forum abel varzim
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A ecologia como nova fronteira
Dr. Manuel Carvalho da Silva i
Boa tarde! Quero saudar todos os presentes e, muito em particular, quero
saudar o Forum Abel Varzim por esta iniciativa, que acolhemos com a maior
alegria e satisfação, face à figura que aqui é evocada hoje e também
acolhemos muito positivamente face ao trabalho que o Forum vem
desenvolvendo em torno das referências deste homem ativo da sociedade
portuguesa que foi Abel Varzim e de quem, como sou quase conterrâneo dele,
ouvi falar desde muito pequenino.
O desafio que aqui nos traz, é o de falar um pouco do futuro de Portugal, do
papel dos sindicatos. Eu diria que Portugal está numa situação difícil, uma
situação que nos obriga a algumas considerações.
Primeiro, é uma situação difícil, porquanto coloca um desafio a todos. Não há
interesse nacional, não há interesse comum predefinido, muito menos
assumido por uma força política que por momentos passa pelo poder. É
preciso procurar caminhos e, do meu ponto de vista, isto implica,
designadamente e desde logo, participação dos portugueses, participação
cívica, participação dos cidadãos em todos os espaços e com os mecanismos
que a sociedade possa proporcionar. Exige exposição de interesses na
sociedade, afirmação desses interesses e o desenvolvimento de
conflitualidades naturais para que, depois, se possam encontrar fios ou linhas
comuns. E exige o encontrar de dinâmicas de responsabilização na sociedade
portuguesa.
Segunda consideração: eu acho que os sindicatos (muito já foi dito sobre a
importância do sindicalismo) têm um papel importante e o nosso sindicalismo,
os sindicatos que temos em Portugal, precisamos de nos revitalizar e de
termos um sindicalismo reivindicativo. Quero, desde já, acrescentar que
precisamos de aumentar o teor das nossas reivindicações, não somos
suficientemente reivindicativos face às exigências ou aos desafios que a
sociedade portuguesa coloca e precisamos de ser proponentes, e proponentes
neste mundo concreto. Somos um país concreto, de realidades culturais, com
valores mais ou menos referenciados, com uma determinada realidade
económica social, com níveis de formação e de qualificação muito concretos.
Somos portuguesas e portugueses que constituímos esta sociedade e é dos
trabalhadores desta sociedade, na sua representação, que nós temos de tratar,
encontrando os seus anseios e as suas reivindicações. Não é de uma
sociedade hipotética, é esta que temos e de que fazemos parte e de que temos
responsabilidades.
Uma premissa, nesta reflexão, é que considero que uma sociedade de
trabalho, e de trabalho com direitos, é uma sociedade integrada, é uma
sociedade mais solidária, é uma sociedade mais democrática, é uma sociedade
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com menos conflitos de difícil articulação e é uma sociedade que tende para a
paz, inevitavelmente.
Ora bem… mas somos um país pequeno, uma economia frágil. Estamos no
meio de uma dinâmica, de um diálogo muito concreto – já aqui foi referido –, de
um processo de globalização que, do meu ponto de vista, é um processo
injusto, violento, anti-valores (no sentido de que destrói valores). Olhemos o
que é hoje a utilização da palavra livre, como conceito, associada a mercado,
ou o que é a palavra solidariedade, usada como conceito em tantas políticas
deste modelo que se desenvolve. Ou o que é até o conceito de democracia, no
uso feito por alguns políticos dominantes do mundo. Mas eu dizia que é um
sistema injusto, anti-valores, violento e é também limitador dos horizontes da
humanidade: e esta componente não é de pouca preocupação. Mas é verdade,
estamos aí com dinâmicas globalizantes, com dinâmicas de mundialização,
não podemos meter a cabeça na areia. Portanto, fazemos parte dessas
próprias dinâmicas, temos de agir nelas, estamos neste mundo. Do meu ponto
de vista, como sindicalista, acho que precisamos de assumir roturas face a este
modelo. Embora, a continuar a agir nele, não possamos fugir daqui para fora.
Temos noção de que há potencialidades do ponto de vista tecnológico, da
comunicação, dos intercâmbios, que hoje são possíveis na sociedade. De tudo
isto, há um outro aspecto que me preocupa, no presente, nestas dinâmicas
globais: a onda conservadora muito marcada pelo domínio absoluto da lógica
do lucro e pelo belicismo e, do meu ponto de vista, isto está a acentuar-se
perigosamente e as políticas económicas são esvaziadas. Mas também todo o
processo de ataque aos direitos sociais e a destruição dos ancoradouros
coletivos de responsabilização na sociedade, dos quais o Estado é a primeira
referência. Estes ataques preocupam-me muito.
