas
como se elas só repetissem. É preciso ver como se definem, trabalham
os fatos da língua, se organizam. Também como organizam as
repetições de outros autores, anteriores ou contemporâneos, como
silenciam outros autores e o que isso produz de específico. Os nossos
gramáticos estão construindo um campo de referência próprio ao
Brasil e à nossa tradição intelectual, científica (ORLANDI, 2002, p.
132).
As
primeiras
gramáticas
escritas
por
brasileiros
ganharam
prestígio,
inicialmente, nos meios escolares, já que seus autores eram também professores de
grandes instituições de ensino à época. Temos, então, a Gramática Portuguesa de Júlio
Ribeiro (1881), do Colégio Culto à Ciência em São Paulo; a Gramática Portuguesa, de
João Ribeiro (1887), professor de História do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro; a
Gramática Analítica (Descritiva), de Maximino Maciel (1887), do Colégio Militar do
Rio de Janeiro; a Gramática da Língua Portuguesa, de Pacheco Silva e Lameira de
Andrade (1887), para uso dos ginásios, liceus e escolas normais no Rio de Janeiro; a
Gramática Expositiva (1907), de Eduardo Carlos Pereira do Ginásio Oficial de São
Paulo que, publica, também em 1914, sua Gramática Histórica.
Para Orlandi (2002, p. 157), embora no nome das gramáticas ainda apareça
“portuguesa”, sem referência explícita ao português do Brasil, “o que os gramáticos
22
brasileiros estão deslocando é a autoridade de se dizer como é essa língua. Ser autor de
gramática é ter um lugar de responsabilidade como intelectual e ter uma posição de
autoridade em relação à singularidade do português do Brasil” (grifo da autora). Uma
posição de sujeito que se individualiza em um contexto histórico de estabelecimento do
Estado brasileiro e de suas instituições.
Há nessa relação entre gramatização e escolarização um movimento de mão
dupla, pois a escola é tanto a origem como o principal lugar de circulação dos
conhecimentos linguísticos produzidos. E a escolarização da língua, por meio de
instrumentos como a gramática, configura-se como um processo não só de
disseminação de uma língua gramatizada – a língua nacional -, mas, ao mesmo tempo,
individualização do sujeito, de estabilização de relações de poder entre quem sabe e
quem não sabe “a” língua, na sociedade brasileira. Silva (2002) lembra disso ao afirmar:
Esse projeto político de disciplinarizar uma língua, delimitando-a e
configurando-a como nacional- que a Nação fala e que a escola deve
ensinar e o indivíduo deve aprender para ser um cidadão- implica
relações complexas entre conhecimento linguístico e poderes
institucionais a serem analisados e compreendidos (SILVA, 2002, p.
87).
Nesse sentido, a escolarização da língua e suas políticas envolvem não apenas a
questão do conhecimento da língua, mas faz funcionar um mecanismo de controle e
assujeitamento, articulando, assim o linguístico, o pedagógico e o político. Por essa
razão, importa compreender esse funcionamento, já que, em diferentes momentos da
história da Nação, é possível observar e analisar como o discurso pedagógico, de
escolarização da língua, funciona para produzir determinados efeitos de sentido. No
século XVI, este discurso, sustentado pela gramatização de línguas indígenas (as línguas
gerais), estava voltado para o sucesso da catequização e exploração econômica da
perspectiva da colonização; já no século XIX, com a gramatização do português do
Brasil, a escolarização está voltada para a constituição de uma identidade do brasileiro e
também para a construção de um lugar de divisão dos brasileiros em termos linguísticos
e, ao mesmo, tempo social e econômico. Efeito ideológico.
No século XX, com o Estado já institucionalizado, mesmo que, às vezes,
precariamente, às gramáticas já não cabe ajudar a traçar os limites de nossa brasilidade,
mas a de consolidar posições, agora internas, entre as divisões do português do Brasil e
a de seus falantes, entre quem sabe a língua “corretamente”. Nessa conjuntura, temos
23
uma construção mais abundante de gramáticas que, paradoxalmente, produz o
apagamento dessa autoria que contribuiu para a construção de uma língua nacional.
Esse silenciamento irá se tornar mais forte com a NGB – Nomenclatura Gramatical
Brasileira, que uniformiza, pelas mãos do Estado, a terminologia de diferentes posições
presentes nas gramáticas descritiva, expositiva, histórica, analítica, geral.
Nesse mesmo século XX, com a criação dos cursos de Letras e a
institucionalização da Linguística a partir da década de 1950, a produção de saberes
sobre as línguas do Brasil tomam outro rumo, caucionada por o que passa a ser
considerado um saber científico em oposição ao gramatical. Inclusive a gramática
recebe o determinante “tradicional”. Podemos destacar, já no final do século XX, o
surgimento de uma gramática descritiva do português, de autoria de Mário Perini, em
1995, e de uma gramática funcionalista, de autoria de Maria Helena Moura das Neves,
cada uma se apoiando em diferentes teorias linguísticas.
Se hoje temos uma compreensão bem abrangente e consistente sobre o nosso
processo de gramatização do Português, por outro lado, temos de compreender um
pouco mais sobre o modo como os conhecimentos gramaticais circulam efetivamente na
Escola. Sabemos que a suposta oposição entre gramática e linguística já se revelou
frágil e novos objetos de estudo deslocam essa oposição para outro lugar: o do
funcionamento de contradições estruturais de formação da sociedade brasileira na
relação entre diferentes línguas. Sabemos, também, que certas representações se
mantêm como a de ser “uma língua difícil”, “com muitas regras”, bem como o fato de
que aula de português ainda é fundamentalmente aula de gramática, de forma explícita
ou não. Daí, nosso interesse e, comprometimento mesmo, em trabalhar um outro modo
a gramática e, consequentemente, em se pensar em outras formas de ensiná-la e
aprendê-la.
Em face ao que foi colocado neste capítulo, compreende-se que, na tomada da
gramática como objeto histórico e discursivo, não são as datas que nos interessam, mas
compreender sua relação com os modos de organização da sociedade, com suas
implicações econômicas, políticas e sociais, bem como os efeitos de sentido por ela
produzidos.
24
CAPITULO II
A HISTORICIDADE DOS FATOS GRAMATICAIS
Assim como a gramática tem sua história, os fatos gramaticais também são
marcados por uma historicidade. Contudo, observa-se o funcionamento de um
imaginário em que certos sentidos se cristalizaram, dando à gramática o caráter de um
conjunto de regras e conteúdos universais, atemporais, imutáveis. Nesse sentido, vamos
acompanhar esse movimento da história, marcado pela permanência, mas também pela
mudança, no que se refere à transitividade.
2.1 A DETERMINAÇÃO NA LÍNGUA: UM GESTO DE LIBERDADE E DE
APRISIONAMENTO
Este TCC trata especificamente da transitividade verbal, espaço linguístico
marcado pelas possibilidades de ausência/presença/apagamento do objeto, produzindo
efeitos de sentido que vão da completude à incompletude. O trabalho de Claudine
Haroche, em seu livro Fazer dizer, querer dizer (1992) nos ajudou a desencadear essa
reflexão, dando-nos sustentação teórica para análise em nosso corpus da questão da
determinação que se manifesta na complementação – ou não – de um verbo.
Na obra, a autora mostra como surgiu um processo de busca constante da
gramática pela determinação, pela transparência dos fatos gramaticais, e em última
instância, da língua, pela produção do efeito de completude. A gramática tem uma
estrutura e um funcionamento, que se constitui em um modelo, que produzem o efeito
de ser um compêndio que apresenta uma visão integral da língua, que ali o leitor
encontrará aquilo que for necessário para a compreensão e/ou descrição de todos os
fatos gramaticais, todos os fatos de uma determinada língua.
Segundo Haroche, a elaboração das regras da gramática está ligada também a
processos de individualização, de isolamento do sujeito, nas relações de poder de uma
dada sociedade. Nesse sentido, a gramática seria o espaço em que se busca fazer
aparecer a interioridade do indivíduo, através desse efeito de completude, de
transparência, de clareza que ela produz pelo modo como descreve a língua. Dar
visibilidade à interioridade do indivíduo, segundo ela, produz o efeito de liberdade
frente ao saber e, ao mesmo tempo, desencadeia o seu isolamento, tornando-o
25
uniforme, determinado, mensurável, dominável. Isso quer dizer que quando se dá ao
sujeito o poder de determinar a significação de um dado enunciado, indicando o objeto
ausente, este tem a impressão de ser a fonte absoluta do significado, do sentido, sem se
dar conta de que, ao determinar, ao atribuir determinado complemento ao verbo, ele está
acionando dizeres já presentes em uma memória social.
Isso pode ser compreendido por meio da análise que Dias (2011) faz do
enunciado de uma peça publicitária da Volksvagen, publicado na Revista Veja em
28/08/2006. Vejamos.
As sentenças são compostas por dois verbos que a tradição gramatical e até
mesmo alguns estudos de base não-tradicional classificariam como verbos transitivos
que, nessas sentenças, foram empregados como intransitivos, ou seja, como itens
lexicais de sentidos completos que não necessitam de outro termo para a integralização
de seu sentido.
Percebe-se que os dois verbos do anúncio, normalmente utilizados
como transitivos (nomenclatura usada pela gramática tradicional), não
apresentam, nesse contexto, objetos marcados linguisticamente. No
entanto, esse fato não desfaz a evidência de que os lugares sintáticos
para os objetos verbais estão delimitados e precisam ser preenchidos
para que a enunciação se complete de maneira satisfatória. (DIAS,
2011, p. 249)
O preenchimento do lugar objeto verbal, contudo, não se faz com qualquer
elemento, já que ele está “delimitado”, determinado historicamente. Ou seja, ao
reconhecer que o anúncio faz referência ao mercado de vendas de carros, o leitor tende a
26
ocupar o espaço objeto verbal com expressões que confirmam a tentativa da montadora
Volkswagem em aumentar sua clientela. Logo, uma primeira opção de ocupação é a
seguinte, segundo Dias:
(1) A concorrência falou (as vantagens de seus produtos).
... a ocupação do lugar de objeto se constitui a partir de um processo
de referenciação bem pontual: o verbo “falar”, associado à
concorrência, orienta necessariamente a predicação de que participa a
chamar a presença de um complemento que valorize os produtos dos
concorrentes de mercado da Volkswagen. O que propomos é que, na
cena que se cria por ocasião desse dizer, desse acontecimento
enunciativo, o domínio de sentido que sustenta a ocupação do lugar de
objeto do verbo “falar” é bem marcado, pois deve se ajustar a um
recorte de significação sócio-historicamente delimitado por um
anúncio publicitário dessa natureza. O papel da fala da concorrência
para o mercado consumidor está bem demarcado socialmente e todas
as tentativas discursivas operam no sentido de conquistar novos
clientes. (Idem, ibidem, p. 249)
Já para o verbo “ouvir”, para Dias, há duas possibilidades de preenchimento,
levando-se em consideração o verbo da oração anterior:
(1) O consumidor ouviu (a fala da concorrência) ou
(2) O consumidor ouviu (a conhecida qualidade da Volkswagen).
Como podemos observar, a ocupação do lugar objeto nas sentenças analisadas
deve ser feita de modo a confirmar a preferência dos consumidores pelos produtos da
Volkswagem.
Nas sentenças analisadas, o lugar sintático “objeto verbal” deve, sim, ser
preenchido, para que o enunciado produza seus efeitos de sentido, já que foi projetado
pelo verbo e a língua permite que tal ocupação aconteça. Esse lugar sintático, projetado
pelo verbo e não ocupado na sentença, mas preenchido pelo leitor/consumidor no
processo de determinação do sentido, Dias chama de “silêncio sintático”, ou seja, é um
silêncio que funciona na produção dos efeitos de sentido relacionados à significação dos
enunciados. Quaisquer que sejam as expressões que o sujeito empregue na
determinação, elas serão sempre assimétricas, pois estão demarcadas historicamente, e
vem à tona, por meio do acionamento de uma memória.
27
A memória é que faz com que os nossos dizeres sejam remetidos a outros
dizeres já realizados, imaginados ou possíveis (ORLANDI, 2007, p. 67), pois a história
se faz presente na língua como estrutura e funcionamento e não como conteúdo. A
língua só significa porque ela se inscreve na história. Por essa razão, ao determinar, ao
atribuir determinado complemento para o verbo, o sujeito está trazendo para o seu
discurso sentidos pré-construídos, que não se originaram nele, apesar de acreditar que é
a fonte de seu dizer.
