LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS E TRABALHO DOCENTE: PROFESSOR
AUTÔNOMO?
LEÃO, Rosaura Maria Albuquerque; VEÇOSSI, Cristiano Egger
Doutora em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria. Professora do Departamento de Letras
Vernáculas da UFSM. Integrante da Linha de pesquisa “Linguagem e Interação” do PPGL/UFSM.
E-mail: [email protected]
Mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria. Doutorando do Programa de PósGraduação em Letras da UFSM, inserido na Linha de pesquisa “Linguagem e Interação”. Bolsista
CAPES.
E-mail: [email protected]
RESUMO
O presente artigo discute o binômio livro didático de português e trabalho docente. Especialmente a
partir do estudo de Soares (2001), com relação ao modo de estruturação e de funcionamento dos
livros didáticos ao longo do tempo, e de pressupostos teóricos do Interacionsimo Sociodiscursivo
(ISD) – distinção entre agente/ator e entre artefato/instrumento – buscamos compreender, em termos
gerais, qual imagem de professor tem sido projetada pelos livros didáticos de Língua Portuguesa
atualmente. Para isso, além de recuperarmos a análise de Soares (2001) com relação a dois manuais
didáticos utilizados nos séculos XIX e XX, discutimos algumas ocorrências observadas em livros dos
anos 1990 e 2000, as quais denotam que o verdadeiro ator no processo de ensino-aprendizagem
parece ser o livro didático, enquanto o professor é projetado ou como executor da proposta do
material, ou nem mesmo é mencionado como agente do processo.
Palavras-chave: Livro didático de Português; Trabalho do professor; Autonomia.
INTRODUÇÃO
Todo trabalho envolve a utilização de ferramentas, as quais ampliam a capacidade
(física ou cognitiva) do trabalhador. No caso da atividade educacional, o livro didático tem
sido, já há algum tempo, colocado como uma das principais ferramentas disponíveis para a
realização do trabalho do professor. No universo escolar atual, o livro didático coexiste com
diversos outros instrumentos como quadros, mapas, enciclopédias, audiovisuais, sofwares
didáticos, cd-room, Internet, dentre outros, mas ainda assim continua ocupando um papel
central.
A importância conferida ao livro didático tem feito desse artefato um objeto de estudo.
No caso do livro didático de Língua Portuguesa, muitos estudos tem visado compreendê-lo
sob diversos aspectos: com relação ao tratamento da leitura e da produção textual; quanto à
abordagem de gêneros textuais nele contida; em relação ao tratamento da oralidade, dentre
outros enfoques. Neste trabalho, nosso olhar recai sobre a seguinte questão: em termos
gerais, qual imagem de professor tem sido projetada pelos livros didáticos de Língua
Portuguesa atualmente?
Nesse sentido, apresentamos, inicialmente, algumas considerações com relação ao
modo como tem se constituído o livro didático de Português ao longo do tempo. Para isso,
apoiamo-nos, fundamentalmente, em Soares (2001). Na sequência, discutimos, a partir da
abordagem interacionista sociodiscursiva (BRONCKART e MACHADO, 2004; MACHADO e
BRONCKART, 2009; MACHADO et alii, 2009), questões referentes ao trabalho do
professor, em especial a definição das noções de agente/ator e de artefato/instrumento.
Finalmente, apresentamos algumas ocorrências extraídas de livros didáticos de Língua
Portuguesa atuais que indiciam o modo como se tem projetado a ideia de professor (e de
trabalho docente) nesses materiais.
O LIVRO DIDÁTICO AO LONGO DO TEMPO E A CONCEPÇÃO DE PROFESSOR
O livro didático é um material impresso, estruturado, destinado ou adequado a ser
utilizado num processo de aprendizagem ou formação. Ele passa a ser usado no processo
pedagógico como um manual para o ensino, utilizado tanto por alunos como por professores
e assume um papel fundamental na política educacional e na aprendizagem. Conforme
Freitag et alii (1997), o livro didático pode ser caracterizado como um produto cultural
composto, híbrido, que se encontra no cruzamento da cultura, da pedagogia, da produção
editorial e da sociedade.
