Gastronomia e turismo: a presença dos ingredientes nos pratos tradicionais
Krisciê Pertile1
Susana Gastal2
Resumo: O presente artigo busca uma maior e melhor compreensão da região turística da Serra Gaúcha,
destacando-se o município de Bento Gonçalves-RS, no qual a gastronomia é um dos principais fatores na
composição do atrativo turístico, em especial os associados às ruralidades. Para tanto optou-se por analisar o
livro de receitas Colônia Italiana: os sabores de sua culinária, editado em 2006, a partir de um projeto
desenvolvido pela Associação Sulina de Crédito e Assistência Rural - Ascar em conjunto com a Associação RioGrandense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural - Emater e com a Secretaria de
Turismo de Bento Gonçalves/RS. A pesquisa aqui apresentada, buscou levantar dados quantitativos e
qualitativos a partir das receitas, que possibilitassem a identificação de traços culturais presentes na
gastronomia local. Observa-se a grande utilização de ingredientes ricos em calorias e basicamente gordurosos.
Palavras-chave: Turismo, gastronomia, receitas, ingredientes.
Introdução
A história cultural de um local está presente e demarcada em prédios e monumentos,
dispostos no espaço público. Não menos significativos são os saberes e fazeres locais que se
constituíram no percurso do tempo, dentre eles, a gastronomia. Significa dizer que a história de uma
região tem na gastronomia praticada localmente, um viés importante para o melhor entendimento
dos modos de ser locais. Entretanto, registrar sua importância cultural, social e turística, assim como
sua presença nos cotidianos, não significa afirmar que a mesma não apresente fragilidades na sua
preservação, a demandar políticas de proteção. Movimentos nacionais e estrangeiros, como as
diretrizes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, no Brasil, ou a filosofia e
práticas do Slow Food, na Itália e em suas ramificações por diversos países, tem encaminhado ações
no sentido de uma maior conscientização sobre a produção, consumo e mesmo a proteção a
alimentos classificados pelos órgãos especializados patrimonialistas, por seu valor imaterial.
Nos pratos das culinárias, associam-se ingredientes, receitas, técnicas e rituais de preparo e
consumo, portanto materialidades e imaterialidades, com predomínio das últimas. Receitas,
organizadas em singelos cadernos domésticos ou publicadas em livros luxuosos, são as mais
facilmente preservadas. Já os ingredientes, mesmo que citados nas receitas, podem desaparecer.
Mas, os de fato mais frágeis são as técnicas e os rituais associados à preparação dos pratos, parte de
um acervo que, antes do que coletivo, é muitas vezes pessoal.
1
Mestranda em Turismo pela Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]
Doutora. Professora e pesquisadora do Mestrado em Turismo da Universidade de Caxias do Sul. E-mail:
[email protected]
2
1
O presente artigo busca uma maior e melhor compreensão da região turística da Serra
Gaúcha, destacando-se o município de Bento Gonçalves-RS, no qual a gastronomia é um dos
principais fatores na composição dos seus atrativos turísticos, em especial os associados às
ruralidades, fortemente presentes nos roteiros Vale dos Vinhedos 3 e Caminhos de Pedra4. Os dois
roteiros se constituem a partir da herança ali deixada pela presença de imigrantes vindos da Itália
nas décadas finais do século XIX. Os italianos, se por um lado trouxeram consigo a tradição da
produção de vinhos, por outro, vivenciaram as dificuldades dos primeiros tempos de ocupação do
território, que levaram à valorização da mesa farta como significado de bem viver. Essa herança se
hibridizou na região, a partir da convivência com outras vertentes migratórias, mas também porque
as receitas trazidas da Europa precisaram adaptar-se aos ingredientes e temperos encontrados no
novo território. Esses processos culturais, por um lado, tornam as expressões locais ricas e
diversificadas; mas, por outro lado, podem induzir uma leitura difusa dos modos de ser locais, em
especial os impressos na gastronomia, dificultando a preservação e originalidade de receitas,
ingredientes e modo de preparo.