Mas como a determinação e a completude, nas gramáticas, funcionam como um
mecanismo ligado ao assujeitamento, às relações de poder? O que significa, pois,
determinar?
Voltemos a Haroche, que nos conta que a palavra “determinar” existia já no
século XII com o significado de “marcar os limites”, mas “determinação”, significando
“explicação do sentido” do texto não aparece senão lá pelo século XIV. (p. 78). A
determinação envolvia a intervenção do sujeito no entendimento do texto, fazendo
surgir uma relação deste com o saber, relação que faz funcionar as necessidades,
primeiro, de um poder religioso e, depois, de um poder político/jurídico, quando se dá
uma mudança da forma-sujeito, ou seja, quando há a passagem do sujeito religioso para
o sujeito capitalista, um sujeito de direito e do conhecimento, considerada a conjuntura
econômica e social da Europa, na passagem do feudalismo para o capitalismo.
Para tratar dessa questão, Haroche remete-nos ao século XIII, em que se observa
uma mudança na ordem religiosa que funciona a partir das relações entre sujeito e saber.
O sujeito religioso seria, pois, controlado pela Igreja e submetido à ideologia cristã por
meio de práticas, rituais, centradas na “palavra sagrada”, a Bíblia, dotada de uma
verdade inquestionável, soberana, universal. Neste cenário, surge então a chamada crise
da “Dupla Verdade1”, que ameaça a ordem religiosa, na medida em que surge com a
contradição, colocando de um lado a fé e do outro, a razão2. O submisso sujeito
religioso se vê na possibilidade de questionar a ordem religiosa e os fundamentos e
dogmas da Igreja. Isso colocava em risco a autoridade da instituição religiosa e as
formas de dominação que ela exercia sobre o indivíduo. A passagem do feudalismo para
o capitalismo na Europa instaura uma nova ordem, que agora funciona centrada na ideia
1
Trata-se de uma crise provocada no interior da Igreja, pelo risco de o sujeito se sentir induzido a buscar
o entendimento das verdades que até então era ocultadas pela Igreja, que funcionara pela imposição de
um conhecimento sagrado inacessível ao homem.
2
Ver condições de produção da gramatização na Europa, nas páginas de 9-10.
28
de lucro, de usura, de luxo, em contraposição à ordem religiosa, que funcionava por
meio da total submissão do sujeito ao texto bíblico e aos dogmas religiosos.
À medida que o sistema capitalista vai-se expandindo, o sujeito religioso vai-se
redefinindo, assumindo, portanto, a posição de sujeito de direito. A dominação passa a
ser exercida pela ordem jurídica, já que, agora, os sujeitos são regidos por leis jurídicas,
que disciplinam a relação entre os senhores feudais e os servos, na medida em que
aqueles fazem a concessão de feudos a estes, mas explora economicamente os seus
serviços. Agora, a ideologia jurídica é que impera nas relações entre sujeitos, já que o
capitalismo se sustenta na igualdade entre homens livres. Assim, a sociedade passa a ter
um ordenamento jurídico— um conjunto de leis— para regular as relações entre
indivíduos de uma dada sociedade. No capitalismo agora vigente, o homem é livre, mas
sua liberdade é regulada por leis. Nesse cenário, a ambigüidade, que antes estivera a
serviço do poder religioso de assujeitamento, agora serve a outro poder: o jurídico. Em
outras palavras, o sujeito que antes era assujeitado pelas práticas e rituais religiosos
agora é assujeitado pela ambiguidade e pela não-transparência dos textos jurídicos. A
língua, pela sua não transparência, é o lugar em que o assujeitamento opera.
Assim, desliza-se de práticas típicas do ritual (e em particular do ritual
mnemônico do assujeitamento) na ordem religiosa, da Letra concebida
como signo fechado e enclausurante (imposto no quadro das práticas
rituais, na relação do sujeito com Deus), para a ideia de signo aberto,
combinável, racional, “objeto de escolha” e de arranjo por parte do
sujeito (HAROCHE, 1992, p. 70)
No caso específico da elaboração da língua clássica na França, no século XVII,
lembra Haroche, havia por parte dos gramáticos que participaram dela uma preocupação
relacionada a esta questão. Afetados pela ideologia da literalidade, fruto do Iluminismo
que aflorara na Europa, sobretudo na França, segundo a qual a ideia deve ser clara e
distinta, os gramáticos demonstram constante preocupação com a questão da
determinação. As regras são criadas objetivando dar pureza à língua, evitando, por um
lado, a ambiguidade, e, por outro, a multiplicidade de determinação, objetivando sempre
regular os gestos de interpretação do sujeito. Pensando no primeiro aspecto, uma das
principais regras estabelecia que o antecedente do relativo só poderia ser determinado se
ele já estivesse determinado. Por exemplo, a frase “Ele fez isso por avareza, que é capaz
de tudo” era errada, pois o antecedente do relativo não está determinado.
29
“Eu creio, por mim, que é por causa do pronome relativo, assim
chamado pela relação que ele tem com qualquer coisa que foi
nomeada, é preciso que os dois, tanto o nome como o pronome, sejam
de mesma natureza, e tenham uma correspondência recíproca, que
faça que um possa se relacionar com outro. Ora, acontece que isso não
pode acontecer entre dois termos, dos quais um é sempre definido, que
é o pronome relativo, e o outro indefinido, que é o nome sem artigo,
ou sem um artigo definido. O pronome é como uma coisa fixa e
aderente, e o nome, sem artigo, ou com um artigo indefinido, é como
uma coisa vaga e no ar, a que nada se pode ligar” (VAUGELLAS,
apud HAROCHE, p.100-101).
De acordo com essa proposta de análise, tomamos as seguintes frases: “comi
maçã que estava madura” e “comi uma maçã que estava madura” para análise. Ora, não
há como se estabelecer correspondência de sentido entre os termos “maçã/uma maçã” e
a oração adjetiva, já que “maçã/uma maçã”, por não estarem determinadas, referem-se a
coisa vaga, o que inviabiliza sua determinação por meio de uma oração adjetiva.
Todavia, tudo se resolve com a determinação de maçã com um artigo definido.
Pensando agora na determinação do sujeito envolvida nesse processo, Haroche
se debruça sobre a questão da unidade da frase— ideal que corresponde à unidade do
sujeito – também ideal. A possibilidade de o sujeito modificar o sentido de uma
sentença é algo perigoso para a ordem estabelecida, já que se trata de dar liberdade ao
sujeito de interpretar, podendo esta ser exercida em busca de objetivos próprios.
A restrição à liberdade de acrescentar complementos traduz o estado
de espírito geral que preside à constituição da gramática, assim como
o que preside à constituição de certos mecanismos sintáticos. A
ideologia dos gramáticos se revela assim fortemente marcada pela
ideologia jurídica de centralização administrativa, ligada à
constituição do aparelho de Estado. (HAROCHE, 1992, p. 103 - grifo
nosso)
Dessa forma, pela restrição do emprego de complemento, o sujeito ainda é livre
para determinar, mas essa liberdade é controlada, ou seja, sua liberdade de expressão, de
descrição e de interpretação está limitada, pois ao interpretar, consciente ou
inconscientemente, recorre a sentidos já construídos historicamente, o que faz com que
a sua interpretação, o seu discurso seja uma retomada de outros discursos préconstituídos.
A determinação cria, assim, um espaço de linguagem em que estão envolvidos
sujeito x língua e sujeito x Estado. No primeiro caso, que é do domínio do saber, a
30
determinação se apresenta como algo intrínseco à própria língua. A exigência de
determinação traz consigo a necessidade de chamar o sujeito à interpretação, e esse
chamamento estabelece uma relação particular do sujeito com o texto, com o saber.
Assim, “a determinação deixa entrever a questão do sujeito, sustenta sua identidade,
mas a pressupõe inevitavelmente de uma certa maneira” (HAROCHE, 1992, p. 27-28 –
grifo nosso). Essa pressuposição da identidade do sujeito é a outra face do efeito de
liberdade que a determinação lhe dá. O sujeito experimenta uma liberdade ilusória,
imaginária, mas, ao mesmo tempo, continua submisso aos imperativos do poder da
língua (em sua autonomia relativa) e do Estado e suas instituições. A subjetividade vem
à tona pelo efeito da transparência, e é disciplinada, normalizada, administrada, sem que
o sujeito perceba ou tenha sobre isso o controle.
Pela língua ocorre, em termos de estrutura e de funcionamento (e não de
conteúdo) da gramática, o assujeitamento do indivíduo falante à língua em sua
autonomia relativa, porque é inscrita na história. Os instrumentos linguísticos são
dotados, assim, de uma estrutura e funcionamento que dão sustentação às relações de
poder numa sociedade dada.
Para refletir acerca do papel da determinação na gramática, Haroche (1992)
toma dois fatos gramaticais: a Elipse e a Incisa. Estas correspondem, respectivamente, a
uma falta e a um excesso no processo de determinação. Tanto a elipse quanto a incisa
são formas possíveis de romper com a linearidade do discurso, o que significa dizer que,
para a gramática, tanto a falta quanto o excesso de determinação representam uma
ruptura no processo de significação, pois sem determinação não se tem um sentido
completo e, com excesso de determinação, interrompe-se o curso da frase, porquanto,
neste último caso, há palavras e expressões “acessórias”, que em nada alteram o seu
sentido. É o que nos diz Haroche:
A gramática se esforça em reafirmar o caráter “linear” do discurso e
da frase, delimitando tacitamente seu funcionamento global pela
elipse, concebida então como uma falta necessária e a incisa como
um acréscimo contingente. (HAROCHE, 1992, p. 116 – grifos da
autora)
Nesse sentido, para a gramática, a elipse não significa ausência de determinação,
mas se trata de uma “falta necessária”, que torna possível que o sujeito intervenha no
processo de significação, sem, contudo, interromper a linearidade do discurso. Dessa
31
forma, a elipse é, para a gramática, um mecanismo de determinação, que procura
desfazer as possibilidades de se produzir ambiguidades no processo de determinação, já
que a ambiguidade é um fato linguístico que a gramática busca descartar, em nome do
ideal que a sustenta: a ideia de que o enunciado deve ser claro e inteligível. Vejamos
um enunciado.
(1) Eva não gosta de Tadeu, porque é racista.
O que notamos neste enunciado é a falta de determinação do sujeito gramatical
da segunda oração, introduzida pela conjunção porque, o que faz surgir uma
ambiguidade no tocante à semântica da sentença. Para a gramática, não se trata de
indeterminação, mas, sim, de uma elipse, e a ambiguidade pode ser facilmente desfeita
se o lugar marcado para o sujeito for preenchido com um pronome pessoal, “ele” ou
“ela”, o que não interromperia a linearidade da frase. Todavia, o mesmo procedimento
não desfaria a ambiguidade no enunciado que se segue, já que os referentes são todos do
mesmo gênero.
(2) Eva não gosta de Karina, porque é racista.
Neste caso, a ambiguidade se desfaria, porém, com o uso do pronome “esta” ou
“aquela”, que a gramática convencionou para se referirem, respectivamente, ao
elemento mais próximo e ao mais distante em vista do verbo, numa relação de
proximidade. Portanto, a elipse funciona na gramática como um “implícito”, como
“falta necessária”, e não como ausência de determinação, o que significa dizer que, por
ela, o sujeito experimenta uma ilusória liberdade, limitada, porém, pelos elementos
explícitos da própria sentença.
Mas percebemos também que, mesmo que dada gramática admita que a elipse
possa ser suprida com palavras que estão fora do período, esta possibilidade vem
acompanhada de regras que regulam a determinação. É o que vemos na Gramática da
língua portugueza, de autoria de Laurindo Rabelo (1872), onde o autor preceitua que:
Há ellipse, desde que falta na oração alguns dos termos ou
complementos, de que Ella deva constar, e no período alguma oração.
Supre-se a elipse ou com palavras, que se achão no mesmo período,
ou com outras de fora...Quando se apresenta um nome próprio
precedido de artigo, sempre se deve entender depois do artigo, e antes
delle o nome appelattivo da classe a que pertence. Ex. O Amazonas,
entende-se o rio Amazonas. Antes dos substantivos appostos, que
augmentão o seu antecedente e dos adjectivos da mesma
denominação, entende-se o conjunctivo que e o verbo ser, formando
32
orações incidentes. Ex. O Brasil, império notável por suas
riquezas,deve ter um grande futuro. Entende-se deste modo: O Brasil
que é império notável, etc. (RABELO, 1872, p. 140-142)
Podemos, a partir desses funcionamentos da elipse, pensar naquilo que ocorre
com os verbos tradicionalmente denominados transitivos, que em dados enunciados
projetam um objeto verbal que não é explicitamente ocupado, mas cuja ocupação darse-á pelo sujeito, no processo de determinação, com base em elementos que constam da
própria frase.