O decreto-lei nº 1006 de 30/12/1938 define, pela primeira vez, o que deve ser
entendido por livro didático. “Art 2° §1° - Compêndios são os livros que exponham total ou
parcialmente a matéria das disciplinas constantes dos programas escolares; §2° - Livro de
leitura de classe são os livros usados para a leitura dos alunos em aula; tais livros também
chamados de livro de texto, livro-texto, compêndio escolar, livro escolar, livro de classe,
manual, livro didático” (OLIVEIRA et alii, 1984, p. 22).
Soares (2001), ao estudar o livro didático ao longo do tempo, concebe que a finalidade
de tal ferramenta é instrumentalizar o professor para o ensino de língua, em especial, no
caso da aula de Português, para a formação do aluno-leitor. Além disso, de acordo com a
autora
o modo como o livro didático faz essa instrumentalização evidencia a
concepção que o autor tem do professor como leitor, pois a natureza e a
quantidade de orientações para o desenvolvimento de habilidades de leitura
que julga necessário apresentar em seu livro didático revelam suas
suposições sobre as possibilidades que tem ou não o professor para formar
alunos-leitores. (SOARES, 2001, p. 32)
Nesse sentido, a fim de compreender que imagem de professor é projetada nos livros
didáticos, a autora se concentra na observação de dois manuais utilizados nos séculos XIX
e XX: a Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos Laet e o Estudo dirigido de
Português, de Reinaldo Mathias Ferreira. Ambos os livros eram destinados ao então Curso
Secundário, correspondente, hoje, à segunda metade do Ensino Fundamental acrescida do
Ensino Médio.
Com relação à Antologia Nacional, esta predominou nas escolas brasileiras do fim do
século XIX (a 1ª edição é do ano de 1895) até os anos 30 do século XX, tendo sido utilizada,
ainda que com menos força, nas décadas de 1940, 1950 e 1960 (a 43ª edição é de 1969).
Conforme Soares (2001), tratava-se de uma coletânea de textos para a leitura escolar, a
qual, mesmo com algumas modificações realizadas ao longo dos 74 anos em que esteve
em circulação, manteve como critério para a inclusão de textos, que fossem representativos
do campo literários, escritos por autores portugueses ou brasileiros já falecidos. Além disso,
“os critérios de moralidade e honestidade exerciam um papel fundamental, na seleção de
textos para a leitura escolar” (SOARES, 2001, p. 44).
Com relação à imagem de professor projetada pelo livro, conforme afirma Soares
(2001), na Antologia Nacional, tal como acontecia nos manuais didáticos da época,
predominavam textos literários, havendo apenas algumas notas gramaticais nas páginas
iniciais do material. Assim, como se tratava de um livro-texto, sem atividades ou exercícios,
pressupunha-se que era o professor que deveria fazer a ponte entre o estudo do texto e o
tratamento das questões gramaticais (utilizando, nesse caso, uma dentre as diversas
gramáticas escolares existentes), bem como elaborar atividades de exploração de texto e
gramática.
Outra observação importante com relação ao professor pressuposto pelo material é a
de que os comentários e “notas esclarecedoras” contidos junto aos textos da Antologia eram
dirigidas aos alunos, e não aos professores, uma vez que não se pensava que os docentes
necessitassem de maiores esclarecimentos. Em suma:
[...] na sala de aula, o trabalho de leitura e estudo dos textos ou, através
deles, o estudo da língua, era confiado ao professor: o livro dependia dele
que, na concepção dos autores, seria um leitor capaz de analisar os textos
tanto do ponto de vista da literatura quanto da língua, e em condições de
utilizá-los didaticamente, para formar bons leitores. Na ausência de
exercícios, de atividades, a Antologia deixava a forma de sua utilização nas
mãos do professor, autônomo para planejar e executar suas aulas de
Português, tendo a coletânea de textos apenas como um material didático
facilitador de sua ação. (SOARES, 2001, p. 54-55)
No caso do livro Estudo dirigido de Português, de Reinaldo Mathias Ferreira, este foi
lançado para o ano letivo de 1971, sendo utilizado no então primeiro grau. Situado em um
período histórico no qual já estava em vigor o processo de democratização do ensino, o
livro, já na apresentação, coloca-se como destinado a alunos e professores, sendo ambos
projetados como “trabalhadores atarefados”: no caso dos alunos, sem tempo para a
realização de trabalhos fora da escola, e os professores, com pouco tempo para a
preparação das aulas. Desse modo, conforme Soares (2001, p. 70), já sob influência da
democratização do ensino, essa coleção didática “é formulada de tal modo que quase
independe do professor”.