Somos membros de um bloco, a União Europeia, e sobre isso já foram ditas
algumas coisas. Eu acho que Portugal precisa de refletir sobre os desafios que
se colocam, por exemplo, em função do alargamento da União Europeia. Não
só, mas agora em função do alargamento. Está a fazer-se uma mudança
significativa: durante algum tempo o discurso político falava-nos da Europa e,
inevitavelmente, a comparação era feita com um conjunto de países mais
desenvolvidos que nós, com melhor nível de vida, etc.
O discurso político dominante continua a falar-nos da Europa, já em relação à
nova realidade do alargamento. A Europa de comparação e, por exemplo, a
argumentação em relação ao pacote laboral e outras áreas, é claramente já
dirigida para aí. Portanto, nós não assumimos mesmo o desafio de nos
aproximarmos dos países mais desenvolvidos, antes pelo contrário, estamos a
retroceder e o alargamento (repito) traz-nos desafios novos. Eu acho que
devemos ser pelo alargamento da União Europeia, mas aquele problema que o
Prof. Silva Lopes aqui referiu do orçamento é um problema muito complicado,
mas há outros. Portanto, nós podemos pagar uma fatura muito elevada se não
dermos atenção a isto. O alargamento está a ser pretexto para o ataque ao
modelo social europeu, toda a dinâmica do poder económico dominante na
União Europeia é neste sentido. Este anteprojeto de código de trabalho e outra
legislação, como outros projetos que estão a sair noutros países (já agora,
diga-se: o apresentado em Portugal é o mais conservador, o mais
desestruturador e o mais violento de todos, e não é por acaso, é porque não há
eleições nos próximos anos, por um lado, e é porque temos mesmo um
governo muito de direita e muito conservador como o tempo vai demonstrar de
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forma crescente). Mas, dizia eu que estes ataques legislativos se inserem
nesse objetivo de atacar o modelo social europeu, como sabem é uma
realidade diversificada, cada país tem as suas especificidades. Depois,
estamos num país que tem défices estruturais complexos. A crise abordada na
vertente financeiro-económica (até agora essencialmente financeira), é um
pouco aquilo que o Dr. Silva Lopes disse. Portanto, eu acho que falarmos de
um país em crise abordando apenas essa componente, é usar um espantalho
para aprofundar as desigualdades e pôr sempre os mesmos a pagar a fatura:
não se está a olhar a efetiva crise.
Gostava de deixar sete referências sobre aspetos que me parecem estruturais
destas dificuldades do nosso país:
O primeiro: a destruição da estrutura produtiva e a desindustrialização do país.
É assustador o que se assiste nos últimos anos;
O segundo: o ataque cego ao Estado e às políticas sociais;
O terceiro: o défice de formação, qualificação e ensino. Estamos num patamar
muito, muito baixo. Ainda ontem estive num encontro, organizado pela
FENPROF e pela Confederação de Pais, sobre o primeiro ciclo do ensino
básico… estão-se a atirar medidas, está-se a atirar responsabilidades para as
autarquias sem estruturar as coisas, sem cuidar do financiamento, isto é um
desastre e o primeiro ciclo do ensino básico é a base da estruturação de todo o
sistema de ensino mas depois olhamos por ai fora e vemos… ainda
recentemente, um dado: 46% dos nossos jovens não chegam ao fim da
escolaridade obrigatória. Temos 260 a 270 mil jovens que têm até 25 anos, que
têm no máximo o 9.º ano de escolaridade e já estão no mercado de trabalho e
que não vão sair dele. E temos os mais velhos sem formação escolar – em
alguns casos ainda são os mais velhos que aguentam um nível de
qualificações adquirido pelos saberes práticos, porque se não fosse isso,
estava-se numa situação ainda pior, mas ela é de qualquer forma muito grave.