Nesses termos, o presente artigo analisa o livro de receitas Colônia Italiana: os sabores de
sua culinária, editado em 2006, a partir de um projeto desenvolvido pela Associação Sulina de
Crédito e Assistência Rural – ASCAR, em conjunto com a Associação Rio-Grandense de
Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural - EMATER e com a Secretaria de Turismo de
Bento Gonçalves/RS. O projeto, segundo a EMATER, tinha como objetivo comemorar os 50 anos da
extensão rural no município, através do resgate de sua culinária tradicional. As receitas foram
obtidas a partir de eventos realizados em cinco distritos de Bento Gonçalves: Pinto Bandeira, Tuiuty,
Vale dos Vinhedos, Faria Lemos e São Pedro.
É relevante destacar alguns pontos do Regulamento, que poderão contribuir para o
entendimento de dados posteriores pesquisados. Em seu artigo terceiro, dizia-se que a participação
estaria aberta a “qualquer cidadão interessado desde que inscrito dentro do prazo previsto”. Outro
artigo, o quinto, colocava como exigência que, já no ato da inscrição, o participante deveria anexar
uma cópia da receita, “por escrito, contendo o nome da receita, os ingredientes e o modo de
preparo, bem como algum fato ou história que se relaciona a mesma”. Cada participante poderia
3
O Vale dos Vinhedos abarca três municípios: Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul, todos no Rio Grande do Sul
– Brasil. Tem destaque nacional em enoturismo. As primeiras vinhas foram plantadas por imigrantes italianos, chegados a
partir de 1875.
4
O roteiro turístico Caminhos de Pedra baseia-se na busca por reconstruir a italianidade presente na arquitetura, assim
como outras expressões culturais ali presentes. Em 1992, recebeu oficialmente o primeiro grupo de turistas. Os visitantes
que ingressam no roteiro através do bairro, atualmente denominado Barracão, estarão possivelmente utilizando a mesma
porta de entrada percorrida pelos primeiros imigrantes a chegar à região.
2
participar com uma única receita de pratos salgados e doces, ou bebidas. O concurso, do qual
resultaram as receitas publicadas no livro, avaliou “valorização da culinária tradicional quanto à
forma de fazer e seus ingredientes, identidade cultural preservando os costumes regionais, sabor e
apresentação”. Foram selecionadas dez receitas em cada distrito, consideradas como representativas
da sua culinária tradicional local.
Considera-se a amostra para a presente análise, portanto, como aleatória, mesmo que
constituída após concurso público, considerados como universo o Vale dos Vinhedos e o Caminhos
de Pedro. Como o critério de inscrição foi o da apresentação da receita por escrito, tal procedimento,
com certeza, precarizou a necessária recuperação de técnicas e rituais que acompanham o preparo
dos pratos, daí a presente análise priorizar ingredientes. Para este artigo optou-se, ainda, por
analisar somente as receitas de doces e de salgados, excluindo-se as bebidas, o que totalizou 98
itens, cujos ingredientes presentes na sua composição foram listados e, a seguir, sistematizados de
forma quantitativa. A análise dos resultados obtidos buscou associá-los, qualitativamente, a
informações presentes na literatura sobre comportamentos locais, possibilitando a identificação de
traços culturais significativos, na relação com o alimento.
1 Gastronomia e cultura
Para Gimenes, “só se torna comida o alimento que é aceito culturalmente dentro de um
determinado grupo de indivíduos” (2011, p.21). Assim, o gosto alimentar será determinado não
somente pela fisiologia, mas também pela cultura na qual o sujeito esteja inserido, tornando o
alimento e, consequentemente, a gastronomia, em um produto identitário. Na mesma linha de
reflexão, Schlüter afirma que “a alimentação é um processo consciente e voluntário que se ajusta a
diferentes normas segundo cada cultura, e no qual o ser humano é socializado desde o seu
nascimento” (2003, p. 13).
O costume alimentar pode revelar de uma civilização desde a sua eficiência
produtiva e reprodutiva, na obtenção, conservação e transporte dos gêneros de
primeira necessidade e os de luxo, até a natureza de suas representações políticas,
religiosas e estéticas. Os critérios morais, a organização da vida cotidiana, o sistema
de parentesco, os tabus religiosos, entre outros aspectos, podem estar
relacionados com os costumes alimentares (CARNEIRO 2005, p.72).
