1 Paragens do Médio-Alto São Francisco WJ Manso de Almeida 2 Manso de Almeida, WJ, 1940- Paragens do Médio-Alto São Francisco 1. Crônicas. I. Título. Direitos Autorais: BN/EDA/DF 2010 Nº 623 3 Preâmbulo Sumário 1. A ilha dos Caiapós e a Vila Risonha 2. O Guaicuí e a Pirapora dos Cariris 3. São Francisco das Pedras de Cima 4. Maria da Cruz, Januário e Matias 5. O Itacarambi e o Peruaçu 4 Preâmbulo Piraporá, a outrora aldeia dos cariris, a Pirapora de hoje; Barra do Guaicuí, a antiga N. S. do Bonsucesso e Almas do Guaicuí; Vila Risonha de Santo Antônio da Manga de São Romão, fundada após a conquista da ilha dos caiapós; o povoado de São José das Pedras dos Angicos, origem da atual cidade de São Francisco; Pedras de Maria da Cruz, que homenageia a valorosa proprietária da fazenda das Pedras de Baixo de antigamente; Januária, a cidade da Princesa Infanta, grande centro urbano que tem no Porto Salgado as suas origens; Itacarambi e os segredos da sua geologia e das suas imensas formações cársticas ainda por serem desvendados; as Missões de São João do século XVII e os xacriabás de ontem e de agora. O vale do médio-alto São Francisco guarda histórias, sagas, aventuras, lutas de conquista e integração do território, sertões inóspitos e sertões já dominados, lendas e seres fantásticos ainda declamados nas roças e nas cidades, celebrações folclóricas ainda muito apreciadas, que desafiam as influências modernas, ao mesmo tempo em que ora volta a experimentar o progresso e aguarda o novo ímpeto que certamente virá com o portentoso projeto de canalização do grande rio. De modo descompromissado e descontraído, estas anotações de viagem recolhem coisas do passado e do presente, da monarquia e da república, do real e do imaginário, do extraordinário e da beleza do mundo físico e da bondade das gentes. Uma maneira de ver e considerar as coisas que parece ser muito comum aos viajantes, aos estudiosos, aos turistas, a todos nós brasileiros, enfim. Curiosidade, vontade de saber o que se passa nessas terras do interior mineiro, muitas vezes despertada pelas aulas de um professor de geografia. E, no presente caso, pelas aulas do Doutor Nicolau, no Ginásio de Palmira, há muito tempo. Brasília, junho de 2010 WJ Manso de Almeida 5 1. A ilha dos Caiapós e a Vila Risonha Mostra-se de proporções muito modestas, essa ilha que o rio São Francisco forma e abraça no seu curso médio-alto, pouco depois de receber o Paracatu. Todavia, acontecimentos significativos aí tiveram lugar. A historiografia aponta que nesses arredores desenrolaram-se decisivos episódios da ocupação e da organização política do território brasileiro, à medida que avançava a interiorização promovida pelos desbravadores dos sertões. Ou seja, a partir da chegada dos bandeirantes, dos caçadores de riquezas naturais, dos fundadores de fazendas para a criação de gado e o cultivo de mantimentos, dos fugitivos do fisco, do cativeiro e do ambiente de perseguições das Minas, assim como dos autóctones que, buscando reorganizarem-se no espaço ora invadido pelos estrangeiros, reavivavam suas próprias rivalidades tribais e expulsavam uns aos outros. Nessas paragens ribeirinhas, a ocupação das terras teria tido início na segunda metade do século XVII, e o definitivo assentamento das vilas e arraiais prolongara-se até fins do século dezenove, muitas vezes ainda em meio a conflitos exacerbados entre os seus líderes políticos e seguidores. E várias das cidades são-franciscanas de igual origem vieram a ser constituídas, e firmemente reconhecidas, somente nas primeiras décadas do século XX, fato que levara a uma nova redivisão político-administrativa do espaço regional. Os caiapós estabeleceram-se na citada ilha são-franciscana e vieram a ser caçados e daí rechaçados pelos bandeirantes e desbravadores, em nome da Coroa Portuguesa. Os cariris subiram o rio um pouco mais, indo fixar aldeias junto à barra do Guaicuí e defronte às corredeiras do pira-porá. Depois, os novos ocupantes das terras desentenderam-se entre si. O passado dessa ocupação não foi uma era de tranquilidade, portanto. Lutas, que hoje, talvez, se deplora com mais veemência, aí tiveram lugar durante longo tempo e certamente acarretaram muito sofrimento. Mas, parece que a alegria de se ter conseguido fincar o pé na terra, de se ter conquistado o território, de se ter construído uma nova comunidade, com os seus gostos, os seus costumes, as suas leis de município, os seus representantes e autoridades locais, veio a ser registrada, em muitos casos, no próprio nome escolhido para o novo centro urbano. Eis, pois, o porquê do alegre título Vila Risonha de Santo Antônio da Manga de São Romão! Batizar-se de risonha uma vila e declará-la protegida por dois santos padroeiros, conquanto 6 estendida às margens das águas já benditas por outro santo ainda, não pode revelar senão um grande contentamento com o sucesso então conseguido. Todavia, esse bonito título de Vila Risonha, sofrendo as simplificações características dos últimos tempos, que muitas vezes mais parecem denotar falta de imaginação ou carência poética, foi mudado para São Romão, simplesmente. E, surpresa! Na cidade parece não haver sequer uma capela devotada ao santo! Apenas uma tosca imagem sua pode ser vista junto ao muro da Casa Paroquial. E poucas construções antigas aí subsistem, enquanto as ruas e avenidas apresentam-se largas e retilíneas, as principais mostrandose ornadas de filas de altas palmeiras. A cidade, hoje próspera nas suas atividades agropecuárias, desenvolveu-se às margens do grande rio, do lado esquerdo do seu leito, bem defronte à ilha outrora ocupada pelos caiapós. O Riachinho da Ponte, um pequeno tributário do São Francisco muito prezado pela comunidade, corre nas proximidades delimitando o lado leste da área urbana. Nessas vizinhanças do São Francisco, as festas dos Santos Reis, ou festejos dos Reis Magos, começam no Natal e se prolongam até fins do mês de janeiro. E são várias as comemorações, as quais incluem diversas manifestações de louvor e ações de graça já incorporadas aos costumes locais. Assim, num dia especialmente escolhido pelos romeiros, São Romão torna-se o ponto de encontro para o encerramento de uma concorrida cavalgada, o que se dá com um desfile pela avenida principal, seguido da benção dos cavalheiros pelo pároco e a condução das montarias ao Riachinho da Ponte, para o refresco e descanso dos animais. Vindos de inúmeros lugares, fazendas e povoados, os romeiros contam-se às centenas, todos se trajando de vermelho e azul, uniformemente, enquanto os seus corcéis apresentam-se enfeitados segundo o gosto de cada cavaleiro. Nas cercanias da cidade, o Riachinho espraia-se generosamente entre os apartados limites determinados pelo arvoredo do cerrado, formando uma boa aguada, limpa e sem perigo de atolamento