A quarta referência é a fiscalidade. É um escândalo! O Dr. Silva Lopes já falou
sobre isto, não vale a pena repetir;
Uma quinta componente é a impunidade perante as leis. Fala-se tanto de
compromissos nacionais… eu acho que um pacto nacional pelo cumprimento
das leis era uma coisa espantosa, era talvez o mais importante de todos. O
desrespeito pelas leis, desde o código da estrada, às leis mais
significativas…enfim todas elas são significativas. E a atitude de desrespeito
pelas leis é tão mais acentuada quanto maior é o poder. Esta é a observação
que faço em várias áreas;
Sexta componente: a situação de fragilidade em que se encontra a
administração pública. Do meu ponto de vista, há problemas mais complexos
do que aquilo que se possa imaginar ou que em comum ai se diz
E um outro e sétimo grande problema, que é a repartição da riqueza nesta
sociedade, que é um escândalo. Eu acho que as coisas não estão a tender
para melhorar. Eu ouvi com atenção, por exemplo, o discurso do PrimeiroMinistro e o Primeiro-Ministro, em entrevista dada há dias, fala em três
vertentes: menos Estado, mais exportações (que eu só vejo por uma via, que é
a utilização de mão de obra barata e portanto não sei o que é que isto vai
trazer para o aumento da produtividade no nosso país e para melhoria do
desenvolvimento do país) e retoma o alcatrão e a construção civil. Podia não
ser [assim], mas toda a gente sabe que os campos de futebol para o Euro 2004
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se estão a fazer não é por necessidade de campos, não tem nada a ver com
isso, são estratégias de especulação imobiliária e de negócios nessas áreas,
que levam à feitura dos dez estádios que se vão fazer para o Euro 2004. Mas
nós, por estas componentes, não vamos. Esta ideia de que nos estávamos a
modernizar e a desenvolver por ter centros comerciais, por fazer autoestradas
e assim umas coisas é um absurdo, não chegamos a sítio nenhum.
Perante isto, eu acho que, a nós sindicatos, como a outras organizações, se
nos impõe dizer não ao apelo que nos fazem constantemente de que nos
adaptemos, de que tudo é inevitável, para usar o adjetivo da Prof.ª Manuela
Silva. Agora estamos no tempo do “há fato feito para tudo”, e nós só temos de
o vestir e mais nada. Eu acho que nós temos de dizer não, temos de retomar
aquele velho apelo do Bento de Jesus Caraça: “compreender e viver o nosso
tempo”. Ou seja, agir, procurar, mudar. Procurar transformar a sociedade num
sentido positivo.
Depois, acho que precisamos de assumir que os problemas com que nos
defrontamos não são apenas de ordem económica, são de natureza ideológica.
É preciso o debate ideológico na sociedade e os sindicatos têm de participar
nisto. Por exemplo, temas de debate ideológico: o conceito de produção, o
conceito de competitividade, de produtividade, o debate sobre o absentismo, o
debate sobre a solidariedade, o debate sobre como construir e como
responder, o debate sobre a liberdade… há tantos debates que é preciso fazer.
Depois, penso que é preciso recentrar o conceito de trabalho e situar e afirmar
a sua centralidade. E aqui está a resposta a uma questão que a Prof.ª Manuela
Silva logo no início colocava: eu acho que o trabalho tem um lugar central na
sociedade. Alterou-se essa centralidade, não é a mesma de há cem anos.
Basta lembrarmo-nos que há cem anos (até, para muitas sociedades, há
cinquenta e ainda hoje em muitas sociedades do mundo) acontecia isto que eu
vou dizer: ter trabalho ou não ter, é ter direito à vida ou não ter. Hoje na nossa
sociedade não é bem assim. Portanto, temos de ver (e eu refiro sete premissas
que me parecem importantes):






o trabalho como fator de produção obrigatoriamente, mas simultaneamente o
trabalho como fator essencial de socialização;
o trabalho enquanto expressão de qualificações que nos arrasta para os campos
das formações, das qualificações, do ensino, etc.;
o trabalho como fonte de emanação de direitos sociais e de direitos de cidadania;
o trabalho como espaço de dignidade humana (é uma das premissas que precisa de
ser muito desenvolvida);
o trabalho como condição de acesso aos padrões de consumo e aos estilos de vida;
e o trabalho na sua relação com as questões do ambiente dos valores ecológicos.
E, a partir daqui, estão campos em que os sindicatos têm de intervir
diretamente. Mas, em muitos casos, têm de intervir de forma articulada com
outros movimentos, podem ser espaço de apoio e até, em determinadas
situações, de dinamização de outros movimentos. Mas podem também fazer
alianças e eu acho que vivemos um tempo de dinamização de movimentos
sociais e que a força e a capacidade de resposta dependem da articulação da
ação e de olhar estas e outras premissas talvez nos traga algum contributo
para agirmos.