Tomo por exemplo a frase:
(3) Casas populares: a gente faz e você recebe.
Considerando as reflexões e análises feitas por Haroche, podemos afirmar que,
na frase acima, os lugares objetos verbais projetados pelas formas verbais “faz” e
“recebe” não estão ocupados, mas, também, não estão indeterminados, já que a
ocupação desses lugares parece óbvia, porque se dá com elementos explicitamente
colocados na própria frase, quais sejam, casas populares. Mais à frente neste TCC,
esperamos mostrar que o campo da transitividade verbal é, potencialmente, um lugar
linguístico marcado por certas regularidades de funcionamento que não excluem da
ocupação dos lugares denominados objetos verbais elementos exteriores à sentença, que
são acionados por meio de uma memória. Todavia, na visão da gramática, a elipse se
encarrega de fazer esta ocupação, dando ao sujeito a “liberdade” de determinar, mas
esta determinação se dá com elementos explicitamente presentificados na sentença.
A Incisa, por sua vez, é tida pela gramática como um excesso contingente, ou
seja, como um acréscimo desnecessário para a produção dos sentidos de uma frase.
Contrariamente à elipse, que aparece como uma ruptura e que se deve
à falta de elementos explícitos, a incisa, assim como a proposição
incidente, provoca uma ruptura pela presença de elementos explícitos.
Estes são tidos por acessórios no caso da incidente (que interrompe
momentaneamente o curso da frase), pois não mudam em nada o
sentido da frase. No caso da incisa, entretanto, é acrescida uma
precisão importante. Esses elementos de ruptura não teriam a ver com
o conteúdo da proposição, mas com o seu autor ou com um “outro” de
quem o sujeito relata os propósitos. A inserção incidente coloca assim
(indiretamente ao menos) um problema oposto ao da elipse.
(HAROCHE, 1992, p.129).
Com essas palavras, Haroche nos lembra que, na incisa, há uma relação entre o
excesso de determinação e o sujeito que realiza esse gesto. Ou seja, o sujeito faz-se
33
presente no enunciado, determinando o que já está determinado, completo, sob a ótica
da sentença fechada nela mesma, que não contempla uma abertura para elementos
exteriores ao texto. A incisa seria, então, um lugar do sujeito fazer-se aparecer no texto,
e essa presença pode ser dispensada para a compreensão do enunciado; aliás, diríamos
que a incisa, na visão da gramática, é algo a ser combatido, sob a alegação de que ela
rompe com a linearidade do discurso. Tomo o seguinte enunciado para demonstrar esse
funcionamento:
(4) A despeito das manifestações em contrário, Lula é inocente, acredito eu.
A incisa está aqui presentificada pela inserção de expressões tidas pela gramática
como acessórias: “A despeito das manifestações em contrário” e “acredito eu”, que não
alteram o sentido da ideia principal: “Lula é inocente”. Portanto, pela incisa, o sujeito
aparece neste texto como aquele que tem uma opinião, ainda que esta não seja
consensual. Já que a incisa representa uma determinação nascida da opinião do sujeito,
a gramática tende a não dar-lhe a mesma importância que dá à elipse, ao ponto de não
tratá-la como um fato gramatical, mas sim como uma questão de estilo. Isso confirma a
estrutura e funcionamento da gramática, no sentido de não dar ao sujeito o poder de
determinar, a despeito da sua resistência. Já quanto à elipse, esta tem recebido atenção
especial por parte da gramática, dado o seu papel de “controlador” do gesto de
determinar.
2.2 TRANSITIVIDADE VERBAL EM GRAMÁTICAS BRASILEIRAS: UM CASO
DE COMPLETUDE E DE INCOMPLETUDE
Mais uma vez estimulado por um trabalho de Luiz Francisco Dias “Deficit” e
“superavit” de sentido nas gramáticas brasileiras dos séculos XIX e XX (s/d), no
processo de constituição do corpus de nosso trabalho, tomamos outras gramáticas
brasileiras desse mesmo período, com o intuito de observar a historicidade do conceito
“transitividade verbal”, bem como os efeitos de completude e de transparência que
produzem, e os processos de individualização do sujeito aí presentes.
Nesse artigo, Dias faz esse percurso por diferentes gramáticas, para discutir
como Evanildo Bechara adota posição diametralmente oposta na 37ª edição de sua
gramática, no que se refere ao objeto de estudo deste TCC, em termos de relações que
se estabelecem entre a sintaxe e a semântica. Ele mostra como, ao longo desses séculos,
34
a noção de transitividade verbal se apoiava ora em uma concepção de completude, ora
de incompletude da língua, analisando de forma detalhada a Moderna gramática
portuguesa de Evanildo Bechara em diferentes edições, evidenciando a mudança que se
opera em sua estrutura e funcionamento, rompendo, também, mais uma vez com esse
imaginário de conjunto de regras imutáveis.
A Moderna gramática portuguesa até a 36ª edição concebia o objeto direto e o
objeto indireto como algo que integra, ou seja, que torna íntegro o sentido do verbo,
adotando assim, o que Dias chama de uma concepção deficitária dos verbos transitivos.
Já na 37ª edição, essa gramática adota um conceito de predicação fundamentado numa
ideia oposta, uma concepção superavitária, ao conceber o objeto como um delimitador
semântico do verbo, na medida em que preceitua que a maioria dos verbos possui uma
extensão semântica ampla demais, a ponto de exigir um termo que represente uma
delimitação do sentido verbal.
Analisando gramáticas de Júlio Ribeiro, João Ribeiro, Maximino Maciel, Carlos
Góis, Eduardo Carlos Pereira, Said Ali, Rocha Lima e Celso Cunha, Dias observa que
geralmente elas partem do princípio de que há verbos de predicação completa e verbos
de predicação incompleta. Assim, todas as concepções gravitam em torno das noções de
integridade e completude. Na maioria dos casos, a incompletude é da órbita do sentido
ou do significado do verbo, e, em outros casos, é da órbita da participação do verbo na
predicação, ou seja, o verbo não se constitui incompleto na significação, mas na sua
condição de participante de um predicado que requer um objeto para integralização.
Como se daria essa sedimentação de descrições? Para responder a essa questão,
Dias retoma Auroux naquilo que diz respeito à gramática como uma tecnologia
intelectual.
Todo conhecimento é uma realidade histórica, sendo que seu modo de
existência real não é a atemporalidade ideal da ordem lógica do
desfraldamento do verdadeiro, mas a temporalidade ramificada da
constituição cotidiana do saber. Porque é limitado, o ato de saber
possui, por definição, uma espessura temporal, um horizonte de
retrospecção, assim como um horizonte de projeção (...) sem memória
e sem projeto, simplesmente não há saber.
(AUROUX, 1992, pp.
11-12 – grifos nossos)
Nessa reflexão, é importante, também, conforme o autor, pensar na relação entre
as descrições e os exemplos, quando se fala dessa sedimentação histórica do conceito.
35
Embora todos os gramáticos analisados por Dias falem de completude, uma
análise cuidadosa vai apontando para as diferenças, mostrando a especificidade da
autoria dos gramáticos, tema que, embora já tenha sido tratado por Orlandi (2002),
poderia ter seus desdobramentos em outros trabalhos.
Tomando, então, como sustentação teórica esse trabalho, o de Claudine Haroche
e demais autores antes trabalhados, delimitamos nosso corpus em torno das seguintes
gramáticas: Gramática da língua portugueza, de Laurindo Ribeiro (1872), Gramática
portugueza, de Francisco Sotero dos Reis (1871) e Grammatica Portugueza, de João
Ribeiro (1889).
A Gramática da língua portugueza, de autoria de Laurindo Rabelo (1872), foi
uma obra adaptada pelo Governo Imperial para uso das escolas regimentais do exército
e para o ensino dos aprendizes artilheiros. Esse compêndio define assim o verbo
transitivo:
É aquele, cuja significação ou recai sobre o próprio sujeito ou sobre
coisa ou pessoa dele distinta; exemplo: Antônio feriu-se, onde a
significação do verbo ferir cai sobre o sujeito Antônio. Francisco
quebrou a espada, onde a significação do verbo quebrar recai sobre a
espada, coisa distante do sujeito Francisco. (RABELO, 1872, p. 28).
Já a noção de complemento objetivo (que contemporaneamente se chama objeto
direto) é: “A coisa ou pessoa sobre que recai a ação do verbo transitivo” (RABELO,
1872, p. 28).
O que percebemos nesta gramática é que ela não utiliza o termo complemento ao
tratar da transitividade. Em vez disso, prefere trabalhar o termo recai. Ou seja, a
predicação é consequência de uma significação estabelecida pelo verbo, que ao se
articular com o sujeito gramatical determina o funcionamento da predicação. Nesse
sentido, o conceito apresentado pelo gramático não deixa margens para a participação
de elementos exteriores à língua na produção dos sentidos, pois esta se dá sempre em
relação ao verbo e o sujeito gramatical, o que se confirma com a noção de verbo
intransitivo: “é aquele, cuja significação não passa do sujeito que a exerce” (Idem,
ibidem).
Por outro lado, ao sujeito cabe o lugar central para a compreensão desse verbo
“recair”, ou seja, “cair novamente; voltar a um estado anterior que se deixara ou que
cessara; tornar a cair (sem culpa ou sem erro); tornar a adoecer da mesma moléstia etc”,
36
conforme o Dicionário do Aurélio (1975, p. 1194), em que se entrecruzam mais de uma
formação discursiva. E o que retorna (recai) está fora do sujeito.
Na Gramática portugueza, de Francisco Sotero dos Reis (1871), os verbos
transitivos e intransitivos integram a classe por ele denominada como verbo attributivo,
que, por sua vez, na concepção do autor, é “o verbo que se encontra unido ao attributo”.
Chama-se, transitivo, o verbo atributivo, quando passa a acção do
sujeito a outro sujeito diverso em que ela se emprega, e que se
denomina complemento directo ou objectivo do verbo. Exemplo:
“Pedro estuda a grammatica”. Neste exemplo, a acção exercida pelo
sujeito, Pedro, recae sobre, a grammatica, que é um sujeito diverso de,
Pedro, como é fácil verificar, mudando-se a oração para a passiva: “A
grammatica é estudada por Pedro”. (REIS, 1871, p. 94)
Aqui , o gramático toma um outro funcionamento diretamente ligado ao sujeito
para explicar o seu conceito, qual seja o da ativa e da passiva , como sendo uma mera
inversão. Prosseguindo, temos que aquilo que hoje a gramática chama de verbo
transitivo direto e indireto, Reis chama de verbo “transitivo relativo”, ou seja, relativo à
algo que será em cada enunciado explicitado, determinado (pelo sujeito?). Há, pois,
desdobramentos para marcar a determinação de forma clara, completa.
O verbo transitivo, pode ser ao mesmo tempo, relativo, quando, além
de complemento directo ou objectivo, pede um termo de relação, que
se denomina, complemento indirecto terminativo. Exemplo: “Dei um
livro a Pedro”. (REIS, 1871, p. 94)
O verbo intransitivo é, nessa mesma linha, classificado assim:
Chama-se, intransitivo, o verbo attributivo, quando não passa a acção
do sujeito para outro sujeito diverso. Exemplo: “José falou
admiravelmente”. N’este exemplo, a acção exercida pelo sujeito, José,
não passa para outro sujeito diverso; fica no mesmo que a exerce.
(REIS, 1871, p. 95 – grifo nosso)
Nota-se que, nesta gramática, transitividade verbal é pensada em relação ao
sujeito, ou seja, há uma articulação entre o verbo e o sujeito gramatical, deixando
mostrar a presença de um outro sujeito, que não o gramatical, atuando para que a ação
verbal se complete, se integralize, produzindo o efeito de completude, criando
condições para a transparência do sentido e desse sujeito gramatical, como fonte de seu
dizer. Como diz Pêcheux (2008):
37
E é neste ponto que se encontra a questão das disciplinas de
interpretação: é porque há o outro nas sociedades e na história,
correspondente a esse outro do linguajeiro discursivo, que aí pode
haver ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma
relação abrindo a possibilidade de interpretar. E é porque há essa
ligação que as filiações históricas podem se organizar em memórias, e
as relações sociais em redes de significantes (PECHEUX, 2008, p.
54).