para os animais, conforme ensina o pessoal do lugar. Tal recanto tem o seu encanto: uma pequena ponte de alvenaria, parecendo mostrar-se um tanto ilhada naquela várzea, o riacho alargado, aqui e acolá coberto de uma vegetação rala e verde, as franjas da savana brasileira, numa e na outra margem, o reboliço que trazem os romeiros e suas montarias, as crianças que aproveitam para cair n’água sob um sol brilhante. Tudo parece trazer alegria e levar ao distanciamento do resto do mundo. Ao cair da noite um forró toma conta do ambiente e enfatiza o sincretismo dessa manifestação religiosa brasileira. O São Francisco e os seus grandes afluentes Paracatu e Urucuia determinaram a formação de extensos areais, grandes baixios, verdadeiras planícies num território onde, em tempos remotos e ao longo de largos períodos, esses rios correram segundo cursos variáveis, alagando áreas 7 enormes, antes de se acomodarem às suas calhas atuais. Mas, volta e meia transbordam outra vez, tentando recuperar o espaço que dominaram ou buscando avançar sobre novos sítios. As denominadas Planícies do São Francisco constituem uma figura bem definida no mapa das unidades de relevo e os grandes areais mostram-se comuns, acompanhando todo o percurso sãofranciscano. Nessa região, por vezes, as estradas de rodagem que ainda não contam com pavimentação correm sobre esses areais por dezenas e dezenas de quilômetros. Entre as cidades de São Romão e Urucuia, a MG 202 percorre cerca de 60 quilômetros sobre um chão de muita areia e terreno de baixio e suaves ondulações. De um lado e do outro dessa estrada espalha-se o areal, e sobre esse solo estende-se um cerrado denso, com os seus típicos arbustos e árvores de pequeno porte, de ramos suberosos e retorcidos e de folhagem buscando a copa, que competem entre si pela luz do sol. Fechada, cerrada mesmo, essa vegetação que no estio aguça a sensação de secura, enquanto aproveita-se, zombeteira, para se mostrar mais florida, impede a visão mais larga do panorama, forçando o viajante a se contentar com o horizonte que ele possa divisar lá adiante, onde a estrada galga ligeira elevação. Aqui o forasteiro sente certa clausura, certo isolamento no meio desse sertão árido, de céu muito claro, de sol ardente, de mata sem fim, de silêncio quebrado apenas pelo assovio distante da ave de rapina ou pelo estalo de um galho ressequido. Nessa estrada, onde a sinalização é inexistente, as encruzilhadas e bifurcações revelam caminhos iguais entre si, igualmente arenosos, igualmente margeados pela mesma fisionomia de vegetação, onde as trilhas marcadas pelo pouco movimento mostram-se idênticas nesse e naquele caminho que aí se cruzam, onde, tanto numa quanto na outra direção, vê-se a contínua e retilínea rodovia de chão esbranquiçado que ondula levemente e some ao longe, no final de mais uma chapada. E o viajante segue quase sempre guiado pela intuição, pois que encontrar outro transeunte ou um morador local para as informações requeridas poderá vir a ser coisa do acaso. De repente topa-se com uma porteira de fazenda vedando a passagem pela rodovia. Felizmente, esse obstáculo absurdo pode ser a indicação de que o viajante encontra-se, então, próximo do seu destino. De fato, logo adiante uma balsa o aguarda para a travessia do rio Urucuia, que aí se apresenta largo, sereno, majestoso, trazendo uma brisa mansa e refrescante. Os sertões do noroeste de Minas e das paragens do São Francisco já inspiraram muitas histórias e ainda hoje aí surgem lendas e casos muito sérios. É fácil imaginar que lá no interior daquele cerrado surgido nos areais, naqueles ermos onde a noite é uma escuridão que demora, onde o amanhecer tarda e, às vezes, não chega, lá ainda viva o lendário Romãozinho, alma danada de menino malvado, que joga areia nas janelas e pedras nos telhados das casas, que espanta os animais do curral, que confunde as estradas nas encruzilhadas 8 desencaminhando os tropeiros, que grita e chora e assobia nos buracos das fechaduras, assustando as pessoas e lhes fazendo arrepiar os cabelos. Mas, essa história do Romãozinho é antiga. Há uma mais nova, destes mesmos tempos da informática. É a história da Júlia. Filha da Júlia e neta de outra Júlia. Todas criadas pelas suas tias, posto que as suas mães somem, sempre somem, desaparecem misteriosamente. Tudo corre muito bem, a menina cresce com saúde e inteligência, meiga e obediente. Num dia qualquer, sem quê nem por que, a Júlia some: Júlia! Oh Júlia! Julhaa! Oh menina! A tia chama pela Júlia, por ela procura por todo lado, a noite vem, mas a Júlia não volta. Assim sumiu a avó, deixando uma filha, assim sumiu a mãe, deixando a sua filha, assim sumiu a Júlia, e mais tarde vieram dizer que ela deixara outra filha Júlia. É sina de família. Não tem jeito. Julhaaa! Alguns dizem que as Júlias se transformam em gavião acauã, pois quando se clama pela Julia, muitas vezes o pássaro responde lá do meio do cerrado: acauãã! E se a gente insiste, chamando novamente: Julhaa! Juulha! O gavião fica bravo, eriça um topete e responde irritado: acauãã! Macauã-acauãã! E voa pra mais longe. Dizem que a Júlia é um acauã enfeitiçado. Travessia do rio São Francisco frente a São Romão 9 A Igreja do Divino Espírito Santo A Chegada dos romeiros a São Romão Desfile dos cavaleiros na avenida central O acauã 10 O trecho arenoso da MG 202 O incrível rio Areias, próximo a Urucuia Travessia do rio Urucuia 11 2. O Guaicuí e a Pirapora dos Cariris Os cariris, originários das terras hoje cearenses, subiram o São Francisco para além da ilha dos caiapós e vieram fixar aldeia junto à barra do rio Guaicuí. Subiram um pouco mais e construíram outra aldeia. Essa, junto às pedras do pira-porá, as corredeiras são-franciscanas tão características da Pirapora atual. O nome indígena Guaicuí foi mantido na identificação oficial da povoação, a qual hoje constitui o distrito administrativo de Barra do Guaicuí, enquanto a denominação de rio das Velhas, dada pelos bandeirantes, veio vingar para aquele grande afluente do São Francisco. Essa povoação do Guaicuí exercera maior influência política até o último quartel do século XIX, quando deixou de constituir a sede de uma divisão administrativa da Província de Minas Gerais. Até então se chamava Vila de Nossa Senhora do Bom Sucesso e Almas do Guaicuí. Uma denominação que bem sugere a satisfação de uma conquista bem sucedida. Alguns testemunhos da arte colonial de cunho luso-brasileira acham-se guardados no Museu Municipal desse histórico distrito, tratando-se de esculturas e pinturas de motivação religiosa, cujas idades foram datadas do século XVIII. E, cabe observar, as suas características não parecem diferir daquelas das artes da região das Minas dos setecentos. Mas a Barra do Guaicuí guarda um tesouro talvez ainda mais apreciado: as ruínas da igreja de Bom