Queria também dizer que me parece que a aposta no futuro exige (para os
sindicatos como para muitas outras organizações) ter presente que sim senhor,
a sociedade do futuro tem dimensões de conhecimento que são imperiosas. Já
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foram aqui referidos os campos das tecnologias, [mas] podemos falar da
comunicação, da informação. Há várias dimensões do conhecimento em
grande aceleração e, portanto, a sociedade do futuro exige olhar, trabalhar
sobre o conhecimento, mas eu direi que exige, com o mesmo empenho, uma
aposta na solidariedade (a solidariedade como construção humana) e portanto
(eu costumo dizê-lo, usando uma expressão muito simplista) a solidariedade
não é uma espécie de denominador comum de um conjunto de porreirismos…
não é nada disto: é uma construção humana que exige partilha, que exige
muitas vezes conflito. Mesmo no seio dos trabalhadores, a solidariedade exige
quantas vezes conflito e conflito duro. E aqui está também uma resposta a uma
questão que, do meu ponto de vista, o Dr. Silva Lopes levanta sobre como
responder e como construir atitudes solidárias.
Posto isto, já me estou a alongar, mas queria ver se ainda deixava algumas
outras coisas.
Quais os problemas com que nos debatemos? (Três daqueles que são mais
evidentes e depois três de alguma reflexão mais apurada).
Um deles, é o problema da identificação da situação. Onde é que estão hoje
todos os trabalhadores e quais são as suas condições e portanto como
responder às novas realidades no mundo do trabalho, na identificação e na
afirmação de interesses de anseios, de reivindicações concretas. Mas não
tomar a árvore pela floresta e, portanto, sermos cuidadosos. Há grandes
massas assalariadas, portanto, o trabalho assalariado não diminuiu. Aumenta o
trabalho individual, aumentam outras formas de trabalho novo, mas o trabalho
assalariado não diminuiu e há novas camadas de assalariados e com níveis de
exploração impressionante.
Ainda ontem me cruzei com duas jovens estagiárias num jornal que têm uma
licenciatura e trabalham gratuitamente. Nem têm direito a subsídio de
alimentação durante algum meses e depois têm um ano em que continuam a
não ter direito a subsídio de alimentação, não têm direito ainda à carteira
profissional e continuam a arrastar-se. E elas reclamavam. Dirigiram-se-me
(estavam a almoçar numa mesa ao lado), a reclamar que é muito importante
esta luta contra a precariedade.
Mas eu queria dizer, também, que é verdade que desapareceram grandes
massas operárias, mas há novos operários. O que são estas massas que
trabalham em grandes centros comerciais e noutras áreas de serviços e
noutros sítios e trabalho com processos rotinados? Continua aí, não tenhamos
ilusões quanto a isto… Entrem, por exemplo, numa redação de uma das
televisões… A própria colocação das pessoas não é propriamente aquela
imagem velha que se coloca: “entra o porco por um lado sai a chouriça por
outro”… mas é muito parecido, estão alinhados, produzem a notícia sem direito
a assinar a notícia, sem direito a intervir coisa nenhuma e, portanto, tudo
encadeia… fazem o enchimento da notícia sem qualquer identificação. Estas
são também realidades do mundo do trabalho, ao lado de outras que aqui
foram lembradas. Com mais qualificações, com outros anseios, conhecemos
isso também em concreto.
Mas eu dizia… identificação de todos os trabalhadores e, a partir daí,
reorganização, realinhamento do movimento sindical. Há grandes exigências.
Segundo: resposta à evolução tecnológica, aos efeitos da informação e da
comunicação que aqui disse que não é fácil. Alguns estrategas das
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multinacionais dizem que os mecanismos de que hoje dispõem para manipular
a evolução da organização e da própria estrutura e que, portanto, definem as
estratégias das grandes multinacionais, levam nove anos de avanço em
relação à capacidade que os sindicatos têm de reagir. Portanto estamos a ver
com que desnível de armas estamos a intervir no processo.
A terceira consideração complementar é que há uma grande desvalorização do
trabalho e do sindicalismo na sociedade atual. Esse é um desafio para todos, é
um desafio para os sindicatos, mas é um desafio para a sociedade em geral.
Há muito pouca reflexão sobre o trabalho e reflexão muito superficial. É uma
coisa espantosa… sobre trabalho e sobre questões de relações de trabalho,
qualquer bicho careta dá receitas como: “eh pá… aquilo é só despachar”. Ainda
um destes dias vi aí um ilustre economista a ser entrevistado na televisão e,
em três penadas, ele arrumou a questão do Código de Trabalho… e sabia tudo
sobre o Código de Trabalho. Eu juro-vos: ele não sabe nada sobre o Código de
Trabalho, não leu, mas ouviu umas coisas e diz apenas generalidades
superficiais, não tem nada a ver com a realidade. É um desafio grande aos
sindicatos, mas é também às universidades, aos investigadores e a muitas
outras organizações. Houve algum desvio de atenção de muitas organizações,
também dos sindicatos, ao trabalho para áreas complementares. É preciso
retomar centralidades, isso levava-nos a uma reflexão do estado atual dos
movimentos sociais, das organizações não governamentais, da separação
entre umas coisas e outras… como é que se mantém a independência, como é
que se mantém a autonomia. Enfim, era um tema que dava uma conferência e
não dá para estarmos aqui a falar sobre ele.
