UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO LUIZ CARLOS RODRIGUES BARBA-AZUL DE DORÉ & PERRAULT: O DISCURSO DO ILUSTRADOR RIO DE JANEIRO 2014 Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa BARBA-AZUL DE DORÉ & PERRAULT: O DISCURSO DO ILUSTRADOR Luiz Carlos Rodrigues Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos - Literaturas de Língua Francesa) Orientador: Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello Rio de Janeiro Março de 2014 Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa BARBA-AZUL DE DORÉ & PERRAULT: O DISCURSO DO ILUSTRADOR Luiz Carlos Rodrigues Orientadora: Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas de Língua Francesa). Examinada por: _____________________________________________________________________ Presidente, Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello - UFRJ ____________________________________________________________________ Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina – UFRJ ____________________________________________________________________ Professor Doutor Carlos de Azambuja Rodrigues – UFRJ ____________________________________________________________________ Professora Doutora Sonia Cristina Reis – UFRJ, Suplente _____________________________________________________________________ Professora Doutora Tamara Quírico Moraes – UERJ, Suplente Rio de Janeiro Março de 2014 À minha mãe Neusa e toda nossa família. AGRADECIMENTOS À amiga Fernanda Almeida Lima cujo papel foi de tamanha importância nesta pesquisa que me arrisco a dizer que, sem ela, este trabalho não teria acontecido. Fiel e dedicada durante todo o processo, sempre esteve disposta a ajudar, quer seja dando conselhos, tirando dúvidas de todos os tipos e tendo uma paciência enorme de me aturar. Mas nada foi tão importante quanto o fato de me convencer a "atravessar a rua" e me fazer ver que havia vida do outro lado do quarteirão. A mudança de ares das Artes para Letras fez bem e esta pesquisa é resultado disto. E foi também por seu intermédio que conheci minha orientadora Celina Mello, outra a quem devo minha eterna gratidão. Primeiramente pela generosidade com que me acolheu em seu grupo de pesquisas; pela confiança e dedicação ao meu trabalho, sempre fornecendo importantes dicas de leituras e me enchendo de livros; por sua preocupação com minha formação intelectual e profissional, enfim, por despertar em mim o gosto pela pesquisa e pela vida acadêmica. Neste momento em que objetivos de vida se concretizam, devo lembrar-me daqueles que se constituíram em exemplo para minha formação durante os primeiros passos desta caminhada. Sendo assim, deixo aqui registrado meus agradecimentos ao casal Márcia e Gerson Conforti. Mais do que professores, amigos que com idealismo e abnegação promoveram, ao longo de quase seis anos, o curso de formação de ilustradores na Escola de Belas de Artes da UFRJ e me fizeram descobrir, além do universo da literatura infantil, a paixão pela ilustração e o gosto pela docência. Agradecimentos que estendo aos amigos André Hausmann e Gabriel Amorim cujas contribuições extrapolaram a simples troca de ideias e o empréstimo de livros. Por fim, agradeço também a ajuda financeira do CNPq que me permitiu dedicação integral à pesquisa, aos professores Carlos Azambuja, Pedro Paulo Catharina, Sonia Reis e Tamara Quírico que gentilmente aceitaram fazer parte da banca examinadora desta dissertação e a todos que de alguma maneira contribuíram com esta conquista. Que de livres il faut illustrer pour s'illustrer soi-même Gustave Doré RESUMO RODRIGUES, Luiz Carlos. Barba-Azul de Doré & Perrault: o discurso do ilustrador. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2014. Dissertação de Mestrado. Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas - Área de concentração: Estudos literários neolatinos. Opção: Literaturas de Língua Francesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2014. Estudo das relações existentes entre texto e imagem, realizadas pelo ilustrador Gustave Doré (1832-1883) em seu trabalho para Les contes de Perrault, edição Hetzel-Stahl, 1862. Através da análise das ilustrações do conto Barba-Azul (La Barbe Bleue), verifica-se de que modo Gustave Doré se posiciona no campo artístico como pintor. O fundamento metodológico desta dissertação conta com a teoria semiológica barthesiana concernente ao Mito (Barthes, 2010), com os conceitos da Escola Francesa da Análise do Discurso definidos por Dominique Maingueneau (Maingueneau, 2006) tais como discurso, posicionamento e cenografia enunciativa e com o aporte dos conceitos sociológicos de habitus, campo, trajetória e violência simbólica de Pierre Bourdieu (Bourdieu, 1996). Apresenta-se a hipótese de que, tomando por base o conto de Perrault, Doré produz uma narrativa própria, conferindo ao texto a projeção de um ethos de pintor de história ligado à estética romântica. Deste modo, ele busca elevar a ilustração ao mesmo estatuto da pintura e, consequentemente, reivindicar para si um estatuto homólogo ao do pintor de história. RÉSUMÉ RODRIGUES, Luiz Carlos. Barba-Azul de Doré & Perrault: o discurso do ilustrador. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2014. Dissertação de Mestrado. Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas - Área de concentração: Estudos literários neolatinos. Opção: Literaturas de Língua Francesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2014. Étude des rapports entre le texte et l'image mis en œuvre par l'illustrateur Gustave Doré (1832-1883) dans son travail pour Les contes de Perrault, édition Hetzel-Stahl, 1862. À travers l'analyse des illustrations du conte La Barbe Bleue, l’on vérifie comment Gustave Doré prend sa position dans le champ artistique comme peintre. Le fondement méthodologique de ce mémoire compte sur la théorie sémiologique barthesienne concernant le mythe (Barthes, 2010) et sur les concepts de l'école française de l'analyse du discours définis par Dominique Maingueneau (Maingueneau, 2006), tels que discours, positionnement et scénographie énonciative et avec les apports des concepts sociologiques de habitus, champ, trajectoire et violence symbolique de Pierre Bourdieu (Bourdieu, 1996). On présente l'hypothèse selon laquelle s'appuyant sur le conte de Perrault, Doré produit un récit qui lui est propre, projetant dans le texte un ethos de peintre d'histoire attaché à l'esthétique romantique. Ainsi, il cherche à élever le statut des illustrations au même rang que celui de la peinture et par conséquent revendiquer pour lui-même un statut homologue à celui du peintre d'histoire. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1: EDELINCK, Portrait de Charles Perrault (1628-1703). Paris. 1694. P. 18. Disponível em: http://bibliothequebordeaux.files.wordpress.com/2013/04/charles-perrault.jpg Última consulta: 05/02/2014. Figura 2: NADAR, fotografia de Gustave Doré (1832-1883). Paris. 1855-1859. P. 25. Disponível em: http://www.photo.rmn.fr/ Última consulta: 05/02/2014. Figura 3: CLOUZIER, Frontispício de Les contes de ma mère L’Oye: Histoires ou Contes du temps passé. Paris. 1697. P. 26. Disponível em: http://expositions.bnf.fr/contes/feuille/perrault/index.htm Última consulta: 05/02/2014. Figura 4: DORÉ, Frontispice - La Lecture des contes en famille, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. P. 29. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8612030k.swf.f17.langFR Última consulta: 05/02/2014. Figura 5: DORÉ, La Ménagerie parisienne, par Gustave Doré. Paris. 1854. P. 39. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k65386580.r=gustave+dor%C3%A9.langEN Última consulta: 05/02/2014. Figura 6: DORÉ, La légende du Juif errant. Paris. 1856. P. 45. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1045490m.r=gustave+dor%C3%A9+le+juif+errant.lang EN Última consulta: 05/02/2014. Figura 7: DORÉ, Dante et Vergil dans le neuvième cercle de l'enfer. Óleo sobre tela. Paris. 1861. P. 50. Disponível em: http://de.academic.ru/pictures/dewiki/71/GustaveDore_DanteEtVergil.jpg Última consulta: 05/02/2014. Figura 8: BOURNE, Christ leaving the praetorium, 1872, gravura feita a partir da pintura de Gustave Doré Le Christ quittant le prétoire. Paris, 1872. P. 56. Disponível em: http://www.coxrail.com/bourne/GalleryOfImages.asp Última consulta: 05/02/2014. Figura 9: DORÉ, Monumento a Alexandre Dumas, Place Malesherbes. Paris. 1883. P. 62. Disponível em: http://www.scholarsresource.com/browse/museum/8378 Última consulta: 05/02/2014. Figura 10: DORÉ, d’Artagnan, Monumento a Alexandre Dumas, Place Malesherbes. Paris. 1883. P. 62. Disponível em: http://www.scholarsresource.com/browse/museum/8378 Última consulta: 05/02/2014. Figuras 11, 26, 27, 30, 31 & 32: DORÉ, S'il vous arrive de l'ouvrir, il n'y a rien que vous ne deviez attendre de ma colère, ilustração nº1, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. Pp. 77, 96, 98, 104, 104 & 105. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8612030k.swf.f17.langFR Última consulta: 05/02/2014. Figuras 12, 16, 17, 21, 22, 23 & 25: DORÉ, Les voisines & les amies... tant elles avaient d'impatience de voir toutes les richesses de sa maison, ilustração nº2, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. Pp. 77, 80, 83, 86, 86, 87 & 93. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8612030k.swf.f17.langFR Última consulta: 05/02/2014. Figuras 13, 40 & 44: DORÉ, Dieu soit loué! s'écria-t-elle un moment après, ce sont mes frères, ilustração nº3 Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. Pp. 77, 115 & 120. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8612030k.swf.f17.langFR Última consulta: 05/02/2014. Figuras 14, 46, 47, 48, 49, 50 & 52: DORÉ, Ils lui passèrent leur épée au travers du corps, ilustração nº4, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. Pp. 77, 125, 126, 126, 129, 131, & 134. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8612030k.swf.f17.langFR Última consulta: 05/02/2014. Figura 15: Print screen Gallica, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. P. 78. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8612030k.swf.f17.langFR Última consulta: 05/02/2014. Figuras 18, 19 & 20: Detalhe da ilustração nº1 de Gustave Doré, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. Pp. 83, 84 & 84. Figura 24: FÉRON, Gilles de Laval, sire de Rais, compagnon de Jeanne d'Arc, Maréchal de France. Óleo sobre tela. Versailles. 1835. P. 90. Disponível em: http://www.photo.rmn.fr/ Última consulta: 05/02/2014. Figura 28: CLOUET, Portrait de Elisabeth da Áustria (1554-1592), 1571. P. 100. Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Fran%C3%A7ois_Clouet__Elisabeth_of_Austria_(ca._1571)_-_Google_Art_Project.jpg Última consulta: 05/02/2014. Figura 29: HOLBEIN, Portrait de Henrique VIII, Rei da Inglaterra (1491-1547), 1537. P. 102. Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hans_Holbein,_the_Younger,_Around_1497-1543__Portrait_of_Henry_VIII_of_England_-_Google_Art_Project.jpg Última consulta: 05/02/2014. Figuras 33, 34, 35, 36, 37 & 38: Detalhe da ilustração nº2 de Gustave Doré, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. Pp. 108, 109, 109, 111, 112 & 112. Figura 39: CLOUZIER, La Barbe bleue, Les contes de ma mère L’Oye: Histoires ou Contes du temps passé. Paris. 1697. P. 113. Disponível em: http://www.univ-montp3.fr/pictura/ResultRechercheAffiche.php Última consulta: 05/02/2014. Figura 41: Esquema tonal nº1 da ilustração nº3 de Gustave Doré, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. P. 118. Figura 42: Esquema tonal nº2 da ilustração nº3 de Gustave Doré, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. P. 118. Figura 43: Esquema geométrico da ilustração nº3 de Gustave Doré, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. P. 120. Figura 45: FRIEDRICH, Homem e mulher contemplando a lua (1818-1824). P. 122. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Caspar_David_Friedrich_028.jpg#file Última consulta: 05/02/2014. Figura 51: MICHELANGELO, A criação de Adão, (por volta de 1511). P. 133. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:The_Creation_of_Adam.jpg Última consulta: 05/02/2014. Figura 52: DORÉ, Le Chemin des écoliers. Paris. 1861. P. 140. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6580297m/f636.image Última consulta: 05/02/2014. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.........................................................................................................1 2. LES CONTES DE PERRAULT: UM ESTUDO COMPARATIVO DAS EDIÇÕES DE 1697 E 1862...................................................................................................................10 2.1. Charles Perrault.......................................................................................................10 2.2. A querela dos Antigos e Modernos.........................................................................12 2.3. Les contes de ma mère l’Oie e a origem dos contos...............................................14 2.4. A edição Hetzel-Stahl.............................................................................................19 2.5. O livro de luxo e o livre de peintre.........................................................................21 2.6. Ilustrar Perrault.......................................................................................................23 2.7. A simbologia dos frontispícios de Les contes de ma mère L'Oie e Les contes de Perrault................................................................................................................................26 3. TRAJETÓRIA E TENTATIVAS DE REPOSICIONAMENTO NO CAMPO ARTÍSTICO FRANCÊS DO SÉCULO XIX......................................................................32 3.1. Os anos na Maison Aubert......................................................................................33 3.2. Mudança no campo: da caricatura aos fólios literários..........................................39 3.3. As edições de luxo e a busca pela réussite bourgeoise...........................................46 3.4. O sucesso inglês e Doré escultor.............................................................................53 3.5. O artista preso entre a academia e a crítica..............................................................63 4. O DISCURSO DO ILUSTRADOR.........................................................................67 4.1. A ilustração como tradução....................................................................................67 4.2. Ilustração: Discurso de escrevência, discurso de escritura.....................................68 4.3. Um discurso limitado..............................................................................................73 5. ANÁLISE DA ILUSTRAÇÃO Nº1: A VIOLAÇÃO DO QUARTO PROIBIDO .............................................................................................................................................76 5.1. “Frontispício interno”.............................................................................................76 5.2. Por uma imagem autônoma....................................................................................78 5.3. Desmontando a estrutura.........................................................................................81 5.4. A narrativa da imagem...........................................................................................84 5.5. Mitólogo.................................................................................................................88 5.6. Conclusão...............................................................................................................92 6. ANÁLISE DA ILUSTRAÇÃO Nº2: A ENTREGA DAS CHAVES .....................95 6.1. O grotesco e o sublime............................................................................................97 6.2. Como uma pintura de retratos.................................................................................99 6.3. O caminho do olhar................................................................................................103 6.4. O simbolismo da chave..........................................................................................105 6.5. A sensualidade da mulher.....................................................................................106 6.6. Expressões faciais.................................................................................................107 6.7. A narrativa das mãos.............................................................................................110 7. ANÁLISE DA ILUSTRAÇÃO Nº3: A CHEGADA DOS CAVALEIROS..........113 7.1. Clouzier revisto por Doré......................................................................................113 7.2. A estrutura da imagem..........................................................................................117 7.3. Uma ilustração fantástica......................................................................................119 7.4. Conclusão..............................................................................................................122 8. ANÁLISE DA ILUSTRAÇÃO Nº4: A MORTE DE BARBA-AZUL..................124 8.1. A dinâmica da composição....................................................................................124 8.2. A espada e o facão.................................................................................................127 8.3. A imagem como teatro...........................................................................................128 8.4. A narrativa da imagem...........................................................................................130 8.5. Conclusão...............................................................................................................134 9. CONCLUSÃO........................................................................................................136 10. REFERÊNCIAS......................................................................................................141 11. ANEXOS................................................................................................................146 11.1. La Barbe-Bleue.......................................................................................................146 11.2. Ilustração não gravada do Barba-Azul para Les contes de Perrault, edição Hetzel-Stahl de 1862.......................................................................................................151 11.3. Crítica de Sainte-Beuve, Nouveaux lundis, dezembro de 1861..............................152 1 1. INTRODUÇÃO O recorte histórico da pesquisa compreende o período entre 1830, ano da instauração da Monarquia de julho e 1862, ano da publicação da edição Hetzel-Stahl. Momento do desenvolvimento tecnológico que proporcionou uma revolução no mercado de impressos; de redefinição do papel do ilustrador no campo artístico francês, agora como profissional do mercado da edição e da reforma do sistema educativo que fez crescer a população leitora na França e surgir a Littérature d’enfance et de jeunesse. A revolução tecnológica dos meios de produção favoreceu o crescimento da indústria de livros na primeira metade do século XIX. Pouco a pouco as máquinas e as práticas antigas foram substituídas por outras mais modernas e eficazes permitindo o desenvolvimento e o aprimoramento de variadas técnicas de reprodução da imagem tais como a xilogravura, a litogravura, a calcogravura e a fotogravura, tendo como consequência a vulgarização da ilustração, inclusive nos livros populares. A crise econômica que atingira a França de 1827 a 1830 obrigara o mercado da edição a procurar por novas soluções para seu problema financeiro. Através de diferentes estratégias editoriais, buscou-se conquistar um mercado de extensão considerável que incluía não só as classes mais populares, que haviam recentemente adquirido a capacidade de ler em virtude das novas políticas de alfabetização do governo, mas, sobretudo, a pequena e a média burguesias. Assim, o mercado da edição inova lançando livros em série ou em fascículos, livros mais baratos graças ao recurso da publicidade e passa a fazer uso, de modo sistemático, de imagens. Elas vão se constituir no elemento fundamental do projeto do livro romântico acessível a todos, que tinha por objetivo a transmissão do conhecimento 1. Soluções bem recebidas por uma classe burguesa desejosa de ter acesso ao mundo cultural e que considerava 1 Cf. CHARTIER, Roger & MARTIN, Henri-Jean, 1985, p.284. 2 ser este um sinal de distinção; no entanto, rejeitadas pelos meios letrados que desconfiavam dessa vulgarização da cultura. Eles consideravam essa forma de publicação um gênero menor e incompatível com a leitura erudita, uma vez que a imagem era frequentemente acusada de trair o texto, de sobrecarregar as páginas dos livros e de se endereçar aos sentidos e não à inteligência 2. A figura do ilustrador como profissional no campo da edição ainda estava em constituição no século XIX. Os ilustradores se encontravam em uma posição mal definida dentro da sociedade francesa. Hierarquicamente, estão abaixo dos pintores, mas ainda acima dos artesãos e dos caricaturistas da imprensa. Sua atividade é considerada mercantil, por estar associada aos panfletos publicitários que usavam a imagem como apoio a seus produtos; de forte apelo popular, devido a sua origem, as imagens de santos e dos livrinhos da Littérature de Colportage; e industrial, visto que as gravuras são reproduzidas em larga escala. A profissão de ilustrador é uma atividade escolhida a contragosto daqueles que gostariam de fazer carreira dentro dos Salões, porém é bem remunerada financeiramente, principalmente por causa do desenvolvimento de um amplo mercado editorial que vai de jornais e revistas ao livro ilustrado. Por uma afinidade de propósitos, os ilustradores do livro se encontram ligados ao grupo de artistas românticos com os quais, quer seja por sua posição política majoritariamente republicana, quer seja pelo conceito de fraternidade das artes, lutam por uma nova posição no campo artístico. A partir da Lei Guizot, de 1833, que promoveu a reforma do sistema educativo francês, implantando uma rede municipal de ensino primário por todo o território nacional, a escola não é mais o lugar em que apenas se ensina a ler, ela é também a responsável por 2 Cf. KAENEL, 1987, p.35. 3 desenvolver o hábito da leitura, tanto nas salas de aula quanto fora delas. Nesse contexto, desenvolveu-se um mercado de livros escolares que incentivou também a criação de livros paradidáticos, favorecendo o surgimento de uma literatura voltada para crianças 3, da qual Les Contes de Perrault se torna um campeão de vendas 4, ajudando a fazer a fortuna de editores. Assim, nomes como Louis Hachette, que se estabelecera como grande editor especializando-se em manuais escolares e dicionários, e Pierre-Jules Hetzel passam a investir também em edições de lazer, para suprir a demanda de jovens leitores que desejavam se instruir e, ao mesmo tempo, se divertir. Estimulado pelo crescimento da rede ferroviária, Hachette, em 1853, teve a ideia de criar a Bibliothèque des chemins de fer. Por meio de um contrato com o Conde de Ségur, presidente da Compagnie des chemins de fer de l'Est, consegue uma concessão para instalar quiosques nas estações com o objetivo de vender seus livros a preços populares. Suas coleções eram compostas por uma série de livros que, pela cor da capa, indicavam a faixa etária a que se destinavam. Dentre elas, a que conheceu maior sucesso foi a Bibliothèque rose illustrée, destinada às crianças, coleção em que eram publicados autores como a Condessa de Ségur, esposa do Conde de Ségur e primeiro grande modelo a se inscrever na área da literatura infanto-juvenil. Suas histórias, movimentadas e moralizantes, revelavam uma preocupação com o meio familiar onde se formavam e educavam as crianças. As personagens dos romances da Condessa de Ségur foram durante muitos anos o modelo de comportamento a ser seguido pelas crianças e revelam-se, sobretudo, representantes da mentalidade da sociedade tradicional francesa do século XIX. Enquanto Hachette conquistava o mercado com suas coleções a preços populares, P.J. Hetzel defendia a ideia de edições de luxo, bem acabadas, mas com conteúdo educativo e moral, voltadas para a formação de um público leitor desejoso de informação cultural. 3 4 Cf. COLIN, 1992, p.6. Cf. CHARTIER, Roger & MARTIN, Henri-Jean, 1985, p.385. 4 O editor, que já se dedicara a uma literatura infanto-juvenil incipiente nos anos 1840 quando através de seu Nouveau magasin des enfants publicou autores de renome como Charles Nodier, Alexandre Dumas, George Sand, Alfred de Musset e ilustradores como Tony Johannot, Bertall e Gavarni, cria, em 1864, Le Magasin d'éducation et de récréation, no qual reunia literatura e ciência. Revista que ficou famosa por ter publicado os primeiros textos de Jules Verne, seus Voyages extraordinaires, e promover a grande revolução na literatura infantil. Considerado à época o ilustrador mais importante da França, Gustave Doré elabora seu projeto editorial numa linha evolutiva que vinha desde seus primeiros álbuns ilustrados Les Travaux d’Hercule (1847), Dés-Agréments d'un Voyage d'Agrément (1851), Trois artistes - incompris et mécontents (1851) pela Maison Aubert, passando pelos fólios literários, quando resolve ilustrar escritores contemporâneos como Balzac, Les contes drolatiques (1855) e a Condessa de Ségur, Nouveaux contes de fées (1857) até chegar o momento em que, imbuído de ambições mais altas, resolve ilustrar os clássicos literários. Ao levar para os editores seu projeto de ilustração dos clássicos, Doré frequentemente recebia uma negativa devido aos altos custos para sua produção. Os livros deveriam ser álbuns de luxo e custariam não menos do que 100 francos a edição, tornando-se, portanto, invendáveis naquele momento. Ele propõe então arcar com os próprios custos e, de maneira inicial, banca a produção, até provar serem bem sucedidos tanto junto à crítica quanto ao público 5. Quando oferece a Hetzel seu Les Contes de Perrault, Doré já conhecia o interesse do editor pelo mercado de livros infantis e suas ideias a respeito do caráter didático do livro. A concepção do livro ilustrado por Doré inseria-se em um projeto editorial voltado para uma 5 Cf. KAENEL, 2005, p.609. 5 classe burguesa abastada, que buscava se distinguir através da aquisição de bens culturais. A escolha de um suporte luxuoso para a edição a insere no conceito do livro como um objeto de arte que seguia os mecanismos de produção impostos pelas leis de mercado. *** A dissertação Barba-azul de Doré & Perrrault: o discurso do ilustrador estuda a relação das ilustrações do artista Gustave Doré para o conto La Barbe Bleue (Barba-Azul) de Les contes de Perrault, edição Hetzel-Stahl de 1862, com o texto, na perspectiva da análise do discurso de Dominique Maingueneau (2006). Desenvolve-se a partir de uma abordagem semiológica barthesiana (2010, 2004, 1990) e com a aplicação dos conceitos sociológicos de habitus, campo, trajetória e violência simbólica de Pierre Bourdieu (2011, 1996). Analisa a construção das relações entre o discurso literário e o discurso imagético, efetuada pelo artista em seu processo criativo, e observa o ilustrador como o “leitor primeiro”, o coenunciador que, em conjunto com o enunciador, constrói o texto conferindo-lhe sentido mediante suas escolhas e crenças no momento da leitura. O ilustrador como primeiro filtro seria capaz de interferir na maneira como o texto é apreciado pelo público leitor. Desse modo, Gustave Doré é considerado autor de sua própria versão do conto no qual, por meio da recriação visual constrói seu discurso e define seu posicionamento no campo artístico, conferindo a um texto do século XVII a projeção de um ethos de pintor de História. Para Dominique Maingueneau, ethos é a imagem de si que o enunciador constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre seu coenunciador. É através dele que o enunciador busca legitimar seu dizer, atribuindo-se uma posição institucional e marcando sua relação a um saber. Ao posicionar-se, o enunciador cria uma identidade enunciativa que não se limita a defender uma estética. Ela vai definir também o tipo de qualificação exigida para que se tenha a autoridade enunciativa. Neste caso, ser um artista bem sucedido do campo da edição confere 6 a Gustave Doré a autoridade para enunciar seu discurso que visa uma mudança de posição no campo artístico. Bourdieu entende o campo artístico como o conjunto das condições sociais que possibilitam a personagem do artista como produtor da obra de arte. É o lugar onde se produz e se reproduz incessantemente a crença no valor da arte e no poder de criação do valor, que é o próprio artista 6. O sociólogo define campo como um sistema de posições. Um universo social particular construído por agentes que ocupam posições específicas que dependem do volume e da estrutura do capital eficaz do campo considerado, onde a noção de capital faz referência a seu aspecto econômico: algo que se acumula através de operações de investimento, se transmite por herança e permite a obtensão de lucros. É possível distinguir-se quatro tipos de capitais mais ou menos pertinentes segundo o campo. Capital econômico (conjunto de recursos patrimoniais e rendimentos ligados ao capital ou atividade profissional, dinheiro, salário), capital cultural (conjunto de qualificações intelectuais transmitidas pela família através do habitus 7 ou produzidas pelo sistema escolar como títulos escolares, diplomas, conhecimento enciclopédico, literário ou artístico), capital social (conjunto das relações "socialmente úteis", que podem ser mobilizados pelos indivíduos ou pelos grupos no âmbito das trocas profissionais e sociais) e capital simbólico (reconhecimento, prestígio, reputação; autoridade conferida a um agente social). Na impossibilidade de contarmos com a versão original ou mesmo a versão digital da primeira edição de Les contes de ma mère L’Oye: Histoires ou Contes du temps passe, de 1697, foram utilizados, para o desenvolvimento da pesquisa, o texto Magie de l’image: Altérité, merveilleux et définition générique dans les contes de Charles Perrault (2010), de Daphne Hoogenboezem e a transcrição da conferência de Tony Gheeraert Perrault illustré 6 7 BOURDIEU, 2011, p.289. O conceito de habitus será definido nas p.38 e p.71. 7 par Doré, ou la perfection du contresens, pronunciada em novembro de 2005, Maromme la Maine, IUFM de Rouen e publicada no site da Academia de Rouen em 2007 8, que descrevem e comentam a referida edição, sendo úteis para a análise da cenografia da obra. A noção de cenografia, segundo Maingueneau, adiciona ao caráter teatral de "cena" a dimensão da grafia, que remete à inscrição legitimadora de um texto, em sua dupla relação com a memória de uma enunciação que se situa na filiação de outras enunciações e que reivindica um certo tipo de reemprego. A cenografia é o centro em torno do qual gira a enunciação, é a situação enunciativa de um discurso criada pelo autor para legitimar sua enunciação. Assim, compreende-se como fazendo parte da cenografia da obra todo o projeto gráfico, incluindo as escolhas estéticas operadas pelo autor. As gravuras originais feitas por Antoine Clouzier, para a edição de 1697, são encontradas no site: http://www.univ-montp3.fr/pictura/ResultRechercheAffiche.php Para a análise da cenografia de Les contes de Perrault, edição Hetzel-Stahl, 1862, valemo-nos do mesmo texto de Tony Gheeraert citado acima e da resenha crítica escrita por Sainte-Beuve para a coletânea Nouveaux lundis, publicada em dezembro de 1863. Uma vez que tivemos acesso a uma cópia digital do livro, encontrada no site da biblioteca Gallica 9, só pudemos trabalhar alguns aspectos da cenografia enunciativa da obra, como a analise das ilustrações e do texto, porém, ela nos foi insuficiente para a descrição física do livro. O primeiro capítulo é dedicado fundamentalmente à obra que é objeto desta dissertação: Les contes de Perrault. De maneira concisa, faremos uma apresentação de seu autor, Charles Perrault, e demonstraremos a importância de seu papel nas discussões estéticas 8 9 http://lettres.ac-rouen.fr/sequences/tl/perrault/perrault.htm. http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8612030k.swf.f17.langFR. 8 de sua época, especialmente, sua participação durante a Querela dos Antigos e Modernos, que está relacionada diretamente com o contexto em que surge o livro. Do mesmo modo, mostraremos o que eram os contos de Perrault e o que esse trabalho de recolha e publicação representou na história literária francesa. Efetuando um salto de quase 200 anos, observaremos que tipo de interesse esta obra trouxe para a geração romântica e o que passou a significar Charles Perrault, no século XIX. O capítulo dois mostra através da trajetória de Gustave Doré um pouco da história social da ilustração francesa do século XIX. Um métier simbolicamente dominado em relação à grande arte da pintura. Veremos como o artista vai utilizar seu trabalho em favor de seu desejo de reconhecimento como grande artista e de que forma seus contínuos deslocamentos se apresentarão como parte de uma estratégia de reclassificação no campo artístico. No capítulo três questionaremos até onde o trabalho do ilustrador pode ser considerado a emissão de um discurso a partir da seguinte proposição: Gustave Doré, um artista romântico do século XIX, promove a releitura do livro Les Contes de Perrault, de Charles Perrault, através da recriação visual de seus traços enunciativos, conferindo a este texto do século XVII a projeção de um ethos de pintor de história ligado à estética romântica. Evidenciado em suas ilustrações, em que medida a projeção desse ethos será compreendida pelo público leitorespectador? Quais os limites que se impõem ao trabalho do ilustrador ao o considerarmos como um discurso? Como poderemos entender o trabalho de Gustave Doré sob o ponto de vista da autoria? Os capítulos quatro, cinco, seis e sete referem-se, especificamente, à análise das imagens, por meio das quais verificaremos de que modo vai se manifestar o discurso do ilustrador. Para isso escolhemos o conto que encerra a coletânea, O Barba-Azul, para o qual Doré realizou um total de quatro ilustrações. 9 As análises começam a partir da observação de todo o conjunto das gravuras verificando, primeiramente, como elas se relacionam entre si e, depois, como elas se relacionam com o texto, através do confronto das passagens escolhidas com suas respectivas ilustrações. Assim, temos a noção de como vai se apresentar a construção narrativa do artista, e se esta é coerente ou não em relação à história. Busca-se sempre, para cada imagem, ao menos uma questão que possa se constituir em motor de pesquisa, norteando e ajudando os processos de leitura; desenvolvem-se análises estruturais que permitam um estudo da psicologia das formas, suas funções e suas aplicações na construção das ilustrações e conclui-se por meio de análises semiológicas que ajudem a investigar os processos de produção de sentidos contidos em cada ilustração. Como anexos trouxemos o texto do conto La Barbe-Bleue encontrado na edição Hetzel-Stahl de 1862, uma ilustração “inédita”, quer dizer, não entalhada e por isso não utilizada em nenhuma das edições do livro de Gustave Doré feita para o conto do Barba-Azul e a reprodução na íntegra da crítica de Sainte-Beuve, escrita para a revista Nouveaux lundis, de dezembro de 1861 10. Informamos que nas referências em que não for citado o tradutor, as traduções são de responsabilidade do autor da dissertação. 