DA DESCONSIDERAÇÃO DA COISA JULGADA
Silvana Fortes da Silveira1
Bárbara Carolina de Almeida Mendes Lima2
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo abordar o instituto da coisa julgada e sua
relativização ante a demonstração das correntes favoráveis e contrárias à
modificação de uma decisão judicial transitada em julgado. O artigo se valeu do
método dedutivo e da revisão bibliográfica sobre o tema, a fim de fornecer ao
leitor maiores subsídios quanto ao posicionamento de balizada doutrina acerca
do assunto. Destacam-se na pesquisa a análise do tratamento conferido a
decisões
fundadas
em
dispositivos
considerados
posteriormente
inconstitucionais. Relevante ainda é a exposição e discussão de princípios
constitucionais e dispositivos legais que subsidiam argumentos favoráveis à
relativização da coisa julgada.
PALAVRAS-CHAVES: Coisa julgada. Coisa julgada formal. Coisa julgada
material. Relativização. Inconstitucionalidade.
1. INTRODUÇÃO
A função atual da ciência jurídica não se limita à imposição de regras ao
comportamento social e individualizado do homem e do Estado, objetivando
exclusivamente o fortalecimento de entidades guardiãs de valores necessários
para a manutenção de ambos, tais como, a obediência estrita aos princípios da
legalidade, da moralidade, da eficácia, da publicidade, da impessoabilidade e
da justiça.
O nosso ordenamento jurídico se equipara ao sistema piramidal clássico,
consagrado por Hans Kelsen, pois insere a Constituição no topo hierárquico
das normas jurídicas, fato pelo qual, todas as demais normas que lhe são
inferiores buscam validade em seu texto.
1
Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho. Mestre em Direito,
área de concentração Direito Privado, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerias.
Advogada.
2
Advogada, professora da Faculdade de Ciências Jurídicas Professor Alberto Deodato,
especialista em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerias.
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
A norma jurídica não compatível à Lei Fundamental não possuirá
validade no ordenamento, respeitados, é claro, os mecanismos de proteção da
supralegalidade consagrados pela própria ordem constitucional.
Partindo deste pressuposto, considera-se que a imutabilidade dos
efeitos da coisa julgada não poderá sobrepor-se à própria Constituição, que
tem como um de seus princípios basilares a legalidade.
Por decorrer do Poder Judiciário, a decisão judicial deve ser
apresentada de forma confiável, para exprimir confiança e garantir a aplicação
da lei, pois é a instituição responsável pela aplicação coercitiva do direito.
Assim, encontra-se mais diretamente sujeita ao cumprimento da moralidade do
que o executivo e o Legislativo, pois tem por objetivo primordial a defesa do
poder que emana do Estado.
Sendo a decisão judicial a expressão máxima de atuação do Poder
Judiciário, deve expressar compatibilidade com a realidade das coisas e dos
fatos concretos e naturais de forma harmoniosa com os princípios
constitucionais, e, portanto, deve estar adstrita aos princípios da moralidade e
da legalidade.
Por decorrer da forma de manutenção dos princípios constitucionais, o
decisum judicial não pode ter carga da pessoa que o emitiu, pois deve
representar a finalidade da qual originou, que é determinada pela lei.
Assim, sendo pressuposto essencial da decisão judicial o respeito aos
princípios constitucionais, e, sendo a moralidade um desses pilares, sua
violação, seja por parte do Estado ou do cidadão implicará na inexistência do
direito, ainda que este se apresente perfeito no campo formal.
Tampouco pode o decisum judicial vincular-se à vontade de quem o
emitiu pois deve restringir-se à finalidade ditada pela lei, característica esta do
regime democrático do qual é feita a Nação. Portanto, sob o prisma da ética, a
sentença judicial não protege o Estado, ainda que transitada em julgado,
quando esta vai de encontro à realidade dos fatos e aos princípios da
moralidade e legalidade
A moralidade é parte integrante de cada regra ditada na Constituição e
sobre todos os princípios. Sua violação, seja pelo Estado, seja pelo cidadão,
não poderá gerar qualquer efeito.
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
Parafraseando Cândido Rangel Dinamarco, a coisa julgada não pode
ultrapassar os efeitos a serem imunizados, deve ser posta em equilíbrio com as
demais garantias constitucionais e com os institutos jurídicos.
É certo que a coisa julgada material é atributo indispensável ao Estado
Democrático de direito e à efetividade do direito fundamental de acesso ao
Poder Judiciário, como discorre Luiz Guilherme Marinoni (2006). Todavia, não
pode dissociar-se do princípio máximo consubstanciado na Constituição
Federal, que é o princípio da legalidade, pois se uma decisão judicial não
respeita tal princípio, não pode de forma alguma gerar efeitos permanentes e
imutáveis.
Atualmente sob o modelo do Estado Democrático de Direito, a decisão
judicial vai mais além, pois deve cumprir, simultaneamente, os critérios da
certeza jurídica, da aceitabilidade racional, senso de adequabilidade e
celeridade. O princípio da certeza jurídica exige decisões consistentes
baseadas no quadro do direito vigente, de forma que o jurisdicionado as aceite
como uma decisão justa.
Sob este paradigma, o exercício da jurisdição significa fidelidade ao
direito material e as garantias do devido processo legal, do contraditório e da
ampla defesa. A atuação do Juiz reclama, além do senso apurado, experiência
e domínio, não só da legislação vigente como também dos princípios que a
norteiam e envolvem.
É oportuno destacar os ensinamentos de Robert Alexi:
a exigência de fundamentação das decisões judiciais que deve
dar-se através de uma argumentação jurídica racional depende
não só o caráter científico da Jurisprudência, mas também a
3
legitimidade das decisões judiciais.
Infelizmente, uma grande parcela dos operadores do direito ainda se
prende ao paradigma do Estado Liberal de Direito, objetivando a proteção e o
cuidado extremo da norma; juridicidade; forma; pureza do mandamento legal,
com indefere na aos valores concernentes à legitimidade do ordenamento.
Entretanto, deve-se considerar de forma extremamente cuidadosa o
ataque à decisão judicial transitada em julgado, pois o oportunismo daqueles
3
ALEXI, Robert. Teoria da argumentação jurídica. A teoria do discurso racional como teoria da
justificação jurídica. São Paulo: Landy Editora, 2005. 2ª edição. p.20.
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que já tiveram seus direitos rejeitados pode servir de estímulo a pretensões de
reativações de discussão de fatos já analisados, ou até mesmo de provas já
valoradas, o que não tem sido incomum.
2. COISA JULGADA
2.1. Conceito
Entende-se coisa julgada como sendo a sentença que alçou o patamar
da irretratabilidade por não mais poder ser intentado qualquer recurso contra
ela. Sob o aspecto objetivo é aquela que firmou, de forma definitiva, o direito de
um dos litigantes após ter sido apurado pelas vias do devido processo legal.
A coisa julgada pode ser entendida como a decisão judicial da qual não
caiba mais recurso, conforme expresso no artigo 6º, § 3º da Lei de introdução
às normas do Direito Brasileiro, ou então como a imutabilidade do direito
processual.