Depois, há três problemas grossos com que os sindicatos se debatem.
Um deles é a dispersão, ou fácil deslocalização, dos pontos estratégicos da
expressão do conflito, que leva muitas vezes a que o esforço de mobilização
seja mal dirigido ou, até, a reivindicações mal formuladas. Hoje, a capacidade
de manipulação de carteiras de encomendas, de deslocalização e de
subcontratação, etc., não permitem formular reivindicações e encontrar pontos
estratégicos para apresentação dessas reivindicações, na certeza de que, no
momento em que a reivindicação estiver madura para ser exposta, esse ponto
se mantenha ainda como ponto válido para a sua apresentação. Eu não sei se
me faço compreender… depois poderemos debater isto um bocado.
O segundo problema grosso dos sindicatos é o problema da articulação da sua
acção original e histórica, que os marca como movimentos sociais construídos
nos locais de trabalho. A articulação como intervenção que gera dependências,
mas que não pode ser secundarizada, que é a intervenção institucional. A essa
é que não podemos fugir, cometeríamos um erro. Mas é preciso ver como é
que as coisas se articulam e, a propósito disto, quero dizer-vos que ai de nós
se não desenvolvemos a ação nos dois patamares e se não a desenvolvemos
de forma articulada e ficarmos à espera de uma para fazer a outra.
O terceiro grande problema com que os sindicatos se debatem é o
esvaziamento crescente do poder político a que assistimos hoje e a cada vez
mais afirmada separação entre o social e o político, deixando o social à
responsabilidade do económico. Não podemos aceitar isto, e este é um
problema com que se debatem os sindicatos, mas não é apenas um problema
dos sindicatos.
Posto isto, patamares de intervenção.
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Eu acho que continuamos a ter a empresa por referência central e a
intervenção na empresa implica formulação de reivindicações profissionais e de
sector. Ao mesmo tempo, as reivindicações profissionais não podem deixar de
existir. Repito: não podem. E, já agora, quero acrescentar que existem
problemas de corporativismo, mas os sindicatos não são fomentadores de
corporativismo. O poder económico e político induz a criação de dinâmicas
corporativas e os sindicalizados são seres humanos como os outros, são seres
racionais e, portanto, se encontram oportunidades que lhes são, do ponto de
vista imediato, mais vantajosas deitam-lhes a mão e depois não as querem
largar, como é evidente. Mas não é porque os sindicatos tenham
estruturalmente uma lógica corporativa. Gostava até de falar disto com mais
profundidade. Depois, precisamos desse patamar da empresa para afirmarmos
as nossas reivindicações e propostas, precisamos de um patamar nacional
(não desapareceu). É preciso propostas de alcance comum para os
trabalhadores do mesmo país… direitos sociais, emprego, políticas
económicas, tantas coisas. Depois, ao mesmo tempo que se formulam
propostas reivindicativas em relação aos interesses de um país, é preciso ver
os confrontos entre interesses dos trabalhadores de uma região com os
trabalhadores de outra região, tendo em conta a movimentação das
multinacionais e estratégias diversas que estão em marcha. Precisamos de um
patamar europeu de articulação de ação, de proposição e de reivindicação. A
Confederação Europeia de Sindicatos é uma organização que deve responder
a isto e temos de ter presente que as relações de trabalho estabelecidas, a
nível de uma empresa ou a nível de um país, não serão estáveis se, no plano
geral e global, nós não formos capazes de instituir algumas regras mínimas na
atuação das multinacionais, bem como fazer funcionar mecanismos de
fiscalização e coesão expressos em normas da Organização Internacional de
Trabalho. E também devem existir a nível da Organização Mundial do
Comércio e outras instituições.