10 Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6148342d/f304.tableDesMatieres. 10 2. LES CONTES DE PERRAULT: UM ESTUDO COMPARATIVO DAS EDIÇÕES DE 1697 E 1862 Les contes de ma mère l’Oie: Histoires ou contes du temps passé ou simplesmente Les contes de Perrault é a obra mais conhecida de Charles Perrault, acadêmico e cortesão do reino de Louis XIV, que chega ao século XIX como sinônimo de cultura popular. Adotado pelos românticos, seu modesto livrinho surgido em 1697 vai transformar-se na monumental edição Hetzel-Stahl, Les contes de Perrault, de 1862, pelas mãos de Gustave Doré. O presente capítulo pretende estudar as diferenças existentes entre as duas obras, primeiramente, demonstrando os mecanismos que levaram a pequena coletânea de contos populares a ser peça constituinte de um discurso a favor dos Modernos, em meio às querelas do século XVII; depois, como ela vai se tornar, quase dois séculos mais tarde, instância legitimadora de um discurso romântico que via no folclore a origem cultural de um país que buscava criar sua própria identidade. Ao concluirmos, verificaremos por meio da análise iconográfica das ilustrações dos frontispícios das duas edições, a de 1697 e a de 1862, como se operou a mudança de sentidos atribuídos a este livro de contos populares, passando da oralidade à escritura e constituindo-se, por fim, em gênero literário. 2.1. Charles Perrault Nascido em Paris, em 1628, Charles Perrault (fig.1) é o sétimo filho de uma família burguesa e jansenista. Seu pai, Pierre Perrault, um advogado do parlamento de Paris se ocupava pessoalmente da educação de seus filhos. Perrault estudou no colégio de Beauvais onde era considerado bom aluno até o momento em que decidiu abandonar o curso de Filosofia, após uma discussão com seu professor e completar seus estudos por conta própria e com a companhia de seu amigo Beaurain. 11 Juntos, os amigos estudam a Bíblia, autores clássicos, historiadores e escritores contemporâneos. Com a cooperação dos irmãos Nicolas e Claude Perrault fazem uma paródia do livro VI de A Eneida, de Virgilo e, mais tarde, publicam Murs de Troie, ou l’origine du burlesque, primeira obra impressa de Perrault 11. É importante notar que essas obras burlescas são publicadas durante os agitados anos das Frondas, guerra civil que une nobres, burguesia e povo contra o poder real, por causa da crise financeira que levou o reino a aumentar a carga tributária para cobrir os gastos excessivos do governo. Através do burlesco, a família Perrault lutava, à sua maneira, contra as atitudes do governo de Mazarin. A existência desses textos ajudam a compreender o tipo de relação que Perrault mantinha com o povo e de onde viria seu interesse pelas tradições populares. Em 1654, Pierre Perrault, o irmão mais velho de Charles, torna-se receveur général des finances, cuja tarefa era a de cobrar impostos para o rei e coloca seu irmão caçula como seu funcionário. Trabalhando por quase dez anos próximo ao governo, Perrault chama a atenção de Colbert, que buscava um secretário para a recém-fundada Petite Académie. Após um exame de admissão, torna-se seu secretário e entra também para o Conseil de bâtiment. Com o passar dos anos, Charles converte-se numa espécie de braço direito do ministro Colbert, sendo o responsável geral pelas edificações reais, reorganizador e tutor da Petite Académie ou academia das inscrições, onde escrevia prefácios para obras dedicadas à glória do soberano e criava as divisas que eram inscritas nas medalhas e nas moedas reais, como forma de publicidade do poder do rei. Era também encarregado de administrar assuntos complicados, tais como o processo Fouquet 12, as amantes do rei e o sistema de distribuição de pensões. 11 Cf. DOTOLI, 1990, p.56. Nicolas Fouquet foi superintendente de Finanças durante o reinado de Luís XIV. Acusado de lesar o patrimônio do reino, foi aprisionado e teve seus bens confiscados em nome do Rei. 12 12 Em 1671, apoiado por Colbert, foi eleito para a Academia Francesa com o objetivo de promover a reforma ortográfica e acelerar a realização do dicionário de língua francesa. Aos quarenta e quatro anos casa-se e tem quatro filhos, aos quais vai se dedicar, cuidando de sua educação, após ter sido retirado inteiramente da vida pública com a morte de Colbert, em 1683. 2.2. A querela dos Antigos e Modernos Em meados do século XVII, a cena literária francesa definia-se claramente em duas correntes distintas. De um lado os defensores dos Antigos, que sustentavam uma concepção de criação através da imitação dos autores da antiguidade e, do outro, os partidários dos Modernos, que defendiam o princípio da inovação na criação, adaptada à época contemporânea e às novas formas de expressão. O domínio do espaço da academia e da corte francesa era marcado por disputas como a Querelle du merveilleux chrétien em literatura (1653-1674), em que se questionava a utilização dos mitos pagãos em favor da utilização de heróis cristãos e franceses e a Querelle des inscriptions (1675-1676), em que se decidiu que os monumentos do reino passariam a ser gravados em língua francesa e não mais em latim. Mas é somente a partir de 1687 que vai se dar início ao que de fato ficou conhecido como La Querelle des Anciens et des Modernes, no momento em que Charles Perrault lança seu célebre poema intitulado Le siècle de Louis le Grand, que é lido em uma sessão da Academia Francesa. Neste poema, ele defende os valores e os escritores de sua época, criticando os autores da antiguidade grega e latina, considerados referências intocáveis e modelos fundamentais. Os primeiros versos deste poema marcam claramente seu posicionamento, estabelecendo 13 comparações que situam o presente como igual ou superior ao passado, através da equivalência entre os séculos de Augusto com o de Louis le Grand. La belle Antiquité fut toujours vénérable, Mais je ne crus jamais qu’elle fût adorable. Je vois les Anciens sans plier les genoux : Ils sont grands, il est vrai, mais hommes comme nous ; Et l’on peut comparer, sans craindre d’être injuste, Le Siècle de Louis au beau Siècle d’Auguste13 Após a leitura de Le Siècle de Louis le Grand, Boileau, líder dos Antigos, se sente ofendido e, ao levantar-se no fim do discurso, reclama que tal leitura seria uma vergonha para a Academia. A Querela opõe os adeptos da arte antiga, Boileau e Racine e os partidários da arte moderna, como Perrault e Fontenelle. Os Antigos reivindicavam a autoridade de Homero e Virgílio, baseados na ideia de que a antiguidade grega e romana representava a perfeição literária e que, por isso, seriam insuperáveis, devendo servir de referência. Imitar não significaria copiar servilmente, mas seguir o exemplo dos Antigos, quanto ao rigor na criação literária. Os Modernos recusam-se a tomar a antiguidade por modelo, pois acreditavam que isto seria concordar com a ideia de que a arte alcançara um nível de perfeição inatingível levando a se desconsiderar todo tipo de criação literária contemporânea como também impedir sua evolução. Como eles acreditavam no progresso das ciências e das artes, o culto aos antigos teria por consequência uma certa esterilidade na criação literária. Os Modernos se julgavam possuidores de uma experiência própria, fruto do conhecimento acumulado por seus antepassados e não herdeiros de um modelo que se impunha como uma camisa de força através da releitura das poéticas tradicionais da cultura grega e latina. 13 Le Siècle de Louis le Grand em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k108214v/f2.image. 14 O poema Le siècle de Louis le Grand configura-se numa espécie de prefácio do texto que Perrault vai publicar, posteriormente, em quatro volumes, chamado Parallèle des Anciens et des Modernes, que confirma a importância de seu papel nas questões ligadas a seu tempo. Charles Perrault ataca os Antigos através de um diálogo fictício, no qual comparava as realizações dos Antigos com os as dos Modernos em quase todos os aspectos da vida humana. A escolha do diálogo como forma de argumentação não era gratuita. Ela cumpria a função de legitimar o discurso moderno defendido por Perrault que demonstrava, assim, ter vasto domínio sobre os gêneros literários clássicos, o que lhe dava autoridade para questioná-los. É dentro do Parallèle que aparece pela primeira vez a referência a Les Contes de ma mère l’Oie, atestando que a querela seria, provavelmente, um dos fatores que levaram Perrault a dedicar uma atenção especial à literatura popular. A referência ao que hoje chamamos de folclore seria para Perrault uma ocasião de aprofundar, de modo sutil, suas críticas às epopeias antigas 14. 2.3. Les contes de ma mère l’Oie e a origem dos contos Ma mère l’Oie é uma figura fictícia representativa do folclore francês; uma velha camponesa, guardiã do rico tesouro que é a cultura popular. Esses contos, oriundos da tradição oral de se contar histórias em volta da fogueira, tinham uma função importante para os camponeses do Ancien Régime. Além de divertir, eles os preparavam para o mundo, ensinando uma forma de lidar com sua condição miserável e com as situações de injustiça daquela época. Não sendo moralizantes como as fábulas ou, como viriam a ser, suas versões transcritas por Perrault, elas tinham, sobretudo, a intenção de mostrar a realidade 15. 14 15 Cf. SORIANO, 1968, p.312. DARNTON, 2010, p.92. 15 Les contes de ma mère l’Oie é um livrinho que contém alguns desses contos populares, ingênuos e simples, isto é, sem ornamentos, que tinha a pretensão de simular a situação de enunciação dos contos tais como eram contados nas veillées. Perrault os teria recolhido da tradição oral e adaptado para o gosto da audiência sofisticada dos salões, tendo como mérito o fato de compreender a mentalidade daquela gente do povo e de não ter se desviado da linha original das histórias, evitando, assim, comprometer a autenticidade e a simplicidade das versões orais com detalhes supérfluos. Alguns historiadores e folcloristas como Marc Fumaroli e Marie Ramondt questionam a tese, fortemente romântica, de um Perrault amigo do povo e defensor do folclore nacional, imagem construída ao longo do tempo pelos prefácios das inúmeras edições dedicadas aos contos. Para eles, Charles Perrault, o cortesão, secretário de Colbert e arquiteto da política cultural de Louis XIV, seria a pessoa menos provável para fazer este trabalho de coletor de contos. Acreditam que Les contes de ma mère l’Oie seria o resultado do trabalho de um acadêmico que teria se inspirado nos contos italianos de Basile para realizar sua obra, fato este, evidenciado pelas histórias de maior êxito, no caso, Cendrillon, La Belle au bois dormant e Le Chat botté 16. No entanto, é bem provável que o próprio Perrault os tenha ouvido em uma situação comum a sua classe social. Através do contato com as amas de leite e as babás, encarregadas da primeira educação dos filhos da classe burguesa, os quais distraíam com canções e com contos populares. Assim, do mesmo modo que as veillées perpetuavam as tradições populares da aldeia, as criadas e amas de leite serviam de elo entre a cultura do povo e a da elite do Grand Siècle 17. Les contes de ma mère l’Oie representava o ponto de contato entre universos aparentemente distantes: o da cultura popular e a cultura da elite. Seria um erro, porém, 16 17 Cf. SORIANO, 1968, p.76. Cf. DARNTON, 2010, p.90. 16 atribuir a esta coleção a materialização de todo o vasto repertório popular do início dos Tempos Modernos. Ela representa não mais do que uns poucos contos escolhidos criteriosamente, segundo interesses de Charles Perrault. Seu desejo era provar que estes contos, vindos do povo e mesclados com conceitos cristãos, eram na verdade invenções dos trovadores (troubadours), que foram absorvidas culturalmente pelo povo, o qual se encarregou de os transmitir oralmente a cada geração. E que por isso, no contexto da querela, seriam superiores aos contos pagãos antigos. 2.4. O conto como modelo pedagógico A voga dos contos de fadas surge no final do século XVII nos salões de Paris, sobretudo, o das preciosas, onde foram recebidos como uma literatura ligada às mulheres. Eles tinham como característica fundamental a presença do maravilhoso, o que para os meios eruditos representava crenças e supertições da massa ignorante. Sendo assim, os contos de fadas eram quase sinônimos de cultura popular, apesar de sua forma literária ter nascido nos salões aristocráticos como uma literatura de divertimentos. Charles Perrault via nesses contos o exemplo perfeito de modelo pedagógico que desejava desenvolver. Em sua opinião, eles expressavam a infância da humanidade, e por isso, conviriam a todas as crianças, uma vez que a identificação entre esses dois públicos, o infantil e o popular, se baseava em suas características comuns de acordo com a visão da época, ignorância e credulidade 18. O pensamento que levava a associar o público infantil ao popular, longe de ser depreciativo, significava que ambos necessitavam de educação. Perrault, que já se mostrava 18 Cf. SORIANO, 1968, p.340. 17 interessado pelo tema desde o momento que resolvera se encarregar da formação de seus filhos, faz dele sua principal ocupação até o fim da vida. Naquela época não existia uma literatura infantil propriamente dita ou que assim pudesse ser considerada. A criança ainda era vista como um adulto em miniatura e, por isso, os poucos textos que havia nesse sentido eram textos como Les aventures de Télémaque (1699), de Fénelon, escrito especificamente para a educação do duque de Borgonha. Necessitando demonstrar que os valores de seu século eram superiores aos da antiguidade, Perrault vai buscar na emulação da fábula, gênero antigo responsável pelo docere, o modelo para a construção de seus contos, que seriam melhores, pois, além de instruir, serviriam também para divertir. Assim, Perrault vai se utilizar de estruturas simplificadas, para criar um texto mais narrativo do que alegórico e, tal qual a fábula, vai recorrer ao emprego de morais no final de cada conto para garantir seu caráter educativo. A edição original de Les contes de ma mère l’Oie surge em 1697 na forma de um pequeno livro ilustrado com frontispício e vinhetas gravadas acima do texto de cada um dos oito contos da coleção. Foi impresso em papel de baixa qualidade e obedecendo a um projeto estético deliberadamente criado para remeter a uma cenografia medieval que ainda continuava a ser empregada nas edições populares da época 19. Perrault recria o mundo medieval através da evocação de um imaginário de florestas e castelos misteriosos, príncipes e princesas, fadas e ogros. Ele recorre ao uso de onomatopeias, jogos de palavras e emprega expressões populares arcaicas para construir, por meio de traços enunciativos, a figura da velha camponesa que conta suas histórias de memória. A projeção deste ethos, que seria o da própria mamãe Ganso, faz parte de uma enunciação que buscava mobilizar o leitor para aderir a uma época antiga de onde teriam vindo esses contos do tempo passado. 19 Cf. HOOGENBOEZEM, 2010, p.2. 18 Do mesmo modo, as ilustrações de Clouzier apresentam-se como peças fundamentais dessa cenografia. No célebre frontispício encontram-se representados tanto a velha contadora de contos quanto seu seleto público, imagem de gerações de contadores anônimos responsáveis pela transmissão oral dos contos. As vinhetas conferem um efeito rústico ao livro devido, principalmente, à utilização da técnica de xilogravura de fio, técnica que consistia em se fazer o entalhe no sentido dos veios da madeira, produzindo uma imagem de alto contraste em preto e branco e que era comum na arte popular. Assim, texto e imagem se complementam, em benefício de uma estratégia que visa associar o gênero dos contos de fadas a uma herança cultural popular e nacional. Fig.1 EDELINCK, Portrait de Charles Perrault (1628-1703). Paris. 1694. 19 2.5. A edição Hetzel-Stahl O livro Les Contes de Perrault, edição Hetzel-Stahl de 1862, ilustrado por Gustave Doré faz parte de um projeto pessoal audacioso do artista de ilustrar todos os grandes autores do cânone da literatura universal. Como já foi referido, a concepção do livro inseria-se em um projeto editorial de livros de luxo, dentro do conceito do livro como um objeto de arte, onde texto e ilustração eram colocados em pé de igualdade, e que seguia os mecanismos de produção restrita impostos pelas leis de mercado 20. Tony Gheeraert descreve a edição como sendo esplêndida e “digna de ser vista, caso se tenha a oportunidade, pelo simples prazer de se conhecer uma bela obra” 21 . Livro de grande formato, com dimensões de 32x27cm e impresso em papel de excelente qualidade, apresenta gravuras de páginas inteiras, hors-texte, autônomas em relação ao texto. As simples vinhetas de Les contes de ma mère l’Oie, edição original de 1697 multiplicam-se em quarenta e duas ilustrações, nesta edição, conquistando seu espaço dentro do livro e disputando importância com o texto. Sainte-Beuve, em sua resenha do Nouveaux lundis, de dezembro de 1861 22 nos dá uma ideia do aspecto grandioso e da recepção critica da obra, no século XIX. Que luxo, que progresso! (...) aqui temos uma nova edição que deixa para trás todas as outras; ela é única, ela é monumental; um presente de rei. Cada criança tornou-se um delfim da França? – sim, no primeiro dia do ano, cada família tem o seu. (...) Um Perrault como nunca se viu até aqui e como não se verá mais. Ele continua fazendo suas observações quanto à qualidade dos tipos, “que são amigos dos olhos” e por onde o “ar circula à vontade”; sobre o artista “tradutor superior e livre” que, com “a opulência de seus desenhos renova as feições desses humildes contos”. 20 Cf. KAENEL, 2005, p.123. “Perrault illustré par Doré, ou la perfection du contresens”, conferência pronunciada em novembro de 2005, Maromme la Maine, IUFM de Rouen e publicada no site da Academia de Rouen em 2007, p.4. T. do A. 22 Ver anexo III no fim da dissertação. Sainte-Beuve, Charles-Augustin, Nouveaux lundis, 23 décembre 1861. 21 20 Um produto como este, de custo relativamente elevado, pertencia à classe dos livres d’étrennes ou livres de prix do século XIX. Espécie de livros recompensa distribuídos aos alunos mais destacados ao final do ano escolar. Enquanto os livres de prix se destinavam fundamentalmente às cerimônias escolares, os livres d’étrennes eram produtos lançados no mercado na véspera das festas de fim de ano, Natal e Jour de l’An constituindo-se num presente altamente requisitado pela família zelosa com a educação de suas crianças 23. Pierre-Jules Hetzel, o responsável por esta edição, dedicava-se a desenvolver uma nova forma de se fazer livros para as crianças, desde que voltara do exílio em 1859. Ele acusava os livros infantis da época de serem "idiotas e de não terem nem gosto e nem perfume 24". Para isso, recruta o que havia de melhor entre autores e ilustradores com o intuito de criar uma literatura infantil voltada para a instrução e a recreação, na forma de belos livros, de edições bem acabadas suscetíveis de serem adquiridos pelas escolas ou pelos pais, como estes cadeaux d'étrennes. Com seu ambicioso projeto de clássicos literários, Gustave Doré certamente visava uma clientela de bibliófilos e de leitores da alta burguesia. Les Contes de Perrault custava 60 francos e para termos uma ideia de quanto isto representava, 100 francos era o equivalente ao salário mensal dos trabalhadores do comércio na França entre os anos 1878 e 1884, enquanto os tipógrafos recebiam em torno de 50 francos por mês 25. Sendo uma obra de caráter elitista, nem todos estariam de acordo com este tipo de publicação. O sociólogo francês Proudhon, que recebera um exemplar de Hetzel, demonstra através de uma carta toda a sua falta de entusiasmo com o livro: Isso é lindo, caro e dispendioso. Se o senhor vendeu apenas mil destes, seu lucro já será considerável, sem ser exorbitante, mas creio que o senhor conseguiu mais, e aqui está o motivo: os tempos de pobreza são justamente os tempos de luxo. Aquele que não comprará um calendário de dois tostões, se presenteará com as quarenta e duas gravuras de Doré ( ... ). O amador terá 23 Cf. CHARTIER, Roger & MARTIN, Henri-Jean, 1985, p. 425. Ibidem, p.424. 25 Cf. KAENEL, 2005, p.410. 24 21 comprado um empastado. ( ... ) Dito isto, caro Sr. Hetzel, lhe perguntarei a quem o senhor destinou esta rica joia, ao ma endereçar. Se para mim, gostaria de salientar que eu sou pouco entusiasta de curiosidades caras, de bibelôs dispendiosos e que em minha biblioteca empoeirada, incompleta, descosida, não há nenhum lugar onde eu possa colocar o seu in-folio. ( ...) Se for para as minhas meninas , devo avisá-lo que elas estão em uma idade em que só podem receber presentes de seu papai, principalmente presentes tão caros como este.( ... ) Enfim, elas são incapazes de apreciar um livro assim, de outro modo que as crianças o apreciam, o que vale dizer que uma edição de 75 centavos, bastaria. 26 A Edição de luxo promovida por Doré participa de um tipo de leitura ostentatória e mundana que explorava as novas capacidades financeiras de uma burguesia enriquecida pelo desenvolvimento econômico do Segundo Império. Livros que eram feitos para serem expostos sobre mesas num salão, muito mais para serem vistos e folheados do que para serem propriamente lidos 27, este tipo de álbum aparece como ponto culminante da concepção romântica que buscava aliar arte e indústria. 2.6. O livro de luxo e o livre de peintre O século XIX apresenta uma revolução tecnológica que moderniza os modos de produção da indústria de livros. Novas máquinas e novas práticas que levam, como consequência, a novas estratégias comerciais. Desde os anos 1820, já era possível fazer interagir texto e imagem numa mesma página, em virtude da técnica da xilogravura de topo que havia invadido o mercado da edição e provocado, assim, uma mudança nas formas de se 26 “ Voilà qui est beau, qui coûte cher et revient cher. Si vous en avez vendu seulement Mille, votre bénéfice será déjà joli, sans être exorbitant ; mais je crois que vous avez placé davantage, et voilà pourquoi : les temps de paupérisme sont justement les temps de luxe. Tel qui n’achètera pas un calendrier de deux sous se donnera les quarante-deux gravures de Doré (...). L’amateur aura de la pâte pour son argent. (...) Cela dit, cher monsieur Hetzel, je vous demanderai à qui vous avez destiné ce riche bijou en me le faisant adresser. Si c’est à moi, je vous ferai remarquer que je suis peu amateur de curiosités chères, de bibelots coûteux, et que ma bibliothèque pouilleuse, dépareillée, décousue, n’a pas de place où je puisse mettre votre in-folio. (...) Si c'est pour mes filles, je dois vous prevenir qu’elles commencent à être d’un âge où elles ne peuvent plus recevoir de cadeaux que de leur papa, sourtout des cadeaux aussi chers que celui-là. (...) Enfin, elles sont incapables d'apprécier un pareil livre, autrement que ne l'apprécient les enfants, ce qui veut dire qu'une édition de 75 centimes, gaufrée, leur eût suffi”. Carta de Proudhon para Hetzel citada por KAENEL, 2005, p.412-413. T. do A. 27 Ibidem, p.412. 22 fazer o livro. É cada vez mais frequente o uso de imagens que se tornam atrativos para as novas publicações. Neste sentido, o livro romântico foi seu maior expoente, pois o ideal romântico de vulgarização da cultura seria posto em prática através das edições que utilizassem imagens como meio de facilitar a instrução para o povo. No entanto, para que isso acontecesse, era preciso resolver um dilema: como tornar tais edições acessíveis a todos uma vez que produzir livros ilustrados de qualidade custava caro? A partir de 1860, o mercado vai se dividir nitidamente em dois, diversificando sua produção para atender a uma gama cada vez maior de leitores de todas as classes. Assim, o livro popular, de qualidade inferior e que será vendido a baixo custo, encontrará na Bibliothèque des chemins de fer, de Hachette, seu maior representante, enquanto que o livro de luxo, impresso em papel de boa qualidade e fazendo uso das mais modernas técnicas de reprodução, representará o esforço da indústria de livros para instaurar um mercado de elite, voltado para uma classe burguesa abastada. Especializando-se cada vez mais na tentativa de suprir as demandas de uma clientela de bibliófilos e amadores de arte ávida por novidades, a indústria de livros faz surgir o livre de peintre. Livro de caráter eminentemente artístico, ele vai apelar para o conceito de produção restrita, através da destruição das matrizes originais após ser alcançado um certo número de cópias, tornando a obra rara, com o objetivo de aumentar seu caráter especulativo. A primeira obra deste tipo foi Sonnets et Eaux-fortes, de 1869, de Philippe Burty, que recrutara os maiores poetas e artistas da época para essa empreitada. Ligado ao conceito de fraternidade das artes, o livro apresentava texto e imagem em condições de igualdade. Ao lado de cada poema era colocada uma gravura a água-forte, demonstrando a equivalência dos trabalhos dos escritores e ilustradores como artistas criadores. 23 Ao invés do uso da xilogravura, técnica mais utilizada na indústria de livros por permitir grandes tiragens sem perda de qualidade, a opção pela água-forte fazia parte de uma estratégia da crítica de arte que buscava elevá-la à condição de obra de arte através do conceito de estampa original. Cada gravura a água-forte é um desenho original, pois não é possível estabelecer um controle sobre sua produção. Cada desenho apresenta características próprias que o farão único (porque cada água-forte é diferente devido à ação do ácido) e, ao mesmo tempo, múltiplo (porque se podem fazer várias cópias a partir da mesma matriz). 2.7. Ilustrar Perrault O aumento do público consumidor de livros no século XIX não se dera pelas classes populares, recentemente alfabetizadas a partir da reforma do sistema educativo francês promovido pelo ministro Guizot (1787-1874), mas sim por uma pequena e média burguesia, desejosas de compartilhar os valores de uma elite letrada; e é em função delas que os editores desenvolvem novos gêneros e novas formas de livro. Em relação ao livro destinado aos jovens, a intenção de Hetzel era criar uma opção para o tipo de literatura moralizante da época. Para isso, a instrução deveria apresentar-se com uma forma que provocasse interesse, caso contrário, fracassaria e se tornaria tediosa. Neste sentido, um livro como Les contes de Perrault parecia ser uma escolha coerente, uma vez que as ideias do acadêmico a respeito da educação atrelada à diversão eram semelhantes à do editor. Até os anos 1860, a demanda por novidades no mercado de livros ainda era tímida. Textos clássicos do século XVII como as Fábulas, de La Fontaine, Télémaque, de Fénelon ou o próprio Les Contes de Perrault ainda eram os mais vendidos. Um livro ilustrado de Charles Perrault atenderia também aos interesses de Gustave Doré, que desejava ilustrar os grandes 24 autores cânones da literatura, neste caso, uma obra que a tradição consagrou como literatura voltada para o publico infantil e que estaria dentro do contexto do desenvolvimento de um mercado de livros paradidáticos proporcionado pela lei Guizot de 1833. Contudo, Doré não escolhera ilustrar Perrault apenas por julgá-lo parte do patrimônio literário universal. Todos os autores que se encontravam no seu plano de ilustração 28 seriam dignos dessa honraria. Para entendermos a importância que ele atribuía ao texto é preciso considerar outros fatores que o levaram a fazer deste o segundo livro de seu ambicioso projeto de edições de luxo. Primeiramente, devemos notar que a obra se dá de modo concomitante a L’Enfer, de Dante, que fora o ponto de partida para seu projeto de reclassificação no campo artístico 29. Lemos no prefácio da edição Hetzel, escrito pelo próprio editor, a seguinte afirmação: Enquanto executava intrepidamente às suas custas e assumindo todos os riscos e perigos a sua magnífica e sombria ilustração de Dante, Gustave Doré quis que ao mesmo tempo e no mesmo esplêndido formato fossem publicados, como um contraste e um contraponto, os contos de fadas de Perrault. (...) Ele queria também, ao mesmo tempo, acalmar seu lápis, saindo dos horrores um pouco monocórdios do Inferno e comprovar a diversidade do seu talento 30. Nesse momento, o editor-prefaciador cria um cenário de equiparação entre os dois trabalhos, levando essa discussão para um nível mais elevado, de equivalência de valor simbólico entre os dois textos, e que envolve também a questão do artista capaz de lidar, ao mesmo tempo, com duas cenas genéricas totalmente diferentes. De um lado, a Divina Comédia, que é um épico cristão moderno e obra fundadora da identidade nacional e do idioma italiano; do outro, os contos populares, numa obra voltada para crianças. 28 Ver p.48. Ver p.51. 30 "Tout en composant intrépidement à ses frais, à ses risques et périls, sa grande et sombre illustration de Dante, Gustave Doré désirait que dans le même moment et que dans le même format splendide parussent, comme pendant et comme contraste, les Contes des Fées de Perrault. (...) Il voulait ainsi, tout à la fois, resséréner son crayon, au sortir des épouvantes un peu monocordes de l'enfer, et prouver la variété de ses moyens." (PERRAULT, 1862, p.XIX). T. do A. 29 25 Num momento em que as grandes nações europeias buscavam se afirmar através da busca por sua identidade, Les Contes de Perrault representava essa identidade nacional francesa, do mesmo modo que Dante representava a identidade nacional italiana. Não podemos desconsiderar também que, como artista romântico, o conceito de Gustave Doré (fig.2) a respeito de Charles Perrault não diferia da opinião geral de seu grupo estético. Atribuía-se ao acadêmico, que no século XVII fora figura de proa na Querela dos antigos e modernos, o papel de folclorista e guardião da tradição popular. Desse modo, ilustrá-lo significava ligar-se a uma cultura popular e tê-lo como instância legitimadora de um discurso moderno a favor do progresso nas artes, combatendo o poder das instituições acadêmicas que regulavam a produção cultural. Fig. 2 NADAR, fotografia de Gustave Doré (1832-1883). Paris. 1855-1859 26 2.8. A simbologia dos frontispícios de Les contes de ma mère L'Oie e Les contes de Perrault. Em seu texto Mother Goose illustrated31, Ségolène Le Men nos sugere duas maneiras possíveis de trabalhar ao se realizar um estudo sobre ilustrações: uma delas é fazer a análise da narrativa de uma determinada história por meio das sequencias de imagens da edição, opção que escolhemos para analisarmos o conto Barba-Azul nesta dissertação; outro modo é investigar as transformações ocorridas em uma dada ilustração ao longo do tempo, justamente o que nos propomos a fazer agora com a ilustração dos frontispícios das edições de Les contes de ma mère l’Oie, de 1697 (fig.3) e de Les Contes de Perrault, de 1862 (fig.4). Desse modo, poderíamos tentar entender as mudanças de leitura conferidas pelos artistas Clouzier e Doré a este mesmo episódio e compreender efeitos de recepção por parte dos espectadores. Fig. 3 CLOUZIER, Frontispício de Les contes de ma mère L’Oye. Paris. 1697. 31 LE MEN, 1992, p.18. 27 A ilustração do frontispício de Les contes de ma mère l’Oie nos mostra uma cena familiar e intimista onde uma mulher, de perfil, está sentada em um banquinho, fiando com seu fuso e roca, ao mesmo tempo em que conta histórias para uma plateia atenta. Ela é composta por três jovens elegantemente vestidos, que contrastam com os trajes simples da camponesa, evidenciando sua condição burguesa. Vemos um rapazinho ajoelhado que mantém as mãos sobre o colo da velha; ao seu lado, uma garota que conserva as mãos aquecidas por uma manta e um jovem de chapéu, sentado em uma cadeira, de costas para uma lareira acesa. Sobre esta, encontra-se um castiçal com uma vela reluzente. Há na cena ainda um gato peludo, de olhos abertos, localizado entre a cadeira do jovem e a lareira. De acordo com Marc Soriano, os três jovens presentes na cena seriam os filhos de Charles Perrault 32 e aquele, sentado de costas para lareira, provavelmente Pierre Darmancour, o filho a quem Charles atribuíra a autoria dos contos 33. Na cena, ele atua como uma testemunha ou uma espécie de autoridade que registra o que a velha conta. Ao fundo existe uma porta fechada e uma placa, colocada acima da cabeça dos personagens, onde podemos ler Contes de ma mère l’Oye. Esta inscrição tem um papel determinante na interpretação simbólica da imagem, pois levanta questões a respeito da autoria do livro. Ela proporciona uma associação direta com a personagem que conta as histórias e reforça a estratégia adotada por Charles Perrault de esconder sua identidade de autor, com a intenção de valorizar o aspecto da transmissão oral dos contos. A partir da ilustração poderíamos entender que o frontispício era um indicativo da maneira adequada de se ler os contos da edição. Ao representar um lar burguês em seu 32 Cf. SORIANO, 1968, P.318. A respeito da autoria dos contos, Soriano explica não haver dúvidas quanto à participação de Pierre Darmancour, terceiro filho do acadêmico. Ele foi o responsável pela coleta dos contos numa espécie de exercício literário. O papel de Charles Perrault era o de corrigir e acrescentar detalhes fornecendo-lhes feições literárias. O motivo que teria levado Charles a atribui-los ao filho se encontraria na dedicatória do livro. Ao dedicá-los a Mademoiselle, sobrinha de Louis XIV, Perrault desejava colocar o filho caçula sob a proteção da princesa. (SORIANO, 1990, p.6-7). 33 28 ambiente privado e aconchegante, onde a família se encontrava reunida em frente à lareira para ouvir histórias, ele fazia referências explícitas ao hábito medieval das veillées 34. Para fruir da obra seria necessário reconhecer, na simbologia do frontispício, informações que indicassem que ela era um convite para se partilhar o modo de viver dos antigos camponeses ou ao menos buscar, imaginariamente, as mesmas circunstâncias propostas por ela, no que diz respeito à forma de leitura. O maior obstáculo, segundo Darnton, seria a impossibilidade de se escutar as narrativas como eram feitas pelos contadores de histórias medievais. Por mais exatas que fossem as versões escritas dos contos, elas não poderiam transmitir os efeitos que deviam ter dado vida às histórias (...). As pausas dramáticas, as miradas maliciosas, o uso dos gestos para criar cenas e o emprego de sons para pontuar as ações. Todos esses dispositivos configuravam o significado dos contos e todos eles escapavam agora 35. Na opinião de Marin, não se tratava de um retorno à oralidade popular, tampouco de uma regressão de adultos ao estado infantil, mas sim, de um jogo de leitura capaz de construir e propor cenários eficazes para a apropriação da obra 36. Como se tratava de contos ilustrados, primeiramente, dever-se-ia tirar partido dos desenhos; olhá-los enquanto se efetuava a leitura e, depois, recitar os contos em voz alta, numa atitude similar à da velha contadora de histórias representada no frontispício. Enfim, adotar outra atitude mental de recepção dos contos que ali estavam propostos, como um novo modo de literatura. 