UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
SHIRLEI NEVES DOS SANTOS
A DISCURSIVIDADE NO CADERNO “PONTOS DE VISTA” DA OLIMPÍADA
DA LÍNGUA PORTUGUESA ESCREVENDO O FUTURO
CUIABÁ-MT
2011
SHIRLEI NEVES DOS SANTOS
A DISCURSIVIDADE NO CADERNO “PONTOS DE VISTA” DA OLIMPÍADA
DA LÍNGUA PORTUGUESA ESCREVENDO O FUTURO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de
Mato Grosso como exigência parcial para a obtenção do
título de mestre em Estudos da Linguagem, sob
orientação da professora Dra. Simone de Jesus Padilha.
CUIABÁ-MT
2011
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte
S237d Santos, Shirlei Neves dos.
A discursividade no caderno ―Ponto de Vista‖, da olimpíada da língua
portuguesa escrevendo o futuro, 2011.
ix, 206f. ; il. 30 cm (Incluem tabelas).
Orientadora: Simone de Jesus Padilha.
Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Mato
Grosso. Instituto de Linguagem. Programa de Pós-Graduação em Estudos
de Linguagem, 2010.
Bibliografia: f. 197-206
Catalogação na1. fonte:
Maurício2. S.
de Oliveirade- gêneros.
Bibliotecário
CRB/1
1860
Discursividade.
Escolarização
3. Material
didático
Catalogação: Maurício Silva de Oliveira – Bibliotecário CRB/1 1860
I. Título.
CDU 811.134.3‘42
Dedico à minha família, pelo apoio, pela confiança e pela
torcida. Especialmente aos meus pais, dona Cida e seu Beto,
pelas orações, ao meu esposo Ernesto e aos meus filhos
Felipe e Pedro, por compreenderem as ausências e os pedidos
de silêncios. Que Deus nos mantenha unidos sempre.
AGRADECIMENTOS
Primeiro agradeço a Deus por não ter cessado o diálogo comigo e por, nos
momentos mais difíceis, sentir sempre Sua presença;
À professora Dra. Simone de Jesus Padilha, pela orientação cuidadosa, pela
confiança e respeito por meu trabalho;
À professora Dra. Roxane Helena Rojo (Unicamp) pelas contribuições teóricas e
aplicadas valiosas no exame de qualificação e por me fazer acreditar na validade do
meu trabalho;
À professora Dra. Maria Rosa Petroni (UFMT) pela leitura atenciosa e minuciosa que
muito contribuiu para tornar o texto deste trabalho mais acessível;
Aos professores do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem pelas
contribuições teóricas — Ana Antonia, Sérgio Flores, Solange Papa, Simone, Maria
Rosa, Maria Inês, Cláudia, Elias, Danie;
Aos colegas do Grupo de Estudo Rebak — Lezinete, Jucelina, Alba, Rute,
Elizangela, Eliana, Diego, Viviane, Leila, Anderson, Tiana, por aprendermos juntos;
Aos amigos da Pós-Graduação: Ely, Carmen Toniazzo, Terezinha, Marcilene,
Margareth, Ariadne, Carmen Zirr, Sandra, Itamar, Mônica, Andreia, Gleice pelas
amizades que ficaram;
Aos meus colegas de trabalho da Escola Professor Fernando Leite de Campos, pela
compreensão, pela força e incentivo, especialmente a diretora Maria Alice, a
secretária Vanilze e a professora Vania;
Às minhas amigas Rute, Lezinete e Jucelina pelas angústias, mas também pelos
risos compartilhados.
Aos aqui não nomeados, mas que contribuíram, de alguma maneira, para a
construção deste trabalho, muito obrigada!
RESUMO
Nesta pesquisa, refletimos sobre a escolarização do gênero artigo de opinião contida
no projeto de ensino do Caderno Pontos de Vista (doravante PV) do Programa
Olimpíada da Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF), uma parceria
público-privada entre o MEC e a Fundação Itaú Social, sob coordenação técnica da
ONG paulista Cenpec. Esse material possui dupla destinação: propõe o ensino de
produção textual do artigo de opinião para alunos de escolas públicas brasileiras,
nas 2ª e 3ª séries do Ensino Médio, e formação do professor em serviço na
perspectiva dos gêneros textuais. Trata-se de um material didático que adquire cada
vez mais espaço nas práticas escolares e que estão pouco analisados pela
academia e não são avaliados institucionalmente. Disso decorre a pertinência deste
trabalho. Para a realização da pesquisa, selecionamos os Cadernos PV das edições
do ano de 2008 e de 2010 a fim de analisarmos qualitativamente a base teóricometodológica assumida na modelização didática do gênero artigo de opinião e como
essa modelização trata a discursividade. Isso porque, nossa preocupação era
investigar as possibilidades de letramento em favor da formação cidadã dos alunos
das escolas públicas brasileiras, fomentada por materiais que sustentam o discurso
da inovação teórico-metodológica e didática. Ancoramos nossas reflexões e análises
na teoria enunciativo-discursiva de abordagem sócio-histórico de Bakhtin (19521953) e na teoria de ensino-aprendizagem de Vygotsky (1934). No levantamento
teórico-metodológico, verificamos que, apesar do emprego de algumas noções da
abordagem discursiva dos gêneros, o projeto de ensino, em análise, estando
ancorado no modelo de sequência didática da Escola de Genebra, que emprega a
noção de gênero textual, privilegia também essa abordagem. Pudemos verificar
ainda a mobilização de teorias de perspectiva retórica e tipologias textuais para dar
conta da estrutura e composição da argumentação. A análise da modelização
didática demonstrou que a base teórico-metodológica assumida permitiu privilegiar
os aspectos de funcionalidade, de organização ou composição retórica textual do
artigo de opinião, apresentando tratamento limitado para os aspectos da
discursividade e dos elementos ideológico-valorativos. Interpretamos tal limitação
como decorrente, em parte, de o projeto de ensino estar sustentado em uma
proposta didática que privilegia a formação do produtor proficiente em detrimento do
leitor crítico. Tal privilégio, no contexto de ensino brasileiro, pode acarretar certa
restrição de enfoque tendo em vista o baixo grau de letramento, não só da
população adulta, mas também dos alunos egressos do Ensino Fundamental e
Médio. A nosso ver, trata-se de um aspecto a ser pensado num projeto de ensino de
língua materna que objetiva favorecer a formação cidadã dos alunos.
Palavras-chave: Discursividade, escolarização de gêneros, material didático.
ABSTRACT
This study it is a reflexive work on the use of ‗opinion article‘ as a teaching gender.
The corpus of the current analysis was taken from a brochure named Caderno
Pontos de Vista (it will be referred in this paper as ‗PV‘), which is part of the teaching
material of an educational programme called Olimpíada da Língua Portuguesa
Escrevendo o Futuro – OLPEF (a national project which encourages students to
develop their writing skills in their mother tongue as well as to express their ideas of
how the future should be). This educational programme is a private-public initiative
between the Brazilian Ministry of Education (MEC) and Itáu Foundation (a foundation
supported by a private bank) which is under the coordination of Cenpec - a NGO
located in São Paulo. The material analysed has two main goals. Firstly, it has the
purpose of enhancing both the teaching and the production of opinion articles among
the students from year 2 and 3 of Brazilian State Secondary schools. Secondly, it
aims to contribute to the ongoing education of teachers in service, concerning the
teaching of text genders. The pedagogical material in question has been increasingly
used in State schools, however, it has not been much analysed by scholars or
assessed by educational institutions and that is the main contribution of the present
study. For this study, we selected the ‗PV‘ brochures issued in 2008 and 2010 in
order to do a qualitative analysis of the theoretical and methodological assumptions
used as a rationale for the teaching of opinion article as a gender as well as to better
understand how it deals with discursive aspects of the gender. One of our main
concerns regarding the current analysis has to do with the possibilities of literacy
which enable students‘ critical development as citizens in the Brazilian state schools
– a discourse which is largely disseminated nowadays regarding the promotion of
materials which claim to be theoretically and methodologically innovative. This study
was done under the lights of the social-historical discursive approach by Bakhtin
(1952-1953) and the theories of teaching-learning by Vygotsky (1934). In the
theoretical and methodological part of the study, it was verified that although some
uses of discursive approach for genders were applied to build the material, the
syllabus and the teaching sequences, which are based on the School of Geneva
model, also privileged such approach. We could also identify the presence of
theories with rhetorical and text typological perspectives regarding structural and
argumentative aspects. The study of the pedagogical model revealed that the
theoretical and methodological assumptions privileged some functional, structural
and rhetorical composition of the gender ‗opinion article‘. However, some features
related to discursive and ideological aspects were thought to be limited. Such
limitation was seen partly as a consequence of the Project being based on a teaching
approach which aims at the formation of a proficient text producer rather than a
critical reader. An approach like this, in a Brazilian educational context, may cause
some restraints if we take into account the low level of literacy, not only of the adult
population but also of the students who have just left the Secondary school. In our
point of view, that is an aspect that should be considered in an educational project
which aims to promote student‘s critical citizenship through the proficiency of the
mother tongue.
Key words: Discursive approach, teaching of genders, teaching material.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 1
CAPÍTULO 1 .......................................................................................................................... 10
A teoria da linguagem do Círculo de Mikhail Bakhtin: uma perspectiva sóciohistórica e ideológica ..................................................................................................................... 10
1.1 Gêneros textuais e gêneros discursivos ............................................................. 12
1.2 Gêneros textuais: uma apropriação textualizante ............................................. 15
1.3 O Círculo de Bakhtin: concepção de linguagem ................................................ 22
1.3.1 Linguagem e ideologia: os signos ideológicos ................................................ 24
1.3.2 O dialogismo: princípio constitutivo da linguagem ......................................... 28
1.3.3 Os gêneros discursivos na perspectiva do Círculo de Bakhtin .................. 33
1.3.4 O conceito de enunciado concreto ................................................................... 39
1.3.5 As esferas de atividade humana ....................................................................... 42
1.3.6 Gêneros discursivos e a constituição arquitetônica ....................................... 45
CAPÍTULO 2 .......................................................................................................................... 49
Mudanças pedagógicas e didáticas no ensino-aprendizagem de língua materna:
Vygotsky e a Escola de Genebra................................................................................................. 49
2.1 Vygotsky e o ensino-aprendizagem de língua materna: a ZPD ...................... 49
2.2 Gênero: mega-instrumento de ensino-aprendizagem de Língua Materna .... 55
2.3 A transposição didática dos gêneros ................................................................... 57
2.4 Agrupamento de gêneros: a proposta curricular da Equipe de Genebra ...... 60
2.5 Gênero: letramento e capacidades de produção escrita .................................. 70
2.6 Sequências didáticas: novos modos de fazer .................................................... 74
CAPÍTULO 3 .......................................................................................................................... 79
Metodologia de pesquisa: em busca dos dados........................................................... 79
3.1 Perspectivas sócio-históricas nas Ciências Humanas: a teoria enunciativodiscursiva de Bakhtin ................................................................................................................. 79
3.2 Metodologia de coleta de dados ........................................................................... 85
3.2.1 Critérios de escolha do Programa OLPEF e do Caderno do Professor
―Pontos de Vista‖ ....................................................................................................................... 86
3.2.2 O primeiro conjunto de dados: os Cadernos do Professor ........................... 90
3.2.3 O segundo conjunto de dados: os cursos de formação online e presencial
....................................................................................................................................................... 91
3.2.3.1 Formação online e presencial: a coleta e a mudança de percursos ........ 91
3.2.4 O terceiro conjunto de dados: a aplicação do Caderno ................................ 94
3.2.5 Recortes dos três conjuntos de dados coletados ........................................... 96
3.3 Os corpora de nossa pesquisa ............................................................................. 97
3.4 Metodologia de análise de dados ......................................................................... 98
CAPÍTULO 4 ........................................................................................................................ 101
Análise de dados 1: O quadro teórico organizador dos Cadernos ―Pontos de Vista‖
da OLPEF ...................................................................................................................................... 101
4.1 A base teórico-metodológica do Programa OLPEF ........................................ 102
4.2 Cadernos ―Pontos de Vista‖ 2008-2010: comparando a organização geral 104
4.3 Caderno PV: comparando as propostas teóricas nas 1ª e 2ª edições ......... 114
CAPÍTULO 5 ........................................................................................................................ 136
Análise de dados 2: a didatização do gênero artigo de opinião na proposta do
Caderno ―Pontos de Vista‖ da OLPEF ...................................................................................... 136
5.1 Cadernos PV: os tipos de atividades com o artigo de opinião ...................... 137
5.2 Cadernos PV: as atividades com o artigo de opinião ............................................... 144
5.3 As atividades da base de produção do artigo de opinião ............................... 144
5.4 As atividades de elaboração temática do artigo de opinião ........................... 157
5.5 As atividades com as características principais do artigo de opinião ........... 172
CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 188
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 197
1
INTRODUÇÃO
A língua portuguesa como disciplina curricular tem sido, desde o final do
século XX, foco de reflexões e de propostas de mudanças em seus eixos de ensinoaprendizagem. Primeiro por parte da Academia, especialmente pelos estudos em
Linguística Aplicada e áreas afins, que foram, em um segundo momento,
considerados, em termos, por algumas ações governamentais, como é o caso dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante, PCN) (BRASIL, 1997, 1998, 1999,
2002).
Tais reflexões e propostas, denominadas como discursos da mudança,
constituem-se na negação e na ruptura de teorias, metodologias e práticas de um
modelo anterior fundado em toda uma tradição de estudos linguísticos, sustentada
no método estrutural e na eleição do código linguístico como objeto de estudos na
área de Linguística, inaugurado por Saussure1.
Os estudos linguísticos avançam no sentido de deslocamento do foco da
estrutura da língua em si para a consideração das condições de produção dos
discursos, que implicam outros elementos não estritamente linguísticos, como os
aspectos sócio-históricos, culturais e ideológicos, cujas perspectivas na linguagem e
no ensino-aprendizagem passam a fundamentar, pelo menos em parte, os PCN de
Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental e Médio.
No bojo desses discursos da mudança, as ideias acerca da linguagem do
Círculo de Bakhtin passam a influenciar profundamente os estudos nessa área e,
posteriormente, a fundamentar, em parte, o ensino-aprendizagem de linguagem no
Brasil e em outros lugares no mundo, tomando, principalmente, como base sua
teoria dos gêneros discursivos. A Academia retoma, mais ou menos na mesma
Saussure, com sua divisão da linguagem em língua/fala, constitui um marco inaugural importante nos estudos linguísticos,
pois foi a partir dele que se estabeleceu um objeto de estudo para a Linguística e possibilitou descrições e análises em
níveis linguísticos variados, permitindo às gerações posteriores de estudiosos da linguagem preencher e, de certa forma,
superar a proposta teórico-metodológica inaugural do linguista genebrino. No Brasil, a ruptura com esse pensamento já se
inicia a partir dos anos 1970, porque alguns linguistas começam a perceber as limitações de análise de teorias que se
serviam do método dicotômico saussureano nos estudos da linguagem em uso (BARBOSA, 2001, p. 09).
1
2
época, a teoria de ensino-aprendizagem de Vygotsky, a qual passa a embasar
também as orientações metodológicas de ensino-aprendizagem de linguagem.
Nessa perspectiva, ao se tomar como base para o ensino-aprendizagem de
linguagem teorias que têm como pedra angular explicações que se fundam na
consideração das condições de produção no seu sentido sociológico, histórico e
ideológico, verifica-se uma mudança de paradigma, de objeto e de método. Nessa
mudança de paradigma, o ensino de língua materna desloca-se do domínio do
código para o domínio do uso (de preferência público); da unidade da língua como
objeto para a unidade do discurso (gêneros); da abordagem prescritivo-transmissiva
para a abordagem construtivo-interacional.
Tais mudanças teórico-metodológicas e suas respectivas entradas nos
currículos de ensino não são resultados aleatórios da evolução da área de
conhecimento na qual se inserem. Soares (1983, p. 73), partindo de uma análise de
perspectiva histórico-social no tratamento das questões entre linguagem e escola,
especificamente aquela voltada para as classes populares, para elas ou contra elas,
aponta como a relação entre educação e sociedade influencia por dentro as
concepções teóricas e pedagógicas que embasam as práticas de ensinoaprendizagem, especialmente de língua portuguesa2.
Soares (1983) defende que a educação escolar não se posiciona, nessa
trama social, apenas com a função redentora ou reprodutora das relações
estabelecidas pelas classes privilegiadas, mas ―os antagonismos e contradições
levam-na a ser, apesar de determinada pela estrutura social em que se insere, um
espaço de atuação de forças progressistas‖, que forjam movimentos de
transformação social pela superação das desigualdades sociais. A instituição
escolar, como parte inerente da sociedade, ―reflete, mas também refrata essa
dinâmica do corpo social3‖.
Seriam essas as razões pelas quais as camadas populares reivindicaram o
direito de acesso à escola, no contexto brasileiro a partir de meados do século XX, e
reivindicam no presente o direito de nela permanecer e usufruir de educação com
A autora afirma que, na relação entre educação escolar e sociedade, a linguagem constitui-se a pedra angular, uma vez
que é ela ―o principal instrumento de ensino e aprendizagem, na escola, em todas as matérias e em todas as atividades‖ e,
por isso, ―a compreensão dessas relações e de suas implicações para a comunicação pedagógica é imprescindível‖
(SOARES, 1983, p. 76).
2
Tomamos como base para essa afirmação e empréstimo para a construção dessa expressão o olhar que
Bakhtin/Volochinov (2009[1929], 1926) e Bakhtin (2003[1952-1953] têm sobre as relações sociais.
3
3
qualidade. Isso porque as classes sociais populares ―reconhecem que os
conhecimentos e habilidades de que as classes privilegiadas mantêm o monopólio
são indispensáveis como instrumentos de luta contra as desigualdades econômicas
e sociais‖ (SOARES, 1983, p. 73).
Tomando tais considerações, percebemos que o papel da educação escolar e
seus objetivos não são resultados apenas de uma escolha técnica dos
conhecimentos e habilidades culturalmente construídos pela humanidade, mas
também uma opção política. Por isso, a escola precisa estar consciente de seu
papel político na luta contra as desigualdades sociais e econômicas, a fim de
―proporcionar às camadas populares, através de um ensino eficiente, os
instrumentos que lhes permitam conquistar mais amplas condições de participação
cultural e política e de reivindicação social‖ (idem, ibidem).
Concordamos com Soares que a função da educação escolar e, decorrente
dela, sua proposta pedagógica deve ser de transformação das relações sociais
assimétricas estabelecidas no interior de um corpo social e não de adaptação às ou
reprodução dessas relações. Além disso, os projetos educacionais — discursos
institucionais que objetivam o fomento e a promoção dos saberes historicamente
construídos pelos grupos sociais — devem ser analisados à luz de perspectivas
socioculturais, políticas e ideológicas uma vez que estes aspectos podem desvelar
apreciações de valor sobre o que se define como objeto de ensino e o porquê de
sua escolha. Sendo assim, cada época elege seus objetos privilegiados de ensinoaprendizagem escolar. O português, por exemplo, não foi considerado objeto de
ensino-aprendizagem do currículo da escola brasileira até o século XVIII. Isso
porque as apreciações valorativas estavam voltadas para o latim (objeto
culturalmente valorizado pelas classes privilegiadas) e para a língua geral (objeto
efetivo de uso nas relações cotidianas)4.
Houaiss (apud SOARES, 2004) afirma que a língua portuguesa, apesar de
oficial, não era, enquanto língua falada, a mais importante, restringindo seu uso aos
centros urbanos emergentes. Esse seria um dos motivos por que ela funcionava no
ensino apenas como instrumento de alfabetização nas chamadas escolas menores.
A língua geral, condensação de várias línguas indígenas faladas no território brasileiro, provenientes, na maior parte, do
tupi, era a que prevalecia nas trocas sociais cotidianas entre indígenas e portugueses; entre os indígenas entre si, falantes
de diferentes línguas; entre indígenas e religiosos, na evangelização e na catequese; já o latim era a língua em que se
fundamentavam o ensino secundário e superior no período em que o ensino no Brasil era dominado pelos padres jesuítas,
que compreende o séc. XVI e metade do séc. XVIII (PESSANHA et al. 2003).
4
4
Outro motivo estava ligado a questões teóricas. Soares afirma que, até o séc. XVIII,
a língua portuguesa ainda não tinha se constituído em ―área de conhecimento em
condições de gerar uma disciplina curricular‖ 5 (SOARES, 2004, p. 159).
Essa situação começa a mudar com a imposição da língua portuguesa como
língua de uso no Brasil e sua inclusão e valorização na escola através da Reforma
de Estudos implantada em Portugal e suas colônias pelo Marquês de Pombal, nos
anos 50, do séc. XVIII.
No sistema de ensino jesuítico, os objetos de ensino na área de linguagem
constituíam-se no estudo da gramática latina e da retórica, incluídos nesta, os
estudos da poética, baseados em autores latinos. A presença desses conteúdos
tinha por fim desenvolver no educando a arte da oratória através do domínio do
código linguístico para as necessidades eclesiásticas e outras práticas sociais.
No sistema pombalino, além da alfabetização, a gramática da língua
portuguesa foi introduzida como objeto curricular de ensino da língua, sendo seu
estudo, já baseado, em parte, em autores de língua portuguesa. A gramática da
língua portuguesa passa a funcionar como instrumento de apoio para a
aprendizagem da gramática da língua latina, de forma comparada. Sendo assim,
gramática da língua portuguesa, gramática da língua latina, retórica e poética
(literatura) prevaleceram como componentes curriculares do ensino de língua do
século XVIII ao século XIX, podendo os três últimos fazer um retrocesso de mais
dois séculos.
A partir de meados do século XVIII, a gramática do latim foi perdendo
paulatinamente espaço para a gramática da língua portuguesa no currículo brasileiro
até o século XX, quando então é excluída do sistema de ensino, passando esta
última a constituir-se de forma autônoma. Estão ligadas a essa mudança valorativa a
instalação da Imprensa Régia, no Brasil, em 1808, e a progressiva constituição da
língua como sistema em área de conhecimento, culminando no surgimento de várias
gramáticas do português, geralmente escritas por professores e direcionadas a
alunos.
Pelo percurso traçado até o momento, vimos que as reformas pelas quais
passou o sistema educacional brasileiro do século XVI ao XIX não trouxeram
Não obstante, Fernão de Oliveira já teria publicado sua Gramática no ano de 1536 e existiam várias outras gramáticas e
ortografias produzidas ao longo do séc. XVII.
5
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grandes mudanças para o ensino. Permaneceu a gramática para os estudos sobre o
sistema da língua, a retórica e a poética, ligadas agora às novas exigências sociais
também voltadas para bem escrever. Houaiss (1985) corroborado por Soares (2004)
assinalam que, não havendo mudança de destinatários — os filhos de famílias
privilegiadas, únicos a ter acesso à escola — a tradição da retórica, poética e
gramática se manteve até os anos 40 do século XX sem nenhuma crise ou
conturbação.
A partir dos anos 1950, as reivindicações pela democratização, ainda que
falsa, do ensino como afirmam Soares (1983) e Geraldi (1984), começam a mudar
tal cenário. Novos e múltiplos destinatários, provenientes das classes sociais
populares, levam a uma pequena mudança nos objetos de ensino, que passam a
considerar, além dos estudos da língua (gramática), estudos também sobre a língua
(textos), com predominância da gramática sobre o texto (SOARES, 2004, p. 167).
Essa nova forma de organizar o conteúdo de ensino de língua portuguesa não
representou mudanças em seus objetivos. O foco continua a ser a forma em si da
língua.
A partir dos anos 1970, sob a ideologia do regime militar, o ensino de língua
portuguesa (denominado Comunicação e Expressão), colocado a serviço do
desenvolvimento e sustentado pelas teorias de comunicação, passa a privilegiar seu
uso pragmático (o expressar-se bem), a fim de atender a necessidades tecnicistas
(formação de mão-de-obra técnica). Assim, o enfoque recai sobre a capacidade de
emitir e recepcionar mensagens, através da utilização e compreensão de códigos
diversos, verbais e não-verbais.
Subjacente a esses objetivos está uma nova concepção de linguagem como
instrumento de comunicação, substituindo a concepção de linguagem como sistema
e expressão do pensamento veiculada através do ensino da gramática e da retórica.
Esse ensino procedimental não representou, no entanto, mudanças no que diz
respeito às dimensões sociais e culturais inerentes à língua, que continua a ser
tratada como um código estável e único, sem fricções e interferências, do qual o
usuário deveria se apropriar e reproduzi-lo.
Podemos afirmar que, no transcurso histórico de dois séculos (XVIII ao XIX),
o ensino da língua portuguesa, apesar da presença de diferentes práticas e
encaminhamentos diversos, esteve sempre fincado no chamado ―ensino tradicional‖,
centrado na aquisição do código e da gramática. Esse estado de coisas começa a
6
mudar com o advento da chamada ―virada pragmática‖ no ensino da língua materna,
a partir da década de 1980.
Vimos na ―virada pragmática‖ o ensino de língua materna mudar radicalmente
em termos de concepção tanto do que seja uma língua quanto de como se deve
ensiná-la. Nesse processo lento, podemos afirmar que o marco mais importante é a
entrada do texto na sala de aula como objeto de ensino, em fins da década de 1970,
ligada ao advento de teorias de base mais textual, que vão forçando,
progressivamente, a partir do início dos anos 1980, a mudanças paradigmáticas no
ensino-aprendizagem de língua materna no contexto brasileiro.
Rojo e Cordeiro (2004) apontam para o fato de que a história do texto na sala
de aula percorre um caminho do seu uso como material empírico (não de ensino),
propiciador de atos de leitura, de produção, de análise linguística, passando por sua
tomada como suporte para o desenvolvimento de estratégias necessárias para seu
processamento, numa abordagem cognitiva e textual, na qual o ensino de Português
é tomado como uma área procedimental não conceitual, até tornar-se, por força das
estratégias que precisam se estabelecer como procedimentos, objeto de ensino.
Os princípios textuais foram afirmados progressivamente em várias obras,
sendo O texto na sala de aula: leitura e produção (1984), organizada por Geraldi,
pioneira nessa nova direção. Nesta obra, Geraldi já esboça uma proposta de ensinoaprendizagem fundada numa concepção de linguagem como lugar de interação, o
que culmina na alteração do ensino de leitura, de escrita, da oralidade e, até mesmo,
da gramática.
É nesse sentido que Rojo e Cordeiro (2004) visualizam a assunção do texto
como unidade/objeto de ensino articulada ao deslocamento dos eixos de ensinoaprendizagem: ―de um ensino normativo [análise da língua e da gramática], para um
ensino procedimental [valorização dos usos da língua em leitura e redação]; e [...]
uma análise gramatical ligada a esses usos textuais: as atividades epilingüísticas‖
(ROJO; CORDEIRO, 2004, p. 08).
Segundo Barbosa (2001), já na década de 1990, as abordagens textuais
também começam a ser questionadas pela sua limitação à textualidade em si
mesma em prol da inclusão de elementos de base mais discursiva como as
condições de produção e recepção dos mesmos. No que respeita a essas
abordagens textuais, Rojo e Cordeiro (2004, p. 09) apresentam três críticas bastante
contundentes e, em certa medida, ponto para o avanço nos estudos na área.
7
A primeira crítica consiste no questionamento do pressuposto segundo o qual
o ensino das regras embasaria os procedimentos. Esse pressuposto fez com que o
texto passasse a funcionar como ―pretexto‖ para o ensino não só da gramática
normativa como também da gramática textual, resultando na gramaticalização dos
eixos do uso. A segunda crítica está fundada nos conceitos construídos pelas teorias
textuais que generalizavam as propriedades de grandes conjuntos de textos em
favor de uma classificação geral, apresentando formas globais nem sempre
presentes nos textos classificados.
A terceira e última crítica funda-se no fato de que essa perspectiva textual,
normalizadora e gramatical — fundada em textos escritos ―prototípicos‖ (modelo que
contém as características de todos os outros) — abstrai as circunstâncias ou a
situação das práticas ligadas ao uso, à produção e à circulação desses textos. No
eixo do ensino-aprendizagem, esses textos são tomados de forma ―propedêutica‖
(modelo a partir do qual se ensina todos os outros tipos), sendo o enfoque voltado
para as formas e os conteúdos dos textos em detrimento das condições de produção
e recepção bem como da finalidade dos mesmos.
Por outro lado, para Barbosa (2001), a postulação de que cada texto
pressupõe diferentes condições de produção, formas diferenciadas de organização e
envolve capacidades específicas leva à emergência de um discurso pedagógico
fundado na diversidade, segundo o qual ―é preciso trabalhar com diferentes tipos de
texto ao longo da escolaridade‖. Assim, os textos, sob as mais diferentes formas,
passam a se fazer mais presentes na sala de aula, o que nem sempre significou um
trabalho com eles de forma adequada, sendo, muitas vezes, o ensino praticado na
forma da ―visitação‖.
Como esperado em um percurso de desenvolvimento de uma área de
conhecimento, novas concepções teóricas vão surgindo e apontando para
elementos inerentes aos modelos teóricos existentes e até então ausentes nesses
modelos, como os aspectos ideológicos, sociais e culturais. É em resposta a
ausência desses aspectos que emerge, inicialmente em outros países do Ocidente,
e depois no Brasil, a virada enunciativo-discursiva nos estudos da linguagem, em
que o caráter interacional da língua, de base sócio-histórico e ideológico, passa a
funcionar como pedra angular.
É nesse contexto das últimas décadas do século XX que as ideias do Círculo
de Bakhtin acerca da linguagem e, especialmente, acerca dos gêneros discursivos,
8
passam a influenciar, em certa medida, no contexto educacional brasileiro e no de
outros países ocidentais, as discussões sobre o ensino-aprendizagem de língua
materna envidadas por diferentes perspectivas teóricas e metodológicas.
Diferenças à parte, essas perspectivas apelam para práticas de ensinoaprendizagem em língua materna fundadas na compreensão e produção de textos
contextualizados, significativos, constituintes de usos públicos da linguagem e
favorecedores de reflexão crítica. Tais propostas desencadeiam uma série de
projetos e programas que passam a incorporar os discursos do novo paradigma
entre os quais se insere o Programa Olimpíada da Língua Portuguesa Escrevendo o
Futuro (doravante OLPEF).
Esse Projeto, que se apresenta em consonância com os PCN de Língua
Portuguesa (BRASIL, 1998, 1999), surge inicialmente na forma de um concurso de
produção textual que, posteriormente, passa a funcionar como estratégia de
mobilização para a formação do professor em serviço, visualizando a implantação de
uma metodologia dita reformuladora para o ensino-aprendizagem dos gêneros
textuais, focalizando as escolas públicas brasileiras.
A organização teórico-metodológica do Programa para o trabalho de
produção dos textos gira em torno de três eixos básicos. O Programa emprega a
noção de gênero, na perspectiva bakhtiniana, articulada à visão de ensinoaprendizagem vygotskyana, tomada no quadro teórico da proposta didática da
Escola de Genebra, principalmente nos trabalhos de Dolz e Schneuwly (2004[1994],
2004[1996], 2004[1997], 2004[2001]), mas também de Bronckart (1999), que
fornecem um modelo didático de abordagem dos gêneros (textuais), com vistas ao
ensino-aprendizagem de língua materna em situação escolar.
O Programa, recentemente institucionalizado, é fruto de uma parceria entre
instituições públicas e privadas, cuja execução envolve o Ministério da Educação (de
agora em diante, MEC), a Fundação Itaú Social e o Centro de Estudos e Pesquisas
em Educação, Cultura e Ação Comunitária (doravante, Cenpec). Tais aspectos
mostram-se relevantes para a nossa pesquisa, uma vez que nosso objetivo é
investigar as possibilidades de letramento em favor da formação cidadã dos alunos
das escolas públicas brasileiras, subsidiado por materiais didáticos que se
apresentam como inovadores. Em nosso entendimento, uma formação escolar
efetivamente preocupada com a construção de condições favoráveis ao exercício da
9
cidadania implica em um trabalho didático em que seja relevante a construção de
sentidos sociossituados.
Acreditamos que um material didático é endereçado para diferentes planos.
Dentre eles, estão os atores sociais envolvidos e as concepções teóricometodológicas em que esse material se fundamenta. As apreciações valorativas
direcionadas para esses diferentes planos são sentidas na modelização didática.
Sendo assim, propomos as seguintes questões de pesquisa: 1. Como se
organizam teórica e metodologicamente a 1ª e a 2ª edições do Caderno PV da
OLPEF voltado para o ensino-aprendizagem do gênero artigo de opinião?; e 2. De
que forma as atividades propostas para a didatização do artigo de opinião no
Caderno PV da OLPEF tratam a discursividade?
Postas as justificativas e questões, no capítulo 1, apresentaremos a teoria
enunciativo-discursiva do Círculo de Bakhtin, a qual nos auxiliará na análise dos
dados. Anteriormente a isso, deter-nos-emos sobre uma discussão teórica acerca da
contraposição, hoje instaurada, entre gêneros discursivos/textuais, a fim de melhor
situar o contexto de nossa pesquisa.
No capítulo 2, trataremos, inicialmente, da teoria de ensino-aprendizagem de
Vygotsky, também eleita para nos auxiliar na análise dos nossos dados.
Apresentaremos, em seguida, a proposta didática da Escola de Genebra,
especificamente os estudos de Dolz e Schneuwly, empregada pela OLPEF na
organização didático-pedagógica do artigo de opinião no Caderno do Professor
―Pontos de Vista‖.
No capítulo 3, delinearemos o percurso traçado por nós na realização desta
pesquisa. Nos capítulos 4 e 5, apresentaremos as análises por nós realizadas
acerca da organização teórico-metodológica do Caderno do Professor e sua
operacionalização na modelização didática do artigo de opinião, procurando
desvelar qual tratamento discursivo é viabilizado no projeto de ensino desse gênero.
Por fim, apresentaremos nossas conclusões finais.
10
CAPÍTULO 1
A teoria da linguagem do Círculo de Mikhail Bakhtin: uma perspectiva sóciohistórica e ideológica
Existe um postulado antigo e, em termos gerais, certeiro, de que o homem
se faz consciente da realidade e a compreende mediante a linguagem.
Efetivamente, sem a palavra é impossível uma consciência ideológica
minimamente clara. No processo de refração do ser pela consciência, a
linguagem e suas formas desempenham um papel importante.
BAKHTIN/MEDVEDEV (1928)
Neste capítulo, apresentaremos a concepção de linguagem de que falam
Mikhail Bakhtin e seu Círculo6, e que sustenta nossas discussões e reflexões nesta
pesquisa. Pela especificidade de nosso objeto — um programa educacional
institucional que se propõe a fomentar o ensino-aprendizagem de língua portuguesa
com enfoque nos gêneros textuais — encontramos na teoria da linguagem desse
autor fundamentos que têm se mostrado promissores e dado o devido respaldo para
pensar e interpretar situações de ensino-aprendizagem de língua materna na escola.
O pensamento do Círculo de Bakhtin acerca da linguagem, principalmente o
conceito de gênero que foi por ele ressignificado e ampliado, dando-lhe novo
fundamento, tem exercido forte influência sobre teóricos e educadores e
transformou-se numa referência constante nos últimos anos nos espaços
acadêmicos e de pesquisa. Entretanto, esse discurso fundador tem sido apropriado,
muitas vezes, de maneira literal e sempre revista, na forma de releituras que citam e
se servem de alguns referenciais teóricos do autor para sua teoria, ao mesmo tempo
em que dele se distancia, resultando no aparecimento de conceitos nem sempre
O pensamento bakhtiniano é fruto das produções/discussões realizadas em conjunto por Bakhtin e um grupo de
intelectuais russos que se dedicavam às mais variadas áreas das Ciências Humanas, no período que compreende os anos
de 1920 a 1970 — na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), atual Rússia — conhecido como o
Círculo de Bakhtin, entre eles V. N. Volochinov (1895-1936) e P. Medvedev (1892-1938) com os quais as autorias de
algumas obras são disputadas. Por exemplo, no original russo e na tradução inglesa, as obras Discurso na vida e discurso
na arte (1926) e Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929) levam apenas a assinatura de Volochinov; já na tradução
brasileira a partir da francesa, elas recebem dupla assinatura — de Volochinov e de Bakhtin. Acerca da questão da autoria,
nas obras em que incide essa polêmica, citaremos o nome dos dois autores, separados por uma barra. Aquelas que
receberam apenas a assinatura de Bakhtin serão citadas com seu nome somente. Não estenderemos maiores
considerações sobre essa questão neste trabalho, maiores informações, consultar os trabalhos de Brait (2005, 2006), Fiorin
(2005) e Souza (1999).
6
11
unívocos e consensuais, como é o caso da contraposição, hoje instaurada, entre
gêneros textuais/gêneros discursivos.
Em nossa pesquisa, consideramos que a categoria conceitual mais
importante seja a discursividade, uma vez que, independentemente de qual é a
abordagem ou terminologia utilizada (gênero discursivo/gênero textual), o que
verdadeiramente interessa numa proposta de ensino-aprendizagem de língua
materna na atual conjuntura da realidade escolar brasileira, em especial da escola
pública com seus baixos índices de letramento, é perseguir a construção do sentido
no/pelo uso da linguagem.
Por outro lado, não podemos deixar de tecer algumas considerações a
respeito das duas abordagens de gênero referidas nos dois parágrafos anteriores,
porque temos, de um lado, um objeto de pesquisa que se fundamenta na
transposição didática do gênero artigo de opinião numa abordagem de perspectiva
textual e, por outro, optamos, para sustentar nossas reflexões e análises, em todos
os níveis deste trabalho, pela abordagem de perspectiva discursiva por entendermos
que ela favorece melhor propostas de ensino-aprendizagem voltadas para a
construção do sentido, porque, como afirma Rojo (2005):
[...] nossos alunos não precisam ser gramáticos de texto e nem mesmo
conhecer uma metalinguagem sofisticada. Ao contrário, no Brasil, com seus
acentuados problemas de iletrismo, a necessidade dos alunos é de terem
acesso letrado a textos (de opinião, literários, científicos, jornalísticos,
informativos, etc.) e de poderem fazer uma leitura [produzir um texto] crítica
e cidadã desses textos (ROJO, 2005, p. 207).
Sendo assim, buscaremos, já de início, refletir um pouco sobre as duas
abordagens de gêneros apontadas nos últimos parágrafos, mas nosso intuito é
buscar
compreender
a
contribuição
de
cada
uma
no
tratamento
dos
textos/enunciados e em que medida favorece a construção do sentido, da
discursividade.
Vamos iniciar nosso diálogo com a abordagem que opta pela terminologia
―gênero textual‖ e, posteriormente, dialogaremos com a abordagem discursiva.
Numa próxima etapa, vamos interagir com o Círculo de Bakhtin em torno de sua
concepção de linguagem, do seu conceito de enunciado concreto e dos gêneros
discursivos.
12
1.1 Gêneros textuais e gêneros discursivos
O que vemos é direcionado pelo modo como vemos e este é determinado
pelo lugar de onde vemos [...]. Cada gênero representa um modo especial
de construir e de concluir a totalidade, e, sobretudo repetimos que se trata
de uma conclusão substancial, temática e não de um acabamento somente
condicional ou composicional.
BAKHTIN/MEDVEDEV (1928)
O conceito de gênero tem uma longa tradição precisamente nos estudos
literários e retóricos7. É relendo essa tradição de estudos que Bakhtin e seu Círculo
irão não apenas desconstruir alguns critérios de classificação dos gêneros literários
como também ampliar o domínio de sua aplicação e uso. À época em que escrevia o
Círculo de Bakhtin, apenas os textos de valor social reconhecidos, como os literários
e retóricos, eram designados por gêneros.
Os gêneros literários e retóricos eram os únicos tomados como objeto de
estudos, aspecto com o qual os membros do Círculo não concordavam e com base
no qual reclamavam a existência de estudos que contemplassem os vários gêneros
do discurso, focando sua natureza verbal comum. Segundo Barbosa (2001, p. 23), o
Círculo de Bakhtin considera que ―todo e qualquer texto lido ou escrito, falado ou
ouvido, enfim, tudo que é dito ou dizível pertence a algum gênero, por mais que, por
vezes, não se saiba designá-lo ou reconhecê-lo‖. Com essa visão, os autores russos
dão início a uma nova ideia de gêneros da linguagem.
Por outro lado, com a ampliação da aplicação do conceito de gêneros, o
Círculo de Bakhtin adverte para os problemas com os quais os estudos nessa
direção poderiam se deparar devido, primeiro, à heterogeneidade e multiplicidade
dos gêneros existentes [às vezes, concordando com Barbosa, nem sabemos
denominá-los] e, segundo, à ausência de estudos que contemplem os demais
elementos das condições de produção do discurso.
As condições para a entrada do conceito de gêneros no contexto brasileiro,
primeiro no âmbito da Academia e, posteriormente, nas orientações curriculares de
alguns documentos educacionais, como os PCN para o ensino de língua materna,
só ocorrem a partir da década de 90 do século XX, e se explicam, em parte, pela
mudança de perspectiva em relação ao tipo de sujeito que se desejava formar
através da educação escolar.
7
Ver Padilha (2005).
13
Numa perspectiva democrática neoliberal, além da orientação para a
formação de mão-de-obra, base das políticas educacionais sob o regime militar das
décadas de
1960-70,
passa
a
compor os objetivos da educação pós-
redemocratização (idos da década 1980) uma formação que também possibilite o
exercício da cidadania e o desenvolvimento da criticidade.
No âmbito de uma sociedade democrática, cuja base política e econômica
guia-se pelo neoliberalismo numa era de globalização dos meios de produção e da
informação, o indivíduo é considerado, apesar dos limites e interesses outros (mãode-obra qualificada e letrada), um sujeito de direitos e deveres. Por isso, verificamos
certa preocupação com práticas de ensino mais reflexivas e a ênfase no exercício da
cidadania.
O enfoque na formação para a cidadania surge com a Constituição Federal
promulgada em 1988, visando assegurar o retorno e o avanço ao estado
democrático de direito eliminado pela ditadura militar (1964-1985). Na CF/88,
conhecida como a ―Constituição Cidadã‖, a cidadania, em seu Art. 1º, inciso II,
aparece como um dos fundamentos em que se deve orientar a forma de governo
brasileiro. Isso porque cidadania e democracia são conceitos que se pressupõem,
conforme aponta Pinsky (apud FIGUEIREDO, 2005, p. 65) ―a cidadania é a
expressão concreta do exercício da democracia‖.
O desenvolvimento da cidadania passa a constar como um dos maiores
objetivos da educação escolar brasileira, conforme normatiza o Art. 205 da CF/88.
Tal objetivo constitucional é tomado como um dos princípios e fins da educação
nacional de acordo com o Art. 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Básica
(LDB/1996), o qual é também perseguido nos PCN (BRASIL, 1998) para o Ensino
Fundamental, onde se espera que os alunos, nos anos finais, sejam capazes de:
[...] compreender a cidadania como participação social e política, assim
como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no
dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças,
respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito; posicionar-se de
maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais,
utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar decisões
coletivas (BRASIL, 1998, p. 07)
E nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006):
[...] o ensino médio deve atuar de forma que garanta ao estudante a
preparação básica para o prosseguimento dos estudos, para a inserção no
14
mundo do trabalho e para o exercício cotidiano da cidadania, em sintonia
com as necessidades político-sociais de seu tempo (OCEM, 2006, p. 18).
No âmbito do ensino de línguas, essa orientação vai sustentar as críticas às
perspectivas teórico-metodológicas centradas em aspectos estritamente formais que
não garantiam/garantem uma compreensão mais crítica e consciente dos discursos
escritos/orais. Os estudos na área voltam-se cada vez mais para a busca de
caminhos teórico-metodológicos que deem conta das novas demandas sociais
postas à educação escolar.
Em tal contexto, surgem os apelos da Academia em favor da presença dos
gêneros no ensino-aprendizagem de línguas, cujo reflexo mostra-se na elaboração
dos novos referenciais nacionais para o ensino de língua portuguesa (PCNLP, 1997,
1998, 1999), que passam a indicá-los como objeto de ensino ou chamam a atenção
para a importância de se considerar as características destes na proposição de
leitura e escrita, instaurando, assim, um novo paradigma de ensino.
Quando o pensamento do Círculo de Bakhtin é descoberto pelos estudos
linguísticos do Ocidente, a concepção bakhtiniana de linguagem e, mais
recentemente, sua noção de gênero, passam a exercer forte influência sobre eles. O
conceito de gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin é retomado, no contexto
ocidental, com diferentes enfoques e por várias correntes de estudos dedicados às
questões linguísticas.
Muitas perspectivas teóricas, até certo ponto, não contraditórias com o
pensamento desse autor, releem para suas teorias o seu conceito de gênero, em um
movimento ―dialógico polifônico‖, culminando em releituras que apresentam ao
mesmo tempo afiliação e distanciamento do pensamento do autor, tendo sua
tradução perfeita na contraposição atualmente estabelecida entre gêneros
discursivos e gêneros textuais ou no uso indistinto destes.
Rojo (2005) apresenta uma reflexão acerca de tal distinção que achamos
bastante pertinente no contexto deste trabalho. Para essa autora, se teoricamente
uma e outra perspectiva são legítimas e úteis para a pesquisa, essa aceitação
requer cautela quando estamos pensando no ensino-aprendizagem de língua
materna no contexto brasileiro, em que se tem a noção de formação cidadã como
eixo norteador.
15
A cidadania está ligada a valores e práticas tidos como frutos de um processo
de construção sócio-histórica e cultural, cuja transmissão e cujo exercício passam a
ser visados nas propostas a partir da década de 1990. Nesse âmbito, o ensinoaprendizagem de língua materna mostra-se privilegiado por ser a linguagem o signo
ideológico-valorativo por excelência.
As abordagens de gêneros, ao focalizar a linguagem em uso, podem trazer
excelentes contribuições para a concretização desse objetivo da educação.
Entretanto, uma abordagem de ensino-aprendizagem de linguagem que tome como
princípio a formação para a cidadania deve tratar seus objetos e os valores neles
veiculados como inerentes, relativos e abertos, uma vez que se trata de produtos
culturais e ideológicos, construídos no processo sócio-histórico e inseridos em
contextos específicos, sendo, portanto, instáveis.
Sendo assim, o enfoque de uma ou outra abordagem pode trazer diferenças
de maior ou menor grau na formação do leitor/construtor de textos a depender do
tratamento dispensado a esses objetos. Quanto mais a abordagem oferecer
condições para que os alunos compreendam criticamente os objetos de ensinoaprendizagem mais favorável será para a formação cidadã, uma vez que o exercício
da cidadania pressupõe sujeitos críticos, livres e autônomos para compreender,
questionar e transformar valores, normas e até mesmo direitos morais construídos
no processo sócio-histórico de um povo, nação, grupo, comunidade etc.
É com base nessas considerações que resolvemos iniciar este capítulo
abordando primeiro a problemática dessa questão. Cientes de que o conceito de
gênero não é unívoco, precisamos distinguir nossa escolha e posicionamento num
trabalho de pesquisa que envolve o ensino-aprendizagem de língua materna na
perspectiva de gêneros.
1.2 Gêneros textuais: uma apropriação textualizante
Das correntes que têm por base parte da teoria bakhtiniana, mantendo com
ela uma relação de ―aproximação/distanciamento‖, as que mais nos interessam aqui,
por suas influências diretas na base teórico-metodológica do programa OLPEF, são
os trabalhos de Marcuschi (2002), ainda bastante ligados a uma linguística de texto,
e os trabalhos ligados a teorias interacionistas discursivas de origem francófona,
como os estudos de Bronckart, cuja influência está articulada com os estudos
16
desenvolvidos por Dolz e Schneuwly8 (2004[1996], 2004[1997], 2004[1998],
2004[2001]) na área de didática de línguas.
Bronckart (1999) diz tomar a obra bakhtiniana como uma de suas referências
principais, mas discorda dela em vários pontos, a exemplo da insinuação explícita de
que Bakhtin trata mecanicamente as relações entre formas de atividades e gêneros
de discurso. Além disso, justifica, em parte, a opção pela terminologia ―texto/textual‖
por entender que a obra do pensador russo apresenta problemas de terminologia
por conta das traduções e evolução.
Feitas as observações, ele opta pela via da releitura da noção de linguagem
bakhtiniana e recorre, para isso, a um esquema sociopsicológico para explicação do
seu funcionamento. Para Bronckart (1999), a linguagem nasce da necessidade da
existência de um instrumento mediador e regulador no quadro das atividades
sociais. Surgindo uma atividade diferente, emerge uma forma comunicativa [um
texto] diferente. Por outro lado, atividades semelhantes geram, no quadro social em
que estão inseridas, famílias de textos semelhantes que tendem a se estabilizar de
acordo com sua recorrência de uso. Essas espécies de texto, ao se estabilizar de
forma mais ou menos forte, criam os gêneros de texto. Por isso, Rojo (2005, p. 190)
afirma que Bronckart (1999) tende a classificar os gêneros como ―uma designação
convencional e histórica para uma família de textos que apresentam semelhanças‖.
O interesse de Bronckart, do seu lugar de psicólogo, está na descrição dos
processos cognitivos e linguísticos envolvidos na produção do gênero como entrada
para explicar as ações de linguagem9 (MACHADO, 2005). Há, na proposta do autor,
certa ênfase no individual para explicação do funcionamento da linguagem porque
faz ver as representações particulares10 que o produtor individual tem tanto do
Esses autores utilizam parte dos estudos de Bronckart para a elaboração de sua teoria didática de ensino de língua
materna no contexto da suíça francófona, a qual, posteriormente, expande-se e adapta-se ao contexto brasileiro,
influenciando diretamente a base didático-metodológica do objeto foco de nossa pesquisa. Trataremos deles no próximo
capítulo.
8
As ações de linguagem são, nessa perspectiva, estruturas de comportamento não diretamente ligadas aos motivos de
ordem social; elas são orientadas por objetivos intermediários, ou específicos, relacionados ao próprio processo de
produção e compreensão do texto por um indivíduo particular (FIGUEIREDO, 2005).
9
A respeito das representações dos parâmetros da situação, o produtor, ao produzir um texto, aciona representações
acerca do contexto físico da interação (espaço-tempo da produção, produtor, destinatário) e representações sobre o
contexto sócio-subjetivo que envolve os valores em relação ao lugar social da interação, ao seu próprio papel social, ao
papel social do destinatário de seu texto e dos objetivos da interação. Assim, para realizar uma ação de linguagem, o
produtor precisa dominar algumas operações que mobilizam representações sobre o contexto físico e sócio-subjetivo e
sobre os conteúdos a serem verbalizados, além de ter que escolher o gênero de texto mais adequado ao contexto imediato
e ao conteúdo que se quer expressar (MACHADO, 2005, p. 252-253).
10
17
gênero escolhido quanto dos elementos da situação imediata como o elemento que
torna um texto único e diferente.
Para Bronckart (1999), os gêneros são entidades profundamente vagas,
característica esta que impede sua tomada como objeto de análise, classificação ou
descrição. Diante disso, o autor deixa claro que sua preocupação maior está voltada
para os textos empíricos11 que, a seu ver, são as únicas unidades concretas que
materializam as ações de linguagem (MACHADO, 2005, p. 249). Seria, então, esse
o motivo pelo qual o autor adota a nomenclatura ―gênero de texto‖.
Segundo Figueiredo (2005, p. 29), Bronckart envida uma descrição dos textos
cuja organização é constituída a partir de níveis superpostos que lhe garantem
coerência interna. Neste trabalho, apesar de haver certa consideração por
elementos de ordem enunciativa, estes são tratados de maneira paralela aos
aspectos estruturais. Além disso, a base de sustentação está fincada em conceitos
gramaticais ou linguístico-textuais, articulados a um contexto de produção visto em
sua dimensão imediata.
Tal enfoque formal justifica-se no quadro do projeto teórico do autor, que é
elaborar um modelo de produção de discurso; daí sua ênfase em elementos estáveis
e limitados. O caminho adotado pelo autor foi centrar sua proposta de análise em
uma abordagem transversal aos gêneros cujo conceito principal é o dos tipos de
discurso12.
Os tipos de discurso são vistos como ―segmentos de estruturação linguística
fortemente regulares que entram, em diferentes modalidades, na composição de
todos os gêneros textuais‖ (BRONCKART apud ROJO, 2005, p. 190). Esses
segmentos de discurso seriam resultantes da articulação de duas ordens de relação
— mundo discursivo/mundo ordinário. O cruzamento dessas duas coordenadas
pode estabelecer disjunções ou conjunções13 de acordo com a forma de
apresentação dos conteúdos na dimensão espaço-temporal bem como apresentar
Bronckart (1999) define texto empírico como sendo uma unidade concreta de produção de linguagem, que pertence
necessariamente a um gênero, composta por vários tipos de discurso, e que também apresenta traços das decisões
tomadas pelo produtor individual em função da sua situação de comunicação particular.
11
12
Os tipos de discurso definidos por Bronckart são quatro: narração, relato interativo, discurso interativo e discurso teórico.