Muitas vezes fala-se em relações de trabalho… grandes mudanças… os
sindicatos não respondem. Eu quero dizer-vos, com toda a sinceridade, que se
fala muito das múltiplas mudanças que se estão a operar no mundo do
trabalho… eu, até na brincadeira, tenho dito, pelo que observo em algumas
universidades, que nós encontramos imensas teses de mestrado e até de
doutoramento sobre teletrabalho e sobre outras formas de prestação de
trabalho, etc., mas encontramos poucas teses, pouca reflexão, sobre as
grandes mudanças estruturais. Por exemplo, [há] duas delas que marcam, e
que vão marcar, toda a evolução da organização de trabalho e o processo de
migrações. Diz-se “toda a vida houve migrações”… sim, mas estamos numa
fase nova. Quando nós temos uma Europa que, em cada três novos
trabalhadores dois são imigrantes, apenas um é a renovação geracional da
União Europeia. E esta é uma realidade do nosso país. Nós precisávamos de
um estudo profundo sobre isto… isto vai mudar tudo. A grande parte das
propostas em relação ao trabalho estão assentes nesta dinâmica. A outra, é o
aumento quantitativo e qualitativo das mulheres no mercado de trabalho que,
no meu ponto de vista, é a mais positiva das grandes mudanças que está aí.
Estamos apenas na aproximação… eu, às vezes, ponho-me a imaginar o que
vai ser a evolução disto nas próximas duas, três décadas… acho que vai ser
monumental e que vai trazer alterações na estruturação das empresas,
reconsideração sobre proximidade de serviços nas empresas, vai trazer imensa
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mudança. Há outros processos que precisavam de análise, mas, quanto às
novas formas de trabalho e à sua organização, eu vou ler um parágrafo que
tenho escrito desde há algum tempo sobre isto. Digo eu: “o problema não está
no facto de surgirem elementos novos ou específicos duma determinada forma
de prestar ou desenvolver o trabalho, o problema não está no desaparecimento
de velhas homogeneidades que marcavam as relações de trabalho. Embora,
sobre isso, no meu entender, se façam afirmações muito levianas. O problema
no complexo mercado de trabalho, com presença crescente e influente das
mulheres e de grandes massas migratórias está, na aceitação pelas partes
envolvidas, na relação de trabalho, [no facto] de se identificarem os novos
elementos isoladamente considerados, de se identificarem as velhas e novas
homogeneidades e de se fazer a respetiva regulamentação e aplicação em
consenso e não unilateralmente pelo patrão ou outra entidade contratante
como hoje acontece com grande parte dos trabalhadores, esta é a questão.”
E, terminando, uma nota só sobre a legislação de trabalho. Perante isto, e dada
a questão “O papel dos sindicatos?”, grandes desafios próximos. Eu acho que
os sindicatos portugueses têm de continuar a intervir e precisam de intervir com
redobrada força em relação aos salários e às condições de trabalho. Nós
ganhamos muito mal e somos muito mal tratados no trabalho, em geral.
Segundo o desafio da Segurança Social, aqui comum com a reflexão feita pela
Prof.ª Manuela Silva (aliás sobre essa matéria temos conversado), neste país o
que está a ser feito em relação à Segurança Social é criminoso. O adjetivo é
violento, mas eu queria usá-lo. Do meu ponto de vista, é uma das maiores
preocupações que esta sociedade precisa de ter. Está a destruir-se um sistema
que demora muito a construir, demora décadas… um sistema público,
universal, solidário da Segurança Social, que era ainda muito novo, tem muitas
fragilidades, precisa de reflexões de múltiplos aspetos, sobre o seu futuro.
Como é que se estabiliza, como é que se financia… precisa disso tudo, mas
desestruturar este sistema é criminoso. E se o deixarmos destruir, pode
acontecer que se passem muitos e muitos anos sem conseguirmos reconstruílo. Este problema é gravíssimo e está aí para ser promulgada a lei de bases da
Segurança Social. Eu acho que o país precisa de um movimento contra isto. Eu
arrepio-me quando vejo, nas últimas semanas, aqueles anúncios em que
aparece a criança a perguntar ao pai se vai ter de lhe pagar as férias ou o
jornal ou os cigarros… isto é uma expressão da aposta na rotura de
solidariedades entre gerações e este problema é gravíssimo. Os anúncios que
aí estão são a denúncia do objetivo que está por detrás disto tudo.
Desculpem-me o entusiasmo, mas é porque sinto que este problema é muito
grave.