O direito brasileiro prevê a coisa julgada nos artigos 467, 468 e 472 do
Código de Processo Civil.
A coisa julgada somente produz efeitos em relação àqueles que
participaram do processo independentemente do resultado da demanda.
Quando proferida a sentença, ela e seus efeitos ainda são mera
proposta de solução do litígio, como ocorre nas sentenças de mérito ou em
simples proposta de extinção do processo, através de sentenças terminativas,
uma vez que ainda podem ter alterados seu conteúdo.
A decisão judiciária só ficará imune a questionamentos futuros quando
não mais comportar recurso, conforme previsto pelo art. 267 do CPC.
Quando a sentença limita-se a decidir sobre o processo extinguindo-o
sem julgamento demérito, será estritamente processual tal fenômeno, o qual
restringe-se ao processo que se extingue sem repercutir nas relações das
pessoas no que tange ao processo, pois poderão voltar a juízo, com o mesmo
conflito para apreciação pelo juiz, conforme previsto no artigo 268 do CPC.
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No caso da sentença que contém a decisão de mérito, que gera efeitos
além do processo e sobre a vida das pessoas, tem resguardados seus efeitos
de modo que o julgamento daquela pretensão entre aquelas pessoas fique
imunizado de forma perene com a consequente implantação de uma situação
de segurança quanto aos direitos e obrigações dos litigantes.
Cândido Rangel Dinamarco define esta estabilidade e imunização como
coisa julgada, atingindo conforme o caso, somente a sentença como ato
processual ou até mesmo ela própria e também seus efeitos.
2.2. Coisa julgada formal e material
A coisa julgada ainda é classificada doutrinariamente em formal e
material. A primeira significa a imutabilidade da decisão endoprocessualmente,
ou seja, dentro do processo, de modo que não mais sejam admitidos recursos.
Assim, nenhum outro juiz ou tribunal podem introduzir em tal processo outro
ato que substitua a sentença irrecorrível. Por esse motivo, é conhecida como
preclusão máxima. A segunda decorre da irrecorribilidade de uma decisão de
mérito, impedindo, desta forma, nova discussão da mesma lide em outro
processo, por ter sido definitivamente julgada a questão.
Pode-se ainda definir a coisa julgada formal quando a sentença for
meramente terminativa, ou seja, quando extinguir o processo sem julgamento
do mérito. Este fato impede que o objeto da contenda seja discutido novamente
no mesmo processo, enquanto a coisa julgada material decorre das sentenças
definitivas, o que torna impossível a discussão do objeto da decisão, seja no
mesmo processo em que se deu ou em outro eu venha a se formar.
A coisa julgada formal pode ser caracterizada como a imutabilidade da
sentença como ato jurídico processual se já não existirem recursos ou
expedientes processuais que possam modificá-lo, de modo que naquele
processo não haverá nenhum outro julgamento. A coisa julgada opera tão
somente no interior do processo em que se situa a sentença a ela sujeita. Tem
feição e objetivos estritamente técnico-processuais.
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Toda sentença poderá receber a coisa julgada formal, porque tem por
objetivo a extinção do processo e, quando não há mais recurso cabível será
extinto por força daquela decisão e nenhuma outra será proferida naquele
processo. O efeito processual extintivo é comum às sentenças terminativas e
às de mérito, por disposição legal expressa, porque é essa uma função
universalmente reconhecida às sentenças em geral (CPC, arts. 162, §1º, 267 e
269).
São diversos os momentos em que de forma concreta as sentenças
passam em julgado, seja pela variação dos fatores responsáveis pela
preclusão e as técnicas dos recursos, seja porque na prática do processo civil
ocorrem situações peculiares e diferentes entre si, as quais interferem na
irrecorribilidade.
A preclusão temporal é vislumbrada quando a sentença passa em
julgado no momento em que extingue ou expira o prazo para a interposição do
recurso cabível quando este não é interposto.
A preclusão lógica, que enseja o trânsito em julgado, extinguindo o
direito do recurso, acontece em duas hipóteses. A primeira quando há renúncia
a esse direito pela parte vencida (art. 502 CPC). A segunda, quando há
manifesta anuência ou aquiescência à sentença ante a declaração expressa da
parte que aceita, sem qualquer ressalva.
A renúncia ao direito de recorrer não se confunde om desistência do
recurso, pois esta é como a desistência da ação e refere-se a um recurso já
interposto.
O trânsito em julgado por preclusão consumativa somente ocorrerá
quando tiver sido julgado o recurso cabível contra a última decisão possível no
processo, como define Cândido Rangel Dinamarco.
A preclusão consumativa ocorrerá, portanto, quando não mais houver
recurso a ser interposto ou julgado. Se algum recurso inda for admissível e a
parte não interpuser no prazo, ocorrerá a preclusão temporal e não a
consumativa.
A ocorrência da coisa julgada material pressupõe a ocorrência da coisa
julgada formal, mas o inverso não ocorre necessariamente.
A coisa julgada material pode ser definida como a imutabilidade dos
efeitos da sentença de mérito, pois no momento em que já não couber recurso
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
algum será instituído entre as partes e em relação ao litígio julgado uma
situação de absoluta certeza quanto aos direitos e obrigações que os
envolvem.
Segundo Liebmam esse status que transcende a vida do processo e
interfere na vida das pessoas decorre da intangibilidade das situações jurídicas
criadas ou declaradas de modo que nada mais poderá ser feito por elas
próprias ou por outro juiz, que venha a modificar ou contrariar o que foi
decidido, pois a garantia da coisa julgada consubstancia-se na imunização
geral dos efeitos da sentença.
Nos efeitos da sentença encontra-se a fórmula de convivência não
encontrada pelos sujeitos de modo amigável e pacífico, tanto que foi preciso se
valerem do processo e do exercício da jurisdição pelo Estado-juiz.
Segundo Sérgio Gilberto Porto, a diferenciação básica entre coisa
julgada formal e material consiste em que:
...a projeção da coisa julgada material diverge da formal, pois,
enquanto esta se limita à produção de efeitos endoprocessuais –
internos -, aquela os lança de forma pan-processual – externa-,
motivo que se impõe perante demandas diversas daquela em que se
verificou, tornando inadmissível novo exame do assunto e solução
diferente a respeito da mesma relação jurídica, seja por outro, seja
4
pelo mesmo juízo que a apreciou.
A definição dada por Carlos Valder do Nascimento é bastante didática,
segundo ele:
A distinção entre coisa julgada material e formal consiste, portanto,
em que a) a primeira é a imutabilidade dos efeitos da sentença, que
os acompanha na vida das pessoas ainda depois de extinto o
processo, impedindo qualquer ato estatal, processual ou não, que
venha negá-los, enquanto que b) a coisa julgada formal é o fenômeno
interno do processo e refere-se à sentença como ato processual,
5
imunizada contra qualquer substituição por outra.
