SUMÁRIO
I - APRESENTAÇÃO
II - LEITURA E PRÁTICAS ESCOLARES
III - LEITURA, LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS
IV - RESUMOS DOS PÔSTERES
V - CONTO PREMIADO
I – APRESENTAÇÃO
O NÚCLEO DE LEITURA MULTIMEIOS da Universidade Estadual de Feira de Santana
vem desenvolvendo estudos sobre a História da Leitura e práticas sócio-culturais de leitura
há mais de 15 anos. Suas ações visam fortalecer a linha de pesquisa Linguagem, Literatura
e Leitura, bem como garantir a inserção da universidade na comunidade, por meio de ações
extensionistas e de pesquisa junto às escolas públicas de Feira de Santana.
A realização do VIII ENCONTRO DE LEITURA com a temática LEITURA,
LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS faz parte das atividades do Núcleo, com
vistas a fortalecer os estudos e pesquisas realizados no campo da leitura.
A escolha da temática do VIII ENCONTRO DE LEITURA se ancora na compreensão que
a leitura extrapola o texto escrito e que o sujeito leitor convive cotidianamente com
diversas formas e modos de ler. Nesse sentido, o evento se constituiu como mais uma
possibilidade de intercâmbios da academia com as diversas produções tanto das práticas de
leitura escolares, quanto para além dos muros da escola.
Os Anais do VIII ENCONTRO DE LEITURA reúnem as comunicações orais estruturadas
em dois eixos: LEITURA E PRÁTICAS ESCOLARES e LEITURA, LITERATURA E
OUTRAS LINGUAGENS; os resumos dos pôsteres e os contos premiados.
Os trabalhos reunidos nestes anais foram submetidos a uma revisão lingüística pela
comissão científica, no entanto, é de inteira responsabilidade de cada autor a construção
teórica aqui apresentada.
II – LEITURA E PRÁTICAS ESCOLARES
1. MUSEU DA FAMÍLIA: ENTRELACE LEITURA E MEMÓRIA
Augusto Monte Spínola Cardoso Júnior 1
Fabíola Silva de Oliveira 2
“Outro dia fui mostrar para o meu filho o que era uma máquina de escrever!”
Paulo César Vasconcelos, jornalista da ESPN Brasil, no dia 04 de Agosto de 2008, por
volta das 23 horas e 15 minutos, no Programa Linha de Passe - Mesa Redonda – ESPN-Brasil.
Introdução
O Museu da Família, atividade desenvolvida no curso de História, junto a alunos da 5ª
série do Ensino Fundamental, é resultado de uma experiência leitora que teve como um dos
seus elementos de sustentação, a utilização de variados tipos de documentos. Esta
característica quanto à documentação, por sua vez, possibilitou tantas outras formas de
leitura como via de acesso ao conhecimento histórico do universo familiar.
O curso na 5ª série é uma iniciação aos estudos da Ciência História, com o propósito de
favorecer a compreensão de qual é o objeto de estudo dessa ciência. Desenvolvemos com o
projeto uma discussão sobre documentos utilizados pelo historiador para fazer as suas
pesquisas e sobre o ofício do historiador. 3 “Pude falar com minha mãe... Dizer o que aprendi nas
aulas. Pude observar a reação da minha mãe, que lembrou da infância dela.” (Aubérico, 5ªA)
A experiência de estudar história e a memória através do Museu da Família se constitui
como uma atividade permanente, permitindo o processo interdisciplinar com outras áreas do
conhecimento. Aprender sobre histórias é construir-se leitor do mundo, do contexto que o
cerca e que caracteriza o fato. É sabiamente aprender a ser senhor dos tempos. É aprender a
andar na rua, pegar ônibus e a conhecer a cidade; é aprender a andar pela caatinga, pegar
1
Augusto M. S. Cardoso Jr. é professor de História do Ensino Fundamental no Colégio Gênesis, na rede
pública e Especialista em História da Bahia e em Educação.
E-mail: [email protected]
2
Professora de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental do Colégio Gênesis (Feira de Santana/Ba).
Especialista em Metodologia e Prática de Ensino de Língua Portuguesa. E-mail:
[email protected]
3
BLOCH, Marc Leopold Benjamim. Apologia da História, ou, o ofício do historiador. Tradução de
André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
atalhos e a conhecer cada palmo do chão onde se faz e atua. Aqui, muito do estudo histórico
encontra-se entrelaçado com imagem, literatura, física, lingüística e memória.
Foto 1: Aluna da 5ª série apresentando alguns documentos para visitantes.
Compreendendo que estudar História é apropriar-se da construção da vida da humanidade
e construir-se atuando como cidadão, instigamos os alunos à construção de um Museu,
composto com documentos que revelariam a história das suas respectivas famílias.
Partiriam para uma coleta/seleção dos documentos e, em seguida, fariam uma entrevista
com os familiares para obterem informações sobre o documento escolhido. Favorecer-se-ia
uma análise quanto à dimensão da história de cada um, sobre nossas vidas em suas
manifestações mais cotidianas, dirigindo-se um olhar investigativo e críico possibilitado
pela leitura dos documentos que carregam, muitas vezes, uma série de informações sobre
as estruturas familiares: sobre sua religiosidade, sobre as formas de diversão, o legado
cultural, sobre a educação, sobre as profissões vivenciadas, as origens familiares, as
viagens, sobre formas de pensar e ver o mundo. Documentos que certamente possibilitam
tantas diferenças, entre as histórias das famílias de cada um.
Desenvolvimento
Os estudantes de História na 5ª série aprendem sobre seus pais avós, bisavós. Os resultados
apontam para além de um olhar diferenciado diante da leitura dos objetos recolhidos, um
fortalecimento dos laços afetivos entre os familiares quando no momento da entrevista são instigados sentimentos, desejos e sensações muitas vezes esquecidas ou guardadas, e
para a ampliação do leque de conhecimento sobre o estudo da História enquanto disciplina
escolar. O entendimento da importância do ato de pesquisar e de ser pesquisador é
salientado junto a uma compreensão da história familiar para a construção da história
social.
Aqui, através da experiência, um texto originado das informações colhidas na família se
volta para esta, transformado noutro texto! Num primeiro momento são famílias contando
histórias para outras, são familiares contando histórias para seus descendentes.
Foto 2.“Meu pai foi me explicando sobre outros documentos. Ele explicou como
funcionava a sua máquina de datilografia.” (Pétala, 5ªA)
Em seguida, são todos estes contadores de histórias ouvindo, vendo seus netos e filhos se
posicionarem com novas versões sobre os fatos/documentos estudados, de forma nova,
com motivações e razões próprias, fruto do estudo da importância de ser historiador,
realizado pelos alunos, não tanto por seus pais, avós, bisavós...
A atividade parte do pressuposto que todo ser humano é construtor histórico – social e se
fortalece a partir das relações fomentadas e construídas-reconstruídas, inicial e
permanentemente na micro-célula social – a família. Esta instituição é responsável pela
formação das bases identitárias, que são guardadas e resgatadas pela/na memória.
Nessa direção, compreendemos que conhecer a história dos seus avós, bisavós, tios,
padrinhos, pais, ou de outros familiares, por meio da leitura de fotografias, de objetos e
utensílios domésticos, brinquedos, coleções de moedas, coleções de selos, instrumentos
musicais, louças, vestes, receitas culinárias, selas, estribos, espadas, poemas, canções de
ninar, cartas de amor, cadernos escolares, cartas pessoais e outros registros escritos que
fizeram e fazem parte do acervo familiar, é tornar possível a própria compreensão da
jornada da vida familiar; é construir um processo de formação de identidade, cultivando a
cultura e história de um povo, materializadas pela memória.
Foto 3.“Tudo que eu trouxe para o Museu eu já conhecia. Mas de certa forma tinha
importância eu trazer. Passei a prestar mais atenção.” (Débora, 5ªA)
Mas como fazer estes documentos falarem? Como ou o que ouvir dos seus gritos, dos seus
silêncios, das suas histórias? Afinal, como ser historiador? 4
Partimos para novas discussões em sala de aula, mas principalmente nos voltamos para as
longas conversas com nossos familiares, donos das preciosidades.
O que era aquele documento?
“Tinha documento que eu não sabia que existia!” (Regina, 5ªB)
De quando era?
“Não sabia que o baú que trouxe era do meu tataravô” (Eliane 5ªB)
Qual o material utilizado para sua construção?
Em que contexto se inseria?
“Naquela época era moda ter uma vitrola” (Gabrielly, 5ªB)
4
BLOCH, Marc Leopold Benjamim. Apologia da História, ou, o ofício do historiador. Tradução de
André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
Foi um presente de casamento, ou de aniversário? Uma lembrança do padrinho? Foram
muitas perguntas e algumas respostas...
“Eu aprendi coisas que não sabia... a gente fica mais informada sobe a história
da família” (Laize, 5ªB)
“Gostei de trazer o robô do meu pai. Ele ganhou quando tinha cinco anos.
Podemos comparar robô velho com robô novinho!” (Gabriela Chaves, 5ªA)
“Eu nunca tinha visto o meu vestido de batizado.” (Beatriz, 5ªA)
Metodologicamente, a atividade é desenvolvida por meio de pesquisa participante,
utilizando:
1. A coleta de dados (entrevista junto à família, e coleta dos possíveis documentos da
história de cada família);
2. Leitura e produção de textos sobre a história de cada documento coletado e
3. Exposição do museu para a comunidade escolar e familiar.
A seguir, os aspectos teóricos-metodologicos que favoreceram a construção do Museu da
Família:
I Aspecto teórico metodológico do estudo
*Discussões provocadoras
1.O que é história?
2. Quando e onde acontecem os fatos?
3.O que é um museu?
II A história da família
1. Os meus avós, pais, tios padrinhos – origens: onde viveram, brincadeiras de crianças,
profissão...
III Os documentos que foram investigados:
1. Qual o tipo de documento?
2. Qual a idade?
3. Que história ele me conta?
4. De que maneira revela a época vivida por meu parente?
IV O estudo quanto aos aspectos metodológicos e avaliativos
1. Quanto às aulas
a) 1ª fase – coleta de documentos – 09 aulas
b) 2ª fase – seleção de documentos para serem estudados na escola;
c) 3ª fase - catalogação (de quem é o documento, de onde veio, qual sua historia...);
construção de textos e exposição – 03 aulas.
d) 4ª fase – exposição por três dias na escola.
2. Avaliação
Será uma avaliação como tantas outras que resultam numa nota final (máximo de 3,0
pontos); serão usados como critérios de avaliação:
a) A discussão sobre a ciência História - grau de maturidade do discurso, compreensão
sobre conceitos e termos próprios da ciência;
b) A discussão sobre o que é museu;
c) A seleção e catalogação de documentos para o museu;
d) O envolvimento com a história do documento (a investigação que vem sendo
desenvolvida e demonstrada pelas discussões);
e) A montagem da exposição;
f) A produção do texto sobre a história de cada documento (objeto) selecionado pelo
aluno;
g) O cumprimento de cada atividade, no prazo estabelecido em sala de aula em acordo
professor-aluno.
Os resultados apontam para a ampliação do leque de conhecimento sobre o estudo da
História enquanto disciplina escolar e para o entendimento da importância do ato de
pesquisar e de ser pesquisador que é salientado junto a uma compreensão da história
familiar para a construção da história social.
Após discussões e leituras de textos em sala de aula, nos voltamos para seleção dos
documentos que apresentamos no Museu da Família. Foi gratificante acompanhar a
pesquisa saindo da sala de aula, indo às casas dos alunos e retornando à classe, num
processo de modificação das (novas) concepções sobre a História, antes composta de fatos
históricos atribuídos a pessoas apontadas como mais importantes, muitas vezes de classes
sociais mais favorecias e dominantes. Agora a História torna-se deles também, todos os
familiares, que se misturavam aos alunos num processo de recordação, de memórias, de
depoimentos sobre as transformações por que passavam os filhos.
“Professor, no meu tempo isto não era História.” ( José, avô da 5ªA)
“Professor, pensei que estas cartas não iam servir para nada!”(Luciana, mãe da 5ª A)
Conclusão
A construção do Museu da Família com os alunos da 5ª série saiu dos muros da
escola e chegou a vários espaços da cidade. A experiência foi muito bem recebida em
outras escolas, e nas residências familiares, talvez o lugar de melhor acolhida. Vários pais
e mães, avôs e avós entraram em contato com a escola e deixaram registros das suas visões
acerca da atividade. Muitos reconheceram uma nova forma de se estudar História, como já
foi registrado, comparando esta visão inicial, uma história mais familiar, mais social, com
aquela (ainda) ufana, patriótica, de personagens e vultos importantes, heróis 5,
essencialmente masculinos dos seus momentos de estudos no “ginásio”. Em muitos
momentos, o espanto diante do documento exposto revelava um choque entre a História do
aluno/a da 5ª série com aquela carregada por eles, pais! “Uma sanfona pode ser um
documento, professor” (Driele, mãe da 5ªA), ou” quanta riqueza percebi ter na minha
casa!” (André, pai da 5ª C).
Diante de uma proposta de iniciação aos estudos da História logo nos primeiros
momentos da vida escolar no Ensino Fundamental, acreditamos que pais e escola puderam
acompanhar o desenrolar de estudos acerca de categorias próprias da ciência. Em outros
depoimentos conceitos/conceituações sobre temporalidade, sobre documentos, um maior
interesse para a atividade de pesquisa foi se desenvolvendo a cada momento, a cada
atividade: “Não é o que é mais velho, é o que é mais importante para nossa família!”
(Débora, 5ªA). Esta situação que mistura sala com casa de aula nos faz ver que não
estamos mais diante de uma escola transmissora apenas de conhecimentos, mas de caráter
mais investigativa, com maior diversidade de enfoque teórico-metodológico6. O estudo
permitiu que, para além da apresentação do Museu para seus familiares, as crianças
pudessem revelar, para o professor, o que entendiam que fosse um museu, o que poderia
constituir este espaço, algumas características dos documentos, e a importância de cada
elemento exposto para a história de cada um.“ Não sabia que meu avô conhecia João
Durval nem que ganhara este óculos de presente dele.” (Simeone, 5ªB)
Neste momento, o resultado da atividade de estudo da História, através das diversas
leituras possibilitadas pelos documentos presentes no Museu da Família, reafirma, por um
lado a (própria) historicidade da linguagem, por outro, a importância de uma iniciação
científica cada vez mais de base.
5
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de Historia: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez,
2004.
6
BEZERRA, Holien Gonçalves. Ensino de História: conteúdos e conceitos básicos. In: KARNAL, Leandro
(org.) História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2007.
Referências
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de Historia: fundamentos e métodos. São
Paulo: Cortez, 2004.
BLOCH, Marc Leopold Benjamim. Apologia da História, ou, o ofício do historiador. Tradução
de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BOSI, Eclea. Memória e sociedade. Lembrança de velhos. S. Paulo: T. A Queiroz, 1979.
BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros
Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, 1999.
BURKE, Peter. (org.). A escrita da História; novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São
Paulo: UNESP, 1992.
CABRINI, Conceição Et alli. O ensino de história: revisão urgente. 5. ed. São Paulo, Brasiliense,
1994.
DAIRELL, Juarez. (org.) Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: UFMG,
1996.
GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
GUSMÃO, Emery Marques. Memórias de quem ensina História; cultura e identidade docente.
São Paulo: UNESP, 2004.
KARNAL, Leandro (org.) História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 5. ed. São
Paulo: Contexto, 2007.
NIKITIUK, Sônia Maria Leite. Repensando o ensino de História. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2004.
A IMAGEM DA MORTE EM AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE
DE JOSÉ SARAMAGO
Wodisney Cordeiro dos Santos*
* Licenciado em Letras com espanhol - UEFS
Bacharel em Ciências contábeis - UEFS
Especialista em Língua espanhola - UEFS
Mestrando em Cultura, memória e desenvolvimento regional - UNEB
Email: [email protected]
INTRODUÇÃO
O presente artigo é um diálogo estabelecido com o romance de José Saramago, As
intermitências da morte, no intuito de se compreender determinados aspectos de certa
construção da imagem da morte em literatura.
A escolha dessa obra do escritor português deveu-se ao fato de nos interessarmos por uma
prática literária ao assumir determinadas possibilidades, denomina-se ora de realismo
fantástico, ora de realismo estranho, ora de realismo maravilhoso. Essas três perspectivas,
possuem uma zona de interseção o sobrenatural, confirmado ou não como uma forma de
manifestação concreta em uma determinada obra. Melhor explicando, há em algumas obras
fatos ditos sobrenaturais e posteriormente vêm a ser explicados, anulando com isso toda a
extraordinariedade nelas presentes nelas, como acontece no realismo, estranho. Como um
exercício das três possibilidades de realismo conforme as idéias de Todorov, Irlemar
Chiampi e outros autores, ousamos inserir As intermitências da morte de José Saramago no
maravilhoso como forma de demonstrar a escolha do escritor por esta prática de realismo,
ou seja, a não-predileção pelas ambigüidades ou incertezas, visto que o autor se propõe a
manter um diálogo franco com o seu leitor sem, no entanto, optar pela hesitação tão
presente no realismo fantástico. As imagens fantasmagóricas utilizadas nos romances do
autor tendem a ser encaradas como naturais, anulando, assim, o terror defendido por
Lovecraft 7 causado pela presença do sobrenatural. Em As intermitências da morte, o uso
do sobrenatural servirá para nos fazer pensar a morte sobre outra perspectiva, um tanto
quanto inusitada, ou seja, por meio da sua ausência. Pois é isso que se discutide no
romance: como ficaria a humanidade sem a existência da morte, sem que as pessoas
7
H. P. Lovecraft em seu livro El horror en la literatura, afirma que a narrativa sobrenatural deve ser
observada pela forte carga de emoção que causa no leitor (LOVECRAFT, 1989,11)
morressem. Por outro lado, estaremos vivenciando um importante papel próprio da arte e,
mais especificamente, da literatura, que é o de aproximar o homem do seu inimigo, de sua
maior angústia. Como coube ao ser humano entre os demais seres vivos ter a consciência
de sua finitude, restou a ele criar mecanismos para refletirem essa sua não-permanência
entre os viventes, e de ter a certeza de que o seu tempo de vida é breve. A arte então, e a
literatura em especial, torna-se uma ponte entre a vida e a morte. A literatura passa a ser
um valioso instrumento de confrontação do homem com a morte, uma vez que o texto
literário acaba servindo para atenuar o medo provocado por tal certeza. Portanto, se “no dia
seguinte ninguém morreu” (SARAMAGO, 2005, p.11), foi para nos fazer refletir sobre a
importância da morte em nossas vidas e o quanto morrer e viver são, em verdade, uma
unidade, são, por assim dizer, indissociáveis.
AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE
Em sua trajetória como escritor, José Saramago sempre teve a morte como um importante
tema a ser discutido. Em suas diversas obras, ele a aborda de modo que o leitor sempre
possa refletir sobre ela e confrontá-la com outras maneiras de se tratar o tema. Em As
intermitências da morte, Saramago encontra no realismo maravilhoso um meio de criar um
ambiente de reflexão sobre esta temática conflituosa e, no transcurso desta investigação,
fizemos uma caminhada no desejo de demonstrar como o autor se utiliza do maravilhoso
para estabelecer com o seu leitor outro diálogo, agora mais específico, com um tema para
todos muito árduo: a morte ou o morrer é sempre uma discussão difícil. Assim, o autor
nessa nova linha romanesca de escritura, encontra a forma ideal para tratar da morte sem
ser demasiado realista e manter a atenção do seu leitor.
Irlemar Chiampi, em seu livro O realismo maravilhoso, contribui para uma definição
muito clara para o entendimento do realismo maravilhoso. Para ela, essa tendência se dá
quando os acontecimentos relatados numa obra são oriundos da sobrenaturalidade. Logo,
não há uma explicação racional para os fatos narrados. Segundo Chiampi,
(...) o maravilhoso difere radicalmente do humano: é tudo o que é produzido
pela intervenção dos seres sobrenaturais. (...) já não se trata de grau de
afastamento da ordem normal, mas da própria natureza dos fatos e objetos.
Pertencem a outra esfera (não humana, não natural) e não tem explicação
racional. (CHIAMPI, 1980, p. 48.)
Diferentemente do fantástico, no maravilhoso não há a presença da ambigüidade; a
hesitação presente no fantástico como conseqüência do sobrenatural, no maravilhoso é
nula. Difere também do estranho uma vez que, para os fatos narrados, não há uma
explicação racional. No estranho, a sobrenaturalidade em verdade não existe. Fatos
narrados levam intencionalmente a pensar que haja algo de extraordinário. No entanto,
todos serão explicados naturalmente. No maravilhoso, diferentemente, o sobrenatural
acontece sem causar no leitor nenhuma reação de estranhamento. Ao contrário, o leitor
aceita normalmente tudo o que é descrito no texto. “No caso do maravilhoso, os elementos
sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens nem no leitor
implícito” (TODOROV,1975, p. 60).
A Bíblia, em alguns de seus livros, contempla este tipo de relato. No Gênesis, a formação
do homem ocorre mediante um efeito sobrenatural. O homem é feito do pó da terra por
Deus que, em seguida, sopra-lhe nas narinas e lhe dá o fôlego da vida. Aliás, toda a criação
é resultante de fenômenos sobrenaturais. Não se concebe uma racionalização para tais
fatos. “Maravilhoso é o extraordinário, o insólito, o que escapa ao curso ordinário das
coisas e do humano” (CHIAMPI, 1980, p.48). O diálogo entre Eva e a serpente comprova
isso:
Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o Senhor Deus
tinha feito, disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda a
árvore do jardim?
Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvores do jardim podemos comer, mas do
fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele não comereis, nem
tocareis nele, para que não morrais.
Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis.
Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e,
como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal. (Gen. 3:1-5.)
Observa-se que o diálogo entre a serpente e a mulher ocorre muito naturalmente como se a
palavra, ou seja, logos estivesse presente na serpente, pois, como sabemos, o uso da
palavra na comunicação é algo estritamente humano.