Diz-se que há conjunção quando o mundo discursivo articula-se ao mundo ordinário/vivido. A disjunção supõe um
distanciamento desses dois mundos.
13
18
relações de autonomia ou implicação14 quando se trata da relação entre o produtor e
os parâmetros físicos da ação de linguagem.
Ainda de acordo com Figueiredo (2005), ao recortar o gênero pela descrição
da composição e da materialidade linguística dos textos no gênero, Bronckart (1999)
acaba por tornar os tipos discursivos o elemento catalisador do seu modelo geral de
produção de discurso. Nesse sentido, a entrada nos discursos dá-se pelos
elementos formais linguístico-gramaticais, distanciando-se, assim, do método
sociológico de Bakhtin/Volochinov (2009[1929])15.
Figueiredo pontua ainda que o resultado disso, aplicando essas categorias
contidas no modelo de produção de discurso de Bronckart, leva a análise a passar
pela tangente em termos de compreensão do tema do texto, uma vez que, ao não
considerar os diferentes posicionamentos ideológicos presentes na esfera à qual os
textos estão vinculados e da qual o autor pouco se ocupa, consegue chegar apenas
à significação dos conteúdos verbalizados.
No Brasil, Marcuschi (2002), ao fazer a definição e funcionalidade dos
gêneros, distinguindo-os dos tipos textuais, adota também e unicamente a
terminologia gêneros textuais e aproxima-se, em suas definições, de teorias de
gêneros de origem anglófona e francófona (BIBER, 1988; SWALES, 1990; ADAM,
1990; BRONCKART, 1999), algumas vezes se referindo a Bakhtin, do qual notamos
a presença apenas por algumas marcas textuais.
Interessado em questões didáticas, Marcuschi (2002) propõe a distinção e a
relação entre tipos e gêneros textuais. Os tipos textuais seriam constituídos de
elementos linguístico-estruturais de diversos níveis que formariam uma sequência
tipológica (narrativa, descritiva, dissertativa, argumentativa, injuntiva) (ADAM, 1990).
Implicação supõe que os parâmetros físicos da ação de linguagem são o da interação em curso, sendo isso marcado pelo
uso de referências dêiticas e a gestão do texto é produzida em co-responsabilidade. Autonomia pressupõe distanciamento
desses parâmetros, caracterizando-se pelo apagamento das referências ao contexto, sendo o texto aí monogerado.
14
Neste trabalho, utilizamos algumas obras de Bakhtin e seu Círculo que ainda não possuem tradução oficial para o
português, tendo nós acesso a elas através de traduções feitas por pesquisadores brasileiros apenas para fins acadêmicos.
Este é o caso, por exemplo, de Para uma Filosofia do Ato (BAKHTIN, 1919-1921), traduzida por Faraco e Tezza, de
Discurso na Vida e Discurso na Arte (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926), também com tradução dos mesmos pesquisadores,
e um excerto, intitulado Os Elementos da Construção Artística (O problema do gênero), pertencente à obra O método
Formal nos Estudos dos Gêneros (BAKHTIN/MEDVEDVEV, 1928). Esse excerto foi traduzido pela professora Simone
Padilha apenas para uso restrito nas aulas de uma disciplina ministrada por ela na Pós-Graduação em Estudos Linguísticos
da UFMT, no ano de 2009, denominada Gêneros Discursivos. Por isso, ao fazermos referência a essas obras no corpo do
texto, deste trabalho, ou em citações recuadas, informaremos apenas autores e data em que se tem conhecimento da sua
produção. Em relação à obra de 1919-1921, lembramos que há uma tradução recente (2010), organizada por Augusto
Ponzio e o Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGE) da UFSCar, à qual não tivemos acesso durante a escritura,
daí termos utilizado apenas a tradução para fins acadêmicos.
15
19
Os gêneros seriam artefatos comunicativos ou famílias de textos (BRONCKART,
1999)
semelhantes
caracterizados
enquanto
atividades
sociodiscursivas,
preenchidos por diversas sequências tipológicas de base.
Nesse sentido, ele usa a expressão ―tipo textual para designar uma espécie
de construção teórica definida pela natureza linguística de sua composição
(aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas) [...] categorias
conhecidas como
narração, argumentação,
exposição,
descrição,
injunção‖
(MARCUSCHI, 2002, p. 22).
Já os gêneros textuais não se caracterizam nem se definem por aspectos
linguístico-estruturais, sendo mais ―uma noção propositalmente vaga para referir os
textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam
características sociocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais,
estilo e composição característica‖, apresentando-se em número ilimitado (idem,
ibidem).
Outra noção tida pelo autor como vaga é a de domínio discursivo (BIBER,
1988). Segundo Marcuschi, essa expressão é utilizada para ―designar uma esfera ou
instância de produção discursiva ou de atividade humana [BRONCKART, 1999]‖
(MARCUSCHI, 2002, p. 23). Esses domínios são ―as grandes esferas da atividade
humana [BAKHTIN, 2003[1952-1953] em que os textos circulam e propiciam o
surgimento de discursos bastante específicos [...] discurso jurídico, discurso
jornalístico, discurso religioso etc.‖ (MARCUSCHI, 2002, p. 24-25).
Observamos,
em
certa
medida,
uma
confusão/oscilação
nessas
definições/reflexões a respeito dos gêneros feitas por Marcuschi. Ao mesmo tempo
em que o autor refere-se a gêneros como artefatos linguísticos concretos de
característica sociodiscursiva (p. 33), definidos basicamente por seus propósitos
(funções, intenções, interesses) (SWALES, 1990) e não apenas por suas formas
(p.32), vai dizer que usa o termo gênero textual como uma ―noção vaga para referir
textos materializados‖ (idem).
Para Rojo (2005, p. 188), ao fazer isso, Marcuschi desfaz as fronteiras entre
gêneros e textos ao ponto de deixar transparecer o texto como ―um evento ou
acontecimento linguístico pertencente a uma família de textos que tem por
designação social um (nome de) gênero, acompanhado de sua representação
(noção) de base social‖.
20
Apesar de colocar em relevância as características comunicativas, cognitivas
e institucionais dos gêneros tomados como práticas sociodiscursivas, Marcuschi
(2002, p. 20-21) afirma que, muitas vezes, são as formas que determinam o gênero.
Assim, além das funções e do suporte ou ambiente (aqui se subentende esfera), as
formas também determinariam os gêneros, algo impensável em Bakhtin, para quem
a discursividade assume a dianteira na ordem hierárquica estabelecida nas relações
de produção de linguagem.
Marcuschi não define claramente sua noção de discurso e deixa transparecer
certa resistência em abordar questões ligadas ao sentido/tema do enunciado,
advertindo apenas para se ter o cuidado de não ―confundir texto com discurso‖. O
primeiro seria uma entidade concretizada em um material e em um gênero, o
segundo seria ―aquilo que um texto produz ao se manifestar em alguma instância
discursiva‖ (MARCUSCHI, 2002, p. 24).
A nosso ver, trata-se, nos trabalhos dos autores que optam pela terminologia
gêneros textuais, de uma questão de metodologia que influencia na concepção
teórica.
Marcuschi, por exemplo, procura se aproximar do discursivo, mas, parecenos, não consegue articulá-lo ao texto, tratando-o de maneira externa: ―os gêneros
textuais fundam-se em critérios externos (sociocomunicativos e discursivos),
enquanto os tipos textuais fundam-se em critérios internos (linguísticos e formais)‖
(MARCUSCHI, 2002, p. 34).
Dessa forma, o autor oscila entre o trato textual quando se diz respeito a
questões ligadas à materialidade linguística e o trato genérico quando se ocupa dos
aspectos funcionais e contextuais dos gêneros, tocando no sentido apenas em
termos de significação relacionada ao conteúdo temático, algo esperado para uma
proposta que não consegue manter a ordem de relação hierárquica entre os planos
de produção da linguagem, considerando-os em um mesmo nível. Assim,
centralizando no texto toda análise em termos de gêneros, o autor tende a desfazer
as fronteiras entre um e outro ou abordá-los de forma compartimentada.
Bronckart (1999), interessado em construir um modelo teórico de análise, opta
pela entrada na linguagem pelos tipos de discurso como fonte de organização dos
tipos de sequências e dos gêneros. Marcuschi (2002), preocupado com questões
didáticas, apesar de falar em propósitos do gênero como elemento organizador,
também resvala para os aspectos formais e dilui as fronteiras entre gênero e texto,
21
tratando aquele como um artefato linguístico concreto no sentido de empírico. Os
dois autores tendem a tratar os gêneros como entidades/noções vagas para referir
famílias de texto.
Como observa Sobral (2007, p. 109), ―se não há gênero ou discurso que se
realize sem texto, não há texto que exista sem discurso e sem gênero, exceto como
meros sinais em alguma superfície, um não-texto, portanto, ao menos em termos
verbais‖.
Numa abordagem fundamentalmente bakhtiniana, tendo por base sua
proposta metodológica de estudo dos gêneros (2009[1929]), a ordem de relevância
maior a ser considerada em uma análise é a discursividade e a ela devem estar
subordinados todos os outros aspectos da análise, inclusive os textuais.
Barbosa (2001, p. 56) afirma que ―enunciados num gênero devem sempre ser
descritos num movimento relacional entre aspectos da situação de produção que
determinam temas, formas composicionais e estilos‖. Por isso, nossa ênfase na
questão da discursividade.
Com base nessas considerações, supomos que se quisermos um caminho
bakhtiniano que entre na linguagem pelo sentido, devemos ampliar o escopo de
consideração dos gêneros de formas gramaticais e composicionais para o âmbito de
formas arquitetônicas sempre relacionadas a um projeto autoral.
Numa perspectiva bakhtiniana, a arquitetônica é a construção do objeto
discursivo que une e integra indissoluvelmente o material, a forma e o conteúdo. Tal
união tem por base a atividade organizadora e estruturadora do sujeito criador
sociossituado que, partindo de um querer dizer orientado valorativamente para os
conteúdos do mundo ético (ditos e possíveis) e para os outros, constrói totalidades
discursivas que têm sua unidade advinda do sentido.
Já as formas composicionais, segundo Sobral (2005), não são da ordem do
sentido e podem ser vinculadas ao que se denomina, hoje, de organização textual
do objeto discursivo. Elas existem em função das formas arquitetônicas que as
realizam de várias maneiras, orientadas por apreciações de valor. Isso leva-nos a
afirmar muito seguramente que são os conteúdos costumeiramente mobilizados
mais as valorações realizadas por centro de valores sociossituados em condições
dadas da vida real e seus aspectos que fundam o gênero, por isso, eles são formas
discursivas e não textuais.
22
Para melhor compreender a questão da discursividade na obra do Círculo de
Bakhtin, vamos começar abordando sua concepção de linguagem.
1.3 O Círculo de Bakhtin: concepção de linguagem
Em contraposição a um pensamento linguístico imanente, encerrado em
formas, ou proveniente de um psiquismo individual, tendências então hegemônicas
dos estudos linguísticos na época, o Círculo de Bakhtin irá propor seu pensamento
concreto como a verdade da linguagem, disseminado nas suas várias obras,
acrescentando a ele contornos éticos, históricos, sociológicos, ideológicos e
dialógicos precisos.
Esse modo de ver a linguagem começa a aflorar já em um dos primeiros
textos escritos em 1919-1921, sobre a filosofia do ato. Nessa obra, Bakhtin trata do
agir humano na vida em termos de uma atividade geral que envolve atos
particulares. O ato envolve dois planos integrados indissoluvelmente, o da
generalidade e o da particularidade. Trata-se de faces distintas, mas pressupostas
— o processo ou o realizar-se permanente e concreto do ato e o produto resultante
desse processo.
Bakhtin (1919-1921) afirma que o mundo concreto é a vida de sujeitos
concretos e não crê que a categorização teórica possa abarcar os atos totalmente
muito menos abstraí-los sem fazê-los perder sua especificidade enquanto atos
concretos realizados por sujeitos concretos situados em um aqui e agora únicos. Por
outro lado, apesar de os atos singulares serem únicos e irrepetíveis, guardam em si
elementos comuns aos outros atos, o que faz com que pertençam também à
categoria geral de ―ato‖.
Numa perspectiva bakhtiniana, deve-se ter cuidado para não se separar o
conteúdo do ato e o processo de sua realização. Isso quer dizer que, ao mesmo
tempo em que o processo supõe um produto dele resultante, o produto, por sua vez,
supõe um processo de produção (SOBRAL, 2009), ambos são indissoluvelmente
integrados pela valoração mobilizada pela inter-relação eu-outro, num lugar e tempo
únicos (idem, 2005).
Bakhtin, além de nos fornecer uma perspectiva do ato humano integral, liberta
o ser humano do individualismo pela responsabilidade em um dado domínio da
cultura, e, por outro, livra-o da submissão total ao social pela responsabilidade
23
situada. O sujeito em Bakhtin não tem álibi na existência, é ético; em outras
palavras, ele age sempre e responde por seus atos: ―o sujeito, ao agir, deixa por
assim dizer uma ‗assinatura‘ em seu ato e por isso tem de responsabilizar-se
pessoalmente por seu ato e se responsabiliza por ele perante a coletividade de que
faz parte‖ (SOBRAL, 2009, p. 30).
Trata-se, assim, conforme Sobral (2009), de uma filosofia humana do
processo em que está reconhecida a importância do sujeito participativo e alteritário,
bem como do processo e do produto, formando uma totalidade unificada pela
orientação valorativa mobilizada na inter-relação autoral.
Percebemos nas formulações da filosofia do ato de Bakhtin a presença ainda
seminal de categorias que irão orientar todo seu pensamento em obras posteriores:
a inter-relação eu-outro que antecipa, em termos, a noção de autoria tripartite, a
consideração das categorias de tempo e espaço circunscritos, mais tarde
denominadas cronotopo, e, principalmente, a ênfase no elemento axiológico como o
plasmador das relações eu-outro em um objeto [produto].
Tais categorias e suas inter-relações nos antecipam, de forma embrionária, os
conceitos de enunciação/enunciado, significação e tema e até mesmo de gêneros
discursivos — componentes angulares de sua teoria de linguagem, de discurso.
Em o Discurso na vida e discurso na arte (1926), Bakhtin/Volochinov avançam
no desenvolvimento dessa filosofia, aplicando-a explicitamente ao fenômeno da
linguagem. Nesta obra, a preocupação dos pensadores russos volta-se para a
diferenciação entre a linguagem na vida cotidiana e na arte, especificamente a
literária, apontando suas inter-relações e seus imbricamentos, com vistas a propor
um estudo sociologicamente viável da literatura. Nela, percebemos como os autores
compreendem a constituição sociológica da linguagem:
A vida, portanto, não afeta um enunciado de fora; ela penetra e exerce
influência num enunciado de dentro, enquanto unidade e comunhão da
existência que circunda os falantes e unidade e comunhão de julgamentos
de valor essencialmente sociais, nascendo deste todo sem o qual nenhum
enunciado inteligível é possível (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926).
É impressionante como Bakhtin/Volochinov relacionam de forma imbricada a
linguagem com a vida [o social], mostrando, nesse movimento, como o ser humano
está no centro dessa relação com seus julgamentos de valores circunscritos
socialmente fazendo a ponte entre vida e linguagem, formando uma unidade
24
indissolúvel, resultando em um ato de interação e de comunicação social. Vida e
linguagem são plasmadas em um todo pela orientação valorativa de interlocutores
situados.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2009[1929]), Bakhtin/Volochinov
envidam uma discussão forte com a Linguística propriamente dita, deixando melhor
delineada sua concepção acerca da linguagem. Para Clark e Holquist (1998), nesta
obra:
[...] estão expostas as principais pressuposições em que todas as suas
outras obras se baseiam, por remissão a dois tópicos: o papel dos signos no
pensamento humano e o da elocução na linguagem. Cada um desses
tópicos liga-se então ao modo pelo qual transmitimos em nossa fala a fala
dos outros (CLARK; HOLQUIST, 1998, p. 233).
Verificamos nessa afirmação a presença de dois outros aspectos de extrema
importância na teoria da linguagem e do discurso do Círculo de Bakhtin: os signos
ideológicos e o dialogismo tido como sua propriedade inerente.
1.3.1 Linguagem e ideologia: os signos ideológicos
O aspecto ideológico da linguagem é amplamente discutido na primeira parte
de Marxismo e Filosofia da Linguagem (2009[1929]). Nela, Bakhtin/Volochinov
esforçam-se para atrelar a ideologia a uma semiótica valorativa. Castro (2010)
pontua que a teoria marxista, na qual o conceito de ideologia aparece como
fundamento, cujo conceito está presente, de certa forma, no pensamento teórico dos
pensadores russos, não dava um tratamento teórico à linguagem e à variedade
simbólica a que se submete toda consciência humana.
Para Bakhtin/Volochinov (2009[1929]), a ideologia está inextricavelmente
relacionada aos sentidos, cujo tratamento prescinde de uma definição precisa e
abrangente dos aspectos inerentes ao mundo semiótico que nos rodeia. Segundo
Castro, essa seria uma das preocupações teóricas dos autores em relação aos
desafios postos pelas discussões marxistas envidadas na época.
Castro continua afirmando que tal questão está ligada a um problema de
interpretação que ocorria no que se refere à compreensão das relações entre base
econômica e superestrutura — fundamentos do pensamento marxista, tomados
como molas propulsoras das mudanças sociais. Para os pensadores russos, havia
25
um erro de interpretação neste ponto em particular, uma vez que certos marxistas
confundiam causalidade econômica com causalidade de tipo mecânica, culminando
numa explicação aligeirada e simplista dessas relações.
Diante
de
tal interpretação,
Castro
observa
que
Bakhtin/Volochinov
(2009[1929]) defendem que, para tratar os fatores de mudanças sociais e o
processo
de
realização
das
superestruturas
ideológicas
em
sua
devida
complexidade, era preciso atentar para as formas de realização, composição e
organização do material verbal, porque todo domínio socioideológico está
inerentemente mergulhado na luta simbólica apoiada na palavra. Os autores russos
destacam o papel central da linguagem na percepção e explicação dos elementos
criados pelas relações sociais mediadas simbolicamente, nos diversos níveis dos
domínios da ação humana.
No
capítulo
1
de
Marxismo
Filosofia
da
Linguagem
(2009[1929]),
Bakhtin/Volochinov dizem que a linguagem é o fenômeno ideológico por excelência
e isso se explica, em parte, por sua pureza semiótica, isto é, de ser sua realidade
toda absorvida pela sua função de signo. Além disso, a defesa da linguagem como
elemento privilegiado para explicar os processos das mudanças sociais e das
formações ideológicas liga-se a uma característica desse material verbal: sua
ubiquidade social16. Para Bakhtin/Volochinov:
[...] a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos,
nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros
fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político etc. As palavras
são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama
a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a
palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações
sociais (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009[1929], p. 42).
Podemos concluir da citação acima que a linguagem tem a propriedade de
plasmar e materializar as formas de relações e de comunicação sociais travadas nos
mais diferentes domínios da ação humana, tornando-se, assim, um signo ideológico.
Há, assim, um aprimoramento do conceito de ideologia, base do pensamento
marxista, no âmbito da teoria do Círculo de Bakhtin, ao ser enquadrado pelo viés da
linguagem.
Ubiquidade social, no contexto dessa teoria, é a capacidade de a linguagem estar a serviço da comunicação social em
todo e qualquer lugar, e não no sentido de incapacidade de veicular valores, pois ela é o material mais propício para tal fim,
é o signo ideológico por excelência.
16
26
Ao se constituir signo ideológico, a linguagem ―reflete e refrata‖ em seus
elementos os índices de valores sociais que os homens constroem em relação a si,
ao outro, ao mundo, ligados não só à organização da vida socioeconômica e política,
mas também à produção cultural dos grupos organizados que entram em interação
em condições sócio-históricas determinadas17.
Assim, apesar de os pensadores russos não se preocuparem em definir
precisamente sua concepção de ideologia no conjunto de sua obra, Castro (2010)
levanta que um dos conceitos de ideologia, extraído das obras iniciais do Círculo,
está ligado a superestruturas, entendidas como conjuntos multifacetados de grandes
segmentos estruturados de ideias18, ou núcleos institucionalizados da sociedade,
sistematizados na forma de grandes visões de mundo ou de um recorte grande
valorativo-social.
O autor acrescenta que tais superestruturas ideológicas, subdivididas em
instâncias sociais, discursivas e valorativas específicas, como a ciência, a arte, o
direito, a religião etc., seriam responsáveis pela criação e manutenção do conjunto
de perspectivas valorativas presentes na realidade cotidiana (CASTRO, 2010, p.
193).
Nessa perspectiva, a ideologia espelha a organização e a regulação das
relações histórico-materiais dos homens. A esse respeito, Miotello (2008, p. 176)
afirma que ela ―é o sistema sempre atual de representação de sociedade e de
mundo construído a partir das referências constituídas nas interações e nas trocas
simbólicas desenvolvidas por determinados grupos sociais organizados‖.
Castro (2010) aponta que outro conceito de ideologia presente no
pensamento teórico do Círculo de Bakhtin é percebido como uma ação responsiva
do sujeito perante o mundo, isto é, a atividade responsiva. Este conceito é mais
compatível com o pensamento do Círculo que, assim como afirma Miotello (2005),
defendia o entendimento desse conceito como um acontecimento vivo e dialógico.
Castro (2010) salienta que o Círculo de Bakhtin soube extrair do pensamento marxista sua perspectiva sócio-histórica de
sujeito e de cultura. Nessa perspectiva, os pensadores russos não tomam as relações entre infra e superestrutura a partir
de uma explicação causal fechada de tipo econômica e política. Eles estão mais preocupados em pensar o homem e a
cultura que ele produz via sua materialidade.
17
Castro (2010) observa que este primeiro conceito de ideologia é disseminado meio que amarrado ao contexto de
produção econômica. O autor atribui esse viés, o qual Bakhtin não fará uso por estar alheio a qualquer imposição de base
econômica, às contribuições teóricas de Volochinov e Medvedev, que se posicionam mais próximos do marxismo.
18
27
Portanto, algo sempre flexível e variável acompanhando o fluxo socioverbal a que
está exposto o sujeito.
Dessa forma, a vida da ideologia está inextricavelmente ligada à interação
verbal realizada por sujeitos sociossituados. Assim, além de ligar a questão da
ideologia ao processo de constituição dos signos, os autores russos também vão
relacioná-la aos processos da subjetividade. Neste ponto, entra a questão da
constituição alteritária do sujeito a partir das relações valorativas que estabelece
com os outros. Nesse sentido, cada sujeito é único em termos de feitio subjetivo,
mas sua atividade responsiva circunscreve-se aos seus limites socioformativos. De
acordo com Castro (2010), nessa construção:
O sujeito seria assim, o elemento processador e veiculador das tendências
valorativas da sociedade, mas, como ele nunca vai assimilar todas as
vertentes e tendências sócio-valorativas da sociedade — o sujeito é sempre
uma seleção de vozes —, ele sempre se constitui numa expressão singular
e única dessas tendências, expressando sempre um viés que lhe é próprio,
possível, e inalienável, construído a partir de suas relações interpessoais
igualmente singulares (CASTRO, 2010, p. 196).
Tomando por base tal citação, podemos dizer que a ação responsiva de cada
sujeito é vista como uma expressão ideológica. Bakhtin/Volochinov (2009[1929], p.
36) mesmos vão dizer que ―a lógica da consciência é a lógica da comunicação
ideológica, da interação semiótica de um grupo social‖, e, sendo assim,
[...] não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou
mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou
desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de
um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as
palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias
ideológicas ou concernentes à vida (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009[1929],
p. 98-99).
Como observa Miotello (2005), diante de tal orientação, não podemos
restringir o conceito de ideologia na teoria do Círculo de Bakhtin à falsa consciência
ou expressão de uma ideia dada e acabada nem mesmo fechada aos domínios
sociais institucionalizados, mas tratá-lo como expressão de uma tomada de posição
valorativa pertencente não só ao sujeito, mas construído ativamente nas relações
estabelecidas em seu ambiente ou grupo social determinado.
As tomadas de posições, exteriorizadas ou não, só se realizam a partir das
ações e reações verbais endereçadas aos outros ou no encontro com os pontos de
28
vista valorativos e ideológicos dos outros. Entender ideologia como a atividade
responsiva é um passo para chegar à noção de dialogismo, que, para muitos dos
seus comentadores, constitui o princípio unificador do seu pensamento, sobre o
qual, no texto de 1959-1961, Bakhtin vai afirmar o seguinte:
Essas relações [dialógicas] são profundamente originais e não podem
reduzir-se a relações lógicas, ou lingüísticas ou psicológicas ou mecânicas,
nem a nenhuma outra relação natural. É o novo tipo de relações
semânticas, cujos membros só podem ser enunciados integrais (ou vistos
como integrais ou potencialmente integrais), atrás dos quais estão (e nos
quais exprimem a si mesmos) sujeitos do discurso reais ou potenciais,
autores de tais enunciados. O diálogo real (a conversa do cotidiano, a
discussão científica, a discussão política, etc.) (BAKHTIN, 2003[1959-1961],
p. 330-331).
Podemos entrever aí uma concepção de linguagem em sua ocorrência de uso
(os diálogos são reais e mobilizados por sujeitos reais e situados) e ativa porque tem
no ser humano, precisamente na sua relação/interação com o outro, o seu centro de
valores: ―o acontecimento da vida do texto, isto é, a sua verdadeira essência
[sentido], sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos‖
(BAKHTIN, 2003[1959-1961], p. 311). Por isso, ―todo evento da linguagem [...] é a
atualização de uma relação entre sujeitos históricos e sociais‖.
A essência da linguagem é o sentido e esse sentido nasce da diferença, do
confronto de vozes sociais travadas na interação verbal por sujeitos ativos. Assim,
dialogismo e interação estão indissoluvelmente ligados e, juntos, constituem a base
de produção dos discursos e da linguagem, logo, dos sentidos.
1.3.2 O dialogismo: princípio constitutivo da linguagem
Pelo processo do dialogismo, Bakhtin pensa o problema do sentido nos
estudos linguísticos, demonstrando sua forte capacidade de articular elementos fixos
a elementos dinâmicos em um todo indissolúvel. Bakhtin/Volochinov, no texto de
1929, dedicam um capítulo específico a essa questão ao tratar do sentido geral e
particular da linguagem, antecipando que se tratava de um problema bastante difícil
para os estudos linguísticos do início do século XX até mais da sua metade .
Para o Círculo de Bakhtin, cada ato discursivo tem seu sentido estável e
instável, pois se insere numa corrente ininterrupta de comunicação social. Assim,
como o ato envolve o dado e o criado, o discurso também supõe um sentido
29
estabilizado e um sentido específico. O primeiro é denominado de significação e o
segundo de tema do enunciado/do discurso. A significação está no plano do sistema
da língua, de suas formas gramaticais, lexicais; o tema está no plano da interação.
Sobre a distinção entre um e outro, Bakhtin/Volochinov (2009[1929]) propõem que:
O tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, que procura adaptarse adequadamente às condições de um dado momento da evolução. O
tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir. A significação
é um aparato técnico para a realização do tema (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
2009[1929], p. 134).
Por essa colocação, podemos afirmar que o tema mobiliza as formas da
língua segundo as condições de produção [de enunciação] e é essa mobilização de
elementos verbais e não-verbais que acende a chama do sentido. É por isso que
Bakhtin/Volochinov (2009[1929]) dizem que a significação é o estágio inferior, em
potencial, da capacidade da língua de significar, enquanto o tema seria o estágio
superior.
Sobral (2009, p. 75) observa, a esse respeito, que é preciso tomar essa interrelação não em termos de hierarquia, mas de precedência, isto é, a significação
antecede o tema, que precisa da base dela para se estabelecer. Por outro lado,
sozinha, a significação não dá conta do sentido porque atua no nível do que é
potencial, abstrato, dicionarizado, que toma concretude apenas no interior de um
discurso concreto. Sendo assim, o tema nasce da inter-relação autor-interlocutor
numa situação histórica e concreta de comunicação, articulada com a significação
composta pela somatória de todas as significações das formas de suas relações
morfológicas, sintáticas, léxicas etc.
No âmbito da teoria bakhtiniana, não se separa tema de significação. Não há
como tomar a significação independente do tema, bem como não há como tomar o
tema fora da base da significação, pois a enunciação, o todo discursivo, perderia seu
elo na corrente da comunicação verbal. Para os autores russos, essa diferenciação
é mais bem entendida no âmbito da compreensão.
A base da comunicação é a interação social entre sujeitos socialmente
constituídos orientados pela valoração que é ideológica. A interação só é possível
porque os sujeitos que entram em relação atuam na base do conhecimento comum
da situação discursiva, partilham um horizonte espacial comum e conhecem o
material pelo qual a comunicação é concretizada. Nesse sentido, para o Círculo:
30
compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela,
encontrar seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra
da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos
corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009[1929], p. 137).
Se houver compreensão, esta é seguida necessariamente de uma resposta.
Para responder, os interlocutores pressupõem a existência de um sistema linguístico
com que materialize sua orientação apreciativa em relação ao dizer do locutor, não
importando o tipo de relação que estabeleça com ele. Nesses termos, a
compreensão é ativa e se trata de um aspecto do dialogismo, é uma forma de
diálogo: ―compreender é opor à palavra do outro uma contrapalavra‖ (ibidem, idem).
Essa contrapalavra é uma apreciação valorativa que o interlocutor realiza da palavra
do locutor.
No ensaio de 2003[1952-1953], Bakhtin diz que, ao compreender o sentido
discursivo do enunciado, o interlocutor ―concorda ou discorda (total ou parcialmente)
completa-o, aplica-o, prepara para usá-lo‖ (BAKHTIN, 2003[1952-1953], p. 272). O
gesto de compreensão só se torna possível, porque os falantes partilham o
conhecimento comum do contexto sócio-histórico e ideológico. E isso engendra o
ato de resposta ativa, fazendo com que cada enunciado concreto realizado em uma
esfera de atividade humana específica torne-se um elo na comunicação discursiva,
num diálogo ininterrupto, com os enunciados passados, presentes e futuros.
Como vimos desenvolvendo, o dialogismo é constitutivo não só da linguagem
e das relações discursivas como também do próprio agir e ser humano. Pensando
na linguagem, são as relações dialógicas que constituem seu verdadeiro campo. As
relações dialógicas são confrontos de vozes que povoam os domínios culturais de
uma dada sociedade, comunidade ou grupo social. O discurso é apresentado, nessa
perspectiva, como a arena de enfrentamento entre essas diferentes vozes, como o
lugar da presença inerente do outro.
Na teoria enunciativo-discursiva de Bakhtin, o conceito de vozes diz respeito à
presença do outro como princípio constitutivo da produção e funcionamento
discursivo. Nesse princípio alteritário de estruturação e organização discursiva,
podemos perceber que sob o conceito de vozes, que remete ao dialogismo,
transitam diversas categorias configuradas de acordo com a especificidade da
esfera cultural e do gênero discursivo sobre os quais o autor russo se debruça em
31
uma obra ou em outra, como é o caso de polifonia, de plurilinguismo, do fenômeno
da bivocalidade etc.
Podemos definir ainda que o conceito de vozes, em Bakhtin, compreende o
processo real de representação da fala social de outrem no discurso e também diz
respeito a um processo constitutivo da produção discursiva. Sendo assim, as vozes,
que são sempre socioideológicas, pois trazem sempre um ponto de vista, uma
apreciação constituídos em determinado lugar, habitam o sujeito e se manifestam de
forma dialógica em seus discursos e habitam os enunciados do passado, presente e
futuro aos quais os discursos respondem, às vezes, sem mesmo saber (BAKHTIN,
2003[1959-1961]; AMORIM, 2003; BRAIT, 1994).
Assim, no plano do discurso, visualizamos os discursos sempre respondendo
a outros discursos e, por trás deles, sujeitos socialmente situados, nascendo dessa
inter-relação pelo discurso o sentido. Por isso, dizemos que o dialogismo são as
relações de sentido que nascem da diferença, do confronto 19 de diferentes vozes
travado pelos sujeitos nas situações a que são expostos. Podemos afirmar que o
conceito de dialogismo é amplo e envolve três planos distintos, conforme pontua
Sobral (2009).
Em primeiro lugar, dialogismo é a condição essencial de o próprio ser e agir
dos sujeitos. Conforme explicamos anteriormente, o sujeito se constitui na relação
com o outro, o qual, por sua vez, também o constitui. Assim, a formação do sujeito
sempre é dada na diferença, na alteridade, no confronto com o outro, isto é,
mediante relações dialógicas.
Em segundo lugar, no plano da linguagem e da produção de discurso,
novamente entrevemos relações dialógicas. Isso porque, a linguagem é apropriada
pelo sujeito nas situações a que é exposto e em que está inserido. Assim, a
realidade que lhe é apresentada mediante a linguagem é uma realidade
semiotizada, valorada, que passou pelo crivo da avaliação de outros. Quando
tratamos de um objeto, voltamos nosso olhar para os discursos que o circundam e
não para a realidade em si mesma. É nesse sentido que se afirma que os sentidos
nascem dos diálogos entre formas de discursos passados e formas de discursos
futuros.
Bakhtin diz que as relações dialógicas, o confronto de vozes, não podem ser tomadas de forma simplificada ou
unilaterais, reduzidas a uma relação de contradição, desacordo, o confronto de diferentes vozes podem apresentar-se
também na forma de relações dialógicas de concordância (BAKHTIN, 2003[1959-1961], p. 331).
19
32
Sobre o terceiro modo de olhar as relações dialógicas, Fiorin vai dizer que se
trata de ―maneiras externas e visíveis de mostrar outras vozes no discurso‖ (FIORIN,
2006, p. 32). Em outras palavras, o dialogismo também pode ser a base de uma
forma de composição dos discursos — o diálogo, caracterizado pela marcação
explícita das respostas na textualidade discursiva.
Para Bakhtin (2003[1959-1961]), trata-se de concepção restrita de dialogismo,
porque a concepção ampla, anteriormente apresentada, é a própria maneira de
funcionamento vivo e de constituição da linguagem, dos discursos concretos. Essas
formas de incorporação dos discursos alheios no próprio discurso são a maneira de
fazer ver esse princípio constitutivo de funcionamento da linguagem na comunicação
concreta.
De acordo com Bakhtin/Volochinov (2009[1929]), há duas maneiras de
incorporação dos discursos dos outros no próprio. A primeira apresenta-se na forma
de discurso objetificado, isto é, o discurso do outro é citado bem como demarcado
explicitamente no discurso citante, mediante a mobilização de formas textuais, como
discurso direto, discurso indireto, aspas, negação. A segunda apresenta-se na forma
do discurso bivocal, que não deixa marcas nítidas de separação entre discurso
citado e discurso citante, há uma dialogização interna, presumida, que só se
apreende pela compreensão de estratégias discursivas, como discurso indireto livre,
ironia, paródia entre outros.
Numa perspectiva bakhtiniana, todo discurso é constitutivamente dialógico,
isto é, está animado pela presença de outros discursos, ainda que esses discursos
não tenham na superfície textual uma separação nítida. Na materialidade textual, a
organização composicional dos discursos pode apresentar-se de forma dialógica ou
monologizada.
Nas formas monologizadas, de acordo com o que pretende dizer o autor, há
uma tendência, implícita ou explícita, de apagamento das vozes dos discursos que o
constitui, construindo um cenário em que a voz do autor domina soberanamente.
Nas formas dialógicas, a orquestra de vozes que constitui o discurso do autor é
mostrada explicitamente ou sugerida de maneira implícita. Há, assim, uma estratégia
discursiva de fazer ver abertamente o coro de vozes com que se entretém o autor,
com elas mantendo uma relação de concordância, discordância etc., monofônica ou
polifônica.
33
Há, assim, vários graus de monologismo e dialogismo, uma vez que não
existem formas puras. Entretanto, no funcionamento real, vivo da linguagem e dos
discursos não existem relações monológicas, mas formas que tendem a
monologizar. Nesse sentido, por mais monologizado, autoritário que pareça ser um
discurso, ele é sempre uma réplica a outro discurso e está direcionado a um outro
que o constitui.
Em suma, a concepção de linguagem e seu sentido que anima a teoria do
Círculo de Bakhtin está fundada nas relações dialógicas concretas entre centros de
valores socialmente situados. Nessa perspectiva, as diversas relações que se
estabelecem no processo de comunicação discursiva fazem surgir discursos
atravessados por diversas relações dialógicas, por isso, de certa forma,
―desacreditados‖, envoltos em múltiplas valorações. Os discursos são sempre
―réplicas‖ a discursos anteriores, sempre endereçados aos outros discursos que os
constituem e, assim, eternamente.
Com base nessa versão de linguagem, podemos afirmar com Sobral (2009)
que o dialogismo não se limita, assim, ao contexto imediato, às interações realizadas
em um contexto físico, muito menos à textualidade, à materialidade discursiva;
também não se restringe às características pessoais dos sujeitos envolvidos. O
dialogismo como princípio constitutivo da linguagem, logo, dos discursos, mobiliza
elementos numa dimensão bem mais ampla — além do linguístico para o social, a
historicidade, os valores, as ideologias etc., dos quais o linguístico é apenas uma via
imprescindível (não o mais importante) de sua materialização.
Para pensar o discursivo com Bakhtin e seu Círculo, é preciso que o
visualizemos como evento vivo, enunciado concreto — acontecimento verbal — que
participa da corrente de comunicação social ininterrupta, isto é, ao mesmo tempo
processo e produto da atividade socioverbal de uma dada comunidade ou grupo
social, deliberadamente organizado.
1.3.3 Os gêneros discursivos na perspectiva do Círculo de Bakhtin
Alguns comentadores do pensamento de Bakhtin, como Rojo (2005), entre
outros, salientam que a releitura não formalista dos gêneros por parte do Círculo de
34
Bakhtin está marcada em várias obras do grupo já na década de 1920, como nos
textos de 1926, 1928 e 1929.
Na obra de 1928, o enfrentamento se faz com os formalistas que
classificavam os gêneros em termos de um conjunto mecânico formado da
articulação de procedimentos formais recorrentes e específicos, os quais não
requeriam considerações do contexto social e histórico. Em oposição a essa forma
de classificação, Bakhtin/Medvedev vão pensar o gênero em sua ligação intrínseca
com a realidade da comunicação social e os temas nela mobilizados.
Cada gênero, se verdadeiramente, trata-se de um gênero significativo, é um
complexo sistema de recursos e modos de dominação conceitual e de
acabamento da realidade [...] repetimos que se trata de uma conclusão
substancial, temática e não de um acabamento somente condicional ou
composicional (BAKHTIN/MEDVEDEV, 1928, s.p.).
O tratamento mecânico dos elementos estruturadores de uma obra [discurso]
por parte dos formalistas levou-os a supervalorizar o plano composicional,
ofuscando o ―problema da totalidade construtiva tridimensional, o problema do todo,
o problema do gênero e o problema do acabamento temático na construção [...] dos
gêneros do discurso‖, nos termos de Souza (1999, p. 98).
Para compreender essa forma de construção da totalidade, é preciso
visualizar a temática do gênero intrinsecamente vinculada à realidade. Pelo fato de o
gênero pertencer, assim, à vida, ele aparecerá sempre duplamente orientado na
realidade, cujas particularidades determinarão, por sua vez, sua totalidade. Assim, o
gênero está orientado:
[...] em primeiro lugar, em direção aos ouvintes e receptores, e em direção a
condições determinadas de execução e percepção. Em segundo lugar...
está orientado na vida, desde o interior, por assim, dizer, mediante seu
conteúdo temático (BAKHTIN/MEDVEDEV, 1928, s.p.).
Percebemos que a dupla orientação do gênero para a realidade se sustenta
(na orientação imediata do exterior) na autoria, concebida como resultante das
relações situadas entre autor e ouvinte plasmadas no produto discursivo. Mas essa
orientação imediata exterior também está, no gênero, indissoluvelmente ligada,
desde o interior, à vida mediante seu conteúdo temático.
Com base nessa formulação, apesar de o termo gênero não estar
referenciado, entrevemos a construção de seu conceito estreitamente vinculado a
35
condições de uma situação dada de comunicação e de interação sociais
significativas como seu organizador e plasmador formal. Bakhtin/Volochinov
(2009[1929]) prometem, que ―mais tarde, em conexão com o problema da
enunciação e do diálogo, abordaremos o problema dos gêneros lingüísticos‖,
antecipando apenas que:
[...] cada época e cada grupo têm seu repertório de formas do discurso na
comunicação socioideológica. A cada grupo de formas pertencentes ao
mesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso social, corresponde um
grupo de temas. Entre as formas de comunicação (por exemplo, relações
entre colaboradores num contexto puramente técnico), a forma de
enunciação (―respostas curtas‖ na ―linguagem de negócios‖) e enfim o tema,
existe uma unidade orgânica que nada poderia destruir. Eis porque a
classificação das formas de enunciação deve apoiar-se sobre uma
classificação
das
formas
de
comunicação
verbal
(BAKHTIN/VOLOCHINVOV, 2009[1929], p. 44).
Nessa direção, podemos visualizar não só a antecipação dos gêneros como
formas de discurso social, mas também certa orientação metodológica, isto é, os
gêneros
devem
estar
subordinados
às
formas
da
comunicação
verbal
socioideológica. Essas últimas, equacionadas às esferas de atividades, das quais
nos ocuparemos mais adiante, como se vê, possuem um papel extremamente
importante na construção do gênero, são suas determinantes.
Por enquanto, importa-nos dizer que Bakhtin/Volochinov apresentam aí um
caminho para pensar os gêneros: seguir as relações hierárquicas na realidade social
e os temas aí presentes bem como as condições em que essas relações acontecem.
Esse percurso culmina em um conceito de gênero como um princípio especial de
organização e conclusão dessas relações na forma de uma totalidade discursiva.
Voltando ao texto de 1928, em razão de estar indissoluvelmente vinculado
aos temas de uma situação social dada, ―cada gênero é capaz de abarcar tão
somente alguns aspectos da realidade [...] [por meio de] determinados princípios de
seleção, determinadas formas de visão e concepção da realidade, determinados
modos... na profundidade de penetrá-la‖ (BAKHTIN/MEDVEDEV, 1928, s.p.). O
autor afirma que a realidade do gênero é aquela que lhe é acessível no âmbito social
de sua realização no processo de comunicação verbal, por isso, eles são
sociológicos.
Em contraposição à estruturação formalista do gênero, sustentada nos
elementos abstratos da língua, Bakhtin/Medvedev (1928) propõem a definição desse
36
conceito no âmbito do enunciado visto como uma totalidade discursiva, da qual o
gênero é a forma tipificada de construção e de acabamento. O enunciado é
apresentado como a unidade real da comunicação verbal e não uma unidade
abstrata.
Tal
orientação
já
está
marcada
no
texto
de
1926,
em
que
Bakhtin/Volochinov fazem a seguinte afirmação:
O enunciado concreto (e não a abstração linguística) nasce, vive e morre
no processo de interação social entre os participantes da enunciação. Sua
forma e significado são determinados basicamente pela forma e caráter
desta interação. Quando cortamos o enunciado do solo real que o nutre,
perdemos a chave tanto de sua forma quanto de seu conteúdo — tudo que
nos resta é uma casca lingüística abstrata ou um esquema semântico
igualmente abstrato (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926, s.p.).
Tal formulação transcende as questões estritamente linguísticas e orienta-se
para
o
―contexto
extraverbal‖.
Essa
dimensão
compreende
três
fatores
imprescindíveis para a compreensão do enunciado: o horizonte espacial comum
(lugar); o conhecimento e a compreensão comum da situação (a unidade
temática/objeto do discurso) e a avaliação comum da situação (a valoração). Esses
fatores que compõem o contexto extraverbal do enunciado, ou sua dimensão
presumida, integram-se aos seus elementos composicionais, mediante a valoração,
formando uma unidade orgânica.
A formulação da noção de enunciado concreto, nesses termos, lança as
bases, nas obras iniciais, para a construção do conceito de gênero discursivo, mais
bem explicitado, mas não acabado, no ensaio O problema dos gêneros do discurso
(2003[1952-1953]).
Gênero discursivo é apresentado como um objeto de caráter sócio-histórico,
inextricavelmente ligado a uma esfera ideológica precisa que lhe imprime
características próprias. Essas características do gênero são referidas, no texto de
1928, como a totalidade construtiva tridimensional, a qual será apresentada, no texto
de 2003[1952-1953], como resultante da mobilização de um conteúdo temático, da
escolha e organização das palavras (o estilo verbal) e a sua disposição (a forma
composicional), os quais seriam articulados e sempre atualizados pela valoração,
em um determinado momento.
As características genéricas acima mencionadas constituir-se-iam no todo do
enunciado que, de acordo com sua recorrência em situações parecidas ou
semelhantes, no âmbito das esferas de atuação, adquiririam relativa estabilidade,
37
podendo ser, assim, recuperadas e utilizadas como pré-configuração, constituindose em gêneros do discurso.
Para pensar melhor essa interação entre enunciado e gênero, remetemos à
concepção de linguagem do Círculo de Bakhtin formulada em termos de uma
totalidade arquitetônica. Sobral (2009b), sustentado no diálogo do Círculo com suas
bases filosóficas20, afirma que Bakhtin, já em Para uma Filosofia do Ato (1919-1921),
recusa radicalmente todas as formas de teorização que tomam a parte pelo todo,
propondo, em contrapartida, uma junção proveitosa entre o que há de comum entre
os atos/enunciados e o que há de singular em cada ato/enunciado.
O arremate de tal junção está na valoração que o sujeito realiza no processo
de produção do ato/enunciado. Teoricamente, essa união é feita pela integração
entre significação [o plano de sentido relativamente estabilizado — o conteúdo
temático] e sentido [o plano de sentido construído em um contexto específico — o
tema] em todo processo de produção de discursos/enunciados.
Rojo (2005) sugere que o pensamento do Círculo de Bakhtin acerca dos
gêneros seja conhecido seguindo as pistas do processo de construção dessa noção
desde as obras iniciais. Isso possibilitaria ver a imbricação e acumulação de
conceitos equivalentes e refinados numa evolução contínua que tomará, no texto de
2003[1952-1953], contornos de formalização explícita e de divulgação incompleta. A
pesquisadora lastima que
[...] a maior parte dos pesquisadores que recorrem a Bakhtin para
discorrer/dialogar sobre os gêneros não cheguem a freqüentar a obra do
Círculo de maneira mais dialógica e, simplesmente, contentem-se em citar
ou repetir o texto de 1953, de maneira mais monofônica. Nesse outro
caminho, mais polifônico, poderíamos relacionar — mais fácil e claramente
— o conceito de gênero com os conceitos de dialogismo, heteroglossia,
cronotopos, plurilingüismo, hibridismo, de tal maneira que a noção
bakhtiniana de gênero do discurso seja colocada, de uma vez por todas,
como um objeto discursivo ou enunciativo, e não como uma forma ou tipo,
palavras infelizmente escolhidas por Bakhtin, no texto de 1953 (ROJO,
2005, p. 196).
Podemos, assim, visualizar, pelo breve percurso por nós realizado em
algumas obras iniciais do Círculo de Bakhtin em que a noção de gênero aparece de
alguma forma trabalhada, a incriptação e junção de vários conceitos. Estes
Sobral (2005, 2008) diz que Bakhtin, para a construção de sua concepção de linguagem e de discurso, une de forma
complexa aspectos da obra de Kant, da fenomenologia de Husserl e do materialismo histórico-dialético de Marx e Engels.
Conforme o pesquisador, Bakhtin não trata de maneira eclética do pensamento desses filósofos, mas com eles dialoga no
sentido de releitura e apropriação daqueles aspectos que pudessem estar a serviço do projeto do Círculo.
20
38
culminarão numa noção de gênero bem mais complexa e rica, em que o sentido
construído dialogicamente pela interação linguística entre sujeitos é sua pedra
angular, sempre renovada e atualizada cada vez que um enunciado é produzido em
seu âmbito.
Nosso intuito, ao percorrer outras obras do Círculo, foi melhor compreender
as noções de enunciado e de gênero, cruciais para nosso trabalho de pesquisa,
dentro do próprio arcabouço teórico do Círculo de Bakhtin, a fim de evitar a
tendência classificatória desses conceitos. Sob esse prisma, a noção de gênero
pode ser tomada, sim, como um tipo relativamente estável de enunciado com suas
particularidades, mas são tipos de natureza social, vinculados a esferas de
comunicação verbal, orientados por relações dialógicas por trás das quais estão
autor e interlocutor em um contexto de valores definido.
Podemos complementar essa consideração com Sobral (2009b), dizendo que
os elementos linguístico-textuais, a situação de produção dos discursos e as
circunstâncias de tempo e de espaço estão unidas, no enunciado, pela orientação
de produção de sentido, levada a efeito na relação entre os interlocutores nela
envolvidos, bem como da orientação destes para o objeto discursivo.
Nesse sentido, o enunciado é resultado desse processo autoral que deixa
suas marcas no conteúdo, no material e na forma do enunciado, o que nos remete à
diferenciação e, ao mesmo tempo, articulação intrínseca pela valoração entre formas
composicionais (elementos formais ou plano textual) e formas arquitetônicas
(elementos enunciativos ou plano contextual).
De acordo com Souza (1999, p. 91), o conceito de enunciado concreto
apresenta-se, no interior das ideias do Círculo, como base de reflexão para pensar
sobre os gêneros do discurso. São os enunciados que engendram os gêneros no
processo da comunicação verbal a partir de determinadas relações na comunicação
social.
É no âmbito do enunciado como unidade da comunicação verbal que
podemos analisar cada gênero. Assim, aquela promessa feita por Bakhtin, na obra
de 1929, de abordar os gêneros em sua vinculação com os enunciados é realizada
no ensaio de 1952-1953, na qual o autor estabelece que esse conceito é a unidade
de comunicação real. Vejamos como a construção dessa noção contribui para
entendermos a noção de gênero.
39
1.3.4 O conceito de enunciado concreto
No terreno da vida, como unidade da comunicação real, um índice da
presença do enunciado é que ele possui autoria, isto é, tem autor e destinatário. O
enunciado provém de alguém e se destina a alguém, que se posiciona em várias
dimensões.
O destinatário pode ser o interlocutor do diálogo face a face, um participante
presumido no contexto de circulação do enunciado ou um supradestinatário que
transcende as fronteiras temporais e espaciais de produção do enunciado. Por
possuir autor e estar direcionado a um destinatário, o enunciado constitui-se em um
conjunto semântico de natureza dialógica — elo na cadeia da comunicação verbal
de uma dada esfera de atividade. Como elo de sentido, o enunciado, além de estar
orientado para o seu objeto de sentido, também está orientado para os enunciados
dos outros, é sempre uma resposta a enunciados anteriores e uma projeção de
respostas ulteriores:
[...] todo enunciado, além do seu objeto, sempre responde (no sentido
amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o
antecederam. O falante não é um Adão, e por isso o próprio objeto do seu
discurso se torna inevitavelmente um palco de encontro com opiniões de
interlocutores imediatos (na conversa ou na discussão sobre algum
acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista, visões de mundo,
correntes, teorias etc. (no campo da comunicação cultural). Uma visão de
mundo, uma corrente, um ponto de vista, uma opinião sempre têm uma
expressão verbalizada. Tudo isso é discurso do outro (em forma pessoal ou
impessoal), e este não pode deixar de refletir-se no enunciado. O enunciado
está voltado não só para o seu objeto mas também para os discursos do
outro sobre ele (BAKHTIN, 2003 [1952-1953], p. 300).
Na obra acima citada, Bakhtin enfatiza em várias passagens essas
características do enunciado — a de ser elo na corrente de comunicação discursiva
e a de pertencer a alguém e estar orientado para outro. Assim, um enunciado pode
plasmar diferentes sentidos sobre um mesmo objeto discursivo. Os enunciados não
são indiferentes uns aos outros nem são auto-suficientes; conhecem-se um aos
outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos que lhes
determinam seu caráter dialógico.
Segundo Barbosa (2001), no contexto brasileiro de recepção das ideias do
Círculo de Bakhtin, essas características do enunciado — ser uma resposta e estar
pleno de outras, o que implica uma compreensão responsiva ativa e criadora — vão
40
funcionar como marcas distintivas da teoria sócio-histórica do Círculo de Bakhtin em
relação a outras teorias enunciativas atuais.
Partindo da corrente da comunicação social e, dentro dela, do fluxo verbal
ligado às várias esferas de atividades humanas, aqueles que se filiam à teoria
bakhtiniana não precisam diferenciar, por exemplo, o seu conceito de enunciado do
conceito de enunciação. O escopo sociológico orientando a concepção de
linguagem do Círculo faz com que a escolha de um único termo — enunciado
concreto — recubra processo/produto, enunciação/enunciado21, não precisando,
assim, entrar em pauta de discussão a sua diferenciação.