Terceiro aspeto: a intervenção na saúde. O país assiste a uma situação de
descalabro, está-se a forçar a privatização e a entrega ao modelo e até a uma
entidade que está sob suspeita. E houve neste país quadros do Estado… a
direção da ARS de Lisboa e Vale do Tejo, fizeram um relatório que a
Procuradoria-Geral da República, que o Tribunal de Contas, que inspeções de
Finanças etc. reconhecem com matéria que precisa de ser averiguada e que
aponta para desvios da ordem dos 75 milhões de Euros e prossegue-se o
sistema, dando-se como adquirido. E criou-se um tribunal arbitral de origem,
que merece uma enorme interrogação para se pronunciar sobre isto. O país
precisa de estar alerta sobre esta questão.
A quarta grande área de intervenção é a da fiscalidade.
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A quinta é a da formação e da qualificação nos tempos próximos e a do ensino.
A sexta é a da higiene, segurança e saúde no trabalho. Podem-nos fazer mil
discursos sobre o desenvolvimento do nosso país e a modernização das
nossas empresas etc., mas, se se mantiver o quadro que gere a atual situação
de higiene, segurança e saúde no trabalho, nós não teremos desenvolvimento
nenhum… é mentira. A minha experiência de sindicalista mostra isto: um dos
indicadores mais seguros quando visito uma empresa, para ver se ela tem ou
não tem futuro, é olhar as suas condições de higiene, segurança e saúde no
trabalho. Eu assisti há poucas semanas, em Esposende, a uma situação
dramática: uma empresa que tem umas centenas de trabalhadores foi multada
pela segunda vez… diz que não tem condições de trabalhar, mobiliza as
centenas de trabalhadores e a população envolvente em defesa da sua
posição. Está a poluir dramaticamente o rio Cávado na zona da foz e a
urgência da resolução do problema social, não sei quanto, impõe que a
impunidade campeie, isto não leva a sítio nenhum.
E termino. [Quanto] à questão da legislação do trabalho, eu já disse que a
proposta existente em Portugal é violenta. Eu acho que não há forma de
remendos possíveis, a proposta é absolutamente desestruturante e, como já foi
dito, a legislação de trabalho portuguesa, em geral, não é mais protetora do
que a dos outros países. Nós temos uma lei um pouco melhor, que é a do
despedimento individual, mas que depois é vulnerabilizada pelo despedimento
coletivo e por outras e temos alguns aspetos em relação à lei da greve, mas
que, no plano prático, não chocam. No resto, não temos direitos.
Este projeto [anteprojeto de código de trabalho]. Eu deixo-vos seis notas, mas
havia dezenas e dezenas de problemas aqui a levantar.
A questão é a seguinte: qual vai ser o papel do Direito de Trabalho em
Portugal? Elimina-se o princípio estruturador do direito de trabalho?
Na relação trabalhador/empresa, o trabalhador é o elo mais frágil e a legislação
de trabalho estruturada para intervir na proteção desse elo mais frágil. E passase ao princípio de que o trabalhador e o patrão, individualmente considerados,
estão em pé de igualdade… se isto vinga …!? Há dezenas de artigos que
destroem direitos dos trabalhadores.
Segundo: vamos ter ou não direitos mínimos? Ou seja, as leis que são
assumidas como mínimas vigoram ou fica a possibilidade de trabalhador e
patrão, individualmente ou em grupos, poderem negociar, conforme a relação
de forças, abaixo ou acima desses mínimos? Se isto passa, é o desastre.
Terceiro aspeto: negociação coletiva. Por muitas alterações que venham a
propor, não resolvem mais o problema. A negociação coletiva, que precisa de
ser valorizada (como aqui foi dito já por outros meus companheiros de mesa),
onde é que se poderiam encontrar conteúdos para a sua evolução, em campos
novos? Desde logo naquele que eu referi há pouco: a intervenção na
identificação de fatores novos da regulamentação do trabalho. Hoje, por
exemplo, diz-se que as velhas homogeneidades que marcavam os contratos
coletivos e que estabeleciam a relação, que faziam a aferição do valor do
trabalho, estão desatualizadas; hoje é o mérito, é a qualidade, é não sei quê…
Então, é preciso as duas partes intervirem nos fatores que aferem cada um
desses elementos, que conduzem ao estabelecimento da valorização do
trabalho, não podem ser feitos apenas por uma parte. Ora, o que está no
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Código, em dezenas de artigos, é a destruição deste princípio e isto não é
aceitável.
Depois, a negociação coletiva devia evoluir por três outras grandes áreas: as
questões da igualdade (que aliás a Prof.ª referiu, apenas uma parte) têm a ver
com tudo o que se relacione com o tratamento da imigração, tudo o que se
relacione com os direitos dos homens e das mulheres, problemas de
profissões. Enfim, todo um campo muito amplo em relação à igualdade.