Mesmo no caso em que culturas diferenciadas encontrem-se em um mesmo espaço
geográfico, seus hábitos alimentares podem ser distintos, pois a formação do gosto extrapola a
geografia, para ele contribuindo fatores diversos e diversificados, como colocado. Assim, o que causa
estranhamento a um indivíduo pode simplesmente determinar traços da sua cultura e da sua
3
história, porque, “[...] aquilo que cada um vê na cultura do outro – e que o choca – lhe é ditado pelo
sistema de representações da sua própria cultura” (FISHLER e MASSON, 2010, p. 20).
Tratar de cultura supõe considerar patrimônio material ou imaterial como a “construção ou
invenção de uma ponte entre o passado e o futuro de uma sociedade, símbolo da transmissão de
conhecimentos entre gerações e é em geral associado a identidades que falam sobre determinado
grupo ou comunidade” (COLLAÇO, 2009, p.220-221). Na concepção contemporânea, a gastronomia
tem sido entendida como o estudo das relações entre a cultura e a alimentação, incluindo os
conhecimentos das técnicas culinárias, do preparo, da combinação e da degustação de alimentos e
bebidas e, ainda, dos aspectos simbólicos e subjetivos que influenciam e orientam a alimentação
humana (GIMENES, 2010).
À medida que há a apropriação da gastronomia como produto turístico, coloca-se a prova e
se expõe a cultura local, inserida no alimento, a julgamentos e comparações que,
[...] embora plena de boas intenções, nem sempre os resultados condizem com as
expectativas [...]. Na verdade, as cozinhas distanciadas de suas práticas sociais e
culturais as tornam apenas imitações vazias para preencher a ânsia por novas
experiências que, em parte, são consideradas necessárias para ser um verdadeiro
cosmopolita. Do outro lado, restaurantes reproduzem cenários e pratos que não
falam dessas relações e mais se parecem a parques temáticos (COLLAÇO, 2009, p.221).
Assim, determinadas práticas alimentares seriam, ocasionalmente, banalizadas, no intuito de
torná-las mais adequadas a uma gama ampla de paladares levando a que, na sua concepção mais
radical, as cozinhas regionais possam ser, numa visão mais radical, “tomadas como um conjunto de
receitas que serão destinadas à exploração comercial” (COLLAÇO, 2009, p.222). Além da
problemática em torno da possível transformação de hábitos culturais em motes turísticos –
destaque-se, nem sempre por demanda dos turistas –, a gastronomia local teve incorporado às
receitas, ingredientes que por vezes não faziam parte da tradição e/ou comunidade na qual se
encontrava inserida, seja pelos processos migratórios, em que os novos territórios não fornecessem
determinadas matérias-primas, ou pela estagnação do plantio. Logo, as receitas tenderiam a perder
suas marcas tidas como originais, em termos de ingredientes e modos de preparo, diante de pratos
reinventados sob novas circunstâncias.
A questão difícil de equacionar seria: até que ponto um prato pode mudar, para que se
atualize a demandas ambientais ou culturais diferentes das suas de origem, sem, digamos, deixar de
ser associado à tradição local e, como tal, continuar sendo compreendido e comercializado como
culturalmente presente. Aqueles que defendem a manutenção das tradições culinárias, mesmo em
situações talvez adversas, o fazem como “forma de preservação de uma memória que foi
4
selecionada e introduzida em uma nova gramática” (COLLAÇO, 2009, p. 224). Em termos de
italianidade e do ser italiano, para Collaço, seria, antes de tudo, um trabalho de preservação da
memória dos descendentes, pois, as “linguagens escolhidas para ressaltar identidades irão se inspirar
na memória, bem como nas articulações entre tempo e espaço que convergem para a cozinha”
(2009, p.226). Frente às transformações impostas no mundo contemporâneo pela industrialização,
urbanização e pelos processos e produtos globalizados, a alimentação se vê submetida a mudanças
“que afetam a qualidade dos alimentos produzidos e industrializados. Na verdade, um novo estilo de
vida impõe novas expectativas de consumo, que acabam orientando as escolhas de alimentos”
(SANTOS, 2005, p. 21), e nesses termos, afetando em especial às ruralidades.