Jesus de Matozinhos. Toda de pedra e argamassa, exibindo portais e arcos esculpidos, paredes altas e muito espessas, denotando dois andares e sugerindo um misto de casa paroquial e capela. Essa construção, que impressiona o visitante, teria sido abandonada antes mesmo da sua conclusão. Uma relíquia do século XVII, segundo informação corrente e em conformidade com uma placa fincada no local, que aponta o ano de 1635. A sua aparência de antiguidade ganhou ainda mais destaque com o crescimento de uma gameleira junto à parede dos fundos, ou seja, do lado externo da extremidade leste da igreja. Hoje, já enorme realmente, essa árvore tomou conta de toda a parede, tendo a sua altura ultrapassado o topo do edifício, enquanto as suas raízes vararam para o interior da construção. Motivado pelo espírito de comunidade e por iniciativa própria, um morador vizinho dedica-se a manter a limpeza do sítio. Contudo, essa preciosidade histórica está a requer cuidado especial para que a sua preservação possa ser garantida. A igreja de Bom Jesus de Matozinhos acha-se bem junto da margem direita do Guaicuí, distando algumas centenas de metros do encontro desse rio com o São Francisco. Sobranceiro, o velho edifício parece ter servido de atalaia, de 12 onde os movimentos de barcos e gentes dessas vizinhanças podiam ser vigiados, então. Daqui se vai ao interior da Bahia e ao Pernambuco pelo São Francisco, também se alcança Paracatu do Príncipe, nos limites entre Minas e Goiás, subindo-se o grande afluente Paracatu, enquanto seguindo-se pelo rio das Velhas chega-se às cercanias de Curvelo, ao sopé da serra de Diamantina e a Sabará, onde se fundia o ouro e se cunhavam moedas no Brasil Colonial. A historiografia não deixa de lembrar que Fernão Dias Paes aqui esteve e até sugere que o corpo do bandeirante estaria sepultado junto dessas ruínas da igreja de Matozinhos. Numa passagem do poema épico O Caçador de Esmeraldas, Olavo Bilac declama: “Teu nome rolará no largo choro triste Da água do Guaicuí... Morre, Conquistador! Viverás quando, feito em seiva o sangue, aos ares Subires, e, nutrindo uma árvore, cantares Numa ramada verde entre um ninho e uma flor!” Naqueles tempos distantes, conforme já lembrado, os cariris aldearam-se, também, defronte às pedras do pira-porá, ou seja, às margens do lugar do salto do peixe. Conta-se que na piracema os peixes saltam, ou saltavam, por sobre as pedras da corredeira local são-franciscana, para prosseguirem na sua viagem rio acima, em busca de um lugar adequado para a desova. Essa designação indígena veio manter-se na denominação da sede do atual município de Pirapora. E a praça pública mais famosa da cidade tem o nome de Cariris, para não se esquecer que a antiga aldeia situava-se exatamente aí, nesse largo da beira-rio. A povoação evoluiu pouco a pouco, atribulada com as mesmas lutas de definição e redefinições político-administrativas que experimentaram os demais municípios da região. Mas nos últimos decênios do século XIX o então arraial de São Gonçalo de Pirapora passou a ser frequentado pelas embarcações a vapor e os maiores comerciantes de Curvelo tomaram particular interesse pelo lugar, aí investindo em armazéns e nas transações de algodão em rama e tecidos. O arraial tornou-se vila e, nos começos do século XX, distrito-sede do município de São Gonçalo das Tabocas. Em seguida as duas lideranças separaram-se: São Gonçalo das Tabocas sede de um e Pirapora sede do outro município, o mais novo. Além de ter passado a contar com um ramal de estrada de ferro, ligando o seu centro urbano com a malha ferroviária nacional, já nos começos do novo século Pirapora recebia grandes embarcações de linhas regulares, inclusive aquelas vindas da cidade mineira de Paracatu, situada junto à divisa com o estado de Goiás. O ramal ferroviário, que hoje serve, sobretudo, ao próspero distrito industrial de Pirapora, chegou a constituir parte de um grande projeto nacional que previa estender-se a ligação férrea do Rio de Janeiro até a cidade de Belém do Pará. 13 A ponte metálica Marechal Hermes, que ora se vê atravessando o rio entre Pirapora e Buritizeiro, integrava aquele destacado projeto, o qual não teve prosseguimento, porém. Atualmente a ponte facilita a comunicação entre essas duas cidades ribeirinhas, permitindo o trânsito de pedestres e dos veículos de duas rodas, além de se constituir num atrativo turístico: medindo 694 metros de comprimento, com 14 vãos de igual desenho, a sua estrutura perfaz uma bonita composição paisagística com as corredeiras do pira-porá. Dos pitorescos barcos a vapor das linhas regulares do passado, a cidade guarda o estimado Benjamin Guimarães, um bonito gaiola de três andares, dotado de uma alta chaminé e de uma grande roda d’água na sua popa, ainda empregado para os divertidos passeios turísticos até a barra do Guaicuí. Vez por outra dá uma esticada até Januária. No começo dos anos 1980 o Benjamin Guimarães achava-se quase imprestável, encostado na beira do rio, deteriorando-se. Mas, na segunda metade daquela década, o então novo diretor da Companhia de Navegação do São Francisco, o mineiro Wilson Alves de Carvalho, ali reconhecendo um patrimônio de valor histórico, tomou ao seu encargo a recuperação do grande barco. O batismo do redivivo Benjamin se deu com uma viagem a Juazeiro, carregado de autoridades municipais, estaduais, ministeriais, da Capitania dos Portos e da própria Companhia de Navegação, uma honorável comitiva que foi recebida com festejos especiais naquela famosa cidade baiana. Pirapora consolidou a sua importância político-administrativa nos primeiros decênios do século XX, conquistando a sua independência municipal e tomando feição de cidade moderna, de arruamento bem traçado, de porto fluvial organizado dotado de uma Capitania da Marinha do Brasil, de praças públicas prazerosas e de bonitas construções públicas e particulares, comerciais e residenciais. A arquitetura realizada naquela época ainda pode ser apreciada em muitos pontos da cidade. O estilo dominante era o neoclássico do império brasileiro, o qual foi seguido pelas decorações de influência francesa, art nouveaux e art deco. A virada do século XIX e o início do século XX trouxeram para todo o país, que então deixava a monarquia e adotava a república, novas idéias, novos projetos e renovado surto de progresso, o qual também veio expressarse na construção civil. E essa nova etapa da vida nacional veio retratar-se, igualmente, na arquitetura de Pirapora. O coreto da Praça dos Cariris parece uma preciosidade, quando se considera todos os aqueles detalhes de decoração império brasileiro, quer no seu desenho, quer nos seus motivos, quer nas suas cores. A igreja matriz de São Sebastião, com a sua torre alta e pontiaguda, assentada sobre um nártex que antecede a espaçosa nave-salão, segue