Além da orientação voltada para o objeto do discurso e para os outros
enunciados, todo enunciado é expressivo, isto é, marca uma atitude valorativa do
autor frente ao objeto do discurso e aos enunciados alheios (existentes, préfigurados) dos outros participantes da comunicação discursiva, que se manifesta de
diversas maneiras e intensidades, na constituição do enunciado.
Assim, estar
orientado para um objeto de sentido e para um destinatário é um dos fatores que
diferencia enunciado das formas da língua e da materialidade do texto.
Além desses aspectos, Bakhtin diz que outros dois fatores intrinsecamente
ligados determinam a constituição do enunciado. O primeiro diz respeito a sua
necessidade de resposta, que implica a troca ou alternância (imediata ou não) entre
os sujeitos do discurso. Todo enunciado, em um dado momento, chega ao fim e
abre-se, então, para a compreensão responsiva ativa e criadora do leitor.
O segundo fator, inclusive colocado no texto de 1928, diz respeito ao
acabamento do enunciado concreto que, para Bakhtin/Medvedev (1928), mostra-se
um dos aspectos mais importantes na teoria dos gêneros. O acabamento é
específico do enunciado e indica que o autor disse tudo o que queria dizer de acordo
com o seu projeto discursivo, exaurindo substancialmente o objeto de sentido. São a
alternância e o acabamento que permitem a resposta do outro, possibilitando, assim,
a continuidade ininterrupta do diálogo na corrente da comunicação discursiva.
Devido a essas razões, Bakhtin/Medvedev (1928) e Bakhtin (2003[19521953]) dizem que não devemos confundir acabamento com fim. O acabamento de
sentido está ligado a um enunciado específico em condições determinadas,
Paulo Bezerra, em nota de rodapé, nos informa que o termo empregado por Bakhtin, para referir-se a este conceito,
―viskázivanie‖ recobre tanto enunciado como enunciação, concluindo que o autor russo não faz distinção entre um e outro
(2003 [1952-1953], p. 261).
21
41
dependente do tratamento do objeto, do material e dentro dos limites de um objetivo
definido do autor, por isso é relativo. A intenção discursiva do autor, no âmbito de
condições de comunicação discursiva específica ligada intrinsecamente aos
enunciados anteriores, determina, por assim dizer, a escolha do objeto de sentido e,
em relação necessária com ele, a escolha das formas típicas de gênero do
enunciado.
Como afirma o próprio Bakhtin, o enunciado é extremamente importante para
a compreensão dos gêneros. O enunciado é definido como uma unidade discursiva,
ou conjunto de posições de sentidos através da qual o autor executa um dado
projeto enunciativo. Esse conjunto de sentidos é resultante da apreciação valorativa
de seu autor em relação ao objeto discursivo, aos enunciados anteriores dos outros
sobre esse objeto, considerando a resposta ativa do destinatário a quem se dirige.
No âmbito das relações dialógicas, o intuito discursivo do autor (o elemento
subjetivo) está relacionado a uma temática (o elemento objetivo), a qual está
vinculada a uma situação concreta de comunicação verbal, marcada pelas
circunstâncias individuais bem como pela relação individual dos interlocutores e
suas respectivas orientações em relação aos enunciados anteriores. Esses
parâmetros da situação de produção determinam a escolha das formas típicas do
gênero do acabamento.
Por outro lado, esse projeto discursivo do autor e sua orientação valorativa
em direção aos outros parâmetros da situação de produção estão submetidos, em
certa medida, às coerções das esferas de atuação onde são gerados e circulam os
gêneros bem como da relação específica entre os interlocutores, por isso, o autor,
ao mesmo tempo em que escolhe o gênero, adapta seu projeto discursivo ao gênero
escolhido.
Se tomarmos, juntamente com Sobral (2009a), a consideração da concepção
de linguagem do Círculo como um sistema semiótico no interior do qual agem forças
centrípetas (buscam a estabilidade) e centrífugas (aspiram a mudanças),
visualizaremos a linguagem como produto e processo dessa luta tensa e contínua
entre esses dois núcleos de forças, isto é, a busca constante pela cristalização de
significações e a imensidão de possibilidades de sentidos sócio-historicamente
construídos e em construção.
Tal tensão dialógica não se dá em um vácuo, mas tem como centro a
interação linguística de sujeitos concretos, interação esta estruturada e determinada
42
pelas formas de organização e de distribuição dos papéis sociais ideologicamente
marcados e historicamente constituídos nas diversas instituições e situações de
produção dos discursos, as quais são denominadas por Bakhtin/Volochinov
(2009[1929]) de esferas de atividade humana.
Percebemos que as esferas são de extrema importância para a compreensão
dos discursos e, por consequência, dos gêneros, no âmbito da teoria discursiva do
Círculo de Bakhtin. Sendo assim, buscamos entender esse conceito.
1.3.5 As esferas de atividade humana
Bakhtin, apesar de referir-se a algumas esferas de atividade em vários textos,
não faz considerações específicas a respeito desse conceito. De acordo com Sobral
(2009a), as esferas são espaços de caráter sócio-histórico e ideológico de recorte do
mundo onde se dão as relações entre os sujeitos, sejam elas discursivas ou não.
O grau de estabilidade dessas esferas depende do seu grau de
sistematização, ou do nível de sua institucionalização, no interior de uma dada
sociedade, em um percurso histórico e conforme com conjunturas específicas. As
esferas podem ser definidas como modos sócio-históricos relativamente estáveis de
relação humana, por isso:
[...] esfera tem um caráter mais amplo do que definições de instituição que
se restringem àquilo que o Estado inclui em seu aparato. Para o Círculo, o
simples fato do encontro casual de duas pessoas já é um evento
institucional, uma relação social e histórica que envolve toda a sociedade,
do ponto de vista de seus diferentes recortes possíveis num dado momento
histórico. A relação entre duas pessoas traz à cena a soma total das
relações sociais dessas pessoas, envolvendo no mínimo um espectro que
vai da família ao Estado. Isso ocorre porque a sociedade não pode existir
independentemente das relações entre os sujeitos que dela fazem parte:
são precisamente essas relações que a constituem, seja qual for o ambiente
e o grau específico de ―formalização‖ desse ambiente (SOBRAL, 2009a, p.
121).
Segundo Barbosa (2001), com base em algumas características recortadas
do conceito de campo de Bourdieu, cada esfera implica uma correlação de forças
entre os sujeitos que possuem diferentes posições sociais as quais são instituídas
pelas próprias esferas. Além disso, essas esferas trazem certas regras que impõem
certas restrições a depender da função e do grau de hierarquia estabelecido entre os
sujeitos sociais nela participantes, das finalidades dessa participação e dos
43
interesses em jogo. A autora aponta ainda que cada uma dessas esferas configura e
é configurada por relações específicas de interação verbal, constituindo as esferas
de comunicação.
Percebemos, assim, a vinculação intrínseca entre o uso da linguagem e as
atividades humanas. Por isso, a produção dos discursos deve ser vista em sua
função no processo de interação no âmbito das esferas de atuação humana,
considerando as restrições impostas pelas interrelações de posições sociais, pelo
jogo de interesse e pelas finalidades próprias dessas esferas. Os discursos
exprimem em sua configuração temática, composicional e estilística as condições de
cada esfera.
Bakhtin (2003[1952-1953]) divide as esferas de atividade humana em dois
grandes domínios culturais, a esfera da vida cotidiana22 no interior da qual se
configuram
gêneros
primários
(de
organização
simples),
vinculados
mais
diretamente com a modalidade oral da linguagem, e as esferas da comunicação
ideológica sistematizada23, no âmbito das quais nascem os gêneros secundários (de
organização mais complexa e elaborada), relacionados, em grande medida, à
modalidade da linguagem escrita.
Padilha (2005) aponta que tal divisão pode ser uma tentativa do autor de
melhor operacionalizar a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso que, à
parte as diferenças dos tipos genéricos de um ou outro domínio, comungam de uma
natureza verbal comum.
De acordo com o autor russo, tal divisão e diferenciação são de extrema
importância para a compreensão da complexa natureza do enunciado. No seu
processo de formação, os gêneros secundários absorvem e reelaboram diversos
gêneros primários que se transformariam no âmbito daqueles, perdendo sua
vinculação direta com o contexto de produção imediato. Vemos, assim, o princípio
A ideologia do cotidiano é a totalidade da atividade mental centrada sobre a vida cotidiana e a expressão exterior que a
ela se liga constitui o domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada num sistema que acompanha cada um
dos atos, gestos e cada um dos nossos estados de consciência. Na ideologia do cotidiano, podem-se distinguir ―níveis
determinados‖ pela escala social, os quais servem para medir a atividade mental e a expressão. Nesses níveis, tomam
corpo as novas forças sociais capazes de penetrar nas ideologias especializadas que, no entanto, submetem-se à influência
dos sistemas ideológicos estabelecidos e assimilam parcialmente suas formas, práticas e abordagens
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009 [1929]).
22
Os sistemas ideológicos especializados e formalizados, a moral, a justiça, a arte, o jornalismo, a escola, são produtos do
desenvolvimento técnico-econômico da sociedade. Eles se constituem e cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano e,
em retorno, exercem forte influência sobre ela, dão o tom a essa ideologia. No entanto, os sistemas formalizados mantêm
um vínculo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009 [1929]).
23
44
do dialogismo regendo, por toda parte a que se olha, a teoria discursiva do Círculo
bakhtiniano.
O fluxo discursivo, espaço próprio do vir-a-ser do sentido, pertencente a cada
esfera, estabiliza as formas discursivas em que se materializa seu funcionamento,
constituindo, assim, práticas discursivas mais ou menos regulares, isto é, os gêneros
do discurso. Essas práticas discursivas relativamente estáveis constituem-se em
totalidades
construtivas
tridimensionais
indissociáveis
que
exprimem
as
especificidades da esfera de atividade humana a qual se encontram, de certa forma,
vinculadas.
Essa característica do gênero de ser, ao mesmo tempo, repetível e instável
faz com que, por um lado, ele funcione como modelo para entender e agir
discursivamente, imprimindo certa normatividade nas interações de linguagem a fim
de não se criar sempre do nada os modos de falar a cada vez que se interage
discursivamente:
[...] Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gênero e,
quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas
primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto é, uma
extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada
construção composicional, prevemos o fim, isto é, desde o início temos a
sensação do conjunto do discurso que em seguida apenas a diferencia no
processo da fala. Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os
dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do
discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a
comunicação discursiva seria quase impossível (BAKHTIN, 2003[19521953], p. 283).
Podemos inferir daí que a escolha ou a adoção de um enunciado típico
depende do conjunto de gêneros disponíveis e historicamente legitimados nos
espaços sociais. Entretanto, não podemos nos esquecer de que essas formas de
comunicação discursiva estão sujeitas a mudanças, reavaliações que marcam seu
lado instável e permitem a interferência dos elementos da situação social mais
imediata na construção do gênero do enunciado.
Constituem-se como elementos das condições reais de produção do gênero
do enunciado a intenção discursiva do autor (objetivo), as necessidades de uma
temática (finalidade do objeto de sentido), a relação entre os participantes, o fundo
aperceptivo (representação) que os participantes têm um dos outros e da situação,
todos envolvidos pelo elemento axiológico (valor). De acordo com Bakhtin
(2003[1952-1953]), o autor, com toda sua individualidade e subjetividade, adapta
45
seu projeto discursivo ao gênero escolhido. Assim, a generalidade dos enunciados
típicos está indissoluvelmente vinculada à singularidade dos enunciados enquanto
―acontecimento‖ único e irrepetível que a atualiza sempre que é utilizado nas
relações concretas pelo autor.
1.3.6 Gêneros discursivos e a constituição arquitetônica
A articulação entre atividade autoral e gênero vista a partir do enfoque da
apreciação valorativa do autor estabelece os elementos temáticos, composicionais e
estilísticos do enunciado/discurso, que, quando tipificados, passam a constituir as
dimensões essenciais do gênero do discurso enquanto um todo discursivo.
Tais dimensões são apresentadas por Bakhtin (2003[1952-1953]) nos termos
de um tripé indissociável: os conteúdos ideológicos costumeiramente mobilizados
através do gênero (os temas); as formas dos procedimentos estruturais da
comunicação discursiva compartilhadas pelos textos pertencentes ao gênero
(formas composicionais) e a escolha dos elementos linguísticos (gramaticais,
lexicais) engendrados a partir da posição enunciativa do autor e da forma
composicional do gênero (o estilo).
O conteúdo temático não se confunde com assunto. Está aí referido a objetos
de sentidos que podem ser mobilizados ou dizíveis por determinada forma genérica,
isto é, seria a parcela da realidade acessível e concebível pelo gênero
(BAKHTIN/MEDVEDEV, 1928). A nosso ver, conteúdo temático pode ser visto como
temas típicos, determinados sócio-historicamente, que, por serem costumeiramente
mobilizados pelos enunciados pertencentes ao gênero, tomaram certa regularidade.
A título de exemplo, podemos dizer que o domínio de sentido de que se
ocupa o gênero artigo de opinião sãos os acontecimentos sociais (variados em
escala temporal) que se mostram discursivizados e permitem uma opinião
(avaliação) deliberada/declarada por parte de um autor seja legitimado pelo próprio
lugar social de onde fala e pela instituição jornalística que faz a mediação da
produção deste gênero. Acrescentaríamos que cada esfera de atividade recorta
dimensões específicas da realidade de acordo com suas necessidades, construindo
o conjunto de temas típicos passíveis de serem nela mobilizados por suas formas
genéricas específicas.
46
Os procedimentos composicionais referem-se a maneiras de organizar,
dispor, combinar os elementos materiais dos enunciados típicos em função das
necessidades de suas temáticas, das condições específicas de comunicação e das
finalidades e restrições esféricas. Poderíamos dizer que se trata de uma forma de
compor ou de dizer vinculada aos conteúdos do discurso e ao material em que é
realizado.
Trata-se de uma formulação importante porque, ao longo de suas obras, o
Círculo de Bakhtin sempre postulou que o objeto discursivo é uma totalidade de
sentido em que há a união intrínseca do conteúdo, do material e da forma. Essa
união é feita tendo por base o intuito discursivo de um autor, orientado
axiologicamente para o conteúdo e para a recepção ativa de um interlocutor. Por
esse motivo, essa atividade autoral duplamente orientada e valorada modela o
conteúdo do discurso, constituindo o que Círculo denomina forma arquitetônica.
As formas arquitetônicas precisam, para sua concretização, de um material
que organize seu conteúdo, daí entrariam as formas composicionais, relacionadas
às formas da língua e às estruturas textuais, formando dados textos empíricos.
Como se vê, as formas composicionais existem em função das formas arquitetônicas
que as realizam de várias maneiras, dependendo dos elementos discursivos acima
mencionados. Logo, não se pode falar em forma arquitetônica sem mencionar as
formas composicionais, pois que aquela precisa destas para organizar o conteúdo.
O estilo de uma forma genérica diz respeito à seleção típica dos recursos
léxicos, fraseológicos e gramaticais da língua e está vinculado, da mesma forma que
os procedimentos composicionais, à atividade autoral no âmbito dos enunciados e
de suas formas típicas nos espaços das relações de comunicação social — as
esferas. Assim, o estilo está vinculado ao conteúdo de um discurso e aos seus
modos de organização, não se tratando, portanto, de um desvio da norma. No
ensaio de 1926, Bakhtin/Volochinov fazem a seguinte definição desse conceito:
‗O estilo é o homem‘ dizem; mas podemos dizer: o estilo é, pelo menos,
duas pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu grupo social na
forma de seu representante autorizado, o ouvinte — o participante
constante
na
fala
interior
e
exterior
de
uma
pessoa
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926, s.p.).
47
Podemos visualizar, assim, que o estilo, seguindo a mesma explicação de
outros conceitos, se define pela interação dialógica nos espaços sociais entre os
participantes discursivos.
Bakhtin/Volochinov (1926) salientam que o estilo é determinado por dois
princípios constitutivos: as avaliações valorativas do autor e do interlocutor em
relação ao objeto (―o peso hierárquico do mundo que ele descreve‖), e o grau de
proximidade existente entre o autor do enunciado e esse interlocutor em relação a
esse conteúdo determinado. A respeito dessa atitude avaliativa, Bakhtin/Volochinov
frisam que não se trata daquelas
avaliações ideológicas que estão incorporadas no conteúdo [...] na forma de
julgamentos ou conclusões, mas àquela espécie mais entranhada, mais
profunda de avaliação via forma que encontra expressão na própria maneira
pela qual o material [...] é disposto (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926, s.p.).
Nesse sentido, dizemos que o estilo são escolhas operadas nos elementos da
língua para expor o conteúdo discursivo e mostrar como são mantidas as relações
dialógicas, em termos de valor e proximidade, entre os participantes em relação a
esse conteúdo discursivo.
No ensaio de 2003[1952-1953], Bakhtin afirma que o estilo está estritamente
vinculado aos enunciados e suas formas típicas, os gêneros. Todo gênero possui
um estilo típico; entretanto, todo enunciado, por ser individual, pode apresentar
aspectos da individualidade do falante, ou seja, pode absorver um estilo particular.
Esse estilo individual reflete a atitude subjetiva e avaliadora do autor a respeito do
objeto do discurso e do fundo aperceptivo que o destinatário possui desse objeto a
partir da relação social entre ambos [autor e ouvinte].
Mais uma vez reiteremos, então, que se trata de mecanismos dialógicos de
introdução de pontos de vistas valorativos, axiológicos, não de fenômenos
superficiais do nível da forma ou funcionalidade.
Gostaríamos de concluir este capítulo afirmando que a entrada na linguagem
pelo uso leva necessariamente à eleição do sentido como objeto a perseguir. O
sentido é construído no eterno vir-a-ser das relações dialógicas e precisa mobilizar
uma materialidade textual via discurso no âmbito de um gênero.
Tal movimento está marcado no texto e aponta para dimensões intra e
extratextual, ao mesmo tempo, as quais nos servirão para buscar os elementos do
48
discurso/do gênero vinculado no/com o texto e que dão forma ao ―cenário do evento‖
de que falam Bakhtin/Volochinov (1926). Trata-se, assim, não de excluir categorias
textuais, mas de manter a ordem hierárquica de relevância a ser considerada, que,
segundo os pensadores russos, ao propor seu método sociológico de análise da
linguagem, seria a seguinte:
1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições
concretas em que se realiza (as esferas de atividade);
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em
ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as
categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a
uma determinação pela interação verbal (os gêneros);
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística
habitual (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009 [1929], p. 129).
Nesse sentido, é o discurso que significa o texto e não o contrário. E essa
mobilização dá-se no interior de um gênero, que pressupõe uma dada esfera de
atuação humana. Sendo assim, podemos dizer que o gênero é uma forma sóciohistórica e ideológica de recortar o mundo/realidade nos espaços sociais de atuação
humana e não textos que apresentam características semelhantes. Como afirma
Ponzio (2008, p. 186): ―o signo [enunciado/gênero] não é uma coisa, mas um
processo, um cruzamento de relações‖.
Como estamos pensando na linguagem em uso voltada para o processo
pedagógico, isto é, temos como enfoque propostas de trabalho que tomem o gênero
como objeto ou base para o ensino-aprendizagem de língua materna, buscaremos,
no próximo capítulo, apresentar também a teoria didático-pedagógica que orienta o
programa OLPEF, objeto de nossa análise.
49
CAPÍTULO 2
Mudanças pedagógicas e didáticas no ensino-aprendizagem de língua
materna: Vygotsky e a Escola de Genebra
[...] o aprendizado humano pressupõe uma natureza social específica e um
processo através do qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles
que as cercam.
VYGOTSKY (1934)
Como vimos desenvolvendo no Capítulo 1, se, devido às mudanças sociais
instauradas nos fins do século XX, uma nova concepção de linguagem levou a
mudanças no conteúdo ou objeto da disciplina Língua Portuguesa, os métodos de
ensino também foram questionados a partir de novas teorias de ensinoaprendizagem. Também entram em pauta de discussão os processos de
transposição e didatização desses conteúdos.
Por nossa pesquisa inserir-se nos pressupostos do paradigma sócio-histórico
e cultural, neste capítulo, pretendemos apresentar a concepção de ensinoaprendizagem do psicólogo russo Lev S. Vygotsky, para pensar os processos de
ensino-aprendizagem, uma vez que ele afirma, assim como Bakhtin, a primazia da
interação social nos processos de construção de todo conhecimento humano.
Interessam-nos, também, discutir os pressupostos didáticos da Escola de
Genebra, na abordagem de B. Schneuwly e J. Dolz, por fundamentarem a
organização do material didático do Programa OLPEF, objeto desta pesquisa.
2.1 Vygotsky e o ensino-aprendizagem de língua materna: a ZPD
Vygotsky, além de estudar a constituição e o funcionamento dos processos
psíquicos superiores [consciência, conhecimento], a função social e psicológica da
linguagem, dedicou-se também, devido a seus interesses ligados a temas
educacionais, a estudar os processos de ensino-aprendizagem escolar.
Neste trabalho, em função de sua natureza e objetivo, focalizaremos
especificamente a relação entre ensino-aprendizagem e desenvolvimento e a
50
categoria pedagogicamente rica, acionada pelos processos de aprendizagem,
denominada por Vygotsky de zona proximal de desenvolvimento (ZPD) 24.
Um ponto importante para se pensar na proposta teórica de Vygotsky
(2008[1934]) é o caráter social da aprendizagem. Para ele, a aprendizagem é um
processo social de apropriação da cultura historicamente construída pela sociedade
e ocorre na inter-relação das crianças com os adultos ou com um par mais
avançado. Considerando ainda a aprendizagem um processo ininterrupto, ele
também pode ocorrer entre pessoas e companheiros mais experientes, por isso, sua
natureza é especificamente sócio-histórica e a internalização de seus instrumentos
ocorre pela atividade mediadora do ―outro‖ 25.
Pensando no aprendizado escolar, diríamos que ele tem uma história prévia,
uma vez que as crianças não começam a aprender a partir de sua entrada na
escola, mas desde o nascimento. Essa aprendizagem pré-escolar construída na
interação da criança com o meio social e cultural nas atividades cotidianas
subsidiará a construção dos conceitos escolares. A aprendizagem escolar
pressupõe uma espécie de diálogo de duas vias entre a construção de conceitos
cotidianos e a construção de conceitos científicos ou sistemáticos que se dá na
escola. Quando os conceitos científicos são totalmente apreendidos, eles perfazem
o caminho de volta, reorganizando os conceitos cotidianos, em um jogo de
constituição mútua.
Nesse processo, o papel da linguagem aparece como pedra angular, uma vez
que é ela que subsidia as interações bem como ancora a construção e evolução do
pensamento abstrato (verbal). Partindo do pressuposto de que seria pela linguagem
que a criança se apropria do conhecimento e da experiência humanos, construídos
sócio-historicamente, é por ela também que a criança internaliza esses
conhecimentos e experiências, construindo sua individualidade. Assim, quando a
criança resolve determinados problemas de forma independente, isso significa que
Optamos por nos referir a este conceito na forma de zona proximal de desenvolvimento (ZPD) e não zona de
desenvolvimento proximal (ZDP), porque, concordando com Rojo (2000), acreditamos que a ênfase do adjetivo recai sobre
a zona fronteiriça ativada pelo ensino-aprendizagem e não sobre o desenvolvimento.
24
No curso do desenvolvimento, a criança apropria-se dos sistemas simbólicos construídos historicamente pelo grupo social
que a cerca, transformando-os em conhecimento interior através da imitação e da aprendizagem, processos que percorrem
primeiro o nível intersubjetivo (a interação social) em direção ao nível intrasubjetivo (conhecimento interno). Trata-se, assim,
de um processo histórico dinâmico e ininterrupto de intercâmbio humano travado nas várias esferas sociais, como a família,
a igreja, a imprensa, os sindicatos, a escola etc.
25
51
esses conhecimentos foram consolidados e reconstruídos e passam a se constituir
como conhecimentos individualizados26.
Nesse sentido, para Vygotsky (2008[1926, 1934]), o caminho percorrido pelo
aprendizado e pelo desenvolvimento passa primeiro pelo social para depois
transformar-se
em
atividade
individual
interior.
Assim,
contrapondo-se
às
perspectivas naturalistas e biológicas que também se dedicavam a essa temática e
que colocavam o aprendizado a reboque do desenvolvimento 27, o psicólogo russo,
por meio de um conceito pedagogicamente rico e instrumentalmente poderoso — o
de ZPD — fornece subsídios proveitosos para pensar o ensino-aprendizagem em
situações escolares. O autor apresenta esse conceito como um:
[...] espaço dinâmico onde se desvela a distância entre o nível de
desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução
independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial,
determinado através da solução de problemas sob a orientação de um
adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY,
28
2008 [1934], p. 97) .
A criação de ZPD pelas atividades de ensino-aprendizado despertaria ―vários
processos internos de desenvolvimento, que são capazes de operar somente
quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e quando em cooperação
com seus companheiros‖ (VYGOTSKY, 2008[1934], p. 103). Sendo assim, apesar de
inter-relacionados, ensino-aprendizado e desenvolvimento não se confundem: ―o
processo de desenvolvimento progride de forma mais lenta e atrás do processo de
aprendizado; desta sequenciação resultam, então, as zonas de desenvolvimento
O ensino-aprendizagem, mediado pelo outro (colega ou professor) e pelos instrumentos simbólicos (linguagem), aciona o
processo de desenvolvimento das funções mentais superiores que englobam desde a memória, a análise, o planejamento,
a formação do pensamento e, principalmente, o domínio da linguagem. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que toda função
psicológica superior, antes de ser internalizada, passou pela experiência exterior — a relação social. Ressalte-se que o que
foi adquirido no plano externo não é simplesmente transferido para o plano interno — o processo de internalização é
sempre ativo. A recepção não é passiva às influências sociais. Pode-se falar de uma reconstrução interna que transforma o
internalizado. O papel do outro é sempre muito importante nessa atividade de internalização. A criança aprende a resolver
as tarefas com o auxílio do outro para depois fazer sozinha (realização interna do que primeiro sucedia como atividade
externa); logo, sua participação mental está sempre presente nesse processo, por isso é ativo.
26
Para Vygotsky, o aprendizado conduz o desenvolvimento, uma vez que, quando devidamente organizado, cria uma zona
de desenvolvimento imediato, a qual funciona como elemento desencadeador de processos mentais interiores de
desenvolvimento que, sem ele, não ocorreriam.
27
Assim, no nível de desenvolvimento real, encontram-se os processos mentais superiores já concluídos ou, como aponta o
próprio Vygotsky, ―os frutos do desenvolvimento‖. Já na ZPD estão aquelas funções que estão em processo de maturação
ou, metaforicamente falando, ―brotos‖ ou ―flores‖ do desenvolvimento.
28
52
proximal e que funcionam como indicativas de aprendizagem‖ (VYGOTSKY,
2008[1934], p. 103).
Ao enfatizar sua concepção de aprendizagem mediada pelo outro, Vygotsky
(2008[1926]) vincula o ensino à aprendizagem. Estabelecendo os colegas e o
professor como os pares mais avançados, acaba por privilegiar o papel da esfera
escolar nesse processo. Para ele, a escola deve elevar o nível das exigências,
potencializando
os
processos
de
aprendizagem
que
estão
em
fase
de
desenvolvimento, isto é, as funções não amadurecidas que se encontram na zona
próxima de desenvolvimento e não se baseando nas zonas dos processos
concluídos, como tradicionalmente ocorre.
De acordo com Facci (2004, p. 78), para Vygotsky, a zona proximal de
desenvolvimento tem um valor mais direto para a dinâmica da instrução que o nível
atual de seu desenvolvimento. Logo, o ensino deve incidir sobre essa zona de
desenvolvimento e as atividades pedagógicas precisam ser organizadas, com a
finalidade de conduzir o aluno à apropriação dos conceitos científicos elaborados
pela humanidade. Um ensino que focalize os processos de aprendizagem já
concluídos não avança no desenvolvimento; pelo contrário, é arrastado por ele.
Assim, para Vygotsky, ―o ‗bom aprendizado‘ é somente aquele que se adianta ao
desenvolvimento‖ (VYGOTSKY, 2008[1934], p. 102).
Ainda nas palavras de Facci (idem), o processo de ensino-aprendizagem
deve guiar o desenvolvimento e propiciar condições e premissas para que as
crianças desenvolvam suas funções psíquicas superiores, como a memória, a
análise, o planejamento, a formação do pensamento e o domínio da linguagem (na
nossa perspectiva, dos gêneros). O professor possui, neste processo, papel de
destaque como mediador entre o aluno e o conhecimento, cabendo a ele intervir na
zona proximal de desenvolvimento dos alunos, conduzindo a prática pedagógica.
Deve, portanto, estar atento às peculiaridades do desenvolvimento psíquico em
diferentes etapas evolutivas, para que possa estabelecer estratégias que favoreçam
a apropriação do conhecimento científico, papel do ensino escolar.
De acordo com Schneuwly (apud PAES DE BARROS, 2005, p. 40), a
aplicação aos processos de ensino do conceito de zona de desenvolvimento
próximo nem sempre é fácil:
53
[...] Em tal contexto de reflexão, ela [ZPD] está longe de ser uma ferramenta
operacional facilmente aplicável ao ensino e à educação, capaz de servir de
base a um procedimento do tipo: deve-se descobrir a zona de
desenvolvimento proximal para permitir que o aluno passe de um nível a
outro. Ela contém antes a idéia de que, ficticiamente, o professor ou
educador define uma zona que poderá ser aquela do próximo nível do
desenvolvimento e ensina como se o desenvolvimento fosse
automaticamente se seguir ao seu ensino (SCHNEUWLY, 1992, p. 15).
Nessa reflexão de Schneuwly, percebe-se que a ZPD não pode ser definida
previamente, porque, como afirmam Dolz e Schneuwly, posteriormente:
[...] a ZPD não é determinável a priori; o ensino, em sua lógica educativa
própria (sobretudo, lógica dos programas), só pode propor situações de
interação que julga serem eficazes; e estas somente o serão se os
elementos interativos forem assimiláveis ao estado de desenvolvimento
efetivo do aluno. Portanto, o sucesso na criação de uma ZPD nunca está
assegurado e depende grandemente da experiência profissional do
professor (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004 [1996], p. 50).
Como podemos perceber pela citação, tal zona tem a possibilidade de ser
acionada somente no processo de ensino, ou seja, no momento em que professor e
aluno estão engajados em atividades compartilhadas. Neste âmbito, o papel do
professor enquanto aquele que ensina é colocado em destaque, porque ele é
responsável por dispor ferramentas e criar condições para que os alunos construam
seu conhecimento.
O desenvolvimento humano caracteriza-se pela transformação das funções
psíquicas tipicamente humanas, resultado da interação do indivíduo com o outro, na
apropriação dos instrumentos simbólicos culturalmente construídos pelos seres
humanos, como a linguagem, por exemplo.
A linguagem, além de sua função primordial comunicativa, é, posteriormente,
assimilada
como
elemento
estruturante
do
pensamento.
Para
Vygotsky
(2008[1934]), a função organizadora da linguagem invade o processo de uso de
instrumento e produz formas fundamentalmente novas de comportamento. Essa
função eleva o nível de desenvolvimento do indivíduo, pois permite a categorização
do mundo, a abstração e generalização dos objetos, enfim, o conhecimento superior.
Assim, pela linguagem, o homem constrói conhecimentos, valores, visões de mundo
e do homem no campo individual.
Por isso, a escola precisa propiciar aos alunos a
apropriação dos conhecimentos científicos, que estão no domínio cultural da
produção sistematizada e sempre acima dos espontâneos, porque se situam na
54
zona das funções psíquicas superiores em que o nível de pensamento é mais
elevado. Por sua apropriação necessitar sempre da conscientização do objeto e da
categorização verbal, o domínio da linguagem (dos gêneros) nesse processo é
imprescindível.
Vimos assim que os estudos sobre a linguagem em paralelo aos estudos
sobre ensino-aprendizagem a partir das últimas décadas do século XX motivam, em
parte, mudanças no ensino-aprendizagem de língua materna.
No contexto brasileiro, o pensamento de Vygotsky e Bakhtin, que primam por
perspectivas sócio-históricas e culturais, encontra um meio fértil, uma vez que nos
situávamos em um momento em que as preocupações com questões relacionadas à
cidadania, de um lado, e as transformações sociais, históricas e científicas, de outro,
exigiam a renovação do ensino, de forma geral, e de forma específica, de língua
portuguesa, ainda bastante preso a um enfoque tradicional.
A efervescência acadêmica e política favoreceram a chamada ―mudança de
paradigma‖, delineando uma nova configuração da Língua Portuguesa como
disciplina, a qual desponta com novos objetos e métodos de ensino e aprendizagem.
Os gêneros discursivos/textuais passam a ser considerados no ensino de língua
portuguesa, tendo em vista a multiplicidade de práticas de linguagem no contexto da
atualidade a partir de um novo enfoque metodológico.
Se Vygotsky, ao propor sua teoria de ensino-aprendizagem, estava pensando
também em situações escolares, o mesmo não se pode afirmar sobre Bakhtin.
Caberia a nós indagarmos como os potenciais conceitos teóricos desses dois
autores vêm sendo articulados de forma a favorecer situações de ensinoaprendizagem de língua materna.
Na Europa, a partir dos anos 90, em boa medida, no seio da Universidade de
Genebra, mais precisamente na Unidade de Didática de Línguas da Faculdade de
Psicologia e Ciências da Educação, surge um dos principais grupos de
pesquisadores que relê as teorias de Vygotsky e Bakhtin na proposição de uma
metodologia didática para o ensino-aprendizagem de língua materna29, por meio da
aproximação de alguns conceitos-chave desses dois autores, como os de discurso,
linguagem, interação, apropriação e o papel do outro (ROJO, 2003).
29
No caso do cantão de Genebra, a língua materna é o francês.
55
Rojo ainda observa que, nessa releitura, a linguagem é vista como
instrumento de inter-ação com o outro e de organização do pensamento, até porque,
como afirma Figueiredo (2005), tal releitura didática também é atravessada pela
teoria do ISD30 acerca de texto e de linguagem, principalmente a noção de gênero
como modelo e as de tipo de discurso.
2.2 Gênero: mega-instrumento de ensino-aprendizagem de Língua Materna
Uma primeira contribuição, a destacar, da releitura que a Escola de Genebra
faz de alguns conceitos de Vygotsky e Bakhtin, é a sugestão de Schneuwly
(2004[1994]) em considerar o gênero como um mega-instrumento para ensinoaprendizagem de línguas. A construção dessa metáfora passa pela releitura das
obras do psicólogo e do filósofo russo feita pelo ISD. No âmbito dessa teoria, os
gêneros são instrumentos necessários à realização das atividades/ações discursivas
e favorecedores do desenvolvimento das funções psicológicas superiores.
Para aproximar o gênero, na acepção bakhtiniana, da noção de instrumento,
na visão vygotskyana31, o didático genebrino justifica que, semelhante ao
instrumento vygotskyano, o gênero é um objeto semiótico complexo essencial ao
agir discursivo do sujeito. O gênero dá forma às ações discursivas, como também
traz uma representação delas, prefigurando as possíveis. Por isso, o gênero é um
dispositivo que permite, a um só tempo, a produção e a compreensão de textos.
Schneuwly (2004[1994]) continua a comparação observando que, no
processo discursivo, o gênero também é escolhido de acordo com a base de
orientação de uma ação definida (finalidade, destinatários e conteúdo), funcionando,
assim, como um instrumento de mediação entre a adaptação de seus aspectos
A perspectiva teórica do Interacionismo Sócio-Discursivo, liderada por Bronckart, foi brevemente apresentada no capítulo
1 quando tratávamos da contraposição entre gêneros discursivos e gêneros textuais.
30
31
Vygotsky ( 2004, 2007[1930]), inserindo os tipos de ferramentas/instrumentos na categoria maior de atividade mediadora
tripolar, subdivide-os em técnicos e psicológicos. Os instrumentos técnicos seriam meios naturais dos quais o homem lança
mão para orientar e controlar sua ação direcionada aos objetos sobre os quais ele age, a fim de dominar e transformar a
natureza, numa determinada situação. Os instrumentos psicológicos são construções artificiais das quais o homem se serve
para orientar e controlar a ação sobre si mesmo, dominando e transformando seus próprios processos psíquicos. Vygotsky
(1930) não estabelece diferenciação entre ferramenta e instrumento; Schneuwly (2004[1994]) o segue quando faz a
releitura dessa categoria.
56
temáticos, composicionais e linguísticos a essa base de orientação para a ação
discursiva em uma situação concreta de uso de linguagem.
Refletindo sobre essa adaptação, o autor genebrino afirma que Bakhtin
(2003[1952-53]), apesar de ter apontado tal necessidade, não diz que mecanismos
mobilizar em sua realização. Partindo dessa ―ausência‖ na obra do pensador russo,
Schneuwly (idem) sinaliza que o uso do gênero em situações específicas implica o
domínio de seus ―esquemas de utilização‖ e isso nem sempre se dá de forma direta,
pressupondo, assim, seu ensino-aprendizagem. Tal característica asseguraria sua
entrada à escola como objeto de ensino.
A produção de texto (ação discursiva) ainda envolveria outros esquemas de
utilização ligados ao tratamento do conteúdo, do plano comunicacional e linguístico
para os quais o gênero funciona como organizador global de suas formas e
possibilidades. Com base nessas considerações, o didata genebrino propõe a
metáfora do gênero como mega-instrumento:
Poderíamos aqui construir uma outra metáfora: considerar um gênero como
―mega-instrumento‖, como uma configuração estabilizada de vários
subsistemas
semióticos
(sobretudo
lingüísticos,
mas
também
paralingüísticos), permitindo agir eficazmente numa classe bem definida de
situações de comunicação (SCHNEUWLY, 2004[1994], p. 28).
Barbosa (2001) observa que Schneuwly não esclarece detalhadamente que
―subsistemas semióticos‖ seriam esses, donde a autora interpreta que eles poderiam
ser considerados instrumentos menores de ordem enunciativa, textual e gramatical
envolvidos na produção e compreensão dos textos. Rojo (2000) assinala que esses
instrumentos menos complexos são construídos em nível da linguagem e do
pensamento, o que, para nós, fundamenta a consideração dos gêneros também
como ferramentas para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores.
Seguindo o raciocínio interpretativo de Barbosa (idem), o domínio dos
gêneros passaria pelo domínio desses instrumentos menos complexos, que seriam
tematizados de forma contextualizada. A autora acrescenta que, nesse sentido, cada
gênero carrega conteúdos específicos a ele relacionados, cuja apropriação
asseguraria o desempenho em situações de ação verbal. Afirma ainda que tal forma
de entender os gêneros é importante para o trabalho pedagógico, pois possibilita
uma definição mais pontual de conteúdos e objetivos que podem servir, no processo
57
de ensino-aprendizagem de um gênero, como referência não só para o aluno, mas
também para o professor.
Schneuwly (2004[1994]) encontra na releitura dos gêneros uma entrada
privilegiada para favorecer o desenvolvimento da linguagem em situações escolares.
Isso porque, para esse autor, além de fornecerem um suporte para a atividade de
linguagem, nas situações de comunicação, os gêneros funcionam como referência
para os aprendizes, nos contextos de aprendizagem escolar.
Posteriormente, o entendimento dos gêneros como práticas sociais de
linguagem cristalizadas permite a Dolz e Schneuwly (2004[1996], p. 51) os
considerarem legítimos para serem tomados como modelo de atuação: ―a análise de
suas características fornece uma primeira base de modelização instrumental para
organizar atividades de ensino que esses objetos de aprendizagem requerem‖. Além
disso, para Dolz e Schneuwly (idem), a entrada dos gêneros na escola pressupõe
um processo de transformação, pois deixam de ser apenas instrumentos de
comunicação para ser objetos de ensino-aprendizagem em uma situação de
produção diferente de sua esfera de origem.
2.3 A transposição didática dos gêneros
A adoção dos gêneros como objeto de ensino-aprendizagem escolar exige
diferentes níveis de concretização e um deles seria pensar como a escola trabalha
com os conhecimentos culturalmente produzidos que, ao serem tomados por ela,
constituem-se em conhecimentos escolarizados (BARBOSA, 2001). Segundo essa
mesma autora, Chevallard (1997), didático francês, define esse desdobramento do
conhecimento como um processo de transposição didática. Nessa perspectiva, a
passagem desses conhecimentos para a esfera escolar implica três tipos de
transformações compreendidas da seguinte forma: objeto de saber → objeto a
ensinar → objeto ensinado.
Ainda conforme Barbosa (2001, p. 110), há pelo menos duas maneiras de se
entender a transposição. Ela pode ser entendida como processo de simplificação
dos objetos das ciências, de forma a serem compreendidos pelos alunos e, nesse
sentido, a escola teria um papel eminentemente reprodutor, e, em oposição a esta,
outro tipo de transposição poderia ser pensado em termos de seleção de quais
dimensões desses objetos se pretende ensinar de acordo com princípios de
58
legitimidade, pertinência e solidarização. Schneuwly (2004[1997]) e Dolz e
Schneuwly (2004[1998]) assinalam que seria sobre esses três aspectos interrelacionados que se assentaria a construção de um modelo de gênero.
A legitimidade diz respeito à consideração, na elaboração dos modelos, de
conhecimentos legitimados por seu reconhecimento social, o qual é dado tanto por
seu status teórico quanto por sua elaboração por especialistas no domínio em
questão. A pertinência refere-se ao processo de seleção, dentre os saberes de
referência disponíveis, dos procedimentos e conteúdos visualizados pelo projeto de
ensino, tendo em vista as finalidades e objetivos escolares e as capacidades dos
alunos visados. O efeito de solidarização está ligado à criação um novo todo de
saberes coerentes, pela integração dos conhecimentos legitimados com os
pertinentes para serem ensinados, em função dos objetivos visados.
Nesse sentido, quando se procede à transposição dos saberes legitimados
para situação de ensino, ocorre uma transformação nesses saberes por força dos
objetivos de ensino. Barbosa (2001) sinaliza que, como não se trata de ―formar
físicos, geógrafos, lingüistas, matemáticos etc.‖, esses saberes, quando passam por
um tratamento didático, são decompostos, recortados para a apreensão dos alunos,
e, nesse caso, a escola, assim como as outras esferas, também produziria
conhecimento ainda quando os importa, na forma de conhecimentos didáticos32.
Dolz e Schneuwly (2004[1997]), certos de que o processo de transposição é
inevitável e próprio de situações de ensino escolar, propõem a elaboração de um
modelo didático de gêneros que funciona como ―uma variação do gênero de
referência, construída numa dinâmica de ensino-aprendizagem, para funcionar numa
instituição cujo objetivo é precisamente este‖ (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1997], p.
81). Nesse sentido, os autores apostam numa proposta de tratamento do gênero em
situações escolares a partir de uma espécie de ―ficcionalização‖ que seja capaz de
oferecer aos alunos condições de produção mais próximas possíveis das de origem
do gênero enfocado.
Como afirma Barbosa (2001), não é porque se procede a transposições que
se deve desconsiderar os parâmetros da situação de produção original. Sendo
Para Rojo (2000), a escola lida com dois tipos de gêneros: os escolares e os escolarizados. Os primeiros seriam
construtos da e circulariam na própria esfera escolar para a viabilização de suas atividades, neste grupo, a autora elenca a
tomada de nota, seminário, resumo, relatório, ensaio escolar etc. Os segundos seriam gêneros provenientes de outras
esferas de atuação social e que adentraram a escola pelos processos de transposição didática, adquirindo na esfera escolar
caráter de ficcionalização.
32
59
assim, cabe-nos atentar para o quanto esses processos de transposição distanciam
(ou não) o gênero de sua situação de produção. Sendo a ficcionalização inerente às
situações de ensino, as formas de lidar com elas e os seus efeitos não são
unívocos. A respeito da questão entre introdução dos gêneros como objeto de
ensino-aprendizagem escolar e suas práticas sociais de referência, Schneuwly e
Dolz (2004[1997]) apresentam três modos comumentes mobilizados nas abordagens
de ensino.
O primeiro modo é intitulado desaparecimento da comunicação. De acordo
com os autores, essa forma de desdobrar o conhecimento cultural abstrai
completamente as práticas sociais de comunicação, focalizando, assim, o domínio
da pura forma linguística. Trata-se de uma inversão que, de instrumento de
comunicação, o gênero passa à forma de representação da realidade, isto é,
imprime-lhe um caráter natural. Tal maneira de tratar o gênero em situações
escolares favorece uma abordagem em termos tipológicos, tendo na sequência
canônica ―descrição – narração – dissertação‖ o seu exemplo mais conhecido
(SCHNEUWLY; DOLZ, 2004[1997], p. 77).
Na segunda forma, a escola é vista como autêntico lugar de comunicação.
Nessa abordagem, as situações de produção/recepção de texto são criadas nas
próprias dimensões da esfera escolar através da adoção de gêneros eminentemente
escolares como fonte de inspiração. Parte-se do seguinte pressuposto: ―aprende-se
a escrever, escrevendo‖, por isso, os gêneros não são tomados enquanto
instrumento de comunicação, como também não são descritos nem ensinados.
Nesse sentido, pode-se falar novamente em um processo de naturalização de outra
ordem: ―o gênero nasce naturalmente da situação‖ (idem, p. 78).
O terceiro modo de lidar com o desdobramento dos gêneros como objeto de
ensino seria a negação da escola como lugar específico de comunicação. Nessa
perspectiva, a esfera escolar, enquanto lugar de reprodução das práticas de
linguagem, não provoca transformação nos gêneros que nela adentram. Tendo
como ponto de partida o bom desempenho do aluno em diferentes situações de
comunicação extraescolares, toma-se como princípio básico o trabalho com a
diversidade de gênero, metodologicamente abordada, em parte, pela simulação das
situações sociais extraescolares nas quais os gêneros circulam.
A
consideração
de
tais
abordagens
funciona
apenas
a
título
de
exemplificação das inúmeras implicações embutidas na tomada do gênero como
60
objeto de ensino, ultrapassando, assim, a simples tomada de um novo objeto e
enfoque metodológico. Pensamos que, se por um lado, não se podem desconsiderar
as especificidades da esfera escolar, as situações de ensino-aprendizagem nas
quais os gêneros são tomados como objeto e os objetivos postos pela educação
escolar, por outro, não devemos perder de vista os conhecimentos e práticas de
referência que precisam ser tomados e contextualizados de forma significativa para
os alunos.
Outra questão que importa discutir no contexto da adoção dos gêneros como
objeto de ensino-aprendizagem de língua materna é a definição dos critérios de
escolha dos gêneros que se deseja ensinar. Isso se coloca porque, de um lado, temse uma multiplicidade e heterogeneidade de gêneros, de outro lado, têm-se os
objetivos e as finalidades do ensino, culminando em vários critérios de classificação
possíveis.
Se por um lado tal diversidade de classificação pode se mostrar problemática
devido à confusão terminológica e conceitual que pode suscitar, por outro lado, ela
tem sido explorada na proposta didática genebrina para a abordagem dos gêneros,
em situações de ensino-aprendizagem, uma vez que permite relê-los de acordo com
os objetivos de sua proposta.
2.4 Agrupamento de gêneros: a proposta curricular da Equipe de Genebra
Dolz e Schneuwly (2004[1996]), seguindo o raciocínio da validade didática,
propõem uma forma de organização dos gêneros para serem tomados em situação
de ensino-aprendizagem escolar na forma de agrupamentos que articulam três
critérios de classificação: domínios sociais de comunicação, aspectos tipológicos e
capacidades de linguagem dominantes (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 60-61).
Os autores, ao construir essa forma de organização dos gêneros, estão
pensando na progressão do ensino-aprendizagem. A título de exemplificação, e
considerando o enfoque do nosso trabalho, recortamos o quadro de agrupamentos
em que os autores elencam os gêneros que têm como um dos critérios a discussão
de problemas sociais controversos:
61
Quadro 1 - Proposta provisória de agrupamentos de gêneros [Gêneros da ordem do argumentar]
Domínios sociais de comunicação
Aspectos tipológicos
Capacidades de linguagem dominantes
Exemplos de gêneros orais e
escritos
Discussão de problemas sociais controversos
Argumentar
Sustentação, refutação e negociação de tomadas de
posição
textos de opinião
diálogo argumentativo
carta de leitor
carta de reclamação
carta de solicitação
deliberação informal
debate regrado
assembléia
discurso de defesa (advocacia)
discurso de acusação (advocacia)
resenha crítica
(DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 61)
Figueiredo (2005), analisando o agrupamento proposto pelos didáticos de
Genebra, argumenta que pensar os domínios sociais de comunicação tomando por
base a finalidade ou a motivação para uma atividade linguística parece ser mais
adequado do que fazer uma equivalência (cf. MARCUSCHI, 2002) entre ―domínios‖
e ―esferas de atividade‖.
Baseando-nos numa exemplificação dada pela autora, mas trazendo para o
nosso quadro de enfoque, poderíamos dizer que é mais coerente pensar Discussão
de problemas sociais controversos como um objetivo pragmático que se dá em
qualquer instância social (no jornalismo, no judiciário, na ciência, na escola, na
administração, no cotidiano) em vez de tratá-lo como ―esfera‖ conceitual que aponta
para instituições sociais específicas (FIGUEIREDO, 2005, p. 35).
Para Barbosa (2001), o enfoque nas finalidades sociais de comunicação
poderia fortalecer e concretizar uma perspectiva enunciativa de trabalho com a
linguagem. Entretanto, a autora adverte que tal abordagem poderia ser algo
interessante devido às possibilidades de convergência com as esferas de
comunicação,
propostas
por
Bakhtin
(2003[1952-1953]),
com
exceção
do
agrupamento I ―Cultura literária e ficcional‖, os outros resvalam para o elenco de
finalidades ou objetivos gerais33 nem sempre vinculados a esferas específicas.
Os outros agrupamentos são: II) Documentação e memorização das ações humanas; III) Discussão de problemas sociais
controversos; IV) Transmissão e construção de saberes; V) Instruções e prescrições‖ (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p.
60-61).
33
62
No segundo critério, a organização dos gêneros é feita com base em ordens
tipológicas, no total de cinco: narrar, relatar, argumentar, expor e descrever ações
(DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 60-61). Analisando o agrupamento baseado nas
finalidades discussão de problemas sociais controversos (Quadro 01), percebemos
que a categoria tipológica argumentar funciona como eixo de articulação entre os
outros dois critérios e que, na visão dos autores, permite a progressão do ensino.
No terceiro critério, os autores mobilizam um dispositivo sociopsicológico de
funcionamento da linguagem, cujo percurso incluiria as práticas, passaria pelas
atividades, ações até as capacidades de linguagem. Tal escolha é feita a fim de
justificar os critérios de seleção adotados para o agrupamento, conforme Figueiredo
(2005).
Para Dolz e Schneuwly (2004[1997], p. 72-73), as práticas de linguagem
estão relacionadas à categoria maior de práticas sociais em geral, adquirindo aí
função de mediação. Como na visão dos autores, as práticas de linguagem implicam
dimensões sociais, cognitivas e linguísticas do funcionamento da linguagem numa
situação de comunicação particular, estudá-las implicaria sua análise a partir de
critérios construídos pelos sujeitos no sentido individual (representação) e social.
Em relação às atividades de linguagem, os autores afirmam que elas podem
ser orientadas por um motivo contido nas práticas sociais em que nascem. Por isso,
―a atividade de linguagem funciona como uma interface entre o sujeito e o meio e
responde a um motivo geral de representação-comunicação‖, como também “ela
tem sua origem nas situações de comunicação, desenvolve-se em zonas de
cooperação social determinada e, sobretudo, ela atribui às práticas sociais um papel
determinante
na
explicação
de
seu
funcionamento‖
(SCHNEUWLY;
DOLZ,
2004[1997], p. 73).
Para Figueiredo (2005, p. 35), as atividades de linguagem, nessa perspectiva,
podem ser tomadas como equivalentes a textos, com a diferença de estes últimos
estarem subordinados aos gêneros do discurso e por, consequência, às esferas
sociais, e não somente às práticas que dão uma ideia de categoria muito aberta e
não tão situadas socialmente. A autora acrescenta ainda que, tomando as
categorias de práticas de linguagem e atividades de linguagem, poderia associá-las
aos gêneros e aos textos, respectivamente.
Voltando a Schneuwly e Dolz (2004[1997]), os autores continuam a explicar o
dispositivo sociopsicológico de desenvolvimento da linguagem, dizendo que as
63
atividades de linguagem, por sua vez, podem ser estruturadas em um sistema de
ações: ―as atividades podem ser decompostas em ações, ou estruturas de
comportamento não diretamente articuladas aos motivos, mas orientadas por
objetivos intermediários [...]‖ (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004[1997], p. 73).
Tomando novamente Figueiredo (2005, p. 36), as ações de linguagem são
interpretadas pela autora como equivalentes a tipos de discurso, uma vez que,
assim como estes, no quadro teórico do ISD, compõem os textos, as ações de
linguagem estruturariam as atividades de linguagem. Dando continuidade, a autora
afirma que, assim como teríamos os tipos de discurso narração, relato, discurso
teórico, discurso interativo estruturando livremente os textos pertencentes aos
gêneros, teríamos também as ações de narrar, argumentar, relatar, expor compondo
as atividades de linguagem.