De acordo com Bezerra (2005, p. 41-42), o processo de democratização de ensino
provocou profundas alterações no que tange ao ensino de Língua Portuguesa na escola. Até
a década de 1950 do século XX, a escola era composta por um público seleto, que falava o
português considerado padrão, bem como tinha amplo acesso a práticas de leitura e escrita
em casa, o que fazia com que procurassem o espaço escolar para estudar sobre a língua.
Nesse contexto, o professor, oriundo das classes média e alta, igualmente usuário
proficiente da língua padrão em suas modalidades oral e escrita, dispunha de plenas
condições para preparar suas aulas.
A partir da década de 1950, o alunado mudou: com o amplo acesso à escola,
conquistado pelas camadas populares, as instituições de ensino passaram a receber alunos
com baixo nível de letramento; o aumento da demanda exigiu a contratação de mais
professores, muitos dos quais com formação deficitária. Nesse contexto, os livros didáticos
passam a ser elaborados visando suprir as carências apresentadas pelos professores:
“sobretudo a partir da década de 70 do século passado, não é mais dada a eles a
responsabilidade de prepararem suas aulas e exercícios, como antigamente; isto compete
ao autor do livro didático” (BEZERRA, 2005, p. 42).
Nesse sentido, conforme Soares (2001), a coleção de Reinaldo Mathias Ferreira foi
uma das primeiras a conter o “Livro do Professor”, com orientações metodológicas,
sugestões de atividades e, o que era impensável até então, respostas dos exercícios. O
manual didático apresentava, também, sugestões de prova, nas quais constava inclusive o
valor de cada questão.
Ao colocar em paralelo os dois livros analisados, a autora conclui que entre eles
há uma evidente mudança na concepção do papel do professor [...]: nas
primeiras décadas do século, uma concepção de professor a quem bastava
que o manual didático oferecesse os textos, numa antologia austera, um
professor que, considerado bom leitor e conhecedor de língua e literatura,
seria capaz de, autonomamente, definir uma metodologia de trabalho com
textos, na sala de aula; progressivamente, e sobretudo a partir dos anos 70,
uma concepção de professor a quem o livro didático deve oferecer não só
os textos, mas também a orientação metodológica para a sua leitura e
interpretação, as atividades didáticas a serem realizadas e até mesmo as
respostas às questões de compreensão e interpretação dos textos, um
professor talvez não considerado propriamente um mau leitor, ou incapaz
de definir por si mesmo uma metodologia de estudo de textos na sala de
aula, mas reconhecido como sem formação e sem tempo suficientes para a
preparação de suas aulas (SOARES, 2001, p. 72-73)
Vemos, então, que o modo como se organiza o livro didático está diretamente
relacionado à imagem que se tem do professor em cada período histórico. Na seção
seguinte, a partir de premissas teóricas oriundas do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD),
discutimos o modo como o livro didático, ferramenta disponível para facilitar o trabalho do
professor, é capaz de interferir na autonomia deste profissional.
O LIVRO DIDÁTICO E O TRABALHO DO PROFESSOR
Grande parte dos trabalhos realizados no Brasil que tomam como fundamento teórico
o ISD compõe-se de análise de textos produzidos no e sobre o trabalho educacional, uma
vez que, comumente, sobre o trabalho do professor, pairam representações já cristalizadas
(e até mesmo estereotipadas), as quais, no entanto, geralmente não estão ancoradas em
uma abordagem linguística.