as sugestões do neogótico do norte 14 da Europa continental. Um estilo simplificado, encontradiço na Polônia, que veio a ser empregado nas construções católicas de igual época em várias cidades de Minas Gerais. E muitas das residências e das casas de comércio de Pirapora guardam bonitas fachadas de influência neoclássica, ou nouveaux, ou deco, que o arquiteto brasileiro soube acomodar com elegância nessas construções. Cores, guirlandas, conchas, escudos, arcos, pináculos, painéis de figuras geométricas, aí tudo se apresenta numa expressão de alegria e riqueza. A igreja de Bom Jesus de Matozinhos O rio das Velhas em Barra do Guaicuí 15 A ponte Marechal Hermes e as corredeiras O histórico Benjamin Guimarães O coreto da Praça dos Cariris 16 A igreja matriz de São Sebastião Extraordinários desenhos de fins do século XIX 17 Pináculos na platibanda Guirlandas do estilo império brasileiro A elegante geometria do decô 18 3. São Francisco das Pedras de Cima Cidade de São Francisco, às margens do rio São Francisco. Outro, porém, é o santo padroeiro daquela igreja branquinha que se vê lá embaixo. Erguida sobre uma ondulação do terreno de pedra calcária e com uma torre muito alta, lá de longe a igreja dá as boas-vindas ao visitante que faz a travessia de balsa para a cidade. Aquela é a Matriz de São José, e o nome dessa igreja paroquial testemunha a longa história contada nos registros oficiais ou, às vezes, apenas oficiosos, ao que parece. Dizem que nesses sítios, inicialmente um simples posto avançado visando ao domínio da tribo dos caiapós aldeados mais a montante, um valente desbravador fundou a fazenda de Pedras de Cima. Essa designação estabelecia distinção de identidade e relação geográfica com a fazenda das Pedras de Baixo, que pertencera à histórica personagem Maria da Cruz e que se situava a jusante, no lugar de origem da atual Pedras de Maria da Cruz. A fazenda das Pedras de Cima tornou-se um povoado, então inserido no âmbito da paróquia de São José das Contendas. Emancipando-se dessa divisão paroquial, o povoado veio denominar-se São José das Pedras dos Angicos, dado que, além das pedras calcárias, os belos angicos ganhavam a admiração dos moradores. Evoluindo para a condição de sede de divisão administrativa, o povoado de Pedras dos Angicos passou a se chamar Cidade de São Francisco, conforme decisão tomada em assembléia legislativa de 1877, quando os deputados chegaram a considerar o nome de São Francisco das Pedras. Quem sabe o nome completo dessa cidade não seria São José das Pedras de Cima dos Angicos de São Francisco? Ao longo e no entorno do leito do rio São Francisco, desde as suas nascentes no sudoeste de Minas, a ocorrência de rochas calcárias é coisa corriqueira. E tais formações rochosas vêm aflorar na beira-rio da cidade, apresentando uma suave elevação no sítio onde se ergueu a igreja de São José. Esse tipo de rocha favorece o desenvolvimento de grutas, cavernas, fossos e locas, dando origem às chamadas formações cártiscas, as quais são características do famoso Parque Nacional do Peruaçu. Aqui em São Francisco, essa formação rochosa confere um aspecto altaneiro ao frontal da cidade, com uma murada para o seu cais de atracação e uma posição mais elevada para a igreja, fazendo da torre campanária uma espécie de farol, ou de guia para os barcos que buscam o porto fluvial. Essas pedras afloradas, que vieram dar nome ao antigo povoado, também esconderiam fossos, cavernas inundadas, caves cheias d’água. E corre a lenda de que naquelas pedras defronte à igreja, bem debaixo do velho Cruzeiro, existem uns 19 buracos muito fundos, uns corredores cheios d’água, abaixo do nível do rio. Foi para esse lugar que o surubim levou a criança que ele salvara – conforme, nessas paragens, conclui a lenda do peixe dourado e o menino, conhecida em tantos recantos do país. A criança fora atirada ao rio num acesso de loucura da sua mãe. Com presteza, porém, o surubim recolhe o menino rejeitado e, na sua morada debaixo do Cruzeiro velho, irá criá-lo com carinho. Hoje, na opinião de alguns, nada mais se sabe do sucedido, conquanto outros digam que o menino ainda está vivo, já de cabelos brancos como um ancião, embora não tenha crescido, continuando pequeno como uma criança. Não raro tais fantasias são contadas descontraidamente, com certa naturalidade, como que demonstrando o apreço que as pessoas dispensam às tradições e costumes da sua comunidade. E, de fato, aqui se tem um rico acervo cultural para se cuidar, conforme bem mostra a originalidade da decoração da cerâmica de Buriti do Meio. Assim como noutras comunidades da região, em São Francisco os festejos dos Santos Reis, ou dos Reis Magos, prolongam-se para além do dia seis de janeiro, até os últimos dias e noites daquele mês. E nesses festejos incluem-se várias celebrações, rezas e danças, que, mais uma vez, revelam o sincretismo de muitas das manifestações religiosas brasileiras. Um sincretismo que merece a reprovação de alguns, enquanto louvado por outros, pois que aí veem uma manifestação onírica, uma manifestação do espírito pacífico, sonhador e alegre que caracteriza o povo simples deste país. O Boi de Reis é uma concretização dessas expressões culturais, e que nada parece ter de caráter religioso. Não há um dia escolhido previamente para que esse acontecimento seja realizado, pois que promovido quantas vezes quanto desejarem os seus adeptos e participantes, podendo, ademais, ter lugar em vários pontos da cidade simultaneamente, tal como se dá com as festas juninas. Diz-se que se compra o Boi - com uma prenda, oferenda ou contribuição em dinheiro, geralmente junto a um grupo de pessoas do bairro residencial. Esse grupo promotor do festejo não se constitui, necessariamente, numa entidade organizada. Embora uma irmandade, associação ou grêmio possa interessar-se numa tal promoção, é muito comum que o festejo surja da simples iniciativa de um grupo de jovens, os quais visariam, por exemplo, arrecadar dada quantia em benefício próprio. Assim, o montante obtido nas suas apresentações poderá vir a ser redistribuído entre os participantes ou, até mesmo, usado para o custeio de uma festa de confraternização do mesmo grupo de amigos. Contudo, as motivações podem variar sobremaneira, e o intuito beneficente de uma entidade promotora organizada não parece excluído desse rol de propósitos. 