34 Reuniões junto à fogueira onde os homens consertavam suas ferramentas enquanto suas mulheres costuravam (Cf. DARNTON, 2010, p.32). 35 Idem. 36 MARIN, 1990, p.118. 29 Fig. 4 DORÉ, Frontispício de Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. O frontispício da edição Hetzel-Stahl nos apresenta uma cena bem mais iluminada do que a da edição original. Sua composição tem um papel fundamental na hierarquização do olhar e, portanto, na orientação de sua leitura. A ilustração preenche a página toda e oferece o ponto de vista do leitor infantil, através de um enquadramento em contre-plongée; suas linhas de força convergem para um determinado ponto do desenho que representa seu núcleo: ao traçarmos uma linha imaginária unindo todas as cabeças encontradas na cena, notaremos uma trajetória em espiral que vai circundar o livro, colocando-o no centro perceptivo do desenho. Imagens figurativas, representação realista; vemos sete crianças, uma jovem mulher e uma velha de óculos que ocupa a parte central do desenho. A julgar pelas roupas, pelos brinquedos e pelo quadro ao fundo, notamos que se trata da representação da cena familiar burguesa do século XIX. A ausência de um homem adulto, podendo simbolizar a figura 30 paterna, reforça a ideia do caráter pedagógico do livro infantil, uma vez que a educação das crianças era basicamente uma das atribuições dadas ao sexo feminino. A velha que conta histórias mantém aberto sobre os joelhos um livro que apenas ela toca, numa atitude reveladora de posse, de domínio. É a própria Mamãe Ganso da edição original dos contos! A representante da cultura popular vê-se agora retratada como uma figura pedagógica. Uma vovozinha sentada numa poltrona aconchegante onde crianças de várias idades se espalham a seu redor para ouvir seus ensinamentos. Os óculos que ela usa são o símbolo da cultura daquela que já leu muito. Ela desempenha a função de ligação entre o livro e a família. O médium responsável pela transmissão da essência sagrada da cultura popular para a cultura erudita. A imagem do livro é o elemento focal da ilustração. Estando colocado no centro da página e cuidadosamente valorizado pela composição, ele brilha como se fosse um objeto mágico, encantando as pessoas ao seu redor. A mulher que se encontra atrás é a mãe da família. Ela, que com os braços abertos faz a ligação entre a velha e as crianças, confere um aspecto poético à cena, pois representaria a estação intermediária entre a ingenuidade infantil e a experiência da velhice, reforçando um simbolismo de passagem temporal e completando o sentido de um hábito familiar que passa de geração para geração. Os três jovens ouvintes do frontispício da edição original agora dão lugar a sete crianças, que representam o público ao qual o livro está endereçado: crianças de várias idades que vão do bebê, passando pela menininha, até o garoto. A grande quantidade de personagens em volta do livro demonstra o papel que a leitura pode proporcionar na união da família. O conceito do frontispício da primeira edição de Les contes de ma mère l’Oie permaneceu inalterado durante muito tempo em edições subsequentes, apresentando ligeiras 31 modificações que apenas reforçavam seu sentido icônico até o século XIX, quando então assistimos a uma etapa decisiva na transição dos sentidos conferidos aos contos, a partir do surgimento da literatura infantil como gênero literário. Surgidos no século XVII, os contos de fadas eram um gênero moderno que pertencia à cultura dos salões, fundamentalmente o das preciosas, e que apesar de seu conteúdo moralizante permanecia sendo uma espécie de literatura de divertimentos. A mudança de sentido que eles sofreram foi produzida especialmente pela geração romântica que via em Charles Perrault um folclorista e salvador da cultura popular e no contexto da reforma do sistema educacional francês promovido pela lei Guizot, que fez surgir um mercado de livros escolares paradidáticos, no qual Les Contes de Perrault veio a se tornar um clássico. A comparação entre os frontispícios dessas duas importantes edições registra a série de mudanças ocorrida na cultura da leitura durante esses dois séculos, separando as obras e marcando de vez a introdução dos contos de Perrault na literatura infantil. O frontispício da primeira edição desenhado por Clouzier incluía muitos detalhes que enfatizavam, sobretudo, sua origem oral. O da edição ilustrada por Doré era a culminação de todo o processo que levou à transformação de contos populares em obra de arte da literatura universal. Sendo assim, a velha camponesa que narrava contos populares de memória desaparece e é substituída pela vovozinha de óculos que conta histórias a partir de um livro, denunciando a mudança de registro, da oralidade para a escritura, e do contexto popular para erudito. A mistura social representada pela presença da velha camponesa inserida no lar burguês é substituída pela presença da mãe que, mantendo os braços abertos e fechando o círculo em torno da família, “abraça” o livro, sinônimo de cultura e verdadeiro símbolo de conquista burguesa. 32 3. TRAJETÓRIA E TENTATIVAS DE REPOSICIONAMENTO NO CAMPO ARTÍSTICO FRANCÊS DO SÉCULO XIX. A trajetória de Gustave Doré no campo artístico francês pode ser compreendida segundo o conceito de Pierre Bourdieu. De acordo com o sociológo, trajetória se refere à "sequência de posições ocupadas sucessivamente por um agente ou grupo de agentes, em diferentes estados e momentos do campo 37", sendo que Cada deslocamento para uma nova posição implica a exclusão de um conjunto mais ou menos vasto de posições substituíveis e, com isso, um fechamento irreversível do leque dos possíveis inicialmente compatíveis, assinalando uma etapa do processo de envelhecimento social 38. Seus contínuos deslocamentos através dos espaços dos possíveis, identificados no campo da produção de bens culturais, se configurariam em tentativas de reclassificação no campo artístico. A figura do ilustrador como profissional do campo da edição ainda estava em constituição no século XIX, encontrando-se em uma posição intermediária entre o artesão e o pintor. Doré, egresso do jornal, era consciente da hierarquia simbólica de seu métier que conferia ao caricaturista da imprensa uma posição dominada em relação ilustrador do livro e, a este, uma posição dominada em relação ao pintor acadêmico. Desse modo, as tomadas de posição efetuadas por um artista ambicioso, capaz de reconverter seus capitais, sobretudo o simbólico do campo da edição, são parte de uma estratégia de se conseguir não apenas sucesso financeiro, mas prestígio social, no seu caso, o reconhecimento de seu talento como um grande artista por parte das instituições acadêmicas e da critica. 37 38 BOURDIEU, 1996, p.295. Idem. 33 3.1. Os anos na Maison Aubert O episódio do encontro de Gustave Doré com Charles Philipon, que dará início a sua carreira artística, é uma construção narrativa elaborada pelo próprio Doré e propagada por diversos biógrafos ao longo dos anos. Ela segue o modelo criado por Vasari nas Vidas dos artistas que, por sua vez, era baseado no modelo das hagiografias medievais, das vidas dos santos. Uma narrativa construída a fim de apresentar o artista em potencial como um ser predestinado, encontrando na sua obstinação, a força necessária para derrubar barreiras e cumprir sua verdadeira vocação 39. Em setembro de 1847, Gustave Doré e seus pais se encontravam em Paris para uma temporada de três semanas a fim de resolverem assuntos particulares. Encantado com a cidade, o garoto resolvera usar todos os artifícios para convencer sua família a permanecer por lá, pois ele já estava convencido de querer abraçar a carreira artística, embora essa ideia encontrasse resistência dentro de sua família. A Maison Aubert se localizava na place de la Bourse, próxima ao hotel onde a família Doré estava instalada. Um dia, ao passar em frente à famosa editora de Charles Philipon, que costumava exibir em suas vitrines as gravuras de seus lançamentos, Doré teve uma ideia: ao retornar para o hotel, faria alguns desenhos no estilo daqueles que vira expostos e os levaria para uma entrevista com o editor assim que tivesse uma oportunidade. No dia seguinte, fingindo-se indisposto para escapar de um passeio com seus pais, juntou seus desenhos e pôs em prática o seu plano. A reação de Philipon, durante o primeiro encontro com o jovem Doré, é assim descrita por Dan Malan: O cavalheiro dos cabelos brancos não se impressionara tanto em sua vida. No momento em que se recuperava o suficiente para realmente prestar atenção nos desenhos, ele ficava ainda mais surpreso ao ver o quão bom eles eram. Não acreditava que aquele garotinho fosse capaz de realizar aqueles desenhos, principalmente quando soube que ele nunca tivera uma aula de artes. Ele insistia para que Doré fizesse mais alguns desenhos ali, naquele momento e chamava outros empregados para assistir. Imagine este grupo de 39 Cf. KAENEL, 2005, p396. 34 adultos observando, boquiabertos, aquele menino que fazia sketch atrás de sketch em segundos. Eles ficaram surpresos tanto pela sua confiança quanto por seu considerável talento; ele estava tão à vontade quanto se estivesse em casa brincando. (...) Paris nunca vira nada parecido, um verdadeiro Mozart com um lápis 40. Philipon olhava com atenção e boa vontade seus croquis enquanto o questionava sobre sua situação. No fim da entrevista, ao se despedir de Doré, deu-lhe uma carta na qual convidava seus pais para uma entrevista. Sua atitude mudara de uma descrença inicial para o fascínio. Não era sua intenção permitir que o garoto fosse embora sabendo que tinha uma mina de ouro em suas mãos. E então, sendo bastante insistente e utilizando todos os argumentos que pôde encontrar, Philipon conseguiu desfazer os receios dos pais de Doré de deixá-lo ingressar na carreira artística e pediu que lhe permitissem ficar em Paris, alegando que, desde aquele momento, ele já poderia fazer uso de seus desenhos e pagar por eles 41. Uma versão menos fantasiosa dá conta de um encontro promovido, a princípio, pelo proprietário do apartamento em que a família Doré estava hospedada. Sua mãe, Alexandrine, foi quem levara os cadernos que continham os primeiros desenhos de seu filho, que se inspirava nos trabalhos Grandville, Töpfer e Cham, e entre os quais já se encontrava Les travaux d’Hercule, seu primeiro álbum que seria publicado ainda naquele ano 42. De qualquer modo que tenha ocorrido, o encontro se deu no momento preciso em que Philipon, o rei da caricatura, procurava caricaturistas para o lançamento de seu Journal pour rire, e o velho editor reconhecia naquele garoto as qualidades necessárias para sua nova publicação; frescor de uma novidade e não envolvimento político, o contrário do que 40 “The White-haired gentleman had never been so shocked in his life. When he recovered enough to actually look at the drawings, he was further amazed to see how good they were. He did not believe that this little boy could possible have made those drawings, especially when he learned that the little boy had never taken an art lesson. He insisted that Doré make some more drawings right then and there, and called in other employees to watch. Picture this group of adults, starring at this little boy with their mouths open, while he made sketch after sketch in seconds. They were flabbergasted as much by his confidence as they were by this considerable talent; he was as uninhibited as if he had been at home playing a game. (...)Paris had never seen anything like this, a veritable Mozart with a pencil.” (MALAN, 1995, p.21). 41 Cf. TROMP, 1932, p.6. 42 Cf. KAENEL, 2005, p397. 35 costumavam fazer seus jornais anteriores como La Caricature e Le Charivari, que tinham como característica principal a charge política. Charles Philipon, famoso opositor do rei Luis Filipe e inventor de Gavarni, Grandville e Bertall, ficara realmente impressionado com o talento de Gustave ao ponto de querer contratá-lo imediatamente, mas seu entusiasmo se chocava com a objeção do pai do jovem, que jamais incentivara o talento artístico do filho. Christophe Doré temia que a nova ocupação de caricaturista viesse a perturbar os estudos de seu filho no Liceu Charlemagne, porém, acabou convencido por Philipon através de um contrato que visava conciliar os interesses de ambas as partes: o adolescente continuaria com seus estudos em meio período e tudo o que recebesse por seus desenhos poderia cobrir seus gastos com o Liceu; já Gustave deveria fornecer à editora ao menos um desenho por semana que poderia ser aceito ou recusado. Este contrato vinculava Doré exclusivamente à Maison Aubert por três anos, onde ele receberia 40 francos por cada um de seus desenhos durante o primeiro ano, sendo aumentado para 50 e 60 francos nos anos subsequentes. Para termos uma ideia, o cartunista mais renomado da França naquela época, Daumier, recebia essa mesma quantia a cada vez que publicava um desenho no Charivari. Com isso, aos 17 anos, Doré se tornaria o cartunista mais bem pago da França 43. A família de Gustave Doré pertencia à média burguesia alsaciana. Metade dela composta por servidores do Estado, metade por pensionistas que viviam de renda. Do lado paterno, seu avô fora oficial do Império e morrera em Waterloo. Seu pai, Christophe Doré, era engenheiro de pontes e estradas, funcionário do distrito de l’Ain, em Bourg-en-Bresse. Ele desejava para seus três filhos, Ernest, Gustave e Émile uma educação politécnica como a sua e que seguissem na engenharia, pois considerava o serviço público uma carreira mais segura. 43 Cf. MALAN, 1995, p.21. 36 Do lado materno encontramos os parentes que terão maior peso na formação de seu habitus primário 44. Os avós, aos quais Doré se encontra bastante ligado, eram relativamente ricos e cultivavam o gosto pelas artes e pela literatura. Seu avô, um verdadeiro gentilhomme, lhe servirá de figura modelar quando adulto e sua avó, mais tarde, deixará todos os seus bens à família Doré, o que possibilitará a compra do luxuoso hotel da Rua Saint-Dominique, em Paris. Já sua mãe Alexandrine, pessoa de maior ascendência sobre Gustave, era a maior incentivadora de seu talento. Tentando equilibrar o desejo de seguir a carreira artística, como também queria sua mãe, com as expectativas de seu pai de fazê-lo optar por uma carreira estável, Doré se via preso a dois modelos distintos, que formaram a base de sua concepção de réussite bourgeoise: reconhecimento artístico, mas com a estabilidade do sucesso financeiro. Durante os anos na Maison Aubert, encontrando-se sob a proteção de Charles Philipon, Gustave Doré será o cartunista mais popular da França. Além de ilustrar para o Journal pour rire ele vai se dedicar a dar continuidade à tradição töpfferiana de contar histórias em imagens, através de álbuns litográficos, em formato oblongo, que farão parte da pré-história daquilo que hoje conhecemos como histórias em quadrinhos. Em seu primeiro trabalho, Les Travaux d’Hercule, de dezembro de 1847, já é possível notar, pelo modo como Doré é apresentado ao grande público, o início da construção da imagem pública que ele vai assumir durante toda sua vida e que mais tarde vai se converter em sua imagem de Gênio. Les Travaux d’Hercule foram compostos, desenhados e litografados por um artista de quinze anos que aprendeu o desenho sem mestre e sem estudos clássicos. (...) Quisemos fazer este registro aqui não apenas para chamar a atenção do público para o trabalho desse jovem desenhista, mas ainda para 44 Espécie de habitus que é construído durante a infância e no seio familiar, constituindo-se nas aquisições mais antigas e mais duráveis do indivíduo. Elas irão condicionar as aquisições ulteriores e, integrando-as ao conjunto, formarão um só habitus que seguirá em permanente atualização, de acordo com suas necessidades e novas situações (Cf. BONNEWITZ, 2002, p.61). 37 estabelecer bem o ponto de partida de M. Doré que acreditamos reivindicar um posto de destaque nas artes 45. Depois dele surgirão, em 1851, Dés-Agréments d'un Voyage d'Agrément e Trois Artistes - incompris et mécontents, todos com imenso sucesso. Em meados dos anos 1850, alegando desejar ilustrar livros mais sérios, Doré vai elaborar sua primeira mudança de posição no campo da edição, abandonando a caricatura e os impressos pelos fólios literários ilustrados. A transição dos trabalhos da Maison Aubert e suas “bandes dessinées” para os fólios literários vai começar por intermédio de Paul Lacroix, o Bibliophile Jacob, amigo de longa data da família Doré e que já conhecia o talento de Gustave desde criança. Lacroix era uma espécie de figura paterna que Doré vai ganhar após a morte do pai, aconselhando-o e incentivando-o constantemente a estudar arte mais seriamente. É ele quem vai lhe fornecer a primeira oportunidade de se lançar como ilustrador de obras literárias ao sugerir a J. Bry, seu editor, dar uma chance ao rapaz de fazer as ilustrações para seu recente livro Oeuvres Illustrées du Bibliophile Jacob, em 1852. Apesar de não contar entre seus melhores trabalhos, a oportunidade rende frutos a Doré, pois o editor gosta tanto de seus desenhos que o convida para um segundo trabalho, ilustrar Oeuvres Completes de Lord Byron no ano seguinte. Esses foram os primeiros textos aos quais Doré submete sua arte, não sendo ele o autor. Até então era ele próprio quem escrevia suas histórias. O sucesso dessas publicações deu-lhe a confiança de ilustrar, posteriormente, autores maiores como Rabelais. Como todo artista que ambicionava as honras de sua profissão, Doré vai fazer sua estreia nos Salões já no ano de 1848, sendo aceito com dois trabalhos na seção de desenhos. 45 “Les Travaux d’Hercule ont été composés, dessinés et lithographiés par un artiste de quize ans, qui s’est appris le dessin sans maître et sans études classiques. (...) Nous avons voulu l’inscrire ici, non seulement pour intéresser davantage le public aux travaux de ce jeune dessinateur, mais encore pour bien établir le point de départ de M. Doré, que nous croyons appelé à un rang dintingué dans les Arts”. Introdução de Les Travaux d’Hercule (Cf. KAENEL, 2005, p.400). 38 Dois anos mais tarde, conseguirá expor sua primeira pintura de paisagens, Pins Sauvages. A opção por debutar no Salão de pintura por um gênero inferior está de acordo com sua formação, uma vez que seria muito difícil o júri aceitar o trabalho de um jovem pintor e autodidata pretendendo de início alcançar as glórias da pintura de história 46. Apesar dos constantes apelos de Paul Lacroix e, mais tarde, do amigo Théophile Gautier para que se aprimorasse através de aulas de artes e que pintasse seus quadros a partir de modelos, Doré, que sistematicamente se recusava a fazê-lo, alegava não ver diferença entre ilustração e pintura. Ele confiava que apenas sua memória fotográfica e sua imaginação seriam suficientes para resolver seus problemas. Aliás, sua não formação em pintura era ainda motivo de orgulho, tanto que se vangloriava de nunca ter passado por ateliês, o que não era inteiramente verdade, uma vez que, durante algum tempo, frequentara o ateliê do pintor Ary Scheffer, onde teria tido instruções sobre pintura acadêmica por volta de 1849, além de passar incontáveis horas no Louvre, estudando os mestres Michelângelo, Rubens e Raphael 47. Essa atitude de querer apagar suas próprias pegadas ajuda a criar um leitmotiv que dentro da recepção crítica de sua obra visava forjar a lenda do artista que se faz sozinho e que trabalha puramente a partir de sua imaginação, ou seja, o Gênio. Nesta ocasião, Doré mantinha um posicionamento até mesmo agressivo contra a figura do pintor acadêmico. Em sua ilustração (fig.5) intitulada Rats peintres (um jogo de palavras que faz alusão aos rapins, pintores medíocres) 48 para o álbum La ménagerie parisiennne, de 1854, ele parodiava estudantes de arte concentrados em suas ocupações; um deles reproduzindo um gigantesco pé acadêmico numa tela de grande formato e, um outro, investigando com a lupa a bunda de um modelo nu que estava suspenso pelos braços como se fosse uma peça de açougue. 46 Cf. KAENEL, 2005, p402. Cf. LECLERC, 2012, p.65. 48 Cf. Idem. 47 39 O verdadeiro alvo das criticas de Doré eram as instituições de ensino das artes, as quais julgava um reduto fechado, mais interessado em produzir artistas preocupados em copiar modelos antigos do que criar obras originais. Fig.5 DORÉ, Rats peintres, La Ménagerie parisienne par Gustave Doré, 1854, p.9. 3.2. Mudança no campo: da caricatura aos fólios literários Em 1849, portanto, ainda sob contrato com a Maison Aubert, Doré já se mostra decidido a abandonar a caricatura dita de circunstâncias, que faz para o Journal pour rire, para investir nas caricaturas de costumes, gênero de crônica social que estava em voga na França daquele tempo desde o surgimento da série de livros Les Français peints par euxmêmes (1839-1842). Em uma carta escrita ao pai, ele explica os motivos pelos quais resolve promover essa mudança em sua carreira e anuncia ainda a realização de novos projetos: Submetera-me durante um tempo à caricatura de circunstâncias (...) e negligenciei meu talento aos acontecimentos da atualidade, pois sei o quanto as piadas circunstanciais têm pouca solidez; o quanto são efêmeras e 40 sucumbem de um dia para o outro. Preferi dedicar meu talento (correndo o risco de não ser publicado durante um tempo) à caricatura que tem por objetivo o estudo de costumes, caricatura que é de todo tempo e que será eterna. (...) As séries em que começo a trabalhar serão publicadas, em seguida, também em álbuns separados, publicação que me servirá ainda mais do que essa 49 que o jornal lançará 50. A caricatura de costumes também era uma atividade que apresentava poucos riscos de melindrar as autoridades. Tratava-se de representar o lado pitoresco da sociedade. Ao invés de personalidades, anônimos eram retratados por desenhistas que se tornavam verdadeiros cronistas do quotidiano. Somente após o fim de seu contrato com Philipon, entre 1854 e 1859, é que esses álbuns serão lançados. Trata-se de La Ménagerie Parisienne (1854), Les Folies Gauloises (1854) e Les Différents Publics de Paris (1859). Álbuns litográficos inspirados nos trabalhos de Daumier e Cham contendo páginas inteiras de desenhos satíricos que hoje servem de testemunhas da sociedade francesa do século XIX. Em 1854 Doré realiza aquele que seria seu último álbum de arte sequencial: Histoire de la Sainte Russie, seu primeiro e último livro de caráter político. Era uma obra de cunho patriótico lançada na época da guerra da Criméia. Contava uma história inverossímil feita com o intuito de debochar dos russos. Perdeu toda sua relevância ao final da guerra, não voltando mais a ser reeditada na França, até que, durante a primeira guerra mundial, foi descoberta e reutilizada pelos alemães para atacar a aliança entre franceses e russos 51. Nesse mesmo ano, ainda pelo editor J. Bry, Doré ilustra Gargantua e Pantagruel, de Rabelais, obtendo bastante sucesso, verificado na recepção entusiasmada de nomes como Théophile Gautier e da revista Le Mousquetaire, de Alexandre Dumas. Já em 1855, com Les 49 Provavelmente o Album du Journal pour rire. “J'avais cédé pendant un temps le pas à la caricature de circonstance ( . .. ) et j'ai négligé de fixer mon esprit sur l'actualité des événements, car je sais combien les plaisanteries de circonstance ont peu de solidité; combien elles sont éphémères et tombent d'elles-mêmes du jour au lendemain. J'ai préféré appliquer mon esprit (au risque de ne pas paraître pendant un moment) à la caricature qui a pour but l'étude des moeurs, caricature qui est de tout temps et qui sera de tout temps ( ... ) Les séries que j’entreprends paraîtront ensuite en autant d’albums séparés, publication qui me servira même beaucoup plus que celle qu’en fera le journal.” (KAENEL, 2005, p.399). 51 Cf. MALAN, 1995, p.33. 50 41 Contes Drôlatiques, de Balzac, não repete o mesmo êxito, sua obra, porém, apresenta uma revolução em termos de ilustração. Os desenhos não eram mais submissos ao texto. O público deveria, antes de tudo, ter um olhar educado para compreendê-las, pois suas composições elaboradas necessitavam de um certo conhecimento para serem entendidas 52. Por ocasião da exposição universal de 1855, Doré acredita estar preparado para efetuar um salto no campo da pintura. Investindo finalmente no gênero da pintura de história, ele consegue expor no Salão três telas a óleo que celebravam os grandes feitos da política militar de Napoleão III, porém suas obras passam quase que despercebidas. Aos vinte e três anos, qualquer artista que tivesse três telas selecionadas para um evento tão importante quanto o Salão já se daria por satisfeito, mas para um jovem ambicioso que já possuía certo prestígio por seu trabalho como ilustrador e que, por isso, acreditava que seu reconhecimento como pintor viria automaticamente, a frieza por parte da crítica fez com que ele se sentisse rejeitado como artista. Doré ignorava que o campo da pintura exigia de seus agentes capitais específicos os quais ele não possuía, como a chancela das instituições artísticas, a filiação a uma escola ou a proteção de um artista de renome que o legitimasse. Insistindo numa atitude que certamente visava angariar a simpatia do Estado, ele envia para o Salão de 1857 mais uma enorme cena de batalha em homenagem ao segundo Império; La Bataille d’Inkermann que, dessa vez, vai lhe render uma menção honrosa. Naturalmente, as primeiras críticas positivas a respeito do trabalho de Gustave Doré vão acontecer justamente no meio próximo a Charles Philipon. Nesse mesmo ano de 1857, Félix Nadar vai dedicar seu Nadar Jury a Gustave Doré e, utilizando toda sua notoriedade para promovê-lo, ele vai apresentá-lo àqueles que “ditam a opinião dos outros”, especialmente, a Théophile Gautier 53. 52 53 Cf. TROMP, 1932, p.15. Rascunho de carta de Nadar endereçada à Madame Doré: "Depuis quelques anées que je connais votre fils, Madame, il a toujours, absent ou présent, trouvé en moi un ami dévoué et un enthousiaste fervent. (...) Ce que je ne compte pas, ce sont les services que j’ai pu lui rendre comme admirateur de son talent. (...) Quand je lui ai 42 Gautier, um dos grandes nomes do romantismo francês, já havia construído uma sólida carreira na crítica dos Salões de pintura quando é apresentado a Doré. Desde o primeiro encontro, ele reconhece no jovem, a quem vai apelidar de Gamin de gênie, um potencial fora do comum, predizendo que em pouco tempo ele seria o maior pintor de sua época. Em 1856 e 1857 vai dedicar-lhe dois artigos, na prestigiosa revista L’artiste, da qual é editor, nos quais reconhece no jovem artista uma qualidade tão rara que não encontra coragem de censurá-lo por suas lacunas e imperfeições, sob pena de que, ao tentar corrigi-las, ele venha a desnaturar esse dom tão precioso que se chama imaginação 54. Após ver suas expectativas frustradas com o Salão de 1855, Gustave Doré concebe a ideia de fazer suas ilustrações como se fossem pinturas. Se não era possível tornar o ilustrador famoso um pintor reconhecido, decidira então que faria de suas ilustrações, verdadeiras obras de arte, assumindo de vez o papel de promotor da xilogravura de topo. O ano de 1856 marcará uma virada tanto em sua obra gráfica quanto na história da ilustração. Com La légende du Juif errant (a lenda do Judeu errante) o ilustrador deixa de lado a vinheta romântica e passa a evocar a grande gravura de reprodução (tarefa destinada à calcografia) utilizando a xilogravura de topo para emular os efeitos do buril (fig.6). Esta obra vai provocar uma mudança em seu estilo de ilustrar e definir a estética que o consagrou. No prefácio, Paul Lacroix define o livro como uma revolução no campo das imagens populares (l’imagerie populaire). Um grande desafio, sobretudo, para os artistas da xilogravura que segundo o bibliophile Jacob “tinham razão ao pensar que as imagens conduit Th. Gautier, quand j'ai entraîné nuitamment, et à la chandelle, Préault dans son atelier, quand j'ai été lui quérir partout où ils sont, où ils me connaissent, où ils m'aiment et où ils me respectent, Madame, les hommes qui dictent l'opinion des autres et dont je savais que Gustave ne pouvait manquer de se faire aussitôt des amis, c'est pour moi que j'agissais, et il n'a pas a m'en savoir gré" (NADAR in KAENEL, 2005, p.404) 54 GAUTIER in KAENEL, 2005, p.405. 43 populares deveriam ser vistas como obras de arte” e que “para que se operasse uma revolução no campo da xilogravura, bastava apenas um trabalho bem sucedido 55”. A xilogravura ocupava uma posição inferior na hierarquia do campo da gravura estando ligada, em sua origem, às imagens de santo e a cultura popular. Posteriormente vai se destacar tanto no mercado de livros ilustrados quanto em jornais e revistas por se adaptar melhor à reprodução em série. A xilogravura tradicional, que Beraldi chamava de Gravure en fac-simile 56, se assemelhava a um desenho a bico-de-pena, apresentando um violento contraste de preto e branco, cuja técnica consistia em se fazer o entalhe no sentido dos veios da madeira. Nos anos 1820, vai conhecer um desenvolvimento na França a partir da importação da técnica do topo, vinda da Inglaterra, em que o entalhe da madeira se dava transversalmente ao sentido das fibras, favorecendo uma imagem com traços precisos e delicados. Ela promoverá uma revolução no campo da edição ao permitir que texto e imagem fossem colocados no mesmo clichê tipográfico. A partir da utilização de desenhos feitos a traço ou com aguada, diretamente aplicados sobre o bloco de madeira que devia ser entalhado seguindo a técnica da xilogravura de topo, surge a técnica chamada bois de teinte ou d’interprétation. Ela oferecia a possibilidade de representar uma gama de cinzas através de tramas elaboradas, produzindo efeitos que se aproximavam da gravura em buril. Os gravadores encarregados de executar tais desenhos deviam preservar fielmente os traços do artista, interpretando os meios-tons com grande habilidade. O sucesso desse novo modo de fazer xilogravura no mercado de livros ilustrados se deveu principalmente a Gustave Doré, porém, seu valor artístico era bastante contestado pelos 55 "Ils s’est rencontré de notre temps trois artistes, trois graveurs, passionnés pour leur art et impatients de créer de grandes oeuvres, à l'exemple des vieux maîtres en bois. (...) Ils ont pensé avec raison que l'imagerie populaire devait se rattacher à l'art, et qu'il ne fallait qu'un heureux essai pour opérer une révolution complète dans la Gravure en bois". (DORÉ, 1856, p.6). 56 BERALDI,1887, p.13. 44 defensores da gravura tradicional que lhe opunham o argumento de que a xilogravura vivia do traço e que desde o momento em que ele era substituído por hachuras, a xilogravura perdia toda sua identidade, convertendo-se numa arte estranha que vivia da emulação de outras técnicas 57. Doré não fazia qualquer esboço preliminar. Ele desenhava diretamente sobre a madeira, no seu caso o buis, que tinha a vantagem de poder ser trabalhado do mesmo modo que o metal graças a sua dureza. O buis devia ser preparado anteriormente com uma camada de cerusa ou gesso, possibilitando que o desenho fosse feito como sobre o papel. Com a ajuda de um pincel e nanquim, ele trabalhava e dava forma a suas figuras, aplicando pontos de luz com o guache. Ao final, detalhava as imagens com o uso da pena 58. Este trabalho complexo exigia gravadores experientes e naquele momento Doré percebe que precisa desenvolver sua própria escola, com artistas selecionados e treinados por ele, a fim de alcançar os efeitos que desejava para suas gravuras e maximizar sua produção. Ele queria mostrar até onde poderia chegar a arte do ilustrador, dedicando para isto suas próprias finanças, seu trabalho e seu talento. O Judeu Errante é a lenda de um sapateiro judeu que debocha do Cristo ao vê-lo passar, carregando sua cruz, em direção ao monte Calvário. Jesus então lança uma maldição sobre este homem, que terá que caminhar até o final dos tempos, condenado a observar os sofrimentos do mundo, sem condições, no entanto, de remediá-los. Le Juif errant era uma narrativa bastante popular na França nos anos 1850, principalmente pelo sucesso do romance homônimo de Eugène Sue, publicado em 1844-1845 com ilustrações de Gavarni. O livro La légende du Juif errant corresponde ao protótipo das edições de luxo dos grandes clássicos da literatura que Gustave Doré vai produzir, a partir de seu plano de 57 58 Idem. Cf.TROMP, 1932, p.20. 45 ilustração de 1855. O trabalho encantou os críticos, pois não imaginavam que tais efeitos fossem possíveis de serem conseguidos através da xilogravura. A partir deste livro, Doré conseguirá um acumulo de capital econômico que vai garantir sua autonomia, permitindo, então, que ele escolha o que fazer e para qual editor trabalhar. Desse modo, começará sua cruzada de elevar a xilogravura, então atrelada à gravura popular, ao nível de uma obra de arte. Fig.6 DORÉ, La légende du Juif errant, 1856, p.1. 