A Grammatica Portugueza, de João Ribeiro (1889) chama a atenção,
dentre outras razões, por trazer logo na Lição 1 uma explanação sobre diferentes tipos
de gramáticas, a saber, Grammatica, Grammatica geral, Grammatica particular,
Grammatica histórica, Grammatica comparativa e Grammatica descriptiva. Isso indica
que o autor reconhece que uma abordagem dos fatos gramaticais não se dá sob o eixo de
apenas uma filiação teórica, embora o gramático se filie a uma teoria ao elaborar o seu
compêndio gramatical. No apêndice da Grammatica Portugueza (1889), o autor cita que
sua obra adota a Filologia como eixo de sustentação, ao dizer:
A minha intenção foi a de escrever um livrinho util e claro que
desaffrontasse a glottologia elementar do imminente descredito que, a
olhos profanos, parece entre nós ameaçal-a. O criterio historico, por já
não ser novidade, não necessita dos calamitosos excessos de alguns
dos seus propugnadores. Tudo o que ha, houve, e vem de longe ; é
tempo de olharmos para atraz, de desabusarmos-nos dos nossos
defeitos de revolucionarios. Hoje, com alegria o digo, é já impossivel
desterrar o critério philologico do estudo das linguas, realisado o
triumpho, convém que uma temperada sensatez o consolide tanto
quanto podem desacredital-o os desconcertos de varios devotos
errados. (RIBEIRO, 1889, p. 323-324-grifo nosso)
Concluímos, a partir desse excerto, que o autor procura filiar a produção dessa
gramática em uma teoria científica, denotando, assim, um posicionamento do autor no
sentido de distanciar-se da influência direta de Portugal na produção de gramáticas.
Assim, no que tange à transitividade verbal, observamos que Ribeiro emprega na
definição de verbos transitivos a palavra complemento, o que não ocorreu nas
gramáticas analisadas acima, de Reis e Rabelo. Ele define assim os verbos transitivos
(RIBEIRO, 1889, p. 97): “São aqueles que têm um complemento no qual se emprega
directamente a ação predicativa; amo a virtude”. Já os verbos intransitivos são “São os
que exprimem uma predicação por si só completa ou com um complemento indirecto:
durmo, vou a Roma” (p. 98).
38
Como podemos observar, ele mantém a questão da complementação ligada ao
verbo com “ação”, acrescida de um “directamente”: um advérbio transparente e, ao
mesmo tempo, profundamente opaco se pensarmos em termos de significação de cada
enunciado que se produza, deixando ao sujeito a opção, ilusória, de decidir sobre o que
é ou não direta ou indiretamente. O exemplo vem dar mais opacidade a essa noção, pois
referido, aí sim, diretamente ao sujeito em sua interioridade: “amo a virtude”.
Essas análises, embora breves, indicam que a questão da completude e
incompletude na descrição dos fatos linguísticos tem acompanhado também a história
da produção de gramáticas no Brasil, evidenciando não uma imperfeição ou incorreção
do gramático, mas justo o seu esforço teórico e metodológico de lidar com a falta, a
ausência, o dito e o não-dito, a exterioridade para construir um artefato de descrição e
instrumentação de uma língua dada que, imaginariamente, seja una. Lidar com o real da
língua e o real da história.
39
CAPÍTULO III
GRAMÁTICA: SUJEITO X LÍNGUA X HISTÓRIA
Os capítulos anteriores foram elaborados, tendo como referencial teórico de
leitura de arquivos, a Análise de Discurso (AD). Sentimos, contudo, necessidade de,
nesse momento, explicitarmos as noções trabalhadas, bem como outras que também
servirão como categoria de descrição e análise. Gostaríamos, ainda, de mencionar que a
AD é uma teoria e, ao mesmo tempo um dispositivo de análise a ser construído pelo
analista a cada pesquisa. É disto, pois, que trataremos nesta seção.
Para Orlandi (2007a), a AD propõe novas práticas de leitura, o que significa
dizer que, a partir da mobilização de conceitos advindos desse campo teórico, é possível
ir além das evidências de sentidos e da literalidade dos enunciados. Isso porque a AD
considera que a linguagem não é transparente, na medida em que possui uma relação
com a exterioridade, isto é, o processo de compreensão dos sentidos decorre de uma
relação entre o dizer e sua exterioridade, esta compreendida não como algo fora da
linguagem, mas como relação entre dizeres. Portanto, ao tomar como base de sua
constituição a Linguística, a História e a Psicanálise, a AD está considerando que nem a
história, nem a língua e nem o sujeito são transparentes, que não se pode pensar no
sentido como algo que está fixo em determinado lugar do texto (ou de um objeto
simbólico), e que há uma relação a compreender entre língua-história-sujeito.
Podemos
refletir
acerca
do
funcionamento
linguístico-discursivo
da
transitividade a partir do próprio conceito de discurso. Para Pêcheux (1990a, p. 80),
discurso é “efeito de sentido entre locutores”. Dito de outra forma, o discurso advém da
relação entre sujeitos, que por sua vez, não existem fora das práticas sociais, o que
significa dizer que os sujeitos produzem sentido a partir de dadas “condições de
produção”. Orlandi (2007a, p. 30-31) lembra que as “condições de produção”
compreendem em sentido estrito os interlocutores (eu/tu), o contexto imediato
(aqui/agora) e o contexto sócio-histórico (ideológico) mais amplo.
Em relação ao contexto histórico mais amplo, a exterioridade a que nos
referimos antes, temos a noção de “interdiscurso” compreendida como uma memória do
dizer. É aquilo que já foi dito em outros lugares, por outros sujeitos, em dadas
condições de produção e que são retomados no processo de significação, por meio de
40
uma memória. Para Pêcheux (2008, p.17), o “acontecimento discursivo”, um outro
conceito da AD, é o encontro de uma atualidade e uma memória. Portanto, existe um elo
estruturante das formulações entre memória discursiva e acontecimento discursivo, de
forma tal que não se fala de um sem entrar na órbita do outro. Isso quer dizer que,
pensando em nosso trabalho, quando o sujeito determina um verbo, completando-o
(acontecimento), ele recorre a uma rede de dizeres pré-existentes (interdiscurso), por
meio de uma memória, mesmo sem ter consciência disso. Processo esse que se dá pela
articulação sintático-semântica em e de uma língua.
Para Orlandi (2007a, p. 31), memória discursiva é “o saber discursivo que torna
possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está na
base do dizível, sustentando cada tomada de palavra”. Todo discurso já nasce apontando
para outros discursos, que por sua vez, também produziram sentidos porque se
inscreveram em outros discursos, e assim por diante. Pela memória, os dizeres são
remetidos a uma filiação de dizeres realizados ou realizáveis, isto é, aos ditos e aos nãoditos. Assim, segundo Orlandi:
“O dizer não é propriedade particular. As palavras não são só nossas.
Elas significam pela história e pela língua.O que é dito em outro lugar
também significa nas “nossas” palavras. O sujeito diz, pensa que sabe
o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os
sentidos se constituem nele. Por isso é inútil, do ponto de vista
discursivo, perguntar para o sujeito o que ele quis dizer quando disse
“x” (ilusão da entrevista in loco). O que ele sabe não é suficiente para
compreendermos que efeitos de sentidos que estão ali
presentificados”. (ORLANDI, 2007a, p. 32)
Quando diz, apenas uma parte do dizível lhe é acessível, uma vez que não tem
consciência de que ao falar, silenciou outros sentidos possíveis— silenciou, mas este
silêncio significa em suas palavras, ainda que ele não se dê conta disso.
A peça publicitária, que se segue, evidencia como se dá a produção de certos
efeitos de sentido pelo acionamento da memória discursiva, a partir de certas estruturas
e funcionamentos sintáticos e semânticos.
41
Trata-se de uma peça assinada pelo grupo ALMAPBBDO, uma agência de
publicidade que atua em âmbito mundial e que tem sede em Nova Iorque, com cerca de
287 agências em 77 países. A peça faz parte de uma campanha promovida pela
Propmark, site publicitário, que convidou sete grandes empresas de publicidade do
Brasil para, cada uma, criar um anúncio sobre “liberdade de expressão”. A medida foi
motivada por uma decisão judicial, em 1999, que impediu o Jornal O Estado de S. Paulo
de divulgar informações referentes ao inquérito da Operação Boi Barrica, da Polícia
Federal, que investigava o envolvimento de importantes políticos em esquema de
corrupção.
3
No meio publicitário, a proibição judicial soou como censura, tanto que
motivou a produção da peça.
Essas condições de produção apontam para um acontecimento discursivo, que
traz para um ato presente certa memória: a dos efeitos da ditadura militar no Brasil,
regime autoritário que perdurou dos anos de 1964 a 1985. Este período foi marcado pela
repressão e pela falta de democracia no país. Ora, essa experiência política passada, de
opressão e repressão, está presentificada na locução pela supressão de uma vogal “e” em
cada um dos substantivos, e na frase de alerta, em letras pequenas, abaixo da locução:
“Cuidado: Às vezes, começam a tirar e você nem percebe”. O fundo preto, contudo,
indica que o sujeito traz para o discurso, paradoxalmente, dizeres relativos a momentos
de repressão, sentidos contrários à liberdade de expressão desejada. Orlandi explica que:
...alguma coisa mais forte - que vem pela história, que não pede
licença, que vem pela memória, pelas filiações de sentidos
constituídos em outros dizeres, em muitas outras vozes, no jogo da
língua que vai-se historicizando aqui e ali, indiferentemente, mas
marcada pela ideologia e pelas posições relativas ao poder - traz em
sua materialidade os efeitos que atingem esses sujeitos apesar de suas
vontades. (ORLANDI, 2007a, p. 32)
Note-se que a inscrição dos nossos dizeres na história não é um processo do qual
o sujeito tenha consciência. Este, afetado pela história (ideologia) e pela língua, pensa
que aquilo que diz só pode ser dito daquela maneira, e não de outra, mostrando assim
que há uma memória e um “esquecimento” (noção de que trataremos em seguida) que
atravessam o sujeito e que o faz ter a ilusão de ser a origem dos sentidos. Assim, o
sujeito não se dá conta de que o dito em outro lugar também está produzindo sentido
neste enunciado.
3
Segundo http://noticiasriobrasil.com.br/?tag=operacao-boi-barrica.
42
A mensagem de alerta “Cuidado: Às vezes, começam a tirar e você nem
percebe” sugere que a decisão judicial que proibiu a divulgação dos dados da operação
policial pode ser o início de um processo histórico já vivenciado no país, já que o
funcionamento léxico e morfossintático da forma verbal “começam” – presente do
indicativo - aponta para o início de um processo. Com relação ao segundo e ao terceiro
verbo do enunciado, “tirar” e “perceber”, percebemos que cada um deles projeta um
espaço sintático que deve ser preenchido para que a sentença adquira um efeito de
completude: tirar o quê? perceber o quê?. Ou seja, há um espaço que a regência desses
verbos “indica/permite ser preenchido por um complemento, cuja ocupação não ocorre
de forma explícita, mas que o sujeito, na leitura, vai preencher para que a sentença
produza sentido. Esse espaço sintático está vazio, em silêncio, constituindo uma opção
do sujeito enunciador. É o que Dias (2011) vai chamar de “silêncio sintático”, que
permite que haja uma movimentação dos sentidos.
Assim, o fato de haver uma memória que aciona sentidos pré-existentes,
determinados historicamente, que vem pela estrutura e funcionamento da língua,
demonstra que no processo de produção de sentidos, há uma articulação entre sujeito,
história e língua.
Orlandi (2007a, p. 21) lembra que no discurso não há apenas transmissão de
informação, nem linearidade na disposição dos elementos na interlocução, nas trocas e
práticas linguísticas. Assim, não adotamos as categorias de emissor e receptor, mas a de
sujeito como posição de fala que realiza, ao mesmo tempo, um processo de significação.
Como diz Pêcheux (1990a, p. 82), que fique bem claro que os elementos A e B do
esquema de comunicação, “designam algo diferente da presença física de organismos
humanos individuais. [...] designam lugares determinados na estrutura de uma formação
social”, lugares esses representados nos processos discursivos, resultantes de formações
imaginárias.
Para a AD, o sujeito não é a fonte absoluta do sentido, pois é afetado pelo real da
língua, pelo real da história, pelo inconsciente e pela ideologia, todavia, acredita ser a
fonte absoluta do significado. Isso é efeito produzido pela ideologia, compreendida não
como conteúdo, mas como a direção que os sentidos tomam nos processos discursivos;
ou ainda, como o processo de produzir evidências. Ou seja, ao interpretar, o sujeito
pensa que os sentidos são evidentes, como se o sentido estivesse sempre no texto, dito
em outras palavras, o sujeito é afetado pelo efeito de evidência do sentido. Segundo
43
Orlandi (2007a, p. 47), essas evidências resultam de processos chamados “esquecimento
n° 1” e “esquecimento n° 2”, propostos por Pêcheux (1988), a que nos referimos
anteriormente.