20 E lá aparece o Boi, numa indumentária semelhante àquela do também conhecido Bumba Meu Boi de outras regiões do país: a estilizada figura bovina numa armação de cestaria, madeira e papier-mâché, ou coisa de igual efeito, revestida de panos coloridos e muito enfeitada. Na região são-franciscana, o séquito do Boi de Reis apresenta-se numeroso e com personagens indispensáveis. Seguem-lhe, portanto: os Tocadores, com tambor, zabumba, pandeiro e reco-reco, as Vidaleiras, que são as dançarinas muito agitadas do grupo, os Vaqueiros, responsáveis pelas lutas ou rusgas figuradas, a Mulinha de Ouro, presença cuja importância rivaliza-se com o aquela do próprio Boi, além do curiosíssimo personagem Bicho Tamanduá. O deslocamento do cortejo é feito alegremente à marcha folgada do Boi de Reis, todo enfeitado e colorido, ao som do batido dos instrumentos dos Tocadores, à agitação das evoluções das Vidaleiras e dos movimentos irrequietos da Mulinha, nos seus volteios surpreendentes, e com o acompanhamento do Bicho Tamanduá e dos Vaqueiros. Esse grupo desloca-se sem pressa, na verdade, mas com muita movimentação interna. E cantam as Vidaleiras, incentivando a Mulinha: A Mulinha é ouro É ouro só A chegada à casa do Comprador do Boi é anunciada com um verso cantado, com o acompanhamento dos Tocadores: Chegou, chegou Chegou meu Boi aqui, agora Chegou meu Boi de Reis Neste instante, nesta hora Segue-se a apresentação individualizada de cada personagem, declamando-se ou cantando-se versos próprios a cada um deles, bem como uma animada e confusa briga figurada e generalizada, com pinotes da Mulinha e investidas do Boi. Concluída a apresentação, lá vai outra vez o Boi de Reis marchando num requebro manso, com o seu fogoso séquito em evoluções sem descanso, na busca de um novo endereço: A Mulinha é ouro É ouro só... O visitante da cidade grande, onde esses folguedos simples inexistem, ou há muito foram substituídos por diversões mais modernas, poderá sentir-se um tanto surpreso, experimentando, talvez, certa estranheza quanto aos sentimentos que tais celebrações folclóricas aí despertam. Paz de espírito, alegria singela, distanciamento das preocupações corriqueiras do mundo atual. 21 Em São Francisco também se conhece a Reza de São Gonçalo, um santo casamenteiro de origem portuguesa, da cidade de Amarante, cuja celebração foi modificada em terras brasileiras e se mostra variável segundo os gostos, os costumes e as crenças das diferentes comunidades. Diferentemente do Boi de Reis, a Reza é encomendada a uma irmandade ou grupo organizado, geralmente com o propósito de se pagar uma promessa feita ao santo. A dança parece constituir o ponto alto dessa manifestação folclórico-religiosa, tratandose da representação de uma corte, com vistas a um possível matrimônio. Reúne-se à frente do anfitrião ou mestre da cerimônia uma fila de pares de figurantes femininos, que seriam as moças pretendentes, cada par sustentando, entre si e um pouco acima das suas cabeças, um arco enfeitado de guirlandas e fitas brancas, e, assim, parecendo a fila formar um túnel. Ao lado do anfitrião acha-se uma pequena orquestra: viola, sanfona, rebeca, pandeiro, chocalho e reco-reco. Um par de figurantes masculinos, os possíveis noivos, também se acha ao lado do mestre. Todos se vestem de branco. Essa apresentação, ou dança, divide-se em etapas, jornadas ou langas, cuja coreografia parece ser muito variável. Eis uma dessas langas: ao som de uma melodia simples e repetitiva, os pares femininos enfileirados ensaiam passos para um lado e para o outro, ondulando o corpo, suavemente. O primeiro par, num movimento gracioso, cede o seu lugar de primazia ao segundo par da fila. Esse, depois de ensaiar os seus passos laterais, irá ceder a primazia ao terceiro par da fila original, que a essa altura já trocou de posição com aquele par que viera ocupar o segundo lugar. Dá-se, pois, uma sequência de movimentos sincronizados, em que cada par feminino apresenta-se ao mestre, ensaia os seus passos e cede a vez ao par seguinte. A dança continua até que venha a ser reconstituída a ordem em que os pares se achavam originalmente. Nesse momento tem início a nova etapa da dança: o mestre ordena que o par de noivos apresente-se a cada par feminino pretendente. Essa apresentação é feita por meio de movimentos graciosos do par de noivos, evoluindo segundo uma linha sinuosa entre os pares femininos da fila, que, ao mesmo tempo, ensaiam ligeiros passos laterais. Ao que parece, a finalização dessa dança não se conclui com um casamento, necessariamente. A corte entre os pares parece ser o verdadeiro propósito dessa representação. Ao som da música repetida e ritmada, os pares femininos cantam versos enquanto dançam. Eis um verso tirado de um relato de Ariosto Espinheira, embora não faça parte do repertório são-franciscano, necessariamente: São Gonçalo do Amarante, Casamenteiro das velhas, Por que não casa as moças, Que mal lhe fizeram elas? 22 Segundo um estudioso das artes, muitas são as variações brasileiras dessa dramatização folclórica da Reza de São Gonçalo. E, de fato, até mesmo no restrito âmbito dessa região do norte de Minas, certas diferenças podem ser notadas: a Reza que se assiste no bairro da colônia de pescadores de São Francisco, por exemplo, não parece seguir a mesma coreografia daquela retratada e descrita pelo Centro de Artesanato Regional de Januária. A cidade tem nos arredores do cais e da igreja de São José a sua parte mais antiga, com uma ou duas bonitas praças arborizadas e ruas mais estreitas para se abrigar do sol. Contudo, aí também já foram feitas obras de modernização ao longo da beira-rio, tal como a nova pracinha denominada Orla, muito apreciada pelos moradores. A cidade mais nova desenvolveu-se para o interior, para trás da igreja matriz, com um centro comercial de ruas e avenidas largas, retilíneas, algumas ornadas de canteiros centrais de altas palmeiras. São Francisco ainda guarda bons testemunhos da sua arquitetura mais antiga, tanto nas proximidades do cais, quanto junto ao centro de comércio. E tendo sido fundada em fins do século XIX, essa arquitetura caracteriza-se pelas decorações império brasileiro e art nouveaux, principalmente. Mas, a influência do art deco francês está presente naquelas construções dos primeiros decênios de século XX. Por seu turno, a igreja de São José mostra uma arquitetura simplificada, influenciada pelo neogótico do norte da Europa continental, com a sua torre campanária sobre nártex, à frente da grande navesalão. Uma arquitetura religiosa muito adotada nas cidades mineiras fundadas naquela virada de século. Segundo o citado escritor Ariosto Espinheira, aí canta o laborioso canoeiro: Eu sou filho deste rio. No São Francisco nasci: Vivo ao norte, vivo ao sul, Chorando com a juriti. Essa cantiga triste, porém, não parece combinar com os dias ensolarados, de céu azul claro e nuvens brancas, ralas, espichadas ou enroladas pelo vento, do colorido cair da tarde e dos muitos sorvetes gostosos na sorveteria da avenida. As boas-vindas da igreja de São José 23 O cais e a torre O bonito Cruzeiro velho O Boi de Reis (vindo de Itacarambi) Originalidade da Faz. Buriti do Meio 24 Uma bonita pracinha de São Francisco O neogótico singelo da Matriz O edifício da Câmara