Em suma, não há dois institutos distintos para a coisa julgada, muito
embora se perceba o mesmo fenômeno da imutabilidade advinda da
4
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa Julgada Civil. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1996. p. 55.
NASCIMENTO, Carlos Valder (org.) Relativização da coisa julgada no ordenamento brasileiro
com a inserção do parágrafo único no art. 741 do CPC. In: Coisa Julgada Inconstitucional. Rio
de Janeiro: América Jurídica, 2002.p. 38.
5
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
impossibilidade de interposição de recurso contra a sentença sob dois prismas
distintos.
A coisa julgada pressupõe uma força oriunda do pressuposto da
verdade, certeza e justiça, formadas ou afirmadas pelo decisum judicial,
impondo estado de irrevogabilidade para o que for assegurado, e, em nosso
ordenamento jurídico, possui proteção constitucional e infraconstitucional.
Prescreve o art. 5º, inciso XXXVI da Carta Magna que “a lei não
prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Assim,
afirma-se que a lei, ao entrar no mundo jurídico, não poderá produzir, em
nenhuma hipótese, eficácia se causar diminuição ou restrição aos limites da
sentença transitada em julgado.
O
dispositivo
constitucional
consubstanciado
no
princípio
da
irretroatividade das leis não pode ser considerado como vedação à
retroatividade da lei, mas, sim, de limitação à aplicação da lei nova e situação
jurídica sob a égide de lei anterior.
Não se pode afirmar que o inciso XXXVI do artigo 5º da CF, constitua
regra geral, mas, sim, regra específica, delimitadora da eficácia de nova lei
apenas nos casos ali previstos, além dos outros já mencionados. José Eduardo
Martins Cardozo observa que:
O respeito ao “direito adquirido”, ao “ato jurídico perfeito”, à “coisa
julgada” (...) não apresenta em si mesmo uma incompatibilidade com
a retroatividade ou mesmo com a ação retroativa admitida como
princípio. (...) Realmente, as leis podem em princípio retroagir,
deixando resguardadas desta ação todas as realidades mencionadas
no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, como também podem em
princípio não retroagir, deixando ao abrigo de uma excepcional ação
6
retroativa estas mesmas realidades.
A proteção constitucional ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à
coisa julgada consagra a estabilidade dos direitos subjetivos, que decorrem de
uma situação jurídica subjetiva consistente num interesse legítimo que é a
expectativa de direito ou um direito condicionado.
6
CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. In: Coleçãao Estudos em
homenagem ao Professor Moreira Alves. Vol. 2. SP: RT, 1995. p. 311.
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O ato jurídico perfeito, cuja definição é dada pelo art. 6º, §1º, da Lei de
Introdução ao Código Civil, é o direito consumado, o qual já incorporou ao
patrimônio do titular, embora ainda não exercido.
Diferencia-se o direito adquirido do ato jurídico perfeito, sob o prisma de
que aquele decorre diretamente da lei em favor do titular, enquanto o segundo
é negócio fundado na lei, conforme ensina José Afonso da Silva.
Todavia, o tratamento dado pela Constituição Federal à coisa julgada é
desvirtuado por muitos de seus intérpretes. Portanto, parece mais correta a
corrente daqueles que entendem ter sido vontade do legislados constituinte
que o limite prescrito no artigo 5º, inciso XXXVI, da CF se restrinja à
impossibilidade de vir a ser prejudicada a coisa julgada por uma nova lei.
A interpretação acima foi muito bem desenvolvida por Paulo Roberto de
Oliveira, Juiz Federal do Estado de Alagoas, conforme extraído de sua obra
Teoria da Coisa Julgada, cujo teor transcreve-se:
Repetindo os textos anteriores, a atual Carta Magna, em seu art. 5º,
inciso XXXVI, estabelece: a lei não prejudicará o direito adquirido, o
ato jurídico perfeito e a coisa julgada. A inserção da regra dentro do
art. 5º da Constituição, atinente aos direitos e garantias individuais, de
certa forma explica a desmedida extensão que alguns refletida ou
7
irrefletidamente teimam em emprestar ao instituto.
Consoante, observa-se que da leitura do dispositivo, a regra nele
insculpida se dirige ao legislador ordinário. Trata-se, pois, de sobre-direito, na
medida em que disciplina a própria edição de outras regras jurídicas pelo
legislador, ou seja, ao legislar é interdito ao Poder Legiferante “prejudicar” a
coisa julgada. É a única regra sobre coisa julgada que adquiriu foro
constitucional. Tudo o mais no instituto é matéria objeto de legislação ordinária.
A interpretação do dispositivo constitucional não oferece dificuldades.
Em princípio, utilizando-se do método gramatical de hermenêutica, poder-se-ia
chegar a duas conclusões interpretativas absolutamente diferentes. A utilização
dos demais métodos de hermenêutica, porém, deixa evidenciada a certeza do
entendimento correto do dispositivo.
Realmente, apenas pela leitura apressada dos termos do anunciado
inciso XXXVI, poder-se-ia chegar a duas interpretações, quais sejam: a) “A lei
7
OLIVEIRA, Paulo Roberto de. Teoria da Coisa Julgada. Ed. RT, 1997. p. 84-86.
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não pode prejudicar a coisa julgada”, ou seja, a lei não pode atribuir ao instituto
da coisa julgada estrutura e limites que lhe emprestam menor amplitude. O
instituto da coisa julgada, valioso aos olhos da Constituição, mereceria do
legislador infraconstitucional toda a atenção, de modo a preservar-lhe a
extensão.
Assim, seria inconstitucional toda disposição infraconstitucional que de
qualquer forma diminuísse a importância do instituto, reduzisse sua incidência.
Por muito maior razão seria inconstitucional o dispositivo que admitisse o
ataque
à
coisa
julgada,
criando
remédio
jurídico-processual hábil a
desconstituí-la. Enfim, por esta interpretação, a Constituição protegeria o
instituto da coisa julgada; b) “A lei não pode prejudicar a coisa julgada”, ou seja,
a lei não pode alterar o conteúdo do julgado, após a formação da coisa julgada.
Editada a sentença sobre determinado caso concreto, é irrelevante que a lei
disciplinadora do tema seja alterada, dado que a solução prescrita pela
sentença, ainda que tenha de produzir seus efeitos no futuro, é intocável, não
se lhe podendo opor comando diferente, ainda que editado por lei.
O bem jurídico da “quietude” e da “paz” foi valorado de tal forma pelo
legislador constituinte, que este interditou ao legislador ordinário editar normas
agressoras a casos já decididos pelo Judiciário. Nova disciplina jurídica do fato
somente incidirá para os casos não julgados. Assim, seria marcadamente
inconstitucional o dispositivo que desobrigasse os devedores de pagar aos
credores (moratória), na parte em que eventualmente estabelecesse sua
aplicação aos casos julgados. Enfim, por esta interpretação, a Constituição
protegeria o teor do julgado.