Pelo esquecimento n° 01, o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz, razão
pela qual é chamado também de esquecimento ideológico.
Esse esquecimento reflete o sonho adâmico: o de estar na inicial
absoluta da linguagem, ser o primeiro homem, dizendo as primeiras
palavras que significariam apenas e exatamente o que queremos. Na
realidade, embora se realizem em nós, os sentidos apenas se
apresentam como originando-se em nós: eles são determinados pela
maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isso que
significam e não pela nossa vontade.(ORLANDI, 2007a, p. 35)
O outro tipo de esquecimento, o número 2, diz respeito ao fato de que o sujeito,
ao dizer, pensa que aquilo só pode ser dito exatamente com aquelas palavras, como se
existisse uma ordem direta entre pensamento/palavra/coisa.
Esse “esquecimento” produz em nós a impressão da realidade do
pensamento. (...) Mas este é um esquecimento parcial, semiconsciente e muitas vezes voltamos sobre ele, recorremos a esta
margem de famílias parafrásticas, para melhor especificar o que
dizemos. É o chamado esquecimento enunciativo e que atesta que a
sintaxe significa: o modo de dizer não é indiferente aos sentidos.
(ORLANDI, 2007a, p. 35)
O esquecimento é, pois, estruturante, ou seja, é condição necessária para a
produção dos sentidos. Pela via do esquecimento, aquilo que foi dito em dado momento,
produzindo sentido em determinadas condições de produção, é “esquecido”, é retomado
em condições outras, de forma que o sujeito tenha a impressão de ser a origem do
significado: o sujeito se identifica com aquilo, como se tivesse nascido nele.
O assujeitamento se dá pela língua: é com ela é que nos tornamos falantes e nos
inscrevemos em determinada sociedade. Para Orlandi (2007b), “quando nascemos, não
inventamos uma língua, entramos no processo discursivo que já está instalado na
sociedade e desse modo nos submetemos à língua, subjetivando-nos”. Assim, o
indivíduo se constitui como sujeito porque está submetido à língua, e esta, por sua vez,
só produz sentido porque se inscreve na história. Esse jogo entre língua e história é que
faz funcionar o discurso, tanto que afirmamos, neste TCC, que no processo de
interpretação de um objeto simbólico, necessário se faz trabalhar o sujeito em relação a
44
uma configuração específica, isto é, que se considere o sujeito numa dada formação
discursiva – aquilo que pode e deve ser dito a partir de determinada situação, de
determinada conjuntura (PECHEUX, 1988) - , referida às formações ideológicas, o que
permite que os seus dizeres sejam relacionados com outros dizeres já realizados
historicamente. Daí, o sentido decorre das diferenças entre esses, fazendo, inclusive, que
uma mesma palavra signifique diferente em/para sujeitos ocupando posições diferentes.
Contudo, essas posições, marcadas ideologicamente, já têm os seus sentidos
determinados historicamente, de forma que ao se inscrever no discurso, o sujeito é
atravessado por essas determinações.
A consequência do que precede é que toda descrição – quer se trate de
descrição de objetos ou de um arranjo discursivo-textual não muda
nada, a partir do momento em que nos prendemos firmemente ao fato
de que “não há metalinguagem” – está intrinsecamente exposta ao
equívoco da língua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível de
tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de
seu sentido para derivar para um outro (a não ser que a proibição da
interpretação própria ao logicamente estável se exerça sobre ele
explicitamente). Todo enunciado, toda sequência de enunciados é,
pois, linguisticamente descritível como uma série (léxicosintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo
lugar a interpretação. É nesse espaço que pretende trabalhar a análise
de discurso. (PÊCHEUX, 2008, p. 53)
Isso significa que não trabalhamos com os enunciados como dados empíricos,
mas como uma forma material em que se considera a língua como base para se chegar à
ordem simbólica, incluindo nela a história e a ideologia. Assim, como diz Orlandi
(1996, p. 46):
Na análise, não é a relação entre, por exemplo, sujeito e predicado
(SN e SV) que é relevante, mas o que essa organização sintática [essa
estrutura] pode nos fazer compreender dos mecanismos de produção
de sentidos (linguístico-históricos) que estão aí funcionando em
termos de ordem significante (ORLANDI, 1996, p. 46)
Nesse sentido, em relação ao assujeitamento, é importante não confundirmos
determinação e determinismo. Não somos pegos pela língua enquanto sistema empírico,
formal, mas, sim, pelo jogo da língua na história, na produção de sentidos, pela língua
como forma material, ou seja, a língua-e-a-história.
É isso que significa a determinação histórica dos sujeitos e dos
sentidos: nem fixados ad eternum, nem desligados como se pudessem
45
ser quaisquer uns. É porque é histórico (não natural) é que muda e é
porque é histórico que se mantém. Os sentidos e os sujeitos poderiam
ser sujeitos ou sentidos quaisquer, mas não são. Entre o possível e o
historicamente determinado é que trabalha a análise de discurso.
Nesse entremeio, nesse espaço de interpretação. A determinação não é
uma fatalidade mecânica, ela é histórica. (ORLANDI, 2007a).
E se ela é histórica, ela pode mudar e/ou permanecer, face a um sujeito que está
condenado a significar. Não se trata de um ritual sem falhas, como diz Pêcheux, pois a
língua não é um código, um sistema fechado para a AD. Assim, “na relação contínua
entre, de um lado, a estrutura, a regra, a estabilização, e, de outro, o acontecimento, o
jogo e o movimento, os sentidos e os sujeitos experimentam mundo e linguagem,
repetem e deslocam, mantêm e rompem limites”, diz Orlandi (2007a). Nesse sentido,
podemos falar em rupturas no processo de individualização do sujeito, podemos falar
em resistência do sujeito. Há, pois, uma tensão permanente, uma vez que os sentidos
são controlados e administrados historicamente em diferentes formações discursivas,
que enclausuram o sujeito em redes de significações. Resistências que, de acordo com
Pêcheux (1990b) se manifestam em:
Não entender ou entender errado; não “escutar” as ordens; não repetir
as litanias ou repeti-las de modo errôneo; falar quando se exige
silêncio; falar sua língua como uma língua estrangeira que se domina
mal; mudar, desviar, alterar o sentido das palavras e das frases; tomar
os enunciados ao pé da letra; deslocar as regras na sintaxe e
desestruturar o léxico jogando com as palavras... (PÊCHEUX, 1990b,
p. 17 – grifo do autor)
Nesse processo de dizer e não dizer, ou dizer para não dizer, trazemos uma outra
noção que importa na compreensão dos processos de significação: a de “silêncio”, tal
como formulado por Orlandi em seu livro As formas do silêncio (1992), não como
“resto da linguagem”, como algo não-dito, oculto, mas...
Silêncio que atravessa as palavras, que existe entre elas, ou que indica
que o sentido pode sempre ser outro, ou ainda que aquilo que é o mais
importante nunca se diz, todos esses modos de existir dos sentidos e
dos silêncios nos levam a colocar que o silêncio é “fundante”(...)
Assim, quando dizemos que há silêncio nas palavras, estamos dizendo
que: elas são atravessadas de silêncio; elas produzem silêncio; o
silêncio fala por elas; elas silenciam (ORLANDI, 1992, p. 14).
Para Orlandi (1995, p. 23-24), existem três tipos de silêncio: o “silêncio
fundador”, o “silêncio constitutivo” e o “silêncio local”, sendo que estes dois últimos
46
integram a categoria “política do silêncio”. O silêncio fundador é aquele que “existe nas
palavras”, que faz parte da palavra, de forma que ao dizer aquilo, existem outros
sentidos que são apagados: “a política do silêncio produz um recorte entre o que se diz e
o que não se diz, enquanto o silêncio fundador não estabelece nenhuma divisão: ele
significa em (por) si mesmo” (ORLANDI, 1992, p. 75).
Isso quer dizer que a “política de silêncio” está relacionada à censura, sendo que
o “silêncio local” é uma proibição de dizer, isto é, silencia-se para que outros sentidos
não apareçam, enquanto que o “silêncio constitutivo” é um não-dizer necessário para
que outros sentidos apareçam, considerando outras noções da AD como as de
incompletude, de dispersão, de equívoco, de contradição. O silêncio é condição
necessária para o movimento dos sentidos.
Isso para se pensar a transitividade, como um caso de determinação é algo
fundamental, pois o silêncio permite que o sujeito intervenha no processo de
significação, determinando o que está indeterminado, ocupando os espaços sintáticos
em branco, silenciados: um processo em que se manifesta o “silêncio constitutivo”,
objeto, pois, de nosso interesse particular, lembrando que:
O silêncio não é ausência de palavras. Impor o silêncio não é calar o
interlocutor mas impedi-lo de sustentar outro discurso. Em condições
dadas, fala-se para não dizer (ou não permitir que se digam) coisas
que podem causar rupturas significativas na relação de sentidos.
(ORLANDI, 1992, p. 105)
Portanto, a determinação produz um tipo de silêncio, relacionado à censura, à
proibição de que certos sentidos apareçam, em nome de uma política de silêncio.
Tomemos a peça abaixo, assinada pelo Governo do Estado de Santa Catarina.
47
Trata-se de apelo feito pelo Governo do estado, no sentido de diminuir os casos
de exploração sexual de crianças e adolescentes naquela Unidade da Federação. As
sentenças que compõem a peça são:
(1) Faça turismo, mas não abuse.
(2) Denuncie.
A primeira frase é um período composto, em que são empregados duas formas
verbais. A primeira, “faça”, traz o objeto direto já determinado. A segunda, porém,
projeta um espaço sintático a ser ocupado, mas essa ocupação não ocorre. Trata-se de
um tipo de silêncio que permite a relação do discurso do turismo com o discurso da
exploração sexual. Como o objeto indireto, projetado pelo verbo “abusar”, não foi
preenchido, os sentidos podem movimentar-se, ou seja, no processo de determinação, o
sujeito pode ocupá-lo com as expressões “das crianças”, “dos adolescentes” ou “do
turismo”.
Como se percebe, silêncio não é ausência de sentido, mas é um não-dito que
funciona no processo de produção de sentidos. A relação entre o não-dito e aquilo que
foi dito, em uma análise dada, é estabelecida graças à memória, à inscrição da língua na
história, sem deixar de considerar que esta relação tem seus limites impostos pela
formação discursiva. Em AD, o sentido não está no texto em si, mas na relação com
outros textos, com outros discursos, bem como em relação às posições ocupadas pelos
sujeitos e seus efeitos ideológicos.
48
CAPÍTULO IV
TRANSITIVIDADE VERBAL: ALÉM DA TRANSPARÊNCIA DA
LINGUAGEM E DA CONSCIÊNCIA DO INDIVÍDUO
As análises que sucederão, de conformidade com o dispositivo analítico que
vimos construindo, apoiam-se teoricamente, pois, na História das Ideias Linguísticas, na
Análise de Discurso, considerando de forma especial os trabalhos de Luiz Francisco
Dias que, embora seja da Semântica da Enunciação, utiliza conceitos da Análise de
Discurso nos pontos que nos interessam neste trabalho. Os recortes feitos incidiram
sobre a transitividade verbal, em sentenças de peças publicitárias, disponibilizadas na
internet, o que nos permitiu também compreender um pouco do discurso da publicidade,
que sustenta fortemente o funcionamento da sociedade de consumo.
Como vimos no capítulo inicial deste TCC, a concepção de gramática pode
variar, conforme a filiação teórica. Para Dias (2000), a gramática possui três dimensões:
a orgânica, a histórica e a pedagógica. A “dimensão orgânica” tem como principal
característica sustentar-se sobre um corpo de conhecimentos sobre a língua que aspira à
completude, abrindo mão, para tanto, do detalhamento da abordagem linguística em
busca dessa visão integral da língua. Dimensão esta que se liga à “dimensão histórica”,
uma vez que esse corpo de conhecimento resulta de um processo complexo e secular de
constituição de um saber gramatical em diferentes línguas, conforme se pode ver em
nosso capítulo inicial. Esse conhecimento sobre as línguas, produzido da perspectiva
gramatical, sempre esteve ligado, de diferentes modos, ao processo de escolarização, às
demandas sociais e políticas de uma sociedade, no que se refere à formação de seu
cidadão. Assim, é compreensível que, ao aspirar à completude, ao construir essa visão
integral da língua, a gramática permite que se ofereça a professores e alunos um
instrumento linguístico que, imaginariamente, trata de uma língua como um todo.