Municipal 25 Riqueza de detalhes na decoração E inovações surpreendentes 26 Balaustradas de casas comerciais Hora de ir embora 27 4. Maria da Cruz, Januário e Matias Os Cardoso de Almeida figuram entre os grandes personagens da história dessa região nortenha de Minas, conforme apontam os registros mais facilmente acessíveis. Ainda que nos tempos do Brasil Colônia os métodos de ocupação das terras não tenham sido nada louváveis, cabe reconhecer que a valentia daqueles antigos desbravadores foi muito grande. Matias Cardoso de Almeida foi o primeiro a chegar, ao qual sucedeu o filho Januário Cardoso de Almeida. E, talvez da mesma parentela, surge a corajosa Maria da Cruz. Há quem diga que Maria era descendente dos tradicionais Ávila, da Casa da Torre, da Bahia. E o seu nome completo sugere fidalguia: Maria da Cruz Torre Prado de Almeida Oliveira Matias Toledo Cardoso. Mas quem sabe, de fato, o que teria ocorrido naqueles tempos tão distantes, dos quais tão poucos registros chegaram ao conhecimento atual? A brava Maria da Cruz, sozinha e destemida, em tempos em que mulher em nada mandava, construiu um grande domínio rural nos sítios então conhecidos por Pedras de Baixo. Denominação que os diferençava daqueles onde se estabeleceu a fazenda das Pedras de Cima, berço natal da cidade de São Francisco. Ademais, essa valente figura da história regional teria participado de uma denominada “conjuração do São Francisco”, o que sugere que também fora muito ativa nos movimentos políticos que aí tiveram lugar. O desbravador mais velho deu nome à atual próspera cidade de Matias Cardoso, enquanto o seu filho veio a ser homenageado em 1860, quando se batizou de Januária a cidade que então se criava a partir da vila de Porto Salgado. Quanto a essa citada homenagem, há interpretação de que o personagem então lembrado não foi Januário Cardoso, mas uma valorosa exescrava de nome Januária, a qual implantara um pioneiro e importante ponto de comércio para negociar com os tropeiros e barqueiros do São Francisco, nas proximidades do antigo Porto Salgado. Outros, ainda, propõem que o nome fora escolhido em homenagem à Princesa Dona Januária, infanta de Dom Pedro I e irmã de Dom Pedro II, Imperadores do Brasil. Aqui nas Pedras de Maria da Cruz o rio corre manso, largo e imponente, deixa a cidade à sua margem direita e, a alguns quilômetros mais adiante, desenha uma curva para a esquerda, indo passar defronte às muradas do cais de Januária. Cá de cima, no outeiro da igrejinha, tudo se pode apreciar: a passagem dos barcos, a comprida e moderna ponte que ora liga as terras dos dois municípios, as distantes e elevadas cristas rochosas no horizonte, a planície de vegetação densa e baixa que as antecede. 28 A igrejinha de N. S. da Conceição, alta sobre a colina cercada pelo casario do bairro residencial beira-rio, compõe um bonito quadro colorido e que muito bem parece caracterizar a pequena e simpática Pedras de Maria da Cruz. Essa igreja apresenta-se na tradicional arquitetura chã brasileira, a qual se desenvolveu no século XVIII por toda a região das Minas, vindo a ser adotada no amplo espaço definido pelas cidades interioranas das velhas províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás. Esse modelo arquitetônico caracterizase pela sua planta-baixa retangular, alçados sob a forma de caixa, cobertura de duas águas, uma porta, duas janelas, frontão triangular e pano frontal delimitado por duas pilastras nos cunhais terminadas por pináculos na forma de pirâmide. Porta e janelas e as suas estruturas de alvenaria, as pilastras e os seus pináculos, as empenas do frontão e a cornija, todas essas peças mostram-se pintadas de azul claro, enquanto os panos dos alçados apresentam-se caiados de branco. Parece interessante observar que esse caiado assume nuances de cor que variam ao longo do dia, quando faz muito sol. A figura do resplendor dourado no tímpano do frontão e o campanário sob a forma de uma janela aberta acima do portal parecem estabelecer, nessa igreja, o sinal distintivo de Pedras de Maria da Cruz. Tais distinções, sinais ou identificações que singularizam a construção sacra da comunidade, são cuidados ou detalhes adotados em muitas das cidades interioranas dos referidos três estados brasileiros. Para completar o conjunto, tem-se no topo do frontão uma cruz singela, pintada no mesmo azul, assim como em azul claro apresenta-se o tradicionalíssimo cruzeiro no adro da igreja. É um primor de testemunho histórico-arquitetônico, aos olhos do visitante. A caminho de Januária, depois de se atravessar a bonita ponte que em ligeiro arco alteado estende-se por mais de mil metros sobre o São Francisco, cruzase outra, menorzinha, cuja placa indicativa informa: ponte sobre o rio Ipueira. Não se trata de um rio, propriamente, mas de uma ipueira – ou seja, de uma lagoa espichada, de um braço fluvial temporário, sem saída, talvez, que surge nas cheias e que pode mostrar-se seco no estio, quando as suas águas recuam para o leito principal. E essa ipueira é muito pitoresca: apresenta-se entre margens muito arborizadas, seguindo em meio à vegetação ciliar vistosa, ao mesmo tempo em que a sua superfície acha-se tomada por uma planta aquática regionalmente denominada golfe ou golfo, ou, ainda, rainha-daslagoas. Essa pontederiácea é considerada um estorvo às atividades ribeirinhas e, particularmente, para a navegação. Exibe folhas muito verdes, cordiformes alongadas, donde o seu o nome científico de Pontederia cordata lanceolata L., inseridas obliquamente em relação ao caule perpendicular à base submersa, enquanto as suas flores azuis (ou seriam roxas?) apresentam-se em panículas eretas. Atualmente, as águas do São Francisco acham-se distanciadas do antigo cais, na sua passagem pela cidade de Januária. Algumas centenas de metros 29 interpõem-se entre a murada portuária e o canal navegável, ou mesmo o leito fluvial. Isso não exclui o fato de que cheias extraordinárias, por vezes, venham a inundar as construções e bairros menos protegidos. Na verdade, na sua ação natural, o rio modifica as linhas das suas margens, cava novas calhas, altera o seu curso e, sendo assim, a ação do homem faz-se necessária para mantê-lo dentro dos limites desejados e nas condições julgadas mais adequadas às atividades sociais e à vida humana. Mas, mesmo assim, a vista do grande rio que aí passa, do amplo e baixo arvoredo que na margem oposta antecede o horizonte de curvas suaves, o céu claro dos dias de sol, a comprida murada pintada de azul e branco e a fileira de árvores ao longo da Avenida São Francisco, tudo compõe um agradável e inesquecível recanto. Nesse mesmo bairro beira-rio encontram-se muitos exemplos da bonita arquitetura mais antiga de Januária, a qual data dos últimos decênios do século XIX e princípios do século XX. E até mesmo