Das duas interpretações literais (gramaticais) possíveis, a segunda é
aquela que efetivamente corresponde à mensagem legal. Observe-se, por
primeiro, que o referenciado inciso XXXVI não proíbe a lei de prejudicar o
“instituto da coisa julgada”, mas, sim, de malferir a “coisa julgada”. Assim,
mesmo a interpretação gramatical tem a prestigiar o segundo entendimento. A
Constituição interditou o ataque ao comando da sentença, protegendo a
imutabilidade do julgado, o que o tornou imune a alterações legislativas
subsequentes.
A igual solução chega-se através da interpretação sistemática. Além
disso, a proteção da coisa julgada foi estabelecida na Carta Política, em
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dispositivo único que trata cumulativamente da coisa julgada, do ato jurídico
perfeito e do direito adquirido, prescrevendo-lhes idêntico regime jurídico. Está
fora de questão que a Constituição não visou defender o “instituto” do direito
adquirido, nem o do ato jurídico perfeito. Em qualquer dos casos, o desejo do
constituinte foi o de impedir que nova lei tivesse o condão de alterar direito já
adquirido ou ato jurídico já celebrado. Trata-se, aqui, do princípio da não
surpresa e da irretroatividade da lei.
Sabe-se que a lei incide somente sobre fatos ocorridos após sua
vigência, daí porque as relações jurídicas formadas sob o império da lei
anterior devem ser resolvidas segundo os seus comandos. Aliás, a própria
fenomenologia do surgimento dos direitos assegura essa irretroatividade que é
decorrência lógica inarredável da essência do sistema. É que a existência de
direitos subjetivos pressupõe a do fato jurídico (lato sensu), e a deste, a regra
jurídica. Sem a regra jurídica previamente vigente, para incidir quando da
ocorrência da concreção do suporte fático, não há nem incidência, nem fato
jurídico, nem relação jurídica. Ademais, sem estes antecedentes lógicos e
cronológico, não há direito, nem dever, pretensão, obrigação, ação, nem
exceção.
Também assegura a correção da segunda tese a observação dos
institutos processuais que sempre conviveram com a regra constitucional em
comento. Prevalecesse a primeira tese (proteção constitucional da amplitude
do instituto da coisa julgada) e a ação rescisória seria inconstitucional, dado
que se trata de remédio jurídico que tem como único objetivo destruir a coisa
julgada. Da mesma forma também seria inconstitucional o instituto da revisão
criminal, dado que a revisão pode ser requerida a qualquer época, não se lhe
podendo opor o instituto da coisa julgada.
Consoante, observa-se, é perfeitamente constitucional a alteração do
instituto da coisa julgada, ainda que a mudança implique restringir-lhe a
aplicação, na criação de novos instrumentos de seu controle, ou até na sua
supressão em alguns ou todos os casos.
O que a Carta Política não admite é a retroatividade da Lei para influir na
solução dada, a caso concreto, por sentença de que já não caiba recurso.
De outra parte, qualquer alteração no instituto mesmo da coisa julgada,
determinando seu enfraquecimento ou dilargando as hipóteses nas quais se
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admite o ataque ao julgado, não incide no que toque às sentenças já
transitadas em julgado, visto que também, neste particular, rege a lei vigorante
ao tempo em que o trânsito em julgado se deu.
Como se vê, a proteção constitucional da coisa julgada é mais tímida do
que se supõe, sendo perfeitamente compatível om a existência de restrições e
de instrumentos de revisão e controle dos julgados. A proteção constitucional
da coisa julgada nada mais é do que uma das muitas faces do princípio da
irretroatividade da lei.
O conceito acima apresentado sobre a coisa julgada baseia-se no
entendimento da realidade processual decorrente do pronunciamento do juiz do
qual não mais cabe recurso.
A caracterização da coisa julgada também decorre do fator tempo, seja
pelo esgotamento das vias recursais permitidas em nosso ordenamento
jurídico, seja pelo conformismo da parte vencida quando não se pronuncia no
prazo devido contra a condenação que lhe foi imputada,
A autoridade da coisa julgada vem sendo justificada pela doutrina sob
dois prismas. O primeiro é de natureza política. O segundo de ordem jurídica,
como dilucida Moacir Amaral Santos em sua obra Comentários o Código de
Processo Civil.
Sobre o primeiro prisma, o de ordem política, esclarece:
A verdadeira finalidade do processo, como instrumento destinado à
composição da lide, é fazer justiça, pela atuação da vontade da lei ao
caso concreto. Para obviar a possibilidade de injustiças, as sentenças
são impugnáveis por via de recursos, que permitem o reexame do
litígio e a reforma da decisão. A procura da justiça, entretanto, não
pode ser indefinida, mas deve ter um limite, por exigência de ordem
pública, qual seja a estabilidade dos direitos, que inexistiria se não
8
houvesse um termo além do qual a sentença se tornou imutável.
Quanto ao fundamento de ordem jurídica, este é analisado de modo
controvertido pela doutrina, como explica Moacyr Amaral Santos, sendo,
portanto, apresentado sob várias teorias, senão veja-se:
a) A presunção da verdade contida na sentença (Ulpiano, Pothier e outros);
b) A da ficção da verdade ou da verdade artificial (Savigny);
8
SANTOS, Moacir Amaral. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Coleção
Forense, 1998. p. 461-462.
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
c) A da força legal, substancial de sentença (Pargenstecher);
d) A da eficácia da declaração contida na sentença (Heliwig, Binder, Stein);
e) A da extinção da obrigação jurisdicional (Ugo Rocco);
f) A da vontade do Estado (Chiovenda e doutrinadores alemães);
g) A da que a autoridade da coisa julgada está no fato de provir do Estado,
está é, na imperatividade do comando da sentença onde concentra-se a
força da coisa (Chiovenda);
h) A teoria de Liebman que vê na coisa julgada uma qualidade especial da
sentença.
Não obstante a força da coisa julgada, como dessume-se das inúmeras
definições apresentadas pela doutrina, deve-se considerar que na atualidade o
limite de seus efeitos é verificado quanto esta desconsidera os princípios da
moralidade e da legalidade.
Outrossim, há vários questionamentos cujas respostas não se
encontram quando é defendida a imutabilidade da coisa julgada, senão veja-se:
a) A grave injustiça não pode prevalecer em qualquer época, ainda que
protegida sob o manto da coisa julgada, em um regime democrático, porque
este afronta o princípio consubstanciado na soberania da proteção da
cidadania.
b) A coisa julgada é princípio definido e regulamentado pelo direito
formal, via instrumental, que não pode se sobrepor aos princípios da
legalidade, da moralidade, da realidade dos fatos, das condições impostas pela
natureza ao homem e às regras contidas na Constituição.
c) A sentença – ato do juiz – embora atue como lei entre as partes, não
pode sobrepor-se às normas constitucionais.
d) A segurança jurídica imposta pela coisa julgada prevalecerá quando
decorrer de ato não contaminado por desvios graves que desvirtuem e
afrontem o ideal de justiça preconizado na Constituição Federal.
e) A segurança jurídica da coisa julgada impõe certeza, a qual somente
estará caracterizada no mundo jurídico quando não gerar qualquer dúvida, mas
sim verdade absoluta.
f) Deverá prevalecer a coisa julgada quando esta decorrer da aplicação
absoluta do direito material e do direito formal.