A Análise de Discurso, com seu dispositivo teórico de leitura e de interpretação
de arquivos, irá possibilitar a articulação entre essas três dimensões, propostas por Dias,
partindo do fato de que a linguagem tem sua materialidade, que para significar tem que
se inscrever na história. Assim, a gramática é um instrumento sobre o qual está
assentado um nível de detalhamento suficiente dos fatos de língua em uma estrutura que
funciona no sentido de produzir esse efeito: o de que é um compêndio completo, que
49
trata de forma abrangente os fatos linguísticos. Nesse sentido, um fato linguístico se
sustenta no plano da organicidade e no plano do discursivo. No campo específico da
transitividade verbal, isso significa que a projeção dos lugares sintáticos pelos verbos é
decorrente de uma regularidade presente na estrutura e funcionamento da língua como
sistema, na busca de uma completude, ao não deixar espaços em branco, não-ocupados.
No entanto, as condições de ocupação desses espaços estão no plano do discurso, que
concebe a produção dos sentidos como um acontecimento, em que campos de memória
se relacionam com uma atualidade.
Tratar a sintaxe sob a perspectiva discursiva significa admitir que existe uma
articulação entre uma unidade sintática dada e outras unidades, em outros domínios de
enunciação da língua, ou seja, os elementos que participam de uma oração articulam-se
com outros que participaram de outras orações, de forma que podemos dizer que quando
constituímos uma unidade, há necessariamente uma forma de enlace entre os elementos
desta e os que já participaram de outras unidades. Como analistas de discurso, diríamos
que há um processo de intertextualidade e de interdiscursividade acontecendo aí.
Para tratar dessas relações, Dias (2012) traz alguns conceitos, com os quais
trabalharemos em nossas análises, como os de “força de retrospecção”, “força de
prospecção” e “saturação referencial”, junto com outros advindos da AD.
A força de retrospecção se refere à capacidade de captação de referenciação em
cenas anteriores (ou outros enunciados) e transferência desta para uma cena atual (ou
enunciado atual), isso porque o discurso resulta de relações de apontamentos, de forma
que um discurso atual é sustentado por outros discursos já realizados, assim como
delineia Orlandi:
Todo discurso é visto como um estado de um processo discursivo
mais amplo, contínuo. Não há, desse modo, começo absoluto nem
ponto final para o discurso. Um dizer tem relação com outros dizeres
realizados, imaginados ou possíveis (ORLANDI, 2007a, p. 39)
A relação que se estabelece entre os dizeres, como já dissemos neste TCC, é
resultado do acionamento da memória, que possibilita que os ditos objetos verbais
sejam ocupados com base em dizeres que se realizaram em outros tempos e outros
lugares. Para explicitar como se dá essa relação de apontamentos entre discursos,
tomarei os enunciados que se seguem, em que um mesmo verbo projeta um espaço
50
sintático denominado objeto, em diferentes enunciados, recebendo, contudo, diferentes
determinações:
(a) Comprei um apartamento
(b) Comprei uma briga no trânsito
(c) Comprei tempo para estudar
(d) Comprei e não dei conta de pagar
Em (a), (b) e (c), notamos que existe uma regularidade no funcionamento do
verbo, que é a sua capacidade de projetar um lugar sintático, tradicionalmente
classificado como objeto direto. Vale lembrar que, quando nascemos, a língua já existia,
e nós é que nos submetemos a ela, o que significa dizer que somos sujeitos afetados pela
língua em sua estrutura e funcionamento, com todas suas significações em sua
opacidade, em sua capacidade de renovar os enunciados e de permitir que o sentido seja
mais de um, mas não qualquer um, pois há a determinação histórica. Dessa forma, o
verbo “comprar”, nos enunciados acima, é um item lexical que tem um funcionamento
já determinado historicamente, mas, como elemento linguístico, dispõe de uma abertura
que permite que o sujeito com ela se signifique e ressignifique, e este, afetado pela
língua, faz uso das palavras, acreditando ser a fonte do seu discurso. Por conseguinte, ao
determinar o lugar sintático objeto direto, o sujeito, sem o perceber, está trazendo para o
seu discurso uma determinação já realizada em outros discursos, constituindo estes uma
rede de dizeres, que é o que em AD se chama interdiscurso
Assim, em (a), o verbo “comprar” se articula com dizeres advindos do discurso
comercial, caracterizado pelas operações de compra e venda. Em (b), os sentidos
adquiridos por esse mesmo item lexical advém de outros domínios de referência, já que
o objeto direto “briga” não é um produto que esteja à venda, ou possa ser negociado.
Em (c), a memória aciona dizeres que vão ao encontro do ritmo frenético de vida da
sociedade contemporânea, que exige que se “compre” inclusive o tempo, no sentido de
reorganizar as atividades, de forma que parte deste tempo seja destinada a estudar.
Já em (d), observamos que existem dois verbos, e que o fato de estes não
estarem determinados não quer dizer que não haja relações de apontamentos. A força de
retrospecção, nesse caso, se dá na medida em que a memória aciona o discurso do
consumismo, caracterizado pela compulsão de consumo desenfreado, motivado pelas
relações econômicas de uma dada sociedade, que promove e difunde a ideia de que é
preciso renovar seus bens de consumo, atualizar seus equipamentos de comunicação,
51
cada vez que novas linhas são lançadas. Esse comportamento se reflete nos altos índices
de inadimplência. Filiado a essa formação discursiva, o enunciado (d) adquire sentidos
que fazem com que o espaço sintático objeto direto possa ser preenchido assim:
(e) Comprei [mais do que podia pagar], e [como era de se esperar] não dei conta
de pagar[aquilo que comprei por compulsão].
Ou seja, em (d), não existe um referente específico que venha à tona por meio da
determinação do objeto direto, assim como havia em (a), (b) e (c), mas há uma
articulação sintática entre as duas orações do enunciado, de forma que a segunda oração
serve como referência para a significação da primeira, e a memória funciona na medida
em que ela associa o “não dar conta de pagar” com o “comprar”, fazendo com que
comprar adquira este sentido e não outros. Como percebemos, não existe dizer que não
se inscreva na história, sendo esta regularidade o que faz com que as palavras adquiram
diferentes sentidos.
Existem também outras formas de apontamentos, que ocorrem entre enunciados
que participam de uma mesma cena, assim como acontece com os enunciados das peças
publicitárias. Nestas, as relações de sentido são regidas tanto pela “retrospecção” quanto
pela “prospecção”. Esta última ocorre quando a ocupação do objeto não é afetada pela
força de retrospecção. Mas, em todo caso, a memória vem à tona, como condição para
os apontamentos.
Para explicar como se dá isso, simulamos o seguinte diálogo:
(1) Eu comprei um apartamento.
(2) Eu sei que você comprou.
(3) Você sempre compra, mas nunca dá conta de pagar.
A ocupação do objeto verbal em (2) se dá pela força de retrospecção, que torna
possível que haja a captação de referência de (1), criando-se uma elipse, o que faz com
que os objetos sejam convergentes em (1) e (2). Assim, o lugar objeto pode ser
preenchido com:
[apartamento]- Ela comprou o apartamento, mesmo sem dinheiro.
[o]- Ela comprou-o, mesmo sem dinheiro.
[ele]- Ela comprou ele, mesmo sem dinheiro.
52
O que podemos depreender disso é que a ausência de complemento explícito em
(2) dá ao sujeito uma liberdade ilusória de determinação; ilusória porque a determinação
só pode se dar com elementos que estão explicitamente colocados na própria cena da
qual este enunciado participa. Trata-se da elipse, que como vimos neste TCC, funciona
na gramática como um “limitador” de determinações, na medida em que, segundo
Haroche:
A noção de elipse constitui, de certo modo, o ponto fraco do edifício
conceptual da sintaxe. Ela coloca com efeito de forma crucial o
problema de uma teoria da articulação da gramática com seu exterior,
mas ao mesmo tempo a especificidade desta. Enunciado formalmente
incompleto, mas do qual a linguística pressupõe o caráter acabado do
ponto de vista do sentido, a elipse é o ponto em que se encontram
linguística e ideologia. (HAROCHE, 1992, p. 317)
A elipse é, nas palavras de Haroche, um mecanismo de identificação do sujeito
pela língua e pela gramática, lugar em que o sujeito experimenta uma liberdade e, ao
mesmo tempo, um assujeitamento. Portanto, em se tratando de elipse, seu
funcionamento se dá nesse sentido: é uma falta necessária, mas que não é uma
indeterminação, de forma que o sujeito, ao determinar, acredita ser a origem do sentido,
mas está apenas transferindo uma unidade lexical de um campo linguístico para outro.
Contudo, em (3), não opera mais uma força de retrospecção, mas, sim, uma
prospecção, ou seja, a sentença não se atualiza com base em (1). O objeto em (1) não
funciona como suporte referencial para a ocupação do lugar objeto em (3), onde o verbo
“comprar” funciona apenas como tema, sem um referente explícito, já que
“apartamento” está fora da cena. Portanto, não há convergências de objetos em (1) e (3),
assim como havia em (1) e (2). Em (3) opera a “prospecção referencial”, o que faz com
que o enunciado adquira uma autonomia em relação a (1) e (2). Neste diálogo, já que a
gramática aspira à completude, o sujeito procura determinar, mas a memória não aponta
mais para os objetos verbais de (1) nem de (2). Logo, o sujeito mais uma vez
experimenta a liberdade da determinação, mas os sentidos atribuídos às suas
determinações estarão sempre orbitando, neste caso, no espaço significante do
consumismo da sociedade contemporânea, pois é para onde a memória faz apontar.
Há que se dizer ainda que o enunciado (1) não é afetado nem pela força de
prospecção nem pela força de retrospecção, por tratar-se do enunciado que instala a
cena enunciativa. Dessa forma, dizemos que a memória sempre se faz presente nos
enunciados, no processo de determinação, ou seja, de preenchimento dos objetos
53
verbais, quer neste processo atue a prospecção, quer atue a retrospecção. Isso nos leva a
refletir sobre a relação necessária entre sujeito x história x língua, pois o sujeito
intervém no texto, afetado pela ideologia e pela língua; e pela memória, inscreve seus
dizeres numa rede de significações pré-existentes. Dessa forma, em (3) a cena se fecha,
sob a forma de uma construção temática, e aí percebemos que, pela memória,
estabelecem-se outros apontamentos, como os seguintes:
(4) Não te metas a comprar o que não podes pagar.
(5) Devo, não nego, pagar, não posso.
(6) Devo, não nego, pago quando puder.
Em todo caso, há um trabalho de memória regendo o funcionamento sintático,
na medida em que as regularidades que até aqui descrevemos são fruto de uma relação
entre atualidade e memória. Sob esta perspectiva, há uma relação de apontamento, que
consiste na maneira como a memória discursiva participa da atualização do enunciado,
de forma que os silêncios, os não-ditos, as ambiguidades constituem-se em “aberturas”
que possibilitam os apontamentos, por meio da memória. Isso porque todo enunciado
apóia-se num dizível historicamente constituído, o interdiscurso, como já dissemos.
A atualização dos enunciados é o que, neste TCC, estamos chamando de
“ocupação do espaço sintático objeto”, projetado pelos verbos, e que a tradição
gramatical denomina “verbos transitivos”.
As peças publicitárias, que se seguem, serão analisadas com base nessas
noções/conceitos até aqui trabalhados. Tomemos inicialmente a seguinte peça
publicitária:
(fonte: https://www.educandoemtransito.blogspot.com)
54
Trata-se de uma peça que faz parte de uma campanha lançada no dia 30 de junho
de 2011, pelo Governo Federal, com o objetivo de reduzir as ocorrências de acidentes
de trânsito4. Sob a perspectiva do acontecimento discursivo (encontro de uma atualidade
e uma memória), trata-se de uma sentença que produz seus sentidos por meio da
chamada atualização. Dito diferente, os três verbos que participam deste enunciado já
participaram de outras sentenças, em outros lugares, mas, aqui, sob condições de
produção específicas, estão significando diferente. Inicialmente, em letras menores, traz
uma frase: “A dor de um acidente pode durar para sempre”. Em seguida, em
maiúsculas, constituído o centro do cartaz, temos três verbos no imperativo:
Pare
Pense
Mude
Para a AD, o sentido não existe em si, mas decorre das posições ideológicas
presentificadas no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas.