Encontrar restaurantes que sirvam pratos originais e identitários, mesmo em zonas rurais,
torna-se uma tarefa penosa. Na região do Vale dos Vinhedos, notam-se certas reformulações da
gastronomia de origem colonial, marcada pela italianidade, algumas impostas pela presença de
processos industriais, outras pela imposição de certos pratos tidos como típicos, caso da polenta e do
galeto, em detrimento de uma maior diversidade gastronômica. Deve-se lembrar de que o prato
apresentado aos visitantes como típico, nem sempre é o mais consumido pela comunidade local,
mas, sim, aquele prato que identificaria mais fortemente, no senso comum, determinada sociedade
e ou região (GIMENES, 2010).
1.1 Receitas e ingredientes como identidade
Os primeiros livros culinários datam do início do século XIV. Laurioux (1998) registra que as
receitas foram precedidas pelos documentos contábeis, que davam conta das despesas nas cozinhas
dos palácios. Notou-se que por vezes, principalmente após o registro de gastos com festas, os pratos
servidos eram registrados “contendo ao mesmo tempo a relação, o cardápio e o regulamento da
casa” (idem, p.448). Porém, não haveria apenas os livros das cozinhas da aristocracia, embora “os
primeiros esboços tenham sido feitos por cozinheiros a serviço da alta nobreza ou dos grandes
prelados, logo, suas cópias se difundiram nos meios burgueses” (idem, p. 451).
Cada receituário traz, em si, as formas pelas quais determinada região lida: com as
questões dietéticas, seja pela geografia, pelas questões de saúde ou pelos princípios culturais; com
produtos que podem ser encontrados no local; com os utensílios utilizados durante o preparo; com
os gostos e sabores específicos; e, por vezes, com o próprio savoir-faire5.
Merece nossa atenção, tanto quanto a composição da receita (seu vocabulário),
sua sintaxe, ou seja, os procedimentos que ela envolve. Os termos que designam a
5
Palavra francesa que significa o saber-fazer.
5
cocção e a maneira como ela é feita, combinados com a identificação dos
utensílios, permitem reconstruir as técnicas culinárias (LAURIOUX, 1998, p.452).
Ainda segundo o mesmo autor, em meados do século XV observa-se a inserção de uma
forma de associar determinada região a um alimento e/ou ingrediente local que a identificaria,
formalizando o que viria a ser tratado posteriormente como típico. Os guias de viagem continham
desenhos indicando o que cada região ofereceria em termos de gastronomia, com “informações
tanto ou mais preciosas quanto mais se preocupam com os hábitos regionais capazes de
impressionar o viajante” (LAURIOUX, 1998, p. 449).
Utilizar os ingredientes regionais como reveladores de costumes alimentares e de produção
locais, atravessou tempos e espaços. No final do século XIX, na cidade de Bento Gonçalves, então
Colônia de Dona Isabel, os primeiros imigrantes italianos, ao chegar ao local, “comiam pinhões e
frutos silvestres [...], além da caça. Depois, com as primeiras colheitas, foi a abóbora, o aipim, a
batata-doce e a amada polenta [...]. E não muito mais tarde, as pereiras, macieiras, pessegueiros
começaram a produzir seus frutos” (SCARPO, 2011, p. 180). Scarpo ainda registra que, na mesa dos
imigrantes, estavam também “abóbora, ovos e legumes e sempre havia um copo de vinho. Segundo
a tradição italiana, uma fruta fechava a refeição” (SCARPO, 2011, p. 182). Cônsul da Itália em Porto
Alegre, Enrico Perrod, em 1880 já enaltecia a presença de “castanhas, maçãs, peras, laranjas, cerejas
e nozes, juntamente com plantas de café, cana-de-açúcar e fumo” (COSTA et al, 2012). As oralidades
da região registram que, na época, ser gordo, significaria ser saudável. Tal crença deve ser associada
às exigências do trabalho braçal nas práticas rurais, demandando uma alimentação bastante calórica.
Embora que, ao longo dos anos, muitos outros ingredientes fossem inseridos na rotina
alimentar locais, nos primeiros tempos da presença no Brasil houve a tentativa de lembrar e manter
vivas as práticas realizadas e aprendidas no país de origem. Conforme depoimento da antropóloga
Manuela Carneiro da Cunha6, a “riqueza cultural pode advir de condições extremamente adversas
socialmente, numa situação de resistência se exacerba justamente a condição cultural para afirmar
sua identidade, porque a cultura nasce dessa dinâmica, na realidade a cultura inclusive se forma pelo
contraste, ela necessita de outras sociedades para de certa forma tomar consciência de sua
identidade e se afirmar como cultura”.