Em As intermitências da morte, no primeiro dia do ano novo em uma localidade não
revelada, as pessoas passam a não morrer. Por horas e horas nenhuma notícia é dada sobre
um único falecimento, acontecimento que começa a criar grande perturbação. Nem
colisões entre veículos, nem doenças e quedas fatais são capazes de gerar óbitos. Doentes
terminais são interrompidos de morrer e assim seguem agonizantes pela hora da morte.
Muitas pessoas aguardam ansiosas pela confirmação de que seja verdade o que está
acontecendo, no entanto, outros se mantêm preocupados imaginando as conseqüências em
virtude da ausência da morte. O não-morrer então começa a modificar a rotina daquela
sociedade e os mais diversos setores questionam a procedência da veracidade das
informações que a todos chegam desencontradas. Ninguém mais está morrendo.
Evidentemente, somente um fenômeno sobrenatural poderia contribuir para que tal
desarranjo social pudesse acontecer. Não caberia em nenhuma sociedade onde vida
existisse que a morte ali não se manifestasse. Tal fenômeno sobrenatural se manifesta em
toda a sua totalidade, no entanto, quando a morte é enfim personificada, surgindo em toda
a sua beleza feminina e frieza de morte. A morte é, de fato, uma mulher:
O mal foi que, concluída a intervenção do especialista estrangeiro, só uma vista
pouco treinada admitiria como iguais as três caveiras escolhidas, obrigando
portanto a que investigadores, em lugar de uma fotografia, tivessem de trabalhar
com três, o que, obviamente, iria dificultar a tarefa da caça-à-morte como,
ambiciosamente, a operação havia sido denominada. Uma única cousa havia
ficado demonstrada por cima de qualquer dúvida, a saber, que nem a iconografia
mais rudimentar, nem a nomenclatura mais enredada, nem a simbólica mais
abstrusa se haviam equivocado. A morte em todos os seus traços, atributos e
características, era, inconfundivelmente, uma mulher. (SARAMAGO, 2005, p.
128.)
Porém não era uma mulher qualquer. Era uma mulher de grande beleza e jovem. Portanto,
uma investigação que conduzisse ao conhecimento e reconhecimento, via de regra,
tornava-se fundamental.
Não houve portanto outro remédio, aliás como já havia sido previsto em caso de
necessidade, que regressar aos métodos da investigação clássica, ao artesanato
policial de cortar e coser, espalhando por todo o país aqueles mil agentes de
autoridade que de casa em casa, de loja em loja, de escritório em escritório, de
fábrica em fábrica, de restaurante em restaurante, de bar em bar, e até mesmo em
lugares reservados ao exercício oneroso do sexo, passariam revista a todas as
mulheres com exclusão das adolescentes e das de idade madura ou provecta, pois
as três fotografias que levavam no bolso não deixavam dúvidas de que a morte,
se chegasse a ser encontrada, seria uma mulher ao redor dos trinta e seis anos de
idade e formosa como poucas. (Idem, ibidem, p. 129 e 130.)
Para aumentar a angústia humana, após um período entre transtornos e felicidade por não
mais ter havido uma só morte, as pessoas começam a desesperar-se, já que a morte voltou a
matar e porque o recurso utilizado por ela agora é muito mais doloroso. A morte passa a
enviar cartas informando ao destinatário o dia em que ele ou ela irá morrer. Percebemos,
assim, nesta construção narrativa o caminho utilizado pelo autor para chamar a atenção não
somente para a necessidade que a sociedade humana tem da existência da morte, como
também para a luta que o homem empreende para tentar encontrar uma maneira de não
mais morrer. Na obra, no momento em que investigadores tentam encontrar a morte na
tentativa de conhecê-la para, quem sabe, dominá-la, evidencia-se numa construção
metafórica da corrida frenética empreendida pela humanidade na busca do elixir da longa
vida, no desejo de vencer a morte. Notamos, portanto, que o sobrenatural utilizado para
discutir a temática da morte, em nenhum momento causa estranheza ou pavor nos
personagens ou no leitor. O incômodo principal é o morrer ou a falta da morte. O morrer
sempre foi um incômodo para o homem; no entanto, a falta da morte configura-se um fato
novo, haja vista que o homem sempre sabe que um dia irá morrer e o não-morrer passa a
gerar um desconforto social em função da desestrutura de ter que caberem tantas pessoas
vivas num só lugar. A desordem do não-morrer contrasta-se com a euforia do viver
infinitamente. Vale salientar, porém, que o retorno da morte trará esperanças para os que
tinham nesta a reestruturação social e, para outros, a angústia de terem que passar por tudo
de novo, a saber, a certeza de que um dia deixariam de viver. Saramago encontra no
maravilhoso uma maneira distinta de fazer reflexão de um tema que a ele não o encanta
muito, porém é um assunto tão importante como falar da vida. A morte ou o morrer fazem
parte das duas faces da mesma moeda. Perguntado em uma entrevista do por que falar da
morte, ele responde:
Porque é da morte que sempre temos de falar. As pessoas morrem, mas tratamos
a morte como se fosse um episódio a mais na vida, nós a banalizamos, e não
deveria ser assim. (...) O que acontece é que pretender falar da vida evitando a
morte, como se ela não existisse, é uma mentira. O que eu pretendo é afrontarme com a morte, não com a minha morte, não com o final da minha vida, o
desastre que vai ser, a dor que sentirão quando me forem ver: coitadinho,
morreu. Não é isso. Trata-se do fato em si da morte, de que a gente tem que
morrer e o quanto isso ilumina ou, pelo contrário, escurece a própria vida que se
leva. (...) Não há nada de mórbido no que estou a dizer, nada, não há nenhuma
morbidez. Não gosto de falar da morte, mas ela está aí. O que eu quero é
afrontar-me com ela, e que aquilo que eu escreva tenha essa referência, que não é
a expressão definitiva do pessimismo, não. (...) O que pretendo, sim, é evitar que
se esqueça que ela existe, que é o que se costuma fazer. Tentamos apagar a
morte. As pessoas já não mais morrem, simplesmente desaparecem. (ARIAS,
2004, p.63 e 64.)
E a morte volta então a existir em As intermitências da morte para que as pessoas não se
esqueçam dela. Na forma de uma mulher ela segue matando e o ser humano se dá conta de
que o que houve foi uma pausa. Todos passariam a morrer agora. Todos devem morrer.
Todos irão morrer.
(...) porque o morrer é, afinal de contas, o que há de mais normal e corrente na
vida, facto de pura rotina, episódio da interminável herança de pais a filhos, pelo
menos desde adão e eva, e muito mal fariam os governos de todo o mundo à
precária tranqüilidade pública se passassem a decretar três dias de luto nacional
de cada vez que morre um mísero velho no asilo de indigentes. (SARAMAGO,
2005, p.130 e 131.)
Portanto, as pessoas deveriam seguir morrendo a fim de que a ordem fosse mantida. Em As
intermitências da morte, a mulher pela qual a morte se passa, segue a sua atividade
enviando cartas para os escolhidos. As pessoas que as recebiam passam a reagir das mais
diversas formas ao que estaria para acontecer. Alguns deixavam de pagar os impostos,
outros se entregaram às orgias, ao sexo, às drogas e ao álcool. Outras, contudo, não
esperaram tanto, suicidaram-se. Por intermédio deste relato sobrenatural o autor nos ajuda
a compreender a vida e o seu significado, a pensar no que podemos fazer ou no que
deixamos de fazer enquanto a vida passa e a presença da morte se aproxima. No relato
maravilhoso, não somos surpreendidos pela sobrenaturalidade, mas com ela conseguimos
enxergar-nos e ao semelhante. Saramago não deseja esconder a morte da realidade que o
homem vive, ele espera contribuir para que o seu leitor desperte e não se esqueça de que o
morrer e o morto constituem o nosso contexto.
Segundo Saramago: 8
A morte se banaliza para ocultar a sua realidade. Até os mortos reais que
aparecem na televisão, pelo fato de aparecerem na televisão, tornam-se de certo
modo irreais. Se você nunca se afrontar diretamente com a morte, neste caso
com a morte do outro, nunca saberá o que é. (ARIAS, 2004, p. 64.)
A morte segue a sua atividade como sempre fez e sabe fazer. Aterrorizando, angustiando,
deprimindo, matando. A pressa para ela é irrelevante e surpreende-se quando alguém, por
sua conta e atitude, dá fim à própria vida. Com efeito, a exceção também surge quando por
uma razão inesperada uma das cartas retorna ao remetente.
Diz-se, di-lo a sabedoria das nações, que não há regra sem excepção, e realmente
assim deverá ser, porquanto até mesmo no caso de regras que todos
consideraríamos maximamente inexpugnáveis como são, por exemplo, as da
morte soberana, em que, por simples definição do conceito, seria inadmissível
que se pudesse apresentar qualquer absurda excepção, aconteceu que uma carta
de cor violeta foi devolvida à procedência. (SARAMAGO, 2005, p. 135.)
Por algum motivo inexplicável uma carta retorna ao remetente. A morte não compreende o
motivo do retorno da carta violeta e a observa friamente na busca por respostas de um
acontecimento até o momento sem explicações. Usando de seus poderes, a morte reenvia a
carta ao destinatário que se recusa, ainda que sem saber, a recebê-la.
A morte olhou fixamente o sobrescrito de cor violeta, fez um gesto com a
mão direita, e a carta desaparece. Ficámos assim a saber que, contrariamente
ao que tantos criam, a morte não leva as cartas ao correio. (SARAMAGO,
2005, p. 137.)
8
Entrevista que Saramago concedeu a Juan Arias em sua casa em Lanzarote, nas ilhas Canárias. A entrevista
foi publicada originalmente em 1998 pela editora Planeta na Espanha, pouco antes de José Saramago ter
recebido o Prêmio Nobel de Literatura. Em 2004 o livro é lançado no Brasil sem retoque e no original.
Segundo Arias, Saramago na época chegou a considerar que ali estava a sua biografia uma vez que ele não
pensava em escrevê-la.
Um leitor das obras de Saramago não irá se surpreender com o uso de cartas utilizadas pela
morte em As intermitências da morte para anunciar o dia final de alguém. O autor já
antecipa em O ano da morte de Ricardo Reis esse recurso quando as pessoas passam a
tomar conhecimento da própria morte através dos jornais que anunciam o dia, a hora e o
lugar em que se iria morrer. Portanto, o autor somente modifica a maneira de como as
pessoas passariam a saber da própria morte. Não seria mais através da leitura de um jornal,
mas sim, por meio de uma correspondência cor violeta, endereçada ao futuro falecido.
Saramago relê a sua própria obra e a intertextualiza. Ou, quem sabe, extrai de seus
pensamentos uma idéia que já havia sido usada antes e a transforma, transportando-a para
outra de suas obras. Recursos sobrenaturais antes citados, como possibilidades em O ano
da morte de Ricardo Reis, tornam-se realidade em As intermitências da morte.
(...) e melhor seria ainda que aparecesse publicada a lista dos que iriam morrer,
milhões de homens e mulheres lendo o jornal da manhã, no café com leite, a
notícia de sua própria morte, um destino marcado e por cumprir, dia, hora e
lugar, o nome inteiro, que fariam quando soubessem que os matariam, que faria
Fernando Pessoa se pudesse ler, dois meses antes, O autor de Mensagem morrerá
no dia trinta de novembro próximo (...) (SARAMAGO, 2000, p. 50 e 51.)
Em As intermitências da morte, o uso sobrenatural das cartas é utilizado para anunciar o
dia tão indesejado pelo ser humano. O dia da sua morte.
O sobrescrito encontrava-se sobre a mesa do director-geral da televisão quando a
secretária entrou no gabinete. Era de cor violeta, portanto fora do comum, e o
papel, de tipo gofrado, imitava a textura do linho. Parecia antigo e dava a
impressão de que já havia sido usado antes. Não tinha qualquer endereço, tanto
de remetente, o que às vezes sucede, como de destinatário, o que não sucede
nunca, e estava num gabinete cuja porta, fechada à chave, acabara de ser aberta
nesse momento, e onde ninguém poderia ter entrado durante a noite. (idem,
2005, p. 87.)
Não há da parte do diretor-geral, ao abrir a carta, nenhuma incerteza sobre a veracidade do
que ele está vivenciando. Não existe dúvida, tampouco hesitação. O diretor-geral
acreditava no que acabara de ler e o conteúdo da carta foi capaz de desestruturá-lo, ele não
podia compreender como que tal correspondência pôde ali chegar, sem destinatário, sem
remetente e com uma mensagem aterradora. O diretor então percebe que necessita
conversar com alguém sobre o que lhe sucede e ao mesmo tempo chega a pensar que
provavelmente seja uma piada ou uma brincadeira. É então que, com as mãos trêmulas, ele
telefona ao primeiro-ministro, pois algo desta magnitude deveria ser considerado como de
segurança nacional. O primeiro-ministro ao tomar conhecimento do conteúdo da carta se
defronta com dois pensamentos distintos, já que o retorno da morte resolveria uma
infinidade de problemas, afinal, sete meses sem uma morte sequer, pois este foi o tempo
em que as pessoas ficaram sem morrer, causaram graves prejuízos. Na carta estava escrito:
(...) senhor director, escrevia, eu não sou a Morte, sou simplesmente morte, a
Morte é uma cousa que aos senhores nem por sombras lhes pode passar pela
cabeça o que seja, vossemecês, os seres humanos, só conhecem, tome nota o
gramático de que eu também saberia pôr vós, os seres humanos, só conheceis
esta pequena morte quotidiana que eu sou, esta que até mesmo nos piores
desastres é incapaz de impedir que a vida continue, um dia virão a saber o que é
a Morte com letra grande(...) preocupe-se com explicar bem aos seus leitores os
comos e os porquês da vida e da morte, e, já agora, (...) se esta carta não for
publicada na íntegra, a que lhe despache, amanhã mesmo, com efeitos imediatos,
o aviso prévio que tenho reservado para si daqui por alguns anos, não lhe direi
quantos para não lhe amargar o resto da vida, sem outro assunto, subscrevo-me
com a atenção devida, morte. (idem, ibidem, p. 112.)
Bella Josef afirma que “todo o romance discorrerá entre a nostalgia da fala reconstruída e a
necessidade de transgredir a realidade imediata através dela” (JOSEF, 1993, p. 167).
Portanto, Saramago ao escrever utilizando-se da vírgula e do ponto, tenta acercar-se da fala
aproximando-se mais do seu leitor. Porém ao usar o maravilhoso, ele rompe a todo instante
com a realidade por meio dessa fala ou palavra, sem que tal recurso impeça ou
impossibilite uma reflexão profunda dos temas abordados por ele. Ao contrário, ele instiga
ainda mais o refletir por meio de um realismo em que o sobrenatural prevalece. No
entanto, os seus textos são diretos, ele não deseja fazer-se ou tornar-se obscuro. Daí, talvez,
a não opção pelo fantástico, mas sim pelo maravilhoso. Vincent Jouve ao escrever sobre
leitura afirma:
Se o leitor está ao mesmo tempo “orientado” e “livre” no decorrer da leitura, é
porque a recepção de um texto se organiza em torno de dois pólos que podemos
chamar, como M. Otten (1982), de “espaços de certeza” e “espaços de
incerteza”. Os “espaços de certeza” são os pontos de ancoragem da leitura, as
passagens mais explícitas de um texto, aquelas a partir das quais se entrevê o
sentido global. Os “espaços de incerteza” remetem para todas as passagens
obscuras ou ambíguas cujo deciframento solicita a participação do leitor.
(JOUVE, 2002, p. 66.)
Portanto, Saramago evita os “espaços de incerteza” ainda que se utilizando do insólito para
comunicar-se. A sua opção pelos “espaços de certeza” definidos por Jouve dá ao seu leitor
o direcionamento na medida exata do que ele, o autor, deseja dividir com aquele que o lê.
Ao personificar a morte, ao ausentá-la ainda que temporariamente da vida humana e ao
trazê-la de volta, José Saramago nos faz ver o quanto que o não morrer seria desastroso
para a humanidade, como se pode observar no excerto abaixo:
Porque se os seres humanos não morressem tudo passaria a ser permitido, E isso
seria mau, perguntou o filósofo velho, Tanto como não permitir nada. Houve um
grande silêncio. Aos oito homens sentados ao redor da mesa tinha sido
encomendado que reflectissem sobre as conseqüências de um futuro sem morte e
que construíssem a partir dos dados do presente uma previsão plausível das
novas questões com que a sociedade iria ter de enfrentar-se, além, escusado seria
dizer, do inevitável agravamento das questões velhas. (SARAMAGO, 2005, p.
37.)
Percebemos assim que o autor é direto. Ele insere o leitor no âmago da reflexão, sem que
possa haver muitos espaços vazios para a indeterminação. Para ele, o não morrer
contribuiria para o total caos da humanidade e de toda a estruturação da sociedade. Ou
seja, ainda que indesejada, a morte é tão necessária quanto a vida. E ele vai mais além. Em
outro fragmento, a voz do narrador nos faz saber que a morte nos acompanha a cada
instante de nossa vida e que vivemos como se, por ela, fossemos vigiados esperando
pacientemente a chegada da nossa hora. A morte nos ronda e ainda que não a vejamos, está
à espera do momento em que nos levará para o destino final a que todos um dia se
dirigirão.
A morte viajou sentada ao lado dele no táxi que o levou a casa, entrou quando
ele entrou, contemplou com benevolência as loucas efusões do cão à chegada do
amo, e depois, tal como faria uma pessoa convidada a passar ali uma temporada,
instalou-se. Para quem não precisa de se mover, é fácil, tanto lhe dá estar sentado
no chão como empoleirado na cimeira de um armário. (idem, ibidem, p. 169.)
A dona morte encontra-se agora às voltas de um grande problema por não estar
conseguindo fazer com que um simples violoncelista receba a carta de cor violeta. À
primeira devolução, percebia ela que alguma coisa estranha sucedia. Logo, divagava sobre
a possibilidade de o carteiro tê-la posto em outra caixa de correio e por esta razão a carta
retornou. No entanto, não há carteiro. A carta retorna uma segunda vez e a morte então se
queixa porque nunca semelhante fato aconteceu. Era uma situação inusitada e que fazia
com que o mais poderoso dos seres sobrenaturais, pela primeira vez, questionasse a própria
majestade. Observando a sua lista de mortuários, nota que o violoncelista não constava na
relação. Ele que deveria morrer aos quarenta e nove anos, acabava de chegar aos cinqüenta
sem que a sua hora final chegasse. A morte se irrita, se impacienta. A carta retorna uma
terceira vez. A morte tem a idéia de alterar a data de nascimento do violoncelista e nem
isso tem o efeito esperado. Um violoncelista como tantos outros, sem fama, sem dinheiro e
solitário, que vive na companhia de um cachorro e que a morte não consegue levá-lo. Ela o
acompanha, o observa e por três dias não saiu do seu rastro. Aparenta ser uma jovem
mulher, equipa-se de óculos escuros, veste-se de tal maneira que, pode parecer irônico,
bela. Pela primeira vez, ela irá assistir a um concerto. Com o seu vestido novo ela está
mais uma vez diante do violoncelista, agora por um motivo especial. Ela espera o fim do
concerto para felicitá-lo. Ambos conversam e se despedem. Intrigado com aquela imagem,
o violoncelista não consegue retirar dos pensamentos a mulher com a qual pôde trocar
poucas palavras. Um dia, passeando com o seu cachorro, em um dos bancos do jardim, ele
a encontrou e confessou o quanto por ela se apaixonou. Ela se vai. Melhor dizendo,
desaparece. Certo dia, ela o visita e os dois conversam. Ela pede para que ele toque algo e,
ao fazê-lo, as mãos da dona morte perdem a sua frieza e começam a arder de tamanha
emoção que aquelas cordas vibrantes liberando um som tão imperceptível antes, passam a
dar-lhe um certo sentido, uma certa alegria. A morte e o violoncelista se amam ali mesmo e
ela, que nunca havia dormido, cai em um profundo sono para no dia seguinte ninguém
morrer.
Saramago alegoricamente nos chama a atenção para uma constatação: a morte não mata a
arte. Vão-se os artistas, vão-se as pessoas. A arte para sempre permanece e o artista é
imortalizado pelo seu trabalho. É a sua arte que o consagra, que o torna imortal. Em As
intermitências da morte o sobrenatural serve como um meio de fazer-nos ver a importância
da vida e da arte e como a arte cheia de vida é passada de geração em geração, sendo capaz
de vencer a morte. Nessa trajetória, acompanhamos como a escritura de Saramago tem um
objetivo claro, a saber, criar um leitor consciente e reflexivo. Nesse realismo chamado por
muitos de mágico, a magia está em fazer uso do sobrenatural naturalizando-o. O objetivo
traçado até aqui foi o de inserir o autor neste tipo de narrativa tão fortemente adotada no
continente americano, mas que tem na Europa um expoente que magistralmente a
enriquece e a dignifica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Transitamos nesta prática romanesca chamada de realismo maravilhoso, observando que a
arte, mais especificamente a literatura, desenvolve formas de interpretação do maior de
todos os medos. Percebemos que José Saramago, enquanto romancista, encontrou uma
maneira de discutir a realidade usando para isso a sobre-realidade para falar dos problemas
e das ânsias que, através dos séculos, vêm atormentando o homem. A literatura então ajuda
a tornar o medo da morte mais suportável. A obra As intermitências da morte discute a
vida sem que a morte esteja presente. O que antes se configurava em apenas breves
passagens nos romances de Saramago, converteu-se em tema central com alto teor de
reflexão. Para tal, valeu-se o autor do realismo maravilhoso criando um ambiente em que o
sobrenatural e o real se harmonizam, mantendo um equilíbrio estável em que personagens,
narrador e leitor não estranham ou hesitam diante dos fatos narrados. Através dessa prática
literária e de uma forma narrativa única, Saramago torna a morte mais suportável, menos
desconhecida, atenuando o medo que ela provoca e assim ele a enche de vida ao
personificá-la, ao torná-la viva. Por conseguinte, José Saramago nos fez ver
alegoricamente que a morte está a nos acompanhar a todo o tempo e que somente
confrontando-a, conhecendo-a, é que poderemos domar o nosso maior medo, o medo dos
medos.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA. Português. A Bíblia da Mulher. Tradução de Neyd V. Siqueira et al. São Paulo: Mundo
Cristão e Sociedade Bíblica do Brasil, 2003. 1728 p.