Nesse sentido, para o ISD, as ações humanas não podem ser apreendidas pela mera
observação das condutas perceptíveis, mas por meio de interpretações produzidas via
linguagem, em textos dos próprios actantes ou de observadores dessas ações. Esses
textos, os quais se referem à determinada atividade social, não apenas exercem influência
sobre essa atividade e sobre as ações nela implicadas, como também refletem
representações, interpretações e avaliações sociais sobre essa atividade e sobre essas
ações, “podendo contribuir para a consolidação e para a modificação dessas mesmas
representações e das próprias atividades e ações” (MACHADO et alii, 2009, p. 18).
Ainda seguindo o raciocínio de Machado et alii (2009, p. 18), tal premissa implica, no
caso da observação da atividade educacional, que sejam tomados como objeto de análise
não as condutas observáveis, mas “os textos que se desenvolvem, tanto na própria situação
de trabalho quanto os que se desenvolvem em outros momentos, sobre essa atividade
profissional”.
Concentrando-nos nos textos prescritivos do trabalho do professor, observamos que,
além de orientações curriculares – tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais, por
exemplo – e demais textos normatizadores, podemos considerar neste grupo os livros
didáticos atuais, especialmente aqueles que trazem, no exemplar destinado ao professor
(denominado, não por acaso, “Manual do Professor”), orientações diretas sobre como o
professor deve conduzir a abordagem dos conteúdos.
Para que possamos observar a atividade educacional como um trabalho, convém
definirmos, conforme a abordagem do ISD (nesse caso, recebendo contribuições de outras
duas correntes teóricas: Clínica da Atividade e Ergonomia da Atividade), algumas noções
fundamentais, especialmente as distinções entre actante/ator/agente e artefato/instrumento.
Conforme Bronckart e Machado (2004, p. 155-156), ao observarmos as diferentes
condutas dos seres humanos no mundo (agir) que são semiotizadas em formas textuais,
percebemos a participação de diversas pessoas, implicadas de modo direto ou indireto. A
esses seres humanos envolvidos no agir chamamos actantes, de modo que, dentre eles,
existem aqueles que são colocados nos textos como “a fonte de um processo”, de fato,
sendo a eles “atribuídas capacidades, motivos e intenções” – chamados atores – e outros
que são colocados como secundários, não lhes atribuindo essas propriedades – os agentes.
Diretamente ligada a essa noção, está a distinção entre artefato e instrumento.
Conforme Machado e Bronckart (2009, p. 38), todo objeto (material, imaterial ou simbólico),
de origem humana, que se destina a uma finalidade, é um artefato. No momento em que o
ser humano, apropria-se do artefato, passando a utilizá-lo na realização de seu trabalho,
este passa a ser considerado um instrumento. Em termos práticos, podemos considerar o
livro didático, genericamente, como um artefato, ou seja, uma forma material disponível ao
professor para a realização de seu trabalho. Para que este seja considerado um verdadeiro
instrumento, precisaríamos observar em que medida o profissional professor se apropria, de
fato, dessa ferramenta em seu trabalho.
Para isso, torna-se necessário observar qual imagem de professor é projetada pelo
livro didático, ou seja, se o livro o coloca enquanto ator, de fato, ou se o projeta como um
mero agente. No primeiro caso, o professor é visto como dotado de capacidade e autonomia
para trabalhar com o livro didático de modo produtivo (e criativo); no segundo, o educador,
projetado simplesmente como um agente, exerce papel secundário, sendo um mero
reprodutor do conteúdo de um livro que, nesse caso, mune o professor do máximo de
explicações possíveis, descreditando o profissional.
ANÁLISE
DE
ALGUMAS
OCORRÊNCIAS
ENCONTRADAS
EM
LIVROS
DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS
Nesta seção, apresentamos algumas considerações acerca de livros didáticos atuais.