Por fim, Schneuwly e Dolz (2004[1997], p. 74) afirmam que toda ação de
linguagem exige do sujeito uma série de capacidades construídas a partir de três
níveis de operações: o sujeito, ao enunciar, precisa adaptar-se às características do
contexto e do referente (capacidades de ação), mobilizar modelos discursivos
(capacidades discursivas) e dominar as operações psicolinguísticas e as unidades
linguísticas envolvidas na enunciação (capacidades linguístico-discursivas).
Pensando em situações de ensino-aprendizagem escolar, Dolz e Schneuwly
(2004[1996], p. 53) apontam que a escola deveria desenvolver nos alunos as
capacidades de linguagem, a fim de levá-los ―a uma melhor mestria dos gêneros e
das situações de comunicação que lhes correspondem‖.
Em relação às capacidades de ação, (adaptação da produção escrita/oral às
características do contexto e do referente por parte do agente), estas implicam a
análise da situação da enunciação. Busca-se, assim, desenvolver nos alunos o
entendimento de que, em uma produção de um texto ou em sua leitura, eles devem
proceder a uma adaptação dos elementos da situação de enunciação a partir da
análise do contexto físico, do papel social do produtor e do destinatário do texto, do
lugar social e da finalidade da produção. Inclui-se também nessa dimensão a
mobilização dos conteúdos a serem verbalizados.
No que tange às capacidades discursivas (gestão discursiva do texto ou
elaboração de sua infra-estrutura), os elementos envolvidos nessa elaboração
64
implicam a seleção de modelos discursivos (tipos de discurso34), por meio dos quais
se fará a organização de um plano de texto adequado ao gênero (sequências
textuais) além de envolver a escolha dos conteúdos (o que é dizível no gênero) que
serão privilegiados na produção textual.
A categoria de capacidades linguístico-discursivas (escolha das unidades
linguísticas) mobiliza mecanismos de textualização de forma a garantir a coesão e a
conexão no nível linguístico propriamente dito (elementos gramaticais, lexicais e
organização sintática (período, oração/enunciado) como organizadores textuais,
advérbios, modalizações, anafóricos, tempos verbais, gerenciamento de vozes etc.)
(DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1998]).
Depreende-se assim que, nessa visão da equipe de Genebra, correlacionado
ao uso dos gêneros está o domínio de algumas capacidades que habilitariam o
agente produtor a mobilizar uma série de procedimentos nelas envolvidos, a fim de
adquirir a mestria na produção escrita/oral de textos, além dos aspectos tipológicos
e das finalidades da produção. Posto isto, eles articulam as capacidades globais
envolvidas no domínio dos gêneros às tipologias, como critérios de aproximação:
Quadro 02 - Proposta provisória de agrupamento de gêneros
Aspectos tipológicos
Capacidades de linguagem dominantes
Narrar
Mimeses da ação através da criação da intriga no domínio do verossímil
Relatar
Representação pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo
Argumentar
Sustentação, refutação e negociação de tomadas de posição
Expor
Apresentação textual de diferentes formas dos saberes
Descrever ações
Regulação mútua de comportamentos
(DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 60-61).
Schneuwly (2004 [1994], p. 36-37) aponta que as capacidades discursivas implicam em um tipo de relação instaurada
pelo enunciador com a situação de produção do texto e a maneira como ele se relaciona com o mundo discursivo, que pode
ser, no primeiro caso, implicado ou autônomo, e, no segundo, conjunto ou disjunto. A relação de implicação supõe uma
interação em que os participantes, lugar e momento são definidos pela situação imediata. Numa relação autônoma, os
elementos da situação são abstraídos e construídos num nível superior. A relação conjunta supõe o uso da linguagem para
falar do mundo existente, no qual se age. Já a relação disjunta supõe uma representação do mundo discursivo, isto é, no
qual não se está. Vemos assim a noção de tipos de discurso construída no quadro do ISD aproveitada por Schneuwly para
pensar os gêneros em situação de ensino-aprendizagem.
34
65
Barbosa (2001, p. 147), notando tal opção, observa que ―parece haver uma
solução de compromisso com propostas tipológicas, o que acaba por determinar que
esse aspecto se constitua no principal critério assumido na elaboração do
agrupamento, sendo os outros dois derivados desse‖. Assim, com base na categoria
transversal argumentação e nas capacidades de linguagem globais envolvidas na
ação de argumentar, vários gêneros provenientes das mais diversas esferas de
comunicação são elencados.
Dolz e Schneuwly (2004[1996]) justificam, em parte, tal opção pelo fato de os
gêneros serem diversos e instáveis; daí o enfoque na progressão com base em
categorias que forneçam condições mais estáveis de composição dos gêneros, o
que serviria melhor aos intuitos de didatização e à progressão curricular, por
possibilitar que aspectos de um tipo presente em um gênero possam ser transferidos
para outro gênero que tenha, mais ou menos, afinidades de formas de
composição35.
Outro motivo que leva os autores genebrinos a privilegiar ou considerar
grandemente os aspectos tipológicos é a sua crença em que não se pode romper
radicalmente com a tradição do ensino de língua materna, que se funda, há muito
tempo, em tipologias do tipo por eles apresentado. Esse motivo é justificado a partir
da apresentação dos três critérios gerais também considerados para estruturar o
agrupamento genérico os quais devem:
1.[corresponder] às grandes finalidades sociais legadas ao ensino,
respondendo às necessidades de linguagem em expressão escrita e oral.;
2.[retomar], de modo flexível, certas distinções tipológicas que já figuram em
numerosos manuais e guias curriculares;
3.[ser] relativamente homogêneos quanto às capacidades de linguagem
dominantes implicadas na mestria dos gêneros agrupados (DOLZ;
SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 58-59).
Quanto ao terceiro é último critério, cabem algumas considerações. Nas
palavras dos autores:
É interessante atentar para o fato de Dolz (cf. os textos cuja assinatura inicial vem com o nome de Dolz, (2004 [1996,
1997]) deixar entrever um posicionamento bem mais ligado e subordinado a uma perspectiva do ISD (BRONCKART) cujo
enfoque volta-se para aspectos cognitivos como as capacidades de linguagem, do que Schneuwly que, apesar de se ligar
também a essa teoria e servir-se de algumas de suas ideias, abre mais espaço para uma discussão discursiva com base
em Bakhtin (2003[1952-1953]), (vide SCHNEUWLY, 2004[1994, 1997]).
35
66
A própria diversidade dos gêneros, seu número muito grande, sua
impossibilidade de sistematização impedem-nos, pois, de tomá-los como
unidade de base para pensarmos uma progressão. Não há eixo de
continuidade que permitiria pensar a construção de capacidades, senão
aquele de dominar cada vez melhor um gênero, e outro, e outro e, por meio
deles, a arte de escrever em geral — o que constitui precisamente a
36
pedagogia do coroamento [...] (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 57).
Machado (2005, p. 258), por sua vez, conclui que, nessa perspectiva ―‗ensinar
gêneros‘ na verdade, não significa tomá-los como o objeto real de ensino e
aprendizagem‖. Os gêneros constituir-se-iam em modelos das práticas sociais
comunicativas em que as ações de linguagem se realizam. Por isso, o objeto real de
ensino seriam tais ações que, uma vez dominadas, constituem as capacidades de
linguagem.
Pensando em nosso caso de pesquisa com enfoque no gênero artigo de
opinião da esfera jornalística, ele é tomado principalmente para o desenvolvimento
das
capacidades
de
linguagem
argumentativas
e,
dentre
elas,
para
o
desenvolvimento das capacidades de linguagem dominantes: sustentação, refutação
e negociação de tomada de posição [ênfase nossa] (DOLZ; SCHNEUWLY,
2004[1996], p. 61).
A proposta de agrupamento genérico da equipe de Didática de Genebra tem
como pressuposto a disponibilização de instrumentos na construção de progressões
curriculares que viabilizem o desenvolvimento das diferentes capacidades
necessárias ao domínio dos gêneros agrupados de forma espiral37 (assegura a
sequenciação e respeita o princípio pedagógico da diferenciação38) e complexa39
A pedagogia do coroamento é referida por Dolz e Schneuwly como uma forma tradicional de transpor e tratar os gêneros
no espaço escolar, como na clássica sequenciação ―descrição/narração/dissertação‖, da qual tratamos na seção anterior.
Nessa perspectiva, os gêneros são naturalizados, abstraídos da função comunicativa, tornando-se plenamente produtos
escolares. A progressão é feita passo a passo, subjazendo a ela uma visão de que a linguagem representa o mundo e este
apresenta objetos simples e complexos. O objetivo então seria desenvolver uma única capacidade representacional, ―a arte
de escrever‖ (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 55-56).
36
Nessa perspectiva de progressão (em espiral), o trabalho com determinadas capacidades globais implicadas no gênero,
como exemplo os gêneros que envolvem a capacidade do argumentar e capacidades dominantes, deve ser feito desde as
séries iniciais do ensino básico e não somente nas séries finais, como ainda acontece nas práticas escolares correntes.
37
Dolz e Schneuwly (2004[1996]) supõem que as capacidades de escritas dos alunos não se distribuem uniformemente nos
diferentes agrupamentos. Para eles, alguns têm mais facilidade para narrar, outros para descrever, outros ainda para
argumentar etc. Essa forma de progressão contemplaria as diferenças dos alunos.
38
A complexificação aconteceria numa progressão inter-séries, no sentido de que haja, ao mesmo tempo, um aumento da
diversidade de gêneros trabalhados, como também ocorra, nas séries subsequentes, a retomada dos gêneros já ensinados
nas séries anteriores desde que a abordagem seja feita em níveis mais complexos (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p.
62-64).
39
67
dos objetos (aumento quantitativo e qualitativo dos gêneros trabalhados), princípios
norteadores de tal progressão.
Nesse sentido, em um nível mais global, os agrupamentos focalizam as
capacidades mais dominantes e comuns aos gêneros aí elencados. No
encaminhamento curricular, as capacidades visadas são mais locais. Nessa linha de
raciocínio, ―quanto mais precisa a definição das dimensões ensináveis de um
gênero, mais ela facilitará a apropriação deste como instrumento e possibilitará o
desenvolvimento de capacidades de linguagem diversas que a ele estão
associadas‖ (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1997], p. 89).
Tal definição supõe outro nível de concretização, o da elaboração de modelo
ou a modelização didática condizente com a proposta de agrupamento. A
modelização didática compreende o processo de confrontar as características de
constituição e funcionamento (descritas por teóricos e especialistas no domínio em
questão) do gênero que se pretende focalizar em uma proposta de ensino com as
capacidades reais e potenciais (ZPD), para esse gênero, dos alunos que serão
envolvidos em tal proposta.
Cruzando esses dois dados, procede-se à seleção das propriedades do
gênero que serão contempladas na proposta tendo em vista as necessidades de
ensino e as possibilidades de aprendizagem dos alunos focalizados, construindo,
assim, a modelização didática do gênero. Tal modelização apontará os elementos
ensináveis em uma situação de comunicação específica e fundamentará a
elaboração de projetos de ensino neste gênero específico — as sequências
didáticas — sobre as quais nos deteremos mais adiante, neste capítulo (DOLZ;
SCHNNEUWLY; DE PIETRO, 2004[1998]).
Pensando em um aspecto do nosso objeto de pesquisa, qual seja a análise
de um material didático em torno do artigo de opinião, vejamos, a título de
observação, como estão organizados os objetivos de linguagem para o ciclo 7-8, no
quadro de proposta de progressão para o agrupamento de gêneros da ordem do
―argumentar‖ (DOLZ; SCHENEUWLY, 2004[1996]). Nesta proposta, sugere-se o
trabalho com o artigo de opinião.
68
Quadro 3 - Proposta de Progressão para agrupamento de gêneros "argumentar" (ciclo 7-8)
CICLO
EXEMPLOS DE GÊNEROS
REPRESENTAÇÃO DO
ESTRUTURAÇÃO DISCURSIVA
DE TEXTOS QUE
CONTEXTO SOCIAL
DO TEXTO
ESCOLHA DE UNIDADES LINGUÍSTICAS
PODERIAM SER
ESCOLHIDOS
 discernir
as
posições
defendidas num texto
 escolher um plano de texto  utilizar
 imprensa local: carta de
leitor, carta aberta, artigo de
opinião
 compreender as crenças
 utilizar verbos declarativos
 definir a tese e defender, apreciativos, depreciativos
 correspondência: carta de
solicitação
do receptor do texto para
adaptar-se a elas
 distinguir entre argumento/não
 antecipar posições
argumento e entre argumento
contra/contra-argumento
7-8
ESCRITA
alheias e atuar sobre elas
adaptado ao gênero argumentativo
trabalhado
elaborar argumentos e agrupá-los
 analisar as características por tema
ORAL
contrárias
 diálogo argumentativo
 citar a palavra alheia
 deliberação informal
 distinguir lugares sociais e
gêneros argumentativos
 prever
diferentes tipos de
argumento e hierarquizá-los em
função da finalidade a atingir
selecionar as palavras alheias que
apóiam sua própria tese
organizadores argumentativos
marcando: refutação, concessão, oposição
neutros,
 utilizar fórmulas introduzindo citações em
função da orientação argumentativa
 reconhecer e utilizar diversos meios para
exprimir dúvida, probabilidade, certeza
(advérbios, verbos auxiliares, emprego dos
tempos)
 utilizar organizadores enumerativos
 distinguir modalidades de enunciação:
questões retóricas, fórmulas interrogativas;
exclamativas
 organizar o texto em função da
estratégia argumentativa
(DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 66)
68
69
Tomando o trecho do quadro em exemplo, podemos observar que nele estão
contempladas as três capacidades apresentadas na proposta de agrupamento:
capacidades de ação, capacidades discursivas e capacidades linguístico-discursivas
que correspondem às colunas representação do contexto social, estruturação
discursiva do texto e escolha de unidades linguísticas, respectivamente.
À primeira vista, o contexto social (capacidades de ação) determinaria, em
certa medida, a estruturação discursiva do texto e as escolhas léxico-gramaticais,
isto é, os elementos enunciativos orientariam a escolha dos elementos discursivos e
linguísticos. A nosso ver, seriam essas capacidades que estariam organizando tal
proposta de progressão. No entanto, é interessante observarmos que o
entendimento de discursivo, conforme a coluna ―Estruturação Discursiva do Texto‖,
no quadro da página anterior, tem o sentido de organização ou composição textual
em uma visão retórica. Para nós, esse é um ponto de distanciamento entre o
trabalho didático genebrino e a teoria de linguagem do Círculo de Bakhtin, em que
discursivo
é
entendido
como
processo
de
construção
de
sentidos
dos
textos/enunciados. Sendo assim, discursivo, na perspectiva dessa didática, não é o
mesmo discursivo/discursividade em Bakhtin.
Posto isso, a sequenciação, no encaminhamento proposto, está adequada à
orientação de complexificação dada no agrupamento, supondo, no exemplo dado, a
ênfase não só em movimentos de sustentação (presente em todos os ciclos), mas
também em movimentos de refutação (contra-argumentação) (sugerido a partir do 56 ciclos) bem como os movimentos de negociação (a partir do 7-8 ciclos). Segundo
Barbosa (2001):
[...] sustentar uma opinião supõe a consideração de um ponto de vista – o
próprio, que se quer assumir [...] refutar supõe pelo menos dois pontos de
vista [um dominante] não coincidentes com o próprio [...] negociar supõe
também levar em conta pelo menos duas posições a respeito de uma
mesma questão controversa, mas agora de um modo mais complexo: há
que se incorporar parte da opinião do outro e, ao mesmo tempo, minimizála, para dar destaque a sua própria (BARBOSA, 2001, p. 164-165).
Assim, na sequenciação apresentada para o ciclo 7-8, na qual está inserido o
artigo de opinião, supõe-se certa complexificação no que diz respeito ao nível de
representação do contexto social, estabelecendo as capacidades de ―discernir as
posições defendidas em um texto e delinear a situação polêmica subjacente
(refutação), compreender as crenças alheias e atuar sobre elas (concessão),
70
antecipar posições contrárias (oposição)‖, tais capacidades exigiriam, por sua vez, a
escolha de elementos linguísticos, como ―utilizar organizadores argumentativos
marcando: refutação, concessão, oposição‖ (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p.
66). Sendo o artigo de opinião um gênero eminentemente fundado na escrita,
passemos a considerar as capacidades envolvidas nesse tipo de produção.
2.5 Gênero: letramento e capacidades de produção escrita
Como dissemos na introdução deste trabalho, as mudanças de conjuntura
sociopolítica ligadas às transformações tecnológicas da informação e da
comunicação e ao processo da globalização conferem, em fins do século XX, a
nossa educação novos desafios. Segundo Rojo (2009), nessa nova óptica, impõe-se
―dar conta das demandas da vida, da cidadania e do trabalho numa sociedade
globalizada e de alta circulação de comunicação e informação, sem perda da ética
plural e democrática [...]‖ (ROJO, 2009, p. 90). Tais transformações articuladas aos
avanços teóricos e metodológicos levam à proposição de enfoques em práticas
didáticas devidamente situadas.
No que diz respeito às práticas de produção escrita, o seu domínio
significativo passa a implicar a consideração dos contextos culturais e sóciohistóricos particulares de seu surgimento e uso. Essa perspectiva está inserida no
campo de estudos comumente denominado estudos do letramento. Nesse âmbito
nasce o conceito de letramento ideológico, que remete à existência de múltiplos
letramentos ligados às esferas de atividade numa dada sociedade: a igreja, a
família, a escola, os sindicatos, o jornalismo, o rádio e, mais recentemente, a
televisão e, de forma mais intensa, a Internet40.
Tal conceito surge em contraposição ao conceito de alfabetização strictu
sensu e ao de letramento autônomo41.
Nessa perspectiva, passam a ser considerados: 1. Os elementos relativos à textualidade e ao contexto imediato de
produção de texto, para além da consideração sobre aspectos relativos ao sistema de escrita; 2. A valorização de práticas
de contato com a escrita em situações de uso, escolares e não escolares; 3. A consideração das relações entre escrita e
cultura(s); 4. O incremento da discussão sobre as relações entre oralidade e escrita e a afirmação da necessidade de busca
de soluções de continuidade no processo de construção de ambas (BARBOSA, 2001, p. 71).
40
O termo letramento é dividido em duas grandes concepções – o letramento autônomo e o letramento ideológico –
identificados por Street (1984). Alguns pesquisadores brasileiros, entre eles Kleiman (1995), Soares (1998), Rojo (2001,
2004), apontam ser o modelo autônomo reproduzido sem grandes mudanças desde o século XX na nossa sociedade e nas
práticas escolares e que essa visão de letramento pressupõe a escrita um fenômeno invariável independente do contexto
41
71
Barbosa (2001) assinala que, apesar dos avanços que tal conceito traz às
práticas de escrita, o mesmo ainda encerra certa imprecisão ou, melhor,
generalidade, necessitando, assim, de melhor especificação, pois, ainda que se fale
em letramentos múltiplos, no que diz respeito à escritura, não se pode ensinar
linguagem escrita regida por uma espécie de contexto de produção geral e irrestrito.
Por isso, o ensino deve focalizar as diferentes formas de dizer, determinadas por
diferentes situações comunicativas, ―pois todas as formas ligadas à escrita [...] como
toda interação semiótica verbal, materializam-se através de uma forma genérica‖
(BARBOSA, 2001, p. 77).
É nesse contexto de discussões e problematizações que surgem propostas
de ensino-aprendizagem de se focarem os aspectos inerentes à escrita ou ―dos
eventos de letramento‖ no interior do trabalho com um gênero determinado, pois que
o uso desses elementos está condicionado às características e às condições de
produção das formas de dizer que os envolvem. Nesse sentido, Barbosa (2001)
propõe o redimensionamento do conceito de letramento, articulando-o aos gêneros
discursivos. Nesse redimensionamento, letramento passa a ser o processo de
apropriação das formas genéricas, ligadas de uma forma ou de outra, à escrita:
Ser letrado, nessa concepção, é dominar diferentes gêneros secundários.
Portanto, nessa perspectiva, a escola não deve só se preocupar com a
oferta de práticas de letramento, tomadas de forma geral, mas, antes e
principalmente, deve criar situações para que os alunos possam se
apropriar de gêneros secundários que circulam socialmente. [...] Mestre dos
gêneros [...] é alguém que os domina e deles se serve para garantir a
adequação e bom desempenho em diferentes situações comunicativas
(BARBOSA, 2001, p. 80).
Dando prosseguimento a essa forma de entendimento, Rojo (2009) ressalta
que, além das capacidades de codificação correlatas às de decodificação, o
processo de escrita significativo e situado envolve:
normalizar o texto, usando os aspectos notacionais da escrita, que vão da
ortografia padrão à separação de palavras e à pontuação adequadas; aos
mecanismos de concordância nominal e verbal e de regência verbal etc.;
comunicar, adequando o texto à situação de produção, a seus
interlocutores-leitores, a seu suporte e veículo, de maneira a atingir suas
finalidades;
(diferente do oral), de funcionamento lógico e racional interno ao texto, intrinsecamente ligado ao desenvolvimento cognitivo
ou progresso social, possuindo leis e qualidades próprias estendidas aos grupos que a possuem.
72
textualizar, organizando as informações e temas do texto de maneira
progressiva (progressão temática) e atribuindo-lhe coerência (malha tópica,
forma de composição do texto e coesão;
intertextulizar, levando em conta outros textos e discursos sobre os
mesmos temas, para com eles concordar, deles discordar, com eles
dialogar (ROJO, 2009, p. 90).
Schneuwly (2004[1994]), com base na categoria de gêneros secundários de
Bakhtin (2003[1952-53]) associada aos conceitos científicos — domínio cultural da
produção sistematizada que se situam na zona das funções psíquicas superiores —,
de que fala Vygotsky, refletirá sobre as implicações do emprego dos gêneros
secundários,
pelas
suas
particularidades
complexas
de
constituição
e
funcionamento, base para as relações formais especialmente mediadas pela escrita,
como favorecedores do desenvolvimento da linguagem em situações de ensinoaprendizagem escolar.
A reflexão do didático genebrino sustenta-se no reconhecimento de que o uso
dos gêneros secundários pressupõe certa relação de autonomia com a situação de
produção imediata, necessitando, assim, de novos instrumentos de mediação, os
quais seriam de ordem enunciativa, cognitiva e textual — elementos esses
transversais ao gênero (cf. a subseção em que tratamos do agrupamento dos
gêneros proposto pela Escola de Didática de Genebra). A apropriação do gênero, ao
pressupor o domínio desses elementos, primeiro em nível local, depois
generalizados para outras situações, provocaria uma revolução no sistema de
produção da linguagem do aluno aprendiz.
Assim, relacionando o uso dos gêneros secundários às circunstâncias de
comunicação escrita, podemos considerar que as capacidades requeridas pela
produção escrita estão correlacionadas àquelas requeridas ao domínio e mestria dos
gêneros secundários uma vez que é a base destes. Com base nessa relação entre
uso dos gêneros secundários e domínio das capacidades de linguagem nele
envolvidas, os didáticos genebrinos elaboram uma proposta didática para subsidiar
situações de ensino-aprendizagem voltadas, em grande medida, para a formação do
produtor proficiente de textos escritos ou orais.
Grande parte das propostas e encaminhamentos didáticos dos didáticos de
Genebra privilegia a formação do produtor proficiente. Consideramos que isso
ocorra em virtude do contexto escolar para o qual essa proposta didática foi
73
inicialmente pensada — os objetivos da educação escolar de Genebra. Tal proposta,
no contexto brasileiro, necessitaria de certas adaptações, inclusive de enfoque,
tendo em vista serem as necessidades e objetivos da educação brasileira diferentes
da genebrina.
Num contexto social em que um número bastante considerável da população
adulta ainda é iletrado ou possui baixo grau de letramento, grau esse também
observado nos estudantes dos Anos Finais do Ensino Fundamental e do Ensino
Médio, reafirmado pelas avaliações institucionais como a Prova Brasil, Saeb e o
Enem, e internacionais como o Pisa, as necessidades dos alunos brasileiros são
bem mais de práticas leitoras que lhes garantam a formação crítica para o exercício
participativo da cidadania, o que pressupõe, entre outras capacidades, a de
compreender ativamente os textos lidos num processo construção e reconstrução de
sentidos destes textos, conforme apontam Jurado (2003), e Rojo e Batista (2003).
Por tais considerações, acreditamos que, embora também não possamos
menosprezar a prática de produção textual em favor de práticas leitoras, não deve
haver o privilégio de uma sobre a outra, porque, para os objetivos da educação
brasileira, especificamente para o ensino-aprendizagem de língua materna, tais
práticas devem estar articuladas. Sendo assim, a formação do produtor eficiente
(precisamente do autor crítico), no âmbito do gênero, o que pressupõe a
compreensão das propriedades desses objetos e dos mecanismos de produção de
sentidos, auxilia o leitor, nas práticas de leitura, na reconstrução dos sentidos dos
textos alheios. O leitor crítico, por sua vez, contribui com o autor na medida em que
lhe permite compreender ativamente os textos alheios e estabelecer com eles um
diálogo crítico em seu próprio texto.
Sabendo da influência dos didáticos de Genebra não só nos documentos
oficiais, especificamente os PCN (BRASIL, 1998), na orientação dos novos
paradigmas para o ensino da escrita em língua portuguesa, mas também na
organização teórico-metodológica do nosso objeto de pesquisa — o programa
OLPEF — apresentaremos, na próxima seção, o caminho ou como os autores
organizam os gêneros para a compreensão escrita/oral dos alunos.
74
2.6 Sequências didáticas: novos modos de fazer
As mudanças que vimos no ensino, além de alcançar sua organização e seus
princípios, atingem também a maneira de organizar seus objetos em um sentido de
se ter maior flexibilidade e diversidade dos tipos e formas de materiais didáticos. Um
novo objeto que responda a novas finalidades exige, assim, novos procedimentos.
Nesse contexto, o uso do livro didático (doravante LD), que assumiu o lugar
central nas práticas escolares a partir dos anos 60 e 70, assume uma posição
incômoda. Isso porque os LDs, de guias referenciais, passaram, com o tempo, a
definir objetivos, conteúdos, progressão (ou sua omissão), metodologia, avaliação,
enfim, o currículo escolar, de certa forma, resultado da proletarização do professor
(BATISTA, 2004).
O aligeiramento da formação em nível superior (ou sua ausência total), no
contexto das décadas de 60 e 70, cria as condições para que o livro didático e sua
forma de organização passem de material de apoio à de orientador e estruturador da
aula, tomando, assim, o lugar do professor.
A organização deste tipo de material (abordagem repetitiva e fechada de
conteúdos) instaura um tratamento dos objetos de forma fragmentada, pouco
adequada à situação de ensino-aprendizagem em que se busca a formação geral
para o exercício autônomo da cidadania. No contexto desses novos objetivos e
objetos, as sequências didáticas delineiam-se como uma alternativa possível às
limitações impostas ao trabalho escolar pelo livro didático.
Dolz et al. (2004[2001]) apresentam um modelo didático, denominado
sequências didáticas, que tem sido bastante utilizado na organização de materiais
didáticos no contexto do ensino brasileiro, a exemplo do programa OLPEF. Os
autores apresentam esse procedimento didático como ―um conjunto de atividades
escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual
oral/escrito, o qual tem por objetivo melhorar uma determinada prática de linguagem”
(DOLZ et al., 2004[2001], p. 97). Quatro componentes sustentam a base desse
modelo. Vejamos cada um a seguir:
1.Apresentação da situação: caracteriza a primeira etapa do conjunto de
atividades. Nela, o aluno é colocado diante de uma situação de produção
bem definida e exposto a um problema de comunicação que deverá
75
resolver com a produção de um gênero escrito/oral. Para isso, ele precisa
conhecer as informações sobre o projeto coletivo de produção escrita ou
oral: a adoção de gênero, locutor, interlocutor, suporte. Ainda nessa fase,
os aprendizes deverão conhecer os conteúdos e selecionar quais vão
trabalhar. Por exemplo, se o gênero for um artigo de opinião, os alunos
devem
compreender
a
questão
colocada
e
os
movimentos
de
argumentação implicados nos diferentes posicionamentos. Os autores
sugerem a criação de um projeto de classe para tornar as atividades
desenvolvidas nas sequências mais significativas e pertinentes, como no
caso, produzir um artigo de opinião para publicação no jornal da escola,
jornal local ou participação em um concurso de produção escrita.
2.Produção
inicial:
Essa
fase
caracteriza
o
primeiro
lugar
de
aprendizagem da sequência. É o momento em que os alunos estabelecem
o primeiro contato com o gênero enfocado. Para que os alunos consigam
elaborar essa primeira produção, a fase anterior deve ter sido
suficientemente definida e compreendida. A realização da produção inicial
é condição sine qua non para o ensino, uma vez que, por ela, os alunos
mostram a si mesmos e ao professor o que sabem sobre o gênero e, ao
mesmo tempo, conscientizam-se dos problemas com os quais se
defrontam. Essa produção funciona, assim, como reguladora da sequência
didática. A partir dessa constatação, podem-se definir as capacidades que
os alunos já dominam [o conhecimento real] e as que estão em
potencialidade [conhecimento potencial]. Com essas informações, o
professor, com base nas capacidades reais dos alunos, planeja as
intervenções, de forma a contemplar os problemas encontrados na
produção inicial, criando um espaço onde zonas de desenvolvimento
proximais, condição para o aprendizado, possam ser ativadas.
3.Módulos: Nesta etapa, o gênero tem suas dimensões decompostas e a
abordagem dos componentes que colocam problemas de comunicação
para os alunos é feita passo a passo, a fim de facilitar sua apropriação.
Trata-se de um procedimento didático-pedagógico tendo por finalidade
específica levar os aprendizes ao domínio dessas dimensões. Ressalta-
76
se, porém, que no funcionamento do gênero elas são indissociáveis.
Esses problemas com os quais os alunos se defrontam no ensinoaprendizagem do gênero são de níveis diferentes que funcionam,
psicologicamente,
simultaneamente.
Os
autores
referem-se
às
capacidades de linguagem implicadas no domínio dos gêneros. Além
disso, os alunos precisam resolver os problemas comunicativos aplicados
a cada gênero específico. As capacidades requeridas no uso de cada
gênero
são:
1.
Capacidades
de
representação
da
situação
de
comunicação [imagem do destinatário, posição social do locutor, e
finalidade da produção]; 2. Capacidades de elaboração de conteúdos
[busca de informações, tomada de notas, rascunho,]; 3. Capacidades de
planejamento [saber adequar o conteúdo à forma composicional do
gênero]; 4. Capacidades de realização do texto [escolhas léxicogramaticais na tessitura do texto].
4.Produção final: Depois de trilhado o percurso dos módulos e feitas as
intervenções devidas de acordo com os problemas ou limitações do aluno
na prática de linguagem proposta e adequadas às suas capacidades, de
certa forma, individuais, o professor solicita ao aluno uma produção final
na qual ele pode mobilizar as noções e instrumentos apropriados
separadamente durante a realização dos módulos.
O modo como o grupo de Genebra propõe o trabalho com os conteúdos que
visem à apropriação dos procedimentos e das capacidades implicados no domínio
do gênero mostra-se didaticamente privilegiado. Começando pela situação de
produção, o aluno é, desde o início, guiado por uma base de orientação, ou seja, por
critérios bem definidos — os elementos da situação — dos quais o conhecimento e a
compreensão constituem condição para o sucesso inicial e depois final de sua
produção escrita/oral.
Para Barbosa (2001), a perspectiva metodológica adotada no modelo didático
da Escola de Genebra busca constituir numa abordagem construtivista de
abordagem reflexiva. As orientações dadas para o desenvolvimento das etapas ou
componentes da sequência supõem um caminho indutivo no percurso do qual o
aluno é levado à manipulação, ao uso, à reflexão e à apropriação dos elementos que
77
compõem o gênero. Nessa perspectiva, o aluno vai do complexo (produção inicial)
para o simples (decomposição das dimensões do objeto) e de volta para o complexo
(produção final). Nesse movimento, dele são exigidas duas produções intercaladas
por exercícios e atividades que contemplem uma a uma as particularidades do
objeto.
A autora acrescenta que tal abordagem contempla os critérios de progressão
em espiral e de complexificação dos objetos em nível local. Delineia-se também,
nessa proposta, um caminho para a avaliação formativa. A definição de critérios
precisos dá ao professor os instrumentos para avaliar o que os alunos já sabem
sobre o objeto e suas dificuldades para, a partir daí, fazer as intervenções
necessárias
e
concernentes
aos
objetivos
estabelecidos
pelo
projeto
no
desenvolvimento dos módulos.
A organização da etapa de intervenção por módulos que contemplem
separadamente as particularidades do objeto, as quais provocam problemas de
comunicação para os alunos, possibilita a variação dos modos de trabalho, isto é,
das atividades. Esse princípio pedagógico responde às exigências de diferenciações
de ensino, e isso pode dar a cada aluno a possibilidade de apropriar-se dos
procedimentos e instrumentos por diferentes caminhos, aumentando, assim, suas
chances de aprender.
Nesse sentido, as atividades podem problematizar as dificuldades dos alunos
por meio de vários procedimentos: comparar, observar e analisar textos; elaborar
sínteses e revisão; pesquisar, debater e reorganizar conteúdos, levantar hipóteses e
generalizar relações, revisar textos, a partir dos quais os alunos podem apropriar-se
das capacidades implicadas no domínio do gênero. Além disso, as atividades levam
a reflexões sobre os objetos de ensino, construindo a respeito deles uma
metalinguagem e regras que favorecem o controle do próprio comportamento
linguístico.
A metalinguagem e as regras construídas podem ser concretizadas em um
documento do tipo síntese, glossário etc., e devem ser mobilizadas na produção final
como instrumento de indicação de objetivos, regulação e controle do comportamento
linguístico durante a revisão e a reescrita e avaliação do próprio conhecimento por
parte do aluno. Esse documento pode servir também ao professor na realização da
avaliação do tipo somativo da produção final do aprendiz. Assim, o aluno tem
critérios definidos a seguir e o professor critérios definidos a avaliar no final da
78
intervenção. Tal estratégia dá um tom mais objetivo à avaliação, permitindo observar
as aprendizagens efetuadas e possíveis retornos, em outras ocasiões, a aspectos
mal assimilados.
Para Barbosa (2001), esse procedimento didático possibilita um trabalho de
imersão, de aprofundamento, não de visitação, dos conteúdos selecionados,
enfoque este que pode romper com a fragmentação presente em procedimentos do
tipo tradicional. A lógica é que, no final da intervenção, o aluno tenha se apropriado
não apenas de um gênero específico, mas também da capacidade de hipotetizar
sobre a situação de produção.
Assim, uma vez apropriados esses procedimentos e capacidades, os alunos,
quando confrontados com gêneros escritos/orais que eles ainda não dominam,
serão capazes de levantar hipóteses a respeito das condições de sua produção, o
que pode corroborar com um desempenho mais adequado. A autora enfatiza que
seria uma espécie de relação simétrica entre a forma como se ensina (metodologia)
e a forma como se espera que os alunos ajam quando se deparam com situações
de produção/compreensão escrita/oral.
Apresentado, em linhas gerais, o modelo didático da Escola da Genebra,
base para a elaboração de várias propostas de sequências didáticas para o ensinoaprendizagem de língua materna, no contexto brasileiro, como é o caso dos
Cadernos do Programa OLPEF, no próximo capítulo, apresentaremos nosso objeto
de pesquisa, nossos objetivos, nossos dados e corpora, e os processos e
procedimentos utilizados em nossa coleta e análise de dados, para, posteriormente
adentrarmos, precisamente, na análise do nosso objeto.
79
CAPÍTULO 3
Metodologia de pesquisa: em busca dos dados
Dissemos no capítulo 1 que nosso objetivo é investigar o tratamento
discursivo que os textos/enunciados vêm recebendo nos processos de sua
didatização e escolarização com vistas à sua compreensão e produção em
propostas didáticas alternativas42 para o ensino-aprendizagem de língua materna.
O material didático alternativo em enfoque, nesta investigação — o Caderno
Pontos de Vista (PV) —, dentre os quatro Cadernos de produção textual disponíveis,
faz parte da OLPEF e se detém sobre a didatização ou escolarização do artigo de
opinião com vistas à sua compreensão e produção por parte de alunos das 2ª e 3ª
séries do Ensino Médio das escolas públicas brasileiras.
Nesta etapa, pretendemos apresentar os percursos por nós trilhados para
coleta e análise de dados no processo desta pesquisa. Vamos iniciar apresentando
nosso objeto, questões e objetivos de pesquisa, tomando por base as contribuições
das teorias eleitas para nos subsidiar no processo de análise. Posteriormente,
abordaremos a metodologia de coleta e análise de dados.
3.1 Perspectivas sócio-históricas nas Ciências Humanas: a teoria enunciativodiscursiva de Bakhtin
Nossa pesquisa inscreve-se, principalmente, na teoria enunciativo-discursiva
de Bakhtin e, quando necessário, na teoria de ensino-aprendizagem de Vygotsky,
Entendemos aqui por ―material didático alternativo‖ aquele que não é submetido à avaliação do Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD). Esses materiais, geralmente, estão inseridos em projetos educacionais mais amplos e são frutos de
parcerias público-privada, como é o caso do material focalizado nesta pesquisa. Esse tipo de colaboração ou parceria
público-privada na educação surge num contexto político-econômico neoliberal que, para atender às demandas
socioeconômicas de expansão da educação básica a todos com um mínimo de qualidade sem dispender o mesmo em
termos de financiamentos, investir-se-á, através de reformas educacionais, em nova regulação pautada em estratégias de
gestão e financiamento focadas em amplas políticas públicas educacionais que mobilizam a parceria com instituições de
iniciativa privada além do apelo ao voluntarismo e ao comunitarismo. É em tal contexto que localizamos o programa
Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF), uma parceria do MEC com a Fundação Itaú Social e a
ONG de São Paulo Cenpec. Para a realização desse programa, no ano de 2008, houve um investimento de 16 milhões de
reais, metade do montante arcado pelo Banco Itaú e metade pelo MEC. Sendo assim, há um investimento público nesses
materiais de forma direta (repasses de recursos da educação) ou indireta (dedução em impostos, salário educação etc. das
empresas ou corporações empresariais que financiam a elaboração dos materiais e a execução dos programas).
42
80
eleitas para nos auxiliar posteriormente na análise dos nossos dados. Ressaltamos
que a fundamentação teórico-metodológica do programa OLPEF — a Escola
Didática de Genebra — também emprega, de forma relida e revista, e articulados
com outros conceitos de outras teorias, alguns referenciais conceituais desses
autores.
Segundo Amorim (2003), Bakhtin, em sua teoria enunciativo-discursiva de
abordagem sócio-histórica, constitui a linguagem como o objeto privilegiado de suas
reflexões. A autora acrescenta que a linguagem é, nessa teoria, pensada como
acontecimento discursivo cujo nascimento dá-se nas relações entre diferentes
valores e isso constitui a pedra angular da produção de sentidos. Sendo assim,
podemos afirmar que a linguagem, enquanto acontecimento discursivo valorativo, é
vista como um fenômeno concreto e histórico em constituição nas interações
dialógicas entre sujeitos sociossituados.
Vygotsky (2008[1935], p. 75) também dá especial atenção às interações
sociais, entretanto, voltado para o desenvolvimento e aprendizagem da criança de
forma geral e para o aprendizado escolar, de forma específica.
Para explicar a relação do ensino-aprendizagem da criança com o contexto
sócio-histórico a que está exposta, Vygotsky (2008[1935], p. 112) cria um conceito
pedagogicamente rico e instrumentalmente poderoso, o qual denominou de Zona
Proximal de Desenvolvimento (ZPD). Segundo o psicólogo russo, o processo de
construção de conhecimento (mediado pela linguagem) aparece em dois níveis, o
conhecimento real, quando a criança consegue lançar mão de estratégias para a
resolução de problemas sozinha, e o conhecimento potencial (ZPD), quando a
criança só soluciona problemas em colaboração com um par mais avançado.
Assim, enquanto Vygotsky estava preocupado com os processos de
construção de conhecimento e da formação das funções superiores, os quais
passam pelo domínio da linguagem, em que o processo de ensino-aprendizagem
escolar é extremamente importante, Bakhtin volta todo seu esforço em compreender
como se dá o processo de construção de sentidos no/pelo uso da linguagem.
Funcionando como engrenagem que move tal processo de construção valorativa
está a atitude responsiva dos sujeitos nos contextos em que estão inseridos. De
acordo com Amorim:
81
[...] o contexto será sempre uma arena onde diferentes valores se afrontam,
engendrados nas diferentes posições sociais que ocupamos. O pensamento
tornado ato é um pensamento valorado, um pensamento com entonação e
que adquire, segundo a expressão de Bakhtin, ‗a luz do valor‘ (AMORIM,
2003, p. 19).
Podemos perceber que o contexto possui papel fundamental na construção
de sentidos, uma vez que é ele o palco de encontros de diferentes valores e sua
mudança leva, em sua maioria, a mudanças desses valores e das implicações éticas
envolvidas nas formas de produção da linguagem. É nesse sentido que podemos
compreender a formulação de Bakhtin (2003[1952-1953]) de que a realidade da
linguagem é o seu acontecimento vivo na forma de enunciados concretos vistos
como elos de construção dos sentidos sociossituados, cuja compreensão pressupõe
a consideração de suas condições determinadas de produção.
Bakhtin (2003[1952-1953/1959-61]) concebe os enunciados concretos como
radicalmente alteritários. Eles são réplicas ativas ou expressões de posições
valorativas sempre procedendo de alguém e se endereçando a outros sujeitos
também ativos, inseridos em determinados espaços sócio-históricos e ideológicos de
sentidos, dos quais é esperada uma verdadeira compreensão ativa e criadora.
A teoria da linguagem do Círculo de Bakhtin é considerada uma teoria
dialógica, pois sua essência é o sentido que nasce da diferença, do confronto de
vozes sociais travadas na interação verbal por sujeitos ativos. Nessa teoria,
dialogismo e interação estão indissoluvelmente ligados e, juntos, constituem a base
de produção discursiva/da linguagem, logo, dos sentidos. Todo evento de linguagem
é a atualização de uma relação entre sujeitos históricos e sociais.
Passando para o âmbito da pesquisa, na perspectiva de Bakhtin (2003[195961]), a especificidade das Ciências Humanas reside nos sentidos e significados dos
outros, os quais são realizados e dados ao pesquisador apenas sob a forma de
textos entendidos como enunciados concretos. O texto/enunciado concreto,
enquanto acontecimento vivo, ―sempre se desenvolve na fronteira de duas
consciências, de dois sujeitos‖ que expressam atitudes valorativas no contexto
dialógico da própria época em termos de réplicas ativas aos outros. É nesse sentido
que podemos compreender a afirmação do autor russo quanto ao objeto real das
Ciências Humanas:
82
[...] é o homem social (inserido na sociedade), que fala e exprime a si
mesmo por outros meios. Pode-se encontrar para ele e para a sua vida (o
seu trabalho, a sua luta etc.) algum outro enfoque além daquele que passa
pelos textos de signos criados ou a serem criados por ele? A ação física do
homem deve ser interpretada como atitude mas não se pode interpretar a
atitude fora da sua eventual (criada por nós) expressão semiótica (motivos,
objetivos, estímulos, graus de assimilação, etc.) (BAKHTIN, 2003[1959-61],
p. 319).
Podemos, com base na citação acima, compreender o fazer do pesquisador
em Ciências Humanas como um processo inserido no contexto emoldurador
(interrogativo, questionador etc.) a ser criado pela pesquisa e inter-relacionado
complexamente com o texto/o enunciado valorativo do outro (objeto de estudo e
reflexão). Sendo assim, temos o encontro de dois textos, o texto objeto de estudo e
o texto a ser criado, que responde ativamente ao objeto estudado.
Com base em tais considerações, podemos afirmar que a alteridade também
é constitutiva da produção de conhecimento no âmbito das Ciências Humanas,
porque pressupõe sempre essa relação dialógica tensa em termos de reaçõesrespostas entre eu e outro, situados em lugares sociais não simétricos, produzindo
valores diferentes. Amorim (2001) atribui à alteridade, na pesquisa, a dimensão de
estranhamento, tida como condição de possibilidade do objeto a ser pesquisado.
A autora (idem) observa que, no processo de construção de conhecimento,
não basta reconhecer a diferença, mas é preciso o distanciamento: a interrogação, o
questionamento, a recusa da evidência etc. Na base dessas reflexões de Amorim
está um conceito bakhtiniano considerado o elemento-chave para a compreensão da
atividade de pesquisa — a exotopia — que aponta para a não coincidência entre os
horizontes dos sujeitos envolvidos no ato de conhecimento. Isso porque, segundo
Bakhtin:
[...] em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo
possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua
posição fora e diante de mim, não pode ver [...] o mundo atrás dele, toda
uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação
de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele
(BAKHTIN, 2003[1979], p. 21).
Bakhtin (2003[1979], p. 23) fala do excedente de visão pelo qual o
pesquisador procura, primeiro, conhecer o outro do lugar deste para, numa etapa
posterior, assumir um lugar exterior e dali tomar distanciamento do que o outro vê a
partir do que lhe é possibilitado ver, a fim de completá-lo:
83
Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o
mundo de dentro dele tal qual o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de
ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de
visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para
ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do
meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento (BAKHTIN,
2003 [1979], p. 23).
Para Amorim (2003, p. 14), o conceito de exotopia pressupõe uma atitude de
doação no sentido de que ―é dando ao sujeito um outro sentido, uma outra
configuração, que o pesquisador dá aquilo que somente de sua posição, e portanto
com seus valores, é possível enxergar‖. Assim, o processo de pesquisa, ainda que
inserido em um contexto de conhecimento teórico humano possível, é um ato
responsável cuja assinatura é dada do lugar singular que ocupa o pesquisador em
um dado contexto ou momento sócio-histórico.
Entendemos, assim, que a questão da alteridade constrói, em grande medida,
o trabalho do pesquisador. Por isso, o trabalho de pesquisa em Ciências Humanas
também envolve uma relação dialógica do pesquisador com seu pesquisado, na qual
aquele assume o lugar do terceiro participante enquanto entendedor que busca uma
compreensão ativa e criadora. E esta passa a integrar o processo dialógico que
envolve o pesquisado.
A noção de compreensão ativa e criadora de índole dialógica é pedra angular
na teoria de linguagem bakhtiniana. Essa noção pressupõe necessariamente
posicionamentos/réplicas valorativo-ideológicos que integram, juntamente com a
vontade discursiva do autor, endereçada para o destinatário e para o objeto do seu
querer dizer, o processo ininterrupto de constituição da discursividade, logo, dos
sentidos.
Acreditamos que a noção de compreensão ativa e criadora de índole dialógica
e ideológica nos fornece subsídios pertinentes para investigar como a discursividade
ou
a
produção
de
sentidos
tem
sido
trabalhadas
nos
processos
de
didatização/escolarização dos gêneros discursivos/textuais em materiais didáticos
voltados para o ensino-aprendizagem de língua portuguesa conclamado, no atual
contexto brasileiro, como uma ferramenta extremamente importante em favor da
formação cidadã de nossos alunos, conforme pontuam os documentos oficiais, como
os PCN (BRASIL, 1997, 1998, 1999).
84
Em tal perspectiva, tomamos por objeto de pesquisa o tratamento discursivo
dado ao gênero artigo de opinião numa proposta de didatização/escolarização
contida em um material didático de um programa educacional recentemente
institucionalizado, que se propõe a fomentar o ensino-aprendizagem de língua
portuguesa em favor da formação cidadã, numa abordagem assumida na
perspectiva dos gêneros textuais.
Para compreender melhor tal objeto por nós delineado, elaboramos os
seguintes questionamentos aos quais pretendemos responder no decorrer da
pesquisa:
1. Como se organizam teórica e metodologicamente a 1ª e a 2ª edições do
Caderno PV, da OLPEF, voltadas para o ensino-aprendizagem do gênero artigo de
opinião?
2. De que forma as atividades propostas para a didatização do artigo de
opinião no Caderno PV, da OLPEF, tratam a discursividade?
Esses questionamentos têm por fim nortear as respostas para os seguintes
objetivos:
1. Comparar entre a 1ª e 2ª edições a organização teórico-metodológica do
material didático proposto para o ensino-aprendizagem do gênero artigo de opinião.
2. Analisar o tratamento discursivo dispensado na 1ª e 2ª edições do material
ao processo de didatização do gênero artigo de opinião.
Apresentados
os
percursos
previamente
estabelecidos,
passamos
à
apresentação dos caminhos percorridos no processo de coleta de nossos dados de
pesquisa.
85
3.2 Metodologia de coleta de dados
Pretendemos, nesta seção, apresentar o percurso por nós realizado no
processo de coleta de dados de nossa pesquisa. Dissemos, na seção anterior, que,
para a fundamentação desta pesquisa, sustentar-nos-íamos em teorias de enfoque
sócio-histórico, na perspectiva enunciativo-discursiva de Bakhtin e de ensinoaprendizagem de Vygotsky. Já a natureza da pesquisa adotada no processo de
coleta e seleção dos nossos dados é a investigação qualitativa numa abordagem
dialógica.
Tais procedimentos metodológicos são bastante adequados na pesquisa em
Ciências Humanas a partir da perspectiva sócio-histórica, em que o objeto a ser
pesquisado é o ser expressivo e falante, portanto temos relações entre sujeitos,
possibilitadas pela linguagem. E o homem se expressa sempre através do texto
concreto que requer uma compreensão. Segundo Freitas (2003), não existindo texto,
não se pode ter objeto para investigação. Observa também que o texto só se realiza
na fronteira entre duas consciências e isso constitui a particularidade dos estudos
humanos de ser interrogativo, ser troca, diálogo, pensado em um sentido amplo em
que se toma a relação do texto com seu contexto.
Bodgan e Biklen (1994), situados em outra perspectiva teórica, vão afirmar
que a fonte de dados da pesquisa qualitativa é o texto concreto no qual o
acontecimento da pesquisa emerge e sobre o qual os pesquisadores qualitativos
procuram uma compreensão através da descrição minuciosa complementada pela
explicação do objeto pesquisado.
Daí ―tentam analisar os dados em toda sua
riqueza, respeitando, tanto quanto o possível, a forma em que estes foram
registrados ou transcritos‖ (1994, p. 48).
Partindo de tal entendimento, ―tudo pode constituir uma pista que nos permita
estabelecer uma compreensão do nosso objeto de estudo‖ (idem, p. 49). A palavra
escrita, na investigação de natureza qualitativa, assume um papel importante tanto
na coleta dos dados quanto em sua análise. Ainda conforme Bodgan e Biklen:
Ao recolher dados descritivos, os investigadores qualitativos abordam o
mundo de forma minuciosa. [...] A abordagem da investigação qualitativa
exige que o mundo seja examinado com a idéia de que nada é trivial, que
tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer
uma compreensão mais esclarecedora do nosso objecto de estudo. [Por
86
isso] A descrição funciona bem como método de recolha de dados, quando
se pretende que nenhum detalhe escape ao escrutínio (BODGAN; BIKLEN,
1994, p. 49).
Acreditamos que o aspecto de propiciar a coleta minuciosa e o tratamento
descritivo dos textos concretos, estabelecendo com eles uma relação dialógica, é
bastante pertinente para compreendermos a fundamentação teórico-metodológica e
o tratamento dado à discursividade no processo de didatização do gênero artigo de
opinião no material didático elaborado pelo programa OLPEF, dadas as
características dinâmicas e complexas desse objeto de pesquisa, quando pensado
no processo de eterno vir-a-ser ou acontecimento vivo da linguagem.
Outra possibilidade dada pela pesquisa qualitativa é a seleção de fontes de
dados de base documental. Tomamos como fonte documental para a seleção de
nossos dados o material didático, o Caderno do Professor Ponto de Vista em sua 1ª
e 2ª edições, elaborado pelo programa OLPEF. Neste caderno, estão presentes, ao
mesmo tempo, informações teórico-metodológicas direcionadas ao professor — uma
vez que também é um material utilizado para sua formação — bem como as
atividades direcionadas para o trabalho didático-pedagógico de produção escrita e
leitura com os alunos, para o ensino-aprendizagem de um gênero específico, no
nosso caso, o gênero artigo de opinião.
Podemos afirmar que nossa pesquisa fundada na investigação qualitativa, em
que se tem como principal fonte de dados a base documental, dá-nos subsídios
efetivos no processo de coleta para tratar nossos dados de forma minuciosa e
descritiva, extraindo deste trabalho informações pertinentes para responder nossas
questões e atingir nossos objetivos de pesquisa.