A outra era a formação, qualificação e ensino. Eu dou-vos um exemplo: eu
disse há pouco que nós temos 260 / 270 mil jovens que estão no mercado de
trabalho, têm até 25 anos e têm no máximo o 9.º ano de escolaridade e temos
milhares de professores aí desocupados. Nós precisávamos de plataformas
novas de ocupação que cruzassem estas disponibilidades e estas
capacidades. E, associado a isto, outras medidas em relação à qualificação e
ao ensino. E desenvolvermos um trabalho nas empresas e na negociação que
conduzisse a esta articulação. Ora, este pacote laboral não se dirige aqui.
Quarta grande área de evolução da contratação coletiva: as questões da saúde
e da segurança no trabalho. É uma área essencial, o estabelecimento de
condições de higiene, de saúde e de segurança, são elemento estabilizador da
existência de relações de trabalho com dignidade. E se tem dignidade o valor
do trabalho surge, com certeza, de forma mais coerente e de forma mais justa.
Mas as coisas não estão voltadas para aqui.
A quarta grande área que leva a que este código seja absolutamente recusado
é a da precariedade, flexibilidades, polivalências, contratos a prazo, trabalhos
nocturnos. Mudanças imensas nessas áreas e sempre a apostarem na rotura
de solidariedades. E atenção, que está aí uma tese, que vem agora nas novas
versões, que é, para os mais velhos: “não se preocupem”. Até estabeleceram
um princípio em relação à retribuição. A alteração do código de trabalho, a sua
entrada em vigor, não pode impor, para ninguém, a diminuição de retribuição. E
as novas gerações? Além de que, para as mais velhas, isto é apenas um
engodo, porque há formas fáceis, por manipulação macroeconómica, e outras,
que em dois ou três anos comem os direitos adquiridos, como toda a gente
sabe. Mas este princípio, algum sindicato o pode aceitar? Jamais. Nós não
podemos permitir roturas de solidariedades deste tipo. Porque, se não, não
temos direitos nem para os que saem nem para os que entram. O mesmo em
relação ao trabalho noturno. Os trabalhadores que estão no trabalho noturno
não podem ser prejudicados, na hipótese da diminuição do número de horas
noturnas. Mas que princípio é este? É apenas um engodo para levar as
pessoas a não protestarem e não aceitarem, há aqui questões de princípio
muito complicadas.
A quinta grande questão é o direito de intervenção na determinação do horário
de trabalho e na sua organização. Quando os trabalhadores deixarem de ter
possibilidade de intervir na determinação do tempo de trabalho e na sua
organização, todas as promessas de proteção à família, etc., são falsas. A mim
choca-me que o Ministro apareça aí muito preocupado, a dizer “era muito
importante haver o direito dos trabalhadores que têm filhos irem à escola de
três em três meses ver o aproveitamento”. Se as medidas apontarem para que
os trabalhadores tenham horários cada vez menos coincidentes, a família
encontra-se menos, o acompanhamento dos filhos diminui. Que efeito é que
tem ir de três em três meses? Mas é isso que está.
«536» - Painel - “Que Futuro para Portugal? O Papel dos Sindicatos”
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E a sexta são os direitos sindicais e o direito à greve. Nós não temos uma
posição fixista sobre as leis laborais. Uma coisa é o movimento sindical
português ter necessidade, em função do nível de formação escolar, de
formação profissional, de condições de trabalho e da pouca preparação que
lhes foi dada ao longo da vida, ter de assumir, em determinados pontos,
atitudes defensivas. É humano. O que dizemos é assim: o que as leis
precisavam era de: primeiro, um esforço pelo cumprimento das leis; segundo,
uma sistematização da legislação, para se acabarem com as atoardas de que a
legislação é velha. Ninguém se preocupa que o Código Civil seja de 1966, ou
que o Código Comercial seja de 1898… mas acabarem com isso?; e terceiro,
pegar-se naquilo que são as imposições da evolução da economia e da
estrutura produtiva, por um lado, e aquilo que são as exigências da dignificação
e valorização do trabalho, por outro, e vamos ao debate do que é que se pode
mudar.
Mesmo que os sindicatos, em muitas matérias, tivessem uma posição
defensista, e estivessem a protestar, esse era o caminho. Agora, não pode ser
este que está indiciado.
Obrigado pela vossa atenção!
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Texto retirado de gravação. Editado
«536» - Painel - “Que Futuro para Portugal? O Papel dos Sindicatos”
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Dr. Manuel Carvalho da Silva Boa tarde! Quero saudar todos os