É a partir dessa consciência cultural que as práticas culinárias se mantiveram por anos e
foram repassadas a outras gerações, via oral, como forma de mantê-las e as reafirmar
constantemente. O livro culinário, objeto de análise, foi elaborado a partir de receitas redigidas, não
6
Trecho retirado do documentário “O milagre do pão”, realizado pela Fundação Nestlé Brasil.
6
tendo, infelizmente, a história oral como metodologia, o que levou a ausência dos contextos culturais
que geraram as receitas, na publicação.
1.2 Os utensílios e rituais
Para transformar os alimentos são necessários, além de ingredientes e receitas, utensílios
adequados. Nos livros que tratam da história da alimentação é possível obter algumas informações
interessantes no que diz respeito aos primeiros utensílios, utilizados por povos primitivos. É o caso
das peças de cerâmicas, usadas para cozinhar sopas e legumes, além de armazenar grãos, ovos e
banha (PIPONNIER, 1998). Já no século XIV, os inventários continham as primeiras peças metálicas,
que além de diferentes tipos e tamanhos de panelas, davam conta de grelhas e espetos, utensílios
presentes na cozinha das elites. Os utensílios de madeira também são achados na forma de “saleiros
e salgadeiras, vinagreiras, baldes, amassadeiras ou peneiras, tábuas usadas para cortar, formas de
queijo, pranchas onde se moldam pães, tampas de panelas ou escudelas usadas para esse fim,
conchas e colheres de pau” (IDEM, p. 513).
Nota-se a importância dos utensílios a partir do reconhecimento, no Brasil, do Ofício das
Paneleiras de Goiabeiras, do Espírito Santo, realizado pelo IPHAN e registrado, em 2002, como
patrimônio imaterial. Na justificativa para tal explica-se que, no “decorrer dos anos 1980, a indústria
turística consagrou a panela de barro por meio de campanhas publicitárias, associando sua imagem à
da moqueca e da torta capixabas, num processo que acabou por transformá-la em ícone da cultura
regional” (IPHAN, 2002, p. 52). A partir do momento em que um dado ingrediente ou utensílio
remete a um determinado prato da culinária regional, se pode identificá-lo como identitário, ao
reforçar os laços entre a comunidade e a cultura local. No Ofício das Baianas de Acarajé, registrado
pelo IPHAN, em 2004, observa-se mais uma vez a relação entre ingredientes e utensílios para
determinada receita dar certo, por assim dizer, no trecho em que afirma que “segundo as baianas, o
segredo do bom acarajé reside no modo como a massa é preparada e batida na panela, com colher
de pau, antes de se fritar cada porção no dendê fervente” (IPHAN, 2004, p. 29).
Em geral, as receitas envolvem concomitantemente saberes e rituais, e nesse caso
perpetuá-los é tão importante quanto desvendar sua origem, como no caso do último ofício citado,
atrelado fortemente a questões religiosas. O espaço onde se afirma a cultura também é utilizado
para passá-la aos demais: “Os terreiros, nessa perspectiva, além de lugares de sociabilidade e relação
com o sagrado, são núcleos de repasse dos saberes que mantêm ativas as técnicas relacionadas às
tradições africanas e, assim, constituem-se como referências coletivas” (IPHAN, 2004, p. 23).
7
Segundo a literatura, já a partir do século XIX seria possível notar o turismo como uma
prática a contribuir para valorização dos sistemas gastronômicos locais, a exemplo do que já
acontecera com guias do século XVI, que “confinando de forma duradoura a particularidade culinária
em representações estereotipadas, acabam por impô-la – relacionando-a com a noção de ponto de
interesse – como parte integrante do patrimônio, no mesmo nível do mirante, da arquitetura ou das
personagens que, daí em diante, pontuam as paisagens e as histórias locais” (CSERGO,1998, p.817).
Essa prática é utilizada até hoje, em guias de viagens como o 4 Rodas e o Michelin, que estimulam o
viajante a conhecer determinado prato e ou restaurante em destinos turísticos.