(ORLANDI, 2007a, p. 42). Assim, para que possamos compreender os sentidos
produzidos pela peça, necessário se faz que situemos cada um dos verbos, bem como a
frase que inicia a cena, em relação às formações discursivas – aquilo que pode e deve
ser dito – já que, numa perspectiva discursiva, as palavras mudam de sentido segundo as
posições dos sujeitos que as empregam, dentro de uma conjuntura sócio-histórica dada.
A frase “A dor de um acidente pode durar para sempre” remete-nos às
consequências advindas da violência no trânsito, caracterizada pelos casos de graves
acidentes, que em inúmeras vezes ou causam a morte das vítimas ou as deixam com
eternas sequelas físicas e/ou emocionais. Este enunciado, junto com os demais
elementos que constituem a peça publicitária, tais como os símbolos de uma mão em
sinal de PARE e o próprio fato de os enunciados estarem assentados num tipo de
suporte específico (bolsa de sangue) e estar assinada pelo Governo Federal, servem de
referência para a ocupação do objeto verbal projetado pelos verbos da peça.
O primeiro verbo, “parar”, remete-nos às próprias funções institucionais dos
órgãos reguladores de trânsito do país, que são imbuídos de autoridade para determinar
os comportamentos admissíveis e inadmissíveis no trânsito, inclusive aplicando multas
e sanções àqueles que descumprem a lei. A memória faz-nos relacionar esse item lexical
4
Segundo http://www.paradapelavida.com.br/campanhas/pare-pense-mude-junho-de-2011.
55
ao sinal de trânsito, associado à cor vermelha. Esse domínio de referência é resultado de
uma relação de apontamento, na medida em que sabemos que, nos semáforos, esse sinal
ocupa a primeira posição, de cima para baixo, assim como na peça em análise. Mas, é
especialmente em relação às condições de produção que a memória projeta tal
enunciado a este domínio de referência específico. Em sentido estrito (contexto
imediato), as condições de produção compreendem um país com elevado número de
mortes no trânsito, em que o excesso de velocidade, a imprudência e a embriaguês ao
volante são os elementos apontados pelo Governo como as principais causas,
silenciando, porém, outras causas advindas da inércia ou da má execução dos serviços
administrativos do Estado, tais como as vias mal pavimentadas, o precário sistema de
transporte coletivo e a falta de sinalizações adequadas nas estradas.
Já com relação ao segundo verbo, “pensar”, a que domínio de referência
podemos remetê-lo? Como se dá a articulação sintática desse verbo? Ora, podemos
relacionar esse item lexical com o conhecido postulado de René Descartes: “Penso, logo
existo”. Esse postulado dominou muito tempo a história do pensamento, de forma que
ele chega até nossos dias, como um dito que significa em diferentes domínios de
referência, sempre ligado ao sujeito como um ser racional, um sujeito do conhecimento,
em oposição a um sujeito irracional, não civilizado. A frase nos faz pensar num sujeito
jurídico, que se submete ao Estado pelas leis, e que se reconhece por meio de seus
próprios atos, sujeito este capaz de controlar seus pensamentos, suas ações, e,
consequentemente, capaz de se responsabilizar por seus atos. A memória acionada para
o sujeito-cidadão é a de que ele é dotado da capacidade de tomar decisões conscientes,
já que o homem é pensante, é centro do conhecimento. A ocupação do objeto se dá,
portanto, com vistas a esse funcionamento, em que o Estado controla e individualiza o
sujeito, pela língua, pelos textos da lei, na medida em que este se reconhece como um
sujeito jurídico. Assim, passamos a ter as seguintes possibilidades de determinação do
objeto indireto, projetado pelo verbo em tela:
Pense [nas consequências de suas ações no trânsito]
Pense [nas leis]
Por seu turno, o último verbo, “mudar”, também projeta um lugar sintático
objeto, cuja ocupação corresponderia à possibilidade dada a cada um de, apesar de todos
os problemas anteriormente mencionados relativos às mortes no trânsito, mudar essa
56
situação. Nesse sentido, o sujeito talvez tente atualizar a sentença, pela ocupação do
lugar projetado para o objeto direto, da seguinte maneira:
Mude [de atitude]
Mude [as estatísticas]
Mude [essa realidade]
Logo, em qualquer tentativa de determinação do verbo, ter-se-á uma ação que
cabe ao cidadão, e não ao Estado. Este é quem tem que mudar, é o responsável pelas
tragédias presenciadas no trânsito no país. Dessa forma, a sentença não deixa de ser
assim expressa:
[Que você] Mude
Este acontecimento discursivo se inscreve na história. Esse é o lugar ocupado
historicamente por esse sujeito, o Estado, um sujeito que administra os sentidos por
meio de seus discursos, de suas políticas públicas, de seus instrumentos de
comunicação. Nesse discurso – efeito de sentidos entre locutores –, o cidadão é
administrado ao se colocar determinado funcionamento da língua em movimento, que
produz o efeito de liberdade frente à determinação e às decisões políticas do Estado.
O assujeitamento, ligado à ambigüidade do termo sujeito (este com
efeito significava tanto livre, responsável, quanto passivo e submisso),
exprime bem esta “ficção” de liberdade e de vontade do sujeito: o
indivíduo é determinado, mas, para agir, ele deve ter a ilusão de ser
livre mesmo quando se submete. (HAROCHE, 1992, p.178)
Dessa forma, as campanhas governamentais parecem sempre querer fazer
lembrar que o cidadão é o responsável pela resolução de problemas sociais. Na
determinação do sujeito sintático, vemos o silêncio significando, porquanto na
determinação deste espaço só se admite uma única ocupação, o que apaga,
necessariamente, outros sentidos que iriam ao encontro da responsabilização do Estado
pelo quadro de ocorrências de acidentes de trânsito no país.
[Que você] Pare
[Que você] Pense
[Que você] Mude
57
Analisemos agora outra peça publicitária, criada em 20115 e assinada pelo
Governo do Estado de Santa Catarina, nos atendendo à sentença inicial.
(fonte: https://www.exame.abril.com.br)
Para que possamos entender como o discurso é construído nesta peça em tela,
vamos , primeiramente, recorrer ao que Dias (2012) afirma sobre uma regularidade no
funcionamento dos verbos “plantar” e “colher”, quando ambos aparecem colocados
sequencialmente, assim como ocorre nesta peça que estamos analisando:
Na medida em que o texto mínimo passa a habitar em outro texto, os
lugares sintáticos de objeto adquirem atualidade, justamente na
relação com a memória desses lugares: “plantar X colher Y”, sendo X
o traço de uma base e Y o traço de uma proporcionalidade em relação
a X. Em “quem planta vento, colhe tempestade”, temos um bom
exemplo dessa proporcionalidade que “tempestade” apresenta em
relação a “vento”, ambos representações alegóricas. Esses seriam os
traços da memória que atravessam os lugares objeto agregados a
plantar e colher, quando em relação associativa do tipo “Plantou,
colheu” (DIAS, 2012)
Neste caso, as relações de apontamento estão em consonância com uma
característica da microssintaxe, que considera que o funcionamento linguístico abarca
dois níveis de combinatória, sendo que um dos níveis mantém uma relação de
apontamento em relação ao outro.
5
Segundo http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/governo-de-sc-mostra-plantio-de-moedas-emcampanha.
58
Toda interação verbal coloca em causa um conjunto evolutivo M
(memória discursiva, saber compartilhado), contendo as informações
que, em cada momento, são validadas pelos interlocutores. No
decorrer da realização verbal eles operam revisões, transformações,
incrementações, etc, em M, que visam a levar M a um estado estável,
capaz de satisfazer as partes envolvidas no processo enunciativo. O
discurso nada mais é do que o traço de ‘reciclagem’ da informação
(BERRENDONNER, 1990, apud DIAS, 2012)
Os dois verbos, “plantar” e “colher” participam articulatoriamente da sentença,
apoiando-se em uma memória de participação em outra sentença, qual seja:
(1) Quem planta vento colhe tempestade
Esta, por sua vez, aponta para a seguinte:
(2) Tudo o que se planta, colhe
Neste caso, a memória está projetando para este discurso dois verbos que
apresentam certa regularidade de funcionamento, que é a capacidade de projeção de
objetos, que nesta formação discursiva significam aquilo que nos outros enunciados de
que já participaram talvez não tenham significado.
A capacidade de prospecção
referencial é que faz renovar os discursos, de forma que “a ocupação do objeto aponta
para uma relação de apontamento que relaciona um campo de memória à atualização do
enunciar” (DIAS, 2012). No entanto, os objetos verbais já se apresentam preenchidos,
determinados, de forma que questionamos em que sentido é que se dá a atualização. Ou
seja, em outros enunciados, o lugar objeto não é preenchido, e a sua ocupação se dá por
uma força de retrospecção, que faz a sentença ser atualizada com base em outros
domínios de enunciação, em outros dizeres, mas aqui o objeto já veio ocupado.
No caso de nossa peça publicitária, podemos depreender, então, a partir da
constituição das sentenças, que os interlocutores apropriam-se de informações
presentificadas por meio da memória discursiva, e as atualizam, transformam,
incrementam, para a satisfação de uma dada necessidade, que no caso em tela, é
oferecer empréstimos para agricultores e psicultores de Santa Catarina. Assim, a
sentença “Quem planta investimento colhe competitividade” traz à cena enunciativa um
sujeito (o Estado) que quer mostrar que está investindo no campo, sob a forma de
concessão de empréstimo, a juro zero, aos produtores rurais daquele Estado da
Federação. Observamos também os sentidos produzidos pelo dito “efeito metafórico”
presente na sentença, conceito advindo da AD, que é assim definido por Pêcheux:
59
Chamaremos efeito metafórico o fenômeno semântico produzido por
uma substituição contextual, para lembrar que esse “deslizamento de
sentido” entre x e y é constitutivo do “sentido” designado por x e y.
(PÊCHEUX, 1990a, p. 96)
Pelas palavras de Pêcheux, compreendemos que o efeito metafórico refere-se a
uma “transferência” ou “deslocamento” de sentido, provocado pela substituição de uma
palavra esperada por uma outra. Literalmente, não se planta “investimento”, tampouco
se colhe “competitividade”, mas essa substituição de uma palavra esperada por outra
produz determinados efeitos de sentido em uma atualidade: a da sociedade capitalista
centrada no consumo, que se “planta” de modo globalizado pela competitividade entre
empresas. Como os verbos “plantar” e “colher” indicam uma linearidade entre uma ação
realizada e uma consequência a esta proporcional, logo compreendemos que os objetos
verbais “investimento” e “competitividade” estão colocados um em relação ao outro,
produzindo sentidos a partir dessa articulação que se estabelece entre eles. Dessa forma,
competitividade, lucro, sucesso no agronegócio é consequência direta do investimento
que o Governo está fazendo,produzindo, assim, o efeito de que se está administrando
com eficiência os potenciais daquela Unidade da Federação. Quando esse enunciado é
remetido a uma formação discursiva específica, as palavras adquirem sentidos outros,
mostrando, assim, que elas não têm sentido nelas mesmas, mas derivam seus sentidos
das formações discursivas em que se inscrevem. (Orlandi, 2007a, p. 43)
Buscamos mostrar, aqui, que, mesmo quando os lugares objeto já vêm ocupados,
essas palavras que estão ali colocadas no lugar do objeto direto estão produzindo
sentidos pela via da memória, que remete os dizeres em tela a todo um conjunto de
dizeres, que remetem ao que chamamos de político, de ideologia, ou seja, da direção
dada aos sentidos e à constituição de posições de sujeito: quanto mais o produtor rural
lucra, mais impostos ele tem de pagar ao mesmo Estado que lhe emprestou dinheiro a
juro zero.
Todavia, queremos demonstrar agora como se dá o trabalho de memória, nas
relações de apontamento, em sentenças em que o lugar objeto não vem ocupado. Para
isso, analisaremos outra peça publicitária.
60
(fonte: https://www.eleições.uol.com.br)
A peça foi criada por iniciativa de profissionais do meio jornalístico e do meio
publicitário, em 2012, com o intuito de conter a sujeira provocada pelas propagandas
eleitorais impressas, que poluem as cidades, durante as campanhas eleitorais.6 Quando
nos concentramos nos verbos que participam em cada uma das orações, concluímos que
há uma articulação sintática regendo o seu funcionamento. Para demonstrar isso,
podemos dividir as quatro orações em dois blocos: B1 e B2
Em B1 temos:
(a) Candidato que suja a cidade
(b) Não merece seu voto
Embora se trate de um período composto, em que “Não merece” seu voto
funciona como a sequência da oração principal, que foi intercalada por uma oração de
natureza adjetiva, aqui nós as separamos por questões de descrição e análise.