uma das suas ruas foi intitulada Rua da Cultura, uma vez que abriga velhas construções bem preservadas, um centro de artesanato regional e uma escola de artes. Não obstante, as edificações de interesse histórico encontram-se espalhadas por toda a área urbana. O conjunto arquitetônico formado pelos edifícios da Prefeitura e Fórum Municipal revela-se particularmente admirável. Há aí uma bela composição eclética. O Fórum exibe maior presença, com a sua estrutura de dois andares e o seu estilo de inspiração neoclássica, onde a estrela da República já se faz notar. O edifício-sede da Prefeitura apresenta uma estrutura mais leve, uma simetria esmerada e uma decoração império brasileiro muito equilibrada. Elementos do art deco figuram nos jardins dos fundos desse edifício, os quais, outrora, deviam constituir jardins internos, possivelmente. Vários outros pontos da cidade ainda irão oferecer ao estudioso, ou ao simples apreciador das artes, novo material para as suas considerações. O Centro de Artesanato Regional e o Mercado Municipal oferecem trabalhos vindos de toda a redondeza de Januária, assim como criações originárias de vários outros municípios. Os trabalhos de tear manual apresentam-se em toalhas, panos e arazzi muito coloridos e atraentes. O artesanato de cerâmica do povoado Fazenda do Candeal, município de Cônego Marinho, mostra uma variada criação, utilitária e decorativa, cujas pinturas de enfeite parecem conferir-lhe uma clara identidade. As atividades artesanais desse povoado encontram-se bem organizadas, observando-se a divisão de tarefas e o respeito ao direito de exclusividade de cada artesão no uso dos traços decorativos que criara ou que a ele foram atribuídos. O folclore está presente aqui também e, tal como sucede noutros municípios são-franciscanos, manifesta-se nos trabalhos artesanais, nas comemorações de episódios da história local, nos festejos de cunho religioso, nas lendas e nas superstições, muitas destas comuns a numerosas comunidades mineiras. 30 Dessas histórias fantásticas partilhadas pelas crendices de muitos povoados brasileiros, o cuidado dispensado à lenda da Mula Sem-Cabeça nesse norte de Minas parece digno de nota, a julgar-se pela narração recolhida pelo estudioso do folclore regional Manoel Ambrósio Junior. Esse caso saído da crendice popular revela-se absolutamente extraordinário, quando se tem em conta que aí se junta o fantástico ao surreal. Pois que a mula, mesmo não tendo cabeça, relincha, solta fogo pelas ventas e tem uma estrela na testa. Um primor da imaginação fantasiosa! A igrejinha de Maria da Cruz A quilométrica ponte sobre o São Francisco Atravessando a ponte 31 Januária - o rio e o cais A pitoresca ipueira 32 Construções da famosa Rua da Cultura Preciosidades do estilo império brasileiro 33 A Prefeitura Municipal O Fórum Municipal 34 5. O Itacarambi e o Peruaçu As terras e as imensas formações rochosas que se estendem desde as proximidades de Januária até para além de Cônego Marinho, Itacarambi e São João das Missões abrigam várias Áreas de Preservação Ambiental, assim como o Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu. Partindo-se de Januária para Itacarambi, tais formações rochosas mostram-se à esquerda da estrada, das quais muito se acerca já na altura do povoado do Agreste para, em seguida, ingressar-se por entre esses morros pedregosos e de formas inusitadas. Mais adiante a estrada distancia-se novamente dessas elevações, passando-se a trafegar por trechos construídos sobre os baixios arenosos formados pela ação milenar do São Francisco. Do lado direito, o grande rio, lá longe. Do lado esquerdo, as curiosas formações rochosas calcárias de origem marinha. Aqui o estudante da natureza estará percorrendo os sítios de um mar extinto há milhões de anos, conforme explicam as teorias sobre o nascimento e a evolução da denominada placa tectônica da América do Sul. Esses sítios correspondem, portanto, àqueles que eram banhados pelas águas do mar Perisão-franciscano, que veio a desaparecer na antiguidade geológica do Continente. Contudo, ainda hoje essas redondezas experimentam pequenos abalos sísmicos, decorrentes dos movimentos de uma falha tectônica que teima em se manter ativa, após tantos milhões de anos. Ou, dito de outra maneira, tais abalos ou tremores constituem expressões da atividade tectônica nessa área são-franciscana. Como essa atividade persiste, volta e meia ocorrem tremores, tais como aqueles verificados de maio a dezembro de 2007 nos povoados de Caraíba e Vargem Grande, pertencentes ao município de Itacarambi. Tudo aqui tem muita beleza e história natural. O rio São Francisco descreve um arco muito aberto defronte à cidade, deixando Itacarambi à sua margem esquerda, do lado externo desse arco fluvial. Da balaustrada alta do cais descobre-se uma paisagem ampla, grandiosa: o rio mostra-se largo e cheio; na margem oposta espalha-se, por muitos quilômetros, uma planície coberta de vegetação baixa e densa; o horizonte, de perfil suave e pouco movimentado, acha-se distante; e ao cair da tarde as nuvens apresentam belas nuances de colorido em contínua mutação, como sempre ocorre nessas paragens sãofranciscanas. Itacarambi é nome de origem indígena. Dizem que significa “rio de muitas pedras”, ou das muitas pedras, corretamente indicando que, nesse lugar, o rio passa próximo desses imensos morros de pedra calcária. Mas, há também 35 quem diga que esse nome significa “lugar onde o peixe nada em torno da pedra”, o que parece muitíssimo mais poético, muito mais atraente à imaginação, claro está. E essa segunda interpretação revela-se, também, muito correta, caso se refira ao rio Itacarambi e não ao São Francisco conforme se supõe ordinariamente. Pois que, consultando-se os mapas geográficos, por exemplo, observa-se que o rio Itacarambi rodeia aqueles mesmos morros de pedra, antes de ir desaguar-se no São Francisco, num baixio arenoso adiante de São João das Missões. Assim, enquanto o rio Peruaçu encontrou passagem por entre as rochas e aí cavou o seu caminho, o Itacarambi contornou as pedras e foi desaguar-se mais para frente. Itacarambi, nadando o peixe contorna a pedra. A área urbana de Itacarambi expande-se entre a margem esquerda do São Francisco e as grandes formações rochosas, cujas encostas começam a alguns quilômetros de distância do cais. De longe já se distingue a luminosidade típica que o calcário cinza reflete através da vegetação rala que lhe serve de cobertura. Trata-se de formações cársticas, como as denominam os geólogos, rochas calcárias afloradas, as quais, caracteristicamente, favorecem o surgimento de lapas, cavernas, dolinas, fossos e cursos-d’água subterrâneos, dada a peculiaridade e a facilidade com que tais rochas são erodidas pelos elementos naturais. Aqui, a ação realizada pelo rio Peruaçu nessas