ARIAS, Juan. José Saramago: o amor possível. Rio de Janeiro: Manati, 2004.
CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilloso. São Paulo: Editora Perspectiva, 1980.
JOSEF, Bella. O espaço reconquistado – Uma releitura: linguagem e criação no romance
Hispano-americano contemporâneo. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1993.
JOUVE, Vincent. A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. São Paulo: Fundação Editora Unesp,
2002.
LOVECRAFT, H. P. El Horror en la literatura. Madrid: Alianza editorial, 1989.
_______________. As Intermitências da Morte. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.
_______________. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.
O GÊNERO TEXTUAL HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NA SALA DE AULA
Profª. MSc. Angela Mª. Gusmão S Martins 9
A escrita criativa e contextualizada na sala de aula
Desde bem pequenas, muitas crianças começam a fazer suas primeiras tentativas de leitura
e escrita imitando seus pais, tios, avós, com experiências espontâneas quando têm acesso
ao lápis e à folha de papel ou até mesmo às paredes de suas casas. Assim, começam a ler e
escrever o mundo, desenham, riscam, rabiscam e lêem histórias como gente grande e dessa
forma, começam a pensar a escrita. As primeiras tentativas são incentivadas por alguns
pais que oferecem novas possibilidades de desenvolvimento da ação de escrever. Esses pais
compram materiais diversificados como: quadros de giz, papel branco, giz de cera, lápis de
cor, e tantos outros como uma forma de incentivar e tornar o ato de escrever prazeroso e
significativo, outros rejeitam essa forma de escrita por causa da “bagunça”; eles acreditam,
que a criança deve começara a escrever na escola, pois lá é o local apropriado para esse
aprendizado. É verdade que é uma das funções da escola ensinar a escrever, mas é bom
lembrar que antes de a criança chegar a esse espaço, ela já pensa na escrita e na sua função
social, se tiver contato com o mundo letrado e perceber a sua importância, se desenvolverá
plenamente.
A criança pequena vai à escola para se socializar, para desenvolver habilidades corporais,
para desenvolver a sua linguagem oral, mas vai principalmente para aprender a ler, escrever
e contar. É nesse espaço, que ela começa a pensar na leitura e na escrita como práticas
sociais passando a ter contatos com atividades dirigidas pelo professor, que objetivam a
construção de significados. Ouve histórias, conta outras que já sabe, dá opiniões acerca de
situações que fazem parte do seu dia-a-dia, desenha e interpreta as ações da sua vida. E
assim, na Educação Infantil, começa a manter contato com práticas sociais de leitura e de
9
Professora Adjunta do Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários – DELL/UESB, Especialista em
Alfabetização/Programação de Ensino, é Mestre em Educação pela PUC-SP, coordenou a Escola Laboratório
da UESB de março de 1995 a junho de 2002, atua no curso de Formação para Professores – Curso
Pedagogia habilitação Educação infantil e séries inicias do Ensino Fundamental lecionando as disciplinas:
Metodologia do Ensino Fundamental de Língua Portuguesa, Alfabetização e Construção do Conhecimento,
Atividades Lúdicas e o Processo Ensino e Aprendizagem e Pesquisa e Prática Docente. Tem trabalhado com
formação continuada com os professores do Ensino Fundamental nas Redes Municipais e Estadual de ensino.
Atualmente coordena o Programa Todos Pela Alfabetização – TOPA, a Pós Graduação em Teoria e Método
de Ensino de Língua Portuguesa e ministra aulas na Pós Graduação Alfabetização e Ensino de Língua
Portuguesa nos Primeiros Anos de Escolaridade.
escrita, não para ser alfabetizada, mas para que possa perceber os sentidos e usos de cada
texto presente em sua vida.
Por meio do desenvolvimento de atividades orais, leituras de textos diversos, e do desenho,
será possível oferecer à criança pequena, situações para que reflita sobre aquilo que está
fazendo, não como uma atividade mecânica que serve apenas para reproduzir algo
preestabelecido, mas como atividade importante que cria a possibilidade da criança
construir sentido, que somente acontece, por meio da interação que passa a existir entre a
criança, o professor e o objeto social do conhecimento.
Para a criança adquirir o código escrito é preciso que o professor ofereça a ela situações
reais de escrita para que perceba o seu sentido, a sua função, e entenda que a escrita é um
sistema de representação, e que o seu aprendizado deve estar de alguma forma, relacionado
com a linguagem oral. No entanto, o que se tem observado no dia-a-dia da escola, é que
muitas vezes, o aprendizado da escrita está de alguma forma, relacionado à reprodução de
atividades avaliativas a exemplo da cópia de palavras, do ditado, da reprodução de letras e
de frases como forma de memorização ou de sistematização de estratégias que visam o
“aprendizado” daquilo que o professor “ensina”. Nesse sentido, há muitas críticas acerca da
forma como a escola tem tratado a escrita, enquanto ato mecânico do exercício de técnicas
motoras relacionadas à codificação das letras ou do estabelecimento das associações às
formas gráficas e à sua memorização. Será que por meio da repetição o sujeito realmente
aprenderá a escrever?
Segundo John Dewey, para existir aprendizagem é preciso que exista experiência, para ele
a experiência é a questão central e primeira quando se fala em educação escolar. Para que
se possa compreender o sentido de suas idéias é preciso, em primeiro lugar, entender o que
o ele concebe por experiência:
A experiência consiste primariamente em relações ativas entre um ser humano e
seu ambiente natural e social. Em alguns casos, a iniciativa parte do lado do
ambiente; os esforços do ser humano sofrem certas frustrações e desvios. Em
outros casos, o procedimento das coisas e pessoas do ambiente leva a desfecho
favorável as tendências ativas do indivíduo, de modo que, afinal aquilo que o
indivíduo sofre ou sente são as conseqüências que tentou produzir. Exatamente
na proporção em que se estabelecem conexões entre aquilo que sucede a uma
pessoa e o que ela faz em resposta, e entre aquilo que a pessoa faz a seu meio e o
modo porque esse meio lhe corresponde, adquirem significação os atos e as
coisas que se referem a essa pessoa (DEWEY, 1959, p.301).
Por conseguinte, é na experiência e na compreensão dessas relações entre o indivíduo e o
meio, que os atos adquirem significado para a pessoa e “ela aprende a conhecer-se e
também a conhecer o mundo dos homens e das coisas” (p.301). Dewey defende a educação
escolar no contexto da experiência.
Deste modo, é preciso que a criança atue de forma consciente e significativa, e não por
meio de exercícios que possibilitam, quando consegue, a memorização de algumas
situações que se lhe apresenta a escola.
Segundo discute Martins, (2001, p.19-20) John Dewey associa experiência e interação, ela
destaca:
A experiência educativa como sendo aquela que tem como princípio a interação
e a continuidade, essencialmente um processo social, que visa oportunizar a
formação de atitudes, desejos e propósitos, com o intuito de possibilitar o
verdadeiro processo de aprendizagem que só será possível, por meio da
experiência refletida.
Portanto, a experiência educativa precisa ser uma experiência inteligente que surge da
ação do pensamento reflexivo. A reflexão parte integrante da experiência, que por sua
vez, “subentende uma associação de fazer e experimentar” (DEWEY, 1959, p. 165).
Vygotsky (1998) por sua vez, ao trabalhar com o conceito de zona de desenvolvimento
proximal oferece subsídios para se pensar sobre a compreensão e o significado da imitação.
Ele destaca que quando a criança imita, ela se desenvolve mentalmente. Essa imitação
destacada pelo autor está relacionada à imitação de gestos e maneiras que as crianças
pequenas fazem, principalmente para entenderem aquilo que não conseguem apenas
quando observam. Por exemplo, a criança pequena precisa calçar o sapato alto da mãe para
entender como ela consegue andar e se equilibrar em cima daquilo, ou coloca os óculos do
pai para saber para que servem. No entanto, o trabalho com a escrita não pode ser
organizado e relacionado ao ato de copiar coisas.
Ainda segundo Vygotsky:
Até agora, a escrita ocupou um lugar muito estreito na prática escolar, em
relação ao papel fundamental que ela desempenha no desenvolvimento cultural
da criança. Ensina-se as crianças a desenhar letras e a construir palavras com
elas, mas não se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica
de ler o que está escrito que acaba-se obscurecendo a linguagem como tal (1998,
p. 139).
O ensino, principalmente no inicio da escolarização, deve ser organizado de forma que a
escrita se torne necessária às crianças. Uma necessidade essencial e imprescindível que
deve ser despertada se incorporando a relevância da mesma para a vida de cada uma dessas
crianças. Sendo assim, a escrita deve ser ensinada de modo que a criança desenvolva essa
habilidade, porque a criança só aprenderá escrever escrevendo todos os dias, de forma
contextualizada, experienciada e significativa, por meio de situações lúdicas, sem, contudo
deixar o professor de sistematizar os aspectos internos da linguagem escrita para que o
aluno possa assimilar as convenções que regem o sistema da escrita.
Ensinar a criança escrever tem sido uma tarefa desafiadora para um grande contingente de
professores, que na maioria das vezes concebe saber escrever como o acerto da ortografia.
O professor que apresenta diferentes possibilidades de leitura a seu aluno possibilita que
este tenha acesso a tudo e mais um pouco! Livros, poemas, notícias, receitas, paisagens,
imagens, partituras, sons, gestos, corpos em movimento, mapas, gráficos, símbolos, ao
mundo. Se agir assim, poderá contribuir de forma decisiva, para o desenvolvimento da
capacidade de interpretar e estabelecer significados dos diferentes textos, criando e
promovendo variadas experiências, situações novas, que levam a uma utilização
diversificada do ler/escrever.
O professor precisa compreender que a criança para aprender a escrever precisa pensar a
escrita construindo significados, que somente por meio da leitura significativa a criança
buscará referências para escrever, que ela, a professora, precisa também ser leitora e ler
diariamente os mais variados gêneros textuais, para que as suas crianças, por meio do
exemplo, sejam incentivadas a proceder também às leituras. É bom lembrar, que toda e
qualquer pessoa só conseguirá produzir um texto se tiver informações precisas sobre o
tema que irá abordar, sendo assim, para escrever textos as crianças precisam,
primeiramente, ler outros textos como fonte de informação.
Escrever na escola os mais variados gêneros textuais
Os gêneros textuais são os mais variados tipos de textos literários e não literários
discursivos que constituem as estruturas e as funções sociais (narrativas, dissertativas,
argumentativas, procedimentais e exortativas), utilizadas como maneiras de organizar a
linguagem. Sendo assim, podem ser considerados exemplos de gêneros textuais: anúncios,
convites, atas, avisos, programas de auditórios, bulas, cartas, comédias, contos de fadas,
convênios, crônicas, editoriais, ementas, ensaios, entrevistas, circulares, contratos,
decretos, discursos políticos, histórias, instruções de uso, letras de música, leis, mensagens,
notícias e tantos outros.
Segundo afirma Marcuschi, (2002, p.23):
Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga para
referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que
apresentam características sócio-comunicativas definidos por conteúdos,
propriedades funcionais, estilo e composição característica.
Destaca Bakhtin (2003, p. 284) que “é preciso dominar bem os gêneros para empregá-los
livremente” e alerta:
Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos,
tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde
isso é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação
singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso
livre projeto de discurso (p.285).
Para que a criança consiga escrever os mais variados gêneros textuais é preciso que antes
ela compreenda o que é um texto, para que serve e as suas condições de produção.
Segundo destaca Jolibert (1994) o essencial para que as crianças tornem-se escritoras
competentes é que passem por experiências como: saber que a escrita serve para qualquer
coisa, se comunicar, contar e conservar histórias, criar histórias; perceber que a escrita lhe
dá poder para se comunicar com o restante do mundo; perceber o prazer que a produção de
um texto escrito pode lhe proporcionar; entender a produção de texto não como um
trabalho enfadonho, mas como uma forma de buscar sua autonomia enquanto indivíduo.
Para a autora, é preciso perceber que existe uma grande interação entre leitura e escrita,
pois é necessário dominar a leitura para escrever e dominar a escrita para ler (JOLIBERT,
1994).
Para trabalhar a atividade escrita na sala de aula, é imprescindível que o professor que atua
no início da escolarização, tenha conhecimentos teórico/lingüísticos sobre a natureza da
língua escrita e sobre os processos envolvidos na sua aquisição, e que saiba,
principalmente, fazer uma aplicação dessa teoria nas situações reais de sua prática de
ensino. Ao ler com seus alunos uma carta, por exemplo, deve fazer alusões à estrutura do
gênero carta, para que o aluno perceba as suas características, suas funções e seus
objetivos, analisando também a linguagem. Ao trabalhar um poema proceder de maneira
semelhante, sem, contudo deixar de destacar a forma e apresentação do poema a linguagem
utilizada. Quando trabalhar a propaganda fazer com que o aluno interaja com o texto,
somente assim, posteriormente produzirá a sua própria propaganda ou anuncio.
Contudo cabe um questionamento, será que aprendemos a produzir textos memorizando as
características dos gêneros e tipos a que eles pertencem, como se tem presenciado muitas
vezes no dia-a-dia da escola?
O desenvolvimento da escrita infantil precisa estar relacionado às práticas cotidianas
(socioculturais) de participação em eventos de leitura e escrita. Nesta direção, os estudos
do letramento orquestrados por (TFOUNI, 1997; SOARES, 1999; ROJO, 1998;
KLEIMAN, 1995) focalizam as dimensões sócio-históricas na aquisição da língua escrita,
apontando que indivíduos não-alfabetizados, mas partícipes das sociedades letradas (da
cultura, dos modos de produção e dos valores sociais) também constroem concepções a
respeito do sistema de escrita e identificam seus diferentes usos e funções. Portanto, para
que a criança desenvolva a sua habilidade de escrever se faz necessário, criar na sala de
aula, a oportunidade e as condições de produção.
Assim, o objetivo desta proposta, que será apresentada a seguir, é oferecer ao professor que
atua nos anos inicias do Ensino Fundamental, um indicativo de cunho metodológico que
favoreça a prática da produção textual em sua sala de aula, não é uma receita pronta para
ser trabalhada, mas uma possibilidade de avanço por meio da produção do texto em
quadrinhos que é gênero textual que as crianças gostam muito.
A produção do texto em quadrinhos
O texto em quadrinhos é uma das primeiras leituras das crianças e exerce sobre elas um
grande fascínio e interesse. Por apresentar uma linguagem simples e interessante, rica em
imagens e recursos estilísticos, os "gibis" são as leituras prediletas de muitas crianças.
Dessa forma, este trabalho pretende organizar alguns procedimentos metodológicos com
vistas a orientar a prática de produção desse gênero textual.
Para que o aluno construa o seu texto, se tornando um sujeito ativo e atuante que tem idéias
importantes que podem ser colocadas no papel, precisa em primeiro lugar, refletir e
planejar aquilo que vai escrever, contudo, como é ainda um sujeito inexperiente, no que se
refere a produzir um texto, cabe ao professor intervir de forma positiva para favorecer o
avanço de seu aluno. Sendo assim, este trabalho, alicerçado no principio da interação entre
professor e alunos, será sistematizado a seguir em momentos que devem ser construídos
passo a passo, a partir das experiências acumuladas ao longo da vida por leitores de
“gibis”.
Procedimentos didáticos para a realização do trabalho em sala de aula
1.Trabalhando a idéia de Símbolo
Antes de dar inicio ao trabalho propriamente dito, o professor por meio de uma
conversa informal, discutirá com seus alunos a idéia de símbolo, construindo o
conceito juntamente com eles.
Linguagem simbólica (trabalhando a linguagem simbólica):
Linguagem dos sinais (surdos/mudos); linguagem dos sinais de trânsito; linguagem dos
desenhos (logotipos ou logomarcas).
Observação:
O professor deverá conversar informalmente com seus alunos, acerca da linguagem
simbólica, resgatando a sua importância para a comunicação e apresentar uma série de
gravuras para que o aluno leia os seus significados.
2. A linguagem onomatopaica:
O que é uma onomatopéia? O que as onomatopéias representam? Você conhece algumas
onomatopéias?Vamos criar novas onomatopéias?
Observação:
O professor deverá orientar seus alunos que já estão divididos em grupos de 05 elementos,
para elaboração de um cartaz com as onomatopéias conhecidas pelo grupo, devendo ser
registrado, nesse cartaz, o significado de cada uma delas. No cartaz, deverá existir um
espaço para as onomatopéias criadas pelos outros grupos. O grupo deverá utilizar revistas
em quadrinhos como suporte para a elaboração da atividade.
3. A Motivação
Atividade oral:
Vocês gostam de revistas em quadrinhos? Por que vocês gostam de revistas em quadrinhos? Vocês
costumam ler revistas em quadrinhos? Quais são as revistas que vocês mais gostam? O que chama
mais sua atenção nas revistas em quadrinhos? Se vocês fossem um personagem de um texto em
quadrinhos, com quem vocês gostariam de se parecer? Por quê? O que vocês acham de fazermos
caixas de revistas em quadrinhos para momentos de leitura em classe? Vocês acham importante
escrever histórias? Se vocês fossem escrever uma história em quadrinhos, que tema trabalhariam?
Por quê? Vocês seriam capazes de criar uma história em quadrinhos?
Observação:
Incentivar a criança a participar das atividades desenvolvidas em sala de aula é de suma
importância para sucesso do trabalho do professor. Estar motivado significa a garantia da
continuidade do processo de trabalho. Chama-se a sua atenção para trabalhar a oralidade da
criança, assegurando lhe a palavra e respeitando o seu posicionamento.
4. A Produção Textual
Procedimentos metodológicos:
O Personagem:
O que é um personagem? Qual deve ser o papel dos personagens nas histórias? Para se construir
um personagem, em que se deve deter o escritor? Pense um pouco e responda: se você fosse um
escritor e estivesse criando um personagem, como ele seria? (estilo).
Construção dos personagens:
A classe deverá ser dividida em grupos de no máximo 05 alunos; em cada grupo deverá existir um
ilustrador que dará forma ao personagem a partir da criação do grupo;
Ficha cadastro do personagem:
Nome: ....................Idade: .........Local do nascimento: ...............................................
Nome da mãe: ............................Nome do pai:............................................................
Endereço: .....................................................................................................................
Aspecto físico:..............................................................................................................
Temperamento: ...........................................................................................................
Gostos e preferências: .................................................................................................
Onde vive: ...................................................................................................................
Observação:
Esta relação de dados só tem o objetivo de ajudar o grupo, ficando a critério deste,
acrescentar ou suprimir algum dado. Cada grupo deverá fazer um cartaz contendo os dados
considerados importantes, apresentado à classe no momento de socialização.Cada grupo
criará um personagem que será o “seu” personagem.
Apresentação dos personagens:
Cada grupo terá um momento para apresentar o seu personagem; cada grupo afixará a
ilustração do personagem para o resto da classe; cada grupo apresentará um cartaz
contendo os dados do seu personagem.
Observação:
Todos os grupos apresentarão os seus personagens para um momento de socialização. Este
momento deverá ser rico, para que o personagem realmente se integre com a classe.
5. Criação da História:
Já que todos se conhecem!! Então, com base nos personagens criados por todos os grupos,
cada grupo deverá produzir a sua própria história.
Observação:
Fica a critério do grupo usar o número de personagens que quiser na construção de sua
história.
Apresentação das histórias dos grupos: Cada grupo lerá a sua história para toda a classe; o
grupo apresentará as suas ilustrações para a classe.
Observação:
Após as leituras das histórias, haverá um momento para que todos se posicionem quanto as
produções dos grupos.
6. Correção dos textos:
Valorização do texto do aluno:
O professor deverá ampliar a história produzida por cada grupo, se possível, em álbum
seriado sem fazer qualquer alteração no texto do grupo; deverá falar da importância da
história do grupo, destacando os aspectos mais interessantes do texto.
Auto correção:
Conversa informal sobre o texto, o professor deverá induzir os alunos a fazerem as
correções necessárias; análise do professor observando:
A idéia: concatenação, clareza, coerência; a linguagem: coerência, coesão; a linguagem dos
balões: é coerente com o que foi feito anteriormente; a estrutura do texto: início, meio e
fim; ortografia; pontuação;
Reescrita do texto:
O professor deverá fazer a reescrita do texto em conjunto com a classe, utilizando o texto
original dos grupos e o texto que foi ampliado; O texto reescrito deverá ser reproduzido no
quadro, quando todos copiarão em seus cadernos.
7. Elaboração da revista da classe:
Criação do nome da revista: cada grupo apresentará a sugestão que deverá ser escolhida em
votação.
Criação da capa da revista: cada grupo deverá criar uma capa condizente com a história
produzida; a capa considerada mais completa será eleita a capa principal da revista.
Ficha bibliográfica da obra e informações: cada grupo deverá buscar informações para
poder atender as normas vigentes.
Lançamento da revista: no dia do lançamento cada grupo apresentará a sua história,
fazendo uma análise do processo de criação.
Conclusão:
Espera-se que o desenvolvimento desta proposta se constitua num momento lúdico e
significativo, tanto para os alunos, quanto para o professor. Que a criatividade dos alunos
se manifeste fazendo com que o trabalho com a linguagem seja realmente, um processo de
apropriação de novos conhecimentos, e que por meio deste trabalho seja possível que os
professores percebam, que por meio de um processo interativo construído passo a passo, é
possível trabalhar em prol do desenvolvimentos das habilidades básicas, possibilitando ao
aluno o seu desenvolvimento pleno.