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
g) A injustiça, a imoralidade, o ataque à Constituição, a transformação
da realidade das coisas quando presentes na sentença tornam viciada a
vontade jurisdicional de modo absoluto, pelo que, em momento algum ocorrerá
seu trânsito em julgado.
h) Os valores absolutos da legalidade, moralidade e justiça pairam acima
do valor da segurança jurídica. Aqueles são pilares, entre outros que sustentam
o regime democrático, de natureza constitucional, enquanto esse é valor
infraconstitucional, originado no regramento processual.
Insustentável, portanto, que em nome da segurança jurídica, a sentença
viole a Constituição Federal e seja veículo da injustiça, principalmente porque a
própria Constituição Federal preleciona ser finalidade precípua do Estado
brasileiro assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e ajustiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito,
fundada na harmonia social.
2.3. Da desconsideração da coisa julgada inconstitucional
Compete ao Judiciário, enquanto Poder do Estado, a obrigação de
garantir a prática da justiça. Portanto, é inconcebível a pecha de intocável
atribuída à coisa julgada que promova o contrário.
Um dilema é criado quando uma sentença inconstitucional, transitada
em julgado, é desconstituída por ADI. O que será respeitado? A coisa julgada
ou a Constituição Federal?
A sociedade escolhe os valores que devem ser positivados em seu
ordenamento jurídico. A proteção da coisa julgada é um dos valores escolhidos
pela sociedade brasileira. Ideia consubstanciada no princípio da segurança
jurídica, que segundo definição apresentada por José Afonso da Silva “é o
conjunto de condições que tornam possíveis às pessoas o conhecimento
antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos
à luz da liberdade reconhecida”.
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
A confirmação desta afirmação encontra-se consignada no art. 5º,
XXXVI, CF.
A proteção constitucional de uma coisa julgada decorrente de uma
inconstitucionalidade geraria um paradoxo. Portanto, é inconcebível, a
princípio, que a Constituição Federal proteja a coisa julgada que apresente
uma decisão contrária ao seu próprio teor.
A segurança jurídica implica em estabilidade da Constituição e dos que a
realizam.
Deve-se também diferenciar a segurança jurídica da certeza do direito. A
segurança jurídica é um dos princípios do Estado de Direito, consubstanciada
na estabilidade da ordem jurídica constitucional, cuja finalidade é assegurar
nas relações intersubjetivas o sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos
jurídicos pretéritos e futuros decorrentes da regulação das condutas sociais.
Como a Constituição história ou dogmática é a base da segurança
jurídica, a forma de efetivação deste princípio deverá nela constar, bem como
nas outras espécies normativas do ordenamento jurídico.
Todavia, o direito apresentado pode não contemplar de forma plena o
princípio da segurança jurídica. Assim, são criados sistemas jurídicos que
promovem meios para realização e manutenção deste princípio.
O sistema brasileiro vigente não protege qualquer decisão judicial
coberta pelo manto da coisa julgada, mas somente aquelas que se encontram
em consonância com os princípios consagrados na Constituição Federal.
O ex-Ministro do Superior Tribunal de Justiça, José Augusto Delgado,
um dos pioneiros na defesa de relativização, afirma que as teorias da coisa
julgada devem ser confrontadas com os limites impostos pela moralidade,
legalidade e justiça, não podendo transformar fatos não verdadeiros em reais e
ser veículo de injustiça.
Salienta o ex-Ministro que:
... a carga interpretativa da coisa julgada pode ser revista, em
qualquer tempo, quando eivada de vícios graves e produza
consequências que alterem o estado natural da coisa, que estipulem
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
obrigações para o Estado ou para cidadão ou para as pessoas
9
jurídicas que sejam amparadas pelo direito.
Preleciona, ainda, que ao se deparar com o conflito entre o princípio da
coisa julgada e outros postos na Constituição Federal, o intérprete da norma
deve valer-se do princípio da razoabilidade, de forma a prevalecer uma solução
ética, homenageando, assim, os princípios da moralidade, legalidade e justiça.
Cândido Rangel Dinamarco manifesta-se nessa mesma linha de
entendimento defendendo a ideia de que não poderá ser declarada perene a
coisa julgada inconstitucional face a premissa da harmoniosa convivência entre
todos os princípios e garantias plantados na ordem constitucional, pois nenhum
deles pode ser tratado como absoluto.
O doutrinador ainda esclarece que tal entendimento não vaio ao ponto
isentado de minar de forma imprudente a autoritas rei judicatae ou de
simplesmente transgredir o que a seu respeito resta assegurado pela
Constituição Federal. Propõe-se apenas seja tratado de forma extraordinária
uma situação extraordinária, a fim de afastar injustiças flagrantes.
Cândido Rangel Dinamarco lembra que mesmo as sentenças de mérito
só se tornam imunizadas pela autoridade do julgado quando dotadas de uma
imperatividade possível, ou seja, não merecerão tal imunidade quando em seu
decisório enunciarem resultados materialmente impossíveis ou que contrariem
valores de elevada relevância ética, humana ou política, valores estes também
amparados constitucionalmente.
Seria insensato defender a perenidade de um efeito que humanamente
não poderia ser produzido, no caso das impossibilidades materiais.
Quanto às impossibilidades jurídico-constitucionais, estas decorrem de
um juízo comparativo equilibrado entre a relevância ético-política decorrente da
coisa julgada material como fator preponderante de segurança jurídica e a
grandeza de outros valores humanos, éticos e políticos, que são igualmente
garantidos pela Constituição Federal. Por isso, não ficam imunizadas as
sentenças que de forma frontal transgridam tais valores.
9
DELGADO, Jose Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. In Coisa
Julgada Constitucional. Coord. Carlos Valder do Nascimento. 1. Ed. Rio de Janeiro: América
Jurídica, 2002.
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
Do contrário, para se evitar a perenização de conflitos seriam
perenizadas inconstitucionalidades de extrema gravidade, ou até mesmo
injustiças intoleráveis.