Em B2 temos:
(c) Quem suja agora
(d) Vai sujar depois
6
Segundo http://eleicoes.uol.com.br/2012/noticias/2012/07/06/internautas-criam-campanha-contra-lixoeleitoral.html.
61
Não obstante as duas orações participarem de uma sequência enunciativa, já que
“Quem suja agora” funciona como sujeito de “Vai Sujar”, a separação, aqui, se justifica
pela maneira como as duas sentenças estão dispostas: separadamente.
Em B1, os dois verbos, “sujar” e “merecer”, estão com os objetos verbais
ocupados. O mesmo não acontece em B2. Em (c), o verbo “sujar ‘aponta para um
referente específico: “cidade”. Mas é somente quando este referente se articula com o
referente da segunda oração, “voto”, que nós conseguimos montar a cena, ou seja, o
verbo “sujar” adquire um sentido outro quando relacionado a “merecer voto”, tendo em
vista a formação discursiva a que foi remetido. Dessa forma, “sujar”, em (c), significa
“espalhar pela cidade panfletos com propaganda partidária, de forma irregular”, e as
imagens nos ajudam a remeter as sentenças para esta formação discursiva específica.
Mas há aí um trabalho de memória, porquanto sabemos que, historicamente, sujar a
cidade é uma prática recorrente durante as campanhas eleitorais.
Na enunciação, na produção dos efeitos de sentido, o funcionamento linguístico
é considerado em relação á memória, tanto que Dias (2012) afirma que o acontecimento
só é fato de linguagem porque a memória intervém:
Um acontecimento adquire pertinência social, tornando-se um fato de
linguagem, na medida em que a dimensão da memória entra em
relação com a atualidade do dizer, isto é, com o ato mesmo de
enunciar. Nessa direção, os traços do que significou em outro tempo e
lugar passam a ser reorganizados na atualidade da enunciação. (DIAS,
2012)
Em B2, a regularidade no funcionamento dos dois verbos que integram as
sentenças é no sentido de que, cada um projeta um lugar objeto, mas, ao contrário do
que ocorreu em B1, agora esses lugares não estão ocupados. Mais interessante ainda é o
fato de que, conquanto o mesmo verbo participe de ambas as sentenças, eles não
acionam os mesmos traços de memória. Vejamos isso:
Como já vimos, em “Quem suja agora”, a memória aciona “cidade”. Ou seja, a
articulação sintática desta sentença aponta para o domínio de referenciação apresentado
em (a), já que há uma força de retrospecção atuando nesse enunciado, fazendo com que
o lugar sintático de objeto de (c) seja preenchido com o mesmo elemento que preencheu
o de (a), de forma que temos:
(a) Candidato que suja a cidade
(c) Quem suja [a cidade] agora
62
Já em “Vai sujar depois”, há também uma força de retrospecção, mas no espaço
sujeito sintático, ou seja, o sujeito que suja “agora” é o mesmo sujeito que “vai sujar
depois”. Entretanto, na ocupação do lugar objeto, ou seja, para determinar o objeto
direto em(d), a memória não aciona o mesmo objeto direto colocado em (a). Isso
porque, pela memória, sabemos que sujar se inscreve na história, de onde esta palavra
obtém certos sentidos, que não são os mesmos produzidos quando remetidos a certas
formações discursivas. Não há traços de memória que nos remeta a um domínio de
enunciação em que após ser eleito, o candidato “vá sujar a cidade”. Isso quer dizer que
na significação da palavra “sujar”, em (d), há um deslocamento de referenciação, já que
o verbo passa a convocar um lugar diferente, de forma que o espaço por ele projetado
recepciona um novo referente, que não é mais “cidade”. Dito de outra forma, em (d), a
formação discursiva aponta para uma conjuntura sócio-histórica diferente daquela para a
qual (a) e (c) apontam.
A presença dos advérbios de tempo em (c) e (d) e também os tempos verbais
fazem-nos ver que os enunciados não guardam pertinência quanto ao aspecto temporal,
de forma que o sujeito que participa de (c) ocupa uma posição x, mas em (d) ocupa uma
posição y. Em (c), o sujeito é candidato; em (d), é eleito, é ocupante de um cargo
político. Isso é determinante na ocupação do objeto verbal em (d), pois é por intermédio
desta formação discursiva específica que o referente será “revelado”, ou seja, o objeto
verbal será preenchido, determinado pelo sujeito. Em AD, consideramos que o sujeito é
pensado como “posição” de fala historicamente construída, resultante de projeções
imaginárias.
O trabalho da memória em (d) - “vai sujar depois” - aponta para um conjunto de
dizeres que já estão sedimentados historicamente, como:
(e) A política é uma sujeira
(f) O candidato X é ficha-suja
(g) Descobriram mais uma sujeira na Câmara dos Deputados
Portanto, em (d), o verbo “sujar” aponta para o discurso da corrupção, onde o
verbo referido adquire significação específica, comprovando assim o que Orlandi diz
sobre a relação entre palavra-sentido-memória:
A evidência do sentido- a que faz com que uma palavra designe uma
coisa- apaga o seu caráter material, isto é, faz ver como transparente
63
aquilo que se constitui pela remissão a um conjunto de formações
discursivas que funcionam com uma dominante. As palavras recebem
seus sentidos de formações discursivas em suas relações. Este é o
efeito da determinação do interdiscurso (da memória). (ORLANDI,
2007a, p. 46).
Dessa forma, os estudos de fatos linguísticos nos permitem trabalhar
funcionamentos articulados a lugares de memória, que nos permite compreender
também o funcionamento de uma sociedade dada. Permite-nos, ainda, ver que o sentido
está na relação que se estabelece entre a linguagem e a sua exterioridade, de forma que
não se chega a uma compreensão do funcionamento linguístico sem compreender de
que forma a linguagem está materializada na ideologia e como que esta se manifesta na
língua, no discurso. Todas essas relações apontam para a existência de um sujeito
descentrado, que não é fonte de seu discurso, que não dispõe de liberdade discursiva,
mesmo quando este resiste e acredita que a tem, sujeito este que é afetado pela história,
pela língua, pela ideologia, o que faz com suas palavras signifiquem diferente, de
acordo com a posição por ele ocupada.
Trilhando esses caminhos, pudemos compreender Pêcheux, quando ele critica o
fato de muitas vezes se pensar que há uma máquina discursiva de assujeitamento, o que
levaria ao apagamento do acontecimento. Para ele,
Não se trata de pretender aqui que todo discurso seria como um
aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos
sociais nos quais ele irrompe, mas de sublinhar que, só por sua
existência, todo discurso marca a possibilidade de uma
desestruturação-reestruturação dessas redes e desses trajetos: todo
discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sóciohistóricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo
tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos
consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo
atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no
seu espaço... (PÊCHEUX, 2008, p. 56).
64
A PROPÓSITO DE UMA CONCLUSÃO
Aonde cheguei? Aonde chegarei?
Quando me propus a realizar este TCC, vislumbrava a possibilidade de
compreender os processos envolvidos na produção de sentido na e pela língua, já que, a
partir do contato que tive com disciplinas como História das Ideias Linguísticas e
Análise de Discurso, bem como o contato que tive com textos como “O Silêncio
Sintático como elemento constitutivo do sentido”, discutido num dos encontros do
grupo de estudo de gramática que coordenei, pude perceber que os sentidos não advêm
da língua fechada nela mesma, mas da sua relação com a exterioridade, com a história,
com a forma como a ideologia afeta os sujeitos. Nesses estudos, duas noções advindas
da Análise de Discurso me impactaram de maneira especial: “o silêncio significa” e “a
linguagem tem uma materialidade”.
Isso foi impactante para mim porque representava uma ruptura com um padrão
tradicional de conhecimento sobre a linguagem, sobre língua, sobre gramática e sobre
sintaxe, que eu trouxera ao chegar à Universidade, padrão este que concebia a sintaxe
como as combinações admissíveis pela gramática tradicional; a língua como um
conjunto de regras de “bem dizer”; a gramática como o compêndio que traz esse corpo
de regras e a linguagem como uma capacidade de comunicação somente.
A partir desses deslocamentos, decidi que aprofundaria meu entendimento dos
processos que regem a significação das sentenças e, para isso, elegi o campo da
transitividade verbal, visto que o texto de Dias me fez perceber que se trata de um
espaço linguístico marcado pela possibilidade de preenchimento e apagamento do
objeto verbal, sendo este preenchimento e este apagamento regidos por funcionamentos
que não me pareciam evidentes, tais como o silêncio e a memória discursiva, conceitos
que também advinham da Análise de Discurso. Dessa forma, não tive dúvidas: é na
Análise de Discurso que iria buscar compreender a língua sob uma nova perspectiva,
com consequências não só para minha relação com a língua, mas também para as
minhas aulas de gramática, que poderiam se tornar mais reflexivas, mais interessantes
para o aluno.
Agora que concluí esta pesquisa, posso dizer que minhas vontades não eram
meras pretensões: voltaram para mim em forma de enriquecimento, de amadurecimento,
65
de conhecimento mesmo, com relação à forma de pensar a linguagem, não mais como
mera capacidade de comunicação, mas como uma prática social, como capacidade de
simbolização, de significação e ressignificação do sujeito. Eu, que tantas vezes ouvia
colegas, também professores de cursinhos, dizerem “a língua portuguesa é perfeita”, sei
agora que ela é, como qualquer língua, sujeita a equívocos, ou seja, que ela significa
diferente, em função do sujeito e das condições de produção do discurso, que ela não
tem uma ordem nela mesma, e que sua autonomia é apenas relativa por que é afetada
pela história em sua estrutura, funcionamento e acontecimento.
Tanto é um fato, que o discurso da publicidade fazem uso dessas estruturas e
funcionamentos, dos equívocos e opacidade ali presentes, em prol de conseguirem
realizar seus objetivos comerciais, sociais, políticos, conclusão a que chegamos ao
analisar diferentes peças publicitárias, no corpus analítico que constituímos. Ou seja, é
na língua que o Estado faz funcionar as relações de poder, por meio das ambiguidades,
dos não ditos, dos espaços em branco que o sujeito, em busca da completude da língua,
efeito de sentido produzido pela gramática, busca preencher, determinando os objetos
verbais, acreditando estar na origem do sentido, enquanto se submete a uma
determinação histórica, já que os sentidos são controlados, administrados, embora,
também, pela língua, o sujeito resista a esta determinação histórica.
Desfeito o imaginário de língua perfeita, transparente e absolutamente
autônoma, passo agora a vislumbrar novas projeções com relação ao ensino de
gramática, especialmente, às minhas aulas de gramática. Acredito que uma educação
linguística de qualidade envolve colocar em questionamento a maneira como a
sociedade, em geral, concebe o ensino de língua. Existe um imaginário- um sentido préconstituído, tido como verdadeiro e que afeta os sujeitos- segundo o qual ensinar língua
é ensinar gramática, ou seja, nomenclatura, regras de concordância, regência, colocação
pronominal, pontuação, ortografia, dentre outras. Sem querer negar que tudo isso seja,
de fato, importante e necessário, o que propomos com a realização deste trabalho é que
o ensino de língua não se limite a isso. É necessário também mostrar como a língua em
sua estrutura, funcionamento e acontecimento está produzindo sentido. Para tal, não se
deve abrir mão da gramática, enquanto instrumento linguístico, assim como a concebia
Auroux, para quem “a gramática dá acesso a um corpo de regras e de formas que não
figuram juntas na competência de um mesmo locutor”. Todavia, o que propomos é que
a gramática seja utilizada como o ponto de partida para a compreensão dos fatos
66
gramaticais, dos seus efeitos de sentido, o que não se faz sem uma abertura da cadeia
falada, sequenciada e trabalhada na gramática, com a exterioridade, com o interdiscurso,
com a história, com a ideologia que atravessa os sujeitos.
Não espero, contudo, que, neste trabalho, esteja a solução dos problemas da
educação linguística ineficiente que presenciamos no país, mas eu o situo como uma
pequena contribuição teórica e metodológica à história das ideias linguísticas no Brasil,
e um ponto de partida para que, em novos projetos de pós-graduação, possamos
aprofundá-lo e torná-lo um marco para um ensino de língua que se sustente nos
processos de produção de sentido, fazendo com que aprender língua não seja tedioso,
mas prazeroso, pelo menos em minhas aulas, numa perspectiva imediata. Quanto a uma
perspectiva mais ampla, quem sabe?
67
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Milton Tavares de Castro Junior