REFERÊNCIA
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Ática, 2003.
DEWEY, John. Experiência e educação. Tradução: Anísio Teixeira. 3 ed. São Paulo: Nacional,
1979.
JOLIBERT, Josette. Formando crianças produtoras de texto. Volume II. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1994.
KLEIMAN, Ângela B. Os significados do letramento. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva,
MACHADO, Anna Raquel, BEZERRA, M. Auxiliadora. Gêneros textuais e ensino. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2002. p. 19-36
MARTINS, Angela Maria Gusmão Santos. Experiência pedagógica: um tema (re) visitado.
Dissertação de mestrado, São Paulo: PUC/SP, 2001.
ROJO, Roxane O letramento na ontogênese: uma perspectiva socioconstrutivista. In: ROJO,
Roxane: Alfabetização e letramento: perspectivas lingüísticas. Campinas, SP: Mercado de Letras,
1998.
TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 1997.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos superiores.
São Paulo: Martins Fontes, 1998.
A FORMAÇÃO DO PROFESSOR-LEITOR: ENTRE IDAS E VINDAS
Priscila Licia de C. Cerqueira 10
Faculdade Santo Antonio - FSA
Pensar a formação do leitor na atual sociedade é desafiador, de modo especial no Brasil,
onde os discursos vinculados pelas mídias, editoras e sistemas escolares vêm traçando um
perfil pouco otimista do professor, manifestando-o numa representação negativa de
disposição para a leitura e na ineficiência do seu trabalho pedagógico em formar novos
leitores.
Conciliar o papel entre o ser professor e o ser leitor é tarefa que se impõe aos estudos que
versam sobre as histórias de leitura e formação de professores, uma vez que revelam os
sentidos e as intricadas relações da leitura no decurso da formação pessoal e profissional,
permitindo aos professores (re)conhecerem e (re)construirem os saberes dos quais são
portadores ao promoverem o diálogo entre o saber acadêmico e a experiência.
Tais considerações justificaram a necessidade premente de se discutir, na pesquisa
intitulada Saberes Literários e Docência: (re)constituindo caminhos na (auto)formação de
professores leitores, as práticas da leitura literária que contribuíram/influenciaram na
formação, enquanto leitoras, de três professoras 11 egressas do curso de Pedagogia – séries
iniciais da Unversidade Estadual de Feira de Santana- UEFS.
Desta forma, dentro do universo proposto, intento, neste artigo, refletir sobre a docência e
seus desdobramentos em torno das práticas da leitura literária desencadeadas na história de
vida das professoras.
Temporalidade, formação
Investigar como as práticas culturais de leitura de professoras de um curso de formação em
serviço podem orientar e/ou influenciar a prática com a Literatura Infantil foi o que
constituiu o meu foco de interesse na pesquisa que desenvolvi no contexto do Curso do
Mestrado em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia –
UNEB, sob a orientação da Professora Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro.
10
Mestra em Educação e Contemporaneidade pela UNEB, Professora do Curso de Pedagogia da Faculdade
Santo Antonio - FSA. [email protected].
11
Para preservar a identidade dos sujeitos envolvidos na pesquisa, fiz uso de nomes fictícios.
Tomando como referência as práticas culturais de leitura, a memória e a pesquisa (auto)
biográfica, o meu recorte recaiu sobre a biografia individual de leitoras, para compreender
como os repertórios e as práticas de leitura modelam e/ou influenciam o trabalho destas
docentes com a Literatura Infantil.
Ao fazer uso do método (auto)biográfico, busquei descortinar o horizonte cultural destas
professoras no que se referia à leitura e aos processos de formação do leitor. A intenção era
que as narradoras, representadas por professoras do ensino fundamental do Município de
Feira de Santana, reconstruíssem por meio da memória, as práticas, imagens e
representações da leitura na sua infância, adolescência e tempo presente. Ao reconstituírem
suas lembranças, as professoras buscavam pistas dos percursos, preferências de textos,
ambientes, modos, acesso e pessoas que contribuíram na sua formação, enquanto leitora.
Nesta abordagem, a história da leitura é admitida como uma prática cultural plural que
comporta experiências, lembranças, percepções, gestos e vozes de pessoas comuns. Nesse
sentido, as experiências da leitura 12 se convertem em experiências carregadas de sentidos e
maneiras de vivenciá-las, o que contraria a concepção hegemônica da leitura que seria a de
controlar e submetê-la a um experimento definido e sequenciado, que nada mais é do que
uma construção histórica de poder.
Roger Chartier (1990;1991) pesquisador francês, desponta como um dos principais
expoentes sobre os estudos culturais. Estes vêm dando espaço para que os leitores
confidenciem suas práticas de leitura, não estando restritos a uma coleção de casos
particulares. Nesse sentido, as histórias de leitura podem ser um dos meios de revelar
práticas e modos de ler, conseqüentemente, tendem a objetivar a relação dos leitores com
este ato.
Os percursos produzidos em torno da leitura, ao serem re-memorados, além de possibilitar
aos docentes refletir e expressar idéias e sentimentos, podem levar igualmente ao
redimensionamento das representações sobre o leitor, a leitura e a literatura. Além disso, ao
perscrutar as práticas de leitura presentes nas suas histórias das professoras, encontra-se
uma idéia central: a subjetividade e particularidade dos caminhos que levam à formação
delas enquanto leitoras.
As apropriações em torno das histórias de leitura, anunciadas pelos depoimentos, revelaram
que a experiência com a cultura oral e escrita pode se dar em experiências individuais ou
12
Perspectiva apresentada por Larossa (1996), no seu texto Literatura, experiência e formação, que diz que a
experiência da leitura nada mais é do que pensar a leitura como algo que nos forma, nos de-forma e nos
trans-forma. Esta perspectiva será desenvolvida nos capítulos posteriores (cf. bibliografia nas referências).
partilhadas com diversos sujeitos nos mais diferentes espaços sociais. Ao relembrar
situações e circunstâncias de uso da leitura, rupturas e coincidências se fazem presentes nas
narrativas das professoras sobre espaços de sociabilidade da leitura.
E dentre estas pistas é recorrente que a primeira relação com leitura tenha se dado por
meio da contação de histórias: “Eu me lembro muito de meu pai que contava muitas
histórias pra gente. Ele cantava e contava muitas histórias. Acho que essas foram as
minhas primeiras histórias” (Profª. Luisa).
O processo de apropriação da leitura na infância se configura na contação de histórias,
primeira via de acesso à leitura e, conseqüentemente, os narradores se destacam por
interagir e partilhar com estes, os futuros leitores. O fascínio pela arte de contar e ouvir
histórias oportuniza não só a vivência de uma experiência coletiva de leitura, ao reunir-se
em torno de um narrador, como possibilita o acesso aos valores culturais que permeiam a
sociedade e são passados através das narrativas.
No seu depoimento, a professora destaca a presença do pai como mediador e incentivador
para que ela se tornasse leitora:
O que meu pai fez na verdade não tinha a intenção de incentivar a leitura,
mas aquela atitude dele acabou sendo definidora para a minha formação. Ele
não tinha consciência que estava me incentivando nesse caminho da leitura...
(Profª.Luisa)
A menção a vozes do passado, que contavam histórias além de resgatar práticas de leitura,
que tem atravessado gerações, evidencia que para ser um narrador a ausência de
escolaridade dos que contam a história não se constitui num impedimento para que se
narrem os contos, os causos ouvidos na infância (BESNOSIK, 2002).
Em um outro depoimento desta professora a contação de história também é destacada:
No início da aula tinha sempre uma leitura literária. No decorrer da aula você
precisava dar conta da leitura acadêmica, da teoria. Infelizmente na universidade
você não se distancia desta leitura. A cada dia você está mergulhando mais e
mais nessa teoria. A leitura do texto de literatura mesmo que no inicio da
aula era um incentivo. Os professores faziam não com o intuito de mostrar o
que você deveria fazer na sua sala de aula. Mas quando você via todo o
envolvimento de uma turma de adulto, você pensava como aquela prática
também poderia ta envolvendo seus alunos. Como você poderia ta formando
leitores a partir do seu exemplo de leitor em sala de aula.
A prática da leitura literária vivenciada no inicio das aulas possibilitava uma leitura
descomprometida de uma conotação escolar - avaliativa -, o que contribuía para uma
leitura partilhada, assim como na infância com a contação de história. Era uma leitura
realizada sem outra intenção senão ampliar o horizonte cultural dos professores e provocar
emoções.
A força da transmissão das narrativas orais que fizeram parte da história de leitura desta
professora, hoje é utilizada na sua prática para partilhar leituras, envolver os alunos:
Eu me lembro que eu trabalhava com os alunos da noite no ensino de jovens e
adultos. São alunos que trabalham duro o dia todo e para você prender a atenção
deles até o final da aula é complicado. Sempre no inicio da aula fazíamos uma
leitura. Eu me lembro que nós lemos o livro “Os Miseráveis” todo e se eu
fosse fazer vontade a eles eu não parava a leitura. Era um capítulo a cada dia
e eles pediam que não parasse. O trabalho melhorou, fluía melhor. E eles
passaram a trazer jornais, revistas, enfim, outras leituras que eles levavam para
partilhar com os colegas.
Tudo converge para que o seu capital de referências culturais advindos das práticas que
marcaram a sua experiência com a leitura no tempo - espaço da infância e fase adulta volte
a fazer parte da sua história, agora como mediadora na formação de leitores. Além disso,
esta prática apesar de ser realizada na escola, estava dissociada de qualquer conotação
escolar. Ela aparece espontânea e espontaneamente era cultivada.
Sem dúvidas, tais práticas se constituem em referenciais para o incentivo e utilização
adequada da literatura infantil na sala de aula, assim é retratado pela professora Profª.
Beatriz:
Não tive incentivo a leitura literária no curso de pedagogia. Discutíamos
muito sobre educação, mas sobre literatura não. Mas tem uma professora que me
marcou bastante com o seu incentivo a literatura. As contribuições dela nesse
sentido foi mais por questão pessoal, pois a disciplina não passava pela
questões da literatura.
A fala da professora vem referendar a ausência de propostas, práticas e iniciativas dos
cursos de formação de professores de proporcionar o convívio e conhecimentos acerca de
eixos teóricos, tais como concepção de leitura e literatura, estatuto da literatura infantil,
estética da recepção e formação do gosto. No decorrer do curso são esparsas as
contribuições de alguns professores, que, por sensibilidade e comprometimento com a
formação cultural do aluno, proporcionam práticas com leituras literárias.
Além disso, as práticas de leitura literária desenvolvidas no âmbito da universidade eram
declaradas como práticas pontuais, mas significativas devido à experiência estética que as
mesmas experimentavam. É preciso se ter claro que as práticas de leitura difundidas na
universidade não têm a intenção de formar leitores, de fomentar o gosto pela leitura
literária ou superar os limites da decodificação dos textos científicos. No âmbito
acadêmico, a literatura é marginalizada, não autorizada.
Se centrarmos nas práticas formativas desencadeadas nos cursos de formação,
compreenderemos a necessidade do futuro professor experienciar, como aluno, durante
todo o processo de formação, o acesso, o contato e a leitura literária, para que esta prática
também venha a ser desenvolvida com naturalidade nas suas atividades pedagógicas. Não
se trata de dar prioridade à leitura literária na formação do professor, mas de torná-la uma
experiência análoga à experiência com a literatura que ele desenvolverá com seus alunos,
como mediador e formador de leitores.
A legitimação da leitura literária nos cursos de formação, especificamente o de
licenciatura, deve possibilitar aos professores uma outra compreensão e representação
sobre a leitura e o leitor, mais do que isso deve ajudá-lo a fazer escolhas, encarar o
inesperado e partilhar idéias e visões de mundo. O repertório de leitura - proveniente da
experiência da leitura literária nos mais diversos espaços sociais – e nossa capacidade de
análise crítica - desencadeada pelos conhecimentos da teoria literária – embasarão as
nossas escolhas, as nossas estratégias para trabalhar a leitura literária na escola.
Não se trata de fazer apologia às teorias e ao uso da literatura nos cursos de formação em
serviço para a solução dos problemas que têm afetado o ensino. Mas de reconhecer que as
lacunas neste campo de conhecimento podem inviabilizar a construção de um trabalho
pedagógico que vise a formação de um leitor capaz de fazer a leitura do texto e do mundo
em que está inserido (PAULINO, 2004).
A partir dos depoimentos já expostos, é possível identificar que grande parte das práticas
de leitura presentes nas histórias das professoras não estão desvinculadas da influência dos
sistemas formais de educação. Entretanto, no processo da escolarização, na infância, as
lembranças de situações, práticas e pessoas que contribuíram na história de leitura, revela
que as leituras nem sempre estiveram associadas ao prazer, como expressa a Profª Carol:
...Tinha muita preguiça de ler. Eu lia porque era forçada, porque tinha
que fazer alguma atividade. Mais depois fui entendendo o sentido da
leitura. Lê não só por ler. De toda uma leitura a gente tira um aprendizado,
um conteúdo...
A leitura é apontada, neste relato, como pretexto para desenvolvimento de determinada
atividade, o que a caracteriza como um instrumento de aprendizagem escolar. A
experiência com a leitura na escola está sempre voltada a imposições, controle e avaliação
do que é lido, de maneira que muitas destas professoras, durante o seu processo escolar,
por não poderem burlar as leituras indicadas, terminavam cedendo.
Aí se estabelece a grande diferenciação. A leitura utilizada na escola, na grande maioria,
centra-se na aprendizagem, ou seja, torna-se um mecanismo para assimilação do conteúdo
a ser medido. O prazer do ler, motivado por objetivos outros que não seja o aprendizado é
descartado, tornando a leitura na escola voltada para a aprendizagem de conteúdos.
Para Walty (2003; p.51) o processo escolar convencional tende a engessar o texto literário,
tornando-o pretexto para se trabalhar conteúdos:
O discurso didático esvazia o texto literário de seu potencial, congelando-o em
definições e classificações, ou usando-o com outros objetivos tais como
transmitir conhecimentos, ensinar regras morais, refletir sobre drogas ou aborto
na adolescência e, principalmente, ensinar regras gramaticais.
O excesso de didatismo faz com que a literatura seja utilizada por um discurso conceitual,
classificatório, há regras rígidas e castradoras, inviabilizando a capacidade criativa e o
diálogo com o texto. Vê-se assim, que a escola não só modela o uso do livro escolar, como
normatiza as formas de apropriação da leitura, não deixando espaço para a leitura
imprevista, subversiva.
Entretanto, cenas da história da professora Profª Beatriz, na infância, revelam que a escola
contribuiu para o seu interesse pela leitura, ou seja, as práticas vividas e difundidas por
seus professores tornaram o ambiente escolar privilegiado para o experimento com a
leitura:
A base foi a escola, a direção, a professora, os livros indicados. Eu comecei a ler
muito cedo e na alfabetização já colecionava gibis, depois passou para histórias
infantis. Foi a escola com certeza, o ambiente mesmo. Não tive um ambiente
de família que conta história. Foi a escola mesmo!
Neste depoimento, a escola é colocada como via exclusiva da professora para sua entrada
no mundo da leitura. O espaço de leitura escolar lembrado por Profª. B caminha na contra
mão das críticas reincidentes a respeito das precárias contribuições da escola e dos
professores na formação do leitor. Chamo atenção para o fato de que não se pode restringir
a formação dos leitores à escola e que nem sempre ela é vilã ou culpada pela falta de
interesse da criança e do jovem pela leitura literária.
Os sistemas formais de ensino, mesmo que não promovam a formação do leitor, destacamse como instituições favoráveis à apropriação dos impressos e dão pistas sobre as formas
de ler. No depoimento anteriormente oralizado pela professora, as circunstâncias de acesso
e incentivo à leitura vieram das experiências de leituras partilhadas com professores.
Os processos de formação de leitoras, no contexto da escola como espaço de circulação de
impressos e textos, são reconstituídos, levando-se em conta práticas de leitura que estavam
diretamente vinculadas a uma atividade com fins avaliativos. Embora em depoimento
anterior, a escola para a professora Profª. Beatriz tenha sido considerada fundamental, os
tons gerais dos relatos das demais professoras seguem em direção à afirmação: “... a escola
não incentivava a leitura”.
Observamos que as lembranças de duas professoras sobre suas histórias de leitura nos
ambientes formais de ensino, independente do espaço tempo que retratem, trazem a
perspectiva da ausência de incentivo à leitura literária. A referência a atividades
desprazerosas e desprovidas de significado, no âmbito da formação profissional, também
destacam-se nos depoimentos das professoras:
No começo foi muito difícil. Levei muito tempo sem estudar e fiquei preguiçosa.
Aí de repente você se vê num ambiente totalmente novo, com coisas que você
nem imaginava. Eu tive muita dificuldade para ler. As leituras eram imensas,
porque muitas vezes tínhamos que ler livros inteiros. Uma pessoa que não lia
nada, de repente se vê tendo que ler tantas coisas. Os professores diziam que
nós tínhamos que ler para não sairmos do mesmo jeito que entramos. A
universidade ela exige. O professor não dar nada pronto a ninguém. Você tem
que ir em busca do conhecimento. A partir daí eu vi a necessidade de ler. Se eu
não lesse, eu ia me prejudicar e como eu não queria me prejudicar comecei
a ler (Profª.Carol).
O espaço da universidade é tido como o impulsionador para sua condição de leitora. A
professora se contradiz neste aspecto, pois nega todo seu trajeto de acesso e uso da leitura
anterior à entrada na universidade. A leitura retratada no depoimento está associada à
aprendizagem, ou seja, à necessidade de dar conta das disciplinas e desenvolver
habilidades para a resolução de problemas no cotidiano escolar. As práticas da leitura
individual das professoras, seja estudante, seja profissional, são relacionadas à “leitura por
obrigações”, não cabendo assim, a leitura “por prazer”. É o que se verifica na seguinte
passagem: “Quando a gente vai para a universidade a gente se vê obrigada mesmo a
ler para poder fazer as atividades”.
Como visualizado, os depoimentos orientaram-se, em sua grande maioria, por uma
liberdade tutelada em que os sentidos estavam dados e os modos de ler, de antemão,
asseguravam as finalidades da leitura. (LACERDA, 2003). Estas práticas distanciavam as
professoras da experiência da leitura, a qual não se constitui na decifração de um código,
mas na construção de sentidos (LAROSSA, 2002).
As estratégias utilizadas nas instituições formadoras visam à compreensão do texto e este
materializa os conhecimentos pertinentes para a formação desejada, de modo que ele se
torna a própria formação. Nesta perspectiva, para ser formado, o aluno precisa absorver as
idéias postas pelo autor sem qualquer reflexão, uma vez que nesta prática se constitui o
foco central da sua formação (TOMÉ, 2004; p.128).
A contribuição da universidade na formação leitora pode ser vista com destaque na
declaração da Profª.Luisa:
A partir da universidade a minha relação com a leitura melhorou muito. Lia
sempre, mas não com freqüência. Hoje eu não consigo ficar muito distante de um
livro. A sua prática exige que você esteja constantemente estudando. Além disso,
você está sempre envolvido com outras linguagens, mesmo que seja um
pedacinho em revista, histórias para contar para o filho, filmes para vê. Acho que
minha relação com a leitura depois da universidade melhorou muito. Bastante!
Neste trecho, como em tantos outros narrados por esta professora, a universidade é
demarcada como espaço importante e significativo para a inserção num novo mundo que
tem na leitura sua base de sustentação. Dando continuidade a esta linha de pensamento, ela
declara:
No magistério não tive incentivo à leitura como na universidade. A universidade
por estar trabalhando percebi esta dificuldade. No magistério eu não tive nenhum
incentivo, nem o despertar dessa conscientização. A universidade ela lhe
desperta para que você corra atrás daquilo que ficou em falta. Você vai se
melhorando a cada dia. O dia-dia é muito corrido e por isso você acaba
encontrando dificuldade para colocar a leitura em dia. Tem muitas leituras,
filhos, trabalho e estudo. Tenho uma relação de livros para ler e não consegui,
por conta do tempo que é pouco. Tenho trabalho para fazer, outras pesquisas e as
leituras vão ficando para trás (Profª. Luisa).
A prática de leitura na universidade, para as professoras Profª.Luisa e Profª.Carol,
constituiu-se numa experiência desafiadora pela dificuldade de se adaptarem à rotina de
estudo e pela falta de tempo que impedia a realização das leituras recomendadas nas
disciplinas cursadas. O fator tempo constitui-se para estas professoras no principal
impedimento para o aprofundamento e para a realização de leituras de seu interesse. Esta
dificuldade também é declarada pela Profª Beatriz:
Antes da universidade eu era melhor leitora. Porque em outras fases eu tinha
menos ocupação, um tempo em que eu não trabalhava. Mas a universidade é o
“ponta pé”. Peca pelos fragmentos de texto que colocam. Como estudar um texto
que está no livro. Ela peca, mas tem uma influência enorme de nos fazer
conhecer muitos autores, de abrir a nossa mente, de nos fazer conhecer
muitas coisas.
É revelado neste depoimento que os textos trabalhados nas disciplinas, por representarem
apenas partes de um livro, fragmentam a leitura, impossibilitando o conhecimento mais
aprofundado do tema trabalhado. A fala da professora chama a atenção para o uso
freqüente da xérox como um meio de difusão e circulação do impresso na universidade. A
adoção deste suporte de texto por parte de alunos e professores é recorrente porque:
Esse dispositivo se configura como uma forma mais econômica em termos de
tempo e dinheiro, para fazer chegar o texto escrito às mãos de todos os alunos,
tendo em vista que nem todos têm condições de adquirir pela compra (...)
(MORAES, 2000; p. 168).
As práticas de leitura desenvolvidas nas instituições superiores limitam-se a um tipo de
texto e à adoção de um sentido exclusivamente acadêmico da leitura que se faça de tais
textos. Com estas observações, percebemos que a formação do professor ainda se encontra
centrada na racionalidade técnica, dando ao saber científico uma posição hegemônica em
relação aos demais saberes 13.