Observando dois livros didáticos (exemplar do professor), um da década de 1990 (1998,
destinado à 8ª série) e outro já dos anos 2000 (2010, destinado ao 1º ano do Ensino Médio),
verificamos algumas ocorrências a partir das quais se pode discutir a imagem do professor
de língua materna que tem o material. Como casos da natureza dos que são aqui
apresentados não são exclusivos de tais livros, sendo comuns em grande parte de outras
coleções didáticas, não explicitaremos a autoria dos materiais analisados.
A primeira ocorrência, colocada abaixo, aparece em uma relação de questões de
exploração do texto “O bicho”, de Manuel Bandeira:
FIGURA 1 – Sugestão em resposta pessoal – LD Ensino Fundamental
Podemos perceber que a questão prevê uma resposta pessoal, mas, ao contrário do
que se poderia esperar para um tipo de exercício dessa natureza, oferece uma possibilidade
de resposta. Acontecimento similar ocorre em outra questão de exploração da linguagem do
texto, a partir de um excerto do livro “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto,
no qual o protagonista envia um requerimento ao Congresso Nacional solicitando que a
língua oficial do país passe a ser o tupi-guarani. A pergunta proposta pelo livro didático,
embora de cunho pessoal, apresenta considerações acerca do que “se espera” que os
alunos respondam:
FIGURA 2 – Sugestão em resposta pessoal – LD Ensino Fundamental
O fato de, nos livros didático atuais, haver respostas para as questões já evidencia
que o livro direciona o raciocínio de professor e aluno para um determinado modo de
pensar, interferindo inclusive na autonomia do professor, haja vista que este acaba, muitas
vezes, subordinado às prescrições do material: os próprios alunos passam a querer saber
qual é a resposta apontada pelo livro, visando comparar o que escreveram com o que o
manual diz ser a resposta certa. Além do mais, nos dois casos apresentados, o material
didático apresenta sugestões em questões que ele mesmo classifica como “pessoais”, o que
parece contraditório. Seria bastante interessante observar situações empíricas de utilização
do livro didático: Como o professor age diante de respostas que diferem da que é apontada
pelo material?
A seguir, apresentamos uma ocorrência de questão com “resposta pessoal” na qual o
livro não apresenta sugestão de resposta, mas direciona o professor a adotar determinada
estratégia metodológica em sala de aula, como se o profissional não fosse capaz de
elaborar, ele próprio, uma dinâmica:
FIGURA 3 – Sugestão metodológica em resposta pessoal – LD Ensino Fundamental
Os três exemplos apresentados foram extraídos de um livro destinado à 8ª série
(Ensino Fundamental). A seguir, apresentamos duas ocorrências extraídas de um livro
didático destinado ao 1º ano do Ensino Médio. Embora o material seja destinado também ao
ensino de Literatura, em função dos objetivos propostos inicialmente, concentramo-nos na
observação da parte reservada à Língua Portuguesa, dirigida especificamente à produção
de texto. Convém registrar que o exemplar analisado, destinado ao professor, não apresenta
respostas logo após cada questão, mas, ao final do material, traz um suplemento com as
respostas das questões e alguns textos de apoio.
Vejamos a primeira ocorrência, extraída da seção destinada à produção de texto:
FIGURA 4 – Direcionamento direto ao aluno – LD Ensino Médio
O que nos chama atenção no excerto acima é a linguagem empregada. A utilização
abundante do pronome pessoal “você”, do possessivo “seu” e de verbos na 3ª pessoa do
imperativo (“crie”; “consulte”; “dê”), denota que o leitor projetado pelo material é,
especificamente, o estudante, de modo que a forma direta torna desnecessária a mediação
do professor (afinal, o livro “dialoga” com o aluno, literalmente “conversa” com ele). O
mesmo acontece na parte destinada à exploração da linguagem dos textos apresentados,
conforme se pode ver no recorte abaixo:
FIGURA 5 – Direcionamento direto ao aluno – LD Ensino Médio
Pelo que se pode ver neste exemplo, também nas questões de exploração textual, o
manual se dirige diretamente ao leitor-aluno, desconsiderando a presença do professor.