46 3.3. As edições de luxo e a busca pela réussite bourgeoise Blanche Roosevelt, uma das mais importantes referências sobre a obra de Doré, reproduziu em seu livro La vie et les Oeuvres de Gustave Doré de 1887, o plano de ilustração concebido pelo artista para suas edições de luxo. Trata-se de uma carta que o ilustrador entregara para alguém incumbido de escrever sua biografia no ano de 1865. Concebi naquela época (1855) o projeto destas grandes edições in-fólio da qual Dante foi o primeiro volume publicado. Minha intenção era, e ainda é esta: fazer num formato uniforme e colecionável, todas as obras de arte da literatura, seja épica, seja cômica, seja trágica. Os editores aos quais apresentei meus planos, não achando minha ideia viável, alegavam que este não era o momento para que os negócios do mercado de livros se baseassem em preços excessivos, que fosse necessário lançar volumes custando cem francos e que não havia nenhuma possibilidade de sucesso ao se criar essa contra corrente. De minha parte, raciocinei de maneira oposta e me apoiei na minha experiência em relação a este fato: em todos os momentos em que uma arte ou uma indústria decai, sempre restam algumas centenas de pessoas que se opõem a este dilúvio de coisas comuns e se dispõem a pagar o valor justo pela primeira obra bem cuidada que se apresente. Porém, estes argumentos parecem não ter convencido a ninguém e tive que fazer, às minhas próprias custas, o primeiro destes livros: Inferno, de Dante. O sucesso e a venda deste volume vêm justificar aquilo que eu dizia; e a partir deste momento, meus editores pressentiram a possibilidade de fazer esta coleção de in-fólios, da qual sete volumes já foram publicados e que segundo meus planos, compreenderá uns trinta, cuja lista é mais ou menos esta. Creio que não será desprovido de interesse conhecer assim, por antecedência, o que será minha obra em uma dezena de anos59: Na carta encontram-se listados Don Quixote, Orlando furioso, Paraíso Perdido, Fábulas de La Fontaine entre outros. Alguns trabalhos já publicados na época como as obras de Byron, Contos de Perrault e Inferno, de Dante e outras que nunca serão executadas, como 59 "Je conçus, à cette époque (1855), le plan de ces grandes éditions in-folio dont le Dante a été le premier volume publié. Ma pensée était, et est toujours celle-ci : faire dans un format uniforme et devant faire collection, tous les chefs-d'oeuvre de la littérature, soit épique, soit comique, soit tragique. Les éditeurs auxquels je fis part de mes plans ne trouvant pas mon idée pratique, m'alléguaient que ce n'était pas dans un moment où les affaires de la librairie avaient pour base le bon marché excessif, qu'il fallait lancer des volumes à cent francs, et qu'il n'y avait aucune chance de réussite à créer ce contre-courant. De mon côté, je raisonnai d'une manière opposée, et je basai mon espérance sur ce fait même : c'est que, dans tous les temps où un art ou une industrie tombe, il reste toujours quelques centaines de personnes qui protestent contre ce déluge de choses communes, et prêtes à payer ce qu'elle vaut la première oeuvre soignée qui se présente. Mais ces arguments ne parurent convaincre personne, et je dus faire a mes frais le premier de ces livres : L’Enfer, du Dante. Le succès et la vente de ce volume viennent justifier ce que je disais ; et dès ce moment, mes éditeurs entrevirent la possibilité de faire cette collection d'infolio, dont sept volumes ont paru aujourd'hui et qui, suivant mes plans, en comprendront (sic) une trentaine, dont voici à peu près la liste. Je crois qu'il ne sera pas sans intérêt de connaître ainsi par anticipation ce que sera mon oeuvre dans une dizaine d'années:" (DORÉ in ROOSEVELT, 1887, p.187-188). 47 a Ilíada e a Odisseia, de Homero e Fausto, de Goethe. Um misto de obras eruditas e populares que faziam parte da biblioteca ideal de um homem do século XIX 60. Este ambicioso plano de ilustração tinha dois propósitos: aquisição de capital econômico, pois lançava no mercado editorial um novo tipo de produto destinado a uma clientela específica de bibliófilos e de burgueses endinheirados; e outro simbólico, pois eram clássicos da literatura que possuíam temas reconhecidamente difíceis de traduzir em imagens. O carro-chefe de seu projeto era L’Enfer, de Dante, obra que lhe dava a oportunidade de trabalhar com um texto clássico, refletindo melhor sua intenção de não ser mais visto como um simples ilustrador, mas como um pintor que fazia ilustrações; afinal, tratava-se de um tema da grande pintura, agora representado por uma arte popular como a xilogravura, parte de um projeto de vulgarização da cultura para um público não iniciado no mundo das artes. Louis Hachette é o único a aceitar colocar seu projeto em prática, mas não sem antes adverti-lo da possibilidade dele estar jogando dinheiro fora, devendo se dar por satisfeito se conseguisse ao menos vender 100 cópias de seu livro 61. O editor, conhecido por sua preferência por edições populares de baixo custo, naquele momento buscava diversificar seus produtos, explorando as potencialidades de um mercado em expansão. Entre os anos 1855 e 1861, lançara Journal pour tous, Semaine des enfants, Tour du monde, entre outros. Hachette era um velho conhecido para quem Doré já trabalhara, sobretudo, na Semaine des enfants, revista destinada para um público mais jovem de leitores que continha Nouveaux contes de fées, as primeiras histórias da Condessa de Ségur, ilustradas pelo próprio Doré. Seguindo as diretrizes de seu plano de ilustração, Doré vai arcar com todos os custos de sua produção que incluem gravadores, impressão e encadernação, cabendo ao editor a 60 61 Cf. LECLERC, 2012, p.94. Cf. MALAN, 1995, p.55-57. 48 tarefa de distribuição dos livros, obedecendo à seguinte repartição dos lucros: Para o autor 60%, Hachette 15% e livrarias 25% 62. Apesar de todas as previsões negativas, a obra obteve um imenso sucesso, tanto de público quanto de crítica, tendo suas 100 cópias iniciais esgotadas rapidamente e atingindo, até hoje, mais de 200 edições publicadas em todo mundo 63. Para chamar a atenção do público e promover seus lançamentos, os editores costumavam se utilizar do Salão; primeiramente, por se beneficiarem da visibilidade que ele possuía, graças a sua extraordinária visitação e, depois, por sua grande repercussão na imprensa. A exibição nos Salões também permitia atribuir a seus produtos um caráter artístico, reforçando, assim, o culto ao livro, tanto de peintre quanto ao de luxo, livros como objetos de arte. Ao basear-se nesta técnica de divulgação, Doré conseguirá fazer com que se esgotem rapidamente as primeiras edições de seu Dante e ele recorrerá sempre a este expediente para seus lançamentos posteriores no que, para Doré, consistia em criar um entusiasmo crescente, alimentando no futuro comprador a vontade de possuir o objeto precioso que ele vira exibido no Salão 64. A mistura de interesses entre a indústria de livros e as Belas Artes era condenada por críticos que lamentavam a colonização do Salão pelos editores. O uso frequente deste recurso publicitário vai se voltar contra o próprio Doré no que diz respeito às suas ambições de pintor, ajudando a identificá-lo cada vez mais como um dos principais motores da indústria de livros. Nesse caso, os eventos ocorridos no Salão de 1861 serão significativos para se compreender a trajetória do artista que, objetivando sua reclassificação no campo das artes, decidirá expor, ao mesmo tempo, sua obra de ilustrador junto com a de pintor. 62 Idem. Idem. 64 Cf. KAENEL, 2005, p.414. 63 49 Amparando-se em seu Dante ilustrado, Doré invadirá o Salão com um projeto ousado de autopromoção. Ele vai apresentar, na seção de fotografias, a reprodução das ilustrações originais destinadas a seu livro por meio das fotos produzidas por Charles Michelez, um especialista em reprodução de obras de arte, das matrizes xilográficas antes de serem entalhadas e, na sessão de gravuras, as próprias xilogravuras impressas. Tudo isso buscando aumentar a repercussão de seu trabalho através da multiplicação das resenhas críticas de sua obra na imprensa especializada 65. Porém, é na seção de pinturas que ele vai apresentar a culminação de todos seus esforços, através da exibição de uma tela gigantesca onde a representação de Dante et Virgile dans le Neuvième cercle des enfers (fig.7) fará referência explícita à tela La Barque de Dante (1822) de Delacroix (1798-1863), modelo a quem Doré sempre tentou se comparar. Sua intenção parece ser a de utilizar o Salão como o rito acadêmico que exige de cada artista a apresentação de uma grande obra de arte (Chef d’oeuvre) como prova de seu talento e, assim, legitimar-se como pintor através do reconhecimento de seus pares. Mais uma vez, Théophile Gautier será aquele a sair em sua defesa, afirmando que a longa intimidade do artista com o tema, provavelmente devido a seu livro, vai fornecer-lhe o grande estilo que talvez faltasse a suas pinturas anteriores e que suas ilustrações exibidas no Salão se converteriam facilmente em verdadeiras pinturas de história 66. Esta era certamente uma tentativa de resposta às críticas mais ferrenhas que diziam que seu quadro Dante et Virgile, a despeito de suas dimensões ambiciosas, “tinham somente a consistência de uma vinheta aumentada e esticada além das medidas 67”. Fato recorrente em sua carreira toda vez que os críticos queriam lembrar-lhe de sua origem de ilustrador e atingi-lo como pintor. 65 Ibidem, p.416. Ibidem, p.417. 67 Crítica de Emile Perrin do Salão de 1861 para a Revue européenne, citado por KAENEL, 2005, p.416. 66 50 Fig.7 DORÉ, Dante et Virgile dans le neuvième cercle de l'enfer, 1861. A recepção favorável da edição Hachette contrastava com a opinião, geralmente negativa, dos críticos a respeito de sua tela monumental. Nos anos seguintes à publicação de Dante, Doré vai se encontrar no auge de sua réussite burgeoise, porém a conquista do sucesso popular e financeiro não compensará, a seus olhos, a indiferença do júri, a má vontade da crítica e a falta de reconhecimento das instituições artísticas. O Salão de 1861, no qual Doré havia fundado todas as suas esperanças, apresenta-se como um fracasso parcial. Porém, sua decepção não vai demorar muito uma vez que, naquele mesmo ano, o Estado vai conceder-lhe o título de Chevalier de la Légion d’honneur graças à influência de seu amigo Paul Dalloz, redator chefe do Moniteur Universel, órgão oficial do governo, que dará essa condecoração não ao pintor mais ao ilustrador. O modo como sua condecoração é obtida vai lhe render desconfianças quanto ao seu merecimento e seus críticos vão acusá-lo de tirar partido de sua proximidade com o círculo do poder. 51 Os mais altos funcionários da administração imperial frequentavam seu hotel na Rua Saint-Dominique, onde costumava promover soirées reunindo celebridades como Gautier, Alexandre Dumas, Rossini, Listz. Doré estabelece uma rede de amizades que vai interceder a seu favor em algumas ocasiões, como na menção honrosa do salão de 1857. Seu patriotismo muitas vezes se confundia com os interesses do Império, como no caso das ilustrações feitas para a imprensa, por ocasião das campanhas do exército francês na Criméia e na guerra de independência da Itália. Em 1859, Doré produzira grandes cenas de batalha para o Journal pour tous e Le monde illustré, ficando conhecido como uma espécie de ilustrador oficial da política externa do Segundo Império. Daí não se admirar o fato de, em 1864, ele ser convidado por Napoleão III para passar dez dias em Compiègne, requisitado para dirigir tableaux vivants para o imperador. Les contes de Perrault sairá na virada do ano, de 1861/62, sob o mesmo formato e seguindo a mesma concepção de L’Enfer: livro de luxo, grande formato, dentro do conceito do livro como objeto de arte. A diferença é que depois de toda a boa repercussão de seu Dante, outros editores se apresentam agora dispostos a participar do projeto do ilustrador. O livro será então publicado por P.J. Hetzel que, ao voltar de seu exílio na Bélgica, deseja retomar o caminho que havia começado em 1843, com o Nouveau magazin des enfants: o da literatura voltada para um público infanto-juvenil. O editor, que sempre buscou a perfeição técnica de seus produtos, defendia também a ideia de edições de luxo, porém com conteúdo educativo e moral. Les contes de Perrault será um grande sucesso comercial, muito embora boa parte da crítica condene seu caráter elitista. L’Album de Gustave Doré, publicado em seguida, traz uma verdadeira coletânea de seus trabalhos, muitos deles, reproduções de suas pinturas a óleo. Embora litográfico, o álbum não se assemelha em nada aos livros cômicos do início de carreira. Dessa vez o próprio Doré 52 se encarregara de gravar suas ilustrações. Possivelmente tentando, com isso, responder àqueles que o acusavam de ser totalmente dependente de sua equipe de gravadores. Uma viagem à Espanha, em 1862, com seu amigo o barão Charles Davillier resultará em dois de seus grandes trabalhos: o álbum L’Espagne, que vai ser publicado primeiramente na revista Tour du Monde, e Don Quichotte, no ano de 1863. A invenção da galvanoplastia vai causar uma revolução no mundo dos impressos. Ela corresponde a um processo químico que permitia a reprodução exata das matrizes originais. Valendo-se disto, a editora inglesa Cassel assinará um contrato com a Hachette a fim de adquirir as cópias das pranchas de Don Quichotte, sendo este o primeiro livro de Gustave Doré a ser publicado em terras britânicas pela editora. A partir de então, Cassel será a responsável pela maior parte de suas edições na Inglaterra e por transformá-lo em sensação internacional. Doré sabe que ocupa uma posição dominada no campo artístico. Ser um ilustrador fornece-lhe rendimentos que certamente o colocam no nível de uma alta burguesia; seu sucesso no campo da edição confere-lhe uma notoriedade que permite certa autonomia no campo da produção. No entanto, o espaço de relações que se refere ao campo artístico se apresenta como um sistema simbólico organizado por uma lógica das diferenças, na qual o pintor vai opor-se ao ilustrador. Ao tomar consciência deste fato, ele viverá uma situação contraditória: se tudo o que conseguiu é fruto de sua trajetória no campo da ilustração, seu êxito constitui também um obstáculo para suas ambições no campo da pintura, sobretudo, seu reconhecimento como grande artista. "Sou meu próprio rival. Eu devo apagar e matar o ilustrador para que só se fale de mim como pintor 68", dirá Doré. 68 "My adversary, at this moment, is myself. I must efface and kill the illustrator, and be spoken of only as the painter". (Citado por JERROLD, 1891, p.102). 53 É por isso que, a partir dos próximos anos, sua produção como ilustrador vai diminuir gradualmente, principalmente dentro da imprensa; jornais e revistas. Porém, ele dará continuidade a seus livros de luxo, pois eles são ainda a garantia de sua independência econômica em relação às instituições 69. 3.4. O sucesso inglês e Doré escultor Entre 1856 e 1864, havia apenas quatro livros de Gustave Doré publicados na Inglaterra, porém, a partir de 1865, esse cenário vai mudar radicalmente. O mercado editorial inglês será invadido por uma enxurrada de títulos do ilustrador francês dentre os quais, Don Quixote, Milton’s Paradise lost, The Doré Bible, La Fontaine’s fables. A editora Cassel será a responsável por cerca de 3/4 dessas edições, fazendo com que ela seja reconhecida como a sua editora “oficial” em terras britânicas. Ela vai se valer de todo tipo de publicação: fascículos, edições encadernadas, edições de luxo, edições populares e as distribuirá por todo o território inglês e, mais tarde, também nos Estados Unidos. O enorme sucesso levará as revistas de arte inglesa a descreverem o ano de 1866 como o Doré year o ano dourado para os editores britânicos de Doré 70. La Sainte Bible ilustrada por Doré, primeiramente publicada na França em 1865 pela editora católica Mame, nasce como um projeto audacioso capaz de explorar todos os recursos da indústria de livros da época. A editora, que possuía uma papelaria, gráfica própria, ateliês de estereoscopia e de encadernação, cursos de desenho e de xilogravura, 71 possibilitou a realização de um livro extremamente luxuoso, feito com papel especialmente criado para a edição e vendido por 300 francos. Na Inglaterra, ela é lançada em fascículos durante o ano de 69 Cf. KAENEL, 2005, p.504-505. Cf. MALAN, 1995, p.77. 71 Cf. KAENEL, 2005, p.412. 70 54 1866 e, no ano seguinte, publicada em uma edição de dois volumes chamada de The Doré’s Bible, sendo prontamente adotada pelo público inglês. Tamanha repercussão alcançada em terras inglesas levou a uma onda crescente de interesse por Gustave Doré e sua obra, fazendo com que se multiplicassem resenhas a respeito do artista em revistas especializadas de arte que não cansavam de louvar seu talento. No entanto, em meados de 1867, começam a surgir artigos que falam não mais sobre o quanto “Doré havia elevado a ilustração a um nível nunca antes sonhado 72”, mas sim, abordam pela primeira vez seu trabalho como pintor. Doré acabara de submeter novas telas ao Salão de pintura de Paris, sendo novamente execrado pela crítica de arte francesa. Porém, jornalistas britânicos que tinham ido cobrir o Salão, escreveram críticas diametralmente opostas sobre suas telas, cobrindo-o de elogios, afirmando não se tratar apenas de um excelente ilustrador, mas também de um grande pintor. Os britânicos pareciam não se alimentar dos mesmos preconceitos em relação às pinturas de Doré do que os franceses, talvez por o terem conhecido quando já era o ilustrador mais famoso do mundo, enquanto que os franceses lidavam com suas pretensões artísticas de grandeza desde os tempos de caricaturista do jornal. A recepção positiva de seus trabalhos na Inglaterra o levou a uma primeira viagem a Londres, em 1868, para participar de uma exposição na Egyptian Hall, na qual se encontrava seu famoso Dante et Virgile, La fille de Jephté (uma cena bíblica) e o polêmico Le Tapis vert 73. Apesar da repercussão medíocre, dois comerciantes ingleses do mercado de artes, Fairless e Beeforth, aproximam-se de Gustave Doré e conseguem convencê-lo a ceder, por mais alguns meses, suas obras para uma outra exposição, agora na German Gallery, mais de 72 MALAN, 1995, p.77. Le Tapis vert foi uma obra bem contestada no Salão de 1867 por retratar um tema mundano como o jogo. (Cf. KAENEL, 2005, p.506). 73 55 acordo com o gosto do público inglês ou com o que ele esperava ver de Doré, que tanta fama desfrutava por causa de sua Bíblia ilustrada. Com o intuito de promover esta exposição, eles encomendam uma grande pintura a óleo chamada Le triomphe de la chrétienté sur le paganisme e Gustave vai ceder-lhes também um busto seu e se comprometer a pintar outros quadros também de temática religiosa, que serão a base das exposições permanentes de Doré em Londres. A exposição se revela, desta vez, um imenso sucesso levando os dois comerciantes a proporem uma sociedade a Gustave Doré, onde o artista se comprometerá a realizar ao menos um quadro por ano, além de fornecer outros trabalhos como aquarelas e água-forte, tudo isso concomitantemente com sua atividade de ilustrador. No ano seguinte eles vão ocupar definitivamente o espaço da German Gallery e transformá-la em Doré Gallery, facilitando assim a venda de seus produtos de arte na Inglaterra. Doré se torna uma celebridade em todo o país. Suas visitas anuais serão verdadeiros acontecimentos sociais, em que fará amizades importantes como a família do príncipe de Gales. “Seu retrato se encontra espalhado por toda parte e não raro é possível encontrar alguma criança ou mulher do povo capaz de reconhecer seu rosto ou gritar seu nome 74”. Este sucesso na Inglaterra talvez seja a explicação para o fato de duas de suas biografias fundamentais, ainda durante o século XIX, terem sido publicadas primeiramente em língua inglesa; uma feita por um escritor inglês, Blanchard Jerrold e a outra, por uma jornalista americana, Blanche Roosevelt. Em 1869, a Doré Gallery era conhecida como a maior coleção de pinturas religiosas do mundo. Uma visita à galeria chegava a ser considerada uma peregrinação recomendada por líderes religiosos que muitas vezes iam pessoalmente como guias turísticos e onde, comumente, pastores ministravam sermões diante dos quadros 75. 74 75 ROOSEVELT, 1887, p.291. Cf. MALAN, 1995, p.153. 56 Durante sua temporada em Londres, um grupo de discussão foi formado em torno de suas famosas pinturas. Uma questão então foi levantada: dentre as mais importantes passagens bíblicas, qual ainda não havia sido representada? O Reverendo Frederick Harford, um amigo de Doré, afirmou que a única cena que ele não se lembrava de ter visto era a do momento em que Jesus Cristo deixava o palácio de Herodes em direção ao Calvário, passando pelo meio da multidão 76. Seduzido pelo suposto ineditismo da obra, Gustave Doré, imediatamente, se pôs a elaborar seu gigantesco quadro de 6x9 m, dando origem a uma de suas mais famosas pinturas Le Christ quittant le prétoire (fig.8), que só será concluído em 1872, após o fim da guerra franco-prussiana. Desse modo, Doré finalmente encontrava na sua relação com a Doré Gallery o mecenato que desejava da Igreja. A galeria lhe encomendava frequentemente telas de pintura religiosa que faziam grande sucesso junto ao público inglês, rendendo-lhe inclusive o apelido de Painter-preacher. Fig.8 DORÉ, Le Christ quittant le prétoire, 1872. 76 Ibidem, p.161. 57 L’entrée du Christ à Jérusalem é uma pintura irmã de Le Christ quittant le prétoire, tanto por suas dimensões quanto por sua composição, exibida no Salão de 1877. Novamente Doré é recebido com grande entusiasmo pelos críticos britânicos, que o saúdam como um dos maiores pintores franceses do século XIX, contrastando com a falta de entusiasmo e até mesmo o deboche dos críticos franceses que naquela época já se mostravam aborrecidos com o nível de popularidade alcançado por Doré, na Inglaterra. A diferença de opinião se intensificara ao ponto de os britânicos, cada vez mais entusiastas de Doré, fecharem os olhos para graves defeitos técnicos de suas pinturas, preocupados que estavam em apenas louvar o aspecto dramático das cenas. Para eles, o fato de suas pinturas se assemelharem a uma “ilustração aumentada” significava que elas eram tão boas quanto suas ilustrações. Já para os franceses isso significava que elas eram terríveis. Anne Roquebert, pesquisadora da obra de Gustave Doré, afirma que é a mistura entre realismo e simbolismo, tão contestada pela crítica de arte francesa que será apreciada pelo público inglês. Para ela, não é de se admirar o sucesso de Doré em terras inglesas, pois, em sua opinião, há correspondência entre a arte do pintor alsaciano e os Pré-Rafaelitas 77. Gustave Doré não era um religioso praticante como se poderia supor. Pelo contrário, de acordo com sua namorada da época, a atriz Sarah Bernhardt, ele estava mais para um “místico hedonista 78”. De fato, Doré apenas se aproveitara da oportunidade que caiu em seus braços, que o fez tornar-se um pintor de temas bíblicos e alcançar grande popularidade na Inglaterra, graças a sua bem sucedida Bíblia ilustrada. Porém, há uma grande diferença em relação a esses dois tipos trabalho; enquanto a Bíblia de Doré tem sido impressa e reimpressa 77 "Pour Anne Roquebert, autre exégète de l'oeuvre du Strasbourgeois, c'est au contraire ce mélange entre réalisme et symbolisme, si contesté par la critique de Paris, qu'ont apprécié les Anglais. Ce succès n'est pas étonnant, selon elle, car « il existe des "correspondances" entre l'art du peintre alsacien et les oeuvres des Préraphaélites » dont la peinture repose sur une étrange alchimie entre réalisme et symbolisme." Anne Roquebert, « Gustave Doré, une vie d'artiste », dans L'Enfer Doré, Dante et Virgile dans Le neuvième cercle de l'Enfer, avec Jean Lacambre et Sylvie Carlier, monastère royal de Brou, Bourg-en-Bresse, Éditions Fage, 2005, p. 18. (Citado por LECLERC, 2012, p.223-224). 78 MALAN, 1995, p.169. 58 em vários países ao longo dos anos, o sucesso de suas pinturas religiosas foi um fenômeno de curta duração, típico do século XIX e específico da sociedade vitoriana, sendo estas obras hoje praticamente desconhecidas. Mas não só de pintura religiosa viverá Doré durante esse tempo. Ao dedicar-se cada vez mais à água-forte, ele contribuirá com uma gravura para o livro Sonnets et eaux-fortes (1869), marco no estabelecimento da gravura água-forte como estampa original e considerado o primeiro livre de peintre 79; a guerra Franco-prussiana, em 1870, vai lhe inspirar quadros como La Marseillaise (1870) e L’Énigme (1871); de sua relação com os ingleses surgirão ainda dois álbuns importantes em sua trajetória London, a pilgrimage (1872) e The rime of ancient mariner (1876). London, tecnicamente, é considerado um livro seu, embora tanto a ideia quanto o texto sejam de seu amigo e escritor Blanchard Jerrold, o mesmo que fará uma de suas primeiras biografias póstumas. A ideia era tirar partido da fama que Doré desfrutava na Inglaterra naquele momento para que, com sua genialidade artística, traçasse um olhar profundo e crítico sobre a sociedade inglesa da era vitoriana, retratando tanto os segmentos ricos quanto os pobres, lugares famosos e bairros miseráveis, a alta sociedade e a indigência. Grande parte da crítica inglesa, que normalmente lhe era favorável, não aprovou desta vez seu trabalho que foi considerado de mau gosto e de certa forma injusto com a cidade que tão bem o acolhera. O realismo com que Doré apresentava as mazelas da cidade industrial chocara a sociedade londrina tão acostumada com seu universo fantástico. Considerado uma referência visual sobre a Inglaterra do século XIX, o significado social deste álbum de Doré pode ser medido pelo modo com que frequentemente ele é relacionado ao trabalho do escritor inglês Charles Dickens, e a indústria cinematográfica foi 79 KAENEL, 2005, p.123. 59 especialmente feliz ao se amparar em suas ilustrações para construir, nos anos 1940, os cenários e o ambiente dos filmes Great Expectations e Oliver Twist 80. London, a pilgrimage foi publicado primeiramente em Londres durante o ano de 1872, em 12 fascículos, e depois em forma de álbum. Na França, foi lançado pela Hachette apenas em 1876, porém com texto do escritor Louis Enault 81. Apesar de não ter sido tão popular quanto seus outros trabalhos, o álbum teve admiradores importantes como o pintor Vincent van Gogh que, impressionado com a gravura The Newgate prison yard, utilizou-a como modelo para fazer seu quadro Prisioners Exercising (1890). Quanto a The rime of ancient mariner, pode-se dizer que se constituiu da primeira e última experiência de Gustave Doré como editor. Doré tinha muito cuidado com seus trabalhos e frequentemente entrava em conflito com seus editores por discordar de questões relacionadas aos direitos de publicação. Aproveitando-se do espaço de que dispunha agora na Doré Gallery, resolve então produzir e editar por conta própria seu livro, utilizando a galeria como ponto de venda. Diferentemente do seu bem sucedido livro Inferno, a experiência revela-se um verdadeiro fracasso, terminando com uma grande quantidade de livros encalhados. É possível que a publicação não tenha vendido bem não só por causa de sua inexperiência como editor, que não conseguiu distribuir e promover o livro de maneira adequada, mas também em função de um projeto editorial que se mostrou equivocado. Primeiramente tratava-se de um poema sem muita relevância até a metade do século XIX 82; depois, apresentava um projeto gráfico sem atrativos visuais, sem elementos decorativos, muito embora o papel fosse de boa qualidade; a encadernação estranha que dava a impressão das páginas estarem rasgadas ou soltas dentro o livro ao invés de costuradas, e 80 Cf. MALAN, 1995, p.129. Ibidem, p.127. 82 Ibidem, p. 131. 81 60 por último, o fato de ser uma edição muito cara para um livro tão fino 83. O projeto provavelmente tinha a intenção de permitir que as gravuras fossem destacáveis, reforçando seu conceito de produto de arte, mas acabou se mostrando ineficaz como um produto editorial. O ano de 1877 marca o início de sua carreira de escultor, à qual vai se dedicar pelos seis anos restantes de sua vida e que será sua última aposta visando o reconhecimento por parte das instituições oficiais. Foram mais de trinta trabalhos, dos quais, a grande maioria era de alegorias que portavam as mesmas marcas de fantasia e originalidade de suas pinturas e, consequentemente, atraíam o mesmo tipo maldoso de crítica em que era acusado de fazer “ilustrações de gesso” ou em três dimensões, com o mesmo intuito de sempre: atingi-lo como artista ao acusá-lo de ilustrador. La Parque et l’Amour, exibida primeiramente no Salão de 1877, teve, no entanto, uma boa repercussão. A revista La vie parisienne sugere inclusive que sua estátua fosse colocada sobre a tumba de Alfred de Musset 84, ideia esta que vai deixar Doré entusiasmado, uma vez que era um grande desejo seu decorar algum lugar público, fato que só vai se concretizar, depois de sua morte, quando da inauguração do monumento a Alexandre Dumas. A escultura foi depois reexibida na exposição universal de 1878, onde recebeu uma menção honrosa. Nesse mesmo ano ele cria La Gloire, uma escultura que contava a história de uma mulher alada (a glória) que ao abraçar por trás um belo jovem, envolve-o com os louros da vitória, cravando-lhe um punhal na altura do coração. Uma peça em que Doré deixava entrever, claramente, suas desilusões com a carreira artística ao se fazer representar na figura do jovem. 83 84 Ibidem, p. 133. Cf. KAENEL, 2005, p.449. 61 La Madone, de 1880, era uma escultura tradicional que representava Maria segurando o menino Jesus em seus braços. Apresentava um Doré de volta aos temas religiosos, só que, desta vez, voltado para suas origens católicas. O traço original dessa obra seria o modo como o menino Jesus está representado; de braços abertos como se antevisse, com seu movimento, a crucificação. Para a surpresa do artista, a escultura foi bastante elogiada pela critica e premiada com uma medalha de terceira classe no Salão, gerando rumores de ser uma espécie de compensação pela não premiação de La vigne, um grande vaso ornamental que fizera sensação na exposição universal de 1878 85. Uma cópia dessa escultura se encontra ornamentando o túmulo da famosa cortesã Alice Ozzy, no cemitério do Père Lachaise de Paris. Em 1878, um comitê formado por gente de todas as classes, como escritores, comediantes, pintores, escultores, editores e banqueiros, havia sido criado para desenvolver o projeto de uma estátua em homenagem a Alexandre Dumas pai (fig.9). Ao tomar conhecimento do fato, Doré apresentou prontamente o projeto de um monumento para o qual se baseara em um sonho contado por Dumas pai a seu filho. Assim, o monumento se dividia em três partes: Alexandre Dumas sentado no topo com a pena na mão, tendo abaixo e na sua frente um grupo de três pessoas comuns, sentadas e lendo um livro, que simbolizaria o sucesso do escritor junto ao público, e atrás, representado de corpo inteiro, seu famoso d’Artagnan (fig.10). A intenção original era, baseado no projeto de Doré, encomendar a escultura a um outro artista, mas o fato é que, em 1881, o comitê não conseguira arrecadar a quantia suficiente de dinheiro para a empreitada. Foi então que, alegando também ser um escultor, Doré se dispôs a fazer o trabalho de graça em homenagem ao amigo morto. O monumento 85 Cf. MALAN, 1995, p.189. 62 para Alexandre Dumas é considerado a maior escultura de Gustave Doré e foi inaugurado na Praça Malesherbes, dez meses após sua morte. Fig.9 DORÉ, Monumento a Alexandre Dumas, Place Malesherbes, 1883. Fig.10 DORÉ, Monumento a Alexandre Dumas (detalhe), Place Malesherbes, 1883. 63 3.5. O artista preso entre a academia e a crítica Gustave Doré demonstra ter consciência da hierarquia das posições no campo artístico. Desde cedo, elabora sua trajetória no mundo das artes, transformando o caricaturista em ilustrador e, depois, o ilustrador em pintor; neste caso, particularmente, respeitando a hierarquia dos gêneros ao iniciar pela pintura de paisagens no Salão de 1850, atravessando pelas cenas de gênero e chegando, por fim, às cenas de batalha “pró-napoleônicas”. Esperava com isso alcançar a glória do reconhecimento ao seu talento, porém, a menção honrosa recebida no Salão de 1857 valeu mais como um sinal de fracasso do que como uma premiação, acostumado que estava com o prestígio obtido no campo dos impressos e pelo suporte dado pela crítica romântica. Vê-se, então, obrigado a reformular seus planos, efetuando mais um deslocamento no espaço dos possíveis. Encontra na promoção da xilogravura ao nível de uma obra de arte, um projeto estético inovador, fazendo de seu livro Le Juif errant, o embrião de seu projeto editorial de livros de luxos, ao mesmo tempo, o responsável por sua autonomia no campo da produção. Para Doré, o sucesso monetário não bastava. Alcançar sua réussite bourgeoise passaria, necessariamente, pelo reconhecimento do métier artístico. Daí, os acontecimentos do Salão de 1861 serem fundamentais para a compreensão de suas ambições. Aproximando-se dos trinta anos, entende ser este o momento propício para efetuar o salto em sua carreira, tentando converter todo o capital simbólico adquirido no campo da edição em favor de seu reconhecimento como “grande artista” através da exibição de sua tela monumental Dante et Virgile. No entanto, ao invés da consagração tão desejada por meio de sua pintura, ele vai ser feito Chevalier de la Légion d’honneur por sua obra gravada, o que o faz perceber a situação paradoxal na qual se encontrava: quanto mais o ilustrador triunfava, mais fracassavam suas pretensões de pintor. Notando a situação inconciliável das duas carreiras, fará de sua 64 versatilidade e produtividade a tentativa definitiva em favor da sua aprovação pelas instituições artísticas e pela crítica de arte. A atitude hostil com que tratara a figura do pintor acadêmico e a academia de pintura durante os anos de caricaturista do jornal, certamente, não lhe foi favorável quando o que desejava dependia exclusivamente da boa vontade do júri por ocasião das premiações nos Salões de pintura. Contudo, nada foi mais prejudicial a si próprio do que a postura radical de não querer estudar a pintura a sério. Ao assumir voluntariamente o papel de Gênio que a crítica romântica lhe atribuía, optou por um caminho que não lhe permitia se submeter ao ensino de um mestre que poderia lhe ter emprestado seu prestígio numa estratégia de filiação ou que poderia ter intercedido a seu favor em momentos decisivos. A falta de uma formação em pintura quer seja nas escolas de arte ou nos ateliês de pintores, não era apenas a retórica de um discurso de genialidade. Ela também se evidenciava nos problemas técnicos de suas telas, tais como a composição deficiente, que fazia suas pinturas parecerem vinhetas aumentadas, e a pincelada apressada que conferia à pintura, a aparência de obra inacabada. Problemas que seus promotores faziam questão de ignorar enquanto seus detratores adoravam evidenciar. No entanto, Doré era um artista popular. Vir do meio dos impressos e do campo da edição lhe dava notoriedade em todas as classes sociais. Seu nome era sinônimo de ilustração para a classe mais pobre, que o acompanhava desde os tempos do Journal pour rire e para a classe mais rica, a quem destinava suas edições de luxo; também para o público estrangeiro por causa de suas pinturas religiosas que tanto sucesso fizeram na Inglaterra. Sendo assim, reconhecer o talento de Gustave Doré seria estar de acordo com o julgamento popular e aceitar a inversão da lógica que atribuía a um corpo de especialistas o poder de consagrar ou não um artista. Desse modo, a rejeição exemplar de suas pretensões artísticas se constituía numa estratégia de conservação que visava proteger o status quo. 65 As atitudes da crítica de arte em relação às obras de Gustave Doré vão depender fundamentalmente de seus interesses específicos, estando eles ligados às posições que ela própria ocupa dentro do campo artístico. Num sistema de alianças e rivalidades entre grupos que disputam a posição hegemônica que “dita” as tendências estéticas do século XIX, os seguidos elogios de Gautier e Nadar vão se converter em uma faca de dois gumes. Se, por um lado, eles ajudam fornecer para Gustave Doré uma notoriedade, por outro lado ganham ares de promoção interessada, encorajando posições contrárias. Assim, Doré se encontrará no epicentro da disputa entre os defensores do idealismo e os partidários do realismo, servindo de modelo aos interesses ora de Théophile Gautier, ora de Émile Zola. Gautier via em Doré uma espécie de antídoto contra o realismo na arte. Ao compará-lo a Michelangelo e a Delacroix, louvava sua facilidade para executar suas obras, seu virtuosismo técnico e, sobretudo, sua originalidade, como características próprias do gênio. Argumentos, estes, refutados pelos críticos que apoiam os novos movimentos realistas e naturalistas e que entendem essa “facilidade de execução das obras”, tema recorrente na crítica romântica, como uma afronta àqueles que tinham se dedicado uma vida inteira aos estudos. Doré será para eles um romântico da decadência 86. A mudança de opinião de Émile Zola que, no inicio de sua carreira de jornalista, mostrava-se entusiasmado com o talento criativo e a originalidade de Gustave Doré em obras como Dante et Virgile ou Don Quichotte, será reveladora. Ao se converter ao realismo, passa a recriminá-lo por pintar paisagens de sua imaginação e o acusa de ser uma caricatura de Michelangelo atacando implicitamente o Doré fabricado por Gautier 87. Por volta dos anos 1870, este tipo de comentário que compara Doré a Michelangelo vai se basear menos em seus quadros e mais na variedade de sua produção, que consistirá, além das ilustrações e da pintura, na sua incursão pela água-forte, aquarela e escultura. Essa 86 87 Cf. KAENEL, 2005, p.427. Ibidem, p.430. 