Apesar da insatisfação quanto à utilização da xérox como material de leitura, a Profª.
Beatriz reconhece a contribuição da universidade na ampliação do repertório de leitura por
meio de diferentes textos que circulavam nas disciplinas, pressupondo a realização da
leitura extensiva. Segundo Chartier (2001; p.120), a leitura extensiva é a leitura mais
crítica, a qual acumula textos efêmeros, diretamente vinculada ao cotidiano das mudanças
políticas.
A leitura é a base de sustentação da aprendizagem. E quando utilizada na perspectiva da
leitura literária sem as amarras que as instituições formativas insistem em colocar, tanto o
professor quanto o aluno são capazes de mobilizar leituras outras para construírem os
saberes que lhe serão úteis dentro e fora do ambiente escolar.
As experiências em torno da leitura, narradas pelas professoras, foram vividas como algo
único, portanto trazem a marca da individualidade sem perder, contudo, sua dimensão
social. Não foi na busca de informações verificáveis que procurei revelar as experiências
com a leitura das três professoras, mas sim intentei registrar o modo como elas olhavam
para si mesmas como leitoras e visualizavam a própria vida na memória. As palavras das
professoras, bem como suas narrativas, não se constituíram em exemplos ou ilustrações de
uma idéia, mas na sua concretização (KRAMER,1996).
Como narraram as professoras, os espaços de socialização de leitura confirmam as
singularidades das experiências, a não linearidade dos caminhos percorridos. Em meio às
13
Esta perspectiva dos saberes pode se encontrada em Tardif (2002), que afirma que os saberes dos
professores são plurais e heterogêneos por serem oriundos da história individual, da sociedade, dos sistemas
escolares, enfim, das diversas relações que o individuo estabelece com o mundo.
queixas, as instituições formais de ensino destacam-se como espaços privilegiados de
trocas e incentivos.
Da escuta das narrativas foi possível apreender que na prática com a leitura as professoras,
inconscientemente, utilizam a sua herança cultural, a qual provém das relações
estabelecidas com as pessoas e textos em diferentes espaços e tempos da sua trajetória
pessoal e profissional. Desta forma, o conhecimento das trajetórias de vida e de leituras
destas três professoras, através das maneiras, formas e espaços de sociabilidade com a
leitura, corroborou com a perspectiva de que:
Leitores se formam mesmo é através de suas próprias leituras, e estas se dão em
diversos espaços sociais, em diversos momentos de vida, em diversos momentos
de relacionamentos humanos, em diversas circunstâncias culturais (...) A
formação de leitores se desenvolve o tempo todo, ao longo da vida inteira, às
vezes com lentidão, às vezes com dificuldades, às vezes com um ritmo
alucinado e surpreendente para o próprio sujeito que se perde em suas leituras
(PAULINO, 2007; p.146).
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discursivas de conhecimento e de saberes. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2004
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LITERATURA E EDUCAÇÃO: ENCONTROS E DESENCONTROS
Adriana Gonçalves da Silva*
Graduanda em Letras Vernáculas pela UNEB - Universidade Estadual da Bahia
([email protected])
INTRODUÇÃO
O ensino de literatura abarca um cenário conflituoso. O texto “Literatura e Educação:
encontros e desencontros” traz uma abordagem sobre as práticas de ensino cristalizadas, há
séculos, por programas curriculares que privilegiam aspectos históricos e cronológicos, e
deixam à margem a leitura dos textos, aprisionados à tradição descritiva e classificatória.
O artigo que se apresenta, justifica-se por fomentar uma complexidade de reflexões e
reunir teorias que aprofundam a importância da literatura para o desenvolvimento de um
povo, tanto no que se refere à sua condição de humanidade, quanto nos aspectos cultural e
social.
O texto visa despertar reflexões sobre o lugar da literatura na sociedade, a relevância de um
trabalho cuidadoso, assistemático, bem como apontar rumos contrastantes à realidade
vivenciada.
Para tanto, em atenção à legitimidade textual, procurou-se fundamentar com as
inquietações de teóricos da literatura como: Antonio Candido, exímio teórico, responsável
por enriquecer as idéias principais sobre literatura; Rildo Cosson, o porto seguro de
ancoragem para este trabalho, principalmente em reflexão sobre a escolarização literária, e
ainda, as memoráveis contribuições de Roland Barthes, Marisa Lajolo e Alice Vieira,
Roberto Reis e Érico Veríssimo.
A expressiva capacidade dos autores citados resulta em peças-chaves na fundamentação da
discussão, que assim se divide para melhor compreensão: Primariamente se discorre sobre
o conceito de literatura; em segundo plano é produzido um debate sobre a leitura literária e
a escola no qual se ressalta a historicidade do texto literário e seu engessamento no âmbito
escolar. Por último, salienta-se a literatura como seio humanizador, provocador de saltos e
rupturas, quando desamarrada da camisa de força que aprisiona a atividade literária em sala
de aula.
Literatura: em busca de um conceito
“O que eu vi, sempre, é que toda ação
principia mesmo é por uma palavra
pensada. Palavra pegante, dada ou
guardada, que vai rompendo rumo”.
(João Guimarães Rosa)
Para tecer uma discussão sobre o corpus literatura, suas funções na representação social e
principalmente como é pensada e discutida no âmbito educacional, necessário se faz, em
primeiro plano, abordar, sobretudo, algumas das muitas tentativas de definir-se literatura.
Arte da escrita por excelência, é, para muitos, dentre todas as possibilidades de leituras, a
mais rica e prazerosa, pois através dela, tem-se contato com épocas distintas, com acesso
às questões sociais, históricas e ideológicas do tempo em que os textos foram produzidos.
Essas marcas ainda reverberam na sensibilidade e na inteligência daqueles que se
interessam pela vida e pelo ser humano.
Candido (1975, p. 53) define a literatura como:
(...) uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal
da linguagem, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os
sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural,
indispensável à sua configuração, e implicando em uma atitude de gratuidade.
Como um profundo estudioso da literatura, e, portanto, amante da arte na qual esteve
mergulhado por anos a fio, Candido, na citação, sublinha a manipulação técnica como um
dos fatores determinantes à classificação de uma obra literária. Entendida e nomeada por
Barthes (1980), como a “linguagem literária”, na obra intitulada Aula. Segundo ele, a
linguagem literária estabelece uma nova forma de representar, pois, possibilita uma relação
com a realidade natural. Consoante as contribuições de Barthes, compreende-se, que
mesmo a linguagem quando recriada por novos horizontes, os fatos que a permeiam, no
entanto, são resultantes da realidade do dia-a-dia de quem escreve.
Concernente à linguagem literária, Lajolo (1981, p. 38) traz a seguinte contribuição:
É a relação que as palavras estabelecem com o contexto, com a situação de
produção da literatura que instaura a natureza literária de um texto (...). A
linguagem parece tornar-se literária quando seu uso instaura um universo, um
espaço de interação de subjetividade (autor e leitor) que escapa ao imediatismo, a
peculiaridade e ao estereótipo das situações e usos da linguagem que configuram
a vida cotidiana.
A autora ratifica, através de sua concepção, que a linguagem possui uma função de
excelência na definição de uma obra literária. Portanto, as teorias que fundamentam este
trabalho consideram a palavra o cerne da manifestação artística que traduz a literatura. A
forma como a matéria-prima, palavra, é manipulada caracteriza a linguagem literária. As
palavras são iguais, brotam da mesma fonte, do pensamento humano, são reflexos da
realidade diária. O cuidado e o jogo que o artista da palavra produz, transpondo os limites
da sintaxe e da semântica as tornam especiais.
A literatura liberta o homem para usar seu pensamento sem a necessidade de se esquadrejar
nas regras que aprisionou a língua, haja vista que a literatura é o único lugar em que o
homem pode se contradizer. Nela, ele se sente livre para ser branco e daqui a pouco ser
negro, como diz Stoppard apud Veríssimo (2001) “Escrevo peças porque escrever diálogos
é a única maneira respeitável de você se contradizer.”.
A própria literatura é uma grande contradição, pois ao mesmo tempo em que liberta,
também aprisiona pelas regras do poder exercido pelo cânone literário, que traz arraigado
em suas veias, a modo bem literário, metafórico, um cenário de tradições e culturas
avessas, símbolo de recalque do poder colonizador. Para costurar melhor a questão, Cânon,
ninguém melhor do que Reis (1992, p.70):
O conceito de Cânon implica um princípio de seleção (e exclusão) e, assim, não
pode se desvincular da questão do poder: obviamente, os que selecionam (e
excluem) estão investidos da autoridade e o farão de acordo com os seus
interesses (isto é: de sua classe; de suas culturas, etc). Convém atentar ainda para
o fato de que o exercício desta autoridade se faz num determinado espaço
institucional (no caso, a Igreja).
A literatura por muitos anos, e ainda hoje, é como as demais artes, acessível a poucos. A
leitura continua sendo privilégio. Enquanto isso, a literatura perde de atuar como
riquíssimo instrumento educativo na formação do homem. “Se, por não sei que excesso de
socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino exceto
uma, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no
monumento literário” Barthes (1980). A literatura, portanto, se corporifica de grande
responsabilidade, assume caráter mais geral de exprimir aquilo que a história deixou
escapar, as ideologias dominantes, pois, não se preocupa apenas, com registrar fatos, mas
apresenta também, acontecimentos por meio dos quais é possível compreender melhor o
comportamento das pessoas.
Held apud Vieira (1989, p. 11) ilustra esse fato muito precisamente:
A literatura tem sido ao longo da história, uma das formas mais importantes de
que dispõe o homem, não só para o conhecimento do mundo, mas também para a
expressão, criação e re-criação desse conhecimento. Lidando com o imaginário,
trabalhando a emoção, a literatura satisfaz sua necessidade de ficção, de busca de
prazer. Conhecimento e prazer fundem-se na literatura, e na arte em geral,
impelindo o homem ao equilíbrio psicológico, e “faz reunir as necessidades
primordiais da humanidade: a aprendizagem da vida, a busca incessante, a
grande aventura humana.”
Em outras palavras, a literatura pode servir como grande aliada para a construção de
saberes e enriquecimento cultural e humano, quando a ela é dada a permissão de exercer
sua principal função, de ser companheira do homem, tão bem sublinhado por Dostoievski
apud Gonçalves Filho (2000) “Se não houvesse a palavra, a solidão humana seria
intolerável”. Parafraseando Paulo Freire, é através das palavras que os homens se fazem e
não no silêncio. Por este ângulo a literatura deve ser concebida, pois, assim se oferece
como um seio, um objeto de conhecimento.
Leitura literária e a escola
“Ler é outro modo de ouvir”.
(Marcos Bagno)
A afirmação de Vieira é providente para adentrar no contexto de literatura escolarizada.
Um campo demarcado por inúmeras ideologias subjacentes ao fazer diário do profissional
atuante na área de Língua Portuguesa. São de ordem burocrática e discursiva, que muito
atrapalham o exercício mais coerente da literatura, de desenvolver o seu corpo linguagem
por meio da palavra escrita.
(...) A literatura não apenas tem a palavra em constituição material, como pela
leitura, seja pela escritura, consiste exatamente em uma exploração também a
escrita é seu veículo predominante. A prática da literatura, seja das
potencialidades da linguagem, da palavra e da escrita, que não tem paralelo em
outra atividade humana. Por essa exploração, o dizer o mundo (re) construído
pela força da palavra, que é a literatura, revelou-se como uma pratica
fundamental para a constituição de um sujeito da escrita. (COSSON, 2006, p.
16)
Corroborando as idéias do autor, somente nas práticas de sala de aula, no trato com a
leitura e escrita de obras literárias é possível observar o desenvolvimento de regras e
imposições, bem como quebrar os discursos construídos por uma categoria acadêmica e
também política. Desse modo, em uma linguagem mais clara, é o professor, usando de sua
sabedoria, que produz as possibilidades necessárias de acesso sem restrições à literatura,
essa que abarca o despertar dos mais diversos conhecimentos sobre a humanidade.
Para Candido apud Cosson (2006, p. 15):
A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob
a pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos
e a visão do mundo, ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto nos
humaniza. Negar a função da literatura é mutilar a nossa humanidade.
Diante da visão de Candido sobre literatura, percebe-se que as práticas de literatura
vigentes nas escolas, atualmente, são bastante frustrantes, pois essas se resumem por
historicizar os períodos e os autores, atribuindo-lhes características e envolvendo a leitura
de pequenos trechos, nada além do que vem no livro didático, com o fim confirmativo de
tais características. São poucas as possibilidades que se abrem ao privilégio de uma
degustação completa de uma obra. Assim, o que fica ao final do curso são estruturas
meramente formadas de uma seqüência de escolas sem vinculação alguma das obras com o
contexto no qual foram escritos.
Vale salientar que essa esdrúxula forma de trabalhar a literatura acontece no ensino médio,
pois o Ensino Fundamental fica totalmente excluído dessa atividade que devia ser a chave
para o desenvolvimento cultural e humano. São desastrosos os números sobre a quantidade
de livros que os brasileiros lêem durante a vida inteira. Muitos alunos saem do Ensino
Fundamental sem, ao menos, terem lido um único livro. São analfabetos funcionais, porque
não sabem ler, não chegam a passar de simples decodificadores da língua, portanto, não
são letrados. Fazem uma leitura ordinária de um parágrafo e no final, não sabem dizer o
que nele está escrito. É muito claro, muito mais do que ratificado, todo o problema está na
falta de leitura, se não sabe ler um pequeno trecho, bem menos saberá ler o mundo, esse
todo complexo de fatos e conhecimentos.
Em leitura a Rildo Cosson, sua obra “Letramento literário”, o autor traz uma historinha de
uma professora que ao deparar-se com as dificuldades dos alunos, promoveu troca de
livros entre a turma. Cada família se responsabilizava por comprar um título e, após o filho
realizar a leitura, trocava com um colega, sucessivamente. A simples troca do livro
provocou estranhamento. Será que os alunos aprendem só em ler o livro e receber outro e
mais outro? Parece muito pouco aos olhos pouco entendidos. Todavia, é necessário
lembrar que ao realizar uma leitura, a pessoa necessita lançar mão dos diversos
mecanismos que possam lhe auxiliar na compreensão de determinado texto, que, aliás, em
primeiro momento não é nada fácil de depreender. A leitura pode significar, à primeira
vista, a ponta do iceberg. O que está submerso, aquilo que os olhares desavisados não
conseguem enxergar, subjaz às pressuposições não verbalizadas.
Quando ainda não se tem o domínio sobre o texto literário, vale muito mais o incentivo
constante por ler mais, que imposições a análises e decorações de características de obras e
períodos literários. Ler implica completar as lacunas do texto. Cosson (2006) já diz “ler
implica troca de sentidos não só entre escritor e o leitor, mas também com a sociedade
onde ambos estão localizados, pois os sentidos são resultados de compartilhamentos de
visões do mundo entre os homens no tempo e no espaço”. Ele é ainda mais profundo e
enfático:
( …) se acredito que o mundo está absolutamente completo e nada mais pode ser
dito, a leitura não faz sentido para mim. É preciso estar aberto à multiplicidade
do mundo e à capacidade da palavra de dizê-la para que a atividade da leitura
seja significativa. Abrir-se ao outro para compreendê-lo, ainda que isso não
implique aceita-lo, é o gesto essencialmente solidário exigido pela leitura de
qualquer texto. O bom leitor, portanto, é aquele que agencia com os textos os
sentidos do mundo, compreendendo que a leitura é um concerto de muitas vozes
e nunca um monólogo. Por isso, o ato físico de ler pode até ser solitário, mas
nunca deixa de ser solidário. (COSSON, (2006, p.27)
A escola, preocupada por cumprir uma programação estabelecida pelo currículo, abandona
a atividade simples, porém rica e muito produtiva. O programa ainda vigente nos dias
atuais de Língua Portuguesa, mais precisamente Literatura, faz parte ainda de um
pensamento do século XIX, o que significa que a escola não avançou nesse sentido,
durante mais de um século. É muito simples essa constatação, basta verificar um livro
didático do século XX e compará-lo ao do século XIX, a estrutura continua a mesma, os
mesmos conteúdos, os trechos de livros dos mesmos autores. Uma reflexão: será mesmo
que é interessante continuar na mesmice? O que foi relevante para ser discutido no século
XIX permanece nos dias atuais? Para responder esse questionamento é necessário
compreender como são constituídas as práticas de literatura no âmbito escolar. A estrutura
permanece sempre a mesma, porque poucos são os que se predispõem a romper com o que
já está pré-estabelecido, sendo muito mais cômodo culpar o sistema e permanecer no
arcaísmo.
Os textos literários parecem estáticos no papel, entretanto, são veias de sangue, reflexos de
uma sociedade. Portanto, ao afirmar que deve haver uma redimensão dos rumos com o
trabalho na área de literatura, não significa que a intenção aqui marcada, seja a de
abandonar toda a obra desse período, pelo contrário, é necessário levar em consideração
principalmente os cânones. Afinal, não devem ser esquecidos aqueles que tacitamente
calcaram as bases na literatura. Contudo, há que se fazer um paralelo da produção atual
com a passada.
A literatura é importante não só para estudar funções e arranjos literários, mas também
para compreender a história da humanidade. Para que isso se torne possível, a prática em
sala de aula deve ser o cerne da mudança. A proposta pode continuar a mesma, porém o
professor pode ser o agente transformador desta prática massificadora que agencia
alienação ao ser humano, frente à ordenação da sociedade. Segundo Cosson (2006 p. 23):
(…) estamos diante da falência do ensino da literatura. seja em nome da ordem,
da liberdade ou do prazer, o certo é que a literatura não está sendo ensinada para
garantir a função essencial de construir e reconstruir a palavra que nos humaniza.
Em primeiro lugar porque falta um objeto próprio de ensino. Os que se prendem
aos programas curriculares escritos a partir da história da literatura precisam
vencer uma noção conteudista do ensino para compreender que, mais que um
conhecimento literário, o que se pode trazer ao aluno é uma experiência. De
leitura a ser compartilhada.
Esse fato caracteriza bem o trabalho das escolas. Usam a literatura principalmente no
ensino fundamental, unicamente como pretexto para garantir o ensino da leitura e da
escrita em detrimento do pressuposto humanístico. Não que a escola não possa fazer do
literário lugar de aprendizagem, no entanto, é imprescindível que a literatura seja exercida
sem abandono do prazer e do envolvimento que a palavra proporciona ao sujeito com a
vida, a história, com o próprio homem.
Desse modo, no seio da sala de aula, para que a literatura cumpra a sua função
humanizadora, é nítido que o trabalho transcenda o ato de ler e experiencie a exploração da
carga potencial do texto. A literatura, nesse sentido, torna-se matéria constitutiva de cultura
para o povo que se abre à sua manifestação.
A literatura como humanizadora: uma proposta.
“O bem de um livro está em ser lido.”
(Umberto Eco)
Dada a problemática que envolve a atividade com a literatura, percebem-se as
discrepâncias cada vez mais alargadas entre o prazer e a emoção, a literatura a serviço da
formação intelectual do indivíduo, do bem estar psicológico e as práticas que fizeram o
caminho inverso, adormecidas no silêncio pela ideologia dominante que aliena ao saber
pouco significativo, restrito às grades que legitimam os estanques e deficientes aspectos de
formação.
Nesse cenário, bastante conhecido de escola, a literatura assume uma posição nada
tranqüila. Vê-se sempre em uma situação dual: por um lado, presa à função institucional,
onde as regras imperam e delimitam o transcorrer do curso; por outro lado, um despontar
do prazeroso mundo do imaginário, sempre podado pelo imediatismo e garantido espaço
conteudista. Concernente ao exposto Vieira (1989, p. 2) ressalta:
Para que as mudanças possam ser iniciadas, é necessário que a proposta adote
uma concepção de ensino de literatura despida de preconceitos, afastada da
tradição escolar e aberta à realidade cultural de nosso tempo. Tal atitude
implicaria a ruptura com padrões e comportamentos, de há muito estabelecidos e
fixados, difíceis de serem rompidos, devido talvez à organização escolar e social.
Se não, como explicar o fato de inúmeros docentes com boa formação
acadêmica, alguns até com cursos de pós-graduação, continuarem a exercer suas
funções de forma tradicional, pouco ou nada diferenciada de seus colegas?
É providencial trazer Vieira, com o intuito de postular algumas reflexões sobre o fazer
docente. As últimas palavras anteriormente citadas fazem parte de um rol das inquietações
sobre a ação dos educadores.
Por que mesmo com tanta capacitação, acesso à
Universidade, a prática permanece a mesma? É necessário sim, levar em consideração as
condições de trabalho em que os educadores se encontram. São inúmeros os fatores que
interferem no trabalho diário de sala de aula, desde o âmbito administrativo, pedagógico e
até extra-classe, entretanto, todas essas implicações não devem legitimar que seja negado
ao aluno a vivência da obra literária, como experiência transformadora e não como
assimilação de mecanismos codificados de aplicação e escuta, pois, o poder de expressão
da linguagem abre novas dimensões à experiência, num processo de conhecimento sobre o
mundo. Lajolo (2002, p. 12) é bastante incisiva ao referir-se neste sentido:
O que fazer com ou do texto literário em sala de aula funda-se, ou devia fundarse, em uma concepção de literatura muitas vezes deixada de lado em discussões
pedagógicas. Estas, de modo geral, afastam os problemas teóricos como
irrelevantes ou elitistas diante da situação precária que, diz-se, espera o professor
de literatura numa classe de jovens. A precariedade de tal situação costuma ser
resumida nos clichês e preconceitos que afloram vêm à baila temas que
relacionam jovem, literatura, professor, escola, literatura e similares.