Se, por um lado, o turismo gera benefícios para a cultura local, por outro poderá modificála para atender uma demanda diferenciada, como constatado por Pertile (2011, p. 66), para quem,
na “falta de resgate dos saberes e receitas originais, [...] utilizam-se produtos industrializados ou em
grande parte oriundos de diversos locais, deixando de lado um fator importante [...], a identidade”.
2 Os ingredientes do livro Colônia Italiana: os sabores de sua culinária
Analisado o livro, ali se destacaram os ingredientes utilizados nas 61 receitas doces e 37
salgadas, buscando compreender como os descendentes dos imigrantes italianos utilizam, na
alimentação, ingredientes os mais diversos. Cabe ressaltar aqui que alguns ingredientes aparecem
mais de uma vez na mesma receita, por exemplo, em um bolo com calda o açúcar aparecerá na
massa e na cobertura, portanto, nesse caso o ingrediente foi contado duplamente. Explica-se assim o
fato do açúcar aparecer 68 vezes na tabela correspondente as receitas doces, e as mesmas serem
apenas 61.
Tabela 1. Os ingredientes
Ingrediente:
Receitas doces
Receitas salgadas
Laticínios (leite, queijo e nata)
Tubérculos (Batata-doce, mandioca, batata inglesa, aipim)
Açúcares (açúcar cristal e refinado, açúcar mascavo, mel)
Frutas e derivados (limão, laranja, uva, pêssego, bergamota, tomate, goiabada, uvada, molho de tomate)
Vegetais (abóbora, moranga, radicci, espinafre)
Sais (sal refinado e grosso)
Carnes (moída, pombas, salame, galinha, gado, porco, peixe)
Farináceos (farinha de trigo, farinha de rosca, amido de milho, farinha de milho, pão, capeleti)
45
3
68
20
3
17
0
60
27
9
6
14
9
36
25
28
Líquidos (água, café, vinho, cachaça, graspa)
Temperos (nós moscada, salsa, cebolinha verde, sálvia, cebola, alho, louro, colorau)
Especiarias (cravo, canela, baunilha, erva-doce, funcho, pimenta, orégano)
Gordura (manteiga, óleo, banha, toucinho)
Grãos (amendoim, arroz, feijão)
Fermentos (em pó, tabletes, bicarbonato e sal amoníaco)
Ovos
Outros (chocolate, sagú, pinhão, caldo de frango)
20
1
21
34
9
30
47
25
16
43
21
33
3
4
23
10
Fonte: Elaboração própria.
8
Tabela 2. Nomenclatura das receitas
Doces
Salgadas
Bananinhas
Bifes de soja
Bananinhas de farinha de milho
Bisgon da nona Rosa
Biscoito amateigado
Banana de batata doce
Biscoito colonial
Bolinho de batata doce com pien
Biscoito da nona
Bolinhos de batata inglesa
Biscoito de erva doce
Bolinhos de mandioca
Bolinhos de chuva
Brodo
Bolinho da nona
Capeletti
Bolo caseiro
Fortaia
Bolo da nona
Frango caipira na moranga
Bolo de café
Kibebi
Bolo de fubá com calda
Massa de pinhão
Brustolona
Matambre do vô João
Bussolá ou Pão doce
Menestra de fazoi com taiadelle
Chico Balanceado
Nhoqui
Chimia de uva
Nhoqui de batata doce
Coroa de biscoito de Crisma
Nhoqui de batata inglesa
Creme da vovó
Nhoqui de moranga
Cuca da nona
Pão caseiro
Cuca de mel
Pão colonial
Cuca "Tia Gema"
Pien da nona Mônica
Doce de abóbora
Pinhão no capeletti
Doce de moranga com vinho
Pizza de pão
Esfregola
Polenta consada
Geléia de pêssego
Pomba recheada ao forno
Geléia de uva
Radicci coti
Grostoli
Refogado de feijão
Grostoli caramelado
Rocambole de batata
Grostoli da nona
Salame colonial
Grostoli de cachaça da nona
Salame na palha
Grostoli fino
Scachate
Mandolate de mel
Scodeguin
Pão de batata doce
Sopa de capeletti
Pão de ló básico
Taiadele com salame
Pão doce
Torta de aipim
Pão doce da bisavó
Tortéi
Pão frito
Tortéi enrolado
Pãozinho carioca
Pudim da mamãe
9
Pudim delicioso
Pudim de batata doce
Pudim de farinha de trigo
Pudim de leite
Pudim de mandioca
Pudim de pão
Pudim de pão ralado
Rapadura
Rapadura da nona
Rapadura de amendoim
Rocambole de goiabada
Rosquinha de São João
Sagú com creme
Sequilhos da vovó
Sobremesa de bergamota
Strufolli
Suguli
Torta Beatriz
Torta seca
Torta Suíça
Torta Tiroleza
Uvada
Fonte: Elaboração própria.