Retomando a distinção proposta pelo ISD entre agente e ator, bem como entre
artefato e instrumento, podemos perceber que o livro didático, ao apresentar sugestões de
respostas até mesmo nas questões que projetam uma resposta pessoal, bem como ao
direcionar a metodologia de trabalho do professor (“aconselhando” sobre o que este deve
fazer), acaba por se colocar como o verdadeiro ator da aula de Língua Portuguesa. O
professor passa a ser agente, participante secundário do processo, executor de uma
proposta alheia. Na mesma direção, pode ser entendida a postura do livro de se dirigir
diretamente ao aluno: nesse caso ao professor não é projetada nem mesmo a posição de
agente, de modo que, por mais que esse profissional utilize o livro didático constantemente
em suas aulas, dificilmente conseguirá se “apropriar”, de fato desse artefato, transformandoo em um verdadeiro instrumento de trabalho. Nesse sentido, tornam-se apropriadas as
palavras de Freitag et alli (1997, p. 111): “o livro didático não funciona em sala de aula como
um instrumento auxiliar para conduzir o processo de ensino e transmissão de conhecimento,
mas como o modelo-padrão, a autoridade absoluta, o critério último de verdade”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, discutimos a imagem do professor de Língua Portuguesa que pode ser
depreendida a partir de livros didáticos atuais. Percebermos, tal como Soares (2001), que
esses materiais encontram-se cada vez mais “completos”, trazendo, além das respostas das
questões, “sugestões” metodológicas, dentre outras orientações, as quais acabam
funcionando como prescritoras da ação do professor frente a seus alunos.
Convém destacar que não estamos, de forma alguma, questionando a relevância de
serem utilizados livros didáticos no processo de ensino-aprendizagem, muito menos o nível
de qualidade desses materiais. Sabemos que, no contexto atual, no qual os professores
acabam obrigados a assumir cada vez mais horas-aula nas diversas escolas em que
trabalham, o livro didático é uma ferramenta importante. No entanto, é preciso que, na
posição de professores, tenhamos bom-senso no emprego deste artefato: ele deve servir de
apoio ao professor, e não ser a figura central da aula de Língua Portuguesa, que “dita as
regras” do processo. Pelo contrário, estaremos depondo contra o nosso próprio fazer,
reforçando a desvalorização social do professor como trabalhador.
REFERÊNCIAS
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In: DIONISIO, Angela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora. Gêneros
textuais & Ensino. 3. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
BRONCKART, Jean-Paul; MACHADO, Anna Rachel. Procedimentos de análise de textos
sobre o trabalho educacional. In: MACHADO, Anna Rachel (Org.). O ensino como
trabalho: uma abordagem discursiva. Londrina: Eduel, 2004, p. 131-163.
FREITAG, Barbara; COSTA, Wanderley da; MOTTA, Valéria. O livro didático em questão.
São Paulo: Cortez, 1997.
MACHADO, Anna Rachel et alii. Relações entre linguagem e trabalho educacional: novas
perspectivas e métodos no quadro do Interacionismo Sociodiscursivo. In: MACHADO, Anna
Rachel e cols. Linguagem e Educação: o trabalho do professor em uma nova
perspectiva. ABREU-TARDELLI, Lília Santos e CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes (Orgs).
Campinas: Mercado de Letras, 2009, p. 15-29.
MACHADO, Anna Rachel; BRONCKART, Jean-Paul. (Re-)configurações do trabalho do
professor construídas nos e pelos textos: a perspectiva metodológica do grupo ALTERLAEL. In: MACHADO, Anna Rachel e cols. Linguagem e Educação: o trabalho do
professor em uma nova perspectiva. ABREU-TARDELLI, Lília Santos e CRISTOVÃO,
Vera Lúcia Lopes (Orgs). Campinas: Mercado de Letras, 2009, p. 31-77.
OLIVEIRA, João Araújo et alii. A política do livro didático. São Paulo: Summus; Campinas:
Ed. Unicamp, 1984.
SOARES, Magda. O livro didático como fonte para a história da leitura e da formação do
professor-leitor. In: MARINHO, Marildes (Org.). Ler e navegar: espaços e percursos da
leitura. Campinas: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil – ALB, 2001, p. 3176.
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