Os alunos percorrem oito anos, e/ou nove, até o final do Ensino Fundamental e não
conseguem produzir um texto com clareza. Muito menos ler trechos sem dificuldades. Tal
afirmação descortina e desvela que o uso obrigatório de regras impostas sem
contextualização, nada acrescenta ao crescimento, tanto no que concerne ao desempenho
sobre a escrita, tanto sobre a literatura, bem menos ainda sobre o humano. São
compreensíveis os inúmeros embates a serem vencidos, haja vista que a resistência à
literatura é um círculo vicioso. Por mais que se afirme que o aluno aprende mais quando
busca por meio da leitura, o ensino de Língua Portuguesa ainda permanece voltado à
aprendizagem da gramática normativa.
Ancorada nas teorias de alguns estudiosos, é que se sustenta a fertilização de vislumbrar
possibilidades variadas, de trabalhar com obras literárias, em diversos tempos. Diante
disso, Candido (1972, p. 805) faz validar o enunciado:
A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial. (...). Longe de
ser um apêndice da instrução moral e cívica, (...), ela age com um impacto
indiscriminado da própria vida e educa como ela. (...). Dado que a literatura atua
com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de
virtude e boa conduta. E a sociedade não pode escolher senão o que em cada
momento lhe parece adaptado aos seus fins, pois mesmo as obras consideradas
indispensáveis para a formação do moço trazem frequentemente aquilo que as
convenções desejariam banir. (...). É um dos meios por que o jovem entra em
contato com realidades que se tenciona escamotear-lhe.
Conforme Candido, a literatura exerce um grande poder na formação do indivíduo, não só
resumindo a função que a literatura proporciona, como também pela riqueza de valores que
nela estão imbuídos. A literatura humaniza, enquanto se faz instrumento de aprendizagem
e sabedoria.
Barthes (1980, p. 21), diz que “a escritura se encontra em toda parte onde as palavras têm
sabor”. Diante do argumento do escritor, fica mais fácil propor um ensino de literatura que
fustigue o desejo, a busca pela degustação, pois assim se torna mais fácil aprender. É uma
metáfora já gasta quase denotativa, pois é pelo desejo de busca que se chega à concretude e
não há nada mais feliz que realizar a busca através do prazer.
Portanto, aos educadores, cabe criar espaços para a leitura dessas obras, considerando-as
como documentos históricos, sócio-culturais e ideológicos da memória coletiva. Vale
salientar que há o risco do erro, todavia para acertar, muitas vezes é preciso transpor o erro.
A prática docente nunca existiu de modo pronto e acabado, é um exercício diário de
construção e reconstrução, ajustes e auto-avaliação, o que não vale é parar no tempo e não
arriscar.
Considerações finais
Na dimensão de ator dessa chamada educação literária, aprendiz, errante e ancorado às
bases que fundamentam o discurso sobre a literatura e as práticas de ensino, se fez buscar
entender o conflitivo exercício que se inclina à seara pedagógica desse componente
curricular.
Desse modo, o contexto que fundamenta essas reflexões baseia-se numa abordagem
historicista da literatura. Ainda que de forma muito breve, traz as contradições
reprodutivistas e alienantes do trabalho de Língua Portuguesa e Literatura. Sob a égide
reflexiva, o texto repousa na dualidade do ensino de literatura: fragmentado, pouco eficaz,
acrítico e ocultador da essência favorecedora dos valores e práticas que fustigam a
potencialização e emancipação humana.
Literatura e educação: encontro e desencontros, presentifica-se na tentativa tranqüila,
bastante coerente de chamar a atenção para o fato de a Literatura sair da posição em que se
encontra por mais de um século, na qual assume um papel inferior à sua grandeza, atuante
como periférica que não atende nem à ideologia dominante, porque os programas não
chegam a ser cumpridos, nem se efetivam enquanto ação político-pedagógica.
Por esse prisma, literatura deixa de exercer-se como um bem maior: o de alargar os
horizontes do conhecimento, instigar a imaginação e a curiosidade. Em suma, o trabalho
vem confirmar as teorias subjacentes, sendo estes apenas o início de uma longa reflexão
que demanda um olhar atencioso sobre a insuficiência das práticas literárias em vigência.
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AS INTERFACES DO TEXTO LITERÁRIO NO ENSINO DE LÍNGUA
PORTUGUESA
Liliane Lemos Santana Barreiros 14
[email protected]
No encontro com a Literatura (ou com a Arte em
geral) os homens têm a oportunidade de ampliar,
transformar ou enriquecer sua própria experiência de
vida, em um grau de intensidade não igualada por
nenhuma outra atividade. (COELHO, 1991, p. 25)
O profissional da educação não deve perder de vista o princípio artístico de que a literatura
é, antes de mais nada, arte, é um fenômeno de criatividade que representa o ser humano, o
universo, a vida por meio da palavra, numa comunhão entre o sonho e a vida prática, entre
a utopia e a realidade. Para tanto, a leitura proporciona esse processo de interação entre os
diversos mundos de significações. Através dela o homem tem a oportunidade de ampliar,
transformar e enriquecer sua própria experiência de vida. Sendo assim, a leitura é uma
tarefa imprescindível para a formação do aluno, visto que a troca de informações entre o
autor, o mundo e o leitor possibilita ao educando tornar-se um leitor atento, crítico e
constante, além de um cidadão consciente de seu papel transformador.
Ao mesmo tempo, a leitura pode ser uma verdadeira “viagem” em qualquer idade, pois as
histórias antigas não perdem o seu fascínio. Além disso, o que já foi contado há séculos
reaparece de muitas formas nas histórias atuais. Um grande exemplo são as narrativas
clássicas da Literatura. Segundo Calvino (1981, p. 11), “os clássicos são aqueles livros que
chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de
si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais
simplesmente na linguagem ou nos costumes)”. Portanto, a Literatura configura-se no
motivo principal da interação do homem com o universo, com o outro e consigo mesmo,
visto que a arte implica em atividades de construção, de expressão e de conhecimento.
O ato de ler constitui-se em uma das grandes conquistas da humanidade. Pela leitura, o ser
humano não só absorve o conhecimento, como pode transformá-lo em um processo de
aperfeiçoamento contínuo. Esse procedimento de aprendizagem, através da leitura,
possibilita a emancipação da criança e a assimilação dos valores da sociedade, pois é na
14
Licenciada em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS. Especialista em
Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e Literatura pelo Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e
Extensão – IBPEX. Membro do Grupo de Pesquisa “Edição de Textos” (Diretório dos Grupos de Pesquisa –
CNPq).
infância que se forma o hábito da leitura. Segundo os PCN’S de Língua Portuguesa (1997,
p. 36), “não se formam bons leitores oferecendo materiais de leitura empobrecidos [...] As
pessoas aprendem a gostar de ler quando, de alguma forma, a qualidade de suas vidas
melhora com a leitura”. Por conseguinte, não é temerário afirmar o caráter social da
literatura, visto que a mesma tem função formadora na vida do homem.
Ao historiar os princípios da educação, identifica-se que, paralelo à literatura de caráter
universal, sempre prevalecia uma literatura de cunho moralista, própria do século XIX,
direcionada à infância e à adolescência. Os títulos já indicam o seu conteúdo formador de
caráter, de moral identificável, com modelos de virtude, amor e desprendimento a serem
seguidos pelas crianças e jovens, ou seja, tudo que venha facilitar a integração deles na
sociedade. Acredita-se que a valorização da família na sociedade burguesa é a mola mestra
que transforma a leitura em prática social, quando constitui uma atividade privada nos
lares, tendo o livro como instrumento ideal para a formação da moral burguesa. Desde
então, “ser leitor, papel que, enquanto pessoa física, exercemos, é função social, para a
qual se canalizam ações individuais, esforços coletivos e necessidades econômicas”
(LAJOLO; ZILBERMAN, 1999, p. 14).
A literatura infantil brasileira desenvolveu-se, segundo Riche (1999, p. 130), “na virada da
modernidade para a pós-modernidade e vai refletir esteticamente esse sistema social
complexo vivendo entre o pré-capitalismo de algumas regiões [...] e as grandes cidades”.
Tem-se, então, uma cena social plural, com duas realidades distintas no território nacional:
de um lado – crianças com pouco ou nenhum acesso ao livro infantil e à leitura, e, de outro
– facilidade incrível aos bens de consumo, entre eles a literatura para crianças.
Muito embora se conviva com tal disparidade no Brasil, pretende-se destacar, entretanto,
que, na atualidade, o livro infantil apresenta a realidade – os problemas sociais, políticos e
econômicos. Ao assim fazer, não foge do lúdico, pois continua a transmitir emoções, a
despertar curiosidade e a produzir novas experiências. Por outro lado, desempenha uma
importante função social que é fazer com que a criança perceba intensamente a realidade
que a cerca. Sendo assim, é importante que o ensino de língua portuguesa seja organizado
de modo que os alunos sejam capazes de “valorizar a leitura como fonte de informação, via
de acesso aos mundos criados pela literatura e possibilidade de fruição estética, sendo
capazes de recorrer aos materiais escritos em função de diferentes objetivos” (PCN’s de
Língua Portuguesa, 1997, p. 42).
A função social da literatura permite e facilita ao homem uma compreensão – e, porque
não dizer, uma emancipação – dos dogmas que a sociedade lhe impõe. Isso se torna
possível pela reflexão crítica e pelos questionamentos proporcionados pela leitura. Se a
sociedade buscar a formação de um novo homem, terá de se concentrar na infância para
atingir esse objetivo. Nesse sentido, os contos clássicos estimulam o raciocínio lógico e
aguçam a sensibilidade artística, equilibrando o sonho com o real. É um jogo estimulante –
a criança sabe que o que está lendo não é verdade, mas finge acreditar – é a magia do
imaginário, tão necessária ao desenvolvimento infantil. Além disso, pode-se dizer que
esses textos são abertos a múltiplas leituras, transformando a literatura para crianças em
suporte para uma experimentação do mundo. Dessa maneira, as histórias apresentam as
dúvidas da criança em relação ao mundo em que vive e abrem espaço para o
questionamento e a reflexão, provenientes da leitura.
De acordo com Silva (1986, p. 21), a leitura do texto literário “pode se constituir num fator
de liberdade e transformação dos homens”. Em conseqüência, pode-se dizer que tanto a
leitura do texto maravilhoso quanto a leitura do texto realista cumprem o papel social de
transformar a infância, na medida em que fazem a criança pensar criticamente. Portanto,
cabe à escola viabilizar o acesso do aluno ao universo dos textos que circulam socialmente,
ensinar a produzi-los e a interpretá-los e torná-lo capaz de selecionar os que podem atender
a uma necessidade sua. Além disso,
formar um leitor competente supõe formar alguém que compreenda o que lê; que
possa aprender a ler também o que não está escrito, identificando elementos
implícitos; que estabeleça relações entre o texto que lê e outros textos já lidos;
que saiba que vários sentidos podem ser atribuídos a um texto; que consiga
justificar e validar a sua leitura a partir da localização de elementos discursivos.
(PCN’s de Língua Portuguesa, 1997, p. 54).
Contudo, só pode constituir-se um leitor competente através de uma prática constante de
leitura de textos de fato, a partir de um trabalho que deve organizar-se em torno da
diversidade de textos que circulam socialmente. Através desse trabalho com a leitura temse a possibilidade de produzir textos eficazes, estabelecendo o espaço de construção da
intertextualidade.
A leitura e a escrita são atividades dialógicas que ocorrem no meio social através do
processo histórico da humanização. Segundo Bakhtin (1992, p. 95), o trabalho com a
leitura e a escrita adquire o caráter sócio-histórico do diálogo e a linguagem preenche a
representação social: a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido
ideológico ou vivencial.
A leitura e a produção de diferentes gêneros textuais possibilitam que os alunos ampliem
suas capacidades de uso da linguagem em diversas situações de interação, por meio de
aprofundamento dos recursos lingüísticos que já conhecem e utilizam e de apropriações de
novos recursos. Para Irandé Antunes (2003, p. 70), a leitura é uma atividade de acesso ao
conhecimento produzido, ao prazer estético e, ainda, uma atividade de acesso às
especificidades da escrita.
Somente por meio da prática da leitura, o aluno conhecerá diversos aspectos que são de
natureza da escrita. Assim, esta se configura como indispensável ao processo de produção
de texto, pois é na leitura dos diversos gêneros que o aluno identificará os múltiplos
aspectos envolvidos na produção de um texto e, também, selecionará o gênero mais
adequado a cada situação de interação/produção.
Sabe-se que a escrita varia de acordo com o desenvolvimento da leitura, ou seja, aprendese a escrever a partir do que se lê. Sendo assim, a leitura, por um lado, nos fornece a
matéria-prima para a escrita: o que escrever. Por outro, contribui para a constituição de
modelos: como escrever. Para tanto, deve-se também disponibilizar momentos de
discussões em sala sobre temas diversos, o que permitirá aos alunos emaranhar argumentos
positivos e negativos de forma segura, independente da complexidade do assunto em
questão. À vista disso, “os textos poderão funcionar como pretexto desencadeador da
discussão de um tema sobre o qual os alunos produzirão seus textos” (GERALDI, 2003, p.
64).
Acredita-se que para aprender a escrever um gênero determinado de texto é necessário que
os alunos sejam postos em contato com um corpus textual desse mesmo gênero, que lhes
sirva de referência em situações de comunicação bem definidas e reais. Portanto, é função
do professor fornecer ao aluno condições adequadas de elaboração, permitindo-lhe
empenhar-se na realização consciente de um trabalho lingüístico que realmente tenha
sentido para si, e isso só é conseguido à medida que a proposição de produção textual seja
bem clara e definida, apresentando-se as “coordenadas” do contexto de produção. Vale
ressaltar que este trabalho deverá:
[...] valorizar, estimular cada tentativa, cada conquista do aluno, favorecendo, em
todo momento, a formação de uma auto-estima elevada, responsável, agora e
sempre, pela disposição de tentar falar e escrever, mesmo sob o risco da
incompletude e da imperfeição. (ANTUNES, 2003, p. 160).
Dessa forma, os momentos em sala de aula devem ser utilizados para despertar a
criticidade dos alunos, levando-os a refletir sobre a função social do texto, em especial do
texto literário, e o processo dialógico das possíveis produções, eliminando a exclusividade
das situações artificiais de produção textual tão presentes no cotidiano da escola.
Observa-se que, mesmo a literatura sendo um instrumento poderoso de mobilização social,
cada vez mais, os alunos estão distantes do “mundo encantado” e dessa forma perdem
contato com conteúdos sociais diversificados que poderão auxiliá-los não somente na
produção de um texto, mas também na vida. A arte literária reflete toda a complexidade da
natureza humana e, através do trabalho com a linguagem e do prazer estético, estimula a
criatividade do ser humano e ensina-o a lidar com seus medos, seus anseios, seus sonhos e
suas frustrações de forma a enriquecer sua própria experiência de vida.
Segundo os PCN’s de Língua Portuguesa, 1997, p. 37-38:
A questão do ensino da literatura ou da leitura literária envolve, portanto, esse
exercício de reconhecimento das singularidades e das propriedades compositivas
que matizam um tipo particular de escrita. Com isso, é possível afastar uma série
de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos
literários, ou seja, tratá-los como expedientes para servir ao ensino das boas
maneiras, dos hábitos de higiene, dos deveres do cidadão, dos tópicos
gramaticais, das receitas desgastadas do "prazer do texto", etc. Postos de forma
descontextualizada, tais procedimentos pouco ou nada contribuem para a
formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os
sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias.
Este processo de ensino pode ser desenvolvido a partir de algumas atividades como, por
exemplo, leitura e análise de textos literários de autorias diversificadas; discussões sobre os
temas, no intuito de ampliar o repertório de informações sobre o assunto; projeção de
imagens; projeção de filmes; audição de músicas; acompanhamento do processo de
produção e consequentemente de reescritura dos textos. É importante trabalhar de forma
dinâmica, pois o ser humano é estimulado continuamente, através de sons e imagens, a
perceber um mundo plural, colorido, virtual, interligado, visto que a sociedade atual
experimenta mudanças rápidas e complexas devido ao fluxo de informações variadas e
numerosas (televisão, vídeo, cinema, computador, telefone, fax).
Então, cabe ao professor garantir ao aluno a oportunidade de:
[...] enfrentar o desafio da leitura, da escrita, da escuta, da fala (do
conversacional cotidiano à fala formal), com todos os gostos e riscos que isso
pode trazer. Só assim ele há de chegar à experiência comunicativa inteiramente
assumida, com a autoconfiança de que somos capazes de exercer, também pelo
lingüístico, a cidadania que nos cabe por pleno direito. (ANTUNES, 2003, p.
166).
Com isso, o professor, enquanto profissional consciente de sua função mediadora do
conhecimento e de seu papel de facilitador da aprendizagem, não deve distanciar-se dessa
realidade e sim saber trabalhar a bagagem de informações que o estudante traz consigo,
organizando, explicando e transformando em conhecimento dentro da sala de aula, no
ambiente escolar. Dessa maneira, ele exercerá o seu papel com qualidade e valorizará o
aluno como um todo, possibilitando o seu desenvolvimento de maneira progressiva e
prazerosa.
Compreende-se, nesse sentido, que ensinar, criar condições e incentivar a prática de
produção de textos é importante não só para que os alunos aprendam a falar e a escrever de
forma autônoma e competente em situações diversas de sua vida social, mas também para
que possam “enxergar-se” como sujeitos-autores, podendo manifestar seus sentimentos e
impressões acerca de si mesmos e do mundo ao seu redor.
Um texto não se resume à soma das palavras que o compõem. No entanto, a noção textual
usualmente presente nas escolas empobrece o trabalho com a leitura/escrita, pelo fato de
tratar de maneira idêntica qualquer texto, desconsiderando suas especificidades e suas
intenções. No ambiente escolar, o texto ainda é abordado como um produto, ignorando-se,
assim, a dinamicidade de seu processo de significação, que inclui a consideração de
estruturas, de conhecimentos prévios partilhados, de múltiplos recursos semióticos, como a
imagem e, ainda, as condições de produção: o contexto, os sujeitos envolvidos nessa ação
de linguagem, as intenções comunicativas e o meio de circulação do texto.
O educador dispõe de uma enorme riqueza cultural, que lhe permite trabalhar com as
diversas variações lingüísticas e sua devida importância dentro do contexto histórico de
cada região brasileira, assim como, o processo formador de nossa língua nacional, a qual se
encontra em constante mudança. No entanto, é necessário que o professor trabalhe a
linguagem como processo de interação verbal, concebendo a língua como conjunto de
variedades utilizadas por um grupo social, de acordo com o exigido pela situação de
interação comunicativa em que o usuário da língua esteja engajado. Nessa perspectiva,
entende-se a linguagem como dinâmica e em constante transformação; e não um objeto
pronto e acabado. Além disso, tem como suporte a língua, ou seja, um sistema criado
socialmente, que serve aos indivíduos para construir seus enunciados no processo de
interação verbal.
Sabe-se que a língua é um fenômeno histórico-social que se realiza por meio de
enunciações, que só pode ser explicado em relação à situação concreta de produção. Ela
deve ser usada para ter acesso à informação, argumentar sobre seus pontos de vista,
apresentar suas idéias, dizer como se compreende e percebe a realidade, expressar
significados, a partir de um sistema simbólico que já se utiliza oralmente nas suas relações
cotidianas.
Portanto, a linguagem, seja escrita ou falada, é lugar de interação entre sujeitos que
ocupam lugares sociais diversos, que ouvem e falam desses lugares. Reconhecer a natureza
dialógica e discursiva da linguagem, assim como dos diversos gêneros textuais existentes,
implica reconhecer que os falantes da língua atuam uns sobre os outros, produzindo
sentidos em diversas situações de comunicação e em diferentes contextos sociais.
É impossível se comunicar verbalmente sem utilizar algum gênero textual, ou seja, algum
tipo de texto. Tal posição é adotada pela maioria dos autores que tratam a língua em seus
aspectos discursivos e enunciativos e não em suas peculiaridades formais. Essa visão segue
uma noção de língua como atividade social, histórica e cognitiva. Dentro desse contexto,
os gêneros textuais se constituem como ações sócio-discursivas para agir sobre o mundo e
dizer ao mundo, constituindo-o de algum modo.
Por outro lado, a prática de análise lingüística de textos, literários ou não, constitui-se num
instrumento capaz de refletir a organização do texto escrito e possibilita ao educando
perceber o texto como o resultado de opções temáticas e estruturais feitas pelo autor, tendo
em vista o seu interlocutor. Convém ressaltar que os procedimentos usuais adotados pela
maioria das gramáticas demonstram a tendência em privilegiar o estudo do sistema
lingüístico em si mesmo, dedicando uma atenção especial à ortografia, à produção e à
sintaxe e não ao seu uso, ou melhor, ao seu funcionamento nos mais diferentes tipos de
textos.
Normalmente, os itens da língua são selecionados e organizados com o intuito de
demonstrar ao aluno e cobrar dele apenas de que modo as regras do sistema podem ser
manifestadas através de frases isoladas co-textual e con-textualmente. Sendo assim, a
prática da análise lingüística em sala de aula se apresenta como uma forma de se trabalhar
a gramática a partir da produção do aluno. No caso, uma gramática emergencial, que
prioriza suas necessidades, mas que se preocupa igualmente em acompanhar passo a passo
todas as etapas do desenvolvimento da formação lingüística dos aprendizes.
Ao considerar a produção textual como o ponto de partida de todo o processo de
ensino/aprendizagem da língua, Geraldi (1993, p. 135) enfatiza a dimensão do sistema
lingüístico como forma de interação mediada pelo texto. Em outras palavras, a interação
entre os falantes não se dá por fragmentos da língua, mas pelos textos lidos e ouvidos.
Sendo assim, a prática de produção textual de tipos e gêneros diversificados em situações
concretas e reais de comunicação oportuniza aos alunos o contato com vários tipos de
textos e linguagens.
Esta proposta prática de produção deve conduzir os alunos a reorganizar suas idéias, para
que o seu leitor compreenda de maneira clara e objetiva as relações de sentido apresentadas
no texto, com isso tornam-se críticos de si mesmo. Destarte, “os alunos passam a
considerar um texto escrito como resultado de um trabalho consciente, deliberado,
planejado, repensado” (FIAD e MAYRINK- SABINSON, 1991, apud PRESTES, 2001, p.