66 multiplicidade de talentos vai se voltar contra ele, levando seus detratores a entenderem este virtuosismo como a expressão de sua imaturidade artística. Seus trabalhos serão vistos como números de circo suplementares, rendendo-lhe o apelido de acrobata, por parte da imprensa nem sempre amistosa 88. Desse modo, entendemos Gustave Doré vítima da violência simbólica imposta por aqueles que regulavam o mercado de artes, nesse caso, a crítica e a academia, pois, de acordo com a definição do sociólogo Pierre Bourdieu, não se trata de violência física, mas de um tipo de violência que é exercida, em parte, com o consentimento daquele que a sofre, já que é assimilada como natural e fundamentada no reconhecimento do direito dos grupos dominantes de exercê-la com vistas à permanência da dominação 89. Ao reconhecer a autoridade das instituições artísticas bem como a da crítica de arte como legítimas, Doré submete-se voluntariamente a seus julgamentos, orientando sua produtividade por de uma série de deslocamentos que corresponderão a tomadas de posição em busca do reconhecimento a seu talento que, no entanto, sempre lhe será negado. 88 89 Ibidem, p.457. Cf. BONNEWITZ, 2002, p.94. 67 4. O DISCURSO DO ILUSTRADOR O capítulo investiga a relação existente entre a funcionalidade da ilustração e a natureza simbólica da imagem; valendo-se dos conceitos da análise do discurso (noções de cena de enunciação, ethos e fiador), de Dominique Maingueneau, utiliza o exemplo de Gustave Doré para entender os mecanismos de reconhecimento do ethos do pintor de história por parte do leitor-espectador no campo da recepção. 4.1. A ilustração como tradução Podemos considerar as ilustrações como resultado de traduções intersemióticas efetuadas pelo artista nas relações dialógicas entre texto e imagem. Elas apresentam o mesmo nível de discrepância e adaptação em relação ao texto original, uma vez que estão sujeitas ao grau de liberdade tomado pelo ilustrador-tradutor. Ao fazermos a comparação do trabalho do ilustrador com o do tradutor, entendemos a mesma dificuldade que este sente ao se deparar com um texto e ter que escolher, num universo de palavras, aquela que seja a mais adequada a transmitir um sentido quando da conversão para um outro idioma. O ilustrador, “preso” nos códigos textuais, se vê obrigado a traduzir palavras em imagens mentais e depois, ao passá-las para o papel em forma de imagem gráfica, acrescentar outras camadas de interpretação que vão tornar ainda mais complexos os processos de leitura e compreensão. Assim, quando analisamos a construção das relações existentes entre discurso literário e discurso imagético, observamos o ilustrador como o “leitor primeiro”, que se transforma numa espécie de filtro inicial, capaz de interferir na maneira como o texto vai ser apreciado pelo público leitor e induzir um caminho de leitura. 68 Essas traduções intersemióticas é o que Théophile Gautier (1811-1872) chamava de transposição de arte. É a passagem de um modo de expressão artística para um outro, que é da mesma ordem. Conceito romântico que pregava a igualdade no domínio da criação artística, estando ligado à fraternidade das artes; onde todos os modos de expressão artística são irmãos. O ilustrador se insere nessa perspectiva quando utiliza um texto para criar sua própria obra, sendo um intermediador entre a instrução e o público. Diferentemente do texto, que só adquire sentido através do encadeamento das palavras por meio de uma leitura linear, que vai do particular para o geral, a imagem proporciona uma apreensão de sentidos quase imediata devido à característica de sua leitura que vai do geral para o particular. Seus atributos de símbolo evidenciam sua natureza polissêmica que promovem uma cadeia de sentidos que permitirá ao leitor-espectador escolher uns e ignorar outros, projetando sentimentos e valores de sua cultura. A ilustração comenta, critica e interpreta o texto por meio da presença de seus signos, fruto das escolhas criteriosas efetuadas pelo artista na construção da cena representada. Sendo assim, em uma disputa por espaço dentro do livro, ela teria o poder de confirmar ou infirmar as expectativas do leitor que se converteria também em um consumidor de imagens. A ilustração é uma linguagem devido a sua natureza semiológica de imagem e seu caráter formal pode se apresentar de duas maneiras; como um ato de comunicação ou como elemento estético aberto à fruição. Seu reconhecimento como ato de comunicação nos obriga a definir os papéis dos parceiros envolvidos em termos de emissor e receptor de uma mensagem que, possuidora de um sentido prévio, nos levaria a tocar os limites do discurso. 4.2. Ilustração: discurso de escrevência, discurso de escritura Compreendemos as ilustrações como discurso enquanto pertençam ao campo da produção artística, porque é durante a produção que o artista detém o controle de sua obra. 69 Explicando melhor, a ilustração é um produto das escolhas estéticas operadas pelo ilustrador que dentro do seu nível de conhecimento, de sua liberdade criativa, seleciona livremente os códigos, os signos que vai utilizar em sua criação. Ele os organiza dentro de um projeto que entendemos ser intencional; se é um projeto, supomos a existência de um pensamento por detrás que o estrutura e o elabora com uma determinada finalidade. Percebemos haver nele uma escritura transitiva portadora de mensagem 90 e construída com a intenção de comunicar. Essa intencionalidade, se de fato existe, é consequência de um posicionamento enunciativo que nos permitirá compreender este trabalho como discurso, pois como nos ensina a crítica formalista; todo dizer é resposta, todo falar é dialógico. Estamos sempre falando para alguém, respondendo alguma coisa. Neste sentido, ao se sentir mobilizado, o autor é levado a tomar a palavra e produzir, na enunciação, seu discurso, exercendo influência sobre uma determinada audiência a fim de fazê-la aderir ao universo de sentido proposto por ele. Para Maingueneau, isso se deve à escolha do ethos que o artista vai projetar e que demonstra seu desejo de transmitir algo. O leitor como consumidor de imagens participa da construção desse discurso do ilustrador no papel de coenunciador, através do reconhecimento dos traços enunciativos do artista que entendemos serem produto das instâncias formadoras do indivíduo artista, que vão se refletir em seu estilo, no seu modo de fazer e suas preferências estéticas. Essas instâncias seriam advindas, sobretudo, de seus habitus e capitais cultural, econômico, social e simbólico. Recorrendo à teoria bourdieusiana, definiremos habitus como: Sistema de disposições duráveis adquiridos pelo indivíduo no curso dos processos de socialização que gera e organiza as práticas e as representações dos indivíduos e dos grupos, funcionando como princípios inconscientes de ação, operação e de reflexões e moldam uma visão de mundo 91. 90 91 PERRONE-MOISÉS, 1978, p. 37. BONNEWITZ, 2002, p.60. 70 O grupo social do qual a família de Doré fazia parte era a média burguesia. Originário da Alsácia, região fronteiriça entre França e Alemanha, a obra de Gustave Doré traz marcas da cultura germânica e seu imaginário romântico. As paisagens montanhosas, as florestas e a arquitetura gótica da Catedral de Estrasburgo foram referentes visuais de sua infância que se revelaram mais tarde nas suas escolhas estéticas 92. Como foi referido no capítulo anterior, seu pai, um engenheiro civil, desejava para o filho uma educação politécnica e que seguisse a carreira na engenharia. Sua mãe vinha de uma família aristocrática. Seu avô maternal, um grand bourgeois, seria para Doré a figura modelar de comportamento e de gosto pelas artes 93. Esse habitus de grupo familiar contribuiu com o acúmulo de capital cultural de Doré que, mais tarde, completará sua formação ao estudar no Liceu Charlemagne, tradicional instituição de ensino, localizada em Paris, onde também estudaram os poetas românticos da boemia dos anos 1830 como Gérard de Nerval (1808-1855) e Théophile Gautier 94. O Liceu, fundado por Napoleão Bonaparte, tinha como modelo os estudos clássicos dos mais tradicionais, de acordo com o modelo renascentista e foi lá que Doré tivera formação nas humanidades com conhecimento, sobretudo, em arte e literatura. Aos 15 anos ele surge fazendo caricaturas e ilustrações de humor para o Journal pour rire de Charles Philipon (1800-1861). Era tratado como o menino prodígio da Maison Aubert, que dava prosseguimento à concepção de livros ilustrados de Töpffer (1799-1846), mais tarde tido como embriões da Bande dessinée, sendo considerado um dos pioneiros das histórias em quadrinhos 95. 92 TROMP, 1932, p.8. Cf. KAENEL, 1987, p.44. 94 Cf. MELLO, 2007, p.168. 95 PICKFORD, 2007. 93 71 Quando inicia sua carreira nos Salões de pintura nos anos 1850, Doré é apontado pela crítica de arte ligada à estética romântica como o Delacroix das gerações futuras 96, obtendo a proteção de críticos influentes da época como Gautier e Nadar (1820-1910), e sendo apadrinhado por Paul Lacroix, o bibliophile Jacob (1806-1884); agentes sociais que ajudam a promover sua imagem numa rede discursiva que intenta atribuir a ele a imagem de Gênio. Imagem frequentemente reforçada pelo próprio Doré como sua identidade, seu estilo 97. O estilo do artista é devido à sua mitologia pessoal, suas instâncias formadoras; e os valores que se projetam a partir dele estão ligados ao habitus como valores que são introjetados, aprendidos dentro de uma sociedade. Na retórica da imagem, Barthes define estilo pelo viés da recepção, como “um sentido segundo, cujo significante é um certo tratamento da imagem sob a ação de seu criador e cujo significado estético ou ideológico será compreensível pela sociedade que o recebe” 98. Estilo é o que permite a identificação de um artista, é sua marca pessoal que leva à criação de um significante novo, sendo este sua escritura. Ele abre portas para a catalogação e filiação de sua produção a um campo discursivo, induzindo no leitor um ethos prévio que indica um posicionamento enunciativo. A “marca” que Doré traz do campo da edição é a do ilustrador romântico, do artista bem sucedido, que se converte, então, em forte capital simbólico. A genialidade que se atribuía a Doré era a marca de sua originalidade. Sua capacidade inventiva estava ligada à ideia de um talento inato. Ele era aquele capaz de criar a partir de sua própria alma, de suas visões interiores e não de modelos prontos para serem imitados. Como um autodidata orgulhoso, Doré jamais admitiu ter recebido alguma instrução artística ou passado por nenhuma escola 99. O objetivo dessa rede discursiva da qual faziam parte os 96 Cf. KAENEL, 2005, p.407. Ibidem, 2005, p.406. 98 BARTHES, 1990, p.11. 99 MALAN, 1995, p.31. 97 72 críticos românticos e o próprio Doré era atribuir-lhe a imagem do artista romântico por excelência. Os românticos entendiam gênio como uma marca de exceção. O artista como um ser dotado de genialidade é uma potência criadora, que tal qual um deus é capaz de criar a partir do nada. O olhar romântico, que conferia ao artista essa capacidade de criação ex-nihilo, contamina o autor como a figura de um demiurgo e é contra este imaginário cristalizado de autor a que Barthes vai se opor. Quando escreve a respeito da morte do autor, Barthes quer mostrar que a criação não parte dele como uma origem, assim como o mundo partiria de Deus. A criação se dá a partir de elementos que nos foram dados pela sociedade, “fruto de múltiplas escrituras, oriundas de várias culturas e que se encontram em diálogo umas com as outras” 100; e o autor, como figura personificada do criador, deve apagar-se para que a obra sobreviva. Ele indica a necessidade de se colocar a própria linguagem no lugar daquele que era até então considerado seu proprietário; “É a linguagem que fala, não o autor” 101. O autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como “eu” outra coisa não é senão aquele que diz “eu”: a linguagem conhece um “sujet”, não uma “pessoa”, e esse “sujet” vazio, fora da enunciação que o define, basta para “sustentar” a linguagem, isto é, para exauri-la 102. Trata-se de retirar do sujeito (autor) seu papel de fundamento originário e de analisá-lo como uma função variável e complexa do discurso. Para Foucault, o desaparecimento do autor permite descobrir a função autor que ele resume como ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina, articula o universo dos discursos; ela não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações especificas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar 100 BARTHES, 2004, p.64. Ibidem, p.59. 102 Ibidem, p.60. 101 73 simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar 103. Mas como podemos relacionar o caráter discursivo do trabalho do ilustrador com a natureza simbólica da imagem? Para isso, consideremos as ilustrações como o lugar onde o discurso vai se manifestar. 4.3. Um discurso limitado Segundo Maingueneau, para enunciar seu discurso o enunciador precisa de uma cena de enunciação. Esta cena integra três outras cenas: a cena englobante, que determina o tipo de discurso e indica a qual campo do conhecimento ele está filiado, a cena genérica, que condiciona parâmetros do ato de comunicação tais como finalidade e as funções dos enunciadores e coenunciadores e a cenografia, que é o centro em torno do qual gira a enunciação 104. Usando como exemplo o trabalho de Doré, a ilustração, como parte integrante da cenografia do livro, é o veículo pelo qual o artista vai evidenciar seu ethos romântico que, por meio de códigos de representações coletivas, será compreendida pelo público através do viés cultural e o momento sócio-histórico ao qual pertence. Ethos é uma noção da retórica redimensionada por Maingueneau na perspectiva da análise do discurso. É a imagem que o enunciador projeta de si no discurso para exercer uma influência sobre o coenunciador a fim de fazê-lo aderir “fisicamente” a um certo universo de sentido. Antes de avançarmos na teoria, cabe aqui uma distinção de termos que visa a melhor definição do papel que entendemos para cada elemento do discurso. Tomando por base a edição Hetzel concebida como discurso dentro do projeto estético do livro de luxo, a 103 104 FOUCAULT, 2009, p.279. MAINGUENEAU, 2006, p.251-253. 74 ilustração fará parte da cenografia que vai conferir a esta publicação o sentido requerido ao livro de arte; tomando por base a própria ilustração como uma imagem funcional usada para ilustrar, quero dizer, para lançar luz sobre determinado assunto, ela pode ser tanto uma fotografia ou uma ilustração, no nosso caso compreendida como gravura. Assim, a ilustração muda de estatuto e se converte em cena genérica, e os códigos que ela contém serão parte da cenografia, por onde vai se manifestar o ethos do pintor romântico. Desse modo, no nível da publicação, teremos o discurso literário como cena englobante, o livro infantil como cena genérica e a ilustração como parte da cenografia que o artista deve mobilizar; no nível da ilustração, teremos o discurso imagético como cena englobante, a ilustração como cena genérica e os códigos contidos nela, como cenografia. Ao considerarmos esses códigos como signos, faremos alusão aos conceitos semiológicos da teoria barthesiana, e veremos tais códigos como contidos na mensagem visual simbólica (codificada). Eles serão então identificados e decodificados pelo leitorespectador através dos traços enunciativos que farão emergir uma fonte enunciativa, levando o leitor-espectador a construir um corpo encarnado numa figura chamada de fiador. Este fiador, investido de caráter e corporalidade, será necessário para o processo de incorporação que levará o leitor-espectador a participar de seu mundo, ou seja, do imaginário do artista. O reconhecimento desses signos é da ordem das relações espectador-imagem em que o espectador constrói a imagem ao mesmo tempo em que a imagem o determina, resultado de suas instâncias formadoras, afetos e crenças. Para persuadir seu coenunciador, o ethos deve captar seu imaginário, atribuir-lhe uma identidade ao invocar uma cena de fala validada, isto é, já instalada na memória coletiva, fixada em representações estereotipadas, popularizadas pela iconografia. O ethos, como 75 elemento da cenografia, legitimará seu discurso na medida em que este for se construindo, sendo envolvente o bastante para captar o coenunciador em um processo de adesão 105. O artista como enunciador quer veicular sua mensagem, ser compreendido, quer seduzir e fazer o público aderir a seu discurso. O público, na sua função de coenunciador, quer entender, participar, e isso se dará através do compartilhamento do imaginário. Há em todo o processo um mecanismo de decodificação de símbolos, que é de ordem intelectual, do dizer compartilhado e um processo de identificação da dimensão do imaginário, que é de ordem projetiva, que permite ao leitor adentrar o universo da imagem, mantendo em aberto a escritura como potência que libera sentidos. A figura do fiador é uma construção relativa a este processo de identificação imaginária, verificada a partir do reconhecimento da escritura nos processos de recepção, revelando a eficácia ou não do mecanismo de adesão. Ela é uma construção individual, pois se realiza no indivíduo, e ao mesmo tempo coletiva, já que se apoia em figuras de topos, estereótipos; quando a figura do fiador não é condizente com as intenções do autor, com aquilo que ele desejava comunicar por meio de seus traços enunciativos, ou se a projeção de seu ethos não é compreendida, ou compreendida de forma equivocada, o processo de adesão estará comprometido e provará a ineficácia de seu discurso. A apropriação de todos esses elementos da cenografia levará o leitor a atribuir seu próprio sentido e a construir algo distinto da intenção do autor, mas que mesmo assim estará previsto nas relações existentes no jogo da enunciação. É por isso que a partir do momento em que se rompe a fronteira da criação e se adentra no campo da percepção, a ilustração se torna obra aberta à apropriação. Toda a conceituação sobre a construção de um discurso do ilustrador vai esbarrar nos limites impostos pela linguagem. 105 Ibidem, p.270-274. 76 5. ANÁLISE DA ILUSTRAÇÃO Nº1: A VIOLAÇÃO DO QUARTO PROIBIDO 5.1. “Frontispício interno” Doré realiza ao todo quatro ilustrações para o conto La Barbe Bleue da Edição Hetzel, 1862. Se olharmos o conjunto, notaremos que elas estão relacionadas com os momentos mais importantes da história. Enumerando-as de 1 a 4, identificaremos nelas uma sequência que vai corresponder à narrativa do conto; sendo, nº1, a entrega da chave encantada (fig.11), nº2, a violação do quarto proibido (fig.12), nº3, a chegada dos irmãos cavaleiros (fig.13), e a nº4, a morte de Barba Azul (fig.14). Porém essa disposição arbitrária se verificará somente a partir das edições subsequentes do livro. Em sua edição princeps 106, que é o nosso objeto de estudo, há uma inversão de ordem entre a ilustração que determinamos como posição nº2 com aquela que ocupa a posição nº1. Assim, a ilustração que representaria a violação do quarto proibido aparece na frente do conto, antes mesmo do título, na página à esquerda, como uma espécie de “frontispício interno” (fig.15). Louis Marin observa o frontispício como uma espécie de prefácio-imagem, cujo objetivo é ilustrar aquilo que deve ser valorizado no livro, sendo possível depreender dele a mensagem que deseja comunicar 107. O frontispício, assim como o prefácio, é definido como um discurso preliminar colocado à frente de um texto, ocupando um espaço enunciativo em que o autor tenta marcar seu posicionamento. 106 Primeira edição de um título específico. Encontra-se em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8612030k.r=Les+contes+de+Perrault%2C+dessins+par+Gustave+Dor%C3 %A9.langEN. 107 MARIN, 1990, p.115. 77 Fig.11 Fig.12 Fig.14 Fig.13 78 Fig.15 Print screen Gallica, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. Essa troca de posições implicaria numa alteração de sentidos tanto da imagem quanto de todo o conjunto narrativo, pois a ilustração, como parte da cenografia do livro, quando está localizada na frente do conto, se valoriza como a representação de um posicionamento discursivo. Ao ocupar uma posição interna, ela será apenas mais um elemento constituinte da narrativa visual do conto. Em vista disso, podemos concluir que a alteração efetuada na ordem em que as gravuras aparecem nas edições seguintes corresponderia a uma tentativa de se estabelecer uma coerência narrativa e diminuir a força do caráter enunciativo da imagem. 5.2. Por uma imagem autônoma Para avançarmos com o tema do discurso do ilustrador propomos uma análise a partir da ilustração nº 1 do conto La Barbe Bleue da edição de 1862 (fig.16), a fim de verificarmos como o artista irá promovê-lo e como o discurso vai se manifestar na imagem. 79 Tomemos de início a passagem escolhida para a ilustração: “as vizinhas e as amigas ...tamanha era a sua impaciência em conhecer todas as riquezas da casa” 108 Segundo nos informa Barthes, o texto, quando está associado a uma imagem, possui uma função de ancoragem. Ele limita seu caráter polissêmico e dirige o leitor-espectador por suas significações, sendo capaz de conferir uma leitura “correta” segundo o desejo de seu criador 109. Em Les contes de Perrault, as passagens ilustradas por Doré estão destacadas do texto e colocadas em uma seção própria chamada Table des compositions. Essa opção é justificada pelo próprio editor na nota explicativa da seção: “Tratando-se de contos sempre tão curtos e, além do mais, de assuntos tão universalmente conhecidos, qualquer legenda, qualquer palavra colocada sob as gravuras teria sido supérflua, prejudicando o arranjo geral da edição 110”. A atitude valoriza, sem dúvida, a passagem textual, mas sua intenção é evitar qualquer tipo de perturbação da leitura em função da mensagem linguística, pois não havia um real impedimento para que texto e imagem fossem impressos juntos. Desde os anos 1820 a xilogravura de topo já havia resolvido essa questão, e as próprias ilustrações de Gustave Doré, feitas para o livro, utilizavam essa técnica. Ao optar por gravuras hors-texte, a ilustração ganha mais liberdade dentro da edição, como confirma ainda o editor: “Não havia como hesitar entre deixar toda liberdade à inspiração do artista e o pequeno inconveniente de nem sempre apresentar a passagem da história ao lado do desenho que lhe corresponde 111”. 108 "Les voisines & les amies... tant elles avaient d'impatience de voir toutes les richesses de sa maison." (PERRAULT, 1862, p.56) 109 BARTHES, 1990, p. 9-60. 110 “Avec des contes toujours si courts et des sujets d'ailleurs si universellement connus, toutes légende, toute lettre au-dessous de chaque gravure, eût été superflue et eût gâté la disposition génerale de l'édition.” 111 “Il n'y avait pas à hesiter entre le devoir de laisser toute liberté à l'inspiration de l'artiste et le petit inconvénient de ne pas toujours montrer le passage imprimé en face du tableau qui devait le reproduire”. 80 Fig.16 DORÉ, Les voisines & les amies... tant elles avaient d'impatience de voir toutes les richesses de sa maison, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. 81 Assim, ao alijar as legendas do mesmo espaço em que se encontram as ilustrações, a edição permite uma leitura independente das imagens por parte do leitor-espectador, constituindo uma narrativa própria desvinculada do texto. O grau de autonomia concedido à imagem, em relação ao texto, confere à obra um caráter bilíngue. Como se fossem duas obras paralelas, onde texto e imagem ocupam posições equivalentes dentro da edição, concernente ao conceito de criação artística preconizado pela fraternidade das artes. Entre todas as legendas do conto, essa parece ser a que menos se relaciona com sua imagem ou com o tema que deveria representar. Seguindo a lógica de que Doré teria ilustrado os tempos fortes da narrativa, essa deveria ser a cena da violação do quarto proibido e, consequentemente, o momento dramático da descoberta dos corpos das ex-mulheres do Barba-Azul. Mas onde estariam esses corpos? E se, como diz a legenda, estas seriam as amigas e as vizinhas, não nos parece que a utilização do artigo feminino no plural determinaria que houvesse, pelo menos, duas pessoas para cada substantivo? Nesse caso era para estarmos diante de, no mínimo, quatro mulheres. Justamente, por essas aparentes incoerências, esta gravura se tornou tão inquietante e sua leitura nos levou à conclusão de que Doré representaria através dela mais do que a simples revelação do segredo de Barba-Azul. Em sua narrativa, ele a converteria na própria ilustração-síntese do conto. Para melhor compreendermos esta proposição anexamos, ao final da dissertação, a transcrição do conto a partir da versão que se encontra na edição Hetzel-Stahl, de 1862, e que serviu de base para as ilustrações de Gustave Doré. 5.3. Desmontando a estrutura Estamos diante de uma cena escura, sombria, em que o forte contraste claro-escuro nos faz referência ao tenebrismo barroco. A primeira sensação que temos ao olha-la é a de 82 sufocamento, devido à profusão de elementos que se encontram na imagem. É um acúmulo de objetos de tal ordem, de diferentes épocas, que transmitem uma ideia de Barba-Azul como uma espécie de ser intemporal, que juntara toda aquela riqueza ao longo do tempo. Estruturalmente, essa sensação de sufocamento é reforçada pelo predomínio de linhas verticais que tornam a composição maciça, compacta e aumentam a tensão de forças existentes entre os elementos cenográficos, através da desproporção das escalas dos objetos em comparação com a figura humana; atenuada apenas pela presença da cortina que, entreaberta, nos fornece uma fuga para um espaço exterior à cena. Ela nos permite especular sobre o que haveria no fora de campo, alimentando um clima de mistério coerente com a noção do sublime aterrador e passando a sensação de medo e perigo. Com formação nas humanidades, Gustave Doré certamente não desconhecia as teorias sobre a seção áurea 112; sendo um pintor, sabia perfeitamente utilizá-la em seus quadros. Porém seria leviano falarmos de retângulo áureo, já que a própria área de impressão da imagem, suas dimensões, não obedece a esta proporção, mas se tomarmos o segmento correspondente à altura da imagem e o dividirmos segundo o número de ouro, descobriremos a localização exata da linha do horizonte, e, se prosseguirmos dividindo pelo número de ouro, agora o segmento correspondente à base, teremos então a composição dividida em três grandes áreas que corresponderiam a uma divisão espacial dos planos: primeiro plano, plano intermediário e plano de fundo, e uma divisão tonal das áreas de luz, penumbra e sombra (fig.17). Nessas áreas de interesse é que se desenvolverá a narrativa. A área que chamaremos nº1, iluminada, compõe o primeiro plano que se forma a partir da linha do horizonte; é concernente à revelação do segredo, a desobediência ao interdito; local aonde vai se desenvolver grande parte da narrativa da imagem (fig.18). 112 Para obtê-la, é preciso seccionar um quadrado e usar a diagonal de uma de suas metades como raio, para ampliar as dimensões do quadrado, de tal modo que ele se converta num retângulo áureo. Na proporção obtida, a:b=c:a. (DONDIS, 1997, p.73). 83 Área nº1 Fig.17 Fig.18 Na área nº2, localizada à direita, encontra-se uma mulher que se move da zona de penumbra para a zona de luz; ela é relativa ao mistério, à curiosidade feminina. A presença da cortina funcionará ali como uma cortina de teatro. Elemento metafórico com a função de passagem e abertura para o universo diegético do conto (fig.19). E finalmente a área nº 3, o plano de fundo, zona de sombras onde se concluirá a narrativa por meio da figura da armadura do cavaleiro. Ela será a responsável por elevar a leitura da imagem a um outro nível de significação, revelando o verdadeiro segredo do Barba-Azul (fig.20). 84 Área nº2 Área nº3 Fig.19 Fig.20 5.4. A Narrativa da imagem A primeira coisa que nos chama atenção na ilustração são as duas figuras femininas, em primeiro plano, sob o foco de luz. Duas figuras iluminadas que se destacam tanto que só num segundo momento percebemos não serem duas, mas três as mulheres na cena. Existe uma terceira personagem, na área de penumbra, abrindo a cortina no plano de fundo. Ela está localizada de costas para o leitor. Todas tão parecidas que poderíamos supor serem as irmãs do conto, mas olhadas em conjunto, entendemos que as três mulheres são na verdade uma só. Promovemos assim, arbitrariamente, uma alteração de sentido deste significante (que Barthes vai chamar de linguagem-objeto, por se tratar da linguagem de que o Mito se serve para construir seu próprio sistema) 113 e preenchemos sua forma vazia de significado, atribuindo- lhe o conceito da dinâmica de um movimento. Ao seguir a lógica da retórica da pintura de 113 BARTHES, 2010, p. 206. 85 história como uma arte narrativa, entendemos estar diante de uma representação temporal. Elas apresentam a sequência de um movimento que vai se concluir na abertura da caixa. A primeira, a que está nas sombras e de costas para nós, levanta a cortina como se quisesse observar se alguém está a ponto de chegar e surpreendê-la no ato proibido. A segunda, já na área iluminada e com uma expressão de curiosidade, antecipa um movimento corporal que intuímos intermediário de toda ação. A terceira, no momento posterior, conclui a movimentação ao abrir a caixa e, por fim, descobre o segredo. É este abrir de caixa uma das representações visuais da curiosidade feminina, representado pelo mito de Pandora. A mulher, que ao abrir a caixa libera todos os males da humanidade, aqui se encontra como signo da fala mítica e sua significação nos faz compreender a cena como a da descoberta do mistério do Barba-Azul (fig.21). Levados ainda pela força descritiva do movimento, esbarramos, a seguir, com um objeto que se encontra sobre a mesa, atrás da caixa. Ele se assemelha a um colar, mas, ao identificarmos o objeto como terço, seremos remetidos à passagem do texto que ocorre no momento seguinte à descoberta do segredo de Barba-Azul: ao retornar para casa, Barba-Azul pede de volta as chaves. Sua mulher hesita num primeiro momento, mas depois se vê obrigada a entregar-lhe todas, inclusive a manchada de sangue, sendo então pega em sua desobediência. Quando lhe é revelado seu castigo, a sentença de morte, ela pede um tempo para fazer orações. Neste momento identificamos o terço como elemento da oração, aquilo que vai retardar sua morte (fig.22). Seguindo a direção do olhar, percorremos a mesa e chegamos ao canto inferior esquerdo da cena onde encontramos uma espada. Espada que no processo de decifração dos códigos que estamos operando significaria a morte. Morre-se pelo fio da lâmina de uma espada, certamente, mas que tipo de morte? E ainda, morte de quem se não há cadáver aparente? Aqui nos permitimos fazer dois tipos de leitura: na primeira, a espada estaria 86 Fig.21 Fig.22 87 representando a sentença de morte da mulher do Barba-Azul, mas que não será executada, já que é impedida pela chegada dos cavaleiros, seus irmãos. Dessa forma se revela, com toda sua potência, a imagem do cavaleiro medieval colocado na parte de trás da cena, no centro da composição, embora em meio às sombras (fig.23). Fig.23 Sua posição estratégica é evidenciada por ela estar localizada justamente entre o momento da revelação do segredo e a espada. Com a intervenção dos cavaleiros, a sentença de morte da mulher é cancelada e por isso não há porque haver cadáver. Esta é a leitura que confere à ilustração a significação da síntese do conto. A segunda interpretação para a espada como representação da morte seria a da própria morte do Barba-Azul que perece pelas espadas dos irmãos cavaleiros. Nesse caso, poderíamos ver na sacola que se encontra no chão, por meio de comparação, a mesma forma e volume ocupados pelo corpo de um homem que, caído no chão, teria uma espada atravessada em suas costas (fig.22). 88 5.5. Mitólogo Antes de darmos como concluída nossa leitura, devemos indagar se algo mais poderia ser apreendido através do exercício analítico que acabamos de efetuar. Lembrando-nos do que Barthes ensinou a respeito do caráter paradoxal da fala mítica; “a forma permanece vazia, mas presente, enquanto que o sentido se apresenta pleno, no entanto, ausente 114”, e de sua afirmação: Só poderei me surpreender com esta contradição se suspender voluntariamente este torniquete de forma e sentido, se focalizar cada um deles como um objeto distinto do outro e se aplicar ao mito um processo estático de decifração, em suma, se contrariar a sua dinâmica própria; numa palavra, se passar da situação de leitor de Mito à situação de mitólogo. 115 Informa-nos ainda o semiólogo que “se focalizarmos o significante vazio, deixando o conceito preencher a forma do mito sem ambiguidade, nos encontraríamos perante um sistema simples, no qual a significação voltaria a ser literal 116”. Operando dessa maneira, fazendo o caminho contrário, afastaríamos, portanto, a forma para que o sentido retomasse toda sua riqueza e, assim, o significante recobraria sua história e requereria seu reconhecimento. Deste modo, através de um exercício “artificial”, estaríamos diante do modo de focalizar do produtor de mitos, no nosso caso, do ilustrador. E é agindo como o mitólogo proposto por Barthes que buscamos ser surpreendidos, destruindo o mito e revelando sua intenção. Uma figura permanece um tanto indefinida, mas se impondo como presença absoluta na ilustração. Apesar de estarmos conscientes da predileção dos românticos pela Idade Média, entendendo com naturalidade a grande armadura do cavaleiro medieval como elemento cenográfico, ela ainda nos instiga, revelando uma força dentro da composição como se 114 BARTHES, 2010, p.215. Idem. 116 Ibidem, p.219. 