Sobre o tema, Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de
Faria assim se manifestaram:
a) – se a inconstitucionalidade significa inexistência da lei e/ou ato,
poder-se-ia falar em Coisa Julgada Inconstitucional se esta se
encontra fundamentada em algo que não existe?
b) – sendo a resposta negativa, indaga-se: a decisão judicial que
contrarie a Constituição faz coisa julgada?
c) – se a resposta continuar negativa (o que é imperativo face à
primeira questão) não se há de falar em relativização da Coisa
Julgada Inconstitucional, visto que não se pode flexibilizar (repita-se)
o inexistente;
d) – como a Arguição de Inconstitucionalidade poderá ser feita a
qualquer tempo, em qualquer instância ou Tribunal, neste caso não
se aplicaria o elemento tempo, ou seja, não se há de falar em
Decadência, Preclusão e/ou ainda Prescrição;
e) – se por qualquer motivo, a Ação Rescisória for apontada como
ilegítima em razão do tempo, a saída seria o uso do Mandado de
Segurança ou ainda Querela Nulitatis defendida por Pontes de
Miranda, cujo prazo de interposição seria de 20 (vinte) anos, e não de
2 (dois) anos, como o é no caso da Ação Rescisória. Nesta última
hipótese, via Ação Declaratória de Nulidade Absoluta da Sentença,
buscar-se-ia a nulidade da sentença calcada em norma,
posteriormente declarada inconstitucional e, portanto, inexistente;
f) – não se há de falar, neste caso, em atentado à segurança jurídica,
vez que esta não se poderá assetar do nada, no inexistente;
g) – dizendo de forma objetiva: lei ou ato eivados de
inconstitucionalidade, não geram direitos nem deveres, pelo que o ato
10
judicial inconstitucional não faz coisa julgada.
Ainda manifestando sobre a coisa julgada inconstitucional, discorrem
Júnior e Faria:
1. O vício da inconstitucionalidade gera invalidade do ato público, seja
legislativo, executivo ou judiciário;
2. A coisa julgada não pode servir de empecilho ao reconhecimento
da invalidade da sentença dada em contrariedade à Constituição
Federal;
3. Em se tratando de sentença nula de pleno direito, o
reconhecimento do vício de inconstitucionalidade pode se dar a
qualquer tempo e em qualquer procedimento, por ser insanável;
4. Não se há de objetar que a dispensa dos prazos decadenciais e
prescricionais na espécie poderia comprometer o princípio da
segurança das relações jurídicas. Para contornar o inconveniente da
questão, nos caos em que se manifeste relevante interesse na
preservação da segurança, bastará recorrer-se ao salutar princípio
10
JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro. In: Revista da Advocacia-Geral da União, Ano
II, nº 09, abril de 2001. p.2.
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
constitucional da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, o
tribunal, ao declarar a inconstitucionalidade do ato judicial, poderá
fazer com eficácia ex nunc, preservando os efeitos já produzidos
como, aliás, é comum no direito europeu em relação às declarações
11
de inconstitucionalidade.
Não obstante os argumentos aduzidos, não se pode desconsiderar,
insista-se, a normatização sobre o assunto, do contrário, seria banalizado o
instituto da coisa julgada.
Olvídio Batista, em seu artigo intitulado Coisa Julgada Relativa, discorre
sobre a “era da incerteza” na qual vivemos, pois as cosias que até agora
pareciam perenes, sagradas, acabam-se desfazendo, face às transformações
culturais. Apoiando-se na teoria de Bauman, diz que vivemos num período que
bem pode ser descrito como “modernidade líquida”, em tazão de que tudo que
é construído origina-se já com o selo de provisoriedade.
Preleciona, ainda, ser impróprio que a injustiça da sentença justifique o
afastamento da coisa julgada, pois se a coisa julgada cedesse à injustiça
apresentada na primeira sentença, como ficaria a segunda? Inatacável? E
como se saberia que a segunda faria justiça?
O respeitável processualista realmente defende o entendimento de que
é indispensável a revisão do sistema de proteção à estabilidade dos julgados,
entretanto, nunca poderá permitir a relativização a partir de pressupostos
valorativos como “injustiça” da sentença “abusiva” ou outras proposições
análogas.
A manifestação supra, encontra-se em consonância com a corrente que
defende a relativização da coisa julgada, pois os doutrinadores até agora
citados não defendem, em momento algum, a absoluta desconsideração da
coisa julgada ante o simples argumento de que restou injusta. Sua defesa é a
de que não se deve falar em imutabilidade de decisão proferida em dissonância
aos preceitos insculpidos pela Constituição Federal, ou seja, uma vez proferida
decisão que não contempla a justiça, a legalidade, a moralidade, entre outros
princípios constitucionais, esta estaria viciada e, por isso, poderia ser
desconsiderada, uma vez comprovados os seus vícios.
Contrário a tal entendimento encontra-se Nelson Nery Júnior, que
defende a imutabilidade da coisa julgada. Segundo ele, tal desconsideração
11
Idem, p. 27-28.
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
seria um artifício para que a ditadura seja instalada no país, pois se poderia
exterminar a democracia a partir do pressuposto de que o princípio da
segurança, do qual a coisa julgada é elemento de existência, é manifestação
do princípio do Estado Democrático de Direito, conforme dessume-se de
entendimento doutrinário mundial.
Assinala, ainda, que até mesmo na ditadura totalitária do nacionalsocialismo alemão, que não era fundado no Estado Democrático de Direito, a
coisa julgada não foi desconsiderada pelos nazistas.
Porém, pode-se discordar do posicionamento supra, pois não há que se
falar “Estado Democrático de Direito” se a Constituição Federal promulgada por
representantes do povo não for respeitada quando da sentença judicial
proferida. Cabe, portanto, ao Judiciário, conforme já salientado, a vigência da
aplicação e do respeito ao texto constitucional, cabendo-lhe assim a revisão de
decisões proferidas, ainda que transitadas em julgado, que não observam tal
aplicação.
Outrossim, o preâmbulo da Constituição Federal dirime tal questão ao
estabelecer:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado
a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da
República Federativa do Brasil.
Não há que se falar em Estado Democrático de Direito se não respeitada
sua Lei Maior, razão pela qual, o exemplo dos nazistas não se aplica ao caso
em debate, pois não havia naquela situação um Estado Democrático de Direito
e as decisões judiciais nunca destoavam das prerrogativas do Estado, caso
contrário, seriam colocadas em risco as vidas dos juízes.
O Estado Democrático de Direito tem por essência a proteção aos
direitos fundamentais, sendo a proporcionalidade instrumento assegurador
desses direitos, redundando na concretização do Estado de Direito.
Partindo desse pressuposto, a proporcionalidade nada mais e do que um
instrumento que proporciona a existência e manutenção desses direitos
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
fundamentais, na medida que impede qualquer atuação abusiva por parte do
Poder Público, nele incluído o Judiciário.
Compete à ciência jurídica não só impor regras de comportamento
individual e social para a manutenção do equilíbrio e segurança da sociedade,
mas também, garantir o fortalecimento das instituições responsáveis pelo
desenvolvimento da pessoa humana, instituições estas estabelecidas na
Constituição Federal e consubstanciadas nos princípios da legalidade, da
moralidade, da eficácia, da impessoalidade e da justiça.
Deverá ser subordinado ao princípio da moralidade qualquer conduta
estatal ou privada, pois a este princípio submete-se a supremacia da própria
lei.
A própria lei, ao ser aplicada pelo Judiciário, está intrinsecamente
vinculada aos princípios da moralidade e da legalidade e só se solidificará
quando não expressar abuso. Em suma, a decisão proveniente do Judiciário
deve exprimir confiança e pautar-se na boa-fé.
O artigo 37 da Constituição Federal ao contemplar obediência aos
princípios de legalidade e moralidade, dentre outros, objetivou abranger todos
os Poderes. Assim, nenhuma prerrogativa excepcional pode ser outorgada à
decisão judicial que vá de encontro ao sistema constitucional.