3.2.1 Critérios de escolha do Programa OLPEF e do Caderno do Professor
“Pontos de Vista” 43
Nossa escolha do Programa OLPEF justifica-se por ser um projeto que,
segundo organizadores, traz uma metodologia reformuladora e constitui estratégia
de referência para a formação de professores na perspectiva do trabalho com os
As informações sobre o Programa Olimpíada da Língua Portuguesa foram retiradas dos sites da Fundação Itaú Social:
https://www.itau.com.br/itausocial; do site do MEC relacionado ao PDE: http://pdemec.grupotv1.com; do site Comunidade
Virtual do Programa: http//:escrevendo.cenpec.org.br., como também da revista na Ponta do Lápis e do Caderno do
Professor, acessados no período de março a 2009 a março de 2010.
43
87
gêneros textuais. Além disso, por se tratar também de um Programa recentemente
institucionalizado, que tem diferentes agentes atuando em sua execução, a saber:
MEC, uma fundação de um banco privado, a Fundação Itaú, e a responsabilidade
técnica de uma ONG, o Cenpec.
Dissemos em outra ocasião nesta pesquisa que o foco do programa OLPEF é
a formação do professor em serviço para o desenvolvimento de práticas de escrita
(muitas das atividades do Caderno PV constituem-se em práticas de leitura, mas
todas estão a serviço da produção escrita), nas escolas públicas brasileiras, em uma
perspectiva que afirma tomar os gêneros textuais como objetos de ensino.
O programa foco desta pesquisa inicia-se como Programa Escrevendo o
Futuro, uma parceria entre a Fundação Itaú Social44 e o Cenpec. Até 2007, ano de
sua última edição, ele atingiu mais de 3,5 milhões de alunos. Seis anos depois, em
2008, após a assinatura do protocolo de intenções entre a Fundação, o Cenpec e o
MEC, o programa foi reorganizado sob o nome de ―Olimpíada da Língua Portuguesa
Escrevendo o Futuro”.
No ano de 2008, em sua nova fase, o Programa ampliou seu raio de atuação,
recebendo 202.280 inscrições de professores, que desenvolveram o concurso de
produção textual com 6 milhões de estudantes, distribuídos em 5.445 cidades
brasileiras. Este número corresponde a 98% dos municípios. Já em 2010, o número
de inscrição de professores subiu para 239.458, envolvendo 7,2 milhões de alunos,
situados em 5.488 municípios espalhados por todo o Brasil. Para o artigo de opinião
houve 51.889 professores inscritos.
Para a execução de suas ações, o Programa estabeleceu algumas linhas de
atuação. Inicialmente, o ponto de partida era o roteiro de sequência didática
proposto no Caderno do Professor, na forma de oficinas, para o trabalho com três
gêneros específicos na edição de 2008, e para o ano de 2010, quatro gêneros. O
conjunto de cadernos é dividido atualmente em quatro categorias: poesias,
memórias, artigo de opinião e crônicas.
Como política pública de educação de abrangência nacional, além da
estratégia de um concurso de produção textual e do fornecimento de material
Sobre a Fundação Itaú Social, cabe dizer que essa instituição foi criada em 2000 pelo Banco Itaú, com o objetivo
específico de estruturar e implementar os investimentos sociais da empresa, tendo como foco programas de melhoria das
políticas públicas de educação. A Instituição passa a atuar na área de produção de leitura e de escrita a partir da criação do
Programa Escrevendo o Futuro, em 2002, em cooperação técnica com o Cenpec.
44
88
didático específico para a realização das atividades em sala de aula, o Programa
ampliou suas linhas de atuação, lançando mão de formas alternativas de alcançar
em grande escala o professor de língua portuguesa.
Segundo Madi (201045), tal estratégia surge porque se foi percebendo que
com uma formação sustentada apenas por ações mobilizadas em um período que
correspondia à realização do concurso corria-se o risco de que o professor, passado
o concurso, esquecesse a metodologia apresentada pelo Programa e voltasse para
sua rotina de trabalho anterior. O programa tinha de encontrar outros mecanismos
que, além de atingir em grande escala, mantivessem a pauta de formação de
trabalho na perspectiva dos gêneros textuais em dia para o professor.
Assim, o Programa começou a publicar ―Na Ponta do Lápis‖, uma periódico
com questões teóricas, entrevista com especialistas na área de pesquisa e ensinoaprendizagem de língua materna, relato de prática de professores, análise de textos
de alunos tendo por objetivo primeiro alimentar esse processo de formação gradual
e progressivamente46.
Posteriormente nasceu a Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro, criada
para promover o encontro entre os participantes do Programa em todo o Brasil,
informar sobre novidades na área educacional, debater questões relacionadas ao
ensino de língua, ler textos literários como também promover cursos de formação à
distância, cujo enfoque é o ensino dos gêneros textuais contemplados nos Cadernos
elaborados pelo referido Programa.
Em 2009, o Programa passou a disseminar suas ações através de cursos de
formação
presencial,
realizados
por
docentes
de
universidades
públicas,
endereçados aos técnicos de língua portuguesa das secretarias estaduais e
municipais de educação, escolhidos para passar pelo processo de formação e,
posteriormente, realizar o trabalho de multiplicação junto às escolas.
Madi (2010) declara que hoje há uma rede de formação e um acervo que
possibilita a atuação do Programa para trabalhar em escala, atingindo um número
Sonia Madi é coordenadora pedagógica do programa, e essa declaração foi feita em entrevista publicada na Comunidade
Virtual Escrevendo o Futuro, do programa, no dia 18/02/2010.
45
Este fascículo tem uma tiragem média de 40 mil exemplares para um número de mais de 300 mil professores atualmente
cadastrados no site da Comunidade Escrevendo o Futuro. Sendo assim, apesar de os organizadores afirmarem que, a partir
da inscrição do professor no Programa, ele passa a receber essa revista periódica, sua tiragem impressa que é remetida
para a residência dos professores cadastrados na Comunidade Virtual não atinge a todos os professores. Entretanto, os
fascículos digitalizados, atualmente, são disponíveis para o professor no site da Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro.
46
89
cada vez maior de professores e alunos. Observa ainda que o objetivo por trás
desses mecanismos de atuação de grande amplitude pública é contribuir para a
concretização de um novo padrão de ensino-aprendizagem de leitura e de escrita e
levar o professor a incorporar essa metodologia no trabalho de ensino de língua
portuguesa na prática cotidiana de sala de aula.
O funcionamento do Programa estrutura-se em duas fases: nos anos pares,
acontece a realização do concurso de produção textual nas escolas públicas
brasileiras e, nos anos ímpares, são realizadas atividades de formação do professor,
de forma presencial para formadores de professores e online para formadores de
professores e professores. Na execução inicial do programa, as ações de realização
do concurso antecederam as ações de formação de professores.
Assim, no ano de 2008, marco inicial de realização do concurso como
Programa OLPEF, ocorreu a realização do concurso de produção textual e,
posteriormente, no ano de 2009, ocorreram as ações de formação presencial dos
formadores de professores e online para professores. A esses formadores de
professores, técnicos das secretarias estaduais e municipais de educação, cabe o
trabalho de multiplicação de formação com os professores das escolas.
Como se vê, trata-se de um programa de ampla dimensão com várias frentes
ou estratégias de atuação. Nesse processo, possuindo ferramentas tecnológicas e
infra-estrutura de amplo alcance público, o Programa envolve e mobiliza segmentos
públicos, privados e sociedade civil organizada (ONGs) na execução de suas ações,
investindo nelas em torno de 16 milhões. É, assim, um Programa diferenciado em
termos de amplitude e capacidade de entrada na escola pública brasileira, façanha
não alcançada por outros programas da mesma categoria, além do montante de
investimento recebido, cujas fontes são provenientes do público e do privado.
Devido
às
várias
frentes
de
atuação
do
Programa,
para
melhor
compreendermos seu funcionamento e nos munirmos das condições necessárias
para alcançar os objetivos por nós propostos no início da pesquisa, decidimos
começar nossa coleta com três grandes conjuntos de dados, os quais julgamos
serem as frentes principais de atuação do Programa e que poderiam nos fornecer os
subsídios pertinentes para compreensão do nosso objeto de pesquisa: os materiais
didáticos — o Caderno do Professor; os cursos de formação presencial e à
distância; a aplicação do Caderno por parte de um professor.
90
Na ocasião em que delineamos o conjunto de dados alvo de nossa pesquisa,
pretendíamos compreender o tratamento discursivo dado ao gênero no processo de
sua didatização nos Cadernos da OLPEF e observar como o professor aplicava este
material em sala de aula. Portanto, tínhamos dois grandes conjuntos de dados,
inicialmente.
Posteriormente, sabendo dos cursos de formação online e presencial,
conjecturamos que, talvez, poderíamos encontrar dados interessantes para pensar
nosso objeto de pesquisa. Tínhamos informações de que esses cursos funcionavam
também como ferramentas para manter a pauta da formação na perspectiva dos
gêneros em dia e subsidiar o professor na aplicação do Caderno em sala de aula,
principalmente o curso de formação online ofertado na Comunidade Virtual do
Programa.
3.2.2 O primeiro conjunto de dados: os Cadernos do Professor
O primeiro conjunto de dados de nossa pesquisa constituiu-se dos materiais
didáticos, denominados Cadernos do Professor, elaborados pelo programa OLPEF
para a aplicação, por parte do professor, no ensino-aprendizagem de produção
escrita do gênero didatizado em cada Caderno específico, os quais, no ano de 2008,
estavam divididos da seguinte forma47: ―Poetas na escola‖, ―Se bem me lembro‖ e
―Pontos de Vista‖, no âmbito dos quais foram didatizados os gêneros poesias,
memórias e artigo de opinião.
Iniciamos a coleta desse primeiro conjunto de dados no início do primeiro
semestre de 200948. Na ocasião, decidimos que faríamos um levantamento prévio
desse material didático elaborado pelo Programa, a fim de verificarmos, devido aos
limites da pesquisa, quais dos Cadernos disponíveis melhor atenderiam aos
objetivos de nosso trabalho de pesquisa49. Para isso, realizamos uma leitura
panorâmica a título de conhecimento abrangente dos materiais didáticos.
O Caderno ―A ocasião faz o escritor‖ só foi introduzido para a realização do concurso no ano de 2010, por isso não
passou por esta fase de coleta dos nossos dados.
47
Esses dados nos foram concedidos pela professora Dra. Simone Padilha, nossa orientadora, e também docente
formadora do Programa no Estado de Mato Grosso.
48
Fizemos também a leitura atenta, mas não aprofundada, de todos os textos semifinalistas no Estado de Mato Grosso nas
três categorias para o concurso realizado em 2008. A leitura desses textos tinha apenas como objetivo obter uma visão
49
91
Como nosso objetivo principal era analisar o tratamento discursivo realizado
em materiais didáticos alternativos voltados para o ensino-aprendizagem da língua
portuguesa, conjecturamos que o Caderno ―Pontos de Vista‖ — em que se focaliza o
ensino-aprendizagem da produção escrita do artigo de opinião em favor da formação
para a cidadania — nos fornecia melhores condições para chegar aos objetivos
propostos no âmbito desta pesquisa, uma vez que o uso desse gênero pressupõe
um sujeito altamente crítico, portanto, um gênero em que a discursividade se mostra
bastante aflorada.
Decidimos, assim, que o Caderno do Professor ―Pontos de Vista‖, pela
especificidade do gênero nele didatizado e pelos objetivos propostos, seria um dos
dados da nossa pesquisa. Como esse Caderno passou, no ano de 2010, por uma
reformulação, achamos por bem tomar as duas edições como dados de nossa
pesquisa para procedermos a um trabalho de comparação do tratamento didático
dispensado nas duas edições. Isso porque, de acordo com Madi (2010), houve
mudança de ênfase no tratamento didático, pois, na edição de 2008, o enfoque
estava na estrutural formal e, na edição de 2010, nos objetivos e função do gênero
artigo de opinião.
3.2.3 O segundo conjunto de dados: os cursos de formação online e presencial
O segundo conjunto de dados de nossa pesquisa constituiu-se dos cursos de
formação de professores realizados na modalidade à distância (online) no site da
Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro e na modalidade presencial, realizado na
cidade de Cuiabá-MT. Esse conjunto de dados foi coletado no período de agosto a
outubro de 2009.
3.2.3.1 Formação online e presencial: a coleta e a mudança de percursos
A parte dos dados correspondente ao curso de formação presencial foi
coletada em duas etapas. A primeira ocorreu nos dias 17, 18 e 19 de setembro de
2009, computando 20 horas. A segunda ocorreu nos dias 22, 23 e 24 de outubro do
geral dos resultados alcançados no processo de aplicação em sala de aula das propostas de produção dos gêneros
focalizados em cada Caderno do Professor, no ano de 2008.
92
mesmo ano, com o mesmo número de horas, totalizando 40 horas. O curso, cuja
pauta é estabelecida pelos responsáveis técnicos do Programa, no caso, o Cenpec,
foi ministrado na cidade de Cuiabá-MT por uma docente formadora da Universidade
Federal de Mato Grosso.
Os dados referentes ao curso de formação online50 foram coletados no
período de 12 de agosto a 23 de setembro de 2009, totalizando 30 horas. Esse
curso é endereçado aos técnicos formadores de professores das secretarias
estaduais e municipais de educação e a todos os professores, coordenadores e
diretores de escolas públicas brasileiras.
Para realizar a coleta dos dados referente ao curso presencial, solicitamos
junto à docente formadora e à coordenadora do Programa no Estado de Mato
Grosso a participação no curso. A permissão nos foi concedida na condição de
―convidadas‖, uma vez que ele é endereçado aos professores técnicos formadores
das secretarias estaduais e municipais de educação. Na coleta, enquanto
participante, usamos o procedimento da observação, do registro escrito e da coleta
dos materiais utilizados no processo de formação, como textos de leitura e outras
atividades propostas no decorrer do curso.
Em relação ao curso online, decidimos participar como professores-cursistas
do curso ―Artigo de Opinião‖
51
, uma vez que já havíamos optado pelo Caderno
―Pontos de Vista‖ como um dos dados da nossa pesquisa52.
No percurso de coleta dos dados referentes ao curso presencial,
descobrimos, por meio de conversas com representantes dos responsáveis técnicos
do Programa que o curso, naquela ocorrência, não estava voltado necessariamente
O espaço virtual do curso é organizado por menus, totalizando 07 (sete): Módulos, Datas, Blogs, Mural, Fascículo,
Relatório e Ajuda. O menu Módulos subdivide-se nas seguintes áreas: Início, Motivação, Leitura, Reflexão e Tarefa. Esse
menu é o eixo norteador do curso enquanto que os outros funcionam como apoio ou complemento ao mesmo. Sendo
assim, na coleta dos dados, ele foi o foco de nossos interesses.
50
Na época da coleta, as opções de cursos disponíveis na Comunidade Virtual eram 01 turma de ―Poesias‖, 01 turma de
―Memórias‖ e 02 de ―Artigo de Opinião‖.
51
Sobre o curso de formação online, apesar de ele fornecer melhores condições para alcançar o professor em grande
escala e direcionar melhor a formação para fundamentar o trabalho de aplicação do Caderno em sala de aula por parte do
professor, não atinge a maioria dos professores por dificuldades várias, principalmente a de atuar em ambientes virtuais o
que provoca o alto índice de desistência (algo em torno de 75%), levantado por nós em conversas informais com colegas
cursistas e mediadoras do curso no espaço virtual da Comunidade, e, por experiência própria quando, posteriormente à
coleta dos dados, atuamos como mediadoras neste curso. Além, é claro, da falta de tempo do professor que se sente
sobrecarregado de trabalho e cansado das formações continuadas, conforme levantaram alguns formadores do Cefapro na
ocasião de relato da formação que haviam realizado entre as etapas do curso presencial ofertado em Cuiabá. De uma
turma inicial com uma média de 30 alunos, concluem, em média, de 10 a 08 alunos.
52
93
para o professor em sala de aula, mas para os professores formadores de
professores, no caso de Mato Grosso, os formadores do Centro de Formação de
Professores (Cefapro53).
Soubemos também que o curso chegaria ao professor que estava na sala de
aula tendo por base a metodologia da multiplicação que se organiza, no âmbito do
Programa, da seguinte forma: um docente formador54 de uma universidade pública
ministra o curso presencial em duas etapas intercaladas por um período de 20 a 30
dias para os formadores, no caso de Mato Grosso, do Cefapro. Esses formadores
escolheriam um representante (professor ou coordenador, de preferência, professor
de língua portuguesa) de cada escola integrante de seu polo para fazer a
multiplicação.
Na ocasião, diante de várias dificuldades apontadas por tais formadores em
realizar a multiplicação, como falta de logística (dificuldades de os professores
selecionados para receber a multiplicação se deslocarem de suas cidades até a
cidade sede do polo do Cefapro, falta de apoio financeiro para arcar com as diárias
destes professores), formação não prevista na pauta do Cefapro, o que levava a um
processo de ―encaixar‖ tal multiplicação na agenda do órgão, algo tido por alguns de
difícil mobilidade, além da falta de tempo habitual do professor sobrecarregado do
trabalho cotidiano, supomos que tal multiplicação, provavelmente, não envolveria o
professor da sala de aula de forma ampla e também não ocorreria no ano de 2009,
logo antes o início da aplicação do Caderno, que ocorreria no início de 201055.
Tentamos acompanhar a multiplicação para os professores das escolas
através de e-mails e telefonemas mantidos com as formadoras do Cefapro da sede
em Cuiabá, porque pretendíamos encontrar, nesta formação, o sujeito de nossa
O Cefapro é um órgão ligado à Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso (SEDUC-MT) e tem como função
manter e alimentar a formação continuada dos professores da rede estadual de ensino. Este órgão tem sede em Cuiabá e
vários polos estratégicos distribuídos pelo interior do Estado.
53
Segundo responsáveis técnicos do Programa, o critério de escolha de tal docente é que ele estava envolvido com
estudos dos gêneros textuais/discursivos e com formação de professores.
54
Observamos que alguns formadores do Cefapro de polos localizados no interior do Estado conseguiram se organizar e
realizar a 1ª parte da multiplicação entre os intervalos da 1ª e 2ª etapas de formação do curso presencial e relataram, por
escrito e oralmente, como ocorreu a formação, quantas horas utilizaram e quem foram seus sujeitos formativos (alguns
escolheram professores, outros coordenadores, na ocasião alguns formadores reclamaram de que os professores, alguns,
não receberam bem a formação, vendo-a como uma a mais para sobrecarregá-los). Depois de finalizadas as etapas do
curso presencial, não tivemos mais condições de acompanhar esse processo; soubemos apenas em ocasião de
apresentações em seminários que em alguns polos essa multiplicação foi realizada com o total de horas estabelecidas
pelos organizadores da formação presencial, qual seja, 40 horas, divididas em duas etapas de 20 horas cada.
55
94
pesquisa. Tal multiplicação só ocorreu em maio de 2010 com duração de 04 horas.
Soubemos disso em conversa com nosso próprio sujeito da pesquisa, e,
posteriormente, em conversa por telefone com as próprias formadoras. O sujeito por
nós selecionado para acompanhar a aplicação do Caderno nos contou que o
enfoque da formação multiplicada fora a sequência didática e a apresentação geral
do Programa.
Tendo em vista que esses dados haviam entrado em nosso processo de
coleta por conjecturarmos que eles poderiam fazer a diferença na hora de o
professor realizar a aplicação do Caderno na sala de aula, diante dessas condições,
primeiro, de a multiplicação ter sido feita de forma aligeirada e extremamente
sintetizada e, segundo, de o professor não ter participado do curso online, decidimos
não utilizar tais dados coletados antes do encontro com um dos sujeitos de nossa
pesquisa: o professor. Assim, esses dados foram coletados, mas não serão
utilizados no processo de nossa análise.
3.2.4 O terceiro conjunto de dados: a aplicação do Caderno
A terceira e última etapa de coleta de nossos dados diz respeito à aplicação
do Caderno ―Pontos de Vista‖ por parte de um professor da rede estadual de ensino
na cidade de Várzea Grande-MT, o qual aplicou a proposta em uma turma da 2ª
série do Ensino Médio. A coleta desses dados ocorreu de 10 de junho a 16 de
agosto de 2010, com um intervalo de 20 dias correspondente ao período de férias
dos professores e alunos. Esses dados foram coletados em oito dias distribuídos,
com desconto dos dias de férias, em um período de um mês e meio em média.
Como critério de escolha do professor que seria sujeito de nossa pesquisa,
estabelecemos que ele devesse ter participado dos cursos de formação online e
presencial na forma de multiplicação por parte dos técnicos formadores da
Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso (SEDUC-MT). No processo de
procura do sujeito de nossa pesquisa, fomos percebendo que não seria fácil
encontrá-lo56. Percorremos várias escolas no município de Várzea Grande, ligamos
Na ocasião, nossa procura começou no fim do mês de abril e até fins de maio de 2010, percebemos que o trabalho de
multiplicação do curso de formação presencial não havia ocorrido no polo de Cuiabá que atende a 120 escolas localizadas
na região chamada ―Baixada Cuiabana‖ que compreende entre outros municípios a cidade de Cuiabá, Várzea Grande,
Chapada dos Guimarães, Santo Antonio do Leverger, Nossa Senhora do Livramento, Poconé, Rosário Oeste. Em conversa
com duas das técnicas responsáveis pelo trabalho de multiplicação, fomos informados de que elas ainda não haviam
56
95
em tantas outras e sempre os professores nos respondiam que não iam desenvolver
as oficinas com seus alunos.
Depois de muita procura, encontramos um professor57 que aceitou nosso
acompanhamento durante a aplicação do Caderno ―Pontos de Vista‖ com uma turma
de 2ª série do Ensino Médio, composta, em média, por 20 alunos. Este professor
havia participado da multiplicação feita pelos técnicos formadores da SEDUC-MT.
Ele também estava inscrito no curso de formação online, mas não compareceu no
ambiente para realizar as atividades do curso. Ainda assim, devido às dificuldades
em encontrar um professor dentro dos critérios estabelecidos por nós e até mesmo
fora deles, decidimos manter nossas observações com o professor que aceitou ser
observado.
Utilizamos, nesta etapa, o procedimento de observação e registro escrito,
além de gravarmos com uma câmera fotográfica pequena trechos das oficinas que
julgávamos pertinentes para entender nosso objeto de pesquisa.
No decorrer da observação, percebemos que, por mais que o professor
tivesse boa vontade em desenvolver a proposta, tivesse lido todo o material
conforme orientação do Programa, planejado as atividades e o tempo de sua
realização, contasse com uma turma participativa e empenhada em aprender, a
aplicação do Caderno ―Pontos de Vista‖ cada vez mais ficava comprometida.
Tínhamos um material didático com quinze oficinas planejadas para serem
executadas utilizando, em média, de duas a quatro aulas.
Além das poucas aulas de língua portuguesa disponíveis para o Ensino Médio
(3 por semana), o professor enfrentou férias coletivas (20 dias), feriados, festa
escolar (festa junina para a qual os alunos eram dispensados para fazer ensaios),
mal-estar do professor, empréstimo de aula por parte de outro professor, além de a
Escola estar passando por uma reforma muito longa e que comprometia o
encontrado um espaço na agenda para inserir a multiplicação. Tal formação ocorreu às pressas já em fins do mês de maio,
totalizando quatro horas, e, conforme conversa com o professor sujeito de nossa pesquisa, as multiplicadoras restringiramse à apresentação da metodologia da sequência didática e dos Cadernos do Professor. O definido no final do curso de
formação presencial voltado para os técnicos formadores da secretaria era que tal formação deveria computar a mesma
carga horária recebida naquela ocasião de formação, ou seja, 40 horas.
A Escola em que ocorreu a coleta está localizada no bairro Cristo Rei na cidade de Várzea Grande-MT. O professor que
aceitou nosso acompanhamento tinha 08 anos de experiência em sala de aula, era a 2ª vez que participava do concurso,
mas na categoria artigo de opinião era a primeira. O professor possui especialização na área de ensino-aprendizagem de
língua portuguesa e graduou-se e pós-graduou-se numa universidade privada localizada na mesma cidade onde está
localizada a Escola e onde também ele mora.
57
96
desenvolvimento efetivo das atividades, uma vez que os alunos estavam utilizando
locais improvisados na quadra de esporte.
Percebemos também que o professor tinha algumas dificuldades em entender
a proposta, principalmente a parte teórica referente ao modelo de argumentação
introduzido no Caderno da 2ª edição. Diante disso, tendia a trabalhar com o material
utilizando a prática de produção de texto desenvolvida no seu trabalho cotidiano com
o modelo de dissertação, incrementado-a com alguns elementos apresentados pela
proposta, como a questão polêmica, bastante enfatizada no trabalho do professor, e
a construção dos argumentos, em sua maioria, referentes à crença pessoal. Isso se
deveu, em sua maioria, ao insucesso de outras atividades extraescolares realizadas
pelos alunos, como leituras e pesquisas.
O professor resumiu e juntou como pode as oficinas para que pudesse
desenvolvê-las no tempo que dispunha. Muitas atividades tidas pela proposta como
fases importantes para a produção escrita, como realização de debates, pesquisa de
informações para ampliação de conhecimento e busca de outros argumentos, uso
de outros elementos da argumentação, escrita coletiva, análise e revisão de textos
no gênero artigo de opinião, reescrita do texto, foram descartadas por questão de
tempo.
No final da coleta, tínhamos sérias dúvidas se valeria a pena submeter os
dados coletados à análise e se eles, coletados naquelas condições, nos dariam os
subsídios necessários para compreensão de nosso objeto de pesquisa. Na ocasião
não tomamos nenhuma decisão e fomos desenvolvendo a pesquisa.
3.2.5 Recortes dos três conjuntos de dados coletados
Com os dados coletados e algumas decisões já tomadas, tínhamos que traçar
um caminho pertinente para o tratamento do objeto por nós delineado, inserido no
âmbito de nossos objetivos delineados e das possibilidades e limites de nossa
pesquisa.
Como dissemos anteriormente, os cursos de formação online e presencial, no
fim do processo de coleta e após a coleta dos dados referentes à aplicação do
Caderno, pareceram-nos desnecessários, uma vez que as condições de sua
pertinência no âmbito de nossa pesquisa haviam sido perdidas: multiplicação
97
aligeirada e sintetizada58 ao extremo e não participação por parte do professor no
curso online. Portanto, apesar de terem sido coletados, ambos não foram
submetidos à análise.
O processo de observação e coleta desses dados nos valeu pela experiência
e pelo conhecimento que nos auxiliou posteriormente nas nossas reflexões sobre os
fins, as possibilidades e limites do referido Programa. Tínhamos ainda mais dois
conjuntos de dados: a aplicação do Caderno ―Pontos de Vista‖ e o Caderno
propriamente dito.
Em relação à aplicação, como se tratava de um estudo de caso, refletimos
que as problemáticas encontradas no processo de coleta comprometeriam nosso
objetivo, nesta etapa, qual seria, de analisar a aplicação que o professor faz deste
material em sala de aula, uma vez que nem mesmo das condições de tempo
necessárias para sua aplicação o mesmo dispôs. Da forma como a proposta foi
aplicada não traria grandes contribuições ao nosso objeto focalizado nesta pesquisa,
qual seja, o tratamento da discursividade no material didático Caderno ―Pontos de
Vista‖. Sendo assim, optamos também por não utilizar esta parte de dados coletada.
Tais dados nos serviram como alerta para as dificuldades de aplicação de
uma proposta de ensino-aprendizagem de gêneros textuais/discursivos organizados
numa perspectiva do modelo de didática da Escola de Genebra no contexto
brasileiro. Nosso tempo escolar é bastante problemático, restrito, e nossas
condições de trabalho e formação são bem diferentes do contexto genebrino, além
de as necessidades de nossos alunos também serem bem diferentes.
Sendo assim, considerando o tempo e o espaço restritos deste trabalho,
decidimos tomar como dados para a nossa pesquisa e posteriormente, para nossa
análise, apenas o material Caderno do Professor ―Pontos de Vista‖.
3.3 Os corpora de nossa pesquisa
Como os materiais por nós selecionados como dados de nossa pesquisa são
os que mais facilmente chegam ao professor e se constituem ao mesmo tempo em
material didático e material de formação do professor, passam a compor os corpora
Acrescentamos ainda que o curso presencial constitui, em grande parte, mais em um evento de apresentação geral do
Programa, suas linhas de atuação e do acervo disponível para subsidiar o professor na aplicação dos materiais didáticos
elaborados para o trabalho de ensino-aprendizagem dos gêneros textuais.
58
98
de nossa pesquisa a base teórico-metodológica que fundamenta a proposta do
Caderno ―Pontos de Vista‖ e as atividades didáticas contidas em suas
unidades/oficinas para o ensino-aprendizagem do gênero artigo de opinião.
Considerando ainda a reformulação desse material no ano de 2010, decidimos
tomar como dados para análise as duas edições 2008 e 2010 do Caderno ―Pontos
de Vista‖.
Pretendemos, por meio dos corpora constituídos, ter construído as condições
necessárias para o tratamento analítico do nosso objeto de forma a alcançar os
objetivos por nós propostos.
3.4 Metodologia de análise de dados
Como estávamos trabalhando com duas edições do Caderno do Professor
―Pontos de Vista‖, precisávamos conhecer minuciosamente a organização desses
materiais. Por isso, decidimos que procederíamos a uma análise extensiva do
Caderno do Professor ―Pontos de Vista‖ nas edições de 2008 e 2010, pois, segundo
o Cenpec, diferenciavam-se entre um tratamento didático do gênero voltado para
sua forma estrutural, na 1ª edição (2008), e um tratamento mais funcional, na 2ª
edição (2010), para selecionarmos sobre quais aspectos da base teóricometodológica e quais atividades da sequência didática no gênero artigo de opinião
recairia no enfoque de nossa análise.
Por acreditarmos que a base teórico-metodológica é determinante no
tratamento didático dispensado aos objetos de ensino e que a adoção de uma ou
outra perspectiva teórica dará determinados contornos e possibilitará o trabalho com
determinados elementos, e não outros, do objeto focalizado, precisávamos conhecer
a fundamentação teórico-metodológica da proposta, a fim de verificarmos se ela é e
como é mobilizada no processo de didatização do gênero artigo de opinião e sua
potencialidade no tratamento da discursividade.
Para tal, decidimos que, primeiro, procederíamos a um levantamento geral da
organização dos Cadernos de forma comparativa entre as duas edições e, segundo,
envidaríamos um levantamento também comparativo focalizando a organização da
sequência didática em si mesma.
99
No primeiro levantamento, desvelamos a estrutura geral de composição
desses materiais59. Pudemos rastrear também, de forma geral, sobre quais aspectos
recaíram as reformulações por que passou o Caderno ―Pontos de Vista‖.
No levantamento da organização geral da proposta, observamos a ocorrência
de reformulação na fundamentação teórica, que, na abordagem do gênero, na 1ª
edição, oscilava entre perspectivas discursivas e textuais, passou, na 2ª edição, a
procurar unificação em torno da perspectiva textual. Além disso, notamos também
alguns deslocamentos espaciais dos elementos constituintes da organização geral,
como a transposição do texto de apresentação para professor acerca da base
teórico-metodológica assumida, que na 1ª edição, localiza-se em uma seção à parte
e, na 2ª edição, na introdução e disseminada ao longo da sequência didática. Houve
também um acréscimo do número de unidades/oficinas, na 2ª edição.
Diante de tal descoberta, decidimos que procederíamos a uma análise
extensiva da fundamentação teórica e metodológica do Caderno ―Pontos de Vista‖
em um procedimento comparativo entre as duas edições.
Para selecionarmos as atividades didáticas sobre as quais recairia nossa
análise, procedemos a um segundo levantamento sintetizado em um quadro
comparativo entre as duas edições, agora focalizando a organização geral da
sequência didática em torno do gênero artigo de opinião. Por ele, percebemos que o
acréscimo de seções/oficinas, na 2ª edição, recaiu, principalmente, sobre os
elementos que diziam respeito à estruturação da argumentação.
Para confirmar tal resultado, decidimos proceder a um novo levantamento,
utilizando outra estratégia de classificação. Decidimos classificar atividade por
atividade. Para isso, tomamos emprestado e readaptamos às especificidades das
atividades dos Cadernos uma ficha de avaliação elaborada por Padilha (2005), com
base na Ficha de Avaliação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
Decidimos utilizar essa adaptação, e não a ficha do PNLD, por julgarmos mais
adequada aos nossos objetivos.
Tal organização é composta de uma seção de apresentação dos objetivos do programa OLPEF, uma seção de
apresentação, justificativa e objetivos da proposta didática, da sequência didática no gênero artigo de opinião, dos critérios
de avaliação, de um encarte, na 1ª edição, e 01 Coletânea, na 2ª edição, de textos modelares no gênero artigo de opinião,
de 01 seção de apresentação da base teórico-metodológica que fundamenta a proposta. Percebemos também que o
encarte era constituído por textos mais fabricados para servir à própria situação de produção do gênero nas condições da
escola e a Coletânea era constituída de textos coletados na imprensa nacional e regional.
59
100
Procedemos ao levantamento e fizemos uma quantificação do número de
atividades propostas em cada edição e da incidência dos aspectos prevalecentes no
conjunto das atividades classificadas. Conforme mostraremos no capítulo 4 desta
pesquisa, a maioria das atividades, principalmente as da 2ª edição, estava voltada
para um tratamento da estrutura da argumentação e das formas de estruturação e
composição do gênero artigo de opinião. Em segundo lugar, estavam as atividades
voltadas para o tratamento objetivo-funcional desse gênero, sobrando pouco espaço
ao tratamento da construção dos sentidos nas atividades classificadas.
De posse dessas informações, decidimos proceder a uma análise qualitativa
das atividades do Caderno ―Pontos de Vista‖, seguindo três formas de
procedimentos. Quando se tratasse de atividades iguais em uma edição e outra,
escolheríamos aleatoriamente a atividade contida em qualquer uma das edições.
Quando se tratasse de atividades que haviam sofrido modificação, procederíamos a
uma análise comparativa das atividades contidas nas duas edições. Por fim, quando
se tratasse de atividade nova, analisaríamos apenas na 2ª edição.
Tomando em consideração o objetivo da proposta didática de fornecer um
material cuja organização gira em torno da didatização de um gênero altamente
favorável à formação cidadã, estabeleceremos como categorias de análise o
conceito de discursividade, a compreensão responsiva e criadora de índole dialógica
e ideológica.
101
CAPÍTULO 4
Análise de dados 1: O quadro teórico organizador dos Cadernos “Pontos de
Vista” da OLPEF
Nosso objetivo, nesta etapa, é apresentar a organização e a base teóricometodológica do Caderno do Professor “Pontos de Vista” (PV), organizado em uma
sequência didática do artigo de opinião, proposta pelo Programa OLPEF.
Focalizamos, nesta análise, os Cadernos da edição do concurso de 2008
(GAGLIARDI; AMARAL) e de 2010 (RANGEL, GAGLIARDI; AMARAL).
Altenfelder60 (2010) diz que a organização do Caderno do professor é feita de
forma a atender uma demanda dos professores a respeito da integração entre teoria
e prática, ausente na maior parte dos materiais didáticos que são ou muito teóricos
ou muito distantes da prática. Assim, a orientação do Caderno visa a essa
integração entre teoria e prática: apresenta a teoria e ensina, ao mesmo tempo,
como fazer na prática por meio das atividades propostas organizadas em
sequências didáticas, sendo essa forma de organização uma de suas apostas na
diferenciação da proposta.
Barbosa (2001), ao defender uma proposta de ensino-aprendizagem na
perspectiva dos gêneros do discurso, salienta que tal trabalho supõe diferentes
níveis de concretização, dentre eles, a escolha dos gêneros e dos seus aspectos
que deverão ser privilegiados numa descrição e análise para a construção de
programas de ensino e a elaboração ou utilização de material didático adequado ao
mesmo. Parece que a escolha da sequência didática na OLPEF vem atender a essa
proposta.
A análise, nesta etapa, compõe um dos passos de nosso trabalho de
pesquisa acerca deste programa e pretende buscar a resposta para a seguinte
questão: Como se organizam teórica e metodologicamente a 1ª e a 2ª edições do
Anna Helena Altenfelder foi formadora do Cenpec do ano de 2002 a 2008 e defendeu recentemente (agosto/2010) sua
tese de doutorado tendo como título O papel da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro no processo de
formação dos professores participantes, pela PUC/SP. Logo após a defesa, ela concedeu uma entrevista ao Cenpec para
falar sobre os resultados obtidos (24/08/2010).
60
102
Caderno PV da OLPEF voltado para o ensino-aprendizagem do gênero artigo de
opinião?
4.1 A base teórico-metodológica do Programa OLPEF
A proposta de ensino-aprendizagem contida nos dois cadernos do fascículo
Pontos de Vista da OLPEF está fortemente ancorada numa ferramenta didática,
ultimamente, bastante utilizada por autores de materiais didáticos que buscam
alternativas diferenciadas para o trabalho de ensino, cuja base são os gêneros.
No percurso de conhecimento do Programa relatado no capítulo 3,
percebemos que a sua proposta didático-pedagógica está bastante alinhada com a
―Escola de Genebra‖, cujos pesquisadores pertencem ao Departamento de Didática
de Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de
Genebra (UNIGE). A teoria didática dessa Escola foi apresentada no capítulo 2,
sendo retomada aqui em linhas gerais, a fim de situar o material analisado.
Em linhas gerais, a Escola Didática de Genebra, a partir da releitura feita pelo
ISD de Bronckart da teoria de gêneros de Bakhtin e da teoria de aprendizagem de
Vygotsky, emprega-as, de forma reelaborada, em sua proposta didática para o
ensino-aprendizagem de língua materna (francês). Fazendo uso da metáfora dos
instrumentos psicológicos, de que fala Vygotsky em sua concepção interacionista
social do desenvolvimento psicológico, Schneuwly (2004[1994]) vai explorar o
gênero como um instrumento semiótico que possibilita a comunicação, o
desenvolvimento das funções superiores dos alunos, aspectos fundamentais para a
sua participação em diversas atividades de linguagem, como as discursivas.
Os gêneros são vistos, precisamente, como mega-instrumentos complexos,
no interior dos quais se organizam signos menores em níveis diferentes. Eles
funcionam como mediadores semióticos que dão forma e possibilitam a
materialização de uma atividade de linguagem ou ação discursiva numa situação
particular entre sujeitos.
Apesar de reconhecer que as práticas de linguagem (falar, escrever)
pressupõem a apropriação dos gêneros, para esses autores, do ponto de vista
didático-pedagógico, os gêneros não podem ser tornados objeto de ensinoaprendizagem porque se trata de entidades vagas e múltiplas, que não dão
possibilidade de identificação com base em suas propriedades linguísticas, única
103
unidade empiricamente acessível. Essa justificativa é aproveitada do quadro teórico
do ISD do qual os autores faziam parte no início de suas pesquisas.
De acordo com Machado (2005), no âmbito dessa Escola, os gêneros são
tomados como ―quadros da atividade social em que as ações de linguagem se
realizam‖. Sendo assim, o objeto real de ensino/aprendizagem são as ações de
linguagem que, dominadas, constituem as capacidades de linguagem. De acordo
com Dolz e Schneuwly (2004[1996]), são requeridas, em toda e qualquer forma de
comunicação, as capacidades de ação, as capacidades discursivas e as
capacidades linguístico-discursivas.
Com base no modelo didático elaborado, a Escola Didática de Genebra
sugere um procedimento definido como ―um conjunto de atividades escolares
organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito‖,
denominado de sequência didática, que é composta por quatro componentes:
apresentação da situação; produção inicial; módulos e produção final, constituindo
uma unidade de trabalho escolar (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004[2001],
p. 97).
Tal encaminhamento didático está marcado na forma como os autores do
Caderno PV do Programa OLPEF organizam o material didático em torno do gênero
artigo de opinião. A forma como os autores do material ora analisado organizam o
gênero e recortam suas dimensões a serem trabalhadas deixam entrever que
seguem não só a ordem de proposição dos componentes que envolvem o
instrumento sequência didática, mas também tomam os objetivos de ensinoaprendizagem de língua propostos pela Escola de Genebra, expressos na forma
como escolhem e tratam os elementos a serem trabalhados nas atividades com
vistas à construção das capacidades de linguagem envolvidas no artigo de opinião.
Como dissemos anteriormente, a Equipe de Didática de Genebra emprega a
noção de gênero discursivo de Bakhtin relida pelo ISD de Bronckart. Entretanto, tal
releitura é ampliada para sua aplicação no ensino de língua materna. Por isso,
conforme pontua Figueiredo (2005), ao mesmo tempo em que a proposta didática
dos autores favorece um trabalho mais significativo de ensino-aprendizagem de
língua materna, pois permite uma abordagem da língua em contextos de uso mais
próximos da realidade, privilegia aspectos da ordem do texto e da enunciação em
detrimento de questões discursivas que envolvem o contexto histórico mais amplo
de produção. Assim, a abordagem de gênero que empregam é a textual.
104
Ainda segundo Figueiredo (idem), tal orientação vai estar marcada no
encaminhamento dado às sequências didáticas que tomam o gênero como um
modelo de famílias de textos com características semelhantes e o trabalham com
base nas regularidades do conjunto, defendendo tal estratégia com base na validade
didática, isto é, gêneros como objeto de ensino e não apenas como objetos de
comunicação. Ressaltamos que tal encaminhamento não é sempre unívoco nos
trabalhos da Equipe de Didática de Genebra. Chamamos a atenção, em nota
anterior (cf. p. 73), que Dolz é sempre mais ligado ao ISD, enquanto Schneuwly tem
buscado outras escolhas, entre elas, Bakthin.
Já ao tomarmos a noção de gênero numa perspectiva bakhtiniana,
visualizamos o gênero como objeto sócio-histórico que implica, na sua totalidade, a
articulação intrínseca entre conteúdo, material e forma. Tecendo essa articulação
está o sujeito-autor por meio de sua apreciação valorativa em direção ao conteúdo
do gênero e em direção à resposta ativa de seus interlocutores, situado em um
tempo-espaço único. Por isso, a ordem de relevância deve ser a discursividade, à
qual estão subordinados os elementos linguísticos e composicionais, nisso está a
designação gêneros do discurso61.
Na próxima seção, apresentaremos a organização geral da proposta didática
da OLPEF para o artigo de opinião.
4.2 Cadernos “Pontos de Vista” 2008-2010: comparando a organização geral
No levantamento da organização geral da proposta, seguimos a ordem em
que os elementos são apresentados pelos autores. Tomando por base a intenção do
programa em organizar em um único material didático teoria e prática voltadas para
o ensino-aprendizagem do gênero e, ao mesmo tempo, para a formação do
professor, temos, na 1ª edição, do Caderno Pontos de Vista, a seguinte organização:
apresentação da proposta e das finalidades do programa de forma bem sucinta
assinada pelas instituições parceiras (MEC, Fundação Itaú e Cenpec); carta ao
professor na qual a equipe da OLPEF informa a estratégia do programa (concurso
Na academia, vide os trabalhos apresentados nos últimos eventos sobre a temática, como os do SIGET (Simpósio
Internacional de Gêneros Textuais), não há um consenso a respeito de tal distinção entre gênero textual/discursivo. Há os
que defendem sua distinção como Rojo (2005), Sobral (2006) numa perspectiva discursiva e Bronckart (1999), numa
perspectiva textual, entre outros, há aqueles que optam por uma terminologia, mas não explicam sua opção: é o caso, no
Brasil, de Marcuschi (2002), que utiliza a terminologia textual.
61
105
como pretexto para formação do professor para o trabalho com gêneros textuais via
sequências didáticas).
Na introdução, são apresentados os objetivos específicos da proposta
didática (formação de autores de textos socialmente eficazes em favor da
cidadania); segue-se a sequência didática propriamente dita no gênero artigo de
opinião organizada com diferentes tipos de atividades sistematizadas na forma de
oficinas, num total de doze62, que objetivam identificar as condições de produção de
um artigo de opinião, o conteúdo temático desse gênero, como ele se estrutura
textualmente e alguns de seus aspectos gramaticais, orientando ao mesmo tempo
professores a como ensinar e alunos a como produzir um texto no gênero enfocado.
Na parte final, as autoras apresentam os critérios de avaliação dos textos,
considerando os aspectos enfatizados nas atividades da sequência 63. Além disso,
fornecem um encarte com modelos de artigos de opinião, coletados na imprensa
nacional. Por fim, as autoras apresentam a base teórico-metodológica que orienta a
organização do Caderno, como concepção de língua, discurso e gênero e a
sequência didática organizada para o artigo de opinião. Uma rápida olhada nas
referências bibliográficas apresentadas nos apontou para o fato de que as autoras
se comprometem tanto com abordagens mais discursivas com base em Bakhtin,
(2003[1952-1953]), e seus comentadores, entre eles I. Machado, (1999); Rojo,
(2000); Rodrigues, (2000); Kleiman, (2007), quanto com abordagens mais textuais
dos gêneros, baseadas em Marcuschi (2002); Schneuwly (2004[1994]), Dolz e
Schneuwly (2004[1996]).
O Caderno da 2ª edição inicia-se com uma carta ao professor e apresentação
da nova coleção de materiais incluindo, além dos fascículos, uma coletânea de
textos nos gêneros focados pela OLPEF na forma impressa e digital (CD-ROM),
prefácio escrito pelo professor Joaquim Dolz, que apresenta a metodologia da
sequência didática, e a introdução com os objetivos do projeto de ensino do artigo
Oficinas do fascículo Pontos de Vista, 1ª edição: 1. Artigo de opinião; 2. A notícia em debate; 3. Polêmica; 4. Por dentro
do artigo; 5. Questão, posição e argumentos; 6. Sustentação de uma posição; 7. Como articular; 8. Vozes no artigo de
opinião; 9. Pesquisar para escrever; 10. Assim fica melhor; 11. Produção de artigos e 12. Últimos retoques (GAGLIARDI;
AMARAL, 2008).
62
Os critérios são os seguintes: 1. Pertinência ao tema proposto (1,0 ponto); 2. Presença de elementos do gênero ―artigo de
opinião‖ (3,0 pontos); 3. Busca de informações sobre o tema (2,0) pontos; 4. Originalidade (1,0) e; 5. Aspectos gerais de
gramática e ortografia (3,0).
63
106
de opinião. A proposta geral do programa, as estratégias da proposta didática e seus
objetivos permanecem os mesmos da edição anterior.
A sequência didática no gênero artigo de opinião está organizada em
atividades divididas em quinze oficinas64, portanto, com acréscimo de três.
Percebemos que as oficinas 01 e 02, situadas na parte que contempla as condições
de produção do gênero, apresentam, ao mesmo tempo, atividades que estavam
inclusas na oficina 01, na 1ª edição, e atividades novas com enfoque na ação de
argumentação. A proposta de produção do primeiro texto individual, que na proposta
da 1ª edição estava inserida na oficina 03, juntamente com atividades que visavam à
identificação de questões polêmicas e o reconhecimento de bons argumentos, foi
colocada, sozinha, na oficina 05.
Percebemos, desde a introdução, certa preocupação em se apresentar o
gênero a partir das regularidades do conjunto, a fim de fornecer um modelo didático
mais estável do artigo de opinião. Tal preocupação é apresentada, de forma mais
explícita, na oficina 07, em que os autores fornecem ao professor e, por extensão
aos alunos (porque as informações teóricas são seguidas de atividades para sua
aplicação), um modelo de estrutura da argumentação, proposto pelo filósofo inglês
Stephen Toulmin, a fim de subsidiar as atividades de trabalho com a organização
textual do gênero.
Com base nos objetivos e elementos novos presentes nas oficinas,
conjecturamos que a mudança entre uma e outra edição parece enfatizar o enfoque
teórico sobre a argumentação, uma vez que tanto os novos elementos inseridos nas
oficinas bem como a presença de novas oficinas estão voltados para um trabalho
mais efetivo com as categorizações e estruturas da argumentação.
Verificamos também algumas alterações nos critérios de avaliação, bem
como na apreciação valorativa de cada um na forma como estabelece o valor de
pontuação. A adequação ao tema proposto (em vez de 1,0 passa a valer 1,5). Os
critérios de avaliação dos aspectos do gênero propriamente dito (divididos em três
na edição anterior) passam a integrar um único critério ―adequação ao gênero‖ que
abarca a adequação discursiva (2,5) e adequação linguística (2,5), o critério de
Argumentar é preciso; 2. O poder da argumentação; 3. Informação versus opinião; 4. Questões polêmicas; 5. A polêmica
no texto; 6. Por dentro do artigo; 7. O esquema argumentativo; 8. Questão, posição e argumentos; 9. Sustentação de uma
tese; 10. Como articular; 11. Vozes presentes no artigo de opinião; 12. Pesquisar para escrever; 13. Aprendendo na prática;
14. Enfim, o artigo; 15. Revisão final.
64
107
originalidade é substituído pelas marcas de autoria (2,0), finalizando com o critério
de respeito às convenções da escrita (1,5).
Apesar de os autores anteciparem que os critérios estabelecidos dizem
respeito à forma como os gêneros são descritos no fascículo e, portanto, entendido
pelos autores e pela OLPEF, observamos que os descritores deixam entrever certa
apreciação maior pelos aspectos linguísticos (4 descritores) do que pelos aspectos
discursivos (3 descritores). Além disso, apesar de avaliar a escolha de recursos
adequados ao leitor, não especificam quais seriam esses recursos.
Outro aspecto que merece uma comparação com a edição anterior são as
referências. Na 2ª edição, percebemos um movimento de unificação teórica,
privilegiando a tendência textual. Percebemos que, apesar de aparecer uma
referência de um capítulo da obra de Bakhtin, denominado ―O todo semântico da
personagem‖, contido na complexa obra ―O autor e a personagem na atividade
estética (2003[1924-1927]), as demais referências linguísticas são todas de
vertentes textuais como Marcuschi (1983, 2001), Matêncio (s.d), Dolz e Schneuwly
(2004[1994]), Dolz e Pasquier (2004[1994]), Dolz (2004), Nascimento (2009),
Machado et all (2009) e retóricas como Toulmin (2001) e Breton (2005).
Diante disso, não questionando o enfoque da proposta na textualidade,
perguntaríamos quais aspectos da compreensão e produção em sala de aula esse
enfoque ensejaria e quais seriam suas contribuições para o ensino-aprendizado da
produção escrita com vistas à formação para a cidadania. Há de se pensar também
que o gênero artigo de opinião é bastante produtivo no que diz respeito à questão da
formação do leitor crítico/cidadão.
Alguns desses aspectos podem ser antecipadamente cotejados na introdução
da proposta do projeto didático dos autores na 1ª e 2ª edições. Verificamos que, à
primeira vista, a proposta assume uma abordagem que enfoca a língua em
contextos de uso mais próximos da realidade:
Em nossa vida estamos sempre partilhando, conversando com as pessoas
sobre os acontecimentos do cotidiano... Mas as opiniões não se restringem
à fala — elas também podem ser dadas por escrito (GAGLIARDI; AMARAL,
2008, p. 08).
A mesma orientação é dada na 2ª edição:
Desde a hora em que nos levantamos até a hora em que vamos dormir,
essas e outras questões nos instigam, pois envolvem fatos socialmente
108
relevantes: a seca do Nordeste e a pobreza dela decorrente; o ―funil‖ do
vestibular e a angústia que ele provoca no adolescente; o aumento da
criminalidade entre menores [e aqui a causa está ausente] [...] (RANGEL;
GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 17).
Ao buscar orientar a proposta mostrando a linguagem voltada para a vida e
vice-versa, principalmente para seus problemas, os autores adotam uma abordagem
em que o ensino-aprendizagem de língua materna pode tornar-se muito mais
significativo, algo bastante positivo porque abre espaço para a consideração dos
valores que entram no uso social da linguagem. Isso se marca, de certa forma, na
justificativa que os autores apresentam de estabelecer como entrada no gênero a
questão polêmica:
[...] Afinal, entender o que está em jogo em cada caso, perceber ―quem é
quem‖, certificar-se de interesses em disputa, estratégias em ação etc. são
formas eficazes de se envolver nas questões que movem a vida em
sociedade. Debatê-las, colaborando para a formulação coletiva de
respostas, é parte da vida política cotidiana numa sociedade democrática
[...] (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p.18).
De acordo com a citação acima, podemos depreender que os autores
pretendem apresentar uma abordagem dos usos da linguagem tomando em
consideração os valores que nela circulam. Essa interpretação pode ser inicialmente
embasada pela preocupação dos autores em inserir, ainda que de forma rápida, nas
duas edições, o artigo de opinião em sua esfera de atividade específica.
A 1ª edição apresenta o gênero artigo de opinião como um dos gêneros da
esfera jornalística que gira em torno da argumentação, assim como o editorial e a
carta do leitor. A forma como as autoras explicam a presença dos três gêneros
jornalísticos fundados na argumentação dá a entender que a diferença entre um e
outro se funda na marca de autor, ―pessoa de representatividade social, órgão de
imprensa e leitor‖. Já na 2ª edição, os autores optam por apresentar sucintamente a
forma de funcionamento da esfera jornalística, dividindo-a em duas grandes
finalidades:
Retratar a realidade e contribuir para a reflexão a seu respeito são,
portanto, as duas intenções básicas do jornalismo. De forma geral, as
matérias não assinadas, especialmente a notícia, procuram nos dar, na
medida do possível, uma descrição objetiva e imparcial dos fatos que
relatam. Já as matérias assinadas, como os editoriais, os artigos de opinião,
as críticas, as resenhas, as grandes reportagens etc., se esforçam para
analisar e discutir esses mesmos fatos (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL,
2010, p. 18).