115 89 governasse toda a cena. Então especulamos sobre sua natureza e vamos buscar em seu passado algo que nos permita entendê-la como parte da história da França. Remontamos aos episódios da Guerra dos cem anos e a seus personagens, importantes na constituição da França como nação. Encontramos entre os companheiros de batalhas de Joana D’Arc (1412-1431) o nome cuja tradição popular se encarregou de legar a sua escritura a marca do assassínio em massa e da vilania. Alijando seu caráter inefável, agora somos capazes de denominá-lo: o Barba-Azul de Gustave Doré é Gilles de Rais! A associação da história de Gilles de Rais (1405-1440) com a lenda do Barba-Azul se construiu ao longo dos séculos e teria sido, inclusive, uma das fontes de inspiração pra Charles Perrault escrever seu conto em 1697. Ignora-se como ele teria sido, pois não há nenhuma descrição física ou retratos de sua época que tenham chegado até nossos dias, porém, o século XIX demonstra um certo interesse pela construção de sua imagem. Em 1835, o rei Luís Filipe (1773-1850) encomenda ao artista Éloi Firmin Féron (1802-1876) aquele que seria seu retrato mais conhecido (fig.24) e Paul Lacroix, o bibliophile Jacob, dedica um capítulo de seu livro, Curiosités de l'histoire de France, de 1858, ao marechal de Rais, sendo inclusive o responsável por justificar a origem da alcunha Barba-Azul através de sua barba, que “dependendo da influência da luz e da posição apresentaria reflexos azulados 117”, reforçando ainda mais a ligação do nome de Gilles ao do personagem de Charles Perrault. 117 “Cette barbe singulière, qui ne ressemblait à aucune autre, était noire, quoique les cheveux fussent blonds, mais elle prenait, sous certaines influences de lumière et de position, des reflets presque bleuâtres, qui avaient fait donner au sire de Rais le surnom de Barbe-bleue, surnom encore populaire en Bretagne, où son histoire s'est métamorphosée en conte merveilleux et fantastique”. (LACROIX, 1858, p.53). 90 Fig.24 FÉRON, Gilles de Laval, sire de Rais, 1835. Embora sua vida e seus atos estejam longe das do personagem, até hoje, na região da Bretanha, Gilles de Rais é conhecido pelo apelido de Barba-Azul e seu castelo em Machecoul, explorado turisticamente pela força da lenda. Gilles de Rais foi um dos nobres mais importantes de seu tempo, tendo sido também marechal da França e companheiro de armas de Joana D'Arc. Lutou ao lado da pucela de Orleans no levante ao cerco da cidade de Paris e ajudou a reconquistar cidades importantes ocupadas pelos ingleses durante a Guerra dos cem anos. Abandonou a vida militar após a morte de Joana e retornou para sua região onde desperdiçou toda sua fortuna promovendo espetáculos teatrais em homenagem aos eventos históricos dos quais havia participado. Endividado, passou a fazer uso da alquimia em busca da pedra filosofal, que seria capaz de converter qualquer metal em ouro, com vistas a recuperar sua fortuna perdida. 91 Em seu castelo promovia reuniões onde bruxos praticavam o ocultismo e evocavam demônios a suas ordens. Nessas reuniões é que teria acontecido o sacrifício de crianças que contribuiu com sua reputação de infanticida. Gilles foi preso após se envolver no assassinato de um clérigo local, numa questão que envolvia o cerco à igreja de Saint-Étienne-de-Mer-Morteseus. Durante seu julgamento, seus outros crimes foram revelados. Ele foi condenado à forca por um tribunal eclesiástico e depois teve seu corpo queimado, após ter sido julgado por traição, heresia, prática de satanismo, sodomia e assassinato de mais de 140 crianças 118. Nesse momento em que nos tornamos conscientes do que a história nos informa, somos surpreendidos com o que essa mesma ilustração passa a nos revelar: as figuras humanas que, com toda sua pequenez, mantinham uma relação de estranha desproporção com os objetos da cena, apresentam agora uma bizarra coerência ao se identificarem com as crianças mortas por Gilles de Rais, provocando uma mudança no sentido que antes atribuíamos à gravura. Desse modo, conferimos à imagem um outro nível de significação e permitimos que ela se abra a um espaço diegético superior. A ilustração, que começara sendo parte da narrativa visual e se tornou, posteriormente, a representação sintética do conto, converte-se finalmente em testemunha de um drama histórico, narrando o infortúnio das crianças assassinadas. 118 Embora tenha sido condenado pelo assassinato de crianças e sua confissão se encontre nos autos do processo, existem dúvidas sobre o veredito da corte no caso Gilles de Rais. Em 1992 foi organizada uma comissão composta por especialistas no assunto para examinar o material do processo e a validade do julgamento. Levantou-se a teoria de que Gilles teria sido vítima de vingança por parte da Igreja, e a comissão concluiu que Gilles não era culpado. 92 5.6. Conclusão Gustave Doré produz nessa ilustração aquilo que Genette chama de metaconto 119. A narrativa de um conto dentro do conto. Nesse caso, ele se utiliza do conto do Barba-Azul para narrar também, mesmo que subliminarmente, a história de um personagem importante da história francesa. Atitude coerente com suas ideias a respeito do caráter pedagógico do livro e que vai ao encontro do modo de pensar de seu editor, P.J. Hetzel. Para isso, ele emprega elementos metafóricos com o objetivo de eufemizar um assunto tão pesado. É a questão do bom gosto que se coloca aqui. Bienséance é uma convenção social que também faz parte dos códigos estéticos relativos ao universo da pintura acadêmica e da tragédia francesa. Nem tudo é permitido ao pintor representar. Há temas que devem ser evitados em favor do bom senso, para não se ferir a sensibilidade alheia. Desse modo, ao invés de ilustrar a cena da descoberta dos corpos das mulheres mortas, Doré opta por substituí-lo pelo mito de Pandora, porém, ao recalcar o tema do assassinato, deixa-o transparecer; como num ato falho, permite seu reconhecimento através do adorno na forma da figura feminina, suspensa na parede lateral esquerda, tal como as mulheres do Barba-Azul se encontram na passagem do conto (fig.25). Este recurso era comumente empregado pelos pintores de história que buscavam, nos textos da antiguidade, elementos de sustentação para sua narrativa dramática. O conhecimento de tais textos era importante para que comprovassem sua erudição e legitimava sua condição de acadêmicos. Querendo se equiparar a eles, Doré fazia uso dos mesmos códigos de representação em suas gravuras. Ele tinha a intenção de reforçar um posicionamento enunciativo que visava 119 GENETTE, 1972, p.238-243. 93 equiparar o estatuto do ilustrador ao estatuto do pintor. Suas composições são alegorias, gênero mais importante na hierarquia da pintura, onde estão representadas as regras das três Fig.25 unidades da tragédia neoclássica francesa; de tempo, lugar e ação, o que se constituía para o pintor o grande desafio de produzir a um só tempo e em um único quadro, aquilo que no texto vai aparecer numa sequência. Apropriando-se da retórica da pintura acadêmica, Doré pretendia projetar em suas ilustrações um ethos de pintor de história; ser reconhecido e gozar de seu prestígio, mas ao reatualizar esse tipo de discurso para um novo contexto, ele vai se encontrar entre aqueles que Foucault chamou de fundadores de discursividade: “Tipos de autores bastante singulares que não foram somente autores de sua própria obra, mas que produziram algo que a excedeu, possibilitando a regra de formação de outras obras 120”. 120 FOUCAULT, 2009, 280-281. 94 Doré não é aquele que apenas criou algo inédito, mas o que permitiu que toda uma nova perspectiva se abrisse sobre o campo da produção editorial. A partir dele, o livro infantil de luxo se torna uma realidade que prosseguirá pelas mãos de seu editor Hetzel, valorizando a literatura infantil como gênero literário que vai se desenvolver na segunda metade do século XIX; a ilustração deixa de ser um simples comentário subordinado ao texto, ganhando mais independência e busca o mesmo reconhecimento da pintura; o trabalho do ilustrador passa a ser valorizado intelectualmente e reivindica estatuto homólogo ao do pintor acadêmico; e a gravura, enobrecida, é elevada ao mesmo patamar do quadro como obra de arte. 95 6. ANÁLISE DA ILUSTRAÇÃO Nº2: A ENTREGA DAS CHAVES O que o pintor oferece ao nosso olhar? Assim se encontra na dialética da pintura acadêmica, a expressão do ofício do pintor. À primeira vista nos parece claro: ao observarmos a ilustração nº2 (fig.26), Doré tem a intenção de ilustrar a passagem do livro que se refere à entrega da chave encantada e à interdição do quarto proibido. Corrobora com esta leitura, a própria escolha do texto representando a legenda, “se você se aventurar a abri-lo, não há nada que não deva esperar de minha cólera 121”. No entanto, não parece incoerente que, com toda sua liberdade criadora, o gênio inventivo de Doré se contentasse em fazer uma simples tradução fiel à letra do texto? Permitindo-nos observar mais atentamente, comecemos por uma descrição de como se nos apresenta a cena. Um homem de proporções avantajadas ocupa quase dois terços da ilustração. Ele se encontra em posição contrária a uma figura feminina, jovem e delicada. De olhar ameaçador e dedo em riste, parece estar advertindo a mulher sobre algo. Segura ainda um molho de chaves com a mão direita, no qual se encontra uma grande chave que a jovem parece querer tocar. O rosto coberto por uma barba imensa que se confunde com os pelos de sua roupa lhe confere uma aparência animalesca que contrasta com a beleza da donzela. A ilustração não poderia ser mais reveladora: estamos diante da representação de um mundo baseado em oposições tais como homem/mulher, forte/frágil, beleza/feiura, humano/animal. Algumas reflexões se impõem: dentre os personagens, de fato, quem é o forte e quem é o fraco? Quem domina e quem é dominado? Ou ainda, de modo mais amplo, o que está em jogo aqui? Que tipo de forças governam a cena? 121 “S'il vous arrive de l'ouvrir, il n'y a rien que vous ne deviez attendre de ma colère” (PERRAULT, 1862, p.56). 96 Fig.26 DORÉ, S'il vous arrive de l'ouvrir, il n'y a rien que vous ne deviez attendre de ma colère, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. 97 Perceberemos, então, que dentro dessa construção dualista da imagem, Doré vai trabalhar um jogo de contrastes que se harmoniza para uma determinada finalidade. Veremos se descortinar ante nossos olhos todo um universo de representação pictural coerente com a visão romântica que, apoiada numa estética dos contrários, vai opor o grotesco ao sublime como preconizava Victor Hugo. E caberá a nós, consumidores de mitos 122, como diria Barthes, atribuir todos os sentidos que pudermos à cadeia de signos contida nesta imagem, no exercício de nossa autoridade de coenunciadores desse discurso. 6.1. O grotesco e o sublime Um quadro apresenta em sua estrutura duas diagonais principais: uma ascendente, que começa no canto inferior esquerdo e se dirige para o canto superior direito e outra descendente, que começa no canto superior esquerdo e termina no canto inferior direito. São convenções de percepção visual relativas à nossa cultura. Assim, podemos observar que a diagonal ascendente de nossa imagem divide a composição em duas partes: o triângulo superior esquerdo, que se refere ao universo do Barba-Azul e o triângulo inferior direito, ao universo de sua esposa (fig.27). A despeito desta distribuição espacial que localiza o Barba-Azul na parte de cima da composição, ela não o confere um valor superior à donzela, uma vez que o equilíbrio visual é conseguido por meio do jogo de luzes que vai compensar seu tamanho desproporcional em contraste com as formas delicadas da esposa. 122 BARTHES, 2010, p.223. 98 Fig.27 Barba-Azul se encontra na zona menos iluminada da gravura, posicionando-se como se estivesse saindo das sombras, detrás da cortina. Seu corpo ocupa uma área de transição, de penumbra, embora sua mão direita, a que segura as chaves, se coloque sob a zona de luz, iluminando o motivo principal do quadro. Seu rosto coberto de pelos mal deixa entrever sua fisionomia, porém, o forte contraste conseguido pela iluminação valoriza a expressão amedrontadora de seus olhos. Barba-Azul se apresenta como um predador em vias de devorar sua presa. Se tomarmos sua figura como a representação do grotesco, poderemos supor, então, por oposição estética, que a figura da donzela representaria valores sublimes como pureza e castidade. A jovem ocupa praticamente o terço restante da cena, mas é sobre ela que se dirige o foco de luz e toda a construção é feita para valorizá-la. O apelo ao subjetivismo é um recurso natural do romantismo que visa emocionar. Ao desenhá-la de costas, Doré nos oferece o 99 ponto de vista da esposa do Barba-Azul e, sobre seus ombros, somos convidados a compartilhar, em contre-plongée, seus sentimentos ante o poder ameaçador do monstro. A figura da donzela passiva e frágil que contrasta com uma criatura sádica e temível é um tema recorrente no romance gótico. O que vemos enfatizado aqui é a conciliação dos opostos por meio do paradoxo, figura de linguagem cara ao romantismo. 6.2. Como uma pintura de retratos O Barba-Azul que Doré nos apresentou na ilustração nº1 é um nobre medieval. Não temos dúvidas quanto a isso depois de nossa análise, porém, naquela gravura ele não aparece de fato. Ele apenas se faz presente por meio da armadura de cavaleiro que se encontra nos fundos do quarto. Aqui o vemos corporificado pela primeira vez e percebemos uma mudança que pode indicar uma passagem de tempo evidenciada pelos trajes que as personagens usam. Uma característica do trabalho de Gustave Doré para Les Contes de Perrault é a contextualização de suas ilustrações em uma realidade temporal. Para isso, ele veste suas personagens de acordo com a moda de uma determinada época e nesta gravura identificamos, sobretudo pelo modo de vestir de sua esposa, trajes renascentistas da França do século XVI. Doré se ampara no universo pictural da corte dos Valois para criar sua narrativa, cuja referência visual são os quadros do pintor François Clouet (1510-1572), famoso por pintar retratos das figuras da corte, entre elas Catarina de Médicis, Carlos IX e Elizabeth da Áustria (fig.28). 100 Fig. 28 CLOUET, Portrait de Elisabeth da Áustria (1554-1592), 1571. Ao falarmos de retratos, entendemos que esta ilustração, especificamente, fora construída para fazer alusão a este tradicional gênero da pintura. O retrato (portrait) é um quadro que se organiza em torno de uma figura, onde todos os elementos que o compõem estão presentes para determiná-la. Não como uma imagem cuja função se limite a identificar uma individualidade por meio de sua semelhança com a aparência exterior de seu modelo, mas sim, como uma imagem capaz de representar uma personalidade, revelando sua alma e conquistando, assim sua dignidade artística 123. O retrato ocupa uma posição inferior à pintura de história e de temas bíblicos e mitológicos na hierarquia dos gêneros pictóricos, no entanto, cada vez mais valorizado, ele se 123 C'est ainsi que le portrait ne conquiert sa dignité artistique qu'à la condition d'être, dans les termes de la tradition, portrait de "l'âme" ou de l'intériorité, non pas plutôt que de l'apparence, à sa place même, à même sa parution opérée sur la toile du peintre.(NANCY, 2000, p.25). T. do A. 101 desenvolve, sobretudo, nos países protestantes cuja representação da pintura religiosa tornarase proibida desde a Reforma. Do renascimento, quando era usado para representar o rei e a nobreza, até o século XIX, adotado por uma classe burguesa que queria se fazer representar, o retrato se constituiu em uma testemunha do êxito social, servindo para imortalizar os grandes eventos de uma vida, como o casamento, por exemplo. Sendo assim, poderíamos compreender a ilustração na tradição do duplo portrait representando a união de Barba-Azul com sua esposa. Ao construir a imagem de seu Barba-Azul, Doré parece querer tirar proveito da semelhança entre sua história com a do monarca inglês Henrique VIII (fig.29), que teve seis esposas e condenou à morte por adultério e traição suas segunda (Ana Bolena) e quinta (Catarina Howard) esposas, tomando como modelo os famosos retratos de Hans Holbein (1497-1543), o jovem, pintor da corte de Henrique VIII e responsável pelas imagens mais conhecidas do rei da Inglaterra. Se na ilustração anterior a intenção de Doré era projetar o ethos de um pintor de história, nesta, ele reforça seu posicionamento ao se amparar nos elementos da pintura de retratos demonstrando sua capacidade de lidar com e de dominar diferentes gêneros da pintura. Encontraremos, ainda, mais uma questão ligada à pintura, especialmente à do século XVI: a presença do elemento cortina no cenário que será mais uma citação da pintura desta época. 102 Fig. 29 HOLBEIN, Portrait de Henrique VIII, Rei da Inglaterra (1491-1547), 1537. A estética renascentista francesa surge da primeira Escola de Fontainebleau que seguia os parâmetros dos pintores italianos do Renascimento. Ela é tributária dos quadros que pertenciam à coleção de retratos de Francisco I, usados para a decoração dos aposentos reservados aos banhos do Castelo de Fontainebleau. Eram quadros da pintura italiana que tinham como tema a nudez profana. Inicialmente inspirados pela mitologia greco-romana, eles apresentavam a figura de ninfas e mulheres despidas e por isso eram cobertos por cortinas 124. Com o passar do tempo, elas acabaram sendo incorporadas e passaram a ser representadas dentro do próprio quadro. Desde então a cortina será mais uma referência do universo da pintura e Gustave Doré vai trazê-la para suas ilustrações a fim de agregar valor à gravura. 124 Cf. MELLO, 2004, p.66. 103 6.3. O caminho do olhar O padrão de leitura ocidental nos direciona o olhar por um caminho que entra pelo canto superior esquerdo e se dirige para o canto inferior direito. Assim, podemos perceber o desenho de uma linha imaginária que passa por alguns elementos da ilustração, indicando aquilo que devemos valorizar. Começando pela pluma do chapéu, ela vai se dirigir à chave, o motivo central da ilustração (fig.30); da chave ela seguirá pelo braço esquerdo da donzela e, subindo por suas costas, vai em direção aos olhos do Barba-Azul (fig.31); dos olhos, a linha vai descer por seu ombro direito e chegará a sua mão fechada, onde mais uma vez vai encontrar a chave. O olhar ainda prosseguirá, subindo pela diagonal ascendente do quadro que passa entre as mãos da donzela e encontra o dedo indicador de Barba-Azul, apontando para o alto, por onde ele deverá sair (fig.32). A determinação desses elementos não é sem propósito. É através deles que Doré cria sua narrativa. Num nível mais óbvio de significação, podemos ver na pluma um símbolo de poder. Assim a encontramos nos cocares de alguns povos primitivos que se assemelham à coroa dos monarcas. Notemos que a pluma do Barba-Azul se encontra colocada na frente de seu chapéu, que está sobre sua cabeça e muito acima da cabeça de sua esposa. Mais do que um artefato de moda, a pluma vai servir também para indicar um traço da personagem: sua vaidade, que é bem maior do que a dela. Sabemos que na natureza alguns machos têm o poder de seduzir suas fêmeas para o acasalamento através da exibição de suas plumas. É a forma que a natureza encontra para a preservação da espécie. 104 Fig. 30 Fig.31 105 Fig.32 6.4. O simbolismo da chave Poder, sedução, preservação da espécie. Tudo nessa gravura parece remeter ao sexo. Algumas interpretações do conto, fundamentadas nos conceitos da psicanálise, já nos informaram a respeito da conotação sexual existente no texto, e o que Doré faz não é mais do que amplificar este tema através do simbolismo de suas imagens. O punho fechado de Barba-Azul quando segura a chave ereta torna inequívoca a associação da chave com o órgão sexual masculino. Ao localizá-la numa área repleta de pelos Doré quer, evidentemente, demonstrar que o poder de Barba-Azul está ligado à virilidade. Poder este que é alvo do desejo de sua esposa, mas que não lhe é permitido tocar. Esta interdição tão severa é expressa pelo gesto admonitório da mão esquerda de Barba-Azul. Caberá a ela apenas contemplá-lo e deslocar a fonte deste desejo para um objeto que será o 106 meio pelo qual poderá se satisfazer, substituindo, o desejo de poder, pela curiosidade pela chave. Com as mãos abertas, a jovem se coloca em posição de recebê-la. Seus dedos parecem fazer um desenho que se assemelha a um triângulo, remetendo à forma simbólica do sexo feminino. O espaço interno, então criado pelas mãos, é penetrado pela chave e deste modo temos representado o ato sexual, particularmente, o momento da primeira cópula, quando há o sangramento devido ao rompimento do hímen. O conto nos informa que a chave é um objeto mágico que, uma vez manchado de sangue, não pode mais ser limpo. Referência clara à perda da virgindade como um acontecimento irreversível. 6.5. A sensualidade da mulher A experiência sexual vivida pela jovem provoca uma mudança em seu estado psicológico. Transformada de donzela em mulher, ela atinge um outro nível de consciência onde se dará conta daquilo em que consiste seu poder. Após uma fase de aceitação, se sentirá à vontade ao compreender que este poder se refere à sua capacidade de seduzir, algo que não hesitará em fazer. Representada de costas, a figura da mulher vai nos apresentar toda uma gama de referentes visuais carregados de erotismo: primeiramente, vemos suas mãos delicadas que, com uma leveza de gestos, mais parecem querer acariciar a chave; depois, o brinco de sua orelha esquerda chama nossa atenção para uma parte da nuca que está exposta; e por fim, temos a nossa disposição toda a visão de seus cabelos que se oferecem à contemplação. Aliás, cabelos apresentam uma carga simbólica grande. Eles conferem àqueles que os possuem, virtudes singulares como poder e sensualidade. A importância deles para nosso imaginário é representada de várias maneiras como no mito bíblico de Sansão, cuja enorme 107 força estava em seus longos cabelos e através das sereias, que seduzem os marinheiros cantando e se penteando. Elas, inclusive, são responsáveis por reforçar a fantasia de que a posse de lindos cabelos está associada à capacidade de atração sexual e que, por isso mesmo, representam poder 125. Longe da donzela frágil e indefesa que encontramos no início, enxergamos agora uma mulher confiante em seu poder. Dona de uma sensualidade ligada à astúcia que ela exibe em seu olhar, sua expressão contém um quê de determinação, parecendo-nos impossível acreditar que ela ainda tema o marido. 6.6. Expressões faciais Reparemos, agora, como o jogo de olhares é dissimulado. Eles não se cruzam em nenhum momento, pois enquanto Barba Azul tenta encarar sua mulher, ela direciona seu olhar para um outro objeto. Sua cabeça baixa não é um sinal de submissão, mas de dissimulação. Se imaginarmos uma linha traçada a partir de sua pálpebra, na direção do Barba-Azul, veremos que sua atenção está depositada no enorme nariz de seu marido, entre dois grandes olhos esbugalhados, localizado em uma área repleta de pelos (fig.33). A conotação com o órgão sexual masculino mais uma vez é evidente. Doré nos clarifica quanto ao tipo de forças que regem a cena: estamos no universo das pulsões sexuais e, nesse caso especialmente, a pulsão escópica, resultante da curiosidade sexual e voltada para a descoberta das partes genitais do corpo. 125 AZIZA, OLIVIERI, SCTRICK, 1978, p. 61. 108 Fig.33 Quanto ao olhar de Barba Azul, este nos parece de algum modo perdido. Tracemos uma diagonal descendente passando por seu nariz e teremos seu rosto dividido em duas metades. Isolando cada uma, tentaremos definir a direção de seu olhar. Enquanto o olho direito toma conta da chave (fig.34), seu olho esquerdo nitidamente se detém sobre sua esposa (fig.35), demonstrando uma indecisão quanto ao verdadeiro objeto de sua atenção. O antes intimidador olhar do Barba Azul converte-se agora num olhar confuso e inseguro, daquele que sabe que já não tem mais o domínio da situação. A ilustração nos faz crer inicialmente na força dominadora do Barba-Azul pela profusão de símbolos que representam sua masculinidade. Seu tamanho desproporcional, sua figura bruta, o punho fechado, a chave, o nariz, o dedo em pé, contribuem para amplificar seu poder viril na cena, porém, por mais que se tomem estes elementos como uma evidência, nada disso pode lhe assegurar o poder. 109 Fig.34 Fig.35 110 A gravura nos mostra sua mulher sendo capaz de transformar uma situação, desfavorável, em princípio, a seu favor pelo uso da inteligência, astúcia e, sobretudo, do recém-descoberto poder de sedução. Entendemos agora que é ela quem tem o domínio das ações, significando assim a vitória do poder feminino sobre o masculino. 6.7. A Narrativa das mãos Ao retornarmos à chave pela linha indutora do olhar, veremos que Doré vai se utilizar da repetição deste tema para reforçar a ideia de que não é a mesma cena, a da entrega da chave do quarto proibido, que ele está ilustrando. Voltemos à passagem para ver como ela se encontra no texto: Aqui estão as chaves dos dois grandes armários”, disse ele, “e estas aqui são as das baixelas de ouro e de prata, que não são usadas todos os dias; e estas, as dos meus cofres-fortes, onde estão guardados o meu ouro e o meu dinheiro; aqui estão também as chaves das caixas onde se acham as minhas pedrarias, e finalmente esta aqui abre todos os aposentos do palácio. Quanto a esta chavezinha aqui, é a do quarto que fica no final da grande galeria do andar inferior. Você pode abrir tudo, ir por toda parte, mas nesse pequeno cômodo está proibida de entrar. E é uma proibição tão rigorosa que, se você se aventurar a abri-lo, não há nada que não deva esperar da minha cólera 126. O grifo é nosso; apenas para chamar atenção para a palavra chavezinha que qualifica o tipo de chave a que Barba-Azul está se referindo. Em sua fala ele descreve diversas chaves e suas diferentes utilidades, no entanto, se detém em uma em especial, chamando-a pelo diminutivo. Este diminutivo será o único indício textual capaz de descriminá-la. 126 "Voilà, lui dit-il, les clefs des deux grands garde-meubles; voilà celles de la vaisselle d'or & d'argent, qui ne sert pas tous les jours; voilà celles de mes coffres-forts où est mon or & mon argent; celles de mes cassettes où sont mes pierreries; & voilà le passe-partout de tous les appartements. Pour cette petite clef-ci, c'est la clef du cabinet au bout de la grande galerie de l'appartement bas: ouvrez tout, allez partout; mais, pour ce petit cabinet, je vous défends d'y entrer, & je vous le défends de telle sorte, que, s'il vous arrive de l'ouvrir, il n'y a rien que vous ne deviez attendre de ma colère." (PERRAULT, 1862, p.56). 111 Olhando novamente para o desenho, poderemos notar que dentre tantas chaves presas ao molho, uma se destaca por ser menor que todas as outras (fig.36). Com certeza se trata daquela que vai abrir o quarto proibido, mas, ao contrário daquela que Barba-Azul exibe para sua esposa, esta chavezinha se encontra voltada pra baixo. De fato, estamos diante de chaves diferentes. Fig.36 A retomada do tema da chave então vai nos confirmar que houve uma mudança de seu sentido: o tema da proibição, da desobediência e da curiosidade feminina foi realmente substituído pelo tema do desejo de poder. De posse de sua liberdade criativa, Doré ainda vai se aproveitar do movimento das mãos para, mais uma vez, conferir uma narrativa pessoal ao conto (fig.37): a mão fechada que segura a chave ereta, carregada de simbolismo, informa que aquele que a possui detém o poder; as mãos abertas dizem que é preciso estarmos abertos, disponíveis para aceitá-lo; a mão esquerda com seu dedo apontando pra cima, ao ser colocado perto dos olhos da mulher, deixa de ser o sinal de uma proibição para virar um conselho: ter a chave é ascender a um nível consciencial superior, adquirir o conhecimento de si mesmo e, assim, ter o domínio das próprias ações (fig.38). 112 Fig.37 Fig.38 Curiosamente, essa narrativa é coerente com a visão de Bettelheim a respeito do papel dos contos de fadas. Para ele, as histórias nos ensinam que o herói deve passar por desenvolvimentos difíceis, sofrer provações, enfrentar perigos e obter vitórias, caso deseje conquistar a individualidade, semelhante ao rito de iniciação em que o noviço entra ingênuo e desinformado e em que, ao final, alcança um nível de existência mais elevado. Os contos nos ajudam a nos tornarmos seres humanos completos, capazes de realizar todas as nossas potencialidades e de dominar nosso próprio destino 127. 127 BETTELHEIM, 2007, p.376. 113 7. ANÁLISE DA ILUSTRAÇÃO Nº3: A CHEGADA DOS IRMÃOS CAVALEIROS Ocupemo-nos agora da ilustração nº3, a que se refere à chegada dos irmãos cavaleiros. Para cada conto da Edição Hetzel-Stahl, de 1862, Doré resolveu fazer pelo menos uma ilustração baseada nas vinhetas originais da edição de Les contes de ma mère l’oie, de 1697. Essa estratégia que se apoiava numa cena validada, isto é, já presente no imaginário coletivo, funcionava como uma espécie de legitimação para o seu discurso. Ao ilustrar o momento da chegada dos cavaleiros, Doré retoma o tema da vinheta de Clouzier, porém, com as devidas alterações correspondentes a sua leitura do conto e ao seu estilo. Fig.39 CLOUZIER, La Barbe bleue, Les contes de ma mère L’Oye. Paris. 1697. 7.1. Clouzier revisto por Doré Vemos que Clouzier escolhe desenhar a cena que considera o episódio principal do conto. Sua vinheta apresenta Barba-Azul, representado do lado de dentro de seu castelo, com 114 seu facão em punho e pronto para cortar o pescoço da mulher, enquanto que, do lado de fora, os cavaleiros, irmãos da donzela, estão chegando para salvá-la (fig.39). Nesta gravura ele segue as diretrizes narrativas impostas pelo texto. Quando a divide ao meio, o faz para poder representar melhor a sequencialidade dos eventos. Ao optar por não representar o desfecho da cena em si, mas a tensão do iminente perigo de morte da donzela, ele consegue acentuar o caráter dramático da cena que, por sua vez, é construída a partir de uma iconografia medieval, onde os tamanhos dos personagens são determinados pela sua importância na trama e não por uma visão realista. A preferência estética de Clouzier tem a intenção de simular a cenografia de obras da literatura popular de sua época, encontrada nos livros da bibliothèque bleue 128129. Gustave Doré, como dissemos, toma por base a gravura de Clouzier, mas sua ilustração se refere a um momento anterior da narrativa. O momento em que a irmã Ana, do alto da torre, avista os irmãos cavaleiros que estão chegando. “Deus seja louvado! Exclamou ela logo depois, são os meus irmãos 130”, nos confirma a legenda. Cena noturna que parece ter sido feita para representar um universo de sonhos, verificado através do clima denso; dos contornos imprecisos do castelo envolto em grande névoa; da forma indefinida com que a natureza é representada; dos cavaleiros cujos rostos não nos é permitido ver. Eles avançam em alta velocidade como nos indica a poeira levantada do chão, atravessando o cenário de uma terra inóspita, cuja natureza selvagem confere toda sorte de obstáculos pelos quais terão que passar. Bem à sua frente, uma densa floresta negra se interpõe entre o lugar que ocupam e o almejado destino; o castelo, aumentando o efeito dramático da corrida contra o tempo. 128 Cf. HOOGENBOEZEM, 2010, p.2. Forma de literatura popularizada por vendedores ambulantes (colporteurs) surgida no início do século XVII. Bibliothèque bleue era o nome dado aos livros de pequeno formato que apresentavam uma impressão de má qualidade. Eles tinham uma capa de papel azul, da onde surgiu seu nome. 130 “Dieu soit loué ! s'écria-t-elle un moment après, ce sont mes frères.” (PERRAULT, 1862, p.59). 129 115 Fig.40 DORÉ, Dieu soit loué! s'écria-t-elle un moment après, ce sont mes frères, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. 116 Suas figuras minúsculas parecem impotentes ante a magnitude do castelo medieval que revela toda sua pujança no horizonte. Lá, bem no alto da torre encontram-se duas figuras pequeninas, acenando para aqueles que são suas últimas esperanças de salvação (fig.40). Tony Gheeraert, em sua conferência De Doré à Perrault, na Universidade de Rouen 131, critica de modo geral o trabalho feito por Gustave Doré, cujas escolhas das cenas representadas trairiam as verdadeiras intenções do escritor. Em sua opinião, longe de ajudar na compreensão do texto, suas ilustrações parecem debochar dele 132. A condenação vem do fato de que, ao propor uma leitura romântica, o ilustrador não estaria sendo fiel às predileções de Perrault, ligadas à estética clássica. No entanto, equivoca-se Gheeraert, pois o objetivo do ilustrador é converter um texto para seu ambiente sócio-cultural e político, adaptando-o às exigências de seus leitores e não ser uma tradução literal de seu conteúdo em imagens. Porém, alertados pela polêmica posição do conferencista ante o trabalho de Doré, realizamos uma leitura mais atenta, e para isso, recorremos ao momento imediatamente anterior à passagem ilustrada. Assim encontramos o diálogo escrito por Perrault: (...) A irmã Ana subiu até o alto da torre, enquanto a pobre e aflita criatura gritava-lhe de tempos em tempos: - Ana, minha irmã Ana, você não vê ninguém vindo? E a irmã Ana lhe respondia: - Não vejo nada a não ser o sol que cintila e o capim que verdeja 133 . Ao compararmos texto e imagem, uma coisa logo nos chama a atenção: se como nos informa a irmã Ana, o sol cintila, sabemos que estamos numa cena diurna. Então, por qual motivo Gustave Doré resolve contrariar o próprio texto que ele ilustra, fazendo desta, uma cena noturna? Iria a liberdade do artista tão longe que lhe daria permissão para, efetivamente, 131 “Perrault illustré par Doré, ou la perfection du contresens”, conferência pronunciada em novembro de 2005, Maromme la Maine, IUFM de Rouen e publicada no site da Academia de Rouen em 2007. 132 GHEERAERT, 2007, p.24. 133 “(...) La soeur Anne monta sur le haut de la tour et la pauvre affligée lui criait de temps en temps :/Anne, ma soeur Anne, ne vois-tu rien venir ?/Et la soeur Anne lui répondait :/Je ne vois rien que le soleil qui poudroie et l'herbe qui verdoie”. (PERRAULT, 1862, p.58). 117 alterar o que se encontra escrito? Qual seria seu propósito com isto? Apenas demonstrar sua insubmissão ao texto ou mais uma vez, apropriar-se dos elementos textuais para criar sua própria narrativa, mas permanecendo coerente com a representação dos tempos fortes do conto, complementando-os e agregando-lhes sentidos? 