Tomando por base o padrão ético há que se considerar que o Estado
não poderá proteger sentença judicial, ainda que transitada em julgado,
quando esta entrar em conflito com os princípios da moralidade e da
legalidade. Deverá prevalecer a verdade real.
Conclui-se que a Constituição Federal não quis proteger qualquer
decisão que se apresenta sob o manto da coisa julgada, mas somente aquelas
de conteúdo compatível com a Constituição. Ocorrendo uma coisa julgada
inconstitucional, os instrumentos do ordenamento jurídico possibilitam a sua
destituição. Do contrário, verificar-se-ia uma fragilidade na implementação do
princípio da segurança jurídica.
O efeito prático do princípio da segurança jurídica é que a lei pode
criar novos meios jurídicos de desconstituição da coisa julgada que afronte
princípios consagrados na Constituição Federal, sem afrontar a Constituição.
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
A segurança jurídica é, em suma, o fundamento para a solidificação
das sentenças. Se a inconstitucionalidade da coisa julgada compromete a
segurança jurídica não poderá ser admitida a intangibilidade da coisa julgada.
Humberto Theodoro Júnior entende que a inferioridade hierárquica do
princípio decorrendo daí uma obediência ao princípio da intangibilidade da
coisa julgada é uma noção processual e não constitucional decorrendo daí
uma obediência ao princípio da constitucionalidade. Somente ocorrerá a
intangibilidade quando a coisa julgada não contrariar a Constituição Federal,
do contrário, verificar-se-á a existência de coisa julgada inconstitucional.
Outro argumento favorável ao fim do absolutismo da coisa julgada
material é o de que se nem as leis e atos normativos são intangíveis, podendo
ser julgados inconstitucionais a qualquer momento pelo Supremo Tribunal
Federal, é injusto admitir que a sentença transitada em julgado seja absoluta,
não podendo ser revista após o prazo prescricional previsto da ação rescisória.
José Augusto Delgado ao se referir a sentenças que precisam de
revisão mesmo após o prazo de propositura da ação rescisória utiliza
expressões como sentenças injustas, violadoras da moralidade e dos
princípios
constitucionais.
Alguns
dos
exemplos
são
hipóteses
de
contrariedade a princípios consagrados pela Constituição Federal: sentença
obtida por meio de um perjúrio ou julgamento falso; ofensa à soberania estatal,
provocadora de anulação dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
que ofenda, nas relações jurídicas de direito administrativo, o princípio da
legalidade, da moralidade, da eficiência, da impessoalidade e da publicidade,
que no julgamento de pedido de indenização de propriedade pelo Poder
Público, não respeite o princípio da justa indenização, entre outros.
A consequência da coisa julgada inconstitucional impõe nulidade e, se
a coisa julgada inconstitucional é nula, não se sujeita a prazos prescricionais
ou decadenciais e independe de ação rescisória para eliminação do vício,
segundo Humberto Theodoro Júnior (2002).
No que concerne à violação, há que se ressaltar que o reconhecimento
aos
juízos
de
um
poder
equivalente
ao
controle
incidental
de
constitucionalidade da coisa julgada, como defende Paulo Manoel Cunha da
Costa Otero, que reconhece que uma postura contrária a tal entendimento
ensejará “que o juiz tenha o dever oficioso de recusar a aplicação de normas
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
jurídicas contrárias à Constituição Federal, tendo por outro lado, em
contradição, o dever de aplicar casos julgados inconstitucionais.
Quanto à situação brasileira, que é o objeto deste estudo, também se
aplicam as lições do mestre português que preleciona que em situações
nocivas criadas pela globalização econômica, a conformidade atual da coisa
julgada não mais se justifica em qualquer área do Direito.
2.4. Da importância do parágrafo único do artigo 741 do CPC
Um exemplo de aceitação da legislação pátria da desconsideração da
coisa julgada é a inclusão do parágrafo único ao artigo 741 do CPC pela Lei
11.232/2005, declarando inexigível o título judicial fundado em lei ou ato
normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou
fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo
Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.
Tal preceito legal inspirou-se no direito alemão12 e introduziu no
ordenamento jurídico brasileiro a relativização da coisa julgada ao possibilitar a
revisão de títulos executivos amparados pelo manto da coisa julgada material,
sem se fazer necessária sua desconstituição por meio de ação rescisória.
O disposto no art. 791, I do Código de Processo Civil permitiu que a
incompatibilidade do título executivo em face a Constituição Federal fosse
arguida no próprio processo executivo, possibilitando tal arguição a suspensão
do curso da execução.
Tal dispositivo é objeto de ação direta de inconstitucionalidade proposta
pelo Conselho Federal da OAB (ADI n. 2418-3, Rel. Min. Sydney Sanches).
Não obstante não tenha sido julgada até agora a ADI 2418-3 pelo
Excelso Pretório, esse dispositivo não enseja qualquer violação constitucional
no que tange a garantia da coisa julgada pois, o legislador constitucional não
excepcionou a via da ação rescisória ao estabelecer a garantia da coisa julgada
e nem por isso é incompatível com a Constituição Federal/88 o artigo 485 do
12
Lei do Tribunal Constitucional, §79, n. 1 e n. 2.
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
Código de Processo Civil. Criou-se, portanto, um instituto processual por meio
do qual se ataca a imutabilidade da coisa julgada.
Da análise do texto do inciso II do art. 741 do Código de Processo Civil,
conclui-se que a alegação da coisa julgada inconstitucional não exige, em todos
os casos, a existência de julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal,
posto que a parte final do mencionado dispositivo traz orações iniciadas pela
conjunção alternativa ou – “ou em aplicação ou interpretação tidas por
incompatíveis com a Constituição Federal”. Assim, qualquer arguição de
aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal”.
Assim, qualquer arguição de aplicação ou interpretação incompatível com a
Constituição Federal, também poderá ser alegada nos embargos, ainda que
tenha havido pronunciamento acerca da matéria por qualquer tribunal.
O parágrafo único do art. 741 do Código de Processo Civil apresenta
três hipóteses de inexigibilidade do título executivo judicial: a) a existência de
julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal que tiver reconhecido a
inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo sobre o qual estiver fundado o
título executivo; b) título executivo judicial que implique aplicação considerada
incompatível com a Constituição Federal; e c) título executivo judicial que
implique interpretação considerada incompatível com a Constituição.
As vantagens proporcionadas pela arguição de inexigibilidade do título
por incompatibilidade com a Constituição Federal em sede de embargos do
devedor são evidentes, não só pelo efeito suspensivo atribuído aos embargos,
como também pela facilidade que o julgador terá para conhecer tal lide, posto
que todos os elementos de formação do juízo estará o reunidos em um único
processo apenso, o que proporcionará celeridade na instrução e consequente
economia processual, notadamente para a parte que suscitar o vício por se
encontrar ameaçada de lesão em bem jurídico em decorrência de um julgado
inconstitucional.