109
Com base na citação acima, cabe a nós perguntar como os autores entendem
o funcionamento da esfera jornalística. Se nossa interpretação proceder, teremos
então que a atividade jornalística situa-se, por um lado, acima dos interesses e
disputas em jogo nas questões sociais, adquirindo aí um papel isento de valor e
eminentemente informativo do que acontece no nosso cotidiano e, por outro, possui
um status de privilégio marcante, uma vez que, ao informar o público dos
acontecimentos abre seu espaço para os formadores de opinião analisar, comentar,
opinar sobre esses fatos, contribuindo para a reflexão e transformação a respeito da
realidade retratada.
Nessa perspectiva, a função dessa atividade é tomada de forma
inquestionável, uma vez que apresenta o que é na realidade e não sua
interpretação, além do fato de sua função não exercer qualquer influência nos
gêneros ditos de opinião, como o artigo, tendo sua importância neste gênero apenas
enquanto espaço de sua produção (suporte).
Do nosso ponto de vista, trata-se de uma visão, de certa forma, bastante
equivocada. Segundo Melo (1994), a ideia de neutralidade é uma imagem
construída pelos segmentos da esfera jornalística tendo como fim o favorecimento
de si próprios como a construção de credibilidade junto aos leitores e sociedade.
Além disso, os valores e opiniões não existem apenas na forma de um ponto de
vista declarado, eles se mostram na escolha de pautas, na disposição do material,
das imagens, entre tantos outros. Portanto, acreditamos que a busca mais acurada
do funcionamento da esfera de atividade jornalística pode favorecer melhor a
reflexão crítica do aluno a respeito do que lê nesse âmbito e do que escreve para
esse âmbito.
Em suma, no material, o jornalismo é considerado uma atividade de interação
humana sociocomunicativa, mas as ideologias que nela circulam são tomadas de
forma naturalizadas. Essa forma de entender a atividade jornalística remete ao
entendimento dos autores do que seja autoria. Por exemplo, as notícias são tidas
como sem autoria, ―anônimas e neutras‖, enquanto o artigo de opinião possui autoria
―‗filtrada‘ pelo ponto de vista do articulista‖. Seu interlocutor é aquele leitor ―que se
interessa por aquilo que pensa e por que pensa a respeito de determinado assunto‖
(RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 18-19).
110
Depreendemos que, apesar de os autores da proposta didática afirmarem que
a escrita do artigo de opinião é para aqueles reconhecidos pelos jornais e pelos seus
leitores como detentores de um desempenho profissional ou especialidade que
possa trazer uma contribuição própria e relevante para o debate, dão mais margens
para que se entenda o ponto de vista do articulista como sendo propriamente
pessoal, aspecto para o qual corrobora a assinatura e o pé biográfico do autor. Se
os fatos chegam ao público ‗filtrados‘ pelo ponto de vista do articulista (autor do
artigo), seria interessante que os autores considerassem que, por sua vez, esse
ponto de vista passa também por, no mínimo, três filtros até chegar ao ponto de
vista do autor.
O primeiro filtro é da própria empresa jornalística que, diferentemente do que
parecem entender os autores, não é neutra diante das questões sociais. Assim, o
jornal, ao convidar um determinado articulista para escrever sobre determinado
assunto, já está agindo valorativamente e filtrando o que e quem pode falar em sua
página ―nobre‖.
Rodrigues (2001) e Alves Filho (2006) observam que os artigos escritos por
colaboradores tendem a passar cada vez mais por um processo rígido de seleção,
ficando apenas o espaço discursivo da carta do leitor para a colaboração
espontânea. Além disso, os artigos precisam passar pela avaliação do redator, que
resguarda o direito de publicação ou não. Assim, o jornal posiciona-se como um
autor interposto no artigo de opinião que, juntamente com o autor, assume a
responsabilidade pela sua autoria: o primeiro, política e profissionalmente, o
segundo, juridicamente. Portanto, não se trata de responsabilidade pertencente
apenas ao articulista, como é apresentada na proposta.
Alves Filho (2008) afirma que o artigo pode se prestar, de maneira difusa e
implícita, para propagar as posições ideológicas do próprio jornal, uma vez que a
instituição escolhe como articulistas justamente aquelas personalidades do horizonte
social cujos valores vão ao encontro dos seus. O autor ainda afirma que o modo
como a instituição jornalística promove (ou não) a inserção de articulistas
representantes dos segmentos sociais é um forte indicador de suas posições
socioideológicas e revela, mais ou menos, o grau de comprometimento dessa
instituição com a participação social e as práticas democráticas.
Rodrigues (2001) notou que, em relação ao lugar social de enunciação, há a
presença de articulistas da esfera política, da indústria, do comércio, da
111
administração e, em menor escala, da esfera artística, da jurídica, da jornalística e
da científico-acadêmica. Revela, ainda, que o articulista necessita ser visualizado
como de destaque e notoriedade profissional e social em sua esfera de atuação.
Nesse sentido, não basta ter destaque e notoriedade profissional, mas depende do
lugar de sua inserção social. Com base no perfil sociopolítico dos articulistas dos
grandes jornais apontado por Rodrigues, podemos afirmar que, se para alguns
segmentos da elite essa abertura para vozes externas ao jornal constitui um gesto
de democratização, para as classes desprivilegiadas torna-se uma forma de censura
à expressão.
Vimos, então, que, além de não ser para qualquer um a investidura da função
de articulista, como reconhecem os autores da proposta, também não é de qualquer
esfera de atuação que ele pode se posicionar. Assim, o articulista é um
representante legitimado por sua esfera de atuação e não por sua vida privada e,
justamente por isso, ele não fala diretamente em seu próprio nome, mas a partir do
ponto de vista de sua esfera. É a construção dessa imagem de articulista
competente, autorizado socialmente e midiologicamente que legitima seu ponto de
vista, constituindo-se de antemão em um discurso autorizado. E nesse aspecto, um
elemento verbal que contribui para a construção dessa imagem de competência é o
pé-biográfico, o qual é considerado na fundamentação teórico-metodológica da
proposta, mas sobre o qual não se tecem maiores comentários, afirmando apenas
que contribui para revelar sua identidade.
Nesse sentido, todo gênero do discurso pressupõe uma determinada
configuração de autoria. É ela que orienta o autor na produção do seu discurso bem
como os interlocutores na recepção do mesmo. Entretanto, essa autoria presumida
pode ser mais ou menos reenquadrada pelo projeto discursivo do autor, pelo fundo
aperceptivo que ele traz do interlocutor e de ambos sobre o objeto do discurso. A
autoria presumida no gênero artigo de opinião se mostra bastante complexa uma
vez que está ―atravessada‖ por diferentes instâncias enunciativas como a própria
esfera jornalística e a de atuação do autor, o querer dizer desse autor, além do
fundo aperceptivo do leitor.
Sobre o destinatário do artigo, é interessante ressaltar que ele também não é
qualquer um ou ―muitos‖. Rodrigues (2001) observou que os jornais de grande
circulação nacional direcionam-se para os leitores, em sua maioria, das classes A e
B. A autora ainda chama a atenção para uma descoberta, a qual precisaria ser
112
confirmada cientificamente, de que os jornais destinados para as classes C e,
principalmente, D e E, não possuem artigos de opinião. Alves Filho (2008) observou,
por sua vez, que em jornais de circulação regional verifica-se a presença de leitores
da classe C devido à ausência das classes A e B, que preferem, para emitir suas
opiniões, o espaço da entrevista televisiva. Assim, o articulista também não escreve
para qualquer um, mas para aquele interlocutor/leitor sócio-historicamente
privilegiado pela esfera jornalística e pelo gênero artigo de opinião.
A autoria do artigo apresentada na proposta mostra-se bastante simplificada e
restrita à situação de produção imediata, aspecto que pode limitar o potencial
significativo do gênero artigo de opinião. Essa forma restrita de entendimento dos
elementos da situação de produção do gênero não garante a unidade de que os
autores precisam para a elaboração da proposta. Por isso, apesar de considerar o
ponto de vista dos autores, socialmente legitimados pelo jornal e pelos leitores por
sua ―representatividade social‖ (1ª ed.) ou sua ―contribuição própria relevante para o
debate‖ (2ª ed.), direcionado para o objeto discursivizado, o que funda o gênero em
si não é a autoria, mas aqueles elementos que se mostram mais estáveis, como o
conteúdo temático, apresentado nos termos dos autores como questão polêmica:
Sem as questões polêmicas de que já falamos, não existe opinião. Elas
geram discussões porque há diferentes pontos de vista circulando sobre o
assunto que as envolvem. Assim, o articulista, ao escrever, assume posição
própria nesse debate, procurando justificá-lo. Afinal, argumentos bem
fundamentados têm maior probabilidade de convencer os leitores
(RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 20).
Numa perspectiva bakhtiniana, o conteúdo temático faz parte dos elementos
relativamente estáveis do gênero e funciona como potencialidade para sua
realização, concretizando-se apenas no agir valorativo do sujeito-autor endereçado
para o objeto e para o ouvinte, em um aqui e agora únicos. Nesse sentido, a
linguagem é sempre dialógica e, sendo assim, qualquer objeto do mundo interior ou
exterior mostra-se sempre perpassado por ideias gerais, por pontos de vista, por
apreciações dos outros. Eles nos chegam desacreditados, contestados, avaliados,
categorizados e iluminados pelo discurso alheio.
Bakhtin (2003[1959-1961]) nos revela que essas relações dialógicas não
podem ser interpretadas em termos simplificados e unilaterais, reduzidas a uma
contradição, desacordo. As relações dialógicas são ricas em variedades e matizes.
113
Depreendemos disso que os sujeitos não se posicionam em suas relações com os
outros apenas em polos opostos; seus posicionamentos podem variar de grau e
amplitude a depender das situações sócio-históricas de produção do discurso e de
sua inserção social em grupos determinados.
Diante disso, podemos afirmar que esse caráter de réplica apreciativa é
constitutivo de todos os enunciados/textos. No âmbito da teoria enunciativodiscursiva, conforme Rodrigues (2001) e Alves Filho (2008), a finalidade do artigo
em si não nos dá elementos suficientes para diferenciá-lo nem dos outros
enunciados que circulam socialmente nem de outros gêneros jornalísticos com a
mesma orientação. Os autores apontam que é a autoria intrinsecamente ligada aos
gêneros que nos possibilita discerni-lo enquanto uma manifestação verbal específica
que está vinculada ao cronotopo de sua produção e às relações dialógicas nele
estabelecidas.
No âmbito da proposta didática ora em análise, o entendimento do objeto do
artigo de opinião como uma temática controversa reduzida a dois polos divergentes
pode facilitar a compreensão da interação no artigo de opinião na forma como
desejam os autores, mas limita a compreensão das relações dialógicas que, se
consideradas em sua variedade e matizes, poderiam contribuir de forma mais efetiva
para a concretização da proposta em prol da formação cidadã.
Essa forma de entendimento do objeto temático do gênero está ligada, em
termos, à noção que os autores têm de argumentação como uma ação de linguagem
que envolve sempre situações difíceis e violentas, como mostraremos mais à frente.
Daí essa articulação entre questão polêmica, as ações de argumentação e a
cidadania:
Aprender a ler e a escrever esse gênero na escola contribui para
desenvolver a capacidade de participar, com argumentos convincentes, das
discussões sobre as questões do lugar onde se vive e, mais do que isso, de
formar opinião sobre elas, colaborar para resolvê-las, praticar a cidadania
(GAGLIARDI; AMARAL, 2008, p. 09).
Aprender a ler e a escrever esse gênero na escola favorece o
desenvolvimento da prática de argumentar, ou seja, anima a buscar razões
que sustentem uma opinião ou tese... escrever artigos de opinião pode ser
um importante instrumento para a formação do cidadão (RANGEL;
GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 20).
114
Tomando por base a citação acima, podemos interpretar que o objetivo de
formar o produtor de texto socialmente eficaz em favor da cidadania teria suas
possibilidades, no ensino-aprendizado do artigo de opinião, através do domínio das
capacidades de argumentação, como tomar posição e sustentar a opinião. Apesar
da ênfase na categoria de ação de linguagem, os autores também abordam o artigo
de opinião como uma resposta ativa inserida na corrente da comunicação verbal:
Ao escrever seu artigo, o articulista toma determinado acontecimento, ou o
que já foi dito a seu respeito, como objeto de crítica, de questionamento e
até de concordância. Ele apresenta seu ponto de vista inserindo-o na
história e no contexto do debate de que pretende participar. Por isso mesmo
tende a incorporar ao seu discurso a fala dos participantes que já se
pronunciaram a respeito do assunto, especialmente os mais marcantes
(RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 20)
Observamos, pela citação acima, que tal consideração tende a tomar o artigo
de opinião como um objeto sócio-histórico situado e endereçado. Por outro lado, no
último trecho da citação, há uma tendência em restringir ou determinar, a priori, com
quem o autor dialoga. Depreendemos que os autores, ao apresentarem o objetivo da
proposta de ensino-aprendizagem do artigo de opinião, pretendem sustentar a
proposta, ao mesmo tempo, em categorias de ações de linguagem e na
discursividade, como mostra a citação acima. Cabe verificar como essas duas
noções estão relacionadas e qual a profundidade de tratamento e a relevância que
cada uma adquire na proposta.
Em síntese, os objetivos da proposta didática não sofreram alterações de uma
edição para a outra e a oscilação teórica presente na 1ª edição permanece na 2ª
ainda na introdução, o que não se repete nas referências bibliográficas, por
exemplo. Na próxima seção, buscaremos o embasamento teórico dos autores, a fim
de melhor entender a organização do Caderno ―Pontos de Vista‖ e suas
contribuições à prática didática de sala de aula tendo em vista a formação em favor
da cidadania.
4.3 Caderno PV: comparando as propostas teóricas nas 1ª e 2ª edições
Nesta seção, pretendemos apresentar as bases teóricas que fundamentam as
propostas dos Cadernos na 1ª e 2ª edições a fim de melhor entendê-las. No
Caderno da 1ª edição, as autoras reservam uma seção específica ―Para saber mais
115
ainda‖ a fim de apresentar a concepção teórica de linguagem e a metodologia
utilizadas na proposta. Nessa seção, no tópico ―Língua, discurso e gênero‖, vejamos
como as autoras apresentam a concepção de linguagem que orienta o material:
Todos nós produzimos diversos textos que se dão em diferentes gêneros —
orais ou escritos, formais ou informais. Cada situação exige o uso de uma
forma particular de comunicação.
[...] As finalidades são distintas, os interlocutores são diferentes e os meios
de circulação do texto não são os mesmos.
Muitos gêneros são aprendidos informalmente, nas relações sociais, com
familiares ou amigos [...] Outros gêneros, porém, exigem aprendizagem
sistematizada, como os textos literários, científicos e jornalísticos
(GAGLIARDI; AMARAL, 2008, p. 83).
Uma primeira observação a fazer é que, apesar do tópico estar intitulado
―Língua, discurso e gênero‖, em nenhum momento do resumo há referência ao
discurso de forma marcada. Observemos na primeira citação que, em vez de
―discurso‖ ou ―enunciado‖, as autoras empregam o termo ―texto‖ para se referir às
diversas formas de comunicação que se dão em diferentes gêneros. Os termos
―texto‖ e ―gênero‖ aparecem sempre sozinhos.
Bakhtin também não é citado formalmente no corpo do resumo, mas notamos
o emprego de algumas de suas noções, como a consideração da flexibilidade do uso
da linguagem de acordo com a situação de produção, circulação e recepção das
formas de comunicação e a divisão dos gêneros em domínios culturais (gêneros
informais e gêneros sistematizados), todos diluídos no tom de nota informal
imprimido à apresentação da base teórica de linguagem.
Podemos inferir dessas informações que a língua/linguagem para as autoras
são as diversas formas textuais que utilizamos na comunicação com os outros
(bilhete, pauta de reunião, conversa entre amigos, carta de leitor). Essas formas
textuais constituir-se-iam em diferentes gêneros de acordo com as finalidades da
atividade humana (relação familiar, relação de trabalho, relação entre amigos,
relação com a imprensa).
O uso da linguagem adquire caráter específico de acordo com as finalidades,
os interlocutores e os meios em que circulam. Nesse sentido, o uso da linguagem
implica as condições de produção, circulação e recepção, portanto, aspectos
constitutivos da discursividade. Por outro lado, notamos que o contexto de
constituição dos gêneros é considerado de forma restrita, isto é, o enfoque está
116
voltado para as finalidades sociais imediatas da comunicação (escrever um bilhete,
preparar uma pauta de reunião, dar um telefonema, escrever uma carta de leitor),
sem tocar nas razões ideológicas dos gêneros serem como são.
No tópico ―O papel da escola‖, as autoras justificam a ação pedagógica da
escola no que respeita ao ensino-aprendizagem de linguagem, percebemos que elas
se comprometem mais com a perspectiva discursiva:
A pessoa que fala, lê ou escreve está imersa numa história, numa cultura e
em diferentes grupos sociais nos quais exerce papéis variados. Trata-se de
um processo de construção de sentido que ocorre na relação entre os
interlocutores e o contexto em que atuam.
[...] Na sala de aula o texto, além de ser a materialização de práticas reais
de linguagem, torna-se também objeto de ensino-aprendizagem.
É importante acolher os conhecimentos que os alunos trazem, introduzir
novos conteúdos e valores por meio de situações desafiadoras e fazer a
mediação entre os discursos dos alunos — geralmente construídos em
esferas cotidianas de interação, como a família e a vizinhança — e os
discursos produzidos em outras esferas, como as da ciência, da política e
da mídia (GAGLIARDI; AMARAL, 2008, p. 84-85).
Na primeira citação, notamos que as autoras buscam resgatar os aspectos
históricos, culturais e sociais na constituição das práticas de linguagem, isto é, os
gêneros, que seriam resultados do processo de construção de sentido entre autores
e interlocutores em contextos determinados. Na segunda citação, o texto não é mais
apresentado como a unidade das formas de comunicação, mas apenas sua
materialização. Na última citação, as autoras adotam claramente o termo discurso
em vez de texto, construído nas esferas de atividade humana (cotidianas e
sistematizadas). Além disso, apesar de as autoras utilizarem o verbo ―introduzir‖ (a
nosso ver, ―construir‖ seria mais adequado), os valores são colocados como
objetivos de ensino-aprendizagem. Como se vê, há uma oscilação teórica de um
tópico para outro.
A primeira citação, inserida no tópico de apresentação da fundamentação
metodológica, aponta também para a consideração da categoria de Zona Proximal
de Desenvolvimento de Vygotsky nos processos de ensino-aprendizagem: ―[...]
acolher os conhecimentos que os alunos trazem, introduzir novos conteúdos e
valores por meio de situações desafiadoras e fazer a mediação entre os discursos
dos alunos [...] e os discursos produzidos em outras esferas [...]‖ (GAGLIARDI;
AMARAL, 2008, p. 85).
117
Ainda nesse tópico, percebemos a presença de forma muito resumida e até
mesmo incompleta de referências às justificativas que os autores da Escola de
Genebra dão para escolher os critérios de classificação utilizados na organização
dos gêneros a serem tomados em situação de ensino-aprendizagem escolar: ―A
escola não tem condições de ensinar todos os gêneros existentes, nem pode prever
todos aqueles que os alunos utilizarão em sua vida futura‖ (GAGLIARDI; AMARAL,
2008, p. 84).
Em vez de, no trecho seguinte, as autoras explicarem tal afirmação,
restringem-se a afirmar a importância do trabalho escolar na formação da autonomia
dos alunos para aprender sozinhos os gêneros de que vão necessitar no futuro,
tidos como ―saberes linguísticos‖ necessários para o exercício da cidadania.
Subjacentes a essas afirmações sem explicações estão os critérios de classificação
dos gêneros utilizados pela Escola de Genebra para organização desses objetos em
situações de ensino-aprendizagem, fundados na validade didática, tendo em vista a
progressão do ensino-aprendizagem.
A presença das orientações dessa escola didática se faz sentir também no
modo como as autoras propõem a transposição didática dos gêneros, que se funda
na articulação de dois critérios: situações autênticas de comunicação e situações
semelhantes às autênticas, nos termos dos representantes da Escola de Genebra,
―ficcionalizadas‖. As autoras apresentam, no final da seção, o instrumento de
sequência didática, também fornecido pela Escola de Genebra, que constitui a
principal ferramenta metodológica proposta pelo Programa. À sua apresentação, as
autoras dedicam duas laudas e pouco explicando o conceito, a forma como é
realizada e o que se mobiliza em cada etapa.
As autoras dedicam um tópico para justificar a escolha do modelo didático
fornecido pela Escola de Genebra e, em seguida, passam a apresentar como esse
modelo é desdobrado na proposta didática do Caderno do Professor da OLPEF. A
sequência didática do fascículo ―Pontos de Vista‖ organiza-se, assim como propõe o
modelo genebrino, em torno de quatro componentes. O primeiro componente
trabalha a apresentação do projeto de escrita e da situação de produção do gênero
artigo de opinião. O segundo envolve a produção inicial de um texto no gênero artigo
de opinião. Esta primeira escrita deve funcionar como elemento regulador do
processo de ensino-aprendizagem organizado na sequência didática tanto para o
aluno quanto para o professor.
118
O terceiro componente organiza-se em torno de módulos elaborados de
acordo com os problemas apresentados na produção inicial dos alunos. Nesses
módulos, o professor deve oferecer aos alunos instrumentos necessários para
superar as dificuldades encontradas na primeira produção. Para isso, é preciso
planejar várias atividades mobilizando diversos instrumentos: leitura de variados
textos na forma do gênero estudado para ampliar o repertório dos alunos; escuta,
leitura, escrita, reflexão sobre língua para conhecer as características específicas do
gênero; pesquisa para ampliar o conhecimento do aluno sobre o assunto abordado;
síntese das informações obtidas; produção coletiva, com base na síntese realizada,
com o intuito de promover a interação e troca entre pares menos e mais avançados.
O quarto componente envolve a produção final individual. Nesta produção
individual, o aluno deve colocar em prática o que aprendeu no percurso da
sequência didática. No que se refere a essa produção, o professor deve proceder a
uma nova avaliação da aprendizagem. Espera-se, também, que o aluno seja capaz
de avaliar sua própria aprendizagem no caminho percorrido uma vez que precisa
reescrever seu texto, tendo por suporte um roteiro na forma de quadro-síntese
produzido durante ou no fim da sequência. Por fim, decide-se o suporte no qual
circulará a produção dos alunos.
De acordo com a análise das informações que cercam a sequência didática,
podemos afirmar que o discurso das autoras está afinado e articulado com o
discurso da mudança, presente nos parâmetros referenciais (PCN), no caso, para o
ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa, resultados dos apelos da academia —
no contexto brasileiro e no de outros países — em prol de um ensino-aprendizagem
de língua contextualizado e significativo. Entretanto, como já vimos antecipando,
esse contexto social aí considerado não se expande; restringe-se a uma dimensão
imediata e escolar de uso da linguagem.
No Caderno da 2ª edição, não há uma seção específica para tratamento da
teoria e da metodologia que embasam a proposta. Temos o prefácio de Joaquim
Dolz no qual é apresentada a metodologia da sequência didática da Escola de
Genebra e as demais considerações a respeito da linguagem são tecidas na
Introdução, em que os autores procuram apresentar as condições de produção do
artigo de opinião, como já dito anteriormente. Observamos que os autores,
diferentemente da 1ª edição, preocupam-se em fornecer informações a respeito de
teorias da argumentação de enfoque retórico, com ênfase em sua forma de
119
estruturação, a qual é diluída nas atividades que compõem a sequência na forma de
quadros-síntese e boxe.
A apreciação pela categoria de argumentação retórica, na 2ª edição, já está
presente nas primeiras unidades do Caderno. Nelas, estão propostas atividades de
reflexão sobre o papel da argumentação na resolução de conflitos e tomada de
decisões coletivas.
A estratégia utilizada pelos autores é a proposta de leitura de uma notícia cuja
temática envolve a violência no contexto da escola pública motivada por preconceito.
O foco da atividade é a discussão do fato específico, orientada por um roteiro de
questões e respostas que pretende levar à conclusão de que o preconceito é uma
forma de violência injustificável e que impede a construção de uma ética voltada
para o bem comum, por isso deve ser combatido pela argumentação ―com vistas a
estabelecer consensos sobre o que se deve e o que não se deve fazer‖ (RANGEL;
GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 29).
Para subsidiar o professor nas atividades propostas a fim de que os alunos
percebam o valor da argumentação, os autores oferecem na seção da unidade,
quando propõem um debate entre os alunos para discutir o valor da argumentação
na condução da vida pública de uma sociedade, um box onde trazem a voz de
Breton (2005) para corroborar com o posicionamento dos autores de que
argumentar envolve situações difíceis:
RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H.Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p.31.
120
As estratégias de atividades propostas pelos autores, como a promoção de
debates em torno de problemas sociais, podem favorecer não só a reflexão crítica e
a emergência de autoria dos alunos, mas também criam condições para a assunção
dos objetivos dos autores, qual seja desestimular a violência. Isso é altamente
positivo tendo em vista que se trata de algo com que não apenas a sociedade, mas
também a escola precisa saber lidar e trabalhar no seu cotidiano atualmente.
Precisamos observar, por outro lado, que a forma como os autores induzem o
tratamento da violência e do preconceito por meio dos roteiros de orientação de
leitura e discussão não favorece a sua apreensão crítica por parte do aluno. Na
orientação da leitura da notícia, os autores conduzem a discussão de forma a
construir uma ideia de que a agressão ao menino tenha sido motivada apenas por
sua gagueira, tomando por base a fala da mãe, relatada de forma indireta na notícia.
No discurso indireto da mãe, há apenas a menção de que ―o filho sofre com as
brincadeiras de colegas, porque é gago‖. Podemos até tomar a gagueira como pano
de fundo para essa agressão, mas a causa mais direta, provavelmente, está
relacionada com uma resposta também violenta pelo agredido, o que gerou novas
agressões na forma física. Os autores, envidando todos os esforços para
desestimular a violência, acabaram por não problematizar a questão, tratando o
caso como uma injustiça gratuita, preconceito eticamente inaceitável e antissocial.
Tal forma de tratamento da questão do preconceito pode surtir efeitos
imediatos e pragmáticos que, a longo prazo, podem ser esquecidos pelos alunos.
Diferentemente do que pensam os autores, o preconceito contra as diferenças não é
antissocial; pelo contrário, toca-lhe na raiz, porque a sociedade é composta por
grupos sociais com valores éticos e estéticos diferentes. Isso não justifica, é claro, a
violência, o preconceito, mas os explica em grande parte. Como os próprios autores
afirmam serem verdades tão bem estabelecidas que dispensam argumentos,
acrescentamos, porque entraram no horizonte social de determinados grupos como
valores encarnados.
Os autores, na forma como conduzem a questão, propõem a não escuta do
outro, do preconceituoso pelo corte do diálogo ao tratá-lo como inexplicável ou
incoerente. Como o objetivo dos autores é levar professores e alunos a
reconhecerem a argumentação como instrumento de resolução de conflitos e base
para a tomada de decisões coletivas consensuais, eles focalizam a refutação em
detrimento da problematização que fica à margem das estratégias propostas, uma
121
vez que ela não aceita consensos, mas a negociação que é sempre tensa porque
envolve interesses diferentes.
A nosso ver, os preconceitos, para serem combatidos, precisam ser
conscientizados e, para isso, é preciso explicá-los, problematizá-los, a fim de que os
alunos os compreendam em sua sócio-história e seus possíveis efeitos nas relações
sociais. Talvez este seja um caminho mais pertinente para favorecer mudanças de
atitudes, pensamento e valores. A forma como os autores conduzem a proposta,
além de levar ao preconceito velado (ser politicamente correto, porque há um
consenso sobre a forma como se deve ou não agir), mostra-se como um discurso
monofônico, ao direcionar o olhar do aluno para uma única visão sobre a questão do
preconceito não tão bem situada.
Diante disso, podemos afirmar que os autores fornecem uma noção de
argumentação como o instrumento promotor da grande conciliação entre os homens
e que, por ela ser um elemento constitutivo da marca de genericidade do artigo de
opinião — a questão polêmica — favorece a tomada deste gênero em favor da
formação cidadã. Cabe a nós questionar qual é o preço dessa conciliação e, diante
disso, qual o conceito de cidadania nela enfocado.
Na segunda unidade, em que os autores propõem como objetivo orientar o
professor a levar os alunos a uma definição coletiva do que seja a argumentação,
buscaremos verificar como essa busca de consensos para os problemas sociais é
proposta:
RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H.Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p.39.
122
Tal box é apresentado ao professor, a fim de subsidiá-lo na orientação do
debate dos alunos com a finalidade de se chegar a uma definição coletiva do que
seja a argumentação. Antes de oferecê-lo, os autores tecem um comentário geral
sobre a noção de argumentar que, a nosso ver, é sintetizado no box, por isso, nos
restringirmos a ele.
Podemos notar, nessa definição, uma mescla de categorias didáticas da
Escola de Genebra e conceituais da Nova Retórica mobilizadas para definir a noção
de argumentação. No quadro teórico genebrino, as ações de linguagem são
consideradas estruturas de comportamento que não estão diretamente ligadas a
motivos de ordem social, mas a objetivos relacionados ao próprio processo de
produção e compreensão do texto por um indivíduo particular.
Tal forma de entender a linguagem tende a enfatizar os aspectos
sociopsicológicos envolvidos em seu funcionamento e, consequentemente, restringir
o tratamento do sentido da linguagem às representações particulares que o produtor
tem dos elementos da situação imediata. Isso está marcado na proposta do
Caderno, quando os autores, em um comentário anterior ao box, afirmam que
―argumentar é uma ação verbal na qual se utiliza a palavra oral ou escrita para
defender [...] um ponto de vista particular a respeito de determinado fato (RANGEL;
GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 38).
Vemos, assim, que a ação do autor está restrita ao seu posicionamento
sociopsicológico em um contexto imediato. Isso abre espaço para que a finalidade
da argumentação seja complementada por uma perspectiva retórica articulada às
ações de argumentar, à qual, apesar de os autores do Caderno não se referirem
formalmente no corpo do texto, está presente na ênfase colocada na função
convincente da argumentação, no uso da nomenclatura ―auditório‖ bem como na
centralização da questão polêmica no discurso argumentativo, o que nos remetem,
em certa medida, à abordagem desses elementos por Tyteca e Perelman (1958)65.
O argumento está ligado aos estudos do raciocínio de perspectiva aristotélica, expressos por dois modos básicos de
raciocinar, os quais não se excluem nem se sobrepõem: por demonstração analítica (silogismo), e por argumentação
dialética. O primeiro tipo se traduz numa demonstração fundada em proposições evidentes (provas válidas derivadas de
premissas universais) que conduzem o pensamento a uma conclusão verdadeira. Nele se apóia a Lógica Formal. O
segundo tipo se expressa através de argumentos com base em enunciados possíveis, dos quais se poderiam extrair
conclusões verossímeis. Nele se funda a Retórica. As provas evidentes gerariam certezas, em virtude do teor de verdade
das premissas universais, enquanto que as prováveis gerariam opiniões. No pensamento aristotélico, essas duas formas
distintas de raciocínio – silogismo e dialética – tinham igual importância uma vez que representam métodos próprios de
conduzir o raciocínio (Santos, 2005, p. 86-87). Tyteca e Perelman, bem como Toulmin, incluem-se no quadro da Nova
Retórica.
65
123
Segundo Santos (2005), Perelman e Tyteca (1958), reatando a dicotomia
aristotélica de que algumas discussões eram do domínio da ciência (lógica) e outras
da retórica (dialética), vão destacar, mais que o próprio conteúdo inserido em um
contexto de controvérsia, a intenção persuasiva do produtor, realizada numa fala
convincente, a fim de promover mudanças de atitudes no auditório. A intenção
persuasiva dimensiona-se para o que se conhece, hoje, como estratégias
argumentativas de convencimento utilizadas pelo orador.
Pela citação acima, podemos afirmar que esses conceituais estão
mobilizados, juntamente com os conceituais da Escola de Genebra, na proposta de
definição de argumentação dos autores no âmbito da qual as estratégias
mobilizadas pelo produtor existem mais em função do ato de convencimento de uma
pessoa ou todo um auditório, predominando sobre o próprio ponto de vista do autor.
A explicação dá margens para interpretações de que, na argumentação, o ponto de
vista do autor não é tão importante. O que importa mesmo é o que pensam aqueles
para os quais a argumentação se dirige. Cria-se uma imagem em que as partes são
colocadas em relação uma com a outra de forma externa, sem aquela ligação
indissolúvel, por dentro, de que falam Bakhtin/Volochinov (1926).
Para Bakhtin (2003[1952-1953]), autor e interlocutor estão integrados no
objeto do discurso, cujas participações no processo de produção da linguagem são
ativas. O autor, ao construir um enunciado discursivo, responde ao seu interlocutor
e, por outro lado, espera dele uma resposta, uma compreensão responsiva. Por
isso, nesse processo, o autor adapta-se ao interlocutor e ao objeto discursivo, mas
ele
tem
um
querer
dizer
que
considera
por
dentro
o
interlocutor.
O
discurso/enunciado é sempre um elo na corrente de comunicação discursiva,
portanto está ligado como réplica a elos precedentes e subsequentes.
Além disso, Bakhtin (2003[1959-1961]) afirma que todo enunciado possui um
destinatário de índole e graus variados de proximidade, de concretude e de
compreensibilidade. Esse destinatário, dependendo das condições e formas de
comunicação, pode ser o do diálogo face a face. O autor também procura e
antecipa, no próprio enunciado, a compreensão responsiva do destinatário próximo
ou presumido. Bakhtin afirma ainda que o autor, em menor ou maior consciência,
conta com um supradestinatário superior do qual espera uma compreensão
responsiva idealmente verdadeira.
124
Para o autor russo, isso se explica porque toda palavra quer ser ouvida, e
para isso, o autor não pode deixar a si mesmo e seu enunciado feito de discurso sob
o jugo pleno e definitivo dos destinatários presentes ou próximos. O autor ainda
adverte que esse supradestinatário não é algo metafísico, mas o elemento
constitutivo do enunciado total. Acrescenta que todo diálogo constrói-se como que
no fundo de uma compreensão responsiva de um terceiro invisivelmente presente,
situado acima de todos os participantes do diálogo (BAKHTIN, 2003[1959-196], p.
333).
Em relação ao destinatário, na proposta didática dos autores, podemos
afirmar que a noção se mostra de difícil compreensão, até mesmo pela
nomenclatura utilizada. Com base nos termos ―pessoa‖, ―adversário‖, depreendemos
que os autores estão pensando no interlocutor empírico, que, no caso do discurso
argumentativo, apresentado de forma geral, pode ser o do diálogo face a face.
Consideremos, ainda, que o uso do segundo termo possa estar ligado à
transposição para o âmbito da proposta de perspectivas de funcionamento do
discurso argumentativo retórico, em que se tem como centro um problema
controverso, polêmico, envolvendo dois lados opostos.
Outros termos utilizados pelos autores para se referirem aos interlocutores do
discurso argumentativo são ―auditório‖ e ―público‖. Estes termos podem ser
entendidos como o destinatário presumido do contexto imediato de circulação do
discurso argumentativo como um ―grupo de estudantes‖, ―uma comunidade de
senhoras católicas‖ ou ―conjunto dos leitores‖ de um determinado jornal (RANGEL;
GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 38-39). Não verificamos nenhuma referência ou
consideração a respeito de um supradestinatário com o qual o autor possa contar
absolutamente. Isso talvez se explique pelo enfoque retórico imprimido à proposta, o
qual pressupõe sempre uma luta entre lados opostos que precisam vencer pelo
discurso. Portanto, a compreensão responsiva é conseguida, em termos, à força da
argumentação.
Sendo assim, voltando à questão da conciliação coletiva, podemos afirmar
que, na perspectiva teórica dos autores, ela é conseguida pela neutralização da voz
do outro, consentida pela coletividade convencida pelos argumentos do autor. Tal
forma de entender a ação argumentativa é bastante mobilizada numa concepção
retórica que pressupõe a presença de questões controversas ou polêmicas entre
dois lados opostos e em contradição. Isso é marcado na proposta na forma como os
125
autores entendem a marca genérica do artigo de opinião que, segundo eles, é a
questão polêmica. Vejamos como os autores propõem sua definição:
RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H.Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p.57.
Esse trecho está inserido em uma atividade em que os autores objetivavam
levar os alunos a identificar questões polêmicas. Por falta de uma definição melhor
da questão na parte teórica oferecida pelos autores, resolvemos tomar tal trecho
para apresentar esta noção que, a nosso ver, sustenta o projeto de ensino do artigo
de opinião. Podemos perceber que os autores, ao fundarem o referido artigo em
uma questão polêmica dicotômica, tendo em vista que as diferentes soluções ou
respostas a essa questão sempre envolvem posições opostas, restringem bastante
as possibilidades desse gênero, que, a nosso ver, é a incorporação mais expressiva
das relações dialógicas.
O autor de um artigo de opinião, a nosso ver, nem sempre está polemizando
abertamente com alguma coisa. Ele pode simplesmente construir sua apreciação
valorativa sobre determinado objeto, respondendo a apreciações anteriores de
outros autores e esperando deles respostas ou uma compreensão ativa, que podem
ser de discordância ou concordância, parcial ou total, negociação, as quais podem
estar conjuntamente representadas no discurso ou não, e isso depende do querer
dizer do autor e do fundo aperceptivo que ele tem de seu destinatário. Assim, não há
a obrigação de se posicionar contra ou a favor, o locutor pode em sua posição
oscilar entre um e outro, pode, enfim, negociar com seu destinatário, a depender das
condições efetivas de produção do seu discurso.
A nosso ver, essa entrada escolhida pelos autores justifica-se, em parte, pela
necessidade de busca de elementos estáveis do gênero que favoreçam a
construção de um modelo de produção do artigo de opinião. Sendo assim,
126
estabelecer o objeto discursivo, a priori, sobre o qual o autor deva se posicionar,
bem como definir, de forma geral, quais seriam os conhecimentos, valores e suas
formas de organização facilitam a proposta porque se tratam de elementos regulares
do gênero.
Numa proposta didática de ensino-aprendizagem de gênero, os elementos
que incorporam a organização estrutural da língua bem como sua inserção em um
gênero do discurso são importantes, mas não devem predominar sobre os
elementos enunciativo-discursivos sem correr o risco de se ver a autoria do aluno e
até mesmo do professor desaguar. Observemos mais uma informação teórica:
RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H. Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p.
59.
127
Novamente os autores voltam a enfatizar o papel das estratégias
argumentativas no ato de convencimento do adversário e do auditório envolvido para
adesão favorável à tese do autor. E isso pressupõe, da parte do autor, saber usar
palavras apropriadas à linguagem e utilizar o ‗tom certo‘ bem como mobilizar tipos
de argumentos e organizar a argumentação. Aqui, os autores poderiam esclarecer o
que querem dizer com ‗tom certo‘ e ―saber usar palavras apropriadas à linguagem‖.
Em relação ao ―por onde‖ se vai entrar no debate, poderia ser algo bastante
interessante na proposta, uma vez que se aproximaria daquilo que Bakhtin
(2003[1952-1953]) define como o querer dizer do autor a respeito de determinada
temática que determinaria, juntamente com a temática e o seu destinatário, as
escolhas linguísticas e composicionais do enunciado, ou seja, conjunto de recursos
utilizados para realizá-lo.
No exemplo apresentado na página anterior, o ―por onde‖ entrar no debate
diz respeito à seleção de um aspecto de uma questão polêmica que, a título de
exemplificação, os autores apresentam a discussão em torno da existência de
formas certas e erradas de falar o português. Observamos que o que se levanta na
orientação é o posicionamento de outros e não um projeto discursivo do autor.
Seguindo o raciocínio dos autores, seria o objeto discursivo que determinaria
a intenção discursiva do autor e por extensão os tipos de argumentos mais
adequados para defendê-lo. A nosso ver, o projeto discursivo do autor, na relação
necessária com os enunciados anteriores, e, na relação de ambos com o objeto
discursivo, determina a própria escolha do objeto discursivo bem como a escolha da
forma do gênero em que será construído o enunciado (BAKTHIN, 2003[1952-1953],
p. 281).
Tal orientação de ênfase nos elementos estáveis do gênero reflete certa
preocupação dos autores em oferecer um modelo de gênero. Na 2ª edição, ela está
marcada de forma mais explícita na transposição para o interior da proposta de
aspectos de teorias da argumentação que subsidiam essa tarefa. Isso se mostra de
forma mais evidente com a entrada de autores ligados à teoria da argumentação de
perspectiva retórica, principalmente de autores que se ocupam em fornecer modelos
ou esquemas de estruturação da argumentação, como o do filósofo inglês Stephen
Toulmin (1958).
Os estudos de Toulmin sobre a argumentação estão inseridos no movimento
de reavivamento da retórica, cuja contribuição principal tem sido a de apresentar
128
uma estrutura de argumentação, em termos, mais flexível do que a proposta pela
lógica clássica com base em premissa maior, premissa menor e conclusão. Segundo
Silva (2008), para Toulmin, as premissas nem sempre induzem a uma conclusão.
Daí sua contribuição, a de inserir, no modelo de argumentação da lógica clássica, as
estratégias de argumentação.
Ainda de acordo com o mesmo autor, Toulmin deseja imprimir um aspecto
diferenciado da retórica clássica bem como da sua abordagem convencional
imprimido pela racionalidade que a transformou em uma categoria abstrata, aplicável
a qualquer audiência e disciplina.
Segundo Espindola (2010, p. 65), Toulmin procura aproximar aspectos dos
argumentos que têm validade contextual com aspectos independentes do contexto.
Ele trabalha, inicialmente, com o conceito de campo tido como áreas do saber nas
quais a argumentação se desenvolve e como lugar de validação dos argumentos:
campo jurídico, da lógica, da religião, da arte etc. Com base nisso, ele investiga
entre argumentos de diferentes campos quais aspectos variam conforme o campo e
quais são invariáveis, a fim de verificar se existe um padrão estrutural dos
argumentos. O resultado dos estudos de Toulmin é apresentado no seu modelo
estrutural da argumentação, o qual é transposto para subsidiar a análise da
estruturação discursiva do artigo de opinião da OLPEF:
RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H.Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p.83.
129
O esquema do modelo de argumentação de Toulmin foi apresentado em uma
oficina que objetiva analisar a organização do artigo de opinião do ponto de vista da
argumentação.
Com tal modelo, Toulmin acreditava estar apresentando uma estrutura mais
exata e flexível que a da lógica, uma vez que, além de captar as diferenças que dão
força ao argumento, possibilita a adequação de tais elementos ao seu contexto. Em
seguida à apresentação do modelo, os autores da proposta do Caderno PV
apresentam uma explicação topicalizada dos elementos nele contidos, procurando
identificar sua presença no artigo de opinião utilizado como modelo de análise.
Em termos gerais, D representa os dados/fatos em que o argumentador
baseia seu raciocínio; C é a tese que o argumentador pretende defender com base
nos dados apresentados. Na lógica clássica, os dados induzem à conclusão. No
modelo de Toulmin, surge um terceiro elemento, a justificativa (J), entendida como
as estratégias ou regras de raciocínios que autorizam a passagem dos dados à
conclusão. Na perspectiva de Toulmin, esses três elementos constituem o núcleo do
seu modelo e estão presentes em qualquer argumentação, ou seja, são elementos
que independem dos contextos.
Os outros três elementos agregam-se a uma argumentação, dependendo do
auditório específico, a fim de conferir-lhe mais consistência/eficácia. O suporte (S)
entra na argumentação, caso os dados não sejam suficientes ou a justificativa não
seja aceitável a ponto de gerar a conclusão; a justificativa pode ter também seu
escopo limitado, daí a entrada do modalizador (M) por meio do qual o argumentador
manifesta determinada atitude a respeito da conclusão, esperando que o leitor a
aceite. O argumentador pode ainda referir-se a prováveis contestações ao seu
raciocínio, procurando mostrar sua não procedência por meio da refutação (R).
O uso desse modelo de estrutura da argumentação na análise linguística tem
recebido algumas ressalvas. Segundo Santos (2005, p. 96), apesar de o modelo
apresentar-se como alternativa à rigidez de análise proposta pela lógica clássica,
uma vez que insere novos elementos na composição do discurso argumentativo e
reconhece a audiência e o contexto como interferentes na argumentação, ele
permanece como um modelo que supervaloriza a estrutura lógica formal do discurso
argumentativo, o que dificulta sua aplicação direta à análise de argumentos. Por
isso, também ele tem se mostrado limitado para subsidiar a compreensão das
130
relações discursivas pelos e entre os enunciadores nas diferentes situações de
surgimento de um texto argumentativo.
Se olhássemos esse modelo de argumentação de uma perspectiva
enunciativo-discursiva de enfoque sócio-histórico, diríamos que nenhum elemento
da organização composicional do texto/enunciado ou dos seus aspectos tipológicos
pode ser dado a priori. Isso porque o texto/enunciado desenvolve-se na interação,
no diálogo, e as formas composicionais, os argumentos são mobilizados de acordo
com o querer dizer do autor, seus objetivos, características dos interlocutores, das
instâncias de produção e circulação, enfim, das condições de produção do discurso.
Os autores da proposta do Caderno PV ainda recorrem a uma estrutura
canônica mais generalizante, baseada na tipologia textual da dissertação. Os
autores classificam o artigo de opinião com um texto dissertativo-argumentativo
organizado em três grandes partes: a introdução, o desenvolvimento e a conclusão.
Estas três partes constituem a forma global do texto dissertativo-argumentativo,
como o artigo de opinião, no interior das quais se podem identificar a
contextualização do assunto, da temática, os interlocutores e a tese defendida, os
argumentos sustentados e hierarquizados e por fim a conclusão, respectivamente.
No final da apresentação teórica do quadro de organização geral para o texto
dissertativo, os autores sugerem ao professor que organize atividades de análise de
artigos de opinião através das quais os alunos possam perceber que o esquema
estrutural de argumentação oferecido por Toulmin pode ser incluído no esquema
geral do texto dissertativo, afirmando que se trata de uma estrutura padrão
recorrente, especialmente, no artigo de opinião (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL,
2010, p. 87).
Vários autores denunciam os riscos da transposição dessas tipologias
textuais ou discursivas para o espaço didático. Rojo (2004), por exemplo, observa
que, se numa dissertação escolar, o início pode coincidir com a apresentação de
uma tese que, em seguida, é sustentada por argumentos de diversos tipos
hierarquizados, por outro lado, isso nem sempre se confirma em um artigo de
opinião em que o articulista pode iniciar por um relato exemplar ou ironia, para
chegar à formação da opinião.
Os próprios pesquisadores da Escola de Genebra, na qual a proposta diz
fundamentar a organização didática dos Cadernos, afirmam que sua aplicação no
terreno didático ―comporta um grande risco de derivas aplicacionistas e normativas‖
131
(DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1998], p. 172), podendo originar a gramaticalização dos
eixos do uso, ou dos textos, com base no pressuposto de que o conhecimento das
regras de estruturação dos textos levaria ao seu uso, como adverte Rojo (idem).
Há que se pensar também que a encriptação de tantas perspectivas teóricas
torna a proposta de difícil compreensão, principalmente no que diz respeito aos
conceituais de estruturação da argumentação de fundamentação retórica. Numa
proposta que se apresenta com o objetivo de formar, ao mesmo tempo, professores
e alunos, isso pode trazer alguns problemas.
Os autores, além de apresentarem categorias ou estruturação geral da
argumentação, bem como categorias ou estruturação tipológica do texto
argumentativo tomando essas classificações como estruturas padrão do artigo de
opinião, apresentam também tipologia referente aos argumentos que devem ser
utilizados no artigo de opinião.
Apesar de os autores afirmarem que os tipos de argumento devem ser
usados de acordo com o tema escolhido bem como com o público (o auditório) para
quem escreve o articulista, percebemos não só certa normatividade e abstração ao
apresentar um quadro-modelo em que se estabelecem, a priori, os tipos gerais de
argumentos a que deve recorrer o aluno para construir os seus argumentos bem
como certa generalização da adequação destes tipos às áreas ou campos de uso e
não adequação aos textos específicos e suas condições de produção particulares.
Indagaríamos ainda qual a eficiência desse tipo de proposta de exercício para
a construção de textos eficientes e significativos? Será que novamente cairíamos na
velha questão de que o conhecimento das formas, e aqui estamos em um nível mais
expandido em relação aos fonemas, frases e orações, levaria ao domínio do uso?
Vejamos o quadro-modelo de argumentos previsíveis para o artigo de opinião:
Quadro 4 - Tipos de argumento.
RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H.Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 102-103.
132
133
Pelo quadro anterior, podemos perceber que, apesar de os autores os tipos
de argumentos e, em seguida, fornecerem uma explicação conceitual a respeito da
mesma com exemplificação, por um lado, a definição conceitual não é suficiente
para o entendimento dos tipos e, por outro, os exemplos são tomados
descontextualizados, deixando transparecer um tratamento desarticulado entre os
elementos tipológicos e os elementos da situação de produção.
Além disso, apesar de se tratar de uma problemática que se apresenta de
forma localizada no exercício, não podemos deixar de apontar, no exemplo 6 do
quadro anterior, a presença de certa orientação bastante ―naturalizadora‖ para a
questão apresentada, vejamos a proposição: ―a não existência de política pública
que garantam a entrada do jovem no mercado de trabalho leva boa parte dos recémformados ao desemprego ou subemprego‖ (D→C), sustentados pelo seguinte
argumento (J) ―o desemprego e o subemprego é uma consequência necessária das
dificuldades dos jovens de ingressar no mercado de trabalho‖.
Apesar de o exemplo estar disposto em um raciocínio complexo,
fundamentado no discurso retórico — e que, talvez, o aluno nem o compreenda —
permite a apreensão de determinada orientação. Podemos notar na lógica desse
argumento certa aproximação com discursos político-econômicos e sociais que
propagam certa compreensão do funcionamento do mundo social regidos por leis
tidas como ―naturais‖. Por isso, para nós, a marca linguística ―necessária‖ faz
emergir discursos outros como ―as leis naturais devem reger a sociedade‖,
justificando, assim, problemas sociais como ―necessários‖. Sendo assim, questões
políticas e sociais são transformadas em questões técnicas e estruturais.
Esse discurso de naturalização das condições de exclusão e desigualdade
investe também em uma legitimação cultural, buscando uniformizar as formas de
pensar e ver o mundo, como se não houvesse alternativas aos rearranjos
apresentados por ele. Frigotto apud Del Pino assinala que, no plano ideológico de tal
discurso, há um desvio da responsabilidade social para o plano individual e, sendo
assim:
Já não há políticas de emprego e renda dentro de um projeto de
desenvolvimento social, mas indivíduos que devem adquirir competências e
habilidades no campo cognitivo, técnico, de gestão e atitudes para se
tornarem competitivos e empregáveis (FRIGOTTO APUD DEL PINO, 2001,
p. 79).
134
Por essas considerações, acreditamos que o exemplo dado na atividade não
é adequado em um projeto de ensino voltado para jovens estudantes das escolas
públicas brasileiras, em sua maioria, inseridos nas classes populares. Isso porque
ele induz a um conformismo que não condiz com o objetivo da proposta, nem com
as necessidades de seus destinatários alunos. Tais observações exigem reflexão e
confirmam a necessidade de todo e qualquer material que adentra a escola ser
analisado e avaliado. Posto isso, gostaríamos de finalizar este capítulo, pontuando
algumas conclusões a que chegamos.
O levantamento e análise da base teórico-metodológica das duas edições do
Caderno PV nos possibilitou confirmar que há mobilização de elementos de
abordagens teóricas enunciativo-discursivas, textuais e retóricas na elaboração da
proposta.
Pelas informações e explicações conceituais a respeito da concepção de
linguagem assumida e pela forma como apresentam o funcionamento e a
constituição dos gêneros, especificamente do artigo de opinião, e suas instâncias de
produção, circulação e recepção, os autores criadores da proposta didática nos
apontam, em certa medida, para a abordagem de gênero a que estão efetivamente
vinculados no processo de produção de sua obra didática e quais elementos (o quê)
dos gêneros receberão, em maior ou menor grau, apreciação nesse projeto de
ensino.
Sendo assim, podemos afirmar que a abordagem de gêneros assumida na
obra didática ora em análise é a de perspectiva textual. Fundamentados em tal
perspectiva, o discurso autoral vai dando contornos aos aspectos do gênero que
serão apreciados no projeto didático na forma como descreve e apresenta as
características do gênero enfocado na proposta. Por ela, percebemos que os
elementos considerados importantes para serem ensinados no que diz respeito ao
gênero, no âmbito dos objetivos da proposta, são seus aspectos funcionais e
temáticos.