7.2. A Estrutura da imagem Comecemos pela análise estrutural da cena. Ela toda é construída com o objetivo de transmitir um clima de roman noir; terror e mistério, administrados por sensações originárias de elementos sublimes da representação, que provocam vertigem e angústia. Em termos tonais, podemos dividir a composição por planos de luz: no primeiro plano, a área mais iluminada valoriza o tema dos cavaleiros desbravando a natureza selvagem; no plano de fundo, numa área de meio-tom, o imenso castelo impõe sua presença fantasmagórica; entre os dois planos, uma mancha negra representando a floresta, converte-se em um obstáculo ameaçador para os intrépidos cavaleiros, parecendo cair sobre suas cabeças como se fosse uma avalanche (fig.41). Supondo que a composição apresentasse a área de luz no primeiro plano, seguida daquela de meio-tom no segundo e sombra no terceiro, teríamos a representação “natural” de uma perspectiva construída por meio da gradação tonal, que levaria a um efeito de profundidade, permitindo o leitor “entrar” no quadro (fig.42). Mas, ao posicionar a área de sombra no meio, entre a área de luz e aquela de meio-tom, é criada uma barreira visual que vai quebrar essa noção de perspectiva, acentuando um efeito de verticalidade e favorecendo a ênfase da dificuldade que os cavaleiros terão de enfrentar para chegar ao castelo. 118 Fig.41 Fig.42 119 Dentro deste cenário tão denso, a iluminação direcionada para os cavaleiros oferece uma escapatória para nosso olhar, jogando assim com o sentido de tê-los como a única forma de salvação daquele universo de pesadelos. A perspectiva aérea, fornecida pelo esmaecimento dos contornos do castelo, é conseguida através da simulação de um sfumato, a partir das tramas da gravura. As nuvens por detrás dele o destacam e conferem-lhe um clima espectral. Percebemos que a composição também se assenta sobre três triângulos: um para o chão inclinado, um para o rochedo, um para a floresta densa (fig.43). A formação confere mais dinamismo à cena, o suficiente para equilibrar a imagem com a estabilidade monolítica do castelo e suas torres ao fundo, cuja verticalidade provoca um achatamento visual dos cavaleiros. Essa sensação de esmagamento da figura dos cavaleiros é um dos responsáveis pelo aspecto angustiante do desenho. Vemos o terreno inclinado comprometer sua estabilidade e todas as linhas de força do desenho apontar para eles, reforçando esta sensação (fig.44). 7.3. Uma ilustração fantástica À primeira vista o que nos chama atenção é o modo como a ilustração se apresenta, elaborada com a finalidade de nos transportar para a dimensão do fantástico, um mundo assim como o nosso, mas com suas leis próprias, capaz de produzir acontecimentos que fogem a nossa explicação 134. Reconhecemos através de referentes visuais tais como o castelo, os cavaleiros, a noite e a natureza, elementos da cenografia que se organizam dentro da composição com a intenção de nos fazer transitar por este universo ambíguo de realidade e sonho. 134 TODOROV, 2012, p.30. 120 Fig.43 Fig.44 121 A casa do Barba-Azul, que é representada na forma de um Château fort medieval, nos transmite a ideia de um lugar a ser temido. Sua imagem de residência maléfica ou misteriosa que contém calabouços se constrói ao longo do século XVIII e vai alimentar um imaginário do romantismo, tornando-se um estereótipo das evocações de forças sobrenaturais e residência de personagens misteriosas e atormentadas. Os cavaleiros figuram no conto com os atributos do herói, aquele que tem por missão proteger os oprimidos. Como heróis, simbolizam a união das forças celestes e terrenas, que investidas das qualidades solares, triunfam sobre as trevas 135. A imagem idealizada do cavaleiro vem da Idade Média, sobrevivendo no imaginário através das lendas, da literatura de tradição oral, dos poemas dos trovadores e no século XIX era valorizada pelo romantismo. A noite e a natureza compõem a paisagem da ilustração, representando um lugar selvagem, inabitado e sombrio com florestas densas e montanha escarpada. Uma descrição que poderia nos fazer identificá-la como uma paisagem sublime. Aliás, se colocada em relação com os outros referentes já mencionados, encontraremos reunidos nessa ilustração elementos que nos levarão a reconhecer visualmente características do conceito de sublime desenvolvido por Edmund Burke (1729-1797) em seu livro Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo, em que o filósofo vai valorizar seu componente assustador. Tudo que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atua de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime, isto é, produz a mais forte emoção de que o espírito é capaz 136. Gustave Doré é partidário deste sublime como experiência estética que faz da desproporção, do mistério e do terror elementos de sua retórica. Nesta ilustração, as figuras 135 136 CHEVALIER, 1986, p. 558-560. BURKE, 1993. p.48. 122 humanas são representadas de forma minúscula de modo a enfatizar sua fragilidade ante as força da natureza. Além da temática da representação, Doré vai ter seu ethos de artista romântico ainda mais evidenciado ao escolher colocar os cavaleiros de costas para o espectador. Aqui ele toma como referência as pinturas de Caspar Friedrich (1774-1840) que em seus quadros pintava as figuras humanas de costas, alçando a natureza a um primeiro plano e fazendo com que ela refletisse os sentimentos de suas personagens (fig.45). Com este recurso Doré faz do espectador um participante da cena, sentindo-se como se estivesse galopando com os cavaleiros e compartilhando toda a emoção da narrativa. Fig. 45 FRIEDRICH, Homem e mulher contemplando a lua (1818-1824) 123 7.4. Conclusão Retornando à questão central do motivo que levou Gustave Doré a alterar o sentido do próprio texto que ilustra, entendemos que ele não o contraria, absolutamente. Vemos o artista seguir todos os elementos textuais que se encontram na narrativa: personagens (os cavaleiros, as irmãs), elementos cenográficos (castelo, torre) e a natureza (nuvem de pó, o capim que verdeja), só faltando o sol que cintila, mas isso não quer dizer que ele, efetivamente, não esteja presente. Notamos pelo estudo que fizemos ainda na fase da descrição preliminar que a gravura representa um universo onírico. Na verdade, ela reflete o état d’âme de uma personagem atormentada que vive uma situação de pesadelo. Apesar de o texto nos indicar que seu momento, dito somático, pertence ao diurno, psicologicamente ela está presa a um universo noturno, governado por sombras e pesadelos. Esse clima de terror psicológico é construído por Doré por meio da escolha de uma cenografia, cuja função estrutural atua tanto quanto seu caráter simbólico (como no caso do castelo medieval, capaz de aumentar a sensação vertiginosa da cena em função do peso de sua estrutura vertical que esmaga a figura dos cavaleiros); por uma composição que convoca o espectador a participar da cena (através dos cavaleiros representados de costas) e pela utilização de um recurso caro ao romantismo que é o ato de representar a natureza em função dos sentimentos da personagem, onde vemos nas raízes retorcidas, no morrote pedregoso, na vegetação selvagem e na noite profunda o reflexo das emoções da esposa do Barba-Azul. Apoiado em sua poeïsis de artista romântico, o que Gustave Doré faz é conferir à cena uma leitura pessoal, representando-a de uma outra maneira, ao revelar um lado da história que o texto não mostra explicitamente e que corresponde aos sentimentos da personagem. 124 8. ANÁLISE DA ILUSTRAÇÃO Nº4: A MORTE DE BARBA-AZUL Terminamos a série de análises que propomos às ilustrações criadas por Gustave Doré com aquela que representa, pelo menos aparentemente, o desfecho do conto. Verificaremos, assim, de que modo ele vai concluir sua narrativa e atribuir-lhe um caráter autoral. 8.1. A dinâmica da composição A ilustração nos mostra uma cena de violência explícita, marcada por uma forte luz que recorta as personagens principais do cenário, exibindo seu motivo central; o tema da morte de Barba-Azul (fig.46). No primeiro plano da imagem vemos figurar três homens; dois dos quais, usando trajes militares, dominam um terceiro e o atingem pelas costas com suas espadas. Este homem, que veste roupas simples, parece querer fugir do ataque e tenta se defender apontando para trás o facão que carrega. Ao mesmo tempo ele eleva sua mão esquerda buscando tocar na base da estátua do grifo que vai se constituir na presença do elemento grotesco da cena. Com os olhos bem abertos e parecendo ter vida própria, o grifo observa a tudo com olhar de reprovação. Estirada ao fundo, ainda vemos a figura de uma mulher desfalecida que reduplica o sentido de morte atribuído à gravura, juntamente com a imagem da espada atravessando um coração, incrustada no balaústre da escadaria do castelo. É uma composição bem dinâmica, cuidadosamente planejada para reforçar o espírito dramático da representação. O conjunto principal, mostrado na frente, é construído por uma série de linhas de força que apontam para várias direções, provocando o olhar do espectador e aumentando a tensão da cena (fig.47). Este conjunto está assentado sobre um triângulo que junto com a arquitetura formam uma grande massa homogênea, contribuindo, mais uma vez, para uma sensação de sufocamento, apaziguada pelas linhas perspectivas que dão forma à 125 Fig.46 DORÉ, Ils lui passèrent leur épée au travers du corps, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. 126 escada (fig.48). Elas correm para o horizonte nos indicando a fuga para um espaço exterior; uma fuga daquele ambiente de violência opressora para uma natureza libertadora. Fig. 47 Fig. 48 127 A brutalidade desta ilustração nos impressiona quando a consideramos parte integrante de um livro infantil. No entanto, esta é curiosamente a única característica louvada por Tony Gheeraert quanto ao trabalho de Doré. “O maravilhoso de Perrault revela uma face sombria da natureza humana”, diz o professor. E é justamente por representar esta face aterrorizante dos contos que Doré estaria, finalmente, sendo fiel a Perrault; ao trazer para o primeiro plano o aspecto violento dos contos que foi sendo edulcorado, ao longo dos anos, nas edições voltadas para as crianças 137. 8.2. A espada e o facão Mas se, por um instante, tentássemos retirá-la de seu contexto que é o de uma ilustração que pertence à narrativa da história de um assassino em série que mantém sua vítima aprisionada em seu castelo e que é morto, no fim, pelos cavaleiros, irmãos da vítima e a analisássemos independentemente como se ela fosse apresentada para alguém que nada soubesse a seu respeito? Ao vermos aqueles dois homens atacar por trás o pobre homem, continuaríamos a vê-la de modo natural e não como uma absurda cena de covardia? Por que não a enxergamos ainda como um crime e, ao invés disso, vemos nela um ato de justiça? As respostas para essas perguntas encontramos em alguns elementos que estão presentes na cenografia tais como as roupas das personagens e suas armas que, apesar de toda a violência da representação, nos permitem dar-lhe um sentido positivo. A verdade é que já trazemos conosco valores culturais que atribuímos a certos símbolos; numa informação retirada do texto, vemos que os cavaleiros são um dragão e um mosqueteiro, portanto, homens a serviço do rei. Os uniformes militares que estão vestindo nos transmitem a segurança e a autoridade daquele que tem o poder para exercê-las. Em que pese 137 GHEERAERT, 2007, p.25. 128 o fato de os vermos atingir pelas costas um homem que, pela simplicidade de suas roupas, poderia ser um pobre coitado qualquer, inevitavelmente os comparamos e julgamos que este seja culpado de alguma coisa que o faça ser merecedor de tal castigo. Notemos que, para isso, Gustave Doré teve a preocupação de despi-lo de suas roupas aristocráticas, habilmente evitando o que poderia se tornar prejudicial ao entendimento da cena, caso o representasse em trajes de nobre como na ilustração nº2. Outro elemento que reforça nossa percepção se encontra na relação efetuada entre o facão e a espada. Entendidas como armas, esses instrumentos trazem em si a marca do poder e configuram-se numa espécie de divisa cujas características estão ligadas às qualidades dos personagens que as carregam. Nas mãos de Barba-Azul, por exemplo, o facão apresenta sua faceta mais sombria, a de instrumento de sacrifício, de dor associada ao sofrimento enquanto que seu lado positivo, de instrumento de trabalho dos camponeses, é totalmente ignorado. Do mesmo modo as espadas, que também possuem seus sentidos positivos e negativos, quando empunhadas pelos cavaleiros conferem-lhes um prestígio social, oriundo da noblesse d’épée, e seu poder moral, no momento em que servem de instrumentos de realização de um ideal cavaleiresco, sendo consideradas, portanto, símbolos de justiça e de combate à maldade 138. 8.3. A imagem como teatro A busca por mais elementos cenográficos que nos ajudem a compreender esta ilustração nos leva a entendê-la como uma cena dramática, ou seja, concebida com elementos teatrais próprios do drama romântico. Não só pela dramatização do episódio, posto ser próprio da retórica romântica apelar para o caráter patético na representação, mas, sobretudo, pela iluminação intensa que revela 138 AZIZA, OLIVIERI, SCTRICK, 1978, p. 88-89. 129 nos corpos retorcidos e nas expressões de dor, todo o exagero construído com vistas a emocionar. A luz, direcionada artificialmente, parece projetada para guiar o olhar do espectador até o acontecimento principal da narrativa e forma uma espécie de spot no chão semelhante ao de um palco de teatro (fig.49). Fig. 49 A opção por mostrar justamente o momento clímax do conto se enquadra no conceito formulado por Lessing, em 1776, em seu livro Laocoonte, chamado de instante pregnante. Este era uma tentativa de se obter uma resposta para um antigo problema da pintura referente à relação entre o momento da representação e o acontecimento. Defrontando-se com a dificuldade de representar o tempo na pintura, por esta ser uma arte do espaço, o artista deverá escolher, em apenas um momento do acontecimento, aquele que seja a síntese de todo episódio e representá-lo apoiando-se nas codificações semânticas dos gestos, das posturas e de toda a encenação 139. 139 Cf. AUMONT, 2008, p.231-232. 130 Notamos também que, próximo da mulher, se encontra uma cortina que discretamente mistura-se à tonalidade cinza do fundo. A presença desta cortina vem apenas confirmar nossa hipótese a respeito da significação da cena. Do grupo de quatro ilustrações analisadas, a cortina, como elemento cenográfico, se encontra presente em três delas (exceção feita à ilustração nº3 que é uma cena externa). Esta repetição, usada de forma proposital, tem a função de reforçar uma ideia. O conceito de que as ilustrações se inserem em uma tradição secular da arte pictórica e de que todo o grupo narrativo corresponde a uma representação de arte dramática. Temos no conto de Barba-Azul uma ilustração que deseja ser vista como pintura, representando um texto sob a forma de uma cena dramática. Um verdadeiro amálgama de expressões artísticas realizado por um artista conhecido por sua polivalência no campo da produção. 8.4. A narrativa da imagem Ilustração mais clara de todo o conjunto, ela faz um contraponto com a gravura anterior instaurando um diálogo que se manifesta pelas relações de escuro-claro, noite-dia, adormecer-despertar. Nossa atenção é atraída agora para a mulher que se encontra caída ao fundo do desenho (fig.50). Isolando-a do restante da cena, veremos uma figura se harmonizando com parte da capa do mosqueteiro que, cobrindo-lhe metade do corpo, age como se fosse um cobertor. Teremos então, no conjunto, a própria representação da bela adormecida em vias de acordar e não mais a mulher desfalecida de Barba-Azul. 131 Fig. 50 Essa é a chave de leitura que nos permite compreender a cena como o momento do despertar de um sono profundo, daquela realidade angustiante à qual nos referimos na análise da ilustração anterior. Ela nos fornece o indício definitivo de que não nos equivocamos ao afirmar que Gustave Doré não ignorara o fato do episódio do conto se passar pela manhã, onde apenas o raiar de um novo dia seria capaz de renovar as esperanças de salvação. Segundo o Dictionnaire des symboles et des thèmes littéraires Nathan, a aurora sempre traz consigo um sentido otimista, sendo também a marca de um recomeço e de uma feliz reconquista da lucidez 140. E é este sentido de fim de um pesadelo e de recomeço feliz que Doré quer trazer para o desfecho de sua narrativa. No entanto, ainda falta algo para darmos por encerrada nossa análise. Para isso, mais uma vez recorreremos à Table des compositions e, a partir da legenda correspondente à imagem, tentaremos encontrar algo que contribua com nossa empreitada. 140 AZIZA, OLIVIERI, SCTRICK, 1978, p.34-37. 132 Lemos em “Eles atravessaram seu corpo com suas espadas 141” a síntese do episódio com o qual estamos lidando. Diferentemente de outras legendas, parece claro que esta se ajusta perfeitamente bem à ilustração. É a cena final do conto e sabemos que Doré escolhe representar seu clímax, que seria a morte de Barba-Azul, mas o que faltaria para termos a certeza de que o fato se concretiza? O corpo caído no chão, talvez? Mas esta poderia não ser uma escolha feliz, provavelmente por ser evidente demais e muito pouco atraente. Conhecemos o artista e sabemos que ele não se contenta com o óbvio, sempre tentando imprimir sua marca pessoal que é sua fantasia. Lançando mão de um recurso muito utilizado na pintura barroca, sobretudo de inspiração caravaggesca, Doré torna a obra mais dramática por reforçar o impacto emocional da representação ao retratar o instante imediatamente anterior ao desfecho da cena - notemos que as espadas não atravessam, de fato, o corpo do Barba-Azul - delegando ao espectador a tarefa, dele mesmo, de desferir o golpe fatal. Porém, ao agir assim, ele nos permite a liberdade de escolhermos sermos cúmplices ou não deste assassinato. Ao evitar representar a morte propriamente dita de Barba-Azul, quereria Doré sugerir-nos algo? Em nossa função de coautor, que outro sentido poderíamos atribuir a esta gravura que ainda apresenta elementos misteriosos que até agora não estudamos devidamente? A começar, então, pela figura grotesca do grifo que nos parece reger a cena por meio de sua presença. Espécie de pássaro fabuloso, geralmente descrito como tendo cabeça e asas de águia e corpo de leão, o grifo é um ser poderoso, considerado o rei das criaturas que governaria tanto os reinos do céu quanto os da terra. Segundo Heródoto, os grifos são consagrados a Apolo, de quem guardariam os tesouros contra as investidas dos Arimaspos 142. Porém, sua característica mais importante é a conciliação dos opostos que seu simbolismo nos revela. Um bestiário italiano da Idade Média diz que o grifo significa o demônio, e, no entanto, para Isidoro de 141 142 “Ils lui passèrent leur épée au travers du corps” (PERRAULT, 1862, p.59). Cf. GRIMAL, 1951, p.169. 133 Sevilha nas suas Etimologias, ele é o símbolo do Cristo, pois "Cristo é leão porque reina e tem a força; águia porque, depois da ressurreição, sobe aos céus 143”. Para nós, o grifo é um ser maligno que dá vida à Barba-Azul. Eles mantêm uma atitude, através do olhar, própria de um diálogo; uma relação de criador com a criatura percebida na iminência do toque do dedo de Barba-Azul com a pata do grifo, nos remetendo imediatamente à pintura A criação de Adão, de Michelangelo (fig.51). Fig. 51 MICHELANGELO, A criação de Adão, (por volta de 1511). Barba-Azul é a própria imagem da piedade nesta cena. Ele age como um crente que tenta tocar as vestes do santo para obter sua cura. Seu ato desesperador se deve ao fato de uma crença medieval que atribuía poderes medicinais às patas do grifo. Podemos entender também que através desse toque haveria uma espécie de transferência de energia; o grifo, como um demônio, alimentaria a maldade de Barba-Azul, ou de outro modo, Barba-Azul, na iminência de morrer, transferiria sua alma para o grifo, o que justificaria o porquê do olhar “vivo” da estátua (fig.52). 143 Cf. BORGES, 2007, p.112-113. 134 Fig.52 Encontramos no balaústre sobre o qual se assenta a estátua do grifo a imagem de uma espada enrolada por uma serpente, atravessando um coração. Este tipo de representação nos leva à imagem de Hermes cujo bastão apresenta duas serpentes entrelaçadas. O deus grego, que tinha a função de conduzir os mortos ao mundo subterrâneo, está associado à figura arquetípica do psicopompo (guia das almas) porque era capaz de transitar entre a vida e a morte 144. 8.5. Conclusão Compreendemos, pois, que a ilustração se divide em três momentos estanques, definindo a temporalidade da narrativa criada por Gustave Doré: primeiramente, a mulher do Barba-Azul que, ao ser representada no instante do despertar do pesadelo em que vivia, cria 144 Cf. HENDERSON, 2008, p.202-203. 135 uma conexão com os acontecimentos passados; depois, testemunhamos sua salvação por meio da intervenção dos irmãos cavaleiros onde, no presente, atacam Barba-Azul, fazendo-o pagar por seus crimes; e, por fim, somos levados a acreditar que, apesar das evidências, Barba-Azul consegue escapar de seu destino, e isto é simbolizado pelo toque nas garras do grifo, a quem ele entrega sua alma. O grifo, animado por seu espírito, é o sinal de que o corpo pode até morrer, mas o princípio maligno permanecerá imortal, configurando-se no momento posterior ao conto o verdadeiro desfecho concebido por Doré. Temos com isso justificada a atemporalidade atribuída a Barba-Azul, de que fomos testemunhas ao longo das quatro imagens; vimos a personagem surgir no século XV através da macabra história de Gilles de Rais e depois passar pelo século XVI como um aristocrata da corte dos Valois. Se considerarmos ainda a data de surgimento do livro como o momento presente, poderíamos entender que Barba-Azul chegara então ao século XIX, pelo gênio de Doré, como uma força maligna indestrutível. Um tema que fascinava os românticos, por meio do romance fantástico, das histórias macabras, de vampiros, e que pelas asas do grifo prosseguirá através dos tempos. 136 9. CONCLUSÃO A dissertação Barba-azul de Doré & Perrrault: o discurso do ilustrador se inscreve no campo de estudos constituídos pelas relações interdiscursivas entre literatura e as artes plásticas tendo por objetivo contribuir com os trabalhos de análise da imagem, sobretudo, aos que se relacionam com o texto literário. Com a utilização dos pressupostos teóricos da análise do discurso como ferramenta de investigação encontramos uma via que nos permitiu escapar da forma de abordagem mais comum a esse tipo de trabalho que espera, através do uso apenas da semiologia, resolver as questões envolvendo a imagem. Trabalho interdisciplinar que associou semiologia com a análise do discurso levando em consideração a sociologia estrutural bourdieusiana nos permitiu elaborar esta dissertação que foi construída sobre três eixos: a obra Les contes de Perrault, o discurso do ilustrador e a trajetória de Gustave Doré. No capítulo pelo qual começamos a pesquisa, apresentamos o autor da obra Les contes de Perrault, Charles Perrault, demonstrando a importância de sua participação na Querela dos Antigos e Modernos, que está relacionada diretamente com o contexto em que surge o livro. Mostramos que esses contos da tradição oral francesa se tornaram famosos no final do século XVII, vinculados à cultura dos salões como uma literatura de divertimentos, e como eles foram utilizados por Perrault como modelo pedagógico inspirado nas fábulas. Observamos o que passou a significar Charles Perrault no século XIX, sinônimo de cultura popular e instância legitimadora de um discurso romântico, que via no folclore a origem cultural de uma nação que buscava encontrar sua própria identidade. Estudamos também as diferenças existentes entre as duas obras. Como o modesto livrinho Les contes de ma mère l’Oie, de 1697 se transforma na monumental edição Hetzel- 137 Stahl, Les contes de Perrault, de 1862, pelas mãos de Gustave Doré que, ao escolher um suporte luxuoso para a edição, a insere no conceito do livro como um objeto de arte. E verificamos, por meio da análise iconográfica das ilustrações dos frontispícios das duas edições, a de 1697 e a de 1862, como se operou a mudança de sentidos atribuídos este livro de contos populares que, ao passar da oralidade para a escritura, constituiu-se, por fim, em gênero literário no contexto da reforma do sistema educacional francês. No capítulo dedicado ao discurso do ilustrador, questionamos quais limites são impostos a seu trabalho para que ele seja considerado a emissão de um discurso. Estudamos a ilustração no que se refere a sua natureza semiológica de imagem e seu caráter formal que se apresenta tanto como um ato de comunicação como um elemento estético aberto à fruição. Para isso, analisamos as ilustrações do conto Barba-Azul, investigando como o artista promove sua releitura conferindo a este texto do século XVII a projeção de um ethos de pintor de história ligado à estética romântica. Gustave Doré buscava legitimar seu discurso através do emprego de técnicas de composição da pintura acadêmica em suas ilustrações, como vimos na análise da ilustração nº1: a violação do quarto proibido. Nesta, ele utiliza uma narrativa temporal amparada na regra das três unidades da tragédia neoclássica francesa de tempo, lugar e ação. Ele vai empregar elementos metafóricos com objetivo de reduzir o impacto de um assunto forte, que a regra da bienséance não lhe permite representar, substituindo o tema da descoberta dos corpos das mulheres assassinadas por Barba-Azul, pelo mito de Pandora. Este é um recurso comumente empregado pelos pintores de história, que buscavam, nos textos da antiguidade, elementos de sustentação para sua narrativa dramática. A utilização desses códigos retóricos tinha a intenção de reforçar um posicionamento enunciativo que visava equiparar o estatuto do ilustrador ao estatuto do pintor. Assim, suas 138 composições são alegorias, o gênero mais importante na hierarquia de gêneros da pintura acadêmica. Ao reatualizar esse tipo de discurso para um novo contexto, Doré vai construir sua própria obra, fazendo de suas ilustrações mais do que um simples comentário subordinado ao texto. As imagens ganham mais independência e buscam o mesmo reconhecimento da pintura, valorizando intelectualmente o trabalho do ilustrador e reivindicando, assim, para Doré um estatuto homólogo ao do pintor acadêmico. A xilogravura, então enobrecida, é elevada ao mesmo patamar do quadro como obra de arte. As críticas atribuídas ao trabalho de Gustave Doré vinham frequentemente dos meios mais eruditos e normalmente diziam respeito ao caráter monumental de seus álbuns de luxo. Suas ilustrações impactantes eram acusadas de traição ou de deturpação do verdadeiro sentido do texto e, principalmente, de tentar fazer com que o trabalho do ilustrador se sobrepusesse ao do escritor, reduzindo o texto a um mero comentário para suas ilustrações, subvertendo uma hierarquia estabelecida entre texto e imagem desde a antiguidade. No entanto, a geração romântica do século XIX havia retomado o antigo exercício retórico da comparação entre as artes, no que dizia respeito à expressão artística. Não buscando mais, como no século XVII, a arte superior que servirá de modelo a todas as outras formas de arte, ela defendia a igualdade através do conceito de fraternidade das artes. Desse modo, imagem e texto se encontrariam em posição de igualdade. E é sobre este conceito que Doré constrói sua obra. A partir da apropriação do texto de Perrault, o que ele faz é conferir uma leitura própria segundo suas concepções estéticas e seus interesses pessoais de reclassificação no campo. Longe de trair o sentido do texto que ele próprio ilustra, entendemos que, apoiado em sua autoridade de artista criador, Doré utiliza os elementos textuais encontrados na narrativa de Barba-Azul para apresentar a história de uma outra maneira, revelando um aspecto da 139 história que o texto não é capaz mostrar explicitamente. Como no exemplo da atemporalidade atribuída a Barba-Azul, de que fomos testemunhas ao longo da análise das quatro imagens. No capítulo atribuído a trajetória de Gustave Doré, investigamos como o artista vai utilizar seu trabalho em favor de seu desejo de reconhecimento como “grande artista” e de que forma seus contínuos deslocamentos se apresentarão como parte de uma estratégia de reclassificação no campo artístico. Desde cedo, Doré demonstrava ter consciência da hierarquia do campo e que, por isso, elaborara sua trajetória evolutiva passando de caricaturista a ilustrador e transformando-se, por fim, em pintor, esperando, deste modo, alcançar o reconhecimento de seu talento. Doré via na promoção da xilogravura de topo ao nível de uma obra de arte, um projeto estético inovador, que foi a base de seu projeto editorial de livros de luxos, responsáveis por sua autonomia no campo da produção e que lhe permitiram subsidiar as telas gigantescas que exibia nos salões de pintura. O sucesso monetário, porém, não era o bastante. Para Doré, o cumprimento de sua réussite bourgeoise deveria passar, necessariamente, pelo reconhecimento do métier artístico. Nesse caso, vimos, no ano de 1861, um momento determinante em sua carreira, quando ele buscava converter todo o capital simbólico adquirido no campo da edição em favor de seu reconhecimento como “grande artista”, através da exibição da tela monumental Dante et Virgile dans le Neuvième cercle des enfers em que faz referência explícita à tela de Delacroix, La Barque de Dante, a quem sempre buscou se comparar. O sucesso da edição L’Enfer, de Dante, em contraste com o “fracasso” de sua tela Dante et Virgile fez com que Doré se encontrasse numa situação paradoxal: quanto mais o ilustrador triunfava, mais fracassavam suas pretensões de pintor. Notando a situação inconciliável das duas carreiras, Doré faria de sua versatilidade e produtividade, a tentativa definitiva em favor da sua aprovação pelas instituições artísticas e pela crítica de arte. No 140 entanto, essa multiplicidade de talentos se voltaria contra si próprio, levando seus detratores a entenderem este virtuosismo como a expressão de imaturidade artística. Doré era um artista extremamente popular e vinha de um métier simbolicamente desvalorizado. Sendo assim, reconhecer seu talento seria concordar com o julgamento popular e aceitar a inversão da lógica que atribuía a um corpo de especialistas o poder de consagrar ou não um artista. Desse modo, concluímos que Gustave Doré fora vítima de uma violência simbólica imposta pela crítica e pela academia, por aqueles que regulavam o mercado das artes. Reconhecendo sua autoridade, Doré submetia-se voluntariamente a seus julgamentos, orientando sua produtividade por uma série de deslocamentos que corresponderiam a tomadas de posição que visavam o reconhecimento de seu talento que, no entanto, sempre lhe foi negado. A glória do pintor, tão desejada por Doré, explicaria assim sua trajetória no campo da produção. O princípio de um ideal é ele ser irrealizável, pois é preciso sonhar com o impossível para se atingir os mais altos lugares. O desejo de consagração o levou a desenvolver suas potencialidades artísticas. Ao tentar se comparar a Delacroix e buscar ocupar um lugar como o de Delacroix, Gustave construiu seu próprio lugar. O lugar de Doré. Fig.52 DORÉ, Le Chemin des écoliers, 1861. 141 10. REFERÊNCIAS AMOSSY, Ruth. O ethos na intersecção das disciplinas: retórica, pragmática, sociologia dos campos. [trad. Dilson Ferreira da Cruz]. In:___ (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos no discurso. São Paulo: Contexto, 2005, p. 119-144. ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. [trad. Ivone Terezinha de Faria] São Paulo: Cengage Learning, 2012. AUMONT, Jacques. A imagem. [trad. Estela dos Santos Abreu e Cláudio C. Santoro] Campinas: Papirus, 2008. AZIZA, C., OLIVIERI, C., SCTRICK, R. Dictionnaire des symboles et des thèmes littéraires. 