Como apresentado na tabela 1, as receitas salgadas apresentam três ingredientes bastante
recorrentes: temperos e especiarias, sais, gordura, farináceos e laticínios, respectivamente, como os
mais presentes. Considere-se que os temperos, além do sabor, também implicam na consistência e
aspecto dos pratos, sendo inclusive utilizados, por vezes, na sua finalização. Levando-se em conta
que a maioria dos imigrantes mantinha suas próprias hortas – muitos as mantém até hoje –, é
provável que a grande utilização de temperos se deva a presença desses cultivos, dispensando a
necessidade de gastos com a aquisição dos mesmos. O sal, por sua vez, entrará via condimentação,
durante o cozimento e também como conservante para manter os alimentos em condições de
consumo por mais tempo.
A forte presença da gordura (manteiga, óleo, banha e toucinho), torna a alimentação,
sobretudo, gordurosa. Também a presença de farináceos amplia o valor calórico dos alimentos,
sendo que esses dois últimos ingredientes podem ir ao encontro do que afirma Azambuja (2001),
quando diz que a “preferência por algum alimento e por determinados pratos nos diferentes grupos
humanos está ligada à sensação de saciedade e de prazer” (p.71), ou seja, ambos, por altamente
10
calóricos e de textura corpulenta, levam à sensação de saciedade. Não é demais retomar que os
imigrantes, chegados no século XIX, trouxeram hábitos alimentares presentes na Europa, na época,
como o grande consumo de banha de porco e manteiga, mais tarde também o óleo. Já no Brasil,
observou-se significativo aumento do consumo de gordura animal durante as duas guerras mundiais
(LANDRIN e TEUTEBERG, 1998). Neste caso, se pode entender, ainda, que a grande utilização da
gordura animal na preparação de alimentos se deveria a criação de pequenos animais nas
propriedades, sendo essa uma gordura mais fácil de ser obtida.
A utilização do caldo de galinha, elaborado a partir do próprio animal, era fator importante;
atualmente, não se observa mais tal prática, pois os caldos industrializados são os utilizados para dar
sabor aos pratos. No caso do livro analisado, não é citada a forma de preparo do caldo, se provém da
fervura do animal em água ou não, qual o tempo de preparo e quais os condimentos utilizados nessa
fase do processo. No que diz respeito aos fermentos, são utilizados na forma de tabletes e pó,
embora se saiba que mesmo em passado recente, as fermentações davam-se de outras formas,
como na fermentação da batata. Esse processo levava em média três dias e era, basicamente,
elaborado a partir de batatas inglesas raladas e, depois, misturadas a água, açúcar e sal. Percebe-se,
aqui, um traço cultural da alimentação que está sendo substituído pela industrialização, certamente
como um facilitador ante o tempo despendido para elaboração de alimentos que necessitam da
fermentação.
Já nas receitas doces, outros três ingredientes aparecem frequentemente: açúcares,
farináceos e ovos, respectivamente, conforme tabela 1.
Entre os séculos XVI a XVIII, o açúcar era utilizado somente pelas elites. Será a partir dos
séculos XIX e XX, que passará a fazer parte da culinária das demais classes sociais (FLANDRIN e
TEUTEBERG, 1998). Em algumas regiões do Rio Grande do Sul, os doces eram ricos em gemas de
ovos, porque as claras, em especial nas instituições religiosas, eram utilizadas para engomar as
vestimentas. Para dar um destino para as gemas, criavam-se pratos em que fossem utilizadas. A
mistura mais conhecida entre esses últimos ingredientes é a gemada, mistura de gemas e açúcar,
vista como um alimento revigorante. No caso dos doces também se nota grande utilização de
farináceos, com muitos casos de bolos, cucas e biscoitos. Os laticínios também são citados em um
número considerável de receitas, o que reporta novamente ao fato dos animais serem criados nas
propriedades e, como consequência, a produção de leite levando ao preparo de alimentos deles
oriundos.