O enfoque dado à categoria sociopsicológica ou estrutura discursiva
argumentativa é bastante evidente. Em nosso entendimento, esse é um dos
principais critérios de organização e objetivos da proposta didática no âmbito da qual
o artigo de opinião é posto como pano de fundo. Isso se apresenta, de certa forma,
135
na consideração dos elementos da situação de produção numa dimensão imediata,
expressa não só na pouca consideração, mas também no equívoco de compreensão
do funcionamento da esfera jornalística e sua implicação na constituição do gênero
enfocado.
Quando se trata da estruturação ou composição textual, os autores mesclam
o emprego da perspectiva textual à perspectiva retórica e tipologia textual, esta
última fortemente questionada nos estudos da linguagem e nas abordagens de
ensino-aprendizagem de língua materna nos últimos tempos. A introdução dessa
última perspectiva, no âmbito da proposta didática da 2ª edição do Caderno PV, foi
por nós interpretada como uma tentativa dos autores da proposta aproximarem mais
dos seus contempladores, professores e alunos.
Em relação à metodologia (como), os autores criadores apropriam-se de uma
abordagem didático-pedagógica fundada no procedimento da sequência didática. A
escolha dessa orientação metodológica aponta para a postura dos autores criadores
a respeito de como se aprende e se ensina língua materna. A metodologia assumida
permite um trabalho mais indutivo e reflexivo no tratamento didático dos objetos de
ensino, expresso, na proposta, na forma como dispõem sua organização local:
apresentação da situação de produção, primeira produção textual, atividades que
recortam as propriedades do gênero enfocado e produção final. Ou seja, trata-se de
uma abordagem metodológica que orienta passo a passo, como usam os autores
criadores, no ensino-aprendizagem do objeto proposto.
No próximo capítulo, o enfoque de nossa análise recairá sobre o trabalho de
modelização didática presente nas atividades do Caderno PV, a fim de desvelarmos
que tratamento discursivo é investido na didatização do artigo de opinião.
136
CAPÍTULO 5
Análise de dados 2: a didatização do gênero artigo de opinião na proposta do
Caderno “Pontos de Vista” da OLPEF
Fizemos, no capítulo anterior, o levantamento da base teórico-metodológica
sobre a qual o discurso autoral66 sustenta-se para propor os encaminhamentos
didáticos em torno da proposta de produção escrita do gênero artigo de opinião.
Observamos, naquele momento, que a apreciação valorativa do discurso autoral
está voltada, em grande medida, para uma abordagem de gêneros numa
perspectiva textual, a qual recebeu, no Caderno PV, 2ª edição, uma ênfase de
abordagem retórica.
O Caderno PV encontra-se dividido em oficinas, que preferimos denominar
unidades, no interior das quais são propostas as atividades específicas, organizadas
em torno de um assunto67, as quais, por sua vez, são subdivididas em etapas, que
preferimos denominar seções.
Todo o conjunto de atividades apresentadas no Caderno PV tem por objetivo
final levar os alunos a escrever um texto no gênero artigo de opinião e todas as
atividades (leitura, análise de textos, pesquisas, discussões, debates, escrita
pontual) estão voltadas para o fornecimento ao aluno do que dizer e do como dizer
na produção do seu texto no gênero artigo de opinião.
A proposta adota um procedimento didático de enfoque em um gênero
específico,
constituindo-se
em
um
projeto
de
ensino
direcionado.
Esse
Para usarmos a categoria de ―discurso autoral‖ estamos nos fundamentando no conceito de autoria numa perspectiva
bakhtiniana. Volochinov/Bakhtin (1926) pensam a autoria em termos de uma relação tripartite em que se unem,
indissoluvelmente, três partes de um mesmo processo ―autor-objeto-interlocutor‖ constituídas sócio-historicamente.
Perguntas como ―quem produziu o texto/enunciado, para quem, em que condições, com que finalidade?‖ são questões
básicas para a compreensão da autoria. No que diz respeito à autoria nos materiais didáticos, Padilha (2005) observa que
esse elemento está constituído e envolvido por uma série de avaliações direcionadas para diferentes planos, como os
atores sociais envolvidos, as instâncias educacionais, as concepções teóricas e metodológicas sobre os conteúdos e
disciplinas, os documentos oficiais, as políticas públicas etc. Eles entram em composição na ação criadora de uma obra
didática a qual é sentida na seleção dos textos, nos recortes e adaptações efetuados, na formulação das atividades, na
escolha teórico-metodológica, em diferentes propostas (PADILHA, 2005, p. 81). É esse trabalho criador valorativamente
endereçado e sociossituado que denominamos aqui de discurso autoral.
66
Empregamos o termo ―assunto‖ em vez de ―tema‖, como faz o discurso autoral, porque, em nosso entendimento, tema, na
proposta, é usado para se referir aos conteúdos ou assuntos permitidos pelo gênero, já na teoria enunciativo-discursiva, que
fundamenta nossa análise, este termo refere-se à avaliação valorativa presente em um texto específico. Assim, utilizaremos
―conteúdo temático‖ quando, na proposta, estiver se referindo a eventos sociais dizíveis no gênero (questão polêmica), e
―assunto‖ quando remeter a questões mais abrangentes ou a aspectos do gênero que serão tematizados em cada unidade
(elaboração da questão polêmica, tomada de posição, uso de argumento, articulação textual etc.). O termo ―tema‖ só será
usado do nosso ponto de vista teórico.
67
137
procedimento, a nosso ver, evita a dispersão e possibilita um planejamento mais
pontual
sobre
as
propriedades
recortadas
para
ensino-aprendizagem.
Tal
abordagem é tomada do modelo didático da Escola de Genebra, o qual está bem
delineado no texto de Dolz et. al. (2004[2001]).
Neste capítulo, focalizaremos nossa análise nas formulações das atividades,
buscando compreender a forma de didatização resultante do trabalho de criação
autoral em diálogo com suas bases de fundamentação teórico-metodológica.
Primeiro, apresentaremos um levantamento dos tipos de atividades propostas, numa
síntese, que engloba as duas edições do Caderno PV. Depois, focalizaremos a
análise em aspectos ou partes dos exercícios ou questões que se mostrarem mais
pertinentes para os objetivos por nós propostos.
Pretendemos, nesta etapa, responder à seguinte questão de nossa pesquisa:
De que forma as atividades propostas para didatização do artigo de opinião no
Caderno PV da OLPEF tratam a discursividade?
5.1 Cadernos PV: os tipos de atividades com o artigo de opinião
Para realizar o levantamento dos tipos de atividades, tomamos por base um
agrupamento adaptado a propostas de escolarização dos gêneros poéticos realizado
por Padilha (2005), que usou os descritores das Fichas de Avaliação do PNLD/2004,
voltadas para a leitura e compreensão dos textos escritos na disciplina Língua
Portuguesa. Por se tratar de gêneros diferentes, com enfoques também
diferenciados (leitura como subsídio da produção escrita, debate, etc. no nosso
caso), assim como fez a autora, procederemos a uma adaptação do seu
agrupamento às atividades encontradas nos Cadernos PV.
Num levantamento geral, previamente apontado no capítulo anterior,
percebemos que entre uma edição e outra houve um acréscimo de unidades. Em
um levantamento posterior, observamos também um aumento de seções e
atividades. Sendo assim, procedemos a uma síntese dos tipos de atividades
contidas no Caderno da 1ª edição. Posteriormente, levantamos os tipos de
atividades contidas na 2ª edição, inserindo na síntese da 1ª edição apenas as
atividades acrescentadas que estão marcadas em itálico.
138
Apresentamos, a seguir, a síntese dos tipos de atividades contidas na 1ª e na
2ª edições, referente ao Caderno PV, para os concursos de produção textual
realizados no ano de 2008 e 2010 respectivamente.
Agrupamento de atividades realizadas com o artigo de
opinião no Caderno PV nas 1ª e 2ª edições
Tipos de Atividades
Situação
de
produção:
elencamos
neste
item
as
atividades que exploram o autor e
68
leitor típico, o conteúdo temático ,
a finalidade e o suporte do artigo
de opinião.
Leitura de textos exemplares no gênero artigo de opinião.
Leitura de exploração dos elementos da situação de produção:
local de produção, autor, leitor, finalidade, assunto do texto,
posição e argumentos do autor.
Leitura de textos no gênero em seu portador usual — o jornal —,
com breve orientação para exploração da disposição gráfica e da
divisão do jornal em seções.
Finalidade: organizamos sob
esse item as atividades que
relacionam a finalidade do gênero
artigo de opinião com a do gênero
notícia.
Leitura de exploração da situação de produção do gênero notícia
e de apreciação de valores éticos ou políticos sobre a temática.
Atividade de exploração das semelhanças e diferenças entre a
finalidade e o conteúdo temático do artigo de opinião com os da
notícia.
Leitura de reconhecimento do conteúdo temático da notícia
presente no artigo de opinião.
Alimentação
temática:
organizamos sob este item as
atividades
que
exploram
diferentes estratégias de busca e
seleção
de
informações
pertinentes ao assunto escolhido e
a questão polêmica levantada.
Levantamento de assuntos polêmicos circulando na imprensa.
Uso oral: elencamos, neste item,
atividades que propõem o uso de
gêneros
orais
escolares
e
escolarizados em prol do exercício
das capacidades globais da
Debate coletivo sem ou com auxílio do jogo Q.P Brasil.
Exposição oral de resultados de busca de informações sobre
assuntos e questão polêmica escolhida para a produção textual.
Discussão escolar sobre o valor da argumentação.
Identificação de questões polêmicas de relevância social
presentes no local onde vivem os alunos.
Identificação de conflitos no ambiente escolar e seu entorno e
discussão desses conflitos objetivando a tomada de posição
contra a violência.
Pesquisa de grupo orientada para obter, reunir, sintetizar e
socializar informações sobre o assunto escolhido para a
produção textual a fim de melhor sustentar a argumentação.
69
Exercício lúdico, contido no jogo Q.P Brasil , com foco na
identificação de questões polêmicas na vida cotidiana dos
alunos.
Leitura de texto no gênero charge para ampliar conhecimento do
assunto.
Síntese das informações obtidas nas atividades de busca e
seleção.
Ao nos referirmos a ―conteúdo temático‖, estamos nos reportando à questão polêmica, que, de acordo com a definição
dada pelos autores, nos possibilitou entendê-la como aquilo que é permitido dizer no gênero artigo de opinião.
68
Trata-se de um jogo elaborado pelo Cenpec, responsável técnico pelo programa OLPEF. Esse jogo tem o objetivo de
trabalhar, de forma mais lúdica, a argumentação junto aos alunos. Ele foi enviado às escolas no início do ano de 2010 e
algumas de suas atividades já estão sugeridas na 2ª edição do Caderno PV.
69
139
Agrupamento de atividades realizadas com o artigo de
opinião no Caderno PV nas 1ª e 2ª edições
Tipos de Atividades
argumentação:
tomada
de Discussão escolar para conceituar a argumentação.
posição, sustentação e refutação.
Aspecto Geral: listamos sob este
item as atividades que tematizam
estratégias de compreensão dos
elementos
da
situação
de
produção
e
da
organização/composição textual
do artigo de opinião em um único
exercício.
Leitura com foco em estratégias de ativação, antecipação,
checagem, reconhecimento e compreensão dos elementos
constituintes do artigo de opinião.
Exercício de localização de informações, no texto, para
responder às questões postas no roteiro de leitura.
Sugestões de leitura de outros textos no gênero contidos no
Encarte do Caderno PV ou nos portadores usuais, seguindo o
modelo de leitura apresentado.
Composição/organização
textual e recursos linguísticos:
neste
item,
agrupamos
as
atividades
que
exploram
a
organização/composição textual
dos discursos argumentativos no
artigo de opinião e o uso de
operadores
textuais
lógicoargumentativos.
Exercício de (re)conhecimento da questão polêmica, tomada de
posição e tipos de argumentos presente num texto exemplar no
gênero.
Escolha e avaliação de argumentos consistentes utilizando o
jogo Q.P Brasil.
Exercício de (re)conhecimento da organização textual do ponto
de vista da dissertação (introdução, desenvolvimento e
conclusão.
Exercício de (re)conhecimento da organização textual do ponto
de vista da argumentação (dados — conclusão com ou sem
modalizador — justificativa com ou sem suporte — refutação).
Exercício de comparação entre a organização textual da
dissertação com a da argumentação.
Exercício de (re)conhecimento do argumento principal do texto.
Exercício de identificação de tipos de argumentos explorando o
jogo Q.P Brasil.
Exercício de identificação de diferentes tipos de argumentos em
frases modelos.
Montagem de frases para treinar o uso dos organizadores lógicoargumentativos como conjunções, elementos de tomada de
posição, modalização, acréscimo e enumeração.
Observação de aspectos ortográficos, expressões, emprego de
sinônimos e pronomes para evitar repetições etc.
Leitura de (re)conhecimento das vozes presentes em um texto
exemplar no artigo de opinião.
Produção de contra-argumentação sobre tomada de posição em
texto fornecido para leitura e suporte da atividade.
Inserção da contra-argumentação no texto fornecido para leitura
e suporte da atividade.
Tomada de posição baseada em situações ficcionalizadas.
Produção de um texto breve como pretexto para usar os
organizadores lógico-argumentativos.
Uso escrito: dispomos, neste
item, as atividades que utilizam a
produção textual como estratégia
para o exercício das capacidades
de argumentação separadamente.
Produção textual: neste item,
agrupamos as atividades que
envolviam a produção global dos
textos no gênero artigo de opinião.
Primeira produção individual guiada por um quadro-controle de
constatações.
Reescrita coletiva de um texto, no gênero, com problemas de
adequação, guiada por roteiro de questão e quadro de
orientação.
Segunda produção individual guiada por roteiro de orientação.
Revisão individual guiada por roteiro de orientação.
140
A fim de mostrarmos de forma mais detalhada o levantamento feito e a
tendência de enfoque presente na proposta do Caderno PV, faremos uma síntese
geral na forma de quantificação dos tipos de atividades contidos nas duas edições
desse material didático, apresentando-a no gráfico abaixo em termos de
porcentagem:
Figura 1 - Incidência de enfoque dos tipos de atividades com o gênero artigo de opinião
O gráfico acima nos dá uma amostra da média de atividades propostas no
Caderno PV na 1ª e 2ª edições. Do total de atividades, podemos perceber que
encabeçam a lista, com 48%, as atividades que enfocam o uso oral e escrito a
serviço do exercício isolado de capacidades argumentativas globais e as atividades
que exploram a organização/composição retórica textual e os elementos linguísticos
do discurso argumentativo. Em seguida, com 18%, estão as atividades que exploram
a alimentação do conteúdo temático, 10% para a produção textual, 8% que
focalizam os aspectos gerais do gênero, sendo o mesmo percentual para as
atividades voltadas para a exploração da situação de produção e da finalidade.
Notamos que, de uma edição para outra, apesar de ter havido um acréscimo
de três atividades no que respeita à alimentação temática e a algumas questões
referentes à finalidade do gênero, a inserção de novas atividades, inclusive com
141
sugestões de uso de atividades contidas no jogo Q.P Brasil, deu-se mais nas seções
em que os autores pretendem explorar categorias de ação e tipologias
argumentativas, somando um total de nove atividades acrescidas. Podemos afirmar,
então, que as modificações da 2ª edição em relação à 1ª consistem em um
tratamento mais contundente dos elementos formais e estruturais do gênero.
Com base no levantamento dos tipos de atividades propostas para o
desenvolvimento do gênero artigo de opinião no Caderno PV da 1ª e 2ª edições,
percebemos que ocorre certa oscilação na condução didática das atividades, pois há
um investimento ora em uma abordagem reflexiva, ora transmissiva. Essa tensão
está evidente, de certa forma, no discurso didático-pedagógico contido nas
instruções e explicações postas nas atividades, como ―instigue com perguntas,
releiam, discutam‖ ou ―localizem as respostas, identificar os trechos‖.
No conjunto de atividades de expressão oral e escrita, a ênfase recai sobre as
ações globais de linguagem, como opinar, sustentar e refutar questões de fundo
controverso que circulam em nível nacional e local, ou questões fictícias levantadas
com o único intuito de treino de uso dessas categorias, a fim de exercitar a ação
argumentativa. Transcrevemos abaixo um excerto de uma atividade contida na
segunda seção da unidade nove, da 2ª edição, que exemplifica essa tendência:
142
RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H. Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p.
105-106.
Essa atividade é por nós classificada no rol das atividades que focalizam a
produção escrita tendo por base elementos isolados da categoria de ação
argumentativa. Podemos perceber que, na atividade, a base de orientação para a
produção escrita é dada na forma de situação-problema ficcionalizada e definição a
priori da questão polêmica subjacente, o que caracteriza uma abordagem de ensino,
de certa forma, descontextualizada. Nela, tematiza-se a capacidade de formular uma
opinião, usar argumentos para defender tal opinião e refutar a opinião contrária com
base na situação modelo apresentada.
Temos, nesta atividade, mobilizadas duas capacidades de linguagem. Na
segunda comanda, oferece-se ao aluno um elemento da base de produção ligado às
capacidades de ação (delineio da questão polêmica) e induz-se o aluno à
construção de capacidades ―discursivas‖70 (formulação de uma tese, sustentação e
refutação). Observamos, na terceira comanda, que as ações dos alunos são, em
certa medida, determinadas a priori, na forma como estabelece a elaboração de sua
opinião (favorável ou contrária), tomando como parâmetro a divisão do grupo feita
pelo professor.
Visualizamos nesta atividade a presença dos três critérios utilizados pela
Escola de Genebra para organizar o ensino-aprendizagem de língua materna no
Conforme apontamos no capítulo 2, na perspectiva da Escola de Genebra e, por extensão, no Caderno PV,
discurso/discursivo(a) remetem a aspectos da organização ou da composição retórica e textual do artigo de opinião. Na
perspectiva teórica por nós assumida na análise, discurso/discursivo(a) diz respeito ao processo de construção de sentido
do texto. Para diferenciar as duas acepções que recobrem os termos em uma perspectiva ou outra, usaremos aspas nestas
terminologias quando estiverem sendo tomadas pela perspectiva teórica do discurso autoral do material didático.
70
143
âmbito dos gêneros textuais, ocorrendo aqui em um nível local. Há a apresentação
de um quadro com situações-problemas ficcionalizadas de fundo controverso que
requerem, na sua mobilização, capacidades de ação e ―discursiva‖ voltadas para o
domínio da ação argumentativa. Isso parece ser o objetivo em si da atividade.
Como dissemos no capítulo 2 deste trabalho, a Escola de Genebra defende,
na transposição didática dos gêneros, o uso de variáveis do gênero de referência
tendo em vista sua escolarização, cujo objetivo é justamente o de seu ensinoaprendizagem e não apenas seu uso em situações concretas de comunicação. Para
Dolz e Schneuwly (2004[1996, 1997]), é a validade didática que letigitima o
tratamento do gênero em situações escolares a partir de uma espécie de
ficcionalização, apesar de se buscar condições mais próximas possíveis das de
origem do gênero enfocado. Parece ser isso que se realiza nesta atividade
apresentada.
A nosso ver, é preciso certa cautela para, em nome da validade didática, não
cristalizar demais os gêneros textuais/discursivos, sob pena de perder o que eles
podem fornecer de melhor numa proposta de ensino-aprendizagem: o potencial para
trabalhar a construção dos sentidos. Isso porque a ênfase no repetível do gênero
direciona o tratamento didático para o seu lado estável. Uma perspectiva mais
voltada para o tratamento da produção dos sentidos, por sua vez, privilegiaria o
acontecimento do gênero em sua discursividade.
Do nosso ponto de vista, a articulação proveitosa desses dois aspectos no
âmbito do artigo de opinião pode gerar propostas de didatização altamente
favoráveis para o letramento dos jovens da escola brasileira, em favor da formação
cidadã, principalmente da pública, que passa, atualmente, por uma crise de
qualidade no ensino. Entretanto, a amostra dos tipos de atividades e a atividade por
nós analisada, a título de exemplo, nos antecipam, em termos, o quanto uma
abordagem mais discursiva está ausente das atividades dos Cadernos PV.
Na próxima seção, enfocaremos as atividades em si da proposta didática
contida nestes Cadernos a fim de desvelar o tratamento discursivo recebido pelo
artigo de opinião.
144
5.2 Cadernos PV: as atividades com o artigo de opinião
Nesta etapa, vamos conduzir a análise seguindo, mais ou menos, os tipos de
atividades classificadas no levantamento apresentado na primeira etapa deste
capítulo. Nossa intenção era apresentar pelo menos uma amostra de cada tipo de
atividade encontrada. Entretanto, considerando a extensão da análise, procuraremos
apresentar aquelas atividades que se mostrarem mais pertinentes para os nossos
objetivos.
Sendo assim, não vamos nos ater às atividades de produção escrita, uma vez
que se trata do objetivo em si da proposta e, usando a mesma justificativa, não nos
voltaremos para as atividades linguísticas em si, tendo em vista sua recorrência
restrita no quadro de atividades geral da proposta. Focalizaremos as atividades
representativas dos tipos por nós levantados em leitura e uso oral que
apresentaram,
de
uma
edição
para
outra,
abordagens
pertinentes
para
compreensão do tratamento didático dos elementos da situação de produção, da
alimentação temática, das características gerais do gênero.
No que diz respeito aos tipos de atividades eleitas por nós para constar em
nossa análise, em relação àqueles tipos de atividades em que percebemos não ter
havido modificação de uma edição para outra, deter-nos-emos em sua ocorrência
apenas em uma das edições. Ocorrendo apenas uma pequena modificação, como
inserção de outras questões complementares entre uma edição e outra,
analisaremos apenas a que estiver mais completa. Naquelas em que ocorrer, entre
uma edição e outra, modificações efetivas que podem diferenciar o enfoque,
procederemos a uma análise tentando apontar em que medida ela contribui para a
didatização do gênero.
5.3 As atividades da base de produção do artigo de opinião
Em conformidade com o modelo didático adotado, os autores dividem a
didatização do gênero em componentes, em um total de quatro, no geral. O primeiro
corresponde a atividades voltadas para a exploração da situação de produção do
artigo de opinião. Segundo os autores da Escola de Genebra, o conhecimento e a
145
compreensão da situação de produção do gênero é condição para o sucesso inicial
e depois final da produção do texto por parte do aluno.
Nesta seção de nossa análise, tomaremos a segunda unidade, da 2ª edição,
e a segunda unidade, da 1ª edição do Caderno PV, a fim de delinearmos o
tratamento didático em torno dos elementos que compõem a base de produção do
gênero artigo de opinião no material por nós analisado. Decidimos pela 2ª edição,
porque as atividades nela contidas se estendem mais sobre a situação de produção
do artigo de opinião; já em relação ao procedimento de comparação do artigo de
opinião com a notícia, mantivemos o enfoque na unidade da 1ª edição, por não
termos percebido modificações relevantes que nos levassem a estabelecer um
deslocamento para o da 2ª edição ou um procedimento de comparação entre as
duas.
Na etapa da sequência didática do Caderno PV em que se tem por objetivo a
didatização de elementos que subsidiam o aluno a compreender a base de produção
do artigo de opinião, verificamos que é recorrente a mobilização de algumas
capacidades leitoras, a maioria delas ligadas a uma concepção de leitura cognitiva.
Rojo (2009) nos fornece alguns descritores que nos mostram como essas
capacidades de leitura, denominadas de compreensão ou estratégias de leitura,
induzem o ato de ler:
Ativação de conhecimentos de mundo: previamente à leitura ou durante o
ato de ler, o leitor está colocando constantemente em relação seu
conhecimento amplo de mundo com aquele exigido e utilizado pelo autor do
texto.
Antecipação ou predição de conteúdos ou de propriedades dos textos [...]
A partir da situação de leitura, de suas finalidades, da esfera de
comunicação em que ela se dá; do suporte do texto (livro, jornal,
revista[...]); de sua disposição na página; de seu título [...] o leitor levanta
hipóteses tanto sobre o conteúdo como sobre a forma do texto ou do trecho
seguinte de texto que estará lendo.
Checagem de hipóteses: ao longo da leitura, no entanto, o leitor checará
constantemente essas suas hipóteses, confirmando-as ou desconfirmandoas e, consequentemente, buscando novas hipóteses mais adequadas.
Localização e/ou retomada (cópia) de informações: em certas práticas de
leitura (para estudar, para trabalhar, para buscar informações em
enciclopédias, obras de referência, na internet), o leitor está
constantemente buscando e localizando informação relevante, para
armazená-la — por meio de cópia, recorte-cole, iluminação ou sublinhado
— e, posteriormente, reutilizá-la de maneira reorganizada (ROJO, 2009, p.
77-78).
146
Todas essas capacidades contribuem, em certa medida, no processo de
leitura. Entretanto, é preciso ressaltar que os estudos nesta área buscam outras
abordagens que têm respondido melhor às exigências de leitura postas à
contemporaneidade, como a necessidade da formação de leitores críticos e
autônomos. Para essa necessidade, as capacidades acima mencionadas, ainda que
sejam operacionalizadas em conjunto, têm se mostrado insuficientes por dar conta
apenas de aspectos cognitivos e metacognitivos envolvidos nesse processo.
Essa problemática nos permite afirmar que, numa proposta didática voltada
para a formação do aluno em favor da cidadania, cujo exercício pressupõe um
posicionamento crítico, é preciso aumentar o nível de complexidade das
capacidades leitoras no sentido de levar o aluno a desenvolver uma efetiva
compreensão dos textos/enunciados lidos e escritos. Acerca disso, um conceito
bakhtiniano mobilizado atualmente em algumas propostas de leituras que pretendem
dar conta dessas capacidades é a compreensão ativa e criadora. Esse conceito
subsidiará nossa análise.
Passemos a observar como os elementos da situação de produção são
abordados na atividade contida segunda unidade, da 2ª edição, cujo objetivo é levar
os alunos a estabelecer o primeiro contato com o artigo de opinião:
RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 36.
147
Observamos que a atividade mobiliza, para os objetivos propostos, algumas
estratégias
de
leitura
cognitiva
e
metacognitiva,
como
a
localização
e
(re)conhecimento dos elementos da situação de produção, a exemplo das 1ª e 2ª
questões, e ativação de conhecimentos de mundo nas 3ª, 4ª e 5ª questões.
Percebemos que, nessas primeiras questões, o discurso autoral procura direcionar o
aluno para a observação do processo de articulação entre as circunstâncias do
contexto de produção e as escolhas dos conteúdos ditos no texto de referência, o
que se pode depreender na colocação da última questão.
Acreditamos que esse tratamento didático visualiza o desenvolvimento de
duas capacidades de linguagem — ação e discursiva. Com o propósito de fazer com
que os alunos desenvolvam essas capacidades, o discurso autoral adota duas
perspectivas: primeiro, levar o aluno a compreender o processo de escritura
(circunstâncias do contexto de produção e as escolhas dos conteúdos ditos) no texto
do outro, para, posteriormente, saber mobilizá-lo na sua própria produção textual.
Esse tipo de abordagem, bastante recorrente na proposta, foi identificado por nós
durante o levantamento dos tipos de atividades.
Outra questão que julgamos relevante pontuar são as definições e
explicações fornecidas pelo discurso autoral, com o intuito de caracterizar os
elementos do gênero para os quais aponta o roteiro de questão acima analisado.
Nelas, há, em certa medida, pistas sobre as propriedades que estão sendo
consideradas no processo de modelização do artigo de opinião, mas também sobre
a apreciação do discurso acerca desses elementos, a qual pode ser depreendida,
em termos, na sequência da atividade:
RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL. Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 37.
148
A respeito das características apresentadas, acreditamos que é preciso fazer
algumas ponderações sobre algumas questões, embora as explicações estejam de
acordo com a fundamentação teórico-metodológica assumida na proposta didática.
A primeira ponderação a ser feita diz respeito à primeira explicação. Nela,
percebemos que o lugar de produção e circulação do gênero artigo de opinião está
restrito aos meios de sua reprodução e difusão, ou seja, aos seus suportes: o jornal
impresso, a revista e sites. Isso, em boa medida, responde aos critérios de
modelização que estão sendo considerados na didatização do artigo de opinião, cuja
ênfase está mais voltada para a finalidade pragmática de sua compreensão e
produção do que para as motivações socioideológicas que levam um sujeito-autor a
produzir um texto/enunciado exemplar neste gênero.
Nessa perspectiva, se, por um lado, não há necessidade de propor a esfera
de atividade jornalística como princípio de organização do artigo de opinião, porque
a argumentação sobre problemas sociais controversos ocorre em qualquer instância
social (no jornalismo, no judiciário, na ciência, na escola, no cotidiano etc.), por
outro, isso pode representar certa limitação de enfoque, pois a caracterização do
artigo de opinião assentada mais no princípio de sua funcionalidade pragmática
tende a privilegiar as regularidades do gênero em detrimento de suas
especificidades.
Tal enfoque didático pode dar conta de um dos objetivos do projeto de ensino
do artigo de opinião assumido na proposta, que é desenvolver nos alunos as
capacidades dominantes na ação de argumentação. Caberíamos questionar em que
medida tal enfoque contribui para a formação letrada dos alunos em favor do
exercício da cidadania, principalmente, como leitor — outro objetivo da proposta.
Uma segunda ponderação recai sobre o movimento de articulação da
temática do gênero artigo de opinião a fatos atuais discursivizados na notícia. Em
nosso entendimento, nem sempre o que é tematizado no artigo de opinião precisa
ter sido necessariamente discursivizado na notícia. Além disso, a atualidade da
temática tratada neste gênero diz mais respeito à historicidade do evento discursivo
do que ao acontecimento datado, como o é na notícia.
A terceira ponderação recai sobre a caracterização do leitor típico do artigo de
opinião e está ligada, de certa forma, à primeira ressalva levantada. Acreditamos
que a pouca consideração dada à esfera de produção e circulação do gênero artigo
149
de opinião favorece a interpretação dada ao lugar social típico de sua
recepção.Rodrigues (2001) observa que a produção e a circulação do artigo de
opinião estão restritas aos grandes jornais e revistas impressos, cujas linhas
editoriais visualizam leitores inseridos em um universo econômico e cultural próprio
dos segmentos de maior prestígio social, de onde também escolhem seus
articulistas. Talvez essas fossem considerações preferíveis na caracterização do
leitor típico do gênero a restringi-lo a alguém tido pelo jornal como ―potencialmente
envolvido no debate, na qualidade de cidadão‖.
Como se trata da primeira atividade de exploração dos elementos da base de
produção do gênero artigo de opinião constituída de questões bastante abertas e
genéricas, plausíveis de serem aplicadas na leitura de qualquer texto exemplar no
gênero, como propõe a atividade, essa questão será por nós retomada em outro
momento na análise em que poderemos cotejar em uma seção do Caderno PV a
relação entre o texto tomado como referência de estudo e as questões postas como
roteiro de leitura.
Observemos mais uma atividade, inserida na mesma seção, com o mesmo
objetivo, mas sugerindo a leitura de textos exemplares no gênero artigo de opinião
em seu portador usual:
150
RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL. Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 40-41.
Apesar de esta atividade estar presente no Caderno PV da 1ª edição,
percebemos que ela se mostra mais completa no da 2ª edição; daí restringirmos
nossa análise a esta edição.
Enfoquemos a segunda e a terceira comandas da atividade. Em relação
àquela, percebemos que o discurso autoral encaminha a atividade de forma a levar
o aluno a explorar o aspecto gráfico e organizacional do gênero em seu suporte
original. Percebemos que há uma orientação para a percepção de que a divisão
gráfica possibilita compreender a divisão organizativa do jornal.
Sobre a divisão organizacional do jornal presente na atividade, é possível
dizer que o discurso autoral serve-se de conceitos de teorias da comunicação
próprias do jornalismo, tendo em vista a própria terminologia utilizada ―matéria
assinada‖, ―matéria não assinada‖, ―texto opinativo‖, ―informação pura‖. Pensando
nessa perspectiva, essa divisão encaminhada na atividade recai sobre a forma
material e a funcionalidade dos gêneros. Essa forma de compreensão é confirmada
na terceira comanda da atividade.
151
Uma primeira observação a ser pontuada acerca da divisão diz respeito à
caracterização da dupla funcionalidade da atividade jornalística presente na
atividade: matérias opinativas e matérias informativas. As primeiras, subentende-se,
de caráter pessoal e parcial, e as segundas afirmadamente de caráter neutro e
imparcial. Assim, cabe aqui fazermos uma ponderação partindo de uma perspectiva
discursiva: será que a neutralidade e a imparcialidade são elementos capazes de
efetivamente caracterizar o funcionamento das matérias informativas? Será que não
haveria outros caminhos mais eficazes para evidenciar a funcionalidade dessas
matérias, por exemplo, partir de um cotejamento entre o conteúdo tematizado e as
formas de dizê-lo?
Outra observação a ser feita diz respeito ao que o discurso autoral entende
por ―funcionalidade condicionada a uma visão particular ou específica do mundo
etc.‖. O que viria a ser precisamente ―uma visão particular‖ e ―uma visão específica
do mundo‖? Será que ―particular‖ estaria remetendo ao querer dizer pessoal do autor
dos gêneros e ―específica‖ para o aspecto funcional desses gêneros? Levantamos
essas questões, porque as explicações dadas não nos esclarecem essa questão.
Além disso, pensando naqueles para quem se endereça a proposta — professores e
alunos — acreditamos que tais explicações mostram-se insuficientes para o
entendimento do que tematiza a atividade.
Nas últimas duas comandas da atividade, o discurso autoral retoma o
enfoque para o tratamento da situação de produção e para alguns aspectos
―discursivos‖ do artigo de opinião, apresentados na proposta como algumas de suas
características próprias. Com exceção do item ―b‖, da terceira comanda, em que se
sugere a apreensão do leitor do artigo de opinião por meio de ―aspectos do texto‖
sobre os quais não podemos dizer se são linguísticos ou discursivos, o discurso
autoral repete o propósito e a abordagem dados na primeira seção da atividade.
Assim, o enfoque volta-se novamente para o propósito de desenvolver nos
alunos as capacidades de ação e ―discursivas‖ através da percepção de como o
outro, o autor do texto, constrói seu ponto de vista e as estratégias argumentativas
levando em consideração o contexto da enunciação, como a temática, o lugar de
onde o autor escolhe para posicionar e o leitor presumido. Até este momento da
análise, podemos dizer que o discurso autoral nos dá pistas de que considera essas
capacidades a força motora para o domínio do artigo de opinião.
152
Ainda dentro do mesmo componente da sequência didática que objetiva
fornecer a base da situação de produção do artigo de opinião, vamos focalizar a
segunda unidade, do Caderno PV, da 1ª edição, na qual poderemos aprofundar
nosso olhar sobre a divisão funcional da atividade jornalística fornecida na proposta
didática a fim de entender como o discurso autoral desdobra essa questão na
proposta de estudos comparativos para diferenciação entre gêneros específicos71.
Nessa unidade, a atividade tematiza a comparação entre os gêneros notícia e
artigo de opinião, a fim de estabelecer pontos de contatos e diferenciações entre os
dois. A notícia foi publicada no jornal Folha de S. Paulo, no caderno Cotidiano, do
dia 4/12/2007. O redator é um correspondente do jornal no Rio de Janeiro, e o
mesmo assina a notícia:
GAGLIARDI, E. AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008, p. 16.
Podemos assinalar que as questões presentes, na segunda comanda,
apontam para uma retomada dos propósitos de leitura presentes nas atividades
voltadas para trabalhar a base de situação de produção do artigo de opinião,
servindo-se das mesmas abordagens na proposta de estudo do gênero notícia.
Com exceção da inclusão de uma charge, cujo objeto está relacionado ao objeto da notícia e funciona, na atividade, como
estratégia de ampliação de conhecimento do assunto, não houve, na 2ª edição, grandes modificações que pudessem
apresentar nova orientação de enfoque ou abordagem, restringindo aquelas aos objetos discursivos dos textos que passam
a ser internet e eleições. Por isso, nosso enfoque de análise ficará na atividade contida na 1ª edição.
71
153
Entretanto, a atividade apresenta uma tematização com um enfoque diferente, na
segunda comanda.
Na primeira seção, a atividade voltada para a leitura do gênero notícia avança
em termos de complexidade exigida. Vimos que, além de buscar o desenvolvimento
de estratégias de leitura que demandam capacidades de localização de informações
dos elementos da situação de produção e de ativação de conhecimento de mundo
durante o ato de ler para entender o conhecimento mobilizado pelo autor e
depreender seus fins, objetiva também desenvolver certa capacidade de apreciação
ético-subjetiva e política.
Na terceira comanda, espera-se que as questões postas levem os alunos a
estabelecer, através da reflexão, o tipo de relação existente entre a notícia e o artigo
de opinião em termos de pontos de contato e diferenciação, conforme se depreende
também das orientações postas ao professor:
GAGLIARDI, E. AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008, p. 17.
A interferência do discurso autoral, que deseja manter sua via de
interpretação para a questão, mostra-nos o que se tematiza necessariamente na
atividade. Primeiro, a atividade objetiva, através do procedimento de comparação,
levar os alunos a estabelecer relações entre a temática do gênero artigo de opinião
e os fatos discursivizados no gênero notícia de forma a perceber que nisso consiste
o ponto de contato entre esses dois gêneros, orientação confirmada na segunda
seção da mesma atividade:
154
GAGLIARDI, E. AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008, p. 17.
Segundo, em conformidade com a fundamentação teórico-metodológica
assumida, busca-se, por esse procedimento, à confirmação da orientação posta pelo
discurso autoral em relação à divisão funcional dicotômica do jornalismo entre fatos
e opinião. O gênero notícia seria o representante exemplar dos textos informativos,
de caráter neutro e imparcial, e o gênero artigo de opinião representaria os textos
opinativos, de caráter parcial, conforme informação expressa pelo próprio discurso
autoral, no segundo quadro, da segunda seção:
GAGLIARDI, E.; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008, p. 19.
Esse enquadramento que o artigo de opinião sofreu ao longo da didatização
contida na proposta do Caderno PV não possibilita ao aluno autonomia para
distinguir as especificidades de determinadas formas genéricas que têm como ponto
155
comum uma abordagem argumentativa. Se partirmos de tal classificação, é possível
distinguir o artigo de opinião de um editorial ou de uma dissertação de vestibular?
Do nosso ponto de vista, a resposta seria não. Rodrigues (2001) e Alves Filho
(2008), ambos dedicados aos estudos deste gênero numa perspectiva enunciativodiscursiva, assinalam que a finalidade pragmática do artigo em si não oferece
elementos suficientes para diferenciá-lo de outros gêneros jornalísticos com a
mesma orientação. Os dois autores propõem como critério mais pertinente para essa
diferenciação a autoria do gênero articulada à finalidade ideológico-discursiva da
esfera jornalística e sua junção numa interação social singular no espaço do
jornalismo. A nosso ver, esse caminho retiraria o enfoque da finalidade pragmática
dos textos e evitaria uma ênfase nas representações particulares de seus
interlocutores, inserindo-os na ordem da historicidade.
Para
analisarmos
melhor
essa
última
questão,
vamos
apreciar
a
caracterização do gênero notícia fornecida como subsídio para a atividade em um
box da unidade:
GAGLIARDI, E. AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008, p. 16.
Podemos perceber que a orientação assumida, na atividade, a respeito da
finalidade informativa de caráter neutro e imparcial do gênero notícia é confirmada
como uma de suas características constitutiva. Essa caracterização é seguida,
entretanto, de certa modalização que aponta para o funcionamento socioideológico
desse gênero, em que se pode sentir também a presença de pontos de vista,
valores, aspectos comumentes atribuídos ao artigo de opinião. Há também
considerações sobre aspectos da sua estruturação composicional e estilística.
156
Retornando nosso olhar para a primeira seção da atividade, tomando como
parâmetro a caracterização acima apresentada, observamos que, com exceção dos
elementos da situação de produção e da finalidade do gênero notícia, nenhum dos
outros aspectos, como a estrutura composicional e estilística e o funcionamento
socioideológico se desdobram enquanto tematizações na atividade proposta.
Em nosso entendimento, as afirmações de que a neutralidade da notícia é
uma pretensão e que ela traz em si concepções, princípios e ideologia de quem
escreve, não contribuem para o professor compreender essa questão, nem leva
efetivamente os alunos a perceber que princípios e ideologias seriam esses e como
se materializam em um texto.
Cotejando as orientações contidas no quadro de atividade com o box
informativo, podemos afirmar que o elemento valorativo-ideológico no gênero notícia
figura, na proposta, de forma externa ao texto — nas reações diversas a posteriori
de seus prováveis leitores, por isso, ele não se desdobra na materialidade textual.
Sobre a dupla divisão funcional do jornalismo apresentado na proposta,
lembramos, com Eco (1998), que ela passa de tema central nas décadas de 19601970 a adquirir, na atualidade, caráter obsoleto. O autor assinala que, com exceção
do boletim meteorológico, não há notícia em si neutra e imparcial, porque o ato de
escolha e seleção de determinados fatos, acontecimentos como temática da notícia
e a paginação desta já se constituem em atos orientados valorativamente.
Acreditamos que se trata de problematizações pertinentes para se considerar
e explorar em propostas didáticas voltadas para o letramento dos alunos,
especialmente daqueles de escola pública, como o são os destinatários da proposta
didática em análise. Entretanto, a ênfase na finalidade e temática dos gêneros como
marcas de sua distinção em relação aos outros, a nosso ver, restringe a exploração
dos elementos valorativos.
Entretanto, trata-se de um aspecto que, no âmbito do arcabouço teóricometodológico em que se fundamenta a proposta didática, não representa, em si, um
problema, tendo em vista que o objetivo do ensino-aprendizagem de linguagem seria
o desenvolvimento de certas capacidades sociopsicológicas implicadas nas ações
de linguagem (relatar, argumentar etc.), objeto, como vimos, bastante apreciado na
proposta.
157
Vamos analisar mais algumas atividades, pertencentes ainda ao primeiro
componente da sequência didática (apresentação da situação de produção), em que
se objetiva fornecer ao aluno uma base de representação do contexto de produção,
mas o que está em enfoque são os conteúdos dizíveis em um artigo de opinião.
5.4 As atividades de elaboração temática do artigo de opinião
Vamos analisar, agora, uma atividade em que a intenção maior é tematizar os
conteúdos passíveis de serem ditos em um artigo de opinião. A atividade está
contida na quarta unidade do Caderno PV da 2ª edição72. Vejamos como este
elemento está didatizado na proposta:
Entre uma edição e outra do Caderno PV não houve mudanças em si no conteúdo e forma das atividades que visualizam
levar os alunos a identificar os conteúdos dizíveis no artigo de opinião, enfoquemos, então, a atividade da 2ª edição.
72
RANGEL, O. E.; GAGLIARDI E. ; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 56-58.
158
159
O elemento temático do gênero artigo de opinião recebeu um tratamento
didático em atividades anteriores, que enfatizavam o conhecimento das condições
de produção, circulação e recepção do gênero. Por isso, nesta etapa do projeto de
ensino do artigo de opinião, a atividade focaliza encaminhamentos para o
levantamento e seleção desses conteúdos plausíveis de serem verbalizados nesse
gênero.
A nosso ver, há uma preocupação em garantir que o aluno saiba o que dizer
adequando-o não só à temática do gênero considerada na proposta, mas também à
finalidade contida no âmbito restrito do projeto: escrever um artigo de opinião sobre
―O lugar onde vivo‖ para participar de um concurso de produção textual. Para que o
aluno tenha clareza do que dizer, a atividade está investida de diferentes estratégias
para a elaboração temática.
Um primeiro movimento direciona o olhar do aluno para questões
controversas de amplitude geral e que implicam ao menos uma determinada
comunidade, cuja circulação ocorre em diferentes veículos jornalísticos de difusão
coletiva (TV, rádio e jornal), conforme podemos depreender das orientações e
explicações postas na primeira, na segunda e terceira comandas.
Um segundo movimento volta-se para as questões de âmbito local, como as
que circulam no meio social da vida cotidiana do aluno, ou seja, sua comunidade
local, e, se preciso for, restringir ainda mais a amplitude para o âmbito da escola. O
terceiro movimento faz o caminho de volta, na forma de relação e articulação entre o
geral e o local.
Em relação a esses movimentos, podemos perceber nas explicações duas
formas subjacentes de entender os conteúdos que podem ser verbalizados em um
artigo de opinião. Se, na segunda comanda, a controvérsia constitutiva da temática
do artigo de opinião está na possibilidade de se estabelecer sobre ela diferentes
pontos de vista, assumindo, assim, um aspecto bastante dialógico, na terceira
comanda, o discurso autoral vai fechando esse leque de possibilidades ao
estabelecer que esse elemento implica, necessariamente, duas posições: uma
favorável e outra contrária, tendo a comunidade envolvida que optar por uma ou
outra posição.
Em nosso entender, essa forma de conceituação encaminha o entendimento
desse elemento para uma definição mais retórica. Percebemos que a recorrência a
160
um modelo estrutural da argumentação de perspectiva retórica, conforme
apontamos no capítulo 4 desta pesquisa, influencia também na apreciação do
discurso autoral sobre os elementos do gênero artigo de opinião.
Notamos que o aspecto prevalecente no projeto de ensino do artigo de
opinião é o caráter dicotômico. A nosso ver, tal tratamento restringe as
possibilidades de compreensão do objeto discursivo, uma vez que outras
orientações são possíveis. Além do mais, fechar o tratamento dos acontecimentos
sociais dados no artigo de opinião numa questão de fundo controverso dual pode
mostrar-se problemático para o aluno que aprende.
A nosso ver, nem sempre tal polêmica dicotômica vai estar presente nos
exemplares com os quais possa se deparar em leituras extraescolares ou até
mesmo escolares. O interessante seria ressalvar, que em algumas condições, isso
pode não se confirmar. Mas a proposta tende a apresentar um modelo do gênero em
que esse aspecto é tomado como marca distintiva. Assim, o discurso autoral não se
desfaz dele, uma vez que desconstruiria seu projeto discursivo.
Apesar disso, percebemos que, subjacente à orientação que guia a atividade,
está uma postura indutiva a qual busca articular o cotidiano e o formal. Essa
abordagem indutiva, que visualiza a elaboração da temática do texto exemplar a ser
produzido pelo aluno, nos remete à perspectiva de ensino-aprendizagem escolar
vygotskyana, segundo a qual o aprendizado escolar tem uma história prévia (a da
família, do grupo social mais próximo etc.), construída na interação da criança com o
meio social e cultural, nas atividades cotidianas, e que é tomada como base para a
construção do aprendizado escolar.
Metodologicamente, a orientação indutiva sobre a elaboração da temática a
ser abordada no texto exemplar no gênero enfocado, articulando o local e o geral,
representa um ponto positivo na atividade no âmbito da proposta, uma vez que é
recorrente os alunos reclamarem que não sabem o que dizer quando vão produzir
um texto. Essa é uma preocupação considerada na atividade e no todo da proposta
didática, cujo intuito é garantir o interesse do aluno pela proposta de produção
textual. Vejamos mais uma atividade ainda no âmbito do componente da sequencia
didática, que objetiva levar o aluno ao conhecimento da situação de produção
exposta, ainda ligada, em termos, ainda à construção da orientação temática:
161
162
RANGEL, O. E.; GAGLIARDI E. ; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 60-62.
Trata-se de uma atividade que envolve o trabalho com a linguagem oral,
ancorada na proposição de realização de um debate coletivo.
A inserção do debate coletivo no âmbito de um conjunto de atividades que
supõem terem como finalidade levar o aluno ao domínio do gênero artigo de opinião
é uma estratégia pedagógica bastante eficiente, por se tratar de um gênero do qual
os alunos já têm certo conhecimento, devido não só às suas semelhanças com a
discussão de questões na vida cotidiana (na família, entre amigos etc.) como
também, em maior ou menor grau, à proximidade com situações da vida cotidiana,
como seu uso na TV.
Por esse procedimento de recorrer a gêneros mais próximos das experiências
prévias dos alunos, podemos visualizar uma apreciação do discurso autoral a
respeito de como se aprende, demonstrada, não apenas na seleção dos gêneros
163
que se intercalam na proposta, mas também na condução da atividade orientada por
uma postura mais indutiva, em que se valorizam ora o uso e a reflexão, ora a
prescrição.
A intercalação de textos em outros gêneros no interior de uma proposta
didática pode dar-se por diversas razões. Em nosso entender, a introdução, na
proposta, do gênero debate está posta não apenas por possibilitar o exercício
imediato da temática levantada na atividade anterior, através uso oral, mas também
por apresentar certa estrutura discursiva que o discurso autoral pretende transferir
para o gênero artigo de opinião.
Por isso, percebemos um movimento de valorização, na atividade, muito mais
sobre a forma de desenvolvimento da temática do que em sua alimentação no
âmbito do debate. A atividade salienta uma preocupação maior sobre o ―como
fazer‖, orientando o professor passo a passo na condução do debate, deixando-nos
entrever que o elemento efetivamente tematizado na atividade é a estrutura
―discursiva‖ da argumentação.
O primeiro passo é submeter a classe a divisões e subdivisões de forma que
estejam criadas as condições mínimas de produção do debate coletivo em contexto
escolar: ―os que irão argumentar a favor‖, ―aqueles que irão argumentar contra‖ [com
abertura para adoção de outro caminho, a nosso ver, algo louvável, mas que
aparece nessa única orientação no todo da proposta], e ―os que irão avaliar o
debate‖.
Na explicitação das condições mínimas de produção do gênero, visualizamos
certa preocupação em fazer com que os alunos a vivenciem dos três ângulos
possíveis: debatedores favoráveis, debatedores contrários e auditório avaliador, na
forma como propõem o tempo do debate: ―primeiro e segundo turno‖. Há também
menções à forma composicional do gênero (fala, réplica e tréplica) e sobre o estilo
(referir-se ao adversário de maneira respeitosa e respeitar sua vez de falar) além do
registro/tipo de linguagem a ser empregada.
Todos esses elementos são apresentados como normas ou regras do debate
que deverão ser respeitados em sua produção, mas o enfoque da atividade em si
recai é sobre a estruturação discursiva do texto, conforme podemos depreender das
questões postas para orientar a tomada de nota e a análise por parte do grupo
avaliador.
164
As questões conduzem o olhar do aluno-avaliador pontualmente ora para a
localização das categorias dominantes de ação argumentativa, como a identificação
da tese/posição, das estratégias e dos argumentos, presentes na 1ª, 2ª e 3ª
questões, ora para a reflexão de seus efeitos no próprio avaliador, como a força dos
argumentos e a capacidade de eles gerarem uma conclusão, como na 5ª e 6ª
questões.
Essa postura autoral de prescrever, olhemos também a 1ª questão, e ao
mesmo tempo induzir à reflexão, vejamos a última questão, é recorrente nesse
projeto didático ora em análise. Tal postura pode ser evidenciada em várias
comandas da mesma atividade, como na sexta, em que se objetiva a
esquematização das teses e estratégias desenvolvidas pelo grupo, no segundo
quadro de questões que induzem a localização, repetição e, ao mesmo tempo,
reflexão sobre os aspectos que envolvem a elaboração do processo argumentativo.
Notamos que começa a se delinear aquele movimento percebido nas
unidades iniciais anteriormente analisadas de fazer ver, primeiro, como o outro
constrói seu ponto de vista e as estratégias argumentativas levando em
consideração o contexto da enunciação, para depois, os alunos mobilizarem essas
estruturas discursivas em seus próprios textos. Subjacente à realização dos
procedimentos
propostos
na
atividade
analisada,
estão
pressupostas
as
capacidades de ação e ―discursiva‖, confirmando mais uma vez que se trata das
forças propulsoras do projeto de modelização didática do discurso autoral. Vemos,
assim, que o que prevalece na atividade é a construção de capacidades dominantes
da ação argumentativa, ligadas à alimentação da temática controversa e sua
estruturação ―discursiva‖.
Pudemos perceber que a orientação para a construção do elemento temático
de caráter dicotômico prevalece também nesta atividade, expressa na divisão,
subdivisão da sala, na orientação de tomadas de posição favoráveis/contrárias etc.
Tal forma de estruturação, a nosso ver, implica em pontos positivos e negativos.
Em relação aos pontos positivos, acreditamos que tal organização permite
duas formas de alternância: uma entre os participantes do evento discursivo, que
assumem em tempo real e imediato o papel de autor e interlocutor e outra em
relação ao papel de participante contemplador que avalia. Além disso, a própria
escolha do gênero debate coletivo simula essa alternância de modo mais simples,
165
uma vez que se aproxima bastante do diálogo real na vida cotidiana (a conversa, a
discussão entre amigos, entre a família etc.), em que as posições e réplicas entre os
interlocutores, ainda que breves e fragmentárias, dão-se em um tempo-espaço
imediato.