11). Por outro lado, a noção de avaliação do professor para com o texto produzido pelo
aluno muda de enfoque, deixando de centrar-se no produto (texto/ enunciado) para centrarse no processo (planejamento, elaboração e revisão do texto), sempre consciente de que as
tarefas devem estar a serviço da aprendizagem do aluno, da formação e da promoção de
sua cidadania.
Neste contexto, o foco da avaliação deve ser a identificação do que o aluno sabe sobre o
que está sendo estudado e o que é necessário aprender, fazendo uso das ações didáticas
imprescindíveis à continuidade da aprendizagem. Assim, o professor terá condições de
possibilitar aos alunos a apropriação dos usos e formas da escrita por meio das atividades
iniciais que poderão identificar seus conhecimentos prévios.
A ação avaliativa mediadora revela-se a partir de uma postura pedagógica que respeite os
conhecimentos prévios e espontâneos dos alunos, partindo de procedimentos que os levem
a refletir tal saber, instigando-os a buscar novas e diferentes soluções para as dificuldades
de leitura, interpretação e produção textual. O educando deve estar apto para buscar as
informações e principalmente saber selecioná-las, adotando uma postura criativa, com
maturidade emocional para posicionar-se frente a qualquer escolha que venha a fazer, pois,
com a complexidade que o mundo moderno apresenta, não basta mais ter conhecimento a
respeito de um determinado assunto, resolver os problemas de qualquer forma, ou
utilizando um determinado procedimento.
Dentro dessa concepção, destaca-se a avaliação processual, na qual é imprescindível a
observação individual e em grupo, atentando para o momento de construção argumentativa
dos alunos. Antoni Zabala (1998, p. 198) ressalta a importância da avaliação mediante essa
concepção construtivista do ensino e a aprendizagem como referencial psicopedagógico,
assim como atenta para a função do professor neste processo:
(...) o objetivo da avaliação deixa de se centrar exclusivamente nos resultados
obtidos e se situa prioritariamente no processo de ensino/aprendizagem, tanto do
grupo/classe como de cada um dos alunos. Por outro lado, o sujeito da avaliação
não apenas se centra no aluno, como também na equipe que intervém no
processo.
Sendo assim, o processo avaliativo deve ser efetivado de forma gradativa como, por
exemplo, através de leituras discursivas, da realização de atividades em grupo e individuais
e das possíveis produções.
Quanto ao acompanhamento do processo de produção, o professor deve adotar
metodologias e indicadores capazes de conferir significado às informações, a tal ponto que
possa colaborar para um bom desempenho dos alunos com a Língua Portuguesa, em
especial, com o desenvolvimento da escrita; buscar a participação coletiva ou o
envolvimento direto de todo o grupo; em especial buscar construir uma periodicidade do
processo avaliativo, que lhe permitia fazer o levantamento das melhorias alcançadas.
Dentro dessa lógica, alguns instrumentos podem ser tomados como base para o
estabelecimento dos critérios de avaliação como, por exemplo, o texto escrito, o texto
falado e o texto plástico. No texto escrito, podem ser observados: a compreensão e a
identificação do tipo de texto (filosófico, subjetivo, objetivo, imagem, texto informativo,
científico e/ou literário, poema e diretivo); o aspecto construtivo (formal); o aspecto
expressivo (significativo); a organização dos períodos e parágrafos; a imprecisão
vocabular; os aspectos gramaticais; a coerência; a coesão; e a apresentação (grafia, rasuras
e/ou borrões). Já no texto falado: a argumentação; a expressividade; a coerência; e o
respeito à fala dos colegas são imprescindíveis. Por fim, o texto plástico, onde se destacam
a criatividade, a organização e a limpeza que faz parte de todos os procedimentos práticos.
A funcionalidade desse procedimento avaliativo processual é de suma importância, pois a
avaliação deve proporcionar ao aluno a consciência de seu percurso, de seu
desenvolvimento, na apreensão gradativa das competências propostas. Contudo, o trabalho
do professor é buscar sempre valorizar e estimular cada tentativa, cada conquista dos
alunos, favorecendo, em todo momento, a valorização da auto-estima de cada um deles.
Sabe-se que a tarefa do educador hoje é cada vez mais árdua, pois, com a revolução dos
meios de comunicação, a transmissão em massa do conhecimento vem ocorrendo cada vez
mais cedo na vida de uma criança. Atualmente exigem-se níveis de leitura e de escrita
diferentes e muito superiores aos que satisfizeram as demandas sociais até bem pouco
tempo atrás — e tudo indica que essa exigência tende a ser crescente. A escola, que até
então era conhecida como espaço institucional de acesso ao conhecimento, hoje se tornou
limitada diante da Internet. Portanto, a necessidade de atender a essa demanda, implica
uma revisão das práticas de ensino.
A importância e o valor dos usos da linguagem são determinados historicamente segundo
as demandas sociais de cada momento. Hoje um professor de língua portuguesa deve ter
consciência plena de que a língua não é algo sem vida e os textos não podem ser tratados
como um conjunto de regras a serem aprendidas. Assim, devem-se constituir práticas que
possibilitem ao aluno aprender os diversos usos da linguagem a partir da diversidade de
textos que circulam socialmente.
Percebe-se que, mesmo com o surgimento de novas teorias que sustentam a produção
textual, os educandos não estão tendo consciência de que redigir é, antes de mais nada,
expressar opiniões de maneira clara e coerente, transpondo para o papel idéias e
sentimentos que serão compartilhados. Os textos continuam sendo artificiais,
padronizados, mal seqüenciados e fora de seu contexto de produção. Diante dessa
realidade, o texto literário, tem despertado grande interesse, dentro e fora do ambiente
escolar, desde a sua finalidade até a metodologia que deva ser empregada em sala de aula,
visto que o seu papel na formação do aluno é algo incontestável.
Para que haja mudança nesse contexto do ensino de língua portuguesa, é necessário que a
produção de textos seja inserida num processo de interlocução com o mundo literário, o
que implica a realização de uma série de atividades mentais – de planejamento e de
execução – que não são lineares nem estanques, mas recursivas e interdependentes. Assim
como o professor não deve apenas atentar para a linearidade do texto, mas buscar vê o
significado dele e as formas de construção desse significado. Sempre consciente de seu
papel como mediador do conhecimento, nessa conjuntura, mediador entre a obra e o aluno.
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PRÁTICAS CULTURAIS DE LEITURA: UM OLHAR SOBRE AS HISTÓRIAS DE
LEITURA DE PROFESSORES RURAIS
Rita de Cássia Brêda Mascarenhas Lima 15
INTRODUÇÃO
O encontro com as práticas culturais de leitura foi-me oportunizado muito antes do
acesso formal à escola. As vivências cotidianas do meio rural foram decisivas na
minha constituição como pessoa, como leitora e como profissional. O fato de ter
vivenciado a infância na zona rural possibilitou-me compreender, como bem assinala
Freire (1988, p. 11), que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, visto que as
formas de aprendizagens no cotidiano rural vão mais além das aprendizagens formais
advindas dos bancos escolares. No convívio com as pessoas mais velhas e, portanto, mais
experientes, aprendíamos a ler o tempo (chuvoso, ensolarado, estiado); aprendíamos a
escolher os frutos; aprendíamos a ler a natureza.
As práticas culturais que emergem do cotidiano rural com suas singularidades nos seus
modos de viver, de aprender e conviver não têm os mesmos valores, os mesmos sabores e
significados que a infância urbana revela. Os cenários, os objetos, as relações tecidas nas
noites de lua cheia ou ao redor da fogueira guardam sensações, emoções e sentimentos de
pertença a um tempo em que as horas não têm prioridade sobre a vida.
O desejo de conhecer as histórias de leitura dos professores rurais e seus percursos de
formação se ancora na minha própria história de vida, pois cresci acompanhando a rotina
diária da minha mãe - professora primária que atuou na zona rural do município de
Tanquinho, interior da Bahia, distante 150 km da capital baiana. Com ela tive meu
primeiro contato com os materiais impressos, com o ambiente formal da escola, com a
rotina e atividades inerentes à própria vida escolar. O exercício de docência da professora
rural, única no povoado, se imiscuía entre os afazeres domésticos e as atribuições de mãe.
Este contexto, quando ainda pequena, me ensinou a valorizar a profissão, mas também a
pensar sobre os diversos papéis que os professores que atuam na zona rural assumem
diariamente.
As reminiscências das práticas culturais de leitura vivenciadas nas noites de lua cheia, nas
rodas coletivas, ainda hoje permanecem vivas. Muitas foram as histórias orais sobre o
15
Docente da Universidade do Estado da Bahia, Campus XVII – Bom Jesus da Lapa - Bahia; Mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEDUC/UNEB.
lobisomem, sobre a mulher de vermelho que sempre estava parada pedindo carona aos
caminhoneiros nas esquinas, as histórias arrepiantes de alma que pegavam caronas no
cavalo sempre nas encruzilhadas, da mula sem cabeça etc. Estas lembranças se entrelaçam,
dialogam e compõem o meu universo leitor.
Essas histórias que povoaram minha infância foram basicamente orais, a presença de livros
ou outros materiais impressos restringiam-se aos didáticos de distribuição gratuita da
escola ou quando a irmã mais velha trazia da cidade. Naquela época, assim como hoje, os
poucos materiais que chegam à zona rural ainda são, prioritariamente, por via da escola –
instituição formal ou por aquisição nas cidades mais próximas.
Estudos já publicados 16 revelam que em municípios com população inferior a 20 mil
habilitantes é comum a inexistência de livrarias, bancas de revistas, circulação diária de
impressos e que em todo o país são pouco mais que duas mil livrarias, e se considerarmos
os 86 milhões de leitores potenciais 17, teremos em média 84.400 habitantes por livraria.
Estes dados pioram ainda mais quando percebemos que do total das livrarias que existem
no país, 78% estão localizadas nas regiões Sul e Sudeste. Portanto, para a população rural o
acesso aos materiais impressos diversificados torna-se um desafio ainda maior.
Refletir sobre as práticas culturais de leitura e a aproximação ou fronteiras com as
políticas públicas de leitura através das histórias de vida e de leitura dos professores
rurais têm sido uma inquietação que me acompanha já há algum tempo,
precisamente, desde minha formação inicial no curso de graduação em Pedagogia.
Compreender de que forma as políticas públicas de formação de leitores e políticas
de promoção de leitura tem sido pensadas e quais seus impactos efetivamente, quais
têm sido os investimentos na formação e reestruturação dos espaços escolares
(bibliotecas, salas de leitura), quais as ações efetivas são implementadas para
ampliação e atualização dos acervos já existentes, entre outras, se configuram como
questões que merecem ser aprofundadas na tentativa de mapear uma cartografia da
história da leitura num país com dimensões continentais como o Brasil.
Práticas Culturais de Leitura: rastreando histórias e conceitos
Na historiografia brasileira a questão da leitura tem sido um tema recorrente nos
diversos trabalhos publicados já há algum tempo. As perspectivas abordadas
16
Para maiores informações ver Ribeiro (2004) (cf. referência).
Dados disponíveis no Jornal Letra A. Belo Horizonte: CEALE/FAE/UFMG, abril/maio de 2005 – ano 1, nº
1; p. 6-9.
17
oscilam entre aqueles que versam sobre a crise da leitura (se o Brasil é um país de
leitores, quais têm sido as práticas de leitura nas escolas, como se estabelece a
relação entre escola e leitura etc.) enquanto outros refletem sobre as múltiplas
práticas culturais de leitura que permeiam o cotidiano das pessoas, seus modos e
formas de ler, seus acervos, seus percursos e itinerários leitores.
Dentre muitos estudos que discutem acerca das representações sobre se o professor
é ou não leitor, o trabalho realizado por Batista (1998) intitulado Os(as)
professores(as) são “não-leitores”? 18 é bastante interessant, pois busca desconstruir
o que o autor chama de representação social da leitura docente a qual aponta que os
professores são “não-leitores”. Segundo ele “como os demais grupos sociais ou
ocupacionais, professores estão expostos a impressos diversificados e necessidades
sociais que pressionam por seu uso, seja em instâncias públicas, seja em instâncias
privadas. São, portanto, leitores” (BATISTA, 1998, p. 27-28).
Outro trabalho que versa sobre essa temática é oriundo da pesquisa de mestrado
realizada por Tardelli (2001) com professores de língua portuguesa da rede
municipal e estadual de Campinas, na qual revela “o professor é sim um leitor e sua
formação como tal se dá a partir da interação com pessoas e objetos distintos,
apontando-se assim, para a existência de práticas de leitura diversas que ocorrem
quase em toda a sua totalidade no ambiente familiar” (p. 250), estes dados além de
reforçar a compreensão que as práticas de leitura não são exclusivas dos ambientes
escolares, auxiliam-nos a pensar que os espaços e os modos de ler também são
muito diversos.
Em cada momento/contexto histórico as concepções de leitura, de leitor, de prática
de leitura são diferentes. Segundo Chartier (apud Tardelli, 2001, p.p 247-248),
por um longo período a leitura tem se constituído em nosso ideário como
algo que jamais poderia ter sido de outra forma senão aquela que é hoje
para nós: uma relação íntima entre o leitor solitário e o livro, em geral um
texto pertencente ao cânone literário. Legitimado pela escola, pelo
mercado editorial e em grande parte pela mídia, esse modelo de leitura,
além de defender a realização de uma prática leitora única lhe confere
também um juízo de valor, uma vez que não somente descreve a figura
daquele que seria o ‘leitor ideal’, como também desqualifica e exclui
qualquer outra possibilidade de leitura, reforçando assim a imagem de
uma sociedade constituída em sua grande parte por leitores ingênuos
despreparados, ou ainda, não-leitores.
Na contemporaneidade, as discussões travadas sobre a leitura como prática cultural
remetem-nos a autores como Chartier (2001), Bourdier (2001), Abreu (1999), Schapochnik
18
BATISTA, Antonio Augusto Gomes. Os (as) professores (as)são “não-leitores” (1998) (cf. referência).
(2005). Estes estudos nos ajudam ampliar e compreender a história da leitura no Brasil,
pois como afirma Schapochnik (2005, p. 10),
a história da leitura não pode restringir seu interesse ao livro, tendo de considerar
outras formas de impresso de ampla circulação e suportes de textos nãoimpressos. Isso é particularmente relevante no Brasil, onde a imprensa aportou
tardiamente e o letramento custou a se espalhar pela sociedade.
Esta reflexão de Schapochnik provocando-nos a querer entender como a história das
práticas culturais de leitura no Brasil têm sido escritas, haja vista ser ainda um tema
bastante incipiente no campo da Educação. Como afirma Lacerda (2003, p. 28) “as
histórias são marcadas por catarses, representações, desejos, lutas e perdas em
condições
desiguais
de
existência”,
portanto,
se
tomarmos
os
dados
já
sistematizados que apontam uma diferença gritante entre as regiões do país quanto à
distribuição de livrarias, imaginemos quão destoantes serão a apropriação e o acesso
aos materiais impressos entre as cidades e as zonas rurais. No entanto, faz-se
necessário esclarecer a priori, que neste texto trabalhamos com a concepção de que
leitor é todo aquele que usufrui de materiais impressos diversos e como práticas
culturais de leitura das vivências cotidianas, sociais, culturais, políticas, artísticas
tanto individuais quanto coletivas que emergem da relação dos homens com os
outros homens e com a sociedade.
Sabemos que a presença de materiais impressos em casa não garante que o
indivíduo seja leitor, assim como não ter livros em casa também não configura a
priori que este não seja leitor, pois como afirma Piglia (2006, p.19) “na clínica da
arte de ler, nem sempre o que tem melhor visão lê melhor”. Todos nós temos muitos
exemplos de pessoas que têm em casa uma estante com muitos exemplares de livros,
revistas, catálogos etc. e com pouquíssimas práticas de leitura, como também
conhecemos exemplos do inverso, pessoas que não têm condições de adquirir o
livro, quase não possuem acervo, no entanto são leitores assíduo.
Chartier (2004) a este respeito fala da importância das redes de sociabilidades que
foram comuns tanto em sociedades mais antigas como são nos dias atuais. As redes
de sociabilidades são formas efetivas de empréstimos, ampliação e trocas de
saberes, em que pessoas comungam interesses semelhantes e atuam como coresponsáveis, como interlocutores entre o desejo de ler, de saber, de conhecer e a
saciação por empréstimos do material desejado. Nos estudos de Chartier (2004)
aparecem vigários, párocos, vendedor ambulante que possibilitavam estas
apropriações. No Brasil, dados extraídos pela pesquisa Retrato da Leitura no Brasil
revelam que 15% dos leitores têm acesso ao livro lido por empréstimo de amigos ou
parentes.
E para os professores rurais, como suas histórias de leitura são tecidas? Quais
seriam as suas formas ou redes de sociabilidades de leitura? Como se constitui seus
percursos de formação? Quais interlocutores marcaram seus percursos de leitores?
Quais são as suas práticas culturais de leitura? Estas são questões que têm me
inquietado e me provocado a investigar.
HISTÓRIAS DE LEITURA E PERCURSOS DE FORMAÇÃO DE
PROFESSORES RURAIS
Os percursos de formação dos professores rurais da comunidade de Arrodeador no
município de Jaborandi – Bahia 19, trazem impressos lembranças de um tempo em que o
livro, propriamente dito, nem sempre era presença assegurada. Outras formas e modos de
ler povoaram seus universos. Para o profº Weliton 20, nos tempos de infância o livro era um
objeto quase inexistente. Segundo ele, o uso das letras era só por necessidade mesmo. Ao
rememorar a sua trajetória leitora afirma:
no lugar que eu nasci se tinha poucos livros, era um ambiente familiar de
conversas mesmo... a gente morava numa fazenda e essa fazenda propiciava
muita pouca coisa mesmo, as únicas vezes que a gente conseguia ver um livro, a
gente vinha pra casa do meu avô, chegava lá tinha uma estante muito bonita com
uns livros vermelhos era, se eu não me engano, daquelas enciclopédias. Eu
achava as coisas mais lindas, sinceramente. Aí assim, era o contato que tinha... a
única coisa que via era esses livros...
Para muitos desses professores rurais, o contato e/ou acesso aos materiais impressos
através da escola (instituição formal) vai acontecer tardiamente. A partir dos dados obtidos
pela pesquisa Retrato da Leitura no Brasil, Maués (2002), afirma que
Muitas vezes esse é um leitor quase heróico, que consegue, de alguma forma –
em igrejas, por empréstimos de amigos, por meio da escola ou das poucas e
precárias bibliotecas existentes -, superar os obstáculos que lhe são impostos e
chegar até o livro, contra quase todas as probabilidades.
Muitos se apropriam dos livros por intermédio dos irmãos mais velhos, dos primos, de tia,
do avô ou da avó, quando muitas vezes, estes deixaram marcas no seu processo de
19
Colaboradores da Pesquisa de Mestrado vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação e
Contemporaneidade com intitulada: Nas malhas da leitura: perfil leitor e práticas culturais de leitura de
professores e professoras rurais da comunidade de Arrodeador – Jaborandi – Bahia.
20
Weliton Ferreira Rodrigues - 29 anos, 09 anos de experiência no magistério. Leciona na 4ª série do Ensino
Fundamental e atualmente também nas séries finais do Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries).
formação de leitor mais significativas que o próprio espaço escolar. Assim foi para a profª
Gislane 21:
Eu passava a maior parte do tempo com minha avó, então eu ficava lá e como ela
não sabia ler, então não tinha acesso assim a leituras... em termos de livros. Lá a
gente tinha acesso a histórias que ela contava, passava boa parte do tempo assim.
A forte presença da avó, na história de formação leitora, da professora Gislane, retorna
quando ela rememora o contato com as histórias orais:
Minha avó ela veio da zona rural e lá eles contavam muitas histórias. Histórias,
contos mais assim de terror, de assombração, porque aqui tinha muitas histórias
de lobisomem, que é um dos mitos daqui. (Profª Gislane)
Os itinerários de leitura dos professores rurais são compostos por lembranças da infância
em que a presença do livro em casa era escassa para uns, pela influência da avó contadora
de histórias para outros, bem como pelos modelos de leitura da bíblia pela mãe que
motivava e despertava ao querer saber ler, como foi para a profª Maria Vilma
O maior contato que eu tive com a leitura, que eu me lembro, me recordo
bem foi a Bíblia, porque minha mãe lia muito e o meu interesse em ler era
tanto, que eu ouvia e ouvia ela cochichando. Na verdade nem era uma leitura
em voz alta, sempre depois do almoço quando meu pai ia pra roça, meus irmãos
ficavam no quintal, eu via e achava bonito o cochichar dela, cochichar/ler a
bíblia. Eu achava lindo... (grifo meu)
Nesses processos de rememorar e narrar as suas histórias pessoais e suas histórias de
leitura, os professores têm refletido sobre o impacto e/ou contribuição da sua formação
pessoal e escolar para a sua constituição leitora e, consequentemente, tem provocado-os a
pensar sobre a sua atuação hoje como docentes responsáveis pela mediação e formação de
leitores, pois como afirma Moraes (2001, p. 183)
Quando conta a sua história, o sujeito narra o seu percurso de vida e passa a
retomar alguns sentidos dados ao longo dessa trajetória, mas não só isso, passa
também a redefini-los, reorienta-los e, principalmente, a construir novos sentidos
para essa história. A narrativa não é um simples narrar de acontecimentos; ela
permite uma tomada reflexiva, identificando fatos que foram, realmente,
constitutivos da própria formação. Partilhar histórias de vida permite a quem
conta a sua história refletir e avaliar um percurso compreendendo o seu sentido,
entendendo as nuances desse caminho percorrido e reaprendendo com ele...