formações, coadjuvada pelas intempéries, pelas investidas dos vegetais, que vão pouco a pouco conquistando o terreno, e pelos desmoronamentos provocados ou facilitados pelos abalos sísmicos, possivelmente, exemplifica as alterações naturais do meio ambiente. Ao longo do curso desse rio, assim como nos sítios vizinhos, surgiram numerosos topos que se mostraram de utilidade para as atividades humanas há milhares de anos. São cavernas e coberturas que teriam sido propícias para o abrigo dos aborígines e para a guarda dos seus víveres e pertences, assim como paredões que serviram de painéis para o registro da passagem daquele povo, das suas figuras de expressão, da sua arte. Os estudos aí realizados indicam que tais sítios foram habitados há onze mil anos por uma população de origem ainda desconhecida. Atestam essa presença ancestral os desenhos e pinturas que se acham nos paredões rochosos, assim como os utensílios feitos de palha encontrados nas cavernas, muitos deles ainda contendo restos fossilizados de gêneros alimentícios. Mais ainda, as investigações dão conta da vida de animais pré-históricos nessa área. Ossadas de preguiças gigantes foram descobertas nesses sítios, animais que os pesquisadores estimam terem sido extintos há 12 mil anos. E todo um rico acervo de história natural resta por ser explorado. A história humana mais recente refere-se à presença de novos habitantes: os caiapós, os cariris, os xacriabás (que se mantiveram em São João das Missões 36 e hoje tratam com cuidado da sua pequena cidade) e os bandeirantes, que chegaram a partir do século XVII, inaugurando uma nova etapa da ocupação do território brasileiro. O acesso à área do Parque ainda se acha muito restringido, privilegiando-se as investigações científicas. E são várias as especialidades daqueles profissionais que têm visitado o Peruaçu. Geólogos, arqueólogos, paleontólogos, antropólogos e biólogos, dentre tantos pesquisadores que aí encontram material à espera de vir a ser decifrado. A própria paisagem, na sua morfologia, na sua constituição rochosa e na sua origem geológica, constitui uma ilustração impar de fenômenos, certamente instrutiva para todos os estudantes da natureza. A visita a uma dessas cavernas revela-se surpreendente, por mais que o estudioso possa conhecer tais formações através de descrições, desenhos e fotografias. Adiciona-se, no caso do Peruaçu, a enormidade dessas formações rochosas, a imensidão dos ambientes dessas caves, a variedade de formas e efeitos luminosos, os exemplos da ação dos vegetais sobre as rochas e dos cursos d’água buscando caminhos e os testemunhos de desmoronamentos dessas grandes pilhas de pedra. Parece difícil imaginar uma única e abrangente descrição desses sítios. Cada estudioso, no seu campo de interesse, terá o seu próprio caso para contar. Mas, não só nas cavernas do Peruaçu. Mesmo nas áreas adjacentes do Parque descobrem-se muitas curiosidades e ilustrações de fenômenos de interesse para o estudante da história natural. As formações rochosas exibem variados exemplos de estromatólitos colunares, ou seja, de construções calcárias sob a forma de colunas petrificadas, de mesclas rochosas de calcários e sílicas, cherts bandados, que são rochas de sílica amorfa exibindo bandas de diferentes coloridos, cristais de quartzo e agulhas de lazurita, veios de chert intrometidos na rocha calcária, entre outras ocorrências de se admirar. Tais são atrativos que o estudioso poderá constatar num passeio de Januária a Cônego Marinho, ou de Itacarambi ao distrito de Vargem Grande, quando irá galgar destacadas elevações rochosas, admirar o amplo panorama da planície do São Francisco, acercar-se de formas pétreas intrigantes e conhecer diferentes fisionomias da vegetação desse norte de Minas. E nesse ambiente pleno de pedras, de vegetação rupestre, de aspereza, surgem os seus habitantes silvestres, alguns menos conhecidos que outros: o mocó, um simpático, arisco e ágil roedor de razoável tamanho, além das corriqueiras cobras e lagartos, por exemplo. E, de fato, os calangos e os lagartinhos aí são vistos com frequência, ora tomando um solzinho no topo dos rochedos, ora correndo entre as cactáceas e as herbáceas encrespadas. O senhor Jorge, embora não seja dessa região são-franciscana, conta que certa vez uma lagartixa encontrou-se com uma jararaca bem à beira de um desses caminhos pedregosos. Entre assustada e temerosa, a lagartixa puxou 37 conversa: Ôôh! Você é muito venenosa, não é? E a cobra calmamente respondeu: Qual nada. As pessoas se assustam muito. Não é o veneno que lhes faz tanto mal. Quer ver? A gente faz o seguinte: eu mordo o primeiro camarada que passar por este caminho e me escondo, e você aparece e lhe mostra a cara. Depois, a gente faz o contrário: você morde e se esconde, enquanto eu apareço para a vítima. Você vai ver que é a minha presença que mete medo e mata. E assim fizeram. A vítima surge no caminho, a cobra morde e se esconde, a lagartixa mostra-se gingando a cabeça e o pobre exclama: Ih! A lagartixa me mordeu. Bicho sem-vergonha! E se foi. Logo aparece outra vítima e, dessa vez, a lagartixa morde e se esconde, a cobra exibe a sua cara de fera e o coitado grita apavorado: Ai, ai! A jararaca me mordeu, estou perdido! E bate as botas no ato. Vitoriosa, a cobra vira-se para a lagartixa: Viu? Mas esses arredores do Itacarambi não são feitos de rochas e pedrouços, somente. O arvoredo que se espalha nas encostas e nos baixios mostra uma folhagem muito verde antes da chegada do estio, e as muitas ervas, muitas flores. Ao longo das estradas, de um e do outro lado, as plantas herbáceas estendem pequenos e coloridos tapetes de flores. Nos caminhos de terra de menor movimento, onde a natureza não é tão perturbada, parece que se trafega, aqui e acolá, em meio a canteiros de jardim: pequenas ipoméias azuis e roxas, bolinhas de estames de cor púrpura, pequenas campânulas amarelas e alaranjadas, onze-horas brancas e amareladas, florzinhas vermelho-grenat. Mais adiante as ipoméias cobrem os arbustos com alegres flores azuis ao longo de dezenas de metros. No meio das pedras também. Aí surgem as coloridas folhas das bromélias e as bonitas e bulbosas flores de cacto. Nesses sítios tudo faz lembrar A Pátria, onde Olavo Bilac declama: “A Natureza, aqui, perpetuamente em festa”. Urucum, de São João das Missões 38 O São Francisco chega a Itacarambi E se vai, descrevendo um arco Depois se despede o sol, colorindo as nuvens 39 As extraordinárias formações cársticas do Peruaçu O difícil acesso a uma caverna 40 No interior de uma enorme caverna onde corre o Peruaçu 41 Dolinas e claraboias 42 Os infindáveis efeitos de luz A caminho de Cônego Marinho, novos atrativos 43 Estromatólitos Desenhos do artesanato do Candeal Subindo para Vargem Grande 44 Os caminhos floridos do norte XXX