Também há considerável utilização de gordura, o que demonstra que os mesmos
ingredientes são utilizados em proporções bastante parecidas, tanto nas receitas doces, quanto nas
11
salgadas. Vinte e uma receitas utilizaram especiarias; se levarmos em conta que, possivelmente,
haveria maior dificuldade em adquiri-las, quer por não serem cultivadas na propriedade, quer por
seu alto custo, sua alta utilização torna-se um dado no mínimo curioso.
Dois importantes elementos não constam do livro analisado: os utensílios utilizados e os
rituais de preparo, o que reduz o resgate somente aos ingredientes e não a receita como um todo.
Ora, se o livro em questão trata do resgate das receitas italianas, essas deveriam conter todos os
saberes, a fim de manter um patrimônio imaterial de forma a perpetuá-lo na forma escrita e não
somente oral, como é repassado até os dias atuais, geralmente pelas pessoas mais velhas da família.
Considerações finais
O livro Colônia Italiana: os sabores de sua culinária contribui para resgatar os alimentos que
faziam parte da vida cotidiana ou que eram ingeridos em ocasiões importantes, em muitos casos
parte dos cardápios oferecidos aos turistas. Observa-se que os ingredientes mais utilizados eram
aqueles mais facilmente obtidos junto a casa, onde eram produzidos. Outra curiosidade, rol de
ingredientes inclui os mesmos itens, tanto nos salgados como nos doces. Há forte presença da
gordura, o que permite inferir a necessidade fisiológica do manter-se gordo, a fim de suportar as
adversidades do trabalho braçal na atividade rural.
O que se nota, ainda analisando os ingredientes listados, é que não há caso de algum que
esteja, hoje, indisponível. O que se observa, é que provavelmente o que tenha sido alterado sejam os
processos e rituais de preparo. Em tal situação se encontram os fermentos, utilizados agora em
forma de pó e tabletes – tanto em receitas salgadas como doces – que, conforme já explicado, não
existiriam quando da imigração para o Brasil e cuja produção, ao longo de três dias, é muito provável
que tenha sido acompanhada de rituais de preparo. Logo, se a publicação propôs analisar as receitas
em relação à valorização da culinária tradicional, nas palavras dos editores, quanto à forma de fazer e
seus ingredientes, preservando os costumes regionais, sabor e apresentação, o registro dos
processos deveria ter sido observado. O mesmo se dá no caso do caldo de galinha. Os ingredientes
industrializados foram inseridos, com certeza, para tornar os preparos mais fáceis e ágeis. Abrem-se
lacunas, ainda, quanto aos utensílios utilizados, que por vezes podem modificar os sabores e
consistência de alguns pratos, assim como aos rituais, pois muitos pratos estiveram associados a
momentos festivos e religiosos.
Reportando à questão colocada no início, sobre até que ponto os ingredientes podem ser
modificados, sem alterar a representatividade do prato denominado como típico e significativo de
uma culinária original. Para Azambuja (2001), “mesmo que a globalização se faça sentir nos modelos
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alimentares cotidianos, os estilos alimentares locais se mantêm vigentes e os produtos tradicionais
continuam a ser elaborados, ainda que em menor escala” (p.73). Entretanto, como o estudo
encaminha, as alterações mais significativa não se dão na alteração, mas na substituição de
ingredientes originais, por similares industrializados.
O fato de o projeto solicitar aos participantes que junto às receitas fosse entregue uma
história que a ligasse a vida do indivíduo, em nada contribui, pois as mesmas não foram inseridas na
publicação em sua totalidade, ou seja, das várias histórias que poderiam remontar um passado de
ligações culturais fortemente presentes, apenas duas foram inseridas. Possivelmente, se o resgate
fosse realizado através de história oral, a imaterialidade das receitas, seriam respeitadas e os modos
de fazer seriam mais completos.
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A presença dos ingredientes nos pratos tradicionais