Tal característica do funcionamento do debate pode favorecer a compreensão
do próprio modo de funcionamento da linguagem enquanto instrumento sóciohistórico de interação humana assentado na alternância discursiva. Lembremos aqui
Bakhtin (2003[1952-1953]), que oferece, acerca desse princípio, a seguinte
explicação:
Todo enunciado — da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano ao
grande romance ou tratado científico — tem, por assim dizer, um princípio
absoluto e um fim absoluto: antes de seu início, os enunciados dos outros
(ou ao menos uma compreensão ativamente responsiva silenciosa do outro
ou, por último, uma ação responsiva baseada na compreensão). O falante
termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua
compreensão ativamente responsiva. O enunciado não é uma unidade
convencional, mas uma unidade real, precisamente delimitada da
alternância dos sujeitos do discurso, a qual termina com a transmissão da
palavra ao outro [...] (BAKHTIN, 2003[1952-1953], p. 275).
Como vimos, o debate, por sua ocorrência numa dimensão real e imediata,
pode favorecer a compreensão por parte dos alunos interlocutores do princípio de
funcionamento da linguagem, uma vez que as estratégias de organização da
produção do gênero favorecem a criação de condições em que os alunos possam
vivenciar diferentes posições enunciativas em um espaço-tempo imediato.
A dinâmica do debate coloca ainda à disposição do professor e do aluno, no
âmbito do trabalho com a linguagem oral, ferramentas (tomada de nota, análise,
estruturação, esquematização, síntese), criando condições para que o professor e
os alunos identifiquem o grau de conhecimento que possuem sobre o objeto
proposto na atividade e o que precisam ainda conhecer para usá-lo efetivamente.
O papel atribuído ao professor é bastante importante, na atividade, uma vez
que ele precisa atuar não apenas como orientador do debate no sentido de
organizar e auxiliar os alunos a formular a tese e sustentá-la solidamente como
também mediar a interação. Nessa perspectiva, a atividade mediadora do ―outro‖, o
professor, assume papel ativo na construção do conhecimento do ―outro‖, o aluno
166
(VYGOTSKY, 2008[1934]). Assim, a organização metodológica é um ponto positivo
na atividade.
Em relação aos pontos negativos, pensando na divisão dicotômica da questão
polêmica que supõe dois lados opostos e um auditório que contempla/assiste,
acreditamos que seria interessante ampliar mais as possibilidades de tratamento
discursivo da questão, graduando as possibilidades de tomadas de posição. É bem
verdade que tal forma de organização facilita a apreensão de categorias estruturais,
bastante enfatizadas na proposta. Entretanto, são aspectos que, a nosso ver, não
garantem em si uma efetiva compreensão ativa dos discursos.
Ressaltemos, também, que é preciso ter o cuidado para não diluir as
fronteiras entre o debate e o artigo de opinião. Trata-se de gêneros com autoria e
funções socioideológicas diferentes. Portanto, o debate serve bem para fazer com
que os alunos percebam de forma mais próxima a sua vida cotidiana de como
funciona, em termos, os gêneros de base argumentativa. Mas não pode tomar o
lugar do artigo de opinião a não ser em situações em que se aponta para uma
intenção de estilo individual, o que deve ser sinalizado e trabalhado didaticamente
enquanto tal.
O debate presta-se melhor a uma visão retórica porque pressupõe
interlocutores específicos: de um lado, temos o autor e seus aliados, de outro lado, o
adversário e seus aliados e vice-versa, e o terceiro participante é o auditório com o
papel de ouvinte.
Bakhtin (2003[1970-1971]), acerca de tal visão retórica do discurso, pontua
que ―a discussão retórica é uma discussão na qual o importante não é se aproximar
da verdade [apreciação valorativa] mas vencer o adversário‖. Por isso, ―o discurso
retórico argumenta do ponto de vista do terceiro‖, que é o auditório/ouvinte sobre o
qual recai a função de decidir o vencedor. O pensador russo acrescenta ainda que
essa forma de discurso, de colocar de um lado ―os indiscutivelmente inocentes‖ e os
―indiscutivelmente culpados‖, evidencia a vitória absoluta de um e a humilhação
plena de outro, o que para ele destrói ―a própria esfera dialógica da vida da palavra‖
(BAKHTIN, 2003[1970-1971], p. 386).
Ao reconhecermos que a proposta do material, no que se refere à visão
retórica para a questão temática, está, em boa medida, reduzindo os conceitos a
aspectos funcionais, é pertinente apresentarmos outro conceito que foi tomado
167
também numa visão funcionalista — as vozes. Sabemos que este conceito está
associado a várias teorias da linguagem — enunciação, análise do discurso,
enunciativo-discursiva,
ISD
etc.,
mas
aqui
o
que
nos
interessa
é
sua
operacionalização no projeto de ensino do artigo de opinião.
Este conceito está posto e operacionalizado na décima primeira unidade,
denominada ―Vozes presentes no artigo de opinião‖. O conceito de ―vozes‖
apresentado
pelo
discurso
autoral
está
subdividido
em
duas
categorias:
aliado/adversário e auditório. Essas categorias são desdobradas nas formas de
discurso de autoridade, fatos, dados estatísticos, exemplos etc.:
RANGEL, E.; GAGLIARDI, E; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 116-117.
Na definição e explicação do conceito de ―vozes‖, notamos que o discurso
autoral ora se movimenta para uma abordagem mais discursiva ―um artigo de
opinião tende a reproduzir, no corpo do texto, o próprio debate de que participa...
costuma trazer diversas vozes, isto é, referências explícitas e implícitas a
informações e/ou posições diferentes‖, ora para uma abordagem mais retórica ―a voz
de um aliado tem a função de apoiar a tese defendida... a voz de um adversário
representa um contra-argumento possível... o auditório representa, no debate, o
168
conjunto dos interlocutores que o argumentador quer convencer[...]‖. Isso evidencia
que existe certa tensão em relação à concepção teórica do conceito de vozes, já na
operacionalização desse conceito, o discurso autoral privilegia uma abordagem — a
retórica. Observemos a atividade abaixo:
RANGEL, E.; GAGLIARDI, E; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 119-120.
169
Nas instruções postas para a apreensão das vozes presentes no texto usado
como referência para a realização da atividade, o discurso autoral encaminha a
questão para uma visão funcionalista. Nessa perspectiva, o conceito de vozes é
restringido a um aspecto funcional que o discurso autoral arregimenta para ilustrar
como o articulista serve-se disso para referendar seu ponto de vista (comandas b, c,
d e e). Percebemos que, na condução dada à questão, a atividade investe numa
articulação entre o que se apresenta por ―vozes‖ e o que o discurso autoral
apresenta ao longo da proposta como ―tipos de argumentos‖, que entram na
composição dos textos/enunciados com a função de fundamentar o ponto de vista
do autor dos textos argumentativos.
Observamos que o discurso autoral, na comanda b, esforça-se por dar certa
orientação valorativa para a presença do outro, o jornalista Elio Gaspari, no texto do
articulista. Entretanto, essa orientação é simplista, pois as informações referentes
aos dados profissionais do jornalista não se desdobram na interpretação da forma
como a ―voz‖ desse jornalista foi transmitida no texto. Não há qualquer articulação
entre a incorporação dessa ―voz‖ e o lugar social assumido por seu autor no
contexto do artigo do articulista, e suas decorrências em termos de efeitos de
sentido. Há, assim, um encaminhamento para a apreensão do ―outro‖ como
individual (pessoa física) e o propósito é apenas sua localização no discurso citante
como apoio para a tese do articulista.
O uso do conceito de vozes, na atividade do Caderno PV, distancia-se
bastante de uma abordagem discursiva, em que esse conceito aponta sempre para
posicionamentos ideológico-valorativos provenientes de lugares sócio-históricos
definidos. Remetemos, aqui, a Bakhtin, para quem as relações entre os discursos,
sob um enfoque translinguístico, são transformadas ―em ‗visões de mundos‘ (ou em
certas visões de mundo centradas na linguagem ou no discurso), em ‗pontos de
vista‘, em ‗vozes sociais‘, etc. (BAKHTIN, 2003[1959-61], p. 325).
Retornando à atividade, notamos que, na comanda c, existe um movimento
de associação entre dados e vozes, isto é, as informações representadas no texto
exemplar do artigo de opinião são atribuídas a determinadas vozes, cuja função é se
aliar ao e respaldar o ponto de vista do articulista, sinalizadas pelo discurso autoral
em ―de acordo com os números da respeitadíssima Fundação Seade‖ e ―Dizem que‖
[grifos do autor]. Essas duas vozes foram evidenciadas pelo discurso autoral apenas
170
a título de localização e apontamento de sua função (aliada) no texto. Assim como
apontamos na comanda anterior, o discurso autoral não oferece encaminhamentos
para a apreensão dos lugares sociais preferíveis arregimentados no texto do
articulista e seus efeitos na orientação e relação para outros textos.
Tal abordagem repete-se, na condução contida na comanda d, em que o
enfoque recai sobre as duas funções que as vozes transmitidas assumem no
discurso do articulista: a de se aliar ou a de se opor ao articulista. Podemos afirmar
que a função dicotômica dessas vozes vai depender do grau de proximidade que
estabelece com a tese do articulista. Assim, ―a grande imprensa/o pessoal/a
patrulha‖ é uma voz adversária, porque, diferentemente do que defende o articulista,
privilegia as ―más notícias‖, já ―a imprensa local‖ é uma voz aliada, pois abre espaço
para as ―boas notícias‖, apresentadas pelo articulista. Em relação ao papel do leitor,
na comanda e, este restringe-se ser convencido pelo articulista.
Podemos depreender que a operacionalização do conceito de vozes está
posta de duas formas na atividade do Caderno PV. No nível da representação, o
discurso autoral prioriza a seleção dos mecanismos de transmissão e organização
das vozes do outro de forma declarada ou citada, precisamente pelas marcas
linguísticas do discurso indireto. No nível das relações, são privilegiadas as lógicas
(tese, argumentos, conclusão) — construídas em cima de discordâncias/polêmica
aberta — e funcionais (convencer, persuadir). Em termos de objetivos, percebemos
que a pretensão do discurso autoral é levar o aluno a localizar e (re)conhecer essas
formas tematizadas na atividade. Tal operacionalização aproxima-se mais de uma
perspectiva do ISD de Bronckart (1999) que tende a usar o conceito de ―vozes‖ para
referir
à
presença
de
―discursos‖
individuais
(no
sentido
pessoa
física)
declaradamente citada nos textos.
Já em uma perspectiva discursiva, as relações de sentido estabelecidas entre
diferentes vozes em um mesmo texto não são redutíveis aos mecanismos de
transmissão das vozes alheias no texto, nem essas vozes são individuais no sentido
de pessoa física. Aquelas seriam mais amplas e complexas. Se as formas de
composição são definidas conforme o autor apresente ou não as vozes de outros em
seu texto, as relações de sentido, independente de o autor apresentá-las ou não,
estarão constitutivamente presentes no seu texto, ainda que não se mostrem
171
nitidamente, mas no todo do sentido, na expressão, no estilo, nas ínfimas nuanças
da composição etc. Isso porque, remetendo-nos a Bakhtin:
O enunciado [texto] é pleno de tonalidades dialógicas(...) Porque a nossa
própria idéia — seja filosófica, científica, artística — nasce e se forma no
processo de interação e luta com os pensamentos dos outros, e isso não
pode deixar de encontrar o seu reflexo também nas formas de expressão
verbalizada do nosso pensamento (BAKHTIN, 2003[1952-53], p. 289).
Conforme podemos depreender deste trecho de Bakthin, no sistema de
alteridades infinitas, há diferentes maneiras de fazer falar a voz do outro. Assim, o
conceito de voz alheia ou apropriada possui variadas gradações e matizes e não
pode estar limitado pelos mecanismos de transmissão dessa palavra de forma
declarada ou marcada. Como bem assinala Brait:
Registrar a existência de um discurso indireto como forma de instauração
da voz alheia não significa praticamente nada para o conceito de
dialogismo, de vozes em confronto, estabelecido por Bakhtin. É necessário
observar no conjunto do enunciado, do discurso, de que forma a confluência
das vozes significa muito mais uma interpretação do discurso alheio, ou a
manipulação na direção da argumentação autoritária, ou mesmo a
apropriação e subversão desse discurso (BRAIT, 1994, p. 25).
Achamos que a observação acima é bastante pertinente para a nossa
discussão em torno do uso do conceito de vozes na atividade do Caderno PV, ainda
que esse material, conforme já apontamos, não empregue uma abordagem
discursiva. Isso porque, sendo as relações entre as diferentes vozes declaradas ou
não, caberá ao leitor a posteriori representá-las na sua resposta compreensiva e
criadora, e a escuta dessa pluralidade de vozes que habitam os textos dependerá da
memória discursiva do leitor, conforme pontua Amorim (2003).
Em nosso entendimento, no caso em análise, é função do discurso autoral, na
medida em que se propõe formar o professor para ensinar os alunos, fornecer
condições favoráveis para uma recepção e réplica ativa desses textos na escola.
Assim, o que estaria implicado não seriam apenas as formas de transmissão dessas
vozes em cada gênero ou texto, mas também as formas como eles são
recepcionados na escola. E, parafraseando Brait (1994), diríamos que munidos da
capacidade de replicar ativamente os textos, os professores e os alunos poderiam,
diante de um texto, perguntar se a multiplicidade de vozes declaradas demonstra um
172
democrático processo dialógico ou unicamente uma cacofonia polienunciativa? A
nosso ver, essas condições, na atividade ora analisada, não foram dadas.
Na próxima seção vamos focalizar algumas atividades que investem no
tratamento dos elementos até aqui apresentados de forma conjunta.
5.5 As atividades com as características principais do artigo de opinião
Vejamos agora os tipos de atividades voltadas para a compreensão das
principais características do gênero artigo de opinião. Como notamos algumas
modificações do tipo de atividade de uma edição para outra, vamos começar
tomando como exemplo a atividade contida no Caderno PV da 1ª edição:
173
GAGLIARDI, E.; AMARAL, H. Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008.
As orientações da atividade estão centradas em um enfoque mais dedutivo e
nos revelam o tipo de compreensão que se busca estabelecer na leitura e
interpretação do texto exemplar no gênero artigo de opinião.
A primeira atividade, nesta etapa, constitui-se na leitura de um texto exemplar
nesse gênero, assinado por Renato Roseno, advogado e coordenador do Centro de
Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca – Ceará) e da Associação Nacional do
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced). O artigo foi publicado
originalmente no site do Cedeca/Ceará e tem por título ―Sou contra a redução da
maioridade penal‖.
174
As orientações e o roteiro confirmam o que vimos levantando ao longo da
análise. Em um primeiro momento, são postas orientações pontuais acerca do
processo argumentativo que remetem para elementos a serem localizados no texto
exemplar oferecido para leitura.
Em um segundo momento, o discurso autoral direciona passo a passo o olhar
do aluno para os elementos que julga serem as características do artigo de opinião,
mobilizando para isso um roteiro de questões. Nessas questões, constatamos que o
discurso autoral retoma o enfoque por nós delineado nas seções anteriores. Esse
enfoque está voltado para o desenvolvimento de capacidades de linguagem,
precisamente de ação e discursiva.
Num último momento, localizado na segunda seção, o discurso autoral sugere
a leitura de outros textos no artigo de opinião, disponíveis no Encarte do Caderno ou
em outros portadores do gênero, a fim de fixar o conhecimento acerca do gênero.
No que concerne ao tratamento do gênero na proposta didática, há um
investimento na seleção de textos modelares no referido gênero, especialmente no
Caderno da 1ª edição, em que se encontra a atividade ora analisada. Em nosso
entender, esses textos selecionados respondem, em certa medida, aos critérios
assumidos pelo discurso autoral para definição do gênero artigo de opinião.
O exemplar escolhido para a atividade de leitura segue bem de perto esses
critérios, pois toca, por sua forma de organização e estruturação, nos elementos do
gênero mais padronizados, como contexto social imediato, elemento temático,
finalidade e categorias ―discursivas‖. A nosso ver, essa condução para os elementos
estáveis e para algumas categorias ―discursivas‖ pode ter sua pertinência até certo
ponto, uma vez que, ao se disponibilizarem textos mais padronizados, favorecem a
apreensão por parte de autores em formação.
Deve-se ressaltar, porém, que essa condução didática restringe o trabalho de
ensino-aprendizagem do gênero por não dar conta da amplitude dos elementos
envolvidos na construção dos textos/enunciados. Isso limita a flexibilidade dos
sentidos neles construídos, desconsiderando o que gênero poderia oferecer de
melhor em um projeto de ensino-aprendizagem de língua materna, principalmente
quando o objetivo é favorecer a formação cidadã.
Neste roteiro e nas respostas oferecidas, os elementos que materializam o
gênero focalizado na atividade de leitura são apresentados como que ―naturais‖,
175
sem motivações e sem possibilidades de efeitos de sentido diferentes. Nada é dito a
respeito das razões pelas quais o autor se posiciona contra a redução da maioridade
penal. O mesmo ocorre a respeito das vozes das quais ele discorda.
Vejamos a ocorrência desse tipo de atividade anteriormente analisada no
Caderno PV da 2ª edição:
176
RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 72-73.
Comparando as atividades das duas edições, percebemos que ocorre uma
pequena mudança no que diz respeito às abordagens de leitura. De uma postura
dedutiva, na 1ª edição, passa-se para um direcionamento mais indutivo em algumas
partes localizadas na primeira seção da atividade, na 2ª edição. Tal modificação está
evidenciada na proposição de momentos diferenciados de leitura, em que se
objetiva, primeiro, oferecer condições para que o aluno ative seus conhecimentos
prévios e antecipe o que está dito no texto/enunciado e os elementos de sua
situação de produção, para, em um segundo momento, verificá-los na leitura do
texto/enunciado.
177
Apesar da mudança de abordagem na primeira parte da atividade entre uma
edição e outra, as instruções acerca das estratégias de leitura e as perguntas postas
remetem mais uma vez para aquilo que observamos em seções anteriores desta
análise a respeito do que está sendo posto como critérios de modelização didática
do artigo de opinião.
Nesse sentido, nesta primeira etapa da primeira seção da atividade,
observamos que, na visão do discurso autoral, é pertinente o ensino dos aspectos
do gênero que dizem respeito à forma e ao conteúdo temático do artigo de opinião
bem como o exercício mesclado de determinadas capacidades de leitura (ativação
de conhecimento de mundo, antecipação de conteúdos e checagem de hipóteses) e
de linguagem (mobilização de representações acerca de alguns elementos da
situação de produção) para que o aluno apreenda esses aspectos.
A seguir, apresentamos o texto exemplar no gênero artigo de opinião inserido
como referência para a realização da atividade:
RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 74-75.
178
179
RANGEL, E.; GAGLIARDI, E ; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008, p. 76-78.
180
181
Podemos perceber que, na transposição didática do gênero da sua esfera de
circulação original para a escolar, houve uma preocupação em manter alguns
aspectos composicionais do artigo de opinião, como título, assinatura, veículo e data
de publicação, pé biográfico e mensagem padrão do jornal, todos elementos
bastante pertinentes para a compreensão do texto/enunciado.
Cotejando essas informações com as intruções e questões postas na
atividade, observamos que o discurso autoral consegue explorar de forma
siginificativa a posição enunciativa do articulista com sua posição social. Na quinta
questão da seção anterior da atividade, observamos que o discurso autoral instiga o
aluno a perceber as relações entre assinatura, informações contidas no pé biográfico
e autor típico do artigo. Notamos também que há a intenção, na sexta questão
contida na segunda seção, de direcionar o aluno para que relacione essas
informações biográficas com a estratégia argumentativa.
De uma perspectiva enunciativo-discursiva, o pé biográfico é um elemento da
composição do artigo que auxilixa na legitimação do caráter sócio-histórico da
autoria no gênero que, ao trazer um conjunto de valorações socioideológicas em um
determinado lugar social, funciona como elemento de legitimação da autoria e status
de competência de seu autor, constituindo-se em um índice importante para a
construção da orientação temática e do sentido do gênero.
A construção dessa imagem de articulista competente e autorizado
socialmente, aspecto que o discurso autoral quer fazer o aluno perceber, legitima
seu ponto de vista, o que o constitui, de antemão, em um discurso autorizado. Esses
aspectos podem ser desvelados no estilo individual do autor que oportuniza
condições
extremamente
favoráveis
para
a
construção
do
sentido
do
texto/enunciado. É lamentável que, apesar de estar, em certa medida, contemplada
a inter-relação entre esses elementos formais e o lugar social, e sua implicação na
posição enunciativa do autor, as questões de estilo se perdem na atividade.
Em relação ao veículo de publicação do texto/enunciado, verificamos que, ora
o discurso autoral localiza melhor com informações o órgão de imprensa em que
circula o texto/enunciado, ora deixa essa tarefa para o professor e o aluno, como é o
caso da atividade por nós apresentada.
182
Isso está evidenciado na sétima questão, da primeira seção da atividade,
onde poderíamos visualizar certa preocupação do discurso autoral em levar o aluno
a relacionar as possibilidades e limites de interpretação do texto ligadas ao seu seu
lugar de circulação. Entretanto, a forma como é posta a questão e a ausência de
outras estratégias de interpretação deixam a cargo do aluno ou do professor (ou
ambos) essa inter-relação.
Em nosso entender, não é adequado deixar essa tarefa para os autores em
formação (professor e aluno), pois, caso eles não consigam realizá-la a contento,
perde-se uma oportunidade excelente para se tratar da autoria interposta no artigo
de opinião, aspecto que, a nosso ver, contribuiria para a compreensão não apenas
da temática do gênero, mas também para a construção do sentido do
texto/enunciado.
A nosso ver, a pouca relevância dada à questão demonstra a pouca
apreciação do discurso autoral sobre a esfera de circulação, deixando entrever que
esse elemento não influencia na constituição/composição dos textos/enunciados.
Essa orientação foi evidenciada por nós, no capítulo 4 desta pesquisa, através da
definição e explicação por parte do discurso autoral a respeito do funcionamento da
esfera jornalística, tomada mais como um suporte do texto de que um lugar sóciohistórico de relações.
Acreditamos que essas informações são muito importantes porque apontam
não só para a função e objetivos pragmáticos da atividade jornalística (informar,
promover a discussão de problemas sociais controverso), mas possibilitam explorar
suas interrelações, interesses e limitações, aspectos esses que são sentidos nas
suas formas de interação, isto é, nos seus gêneros. Estamos falando, portanto, em
função socioideológica do jornalismo.
Em linhas gerais, na segunda etapa da primeira seção da atividade, as
instruções e as questões do roteiro frisam as características temáticas, funcionais e
estruturais do artigo de opinião. Esse direcionamento é bastante recorrente ao longo
do projeto de ensino-aprendizagem do referido gênero, conforme observações já
assinaladas em outros momentos desta análise.
Esses elementos estão sublinhados no texto exemplar posto como referência
de leitura para auxiliar o professor na condução da atividade. A condução que o
discurso autoral faz, através do procedimento de iluminação das propriedades
183
elencadas como características do gênero, nos revela, de certa forma, como está
sendo tratada a discursividade na proposta.
Nesta abordagem, o discurso autoral investe em uma estratégia de leitura,
privilegiando a localização de informações que recaem sobre alguns aspectos do
texto exemplar, como questão polêmica, contexto de circulação, tese, lugar de
enunciação do articulista, argumentos utilizados, interlocutores etc. Assim, nesta
abordagem, o tratamento da ―discursividade‖ está articulado entre aquilo que está
dito no texto e as estruturas discursivas mobilizadas.
Tal abordagem, em boa medida, está ancorada na base teórico-metodológica
da Escola Didática de Genebra, sobre a qual está proposto o trabalho didático com o
artigo de opinião. E em relação à abordagem do gênero, busca-se um enfoque mais
voltado para seus aspectos contextuais imediatos, funcionais, temáticos e
estruturais, isto é, sobre seus elementos mais regulares, pois estão preocupados em
fornecer ―modelos didáticos‖ de gêneros que sirvam ao ensino-aprendizagem de
língua materna.
Nessa perspectiva, em termos didáticos, o gênero é tomado como modelo de
referência para a realização das ações de linguagem, as quais, como dissemos,
para serem realizadas, exigem mais do autor a capacidade de representação do
contexto social imediato de produção e as capacidades de estruturação e
textualização dos conteúdos verbalizados do que necessariamente reflexões acerca
das motivações sociais que levaram autor a produzir um texto/enunciado.
Tal orientação teórica vai desdobrar-se em propostas didáticas que salientam
os aspectos da ordem da enunciação e do texto, mas pouco se detêm em questões
da ordem da discursividade, as quais não ultrapassam o contexto mais imediato de
produção. É o que parece se evidenciar nas instruções e questões postas na
atividade ora em análise, que revelam uma preocupação maior em enfatizar a
presença, nos textos exemplares no gênero, de uma temática controversa de caráter
dicotômico, sua finalidade e estruturação discursiva, tendo como pano de fundo o
contexto imediato de sua produção.
Em decorrência do modelo teórico assumido na proposta didática por nós
analisada, afirmamos que as esferas de circulação têm pouca influência na
constituição
dos
textos/enunciados
postos,
para
estudos
nas
atividades.
Salientamos anteriormente no texto exemplar (artigo de opinião) contido na atividade
184
ora analisada, que a esfera de produção e circulação está sinalizada, mas não se
consideram efetivamente, nas instruções e questões, suas possíveis influências na
constituição do texto exemplar analisado.
O mesmo procede com aquilo que o discurso autoral denomina de
―mensagem padrão do jornal‖, elemento sinalizado, mas sobre o qual não há
nenhuma menção nas atividades. A apreciação de valor sobre esses elementos
revelam que eles têm pouca importância na proposta, cuja função parece restringirse a um suporte de produção e circulação.
A pouca relevância, e até mesmo a forma de compreensão, da esfera de
circulação do gênero artigo de opinião leva, assim como acontece na 1ª edição, a
uma abordagem externa dos elementos da situação de produção, não dando conta
da presença de outros discursos subentendidos no texto.
Esses discursos são postos na atividade como ―posições e/ou debatedores
anteriores‖ e ―os adversários do articulista‖. A terceira e quarta questões, que se
referem a esses elementos, são respondidas de forma vaga, conforme estes
excertos: ―há referências indiretas (não nomeadas)‖, ―nós‖ ―a sociedade civil, a
mídia‖, ―os que dão excessiva atenção à ‗corrupção cultural‘‖. Na resposta à última
questão, o discurso autoral apresenta o destinatário do texto/enunciado exemplar no
artigo de opinião como sendo a ‗opinião pública‘ e a mídia.
As atividades até aqui analisadas apontam, em certa medida, para uma
preocupação do discurso autoral em apresentar um modelo didático do gênero artigo
de opinião, o que não constitui em si um problema, pois está ligado às contingências
dos processos de didatização que todo objeto sofre ao ser transposto para fins de
ensino-aprendizagem. Entretanto, ao mesmo tempo que é interessante trabalhar
diversos textos exemplares no gênero para evidenciar o que é modelar, é preciso
também atentar para os aspectos que se modificam nesses textos, ligados, de certa
forma, ao autor concreto, ao contexto de produção e ao leitor presumido numa
dimensão imediata e ampla. Para isso, seria necessária uma efetiva articulação
entre esses elementos aos aspectos modelares do gênero. A nosso ver, tal
encaminhamento fica a desejar na proposta.
A título de exemplificação, podemos observar o tratamento dado à temática
do gênero que o discurso autoral, no intuito de manter a definição conceitual
assumida na proposta didática, não explora a especificidade desse aspecto do
185
gênero em sua ocorrência concreta nos textos/enunciados. Isso pode ser, de certa
forma, evidenciado na questão e resposta de interpretação da temática contida na
segunda seção da atividade ora analisada.
Em nosso entender, a temática delineada no texto/enunciado exemplar na
atividade não constittui em si uma polêmica e nos leva a afirmar que há uma
intenção de forçar a questão como de fundo controverso para inserir no modelo de
gênero construído na proposta, até porque, sem a questão polêmica, em sua
perspectiva, não existe artigo de opinião. Esse tratamento didático nos faz pensar
em algumas questões: 1. Essa lacuna seria uma estratégia de facilitação do trabalho
do professor? 2. Se a resposta for sim, tal estratégia seria legítima numa proposta
que se coloca com o objetivo de formar o professor para trabalhar com os gêneros?
Percebemos que o foco de tematização da atividade em sua última etapa são
os argumentos utilizados pelo autor para defender seu ponto de vista e seu
endereçamento para o seu leitor. O discurso autoral apresenta uma síntese dos
argumentos,
cuja
organização
composicional
dá-se
em
níveis
graduais,
apresentados na análise autoral por tipos de argumentos.
Acreditamos que, em lugar de tipos de argumentos, os autores poderiam
explorar a síntese como sendo a forma composicional do texto analisado. Essa
entrada possibilitaria, inclusive, explorar melhor o destinatário do artigo de opinião
que, da forma como foi apresentada pelo discurso autoral, fica desarticulado do
todo.
Afirmar que dá para subentender esse destinatário ―pela linguagem utilizada‖,
―pela tese e pelos argumentos usados em defesa‖ não leva o aluno a compreender
como isso acontece efetivamente no texto. Perguntaríamos aqui: que linguagem?
Trata-se de modalidade ou estilo? Não há em nenhum momento exploração desses
elementos nas questões que objetivavam levar o professor e os alunos à
compreensão do referido texto.
Assim, o destinatário do enunciado não pode ser percebido apenas no
conteúdo, mas na forma composicional e no estilo, ou seja, na sua totalidade
discursiva. Ainda que o interlocutor do autor sejam os formadores de opinião, é
preciso mostrar no todo do enunciado como esse elemento constitutivo do discurso
é sentido, como sua presença é marcada e influencia por dentro o texto.
186
Acreditamos que, para despertar a réplica ativa do ouvinte-aluno, o caminho
deveria ser outro. É interessante buscarmos novamente Bakhtin (2003[1952-1953])
que nos dá algumas orientações para o tratamento dessa questão:
O enunciado se verifica um fenômeno muito complexo e multiplanar se não
o examinamos isoladamente e só na relação com o seu autor (o falante),
mas como um elo na cadeia da comunicação discursiva e da relação com
outros enunciados a eles vinculados (essas relações costumavam ser
descobertas não no plano verbalizado — estilístico-composicional — mas
tão somente no plano semântico-objetal) (BAKHTIN, 2003[1952-1953], p.
299).
A nosso ver, a proposta ora em análise peca por essa desarticulação entre o
plano verbalizado (estilístico-composicional), o plano semântico-objetal (conteúdo
temático) e a situação de comunicação que envolve o autor sociossituado e seu
querer dizer endereçado para alguém.
Percebemos a ausência de um tratamento mais direcionado para os traços
estilísticos do texto em busca da construção do sentido para o mesmo. O discurso
autoral pouco se detém nessa questão e, quando o faz, trata-o desarticuladamente
dos textos usados como exemplares do gênero. É o que demonstram as atividades
contidas na décima unidade em que se propõem aos alunos exercícios de uso de
conectores
e
operadores
argumentativos
em
frases
descontextualizadas,
cuidadosamente nomeadas de ―pequenos textos‖, na primeira seção, e produção de
―textos breves‖, como pretexto para para uso dessas unidades linguísticas.
Se tomarmos os textos/enunciados como respostas ativas a enunciados
precedentes de determinada esfera de atividade, veremos que os traços estilísticos
e a forma composicional marcados no discurso apontam para relações diálogicas
vivas, que dinamizam esses objetos, porque:
O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas, e sem levá-las em conta é
impossível entender até o fim o estilo de um enunciado. Porque a nossa
própria idéia — seja filosófica, científica, artística — nasce e se forma no
processo de interação e luta com os pensamentos dos outros, e isso não
pode deixar de encontrar o seu reflexo também nas formas de expressão
verbalizada do nosso pensamento (BAKHTIN, 2003[1952-1953], p. 298).
Acreditamos que o conceito de dialogismo poderia ser muito producente para
modelizar
uma
proposta
didática
de
ensino
aprendizagem
dos
gêneros
187
textuais/discursivos, principalmente do gênero artigo de opinião, no âmbito de um
projeto de ensino que toma como objetivo a formação cidadã. Quando o que se
persegue numa proposta didática é fazer os alunos perceberem essas relações
dialógicas que constituem os textos/enunciados, abre-se um leque de possibilidades
para que esses alunos avancem na construção dos sentidos para o que lêem e
escrevem, criando-se condições para que se tornem efetivamente leitores e
escritores críticos e letrados.
Entretanto, os critérios para modelizar o gênero, percebemos, foram os de
domínios sociais de comunicação, as estruturas discursivas e as capacidades de
linguagem. Tais critérios têm sua pertinência à medida em que, sendo transversais
aos gêneros, funcionariam como um esquema generalizado de apropriação de suas
propriedades e, quando devidamente apropriados, daria aos alunos certa autonomia
e desempenho na produção e compreensão dos diversos gêneros. Por outro lado,
eles restringem o tratamento dos elementos específicos dos textos/enunciados,
direcionando o enfoque mais para as questões de funcionalidade, composição ou
estruturação, limitando o tratamento da discursividade.
Percebemos que, nas atividades, a apreciação do discurso autoral incide, em
maior ênfase, sobre aspectos voltados para a estruturação ou composição retórica e
textual, sobre a alimentação temática (assunto) e o tratamento, em menor ênfase, de
alguns elementos gramaticais de ordem lógico-argumentativa. Com base no que
vimos demonstrando na análise, a ―discursividade‖ é tratada em sua funcionalidade
prágmática.
188
CONCLUSÃO
Finda a análise do projeto de ensino-aprendizagem do artigo de opinião do
Caderno PV, podemos apresentar nossas considerações finais.
Por nossa pesquisa inserir-se nos pressupostos do paradigma sócio-histórico
e cultural no ensino-aprendizagem de língua materna em contexto escolar,
buscamos compreender, primeiro, os postulados do Círculo de Bakhtin acerca da
produção de linguagem e suas interrelações com a ideologia, a fim de que nos
subsidiassem nas reflexões teóricas sobre a produção discursiva nos enunciados.
Dadas as contingências de nosso objeto de pesquisa, recorremos às
formulações de Vygotsky acerca do ensino-aprendizagem e tivemos também que
compreender o modelo didático da Escola de Genebra, pois é nele que se
fundamenta o projeto de ensino por nós analisado. Como frisamos em algumas
ocasiões de nosso trabalho, essa Escola relê e revê alguns referenciais conceituais
de Bakhtin e Vygotsky para propor seus encaminhamentos didáticos.
No percurso analítico, procuramos investigar a organização geral da proposta
e sua base teórico-metodológica, por acreditarmos que um dos fatores de
acabamento de um material didático está ligado à avaliação que o discurso autoral
realiza sobre os seus objetos de ensino-aprendizagem, em boa medida sustentado
pela fundamentação teórico-metodológica assumida. Essa inter-relação faz-se sentir
na modelização didática efetuada, foco de outra etapa de nossa investigação, a fim
de desvelar o tratamento dado à discursividade no projeto de ensino.
Na confluência dos caminhos teóricos e analíticos, colocamos como linhamestra de investigação a busca por respostas para a questão do tratamento da
discursividade nos textos/enunciados. Subjacente a esse objetivo estava nossa
preocupação em desvelar as condições de letramento em favor da formação cidadã
dos alunos das escolas públicas brasileiras criadas por materiais didáticos que se
apresentam como inovadores. Sendo assim, achamos relevante retomar nossas
questões de pesquisa, a fim de melhor expor nossos achados.
189
Com o objetivo de entender a organização geral e a base teóricometodológica da proposta didática do projeto de ensino do artigo de opinião,
orientamos nossa investigação pela seguinte questão:
1.Como se organizam teórica e metodologicamente a 1ª e a 2ª edições do
Caderno PV, da OLPEF, voltadas para o ensino-aprendizagem do gênero artigo de
opinião?
Em relação à organização teórico-metodológica, no Caderno PV, da 1ª
edição, ocorreu uma mescla entre abordagens de perspectiva discursiva e textual,
cuja oscilação pode ser sentida nas definições de concepção de linguagem, do
funcionamento e constituição dos gêneros e suas instâncias de produção, circulação
e recepção e do funcionamento e finalidade do jornalismo como também na defesa
das finalidades legadas ao ensino.
No Caderno da 2ª edição, na introdução à proposta ainda se sentia a mescla
entre a perspectiva discursiva e textual na definição de alguns elementos do gênero,
por exemplo, no esforço do discurso autoral em definir um conceito de jornalismo
que culminou numa definição, em certa medida, equivocada. Mostrou-se também
em uma passagem em que se abordava a dimensão ideológica da linguagem,
elemento que, infelizmente, não se desdobrou nas atividades.
Nesta 2ª edição, notamos, como predominante, uma preocupação mais
consciente em assumir uma abordagem mais textual articulada a uma perspectiva
retórica. Nesse movimento, percebemos que o discurso autoral procurava apagar
possíveis marcas que podiam comprometê-lo com uma abordagem discursiva,
limpando referências bibliográficas, termos e nomenclaturas que poderiam ser, com
esta abordagem, identificados, conforme assinalamos no capítulo 4 desta pesquisa.
No que diz respeito aos objetivos gerais do Programa (formar o professor
para o trabalho na perspectiva dos gêneros textuais) e do projeto de ensino do artigo
de opinião em si (ensinar o artigo de opinião para desenvolver as capacidades de
argumentação favoráveis à formação cidadã), esta oscilação teórica não
representou aparentemente nenhuma modificação.
A abordagem textual que predomina na fundamentação teórica da proposta,
tanto na 1ª quanto na 2ª edição, é a perspectiva da Escola de Genebra,
190
conscientemente assumida pelo discurso autoral não apenas na escolha do modelo
didático dessa escola para projetar o ensino-aprendizagem do artigo de opinião, mas
também nos elementos que foram sendo delineados e que constituíram os critérios
utilizados na elaboração da sequência didática do gênero artigo de opinião.
Assim, já na fundamentação teórica, o discurso autoral nos permitiu entrever
quais aspectos do gênero estavam sendo apreciados e privilegiados na forma como
descrevia e apresentava as características do artigo de opinião. Em consonância
com a noção de gênero adotada, pudemos antecipar, de certa maneira, que, no
âmbito do projeto de ensino contido no Caderno PV, os elementos considerados
importantes
para
serem
ensinados
seriam
seus
aspectos
funcionais
e
composicionais retóricos textuais.
E aqui, com o objetivo de investigar o tratamento discursivo recebido pelo
artigo de opinião no processo de sua didatização, no Caderno PV da OLPEF,
começamos a envidar mais algumas considerações, a fim de responder nossa
segunda questão de pesquisa:
2. De que forma as atividades propostas para a didatização do artigo de
opinião no Caderno PV, da OLPEF, tratam a discursividade?
Conforme pudemos demonstrar, nas análises das atividades do Caderno PV,
apesar de haver uma preocupação em fornecer ao professor e ao aluno uma base a
respeito da situação de produção e fornecer subsídios para a alimentação da
temática do artigo de opinião, o discurso autoral, para dar conta da estruturação
textual, mesclou o emprego de categorias sociopsicológica de perspectiva textual
como as ações de linguagem dominantes implicadas no uso do artigo de opinião
(tese, sustentação, refutação) com categorias ―discursivas‖ de perspectiva retórica
(dados, conclusão, justificativas, suporte, modalizador e refutação). Além disso,
essas categorias foram complementadas com a exploração de tipologias textuais, na
2ª edição, e, algumas vezes, capacidades leitoras cognitivistas.
Em relação ao modelo ―discursivo‖ de argumentação, buscado nos aportes da
retórica, sua inserção no projeto representou mais um acúmulo de categorias para o
professor e para o aluno sem que representasse algo efetivamente relevante que a
categoria anteriormente trabalhada não pudesse atender. Além disso, esse modelo
191
apresentado de forma tão resumida, em vez de constituir uma opção teórica
alternativa ao professor, como talvez possa ter objetivado o discurso autoral, tornou
a proposta de mais difícil compreensão.
A nosso ver, trata-se de categorias retóricas com as quais a maior parte do
professorado não tem nenhuma familiaridade, portanto, exigem tempo para
formação nessa perspectiva, o que não pode ser realizado através de breves
definições no âmbito do próprio projeto de ensino. Diante disso, há que se escolher,
formar o professor ou aluno. Caso contrário, não acontece nenhuma uma coisa, nem
outra. Nossa experiência mostrou que o professor prefere desconsiderar tais
orientações e enveredar por caminhos mais conhecidos, como é o caso da tipologia
textual, cuja inserção na proposta foi por nós interpretada como uma apreciação do
discurso autoral sobre seus destinatários professores no sentido de que conhece e
considera os conhecimentos destes.
Além disso, se o objetivo da proposta for verdadeiramente contribuir para a
formação de produtores de textos significativos em favor do exercício da cidadania,
talvez fosse interessante amenizar a importância dessas categorias em prol de
outras. Isso porque, a ênfase nas categorias de linguagem e nas tipologias textuais,
ainda que se justifique na proposta, pode trazer o risco de os professores reduzirem
a amplitude e profundidade da discursividade e da enunciação aos aspectos formais
e textuais do gênero, porque estão mais familiarizados com eles. Rojo (2005)
adverte que isso impediria uma compreensão mais efetiva dos aspectos enunciativodiscursivos envolvidos na mudança de enfoque que um trabalho baseado em gênero
pode trazer.
Apesar de o projeto enfocar o gênero artigo de opinião e trabalhar um
contexto de comunicação e uma temática específica, de envidar esforços por
diferenciá-lo de outros gêneros da esfera jornalística, como a notícia, de apresentar
uma autoria típica, as definições e explicações utilizadas pelo discurso autoral não
davam conta de diferenciá-lo de outros gêneros de caráter também opinativoargumentativo, a exemplo da temática controversa, marca principal de diferenciação
do artigo de opinião no projeto didático, que pode estar presente em um editorial,
carta aberta, ensaio etc. O mesmo se pode afirmar quanto à estruturação discursiva
apresentada. Já em relação à autoria típica e ao lugar de produção e circulação do
gênero artigo de opinião, além de apresentar algumas definições equivocadas e
192
generalizadas (como no caso do leitor típico do artigo, da função socioideológica do
jornalismo) não adquirem grande relevância no projeto de ensino.
Além disso, raramente as atividades conseguiam realizar um trabalho
eficiente de articulação entre o contexto de comunicação, a temática, a estruturação
textual e os recursos expressivos ou estilísticos. Isso se evidenciou na pouca
consideração das capacidades linguístico-discursivas no projeto de ensino, quando
contempladas, era de forma desarticulada, focalizando apenas alguns elementos de
ordem lógico-argumentativa com base em frases ou situações descontextualizadas.
Esteve ausente da proposta uma exploração das marcas linguísticas como escolhas
direcionadas para determinados efeitos de sentido do texto/enunciado, em dada
condição de produção.
Observamos também que a capacidade de negociação estava praticamente
ausente em todo o projeto de ensino-aprendizagem do artigo de opinião. É
interessante ressaltar que o próprio modelo didático em que se fundamenta a
proposta inclui a negociação como uma capacidade de linguagem importante no
domínio dos gêneros da ordem do argumentar, na qual se insere o artigo de opinião.
Considerando que os destinatários presumidos no projeto de ensino do artigo de
opinião são alunos de escolas públicas cursando as últimas duas séries do Ensino
Médio, ainda que essa seja a mais complexa das capacidades argumentativas, seria
indispensável contemplá-la no projeto. Em nosso entender, sua ausência na
proposta está ligada a estratégias de modelização no que diz respeito à definição da
temática do artigo de opinião.
Modelizada como de fundo controverso, reduzida a dois pólos divergentes,
fecha-se a possibilidade para a negociação. Como observamos na análise, se por
um lado essa estratégia didática pode facilitar a compreensão da interação no artigo
de opinião na forma como desejam os autores, por outro, limita a compreensão das
relações dialógicas que, se consideradas em sua variedade e matizes, poderiam
contribuir de forma mais efetiva para a concretização dos objetivos do projeto em
prol da formação cidadã. Essa visão da temática do artigo de opinião está ligada, em
termos, à adoção de aspectos da retórica que, conforme afirmamos na análise das
atividades no capítulo 5, não influenciam apenas na modelização da estrutura
discursiva do gênero, mas também em elementos de seu contexto de produção.
193
Assim, a proposta perde uma grande oportunidade de operacionalizar um
elemento, como as relações dialógicas, que poderia trazer contribuições pertinentes
para a concretização dos seus objetivos pretendidos, utilizando um gênero como o
artigo de opinião, bastante produtivo no que diz respeito à questão da formação do
autor e leitor crítico, uma vez que materializa, de maneira mais nítida, as relações
discursivas instauradas nos textos/enunciados exemplares desse gênero. Em vez
disso, algumas vezes, a proposta resvala até mesmo para perspectivas fundadas
em tipologias textuais: introdução, desenvolvimento e conclusão.
O caminho proposto para o estudo do gênero artigo de opinião é trabalhar
suas regularidades e categorias ―discursivas‖ transversais a ele, quando diz respeito
à sua estruturação composicional. E isso reverberou em uma ―discursividade‖
limitada ao contexto de comunicação, que poderá responder adequadamente à
construção da significação dos textos/enunciados, mas pode não ser producente
para a construção/reconstrução dos efeitos de sentidos produzidos por esses
objetos discursivos.
Em nosso entender, esses estudos transversais sobre a argumentação não
consideram as especificidades dos gêneros. Um artigo de opinião pode muito bem
se apresentar sem estar necessariamente organizado em torno de uma tese,
sustentada por argumentos hierarquizados em termos de sustentação e refutação.
Como bem assinalam Rojo e Cordeiro (2004, p. 10), há possibilidade de
recorrências a outras estratégias de introdução como um relato, um depoimento,
para chegar à opinião. Ocorrências desse tipo não faltaram nos textos exemplares
inseridos no projeto como base para o desenvolvimento das atividades.
No que diz respeito às instâncias de enunciação, o discurso autoral
considerou as três instâncias básicas — articulistas, temática, leitores (estes de
forma bem genérica) — tomadas mais em sua individualidade. Em relação aos
articulistas, deu-se pouco relevo ao lugar sócio-histórico de onde esses autores
assumiam suas posições, que poderiam encaminhar o trabalho para considerações
acerca das correlações de forças ideológico-valorativas envolvidas na produção e
compreensão dos discursos. Isso se mostrou também na pouca consideração ou
consideração equivocada do papel sócio-histórico do jornalismo, conforme
demonstramos no capítulo 4.
194
Sobre a organização didática, a grande aposta do Programa é o modelo
didático adotado na construção da proposta de ensino-aprendizagem do gênero,
deixando entrever que nisso consiste sua marca diferencial e de inovação. Em certa
medida, a adoção desse modelo didático fundado no procedimento da sequência
didática aponta para a postura dos autores criadores a respeito de como se aprende
e como se ensina língua materna.
Concordamos que a metodologia assumida permite (o que nem sempre
ocorreu nas atividades) um trabalho indutivo e reflexivo no tratamento didático dos
objetos de ensino, expresso, na proposta, na forma como dispõem sua organização
local: apresentação da situação de produção, primeira produção textual, atividades
que recortam as propriedades do gênero enfocado e produção final. Trata-se de
uma abordagem metodológica que orienta passo a passo, como usam os autores
criadores, no ensino-aprendizagem do objeto proposto na forma de imersão e não
de ―visitação‖. Há um trabalho de complexificação em nível local no interior do
projeto de ensino. Nesse movimento, vários instrumentos são mobilizados e
disponibilizados, a fim de facilitar o processo de apropriação das formas de
linguagem objetivadas na proposta didática.
Concordamos com o potencial de tal metodologia em um trabalho que tome o
ensino-aprendizagem dos gêneros textuais/discursivos como mega-instrumentos.
Conjecturamos, porém, que a instrumentalização excessiva do gênero, apesar da
justificativa dos autores genebrinos focada na validade didática, pode levar ao seu
fechamento, restringindo, assim, seus potenciais discursivos. O fechamento ou o
acanhamento dos processos discursivos no tratamento didático faz com que se
perca o que o gênero textual/discursivo possa oferecer de melhor enquanto objeto
ou espaço de ensino-aprendizagem de língua materna.
Pensando ainda no contexto da educação básica brasileira — em que nossos
alunos se encontram em condições de letramento bastante distante do desejado e,
por isso, o apelo a práticas de letramento que favoreçam a formação desses alunos
em favor da cidadania, de forma que a escola construa um sujeito autônomo, crítico
e participativo de seu tempo-espaço sócio-histórico — acreditamos que o tratamento
da discursividade, ou seja, a construção de sentidos é bastante proveitosa em um
processo de ensino-aprendizagem de língua materna que ainda toma como eixo a
apreensão/(re)conhecimento de fórmulas textuais, genéricas etc.
195
A escolha do tema geral do concurso — ―O lugar onde vivo‖ — previamente
definido e que funciona como pano de fundo da proposta responde bem às
necessidades postas pela contemporaneidade de articulação entre o local e geral,
na medida em que deverá ser adaptado e direcionado a um tema específico, mas
que tenha relevância social, escolhido pelo professor e pelos alunos participantes
para ser desenvolvido na produção textual.
Concordamos com o discurso autoral que este tema contribui para a
valorização da interação entre crianças e jovens entre si e o meio em que vivem, o
que pode possibilitar o conhecimento e estreitar os vínculos com a comunidade
como também possibilita, com a escolha desse tema, que o aluno se aproprie da
escrita aplicada a contextos específicos e significativos para ele. Entretanto, na
operacionalização da proposta, o discurso autoral privilegia os elementos estáveis
do gênero enfocado, em detrimento da exploração de aspectos que poderiam
favorecer a formação crítica do leitor e autor de textos. Acreditamos ser esse
enfoque decorrente da ênfase da proposta na formação do produtor proficiente de
textos, e isso acarreta algumas restrições para o objetivo a que se propõe.
A nosso ver, o enfoque no produtor proficiente é decorrente da base teóricodidática adotada. Conforme apontamos no capítulo 2, há um privilégio, nas
propostas e encaminhamentos curriculares dos didatas genebrinos, da formação do
produtor proficiente, em prejuízo da formação do leitor e autor críticos. No entanto,
entendemos que esses didáticos, quando elaboraram a proposta didática e
propuseram seus encaminhamentos, tinham em vista um contexto específico de
ensino — o de Genebra.
Em vista disso, pontuamos que, no contexto de ensino brasileiro,
principalmente o público, essa proposta didática precisaria ser adaptada, inclusive,
sofrer um realinhamento de enfoque, porque, os resultados de exames de
avaliações externas, como também os estudos acadêmicos, apontam que as
necessidades mais urgentes do ensino público brasileiro é favorecer a formação do
leitor crítico. Observamos ainda que a formação do produtor proficiente ou autor
passa pela formação do leitor crítico e vice-versa. Por isso, essas duas formações
não podem ser feitas separadamente.
Por isso, advogamos uma abordagem que abranja o artigo de opinião em sua
discursividade e dimensão sócio-histórica, atentando para os aspectos do seu
196
processo de produção, circulação e recepção, para as dimensões ideológicas
envolvidas nessas inter-relações, bem como para os aspectos da forma
composicional e expressões linguísticas que dão contornos ao estilo autoral ou ao
estilo do gênero e contribuem para a reconstrução dos sentidos. Nessa perspectiva,
mesmo as categorias transversais ao artigo de opinião poderiam ser mais bem
trabalhadas, desde que se buscassem os efeitos de sentidos produzidos pela opção
de uma ou outra, pelos interesses ideológicos em jogo etc.
Por esse caminho talvez fosse possível a construção de projetos de ensino
mais relevantes para a construção dos sentidos dos textos/enunciados, o que, em
nosso entender, deve ser perseguido numa proposta que pretende formar o aluno
produtor de textos significativos em favor do exercício da cidadania. Tal formação
prescinde de um trabalho articulado entre leitura e produção, o que não se efetivou
na proposta, a qual está bastante voltada para a formação do produtor de texto,
podendo tal afirmação ser comprovada pelos tipos de atividade de leitura propostos.
Neles, a condução da leitura objetivava mais o (re)conhecimento de aspectos
composicionais e funcionais necessários para a produção textual, que o
desenvolvimento da capacidade de compreensão crítica do texto.
Como bem nos lembra Rojo (2005), diante da realidade escolar brasileira com
seus acentuados problemas de iletrismo, a necessidade dos alunos é de terem
acesso letrado a textos de opinião entre outros. Para isso, há que se investir em
propostas de ensino que despertem para a réplica ativa e para a flexibilidade dos
sentidos na polissemia dos signos e não apenas em propostas qe ensinem os
alunos a reconhecer, localizar e repetir os significados e as formas dos textos.
Esperamos que este trabalho tenha contribuído para os estudos de
Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Materna e para as Políticas de Ensino na
medida em que traz em seu bojo análises de materiais didáticos específicos,
bastante subsidiados pelo poder público, e que adentram a escola sem serem
avaliados institucionalmente, e estarem ainda pouco avaliados academicamente.
197
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