Todavia, para o manejo da nova arma, há forte corrente que defende a
necessária declaração de inconstitucionalidade pela STF de lei ou ato normativo
em que se fundou o título executivo e que seu efeito tenha eficácia contra todos,
desfazendo, assim, o ato tido como inconstitucional. Isto é, ficam fulminados
todos os atos pretéritos embasados na norma julgada inconstitucional.
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
Lembre-se
que
a
eficácia
retroativa
da
declaração
de
inconstitucionalidade não tem o condão de automaticamente desconstituir a
coisa julgada das sentenças pretéritas que aplicou determinada norma
inconstitucional, como é o entendimento mantido pelo STF.
Antes deste novo dispositivo legal, permitia o STF a desconsideração da
coisa julgada fundada em violação da Constituição Federal por meio da ação
rescisória, entretanto, expirado o prazo para tanto, não havia outro mecanismo
processual.
Com o novo instituto, abriu-se outro caminho permitindo-se, assim, que a
incompatibilidade do título executivo judicial em face da Constituição Federal
seja arguida no próprio processo executivo.
Observe-se ainda que se for atribuído o efeito ex nunc à decisão
prolatora da declaração de inconstitucionalidade, com base nas exceções
previstas no artigo 27 da Lei 9.868/99, o parágrafo único do art. 741 do estatuto
processual civil, não será aplicada a arguição de inexigibilidade do título.
Também não se aplica o artigo 741, parágrafo único, do CPC, nos casos
de
jurisprudência
reiterada
do
STF,
consistente
em
decisum
sobre
inconstitucionalidade proferida incidenter tantum, em razão de não ter eficácia
erga omnes.
Para que a declaração de inconstitucionalidade proferida na via
incidental, ainda que se trate do STF, possa servir para o manejo dos
embargos previstos no parágrafo único do art. 741, da lei adjetiva civil, é
preciso que o STF, como dito, solicite ao Senado Federal a suspensão do ato
declarado inconstitucional, se assim entender, por resolução que tenha eficácia
erga omnes.
Em suma, a decisão do STF para possibilitar o manejo desse novel
instituto deve possui efeito erga omnes, ou seja, ser proveniente de uma ADI
ou ter sido proferida em uma ação incidental com resolução do Senado Federal
suspendendo os efeitos da lei ou ato normativo declarados inconstitucionais de
forma retroativa.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
Conclui-se do estudo que a lei não pode prejudicar o conteúdo do
julgado que é resguardado pelo princípio constitucional da coisa julgada.
Todavia, não se pode deduzir que o dispositivo constitucional (art. 5,º, inciso
XXXVI da Constituição Federal) proíbe alterações no instituto, seja em sua
estrutura ou limites. A proteção constitucional à coisa julgada deve ser flexível,
permitindo a existência de mecanismos de revisão e controle dos julgados,
ainda que fora do prazo previsto para a propositura de ação rescisória.
Aos olhos do leigo a sentença injusta corresponde à negação do direito
pelo que, deve-se repensar o atual modelo de justiça, na busca ideal de uma
interpretação e aplicação do direito que se amolde aos princípios fundamentais,
sem os grilhões do pragmatismo, tornando-o compatível com a evolução da
sociedade.
Há casos em que resta justificada a rescisão da sentença, quando
acoimada de injusta não pela valoração da prova, mas para que prevaleça a
descoberta da verdade real, a qual deve sobrepor-se à verdade ficta.
Há que ser repensado o conceito da coisa julgada material, em face dos
avanços tecnológicos no campo da informática e da biomedicina. Dar à coisa
julgada o manto da perenidade e da irretratabilidade incondicional, muitas
vezes leva o jurisdicionado a uma frustração incompatível com os princípios da
lei fundamental, calcada na boa-fé e na moralidade.
Tomando-se por prioridade os princípios constitucionais da legalidade e
da moralidade não se pode declarar imutável a coisa julgada sob o argumento
de que é principio constitucional, pois não o será se não forem respeitados
seus outros princípios.
Assim, a proteção constitucional à coisa julgada não poderá ser
considerada imutável, face sua necessária flexibilização em determinados
casos, desde que analisada cautelosamente.
A relativização da coisa julgada tornou-se possível na medida em que foi
evoluindo o Direito e a consciência dos direitos sociais e morais preconizados
na Constituição Federal, tornando-se essencial a atuação do Poder Judiciário
na delimitação dos parâmetros da coisa julgada material.
Se a justiça, a igualdade e outros valores constitucionais não se
encontram consubstanciadas numa decisão judicial, esta deverá ser revista a
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
fim de que não se perpetuem os efeitos nocivos de uma decisão
inconstitucional.
Frise-se que a revisão da decisão judicial, ainda que necessária, deverá
ser feita com cautela, pois do contrário, as decisões jurisdicionais poderiam
tornar-se banalizadas, servindo-se para satisfazer os interesses de alguns, o
que também feriria princípios constitucionais.
A atuação do Poder Judiciário é imprescindível na delimitação dos
parâmetros atuais da coisa julgada material Como consequência, tem-se a
fragilização ou desconsideração da coisa julgada como reação a injustiças ou
fraudes prevalentes na sociedade e que podem ocorrer em quaisquer relações
humanas levadas ao Poder Judiciário para apreciação.
Em suma, os juristas devem servir aos valores humanos mais caros,
como a liberdade, o pluralismo, o humanismo, a dignidade, a igualdade, a
verdade e a paz. Por isso sua missão é ter como máxima a aplicação e
manutenção do justo e do igual nos sistemas jurídicos.
Se a justiça, a igualdade e os demais princípios máximos da
Constituição Federal não foram consagrados ou observados em determinada
decisão judicial, tal decisão poderá ser revista em outra oportunidade para que
não se perpetuem os efeitos nocivos de uma decisão inconstitucional.
O fundamento de manutenção da segurança jurídica não implica em
necessária imutabilidade da coisa julgada quando esta é proferida em
desrespeito à legalidade, à moralidade e outros princípios preconizados pela
Constituição.
Constata-se que a trajetória para a modificação da coisa julgada não
parece tão difícil. Não existe proteção constitucional ao instituto capaz de tornalo absolutamente imutável, pois, como já mencionado, a proteção recai sobre o
julgado, impedindo que lei nova o modifique. Entretanto, a proteção
infraconstitucional não pode subsistir frente à existência de julgados ofensivos
aos princípios fundamentais consagrados na Constituição.
Deve-se ainda considerar como argumento favorável ao fim do
absolutismo da coisa julgada material o dato de que nem mesmo as leis e os
atos normativos federais são absolutos. Posto que podem ser considerados
inconstitucionais a qualquer tempo pelo Supremo Tribunal Federal, seria
absurdo admitir que a sentença passada em julgado seja absoluta e não possa
Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014
ser revista após o prazo prescricional da ação rescisória, quando não coadune
com os princípios consagrados pela Constituição Federal.
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DA DESCONSIDERAÇÃO DA COISA JULGADA Silvana Fortes da