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La Barbe-Bleue, pour faire connaissance, les mena, avec leur mère & trois ou quatre de leurs meilleures amies, & quelques jeunes gens du voisinage, à une de ces maisons de campagne, où on demeura huit jours entiers. Ce n'étaient que promenades, que parties de chasse & de pêche, que danses & festins, que collations, on ne dormait point & on passait toute la nuit à se faire des malices les uns aux autres ; enfin tout alla si bien, que la cadette commença à trouver que le maître du logis n'avait plus la barbe si bleue, & que c'était un fort honnête homme. Dès qu'on fut de retour à la ville, le mariage se conclut. Au bout d'un mois, la Barbe-Blcue dit à sa femme qu'il était obligé de faire un voyage en province, de six semaines au moins, pour une affaire de conséquence; qu'il la priait de se bien divertir pendant son absence ; qu'elle fit venir ses bonnes amies ; qu’elle les menât à la campagne, si elle le voulait ; que partout elle fit bonne chère. « Voilà, lui dit-il, les clefs des deux grands garde-meubles; voilà celles de la vaisselle d'or & d'argent, qui ne sert pas tous les 147 jours ; voilà celles de mes coffres-forts où est mon or & mon argent ; celles de mes cassettes où sont mes pierreries ; & voilà le passe-partout de tous les appartements. Pour cette petite clef-ci, c'est la clef du cabinet au bout de la grande galerie de l'appartement bas : ouvrez tout, allez partout; mais, pour ce petit cabinet, je vous défends d'y entrer, & je vous le défends de telle sorte, que, s'il vous arrive de l'ouvrir, il n'y a rien que vous ne deviez attendre de ma colère. » Elle promit d’observer exactement tout ce qui lui venait d’être ordonné; & lui, après l’avoir embrassée, monte dans son carrosse, & part pour son voyage. Les voisines & les bonnes amies n’attendirent pas qu’on les envoyât querir pour aller chez la jeune mariée, tant elles avaient d’impatience de voir toutes les richesses dc sa maison, n’ayant osé y venir pendant que le mari y était, à cause de sa barbe bleue, qui leur faisait peur. Les voilà aussitôt à parcourir les chambres, les cabinets, les garde-robes, toutes plus belles & plus riches les unes que les autres. Elles montèrent ensuite aux garde-meubles, où elles ne pouvaient assez admirer le nombre & la beauté de la tapisseries, des lits, des sofas, des cabinets, des guéridons, des tables & des miroirs où l'on se voyait depuis les pieds jusqu’à la tête, & dont les bordures, les unes de glace, les autres d'argent & de vermeil doré, étaient les plus belles & les plus magnifique qu’on eût jamais vues ; elles ne cessaient d’exagérer & d'envier le bonheur de leur amie, qui cependant ne se divertissait point à voir toutes ces richesses, à cause de l'impatience qu’elle avait d’aller ouvrir le cabinet de l’appartement du bas. Elle fut si pressée de sa curiosité, que, sans considérer qu’il était malhonnête de quitter sa compagnie, elle descendit par un escalier dérobé, & avec tant de précipitation, qu’elle pensa se rompre le cou deux ou trois fois. Étant arrivée à la porte du cabinet, elle s’y arrêta quelque temps, songeant à la défense que son mari lui avait faite, & considérant qu'il pourrait 148 lui arriver malheur d'avoir été désobéissante ; mais la tentation était si forte, qu'elle ne put la surmonter : elle prit donc la petite clef, & ouvrit en tremblant la porte du cabinet. D'abord elle ne vit rien, parce que les fenêtres étaient fermées. Après quelques moments, elle commença à voir que le plancher était tout couvert de sang caillé, dans lequel se miraient les corps de plusieurs femme mortes, attachées le long des murs : c'étaient toutes les femmes que la Barbe-Bleue avait épousées, & qu'il avait égorgées l’une après l'autre. Elle pensa mourir de peur, & la clef du cabinet, qu'elle venait de retirer de la serrure, lui tomba de la main. Après avoir un peu repris ses sens, elle ramassa la clef, referma la porte, & monta à sa chambre pour se remettre un peu ; mais elle n'en pouvait venir à bout, tant elle était émue. Ayant remarqué que la clef du cabinet était tachée de sang, elle l’essuya deux ou trois fois ; mais le sang ne s'en allait point : elle eut beau la laver, & même la frotter avec du sable & avec du grès, il y demeura toujour du sang, car la clef était fée, & il n’y avait pas moyen de la nettoyer tout à fait : quand on ôtait le sang d'un côté, il revenait de l'autre ... La Barbe-Bleue revint de son voyage dès soir même, & dit qu'il avait reçu des lettres en chemin, qui lui avaient appris que l'affaire pour laquelle il était parti venait d'être terminée à son avantage. Sa femme fit tout ce qu'elle put pour lui témoigner qu'elle était ravie de son prompt retour. Le lendemain, il lui demanda les clefs; & elle les lui donna, mais d'une main si tremblante, qu'il devina sans peine tout ce qui s’était passé. « D’où vient, lui dit-il, que la clef du cabinet n’est point avec les autres ? – Il faut, dit-elle, que je l’aie laissée là-haut sur ma table. – Ne manquez pas, dit la Barbe-Bleue, de me la donner tantôt. » Après plusieurs remises, il fallut apporter la clef. La Barbe-Bleue, l'ayant considérée, dit à sa femme : « Pourquoi y a-t-il du sang sur cette clef - Je n'en sais rien, répondit la pauvre femme, plus pâle que la mort. - Vous n'en savez rien? reprit la Barbe-Bleue ; je le sais bien, 149 moi. Vous avez voulu entrer dans le cabinet ? Eh bien ! madame, vous y entrerez, & irez prendre votre place auprès des dames que vous y avez vues. » Elle se jeta au pieds de son mari, en pleurant, & en lui demandant pardon avec toutes les marques d’un vrai repentir de n'avoir pas été obéissante. Elle aurait attendri un rocher, belle & affligée comme elle était ; mais la Barbe-Bleue avait un coeur plus dur qu’un rocher. « Il faut mourir, madame , lui dit-il, & tout à l'heure. – Puisqu’il faut mourir, répondit-elle en le regardant les yeux baignés de larmes, donnez-moi un peu de temps pour prier Dieu. - Je vous donne un demi-quart d’heure, reprit la Barbe –Bleue ; mais pas un moment davantage. » Lorsqu'elle fut seule, elle appela sa soeur, et lui dit : « Ma soeur Anne (car elle s'appelait ainsi), monte, je te prie, sur le haut de la tour, pour voir si mes frères ne viennent point : ils m'ont promis qu'ils me viendraient voir aujourd'hui ; &, si tu les vois, fais-leur signe de hâter. » La soeur Anne monta sur le haut de la tour et la pauvre affligée lui criait de temps en temps : « Anne, ma soeur Anne, ne vois-tu rien venir ? » Et la soeur Anne lui répondait : « Je ne vois rien que le soleil qui poudroie, & l'herbe qui verdoie. » Cependant la Barbe-Bleue, tenant un grand coutelas à sa main, criait de toute sa force : « Descends vite, ou je monterai là-haut. – Encore un moment, s’il vous plaît, lui répondit sa femme ; & aussitôt elle criait tout bas : « Anne, ma soeur Anne, ne vois-tu rien venir ? » Et la soeur Anne répondait : « Je ne vois rien que le soleil qui poudroie & l'herbe qui verdoie. » « Descends donc vite, cria la Barbe-Bleue, ou je monterai là-haut. – Je m’en vais, » répondit la femme ; & puis elle criait : « Anne, ma soeur Anne, ne vois-tu rien venir ? » - Je vois, répondit la soeur Anne, une grosse poussière qui vient de ce côté-ci...- Sont-ce donc mes frères ? – Hélas ! non, ma soeur ; je vois un troupeau de moutons...- Ne veux-tu pas descendre ? criait la Barbe -Bleue. - Encore un petit moment, » répondit sa femme; & puis elle criait : « Anne, ma soeur Anne, ne vois-tu rien venir ? – Je vois deux cavaliers qui viennent de ce 150 côté ; mais ils sont bien loin encore. - Dieu soit loué ! s’écria-t-elle un moment après, ce sont mes frères. - Je leur fais signe tant que je puis de se hâter. » La Barbe-Bleue se mit à crier si fort que toute la maison en trembla. La pauvre femme descendit, & alla se jeter à ses pieds, tout éplorée & tout échevelée. « Cela ne sert de rien, dit la Barbe-Bleue ; il faut mourir. » Puis, la prenant d'une main par les cheveux, & de l'autre levant le coutelas en l’air, il allait lui abattre la tête. La pauvre femme, se tournant vers lui, & le regardant avec des yeux mourants, le pria de lui donner un petit moment pour se recueillir. « Non, non, dit-il, recommande-toi bien à Dieu ; » & levant son bras... Dans ce moment, on heurta si fort la porte, que la Barbe-Bleue s’arrêta tout court. On ouvrit, & aussitôt on vit entrer deux cavaliers, qui, mettant l'épée à la main, coururent droit à la Barbe-Bleue ... Il reconnut que c'étaient les frères de sa femme, l'un dragon, & l'autre mousquetaire, de sorte qu'il s'enfuit aussitôt pour se sauver ; mais les deux frères le poursuivirent de si près, qu’ils l'attrapèrent avant qu'il pût gagner le perron. Ils lui passèrent leur épées au travers du corps, & le laissèrent mort. La pauvre femme était presque aussi mort que son mari, & n'avait pas la force de se lever pour embrasser ses frères. Il se trouva que la Barbe-Bleue n'avait point d'héritiers, & qu'ainsi sa femme demeura maîtresse de tous ses biens. Elle en employa une partie à marier sa jeune soeur Anne avec un jeune gentilhomme dont elle était aimée depuis longtemps ; une autre partie à acheter des charges de capitaine à ses deux frères, & le reste à se marier elle-même à un fort honnête homme, qui lui fit oublier le mauvais temps qu’elle avait passé avec la Barbe-Bleue. 151 11.2. Ilustração não gravada do Barba-Azul para Les contes de Perrault, edição de 1862 152 11.3. Crítica de Sainte-Beuve, Nouveaux lundis, dezembro de 1861. Lundi 23 décembre1861. LES CONTES DE PERRAULT DESSINS PAR GUSTAVE DORE PREFACE PAR P.-J. STAHL 145 (1). « Il ne faut pas défendre les feus de la Saint-Jean, et il ne faut pas ôter leur joie aux chersenfants," GOETHE. Je ne sais comment cela se fait, mais je ne vois autour de moi, depuis quelques jours, que Contes de Perrault; j'en ai sous les yeux de toutes les formes et de toutes les dimensions ; il en sort de terre à cette époque de l'année. J'en ai là de fort joliment illustrés, de La librairie Janet 146 avec Notice du bibliophile Jacob, avec Dissertation du baron Walckenaër; j'en ai également, qui ont, ma foi ! fort bon air, de la librairie Garnier 147; on y a ajouté les Contes de Mme d'Aulnoy : ce sont des vignettes, des gravures sur bois à chaque page et hors de page. Quand je mets en regard de ces publications élégantes mon petit volume des Contes de Perrault, édition première de 1697, avec les petites vignettes en tête de chaque conte, bien modestes et assez gentilles toutefois, et fort naïves, je suis tenté de dire : Que de luxe, que de progrès ! on ne peut aller plus loin. Mais il ne faut jamais dire cela au génie de l'homme, ni le mettre au défi ; car voici une édition nouvelle qui laisse bien loin en arrière toutes les autres ; elle est unique, elle est monumentale ; ce sont des. étrennes de roi. Chaque enfant est-il devenu un Dauphin de France? — Oui, au jour de l'an, chaque famille a le sien. Je ne sais par 145 Un volume in-folio, chez Hetzel, éditeur, rue Jacob, 18; et à la librairie de Firmin Didot, rue Jacob, 56. 146 Rue Honoré-Chevalier, 3. 147 Rue des Saints-Pères, 6, et Palais-Royal. — J'indique ces différentes éditions parce qu'il en faut à l'usage même des petites et des moyennes bourses. 153 quel bout m'y prendre, en vérité, pour louer cette merveilleuse édition qui a la palme sur toutes les autres et qui la gardera probablement. Et d'abord, l'impression due à M. Claye est fort belle. Les caractères sont ceux du XVIIe siècle ; l'oeil de l'enfant et l'oeil du vieillard s'en accommodent également bien et s'y reposent; rien d'aigu, rien de pressé et d'entassé ; il y a de l'espace, et un espace égal entre les mots, l'air circule à travers avec une sorte d'aisance, la prunelle a le temps de respirer en lisant ; en un mot, c'est un caractère ami des yeux. Je livrais l'autre jour ces pages à l'inspection du plus sévère typographe, du plus classique en ce genre que je connaisse, qui sait voir des imperfections et des énormités là où un lecteur profane glisse couramment et se déclare satisfait; il regarda longtemps en silence, et il ne put que après avoir bien tourné et retourné : « C'est bien. » — De nombreux dessins de Gustave Doré illustrent ces Contes et les renouvellent pour ceux qui les savent le mieux. L'artiste fécond, infatigable, dont M. About parlait si bien l'autre jour, qui débuta par Rabelais, qui, hier encore, nous illustrait Dante, le poète d'enfer et le théologien, et nous le commentait d'une manière frappante et intelligible aux yeux, s'est consacré cette fois aux aimables crédulités de l'enfance. C'est ici qu'il me faudrait la plume d'un Théophile Gautier pour traduire à mon tour ces dessins et les montrer à tous dans un langage aussi pittoresque que le leur; mais je ne sais nommer toutes ces choses, je n'ai pas à mon service tous les vocabulaires, et je ne puis que dire que ces dessins me semblent fort beaux, d'un tour riche et opulent, qu'ils ont un caractère grandiose qui renouvelle (je répète le mot) l'aspect de ces humbles Contes et leur rend de leur premier merveilleux antérieur à Perrault même, qu'ils se ressentent un peu du voisinage de l'Allemagne et des bords du Rhin (M. Doré n'en vient-il pas?), et qu'ils projettent sur nos contes familiers un peu de ce fantastique et de cette imagination mystérieuse qui respire dans les légendes et contes du foyer, recueillis par les frères Grimm : il y a tel de ces châteaux qui me fait l'effet de celui d'Heidelberg ou de la Wartbourg, et les forêts ressemblent à la ForêtNoire. Non que je veuille dire que l'artiste nous dépayse; seulement, en traducteur supérieur et libre, il ne se gêne pas, il ne s'astreint pas aux plates vues bornées de Champagne et de Beauce, il incline du côté de la Lorraine, et n'hésite pas à élargir et à rehausser nos horizons. Mais que M. Doré excelle donc dans ces tournants et ces profondeurs de forêts, dans ces dessous de chênes et de sapins géants qui étendent au loin leurs ombres! qu'il est habile à nous perdre dans ces creux et ces noirceurs de ravins où l'on s'enfonce à la file avec la famille du Petit-Poucet ! Il y a dans ce Petit-Poucet, coup sur. coup, trois de ces vues de forêt, qui sont des merveilles ou plutôt d'admirables vérités de nature et de paysage. Je ne sais rien, en revanche, de plus magique et de plus féeriquement éclairé que la haute avenue couverte, la nef 154 ogivale de frênes séculaires, par laquelle le jeune prince s'avance vers le perron de l'escalier, dans la Belle au bois dormant. — Le livre, enfin, est précédé d'une Introduction de M. Stahl, qui défend le merveilleux en homme d'esprit, et qui allègue, à l'appui des vieux contes, des anecdotes enfantines modernes, demi-gaies, demi-sensibles, et où il a mis une pointe de Sterne. Le tout, rassemblé dans un magnifique volume, compose donc un Perrault comme il n'y en eut jamais jusqu'ici et comme il ne s'en verra plus : je risque la prédiction. Il faut, après cela, tirer l'échelle, ou, de dépit et de désespoir, faire comme un de mes amis, grand amateur de poésies populaires, se rejeter sur les Perrault de la Bibliothèque bleue à quatre sous. Je sais une jeune enfant, fille d'un riche marchand de jouets, qui, blasée qu'elle est sur les joujoux magnifiques, ne veut pour elle que des jouets d'un sou. Le Perrault que j'annonce est capable de produire sur quelques-uns cet effet-là. Mais qui serait bien étonné maintenant de ce croissant et prodigieux succès de l'auteur des Contes ? Ce serait Boileau. Rappelons-nous ce qu'étaient en leur temps Perrault et Boileau, ces deux rivaux, ces deux représentants de deux races d'esprits si différentes, et, l'on peut dire, ces deux ennemis ; car leur réconciliation ne se fit jamais qu'à la surface et par le dehors. Ils étaient proprement antipathiques. Boileau est l'homme du goût littéraire et classique, le satirique judicieux qui s'attaque surtout aux livres et aux formes en usage au moment où il paraît, et qui se rattache à la tradition délicate et saine de la belle Antiquité. Il est excellent dans son ordre et d'un singulier à-propos ; il vient heureusement en aide à ce sentiment de justesse et de perfection qui caractérise la belle heure de Louis XIV ; il en est le plus puissant organe, le plus direct et le plus accrédité en son genre ; il est, on peut le dire, conseiller d'État dans l'ordre poétique, tant il contribue efficacement et avec suite à la beauté solide et sensée du grand siècle. Il y tint constamment la. main et se fit craindre de quiconque était tenté de s'en écarter. Il faisait la police des livres et des oeuvres de l'esprit. Les plus grands y gagnèrent. Par lui, Racine certainement, Molière lui-même, je n'ose ajouter La Fontaine, ont été et. sont devenus plus corrects, plus châtiés, plus soucieux de cette sorte de gloire où il entre de l'estime. Mais quand on a rendu à Boileau tous ces hommages et toute cette justice, il faut s'arrêter : il n'entendait bien et n'aimait que les vers ou une certaine prose régulière, ferme, élevée, dont Pascal, dans ses Provinciales, offrait le modèle. C'est beaucoup ; c'est peu pourtant, si l'on considère la diversité des génies et l'infinité des formes que peut revêtir la nature des talents. Boileau n'aimait et n'estimait guère rien en dehors des livres ; il n'avait nul goût pour les sciences, pas même la curiosité de se tenir au courant de leurs résultats généraux; le tour précieux et maniéré que Fontenelle donna à son livre de la Pluralité des Mondes, l'empêcha toujours d'en 155 reconnaître la vérité et la supériorité philosophique. S'il ne s'intéressait ni à la physique, ni à l'anatomie, il ne s'intéressait pas plus vivement aux beaux-arts ; peinture, sculpture, ne l'attiraient pas ; il n'était pas homme, comme Molière ou comme Fénelon, à causer fresque et tableaux avec Mignard, ni à juger d'une statue avec La Bruyère. La musique ne le touchait pas; il semble même qu'elle l'ait irrité (témoin ses colères contre Lulli et contre Quinault), et tout ce qui se chantait lui paraissait aisément fade, lubrique ou extravagant. Voilà bien des bornes, et je ne les ai pas toutes indiquées encore : l'industrie, les arts mécaniques et leurs progrès, lui semblaient chose tout à fait étrangère à la culture de l'homme, parce qu'elles ne tiennent pas de près à la culture de l'esprit; il était très-capable de faire des vers sur les manufactures, parce que c'étaient des vers ; mais il n'aurait pas visité une manufacture. Boileau (autre infirmité), enfin, ne sentait pas la famille, ni le rôle que tient la femme dans la société, ni celui qu'elle remplit en mère au foyer domestique et autour d'un berceau; sa sensibilité et son imagination n'avaient jamais été éveillées de ce côté. De toutes ces négations et de ces mérites, on a déjà conclu que Boileau, si bon esprit, si juste, si sensé, si agréable, si considérable, si oracle à bon droit dans sa sphère, ne prévalait et ne régnait que dans une sphère circonscrite et fermée. Très-maître et sûr de lui au centre, il devait être immanquablement débordé de toutes parts. Qu'était-ce que Charles Perrault au contraire ? qu'était-ce même en général que la famille des Perrault dont Boileau n'a cessé de railler les divers membres, et dans laquelle il trouvait, a-t-il dit, quelque chose de bizarre? Cette bizarrerie consistait à être accessibles à tous les goûts, à toutes les vues modernes, de sciences, d'art, d'inventions de toutes sortes, sans que le style littéraire parût la seule chose de prix à leurs yeux; à être les moins exclusifs des esprits, à avoir de tous les côtés des jours ouverts sur la civilisation et la société actuelle et future. C'est par où cette famille avait mérité l'antipathie instinctive et peu raisonnée de Boileau. Le savant médecin, Claude Perrault, frère du nôtre, se réveilla un matin architecte de génie, faisant naturellement des plans de colonnades, d'arcs-detriomphe ou d'observatoires, qui se trouvaient les plus beaux, les plus majestueux et les plus appropriés, et qui se faisaient accepter à première vue des connaisseurs. En même temps il inventait des machines singulières, et en exécutait de ses mains les modèles ; il s'occupait de l'histoire naturelle des animaux, et entrait l'un des premiers dans la voie de l'anatomie comparée. Enfin cet homme avait du génie, et, comme l'a dit son frère dans une Épître à Fontenelle, en parlant de celui qui a reçu du Ciel ce don indéfinissable : Éclairé par lui-même, et, sans étude, habile, Il trouve à tous les arts une route facile ; 156 Le savoir le prévient et semble lui venir Bien moins de son travail que de son souvenir. Charles Perrault, un peu moindre que son frère, avait le génie (c'est aussi le mot) tourné également du côté des beaux-arts, mais de plus et tout particulièrement du côté, des belles-lettres. Longtemps premier commis de Colbert, il prit part à tous les grands travaux de ce ministre et dut lui donner bien des idées : car c'était proprement une tête à idées. Si on lit les intéressants petits Mémoires qu'il a laissés, on en trouvera, de ces idées, neuves, qu'il sème à chaque pas, et des plus pratiques. Par exemple il voudrait qu'il n'y eût qu'une seule Coutume, un seul Code civil pour toute la France, un seul système de Poids et mesures. Il suggéra à l'Académie française, dès qu'il y fut entré, d'ouvrir ses portes (ce qu'elle ne faisait point auparavant) au public pour les séances de réception, et on lui doit l'institution de cette solennité académique, si bien dans nos moeurs et florissante encore aujourd'hui. Il fut l'auteur aussi, dans la même Compagnie, de l'élection au scrutin secret ; auparavant on ne votait point par billets, mais à haute voix et comme à l'amiable, ce qui ôtait toute liberté. Il fournit, ainsi que son frère, bien des dessins pour l'ornement des jardins de Versailles. Quand le jardin des Tuileries eut été arrangé par Le Nôtre, la première pensée de ce grand et dur Colbert, en le visitant, fut de le fermer au public : Perrault conjura l'interdiction et obtint que cette promenade restât ouverte aux bourgeois de Paris et aux enfants. « Je suis persuadé, disait-il à Colbert au milieu de la grande allée, que les jardins des Rois ne sont si grands et si spacieux, qu'afin que tous leurs enfants puissent s'y promener. » Le sourcilleux ministre ne put s'empêcher de sourire. — Retiré des affaires et vivant dans sa maison du faubourg SaintJacques, près des collèges, pour y mieux vaquer à l'éducation de ses enfants, Perrault fit un jour le poëme du Siècle de Louis le Grand, et il le lut dans une séance publique de l'Académie, assemblée exprès pour célébrer la convalescence du roi après la fameuse opération (27 janvier 1687). Ce n'était point par le talent des vers que brillait Perrault, quoiqu'il en fît parfois d'agréables et de faciles ; mais le grand nombre étaient prosaïques et flasques, et d'une facture antérieure à celle qu'avait réglée et fixée Despréaux. Celui-ci, présent à la séance, ne fut point charmé du tour et fut choqué du fond; il se scandalisa des éloges que Perrault décernait à. Son siècle au préjudice' de l'Antiquité ; il éclata avec colère en se levant, et depuis lors il ne perdit aucune occasion de piquer d'épigrammes celui qu'il avait surpris en flagrant délit de poésie médiocre, mais qui ne lui était inférieur que par cet endroit. Perrault, pour justifier son sentiment, écrivit alors son Parallèle des Anciens et des Modernes, en quatre volumes, et la guerre fut ouvertement déclarée. Sur tous les points de la 157 querelle, Perrault et Fontenelle qui lui vint promptement en aide me paraissent avoir raison, sur tous, excepté un seul, l'art grec, la poésie et peut-être l'éloquence. J'accepte la comparaison qu'ils font de l'humanité avec un seul homme, qui a eu son enfance, son adolescence, sa jeunesse, et qui est maintenant dans sa maturité. Eh bien ! on n'a pas besoin d'avoir cinquante ans pour jouer en perfection de la flûte et pour s'accompagner de la voix sur la harpe ou la lyre ; à quinze ans, on fait cela bien mieux et plus purement, surtout quand on est de la plus favorisée et de la plus fine des races humaines. Perrault et Fontenelle, par dégoût et aversion de toute superstition pédantesque, veulent qu'en jugeant les Anciens on ne conserve aucun respect pour leurs grands noms, aucune indulgence pour leurs fautes, qu'on les traite en un mot sur le même pied que les Modernes. Ils ont, vis-à-vis d'eux, comme un besoin de revanche. Je leur accorde beaucoup sur tout le reste, je ne puis leur passer ce sentiment-là. Ils sont trop pressés de trouver une impertinence chez les Anciens, et de la dénoncer; quand on est si pressé de le faire, on en trouve toujours l'occasion. C'est là une mauvaise disposition morale pour juger des illustres Anciens. La vraie et juste disposition à leur égard est un premier fonds de respect, et tout au moins beaucoup de sérieux, de circonspection, d'attention, une patiente et longue étude de la société, de la langue, un grand compte à tenir des jugements des Anciens les uns sur les autres, ce qui nous est un avertissement de ne pas aller à l'étourdie, de ne pas procéder à leur égard avec un esprit tout neuf en partant de nos idées d'aujourd'hui. Là aussi, « dans cet ordre littéraire comme dans l'ordre religieux, a dit un pieux et savant Anglais 148, un peu de foi et beaucoup d'humilité au point de départ sont souvent récompensés de la grâce et du don qui fait aimer, c'est-à-dire comprendre les belles choses. » Je n'irai pourtant pas jusqu'à dire, avec un autre critique de la même nation, « qu'il faut feindre le goût que l'on n'a pas jusqu'à ce que ce goût vienne, et que la fiction prolongée finit par devenir une réalité. » Ce serait donner de gaîté de coeur dans la superstition et l'idolâtrie. Mais exiger du soin, de l'application, du recueillement, avant qu'on en vienne à décider sur les oeuvres anciennes en faveur desquelles il y a une admiration traditionnelle, ce n'est que justice. Perrault ne le sentait pas. Très-inférieur par cet endroit à Boileau et superficiel de goût sur un point, bien mieux que son antagoniste d'ailleurs, il comprenait que les Modernes ont aussi leur poésie, leur source d'inspiration propre, qu'ils l'ont dans le christianisme plutôt que 148 Le docteur Arnolds. 158 dans ces vieilles images rapiécées de Mars, de Bellone au front d'airain, du Temps qui s'enfuit une horloge à la main, etc. ; mais, victorieux en théorie, il reperdait à l'instant tout l'avantage dès qu'il prétendait mettre en avant comme preuve son poëme de Saint Paulin. Il réussit mieux à servir la cause des Modernes, en montrant par ses Contes naïfs, qu'eux aussi ils possèdent un merveilleux qui n'a rien à envier à celui des Anciens. La manière dont il eut l'idée de recueillir ces Contes achève de nous faire voir à l'oeuvre cette aimable, facile et fertile nature. Occupé, avons-nous dit, de l'éducation de ses enfants, il les voulut amuser, et, pendant quelque hiver, il s'avisa de conter et de faire raconter devant eux les vieux récits qui couraient le monde et que, de temps immémorial, les nourrices s'étaient transmis. Il ne fit point comme les frères Grimm ont fait de nos jours en Allemagne, il ne prit point le bâton de voyageur et ne s'en alla point de chaumière en chaumière, de château en château, pour ramasser tout ce qui restait et flottait encore de poésie : ce n'était point la mode de tant courir au XVIIe siècle. Perrault était déjà vieux, il était bourgeois de Paris; il laissa donc les contes venir à lui dans les nombreuses veillées d'hiver, au coin du feu de sa maison du faubourg. Les voisins, on peut le croire, réunis à son appel, se cotisèrent ; chacun des assistants paya son écot, chacun se ressouvint de ce qui avait charmé et bercé son enfance. Mais entre tout ce qui défilait devant lui de ces contes de la Mère l'Oie, si mêlés et faits presque indifféremment pour tenir éveillé l'auditoire ou pour l'endormir, il eut le bon goût de choisir et le talent de rédiger avec simplicité, ingénuité. Cela aujourd'hui fait sa gloire. Une Fée, à son tour, l'a touché; il a eu un don. Qu'on ne vienne plus tant parler de grandes oeuvres, de productions solennelles : le bon Perrault, pour avoir pris la plume et avoir écrit couramment sous la dictée de tous, et comme s'il eût été son jeune fils, est devenu ce que Boileau aspirait le plus à être, - immortel! Était-ce donc la peine de se tant tourmenter et de se tant fâcher, Monsieur Despréaux? Les huit premiers Contes de Perrault, et qu'on peut appeler autant de petits chefsd'oeuvre, sont (je les donne dans leur ordre primitif qu'on a interverti, je ne sais pourquoi, dans les éditions modernes), la Belle au bois dormant, le Petit Chaperon rouge, la Barbe bleue, le Maître Chat ou le Chat botté, les Fées, Cendrillon ou la petite pantoufle de verre, Riquet à la houppe, et le Petit-Poucet couronnant le tout. Peau d'âne, mise en vers d'abord, puis retraduite en prose, n'en fait point partie, et mon admiration, je l'avoue, la laisse un peu en dehors. La critique s'est exercée depuis un certain nombre d'années sur ces sujets, et l'on s'est adressé plusieurs questions. 159 Ces sujets traités par Perrault, et dont il a fixé la rédaction française, se trouvent-ils ailleurs dans d'autres livres, dans d'autres recueils que le sien, et dans des recueils antérieurement imprimés ? Un homme qu'il est bon d'interroger quand on veut savoir à quoi s'en tenir, un savant, qui n'est pas pourtant de l'Académie des Inscriptions, mais qui me paraît composer à lui seul toute une Académie d'érudit M. Édélestand du Méril répond à la question en des termes que je résumerai ainsi : « Il est aujourd'hui certain que , sauf pour Riquet à la houppe, dont on ne connaît pas encore l'analogue, Perrault, dans tous ses autres Contes, a recueilli avec plus ou moins d'exactitude des traditions orales, qui se retrouvent non-seulement chez nos voisins les Italiens et les Allemands, mais en Scandinavie et dans les montagnes d'Ecosse. Il y a plus : les Contes, bien moins populaires en apparence, de Mme d'Aulnoy et de Mme de Reaumont, figurent aussi dans les traditions des autres peuples, surtout dans le Pentamerone, recueil de contes publié et réimprimé plusieurs fois en Italie au XVIIe siècle, mais dans un dialecte (le dialecte napolitain) que certainement ces dames n'auraient pas compris. Et il n'est guère probable que Perrault lui-même connût ce recueil. » Ainsi donc, il est bien entendu que ce n'est nullement d'invention qu'il s'agit avec Perrault ; il n'a fait qu'écouter et reproduire a sa manière ce qui courait avant lui ; mais il paraît bien certain aussi, et cela est satisfaisant à penser, que ce n'est point dans des livres qu'il a puisé l'idée de ses Contes de Fées ; il les a pris dans le grand réservoir commun, et là d'où ils lui arrivaient avec toute leur fraîcheur de naïveté, je veux dire à même de la tradition orale, sur les lèvres parlantes des nourrices et des mères. Il a bu à la source dans le creux de sa main. C'est tout ce que nous demandons. Ses Contes (on le reconnaît tout d'abord) ne sont pas de ceux qui sentent en rien l'oeuvre individuelle. Ils sont d'une tout autre étoffe, d'une tout autre provenance que tant de contes imaginés et fabriqués depuis, à l'usage des petits êtres qu'on veut former, instruire, éduquer, édifier même ou amuser de propos délibéré : Contes moraux, Contes philanthropiques et. chrétiens, Contes humoristiques, etc. Mme Quizot, Rouilly, le chanoine Schmid, Töpffer, tous ces noms dont quelquesuns sont si estimables, jurent et détonent, prononcés à côté du sien; car ses Contes à lui, ce sont des contes de tout le monde : Perrault n'a été que le secrétaire. Mais en même temps, il n'a pas été un secrétaire comme tout autre l'eût été. Dans sa rédaction juste et sobre, encore naïve et ingénue, il a atteint à la perfection du conte pour la race française : 160 Il faut, même en chansons, du bon sens et de l'art. Perrault, à sa manière, observe le précepte; il est de l'école de Boileau (sans que l'un ni l'autre ne s'en doute) dans le genre du conte. « La vérité avec lui se continue, même dans le merveilleux. » Il a de ces menus détails qui rendent tout d'un coup vraisemblable une chose impossible. Ainsi les souris qui sont changées en chevaux, dans Cendrillon, gardent à leur robe, sous leur forme nouvelle, « un beau gris de souris pommelé. » Le cocher, qui était précédemment un gros rat, garde sa moustache, « une des plus belles moustaches qu'on ait jamais vues. » Il y a des restes de bon sens à tout cela. Chez un Allemand, le conte de fées serait plus fantastique, plus féerique de tout point, non corrigé par la raison. Chez un Slave, ce serait, j'imagine, de plus en plus fort. Aussi le poète Mickiewiçz a-t-il fait une querelle non pas d'Allemand, mais de Slave à Perrault, en l'accusant d'avoir trop rationalisé le conte. Mais Perrault, tout en contant pour les enfants, sait bien que ces enfants seront demain ou après demain des rationalistes ; il est du pays et du siècle de Descartes. Descartes (c'est tout naturel) n'estimait pas les contes de la Mère l'Oie : il n'est en rien pour la tradition. S'il avait lu Perrault, il aurait peut-être pardonné. La mesure de Perrault est bien française. Ses Contes ne sont pas à l'usage d'imaginations effrénées. C'est assez que, dans sa rédaction parfaite (je ne parle pas des moralités en vers qu'il ajoute), il ait conservé le cachet de la littérature populaire, la bonhomie. Chaque nation d'ailleurs, même en matière de fées, a sa note et sa gamme. D'où nous vient-il pourtant ce fonds commun de contes merveilleux, d'ogres, de géants, de Relies au bois dormant, de Petits-Poucets aux bottes de sept lieues, tous ces récits d'un attrait si vif et d'une terreur charmante aux approches du sommeil, qui se répètent et se balbutient avec tant de variantes, des confins de l'Asie aux extrémités du Nord et du Midi de l'Europe? Il est permis là-dessus de rêver plus qu'il n'est possible de répondre. Quand les aînés de la race humaine partirent en essaims du Mont-Mérou, cette primitive patrie, en emportaient-ils déjà quelque chose? — Sont-ce, au contraire, les résidus combinés des religions, des superstitions diverses, celtiques, païennes, germaniques, qui, rejetées et refoulées au sein des campagnes, y ont fermenté et ont produit, à une certaine heure de printemps sacré, cette flore populaire universelle, comme, au fond des mers où tout s'accumule et se précipite, fermente déjà peut-être ce qui éclora un jour? Quoi qu'il en soit et de quelque part qu'elle vienne, qu'elle ne périsse jamais cette fleur d'imagination première, cette image de l'enfance du monde, recommençant et se réfléchissant dans l'enfance de chacun! On a comparé la vie de l'humanité depuis l'origine à celle d'un seul homme; tâchons que la vie d'un seul ressemble à son tour à celle de l'humanité. Il y a des analogies naturelles et des harmonies qu'il faut savoir respecter. De même que, dans le sein de 161 la mère, à l'état d'embryon, l'enfant parcourt rapidement, avant de naître, tous les degrés de l'organisation animale, de même, éclos et né, il tend à parcourir en abrégé les premiers âges de l'histoire et d'avant l'histoire. Observons-le bien : au sortir dés bras de sa nourrice, à deux ou trois ans, il répète tous les mots, il gazouille tous les sons, il inventerait les langues, si elles n'étaient déjà inventées. Il me représente cet âge où l'humanité encore nouvelle ressemblait à un enfant de trois ans, et où Ce n'était, par toutes les peuplades errantes, qu'un immense gazouillis universel. Plus tard, vers cinq ans, avec son imagination crédule et féconde, il inventerait les légendes, les superstitions, les fées, les démons, toutes les fabulosités païennes, si elles n'étaient dès longtemps inventées et épuisées. Qu'il en reste au moins une trace en lui. Qu'il ne sache pas seulement, qu'il sente par où ses aïeux, les premiers hommes, ont passé. On ne connaît bien, a-t-on dit, que ce qu'on aime : on ne comprend bien que ce qu'on a été. Qu'il ait donc été, lui aussi, l'homme naturel et naïf, l'homme crédule et enfant. Qu'il y ait au fond de son imagination un horizon d'or, l'âge féerique, homérique, légendaire, appelez-le comme vous le voudrez, — un âge d'une poésie naturelle et vivante. Ce que M. Renan disait, l'autre jour, de ce brave et digne baron d'Eckstein, lequel semblait se ressouvenir confusément des origines scythiques et alpestres de notre race, qu'on le puisse dire, et plus agréablement, de l'enfance; que plus tard l'homme, le jeune homme ait toujours en lui, par un coin de son passé, une réminiscence de l'âge d'or et des premiers printemps de l'imagination humaine, dût-il ensuite devenir positif, polytechnique, encyclopédique, dût-il être élevé comme le voulait Arago, ou plutôt et mieux comme le voulait Rabelais. Commençons l'enfance par quelques heures d'abandon et de simple causerie enfantine ; commençons la semaine par un dimanche. Aristote et Descartes, avec leur méthode, viendront assez tôt ; assez tôt commencera la critique : qu'elle ne saisisse pas l'enfant au sortir du berceau. Je ne demande pas, remarquez-le bien, qu'on opprime l'enfance de contes prolongés et de terreurs superstitieuses : de tendres esprits trop frappés d'abord peuvent rester gravés à jamais, et on a peine souvent à se relever d'un premier pli. Il ne s'agit point d'aller refaire en notre siècle les enfants de la légende dorée et du moyen âge. On en est loin. Le raisonner tristement s'accrédite, disait Voltaire en son temps : pour moi, je ne m'en attriste pas plus qu'il ne faut, pas plus que ne s'en attristait, je le pense, Voltaire lui-même. Mais ne commençons pas non plus par désabuser systématiquement et par dessécher toute imagination naissante et croyante. La mesure de Perrault, encore une fois, me paraît la bonne. C'est celle de cet enfant qui dit à sa mère : « N'est-ce pas que ce n'est pas. vrai ? mais conte-le-moi toujours. » C'est celle de cet autre enfant qui attend avec impatience et avec un peu de crainte ce qui descend par la cheminée dans la nuit de Saint-Nicolas, ou ce qu'on trouve dans ses petits souliers le matin de Noël : « 162 Je sais bien que c'est maman qui le met, mais c'est égal. » Il se vante, le petit esprit fort! il n'est pas bien sûr que ce soit sa maman. Son imagination et sa raison se combattent; c'est l'heure du crépuscule qui finit et de l'aube blanchissante.