Não há dúvidas que através das histórias de vida recuperamos marcas, pessoas, modos e
percursos de leitura. Para muitas famílias, principalmente no cotidiano rural, o tempo era
ocupado predominantemente pelas tarefas inerentes ao fazer do campo. A responsabilidade
de ensinar a ler era sempre atribuída à escola. Segundo Abreu 22 “no passado, a leitura
21
Gislane Moreira da Hora, 27 anos, solteira, filha de lavradores, professora, 08 anos de experiência no
magistério, atua na Escola Pio XII – comunidade de Arrodeador, desde 2000.
22
Abreu, Márcia. Diferentes formas de ler. http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/Marcia/marcia.htm,
acesso 17/10/2006.
tomava parte em um conjunto de práticas culturais que passavam pelo livro...”, no entanto,
para os professores rurais da comunidade de Arrodeador, as práticas culturais oriundas da
oralidade exerceram, nas suas trajetórias leitoras, maior força e significado.
Para a profª Chirles, as práticas de leitura e os modos de ler no ambiente familiar foram
mais representativos na sua história de leitura do que as realizadas no ambiente escolar.
Admite ela que o fato de ser membro de uma família Testemunha de Jeová, contribuiu
significativamente nas suas práticas e relações tecidas com o ato de ler. Se para Manguel
(1997), a leitura funcionou como “desculpa para a privacidade” (p.23), para ela esse era
um momento de partilha e sociabilidade:
Sou de família de Testemunha de Jeová, então isso fez com que eu tivesse
muitos, muitos livros em casa. Livros bíblicos. [...] Inclusive o primeiro livro que
eu li, eu tinha aproximadamente seis a sete anos, foi “Meu Livro de História
Bíblica”. A gente tinha sempre o momento da leitura, as pessoas achavam mais
bonito quando a gente começava a ler e líamos pra muita gente da vila.
Para alguns professores, além da forte influência da oralidade, a escola assumiu um papel
preponderante. Para o profº Milton,23 a escola representou no processo de aprendizagem da
leitura o lugar de acesso ao mundo impresso. Sua fala deixa explícita a escassez de
material disponível, entretanto admite que mesmo sendo exclusivamente a cartilha, esta
propiciou-lhe aprendizagens e apropriações afetivas.
Como a cartilha era o único instrumento de leitura, cuidávamos dela com muito
cuidado. Usávamos de tal modo que ainda hoje guardo na memória alguns textos
que decorávamos para que a professora tomasse a lição.
As reminiscências das histórias de leitura revelaram parcas presenças de materiais
impressos no ambiente familiar. Entre os poucos livros recordados pelos colaboradores
dessa pesquisa, estavam os livros religiosos e os livros didáticos. Havia uma forte
predominância das histórias orais, dentre elas foram lembradas histórias de caçadores,
mitos, causos, lendas e fábulas. Conforme aponta Besnosik (2002) em sua tese de
doutorado Encontros de Leitura: uma experiência partilhada com professores de zona
rural da Bahia, compreender as funções da leitura, as formas de acesso ao material escrito
e as possibilidades de democratização da escola nos dias atuais, sem dúvida é bastante
diferente que em outros tempos e lugares.
As práticas de leitura vivenciadas pelos professores da zona rural em sua infância, no
âmbito escolar, não diferem muito das experiências encontradas nas demais escolas
23
Milton Nunes da Mata, 41 anos, 16 anos de experiência no magistério, sendo que atuou na Escola Pio XII
– comunidade de Arrodeador - como diretor por 03 anos e como regente da classe de 3ª ou 4ª nesta escola
durante todo o curso de Pedagogia. Depois de concluir o curso de Pedagogia, assumiu a direção da Escola
Municipal Carlos Chagas, na sede do município.
brasileiras nas décadas de 70, 80 e início dos anos 90 24. O tratamento meramente
instrumental, ou seja, de decodificação e de apreensão técnica do código. As lembranças
do profº Milton ratificam essa prática tão comum:
Minha leitura começou assim, quando eu fui estudar aos oito anos de idade. Eu
tive uma professora que marcou muito a minha vida [...] eu no início era muito
tímido, eu não queria estudar e ela me ajudou bastante. Inclusive sentava muitas
vezes comigo, pois o processo de aprendizagem da leitura era soletrando as
sílabas.
ENSAIANDO UMA CONCLUSÃO
Ao rememorar suas histórias de vida/leitura, seus percursos de formação, suas marcas e
modos de acesso ao mundo da cultura e da leitura, os professores rurais se deparam com
lembranças vagas do papel impresso e da efetiva participação da escola no contato com o
mundo da leitura e dos livros. O material impresso que mais aparece nos relatos dos
colaboradores ainda é o livro didático. As lembranças do acesso à leitura remetem,
prioritariamente, às lembranças das histórias orais contadas por avós, avôs, pai, mãe, tios,
irmãos, primos, ou de livros herdados dos irmãos mais velhos. À escola é atribuído o papel
meramente de reprodução de um saber historicamente transmitido sem a pretensão de
articular saber e sabor. As práticas de leitura foram, em sua maioria, categorizadas como
destituídas de significados e sentido, portanto, não representaram motivo de incentivo.
Mesmo para aqueles que tiveram na escola sua única oportunidade de acesso ao mundo da
leitura.
Por entre as falas dos professores quando retomaram lugares, tempos, pessoas, marcas,
gestos, práticas de leitura tanto nos espaços formais, quanto nos espaços sócio-culturais,
nos foi possível perceber, nas singularidades de suas histórias e trajetórias, as ausências e
especificidades de morar, pertencer a um município que por não ultrapassar os vinte mil
habitantes, logo se enquadram nos perfis das ausências: não ter livrarias, não ter bancas de
revistas, não ter opções variadas de circulação do impresso (Galvão, 2004). Para esses
professores que muito lhes falta, sobram-lhes desejos, vontades, aspirações pessoais,
profissionais e cidadãs.
Assim, ao resgatar histórias, memórias dos seus processos e percursos formativos,
acreditamos que, ao rememorar práticas hoje contestadas, os professores possam refletir e
24
Ver estudos de Ferreiro (1993), (cf. referência); sobre histórias de leitura/prática de teorizar sobre o vivido
ver Paulino (1995) Coleção Ler & Fazer (cf. referência)
ressignificar suas concepções e modos de ser e atuar nos diversos espaços de atuação, tanto
como cidadãos, quanto como profissionais da educação.
Adentrar as casas e histórias de vidas dos professores ou como afirma Abreu (2004)
bisbilhotar suas lembranças, sua vida cultural, suas inserções sociais e suas redes de
sociabilidades, nos permitiu re-ver com olhos mais cuidadosos seus cotidianos, seus
fazeres, suas trajetórias e escolhas.
Na tessitura dos fios que compõem as histórias individuais e coletivas de leitura de
professores rurais, muitas foram as escolhas necessárias e nem sempre tão fáceis. Das
histórias pessoais nem tudo pode ser dito, nem tudo quer ser dito, partilhado. As escolhas
do conteúdo das narrativas são decisões que não cabe ao pesquisador. A esse cabe apenas
aguçar seus sentidos e sensibilidades para saber acolher e entrecruzar as informações, as
memórias, as marcas deixadas ao longo das trajetórias particulares de cada professor.
REFERÊNCIAS
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Brasil – reflexões a partir do INAF 2001. São Paulo: Global, 2004.
ABREU, Márcia & SCHAPOCHNIK, Nelson (Org.). Cultura letrada no Brasil – objetos
e práticas. Campinas, SP: Mercado de Letras, Associação de Leitura do Brasil (ALB); São
Paulo, SP: Fapesp; 2005.
Abreu, Márcia. Diferentes formas de ler.
http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/Marcia/marcia.htm, acesso 17/10/2006.
BATISTA, Antonio Augusto Gomes. Os (as) professores (as) são “não-leitores”. In.: MARINHO,
Marildes; SILVA, Ceris Salete Ribas da (Org.). Leituras do professor. Campinas, SP: Mercado
de Letras: Associação de Leitura do Brasil – ALB, 1998.
BESNOSIK, Maria Helena da Rocha. Encontros de leitura: uma experiência partilhada com
professores de zona rural da Bahia. 2002. Tese (doutorado em Educação) Universidade de São
Paulo. 2002.
CHARTIER, Roger (Org.). A história cultural – entre práticas e representações. Rio de
Janeiro: Editora Bertrand Brasil S. A.,1990.
CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do antigo regime. São Paulo: Editora
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FERREIRO, Emília. Com todas as letras. São Paulo: Cortez, 1993.
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Leitura: algo que se transmite entre as gerações? In.:
RIBEIRO, Vera Masagão. Letramento no Brasil – reflexões a partir do INAF 2001. São Paulo:
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LACERDA, Lílian de. Álbum de leitura – memórias de vida, histórias de leitoras. São Paulo:
Editora UNESP, 2003.
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MAUÉS, Flamarion. A exclusão da leitura. In: Revista Teoria e Debate. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, nº50, fev./mar./abr.2002.
MORAES, Ana Alcídia de A. Histórias de leitura em narrativas de professoras: uma
alternativa de formação In: SILVA, Lílian Lopes Martin da (Org.). Entre leitores: alunos,
professores. Campinas, São Paulo: Komedi: Arte Escrita, 2001.
PAULINO, Graça. Da cozinha à mesa posta. Rio de Janeiro: Proler/Casa da leitura, 1995.
(Ler & Fazer; nº 6).
PIGLIA, Ricardo. O último leitor. São Paulo: Companhia das letras, 2006.
RIBEIRO, Vera Masagão. Letramento no Brasil – reflexões a partir do INAF 2001. São Paulo:
Global, 2004.
TARDELI, Gláucia Maria Piato. Histórias de leitura de professores: as diferentes maneiras de ler.
In: SILVA, Lílian Lopes Martin da (Org.). Entre leitores: Alunos, Professores. Campinas
– São Paulo: Komedi: Arte Escrita, 2001.
INTERATIVIDADE TEXTUAL:
CONSTRUINDO UM DIÁLOGO ENTRE FOTOGRAFIAS E PALAVRAS
Erica Bastos da Silva 25
Paulo Cesar de Carvalho Lima 26
INTRODUÇÃO
O presente trabalho foi construído tendo como premissa básica o diálogo 27 entre dois
estudantes do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia
que possuem interesses distintos de estudos, porém coadunam da idéia de qualificar nas
diferenças. O diálogo é construído em meio a duas formas de expressão, no nosso caso o
texto escrito e a fotografia, essa última não deixa de ser uma escrita, só que feita com a luz,
pois esse é seu princípio. Tratando-se da técnica e da estética na fotografia, a luz é o
elemento principal. A técnica diz respeito ao ajuste mecânico do equipamento fotográfico
para o controle da luz; já a estética trata da sua observação para o trabalho com a
composição que caminha paralelamente com a primeira. Tais textos se atrelam na
perspectiva de formar a inteligência, o coração e o espírito humano.
Para concretizarmos o trabalho proposto, traremos algumas reflexões acerca do uso da
imagem como instrumento pedagógico, fazendo um breve percurso sobre as teorias da
semiótica, que segundo Barros (1999, p.5) “está no quadro das teorias que se (pre) ocupam
com o texto”. Em seguida, apresentamos algumas fotografias entendendo-as como textos
que podem subsidiar de forma bastante significativa à práxis pedagógica. Faremos um
trabalho descritivo/interpretativo, trazendo reflexões sobre a importância desse tipo de
trabalho em sala de aula, pautada, principalmente, na contribuição teórica do educador
pernambucano Paulo Freire. A contribuição freiriana se justifica pela concepção que esse
teórico nos trouxe sobre o papel do educando no processo educativo, pautado na idéia de
25
Mestranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia na Linha de Pesquisa: Filosofia, Linguagem e
Práxis Pedagógica, componente do Grupo de Estudos e Pesquisas em Epistemologia Genética, Linguística e
Práxis Pedagógica e bolsista CAPES.
E-mail: [email protected]
26
Mestrando em Educação pela Universidade Federal da Bahia na Linha de Educação, Cultura Corporal e
Lazer, membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Mídia, Memória, Educação e Lazer, professor do Serviço
Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC) e fotógrafo.
E-mail: [email protected]
27
O diálogo aqui é entendido da mesma forma como compreendia grande parte do pensamento antigo até
Aristóteles, ou seja, como uma conversa, uma discussão, um perguntar e responder entre pessoas unidas pelo
interesse comum da busca e não somente como um discurso feito para si mesmo, que o isole em si mesmo
(ABBAGNANO, 2000).
que a “leitura do mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE, 1997, p.11), tais reflexões
foram bastante significativas para a construção deste trabalho.
Tratando-se de diálogos com o outro, trazemos a poesia 28 para nos enriquecer com arte
nessa empreitada.
A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que aceitam como sou – eu não aceito
Não agüento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.
NOÇÃO DE TEXTO
De acordo com Barros (1999), o texto pode ser entendido como objeto de significação ou
como objeto de comunicação entre dois sujeitos.
FIORIN E SAVIOLI (1992, pg.137) afirmam que “qualquer enunciado pressupõe alguém
que o tenha produzido”, ou seja, qualquer texto que lemos seja ele escrito, ou uma
fotografia, ou propaganda, foi produzido por alguém podendo ter o intuito de causar em
nós determinado efeito. Em torno dessa consideração, o fotógrafo e o seu produto, no caso,
a fotografia distancia-se da neutralidade e assume posição ideológica, como coloca
Kossoy, fazendo referência do fotógrafo como um filtro cultural.
A eleição de um aspecto determinado – isto é, selecionado do real, com seu
respectivo tratamento estético –, a preocupação na organização visual dos
detalhes que compõem o assunto, bem como a exploração dos recursos
oferecidos pela tecnologia: todos são fatores que influirão decisivamente no
resultado final e configuram a atuação do fotógrafo enquanto um filtro cultural.
O registro visual documenta, por outro lado, a própria atitude do fotógrafo diante
da realidade; seu estado de espírito e sua ideologia acabam transparecendo em
suas imagens, particularmente naquelas que realiza para si mesmo enquanto
forma de expressão pessoal. (KOSSOY, 2001, p. 42-43).
FARIAS (2003, p.4) nos diz que “Um texto pode ser um conto, um romance, uma poesia,
uma crônica, um filme, uma canção, uma história em quadrinhos, uma fotografia 29, um
quadro, uma escultura, uma dança, etc. Enfim, todo objeto que sustenta significação”.
28
29
O poema foi transcrito na integra do livro Retrato do artista quando coisa de Manoel de Barros.
Grifo nosso.
Desse modo, podemos perceber que os textos imagéticos, a partir das teorias semióticas,
ganham importância ao serem compreendidos como objeto de significação. Retomando a
afirmação do Fiorin, na imagem, em particular a fotografia, também há intencionalidade,
pois ela comunica e, principalmente, educa.
PAULO FREIRE: REFLEXÕES DENTRO DESSE CONTEXTO
Nesse momento, traremos a contribuição freiriana no processo de trabalhos com textos
imagéticos em salas de aula. Freire percebe a educação com um duplo viés: a prática
educacional pode ser tanto libertadora, ao gestar um indivíduo crítico que se percebe como
sujeito da realidade; como reprodutora e castradora. A escola, na nossa sociedade, tem o
poder de potencializar a aprendizagem dos educandos, assim como pode excluir o sujeito
do processo de educação formal.
Importante ressaltarmos que Freire é um dos pioneiros da chamada educação popular. A
partir da sua forma de trabalhar a educação, o educando passa a ter um papel de sujeito
crítico e transformador da sociedade através de práticas educacionais significativas. Nessa
perspectiva, o professor comprometido com os alunos pode possibilitar um trabalho de
intervenção na forma como o ele aprende, ponderando em que momento deve sobrepor as
formas convencionais de educar e, em que momento, se faz necessária uma prática
pedagógica diferenciada para o desenvolvimento do processo de aprendizagem. Esse
equilíbrio, que requer não só um domínio teórico, mas também uma compreensão política
das implicações da manifestação da linguagem e seus desdobramentos na percepção
identitária do educando.
Dentro
dessa
perspectiva,
acreditamos
que
os
textos
imagéticos
podem
ser
potencializadores de uma prática educativa que leve o educando a refletir sobre o que está
apresentando na imagem, trazendo assim uma leitura crítica das diversas realidades que lhe
é apresentada.
Farias (2003) nos diz que
Assim como as apreensões pelos órgãos sensoriais constituem uma grade
perceptiva, garantindo o reconhecimento de formas, sons, cores, etc. dos objetos,
auxiliando o sujeito no seu deslocamento com o mundo, também a grade de
leitura cultural ajuda o sujeito a se estabelecer nos campos discursivos de uma
cultura. (p.7)
Ao refletir sobre a afirmação de Farias pensamos no ser humano como dotado de uma
integralidade, cujas percepções ultrapassam as fronteiras de textos escritos. Ao tratarmos
de educação formal isso se torna ainda muito interessante, pois os educandos percebem que
podem aprender diversas coisas e de diferentes formas, não sendo o texto escrito a única
possibilidade de leitura, visto que a sociedade apresenta para eles outras demandas de
compreensão. A fotografia é uma delas. Está aí presente no cotidiano, revelando-se grande
instrumento de síntese sobre o mudo natural e o mundo histórico - o mundo dos homens.
Sendo assim, podemos dizer que “[...] somos uma sociedade fotográfica. As máquinas
fotográficas são comuns e produzem milhões e milhões de imagens a cada ano”
(BODGAN; BIKLEN, 1991, p. 184). Dentro desse mundo de imagens produzidas
destacamos a sua predominância informativa, porém, além dessa característica buscamos
seu alargamento como “função epistêmica”. Ou seja, “[...] a função informativa (ou
referencial), muitas vezes dominante na imagem, pode também ampliar-se em função
epistêmica, proporcionando-lhe a dimensão de instrumento de conhecimento” (JOLY,
1996, p.60).
Farias (2003, p.9) nos pontua que “por meio da produção artística o sujeito pode repensar
o seu cotidiano e até mesmo a sua existência”. O texto imagético, no nosso caso a
fotografia, ultrapassa, a nosso ver, as dimensões físicas das salas de aula e pode
efetivamente ajudar o sujeito a se educar, o que acaba trazendo também uma perspectiva
freiriana ao se pensar no sujeito educando como construtor do seu conhecimento, sendo
este não apenas o escolar, mas aquele que toca na essência da formação humana do
cidadão.
INTERAÇÃO TEXTUAL: FOTOGRAFIAS E PALAVRAS
Apresentamos abaixo um diálogo gerado entre fotografias e considerações feitas a partir
das imagens, buscando, dessa forma, uma interação entre textos. Uma conversa entre os
construtores do artigo, fundada por seis imagens que compõem o acervo pessoal de um
deles e a descrição/interpretação desenvolvida pelo outro, abrindo um campo de debate
entre ambos e demonstrando como textos distintos podem ser responsáveis por
aprendizagens significativas.
Quanto ao processo de seleção das fotografias, foi apresentada num primeiro momento
uma seqüência composta de cem imagens abrangendo variados temas. A partir daí
selecionou-se seis, tendo o viés estético e fundamentos em práticas pedagógicas já
exercidas como fatores principais para seleção dessa e não daquela fotografia.
Observado as fotografias, reconhecemos a dificuldade que é descrevê-las com palavras. As
imagens tocam, refletimos a partir delas e não sabemos explicar ao certo por que. A
fotografia consegue registrar momentos únicos e, a depender do contexto, cenas bastante
significativas, nos roubam a atenção. Interessante também pensarmos na intencionalidade
do fotógrafo ao registrar aquela imagem e não a outra. Na nossa análise teremos a
oportunidade de estabelecer esse diálogo com o fotógrafo. Reporto-me, nesse momento, ao
dialogismo bakhtiniano que nos apresenta as diversas formas de diálogos e que sabemos
que nossas interpretações, seja em qual texto for, estarão sempre associadas a outros textos.
Lajolo nos diz que cada leitura desloca e altera o significado das leituras anteriores.
Num segundo momento, com um olhar mais aguçado e procurando refletir sobre o nosso
contexto educacional, olhamos cada uma das fotografias com um viés mais crítico e
pedagógico.
Fotografia 1
A fotografia 1, tirada na feira de São Joaquim 30, observar-se uma imagem comum no
cotidiano desse espaço, mas, ao ser captada por uma máquina fotográfica, tornou aquele
momento singular e aquele menino um sujeito através do qual podemos fazer várias
reflexões sobre a nossa sociedade. Quem é ele naquele contexto? O que faz ali? Trabalha?
Estuda? No que ele pensa? Outras reflexões também podem ser feitas a partir da mesma
30
A Feira de São Joaquim é considerada a maior e a mais importante feira livre e popular da Bahia, e faz
parte dos pontos turísticos de Salvador. Ocupa um espaço de mais 34 mil m², espalhado em 10 quadras, em
22 ruas, sempre funcionou como um posto de abastecimento para Salvador e cidades do recôncavo.
fotografia. Por que o fotógrafo priorizou aquele menino? O que significa aquele adulto em
sua frente? E sua sombra? Percebamos que, uma única foto, pode trazer diversas reflexões
sobre um mesmo contexto. Podemos falar, por exemplo, da atual situação da Feira de São
Joaquim, do trabalho Infantil e etc. Enfim, essa imagem se constitui como um texto
riquíssimo para trabalhar em sala de aula. Percebamos as possibilidades de enfoques e as
potencialidades significativas de aprendizagens instauradas pela fotografia em tela.
Fotografia 2
A fotografia 2, traz um retrato social interessante. Temos três crianças (meninas) sentadas,
das quais duas são negras e uma é branca, mas, naquele momento, elas estão simplesmente
na mesma condição. Mesmo estilo de roupa, mesmo lugar, sendo observadas pela mesma
ótica, etc. Penso que com esse texto/imagem podemos tratar de várias questões, dentre as
quais diversidade e igualdade. O texto imagético retrata o que está nos nossos discursos,
mas que, às vezes, temos dificuldades em visualizar. Mesmo diante de preconceitos
econômicos, sociais, raciais, nós seres humanos somos tão iguais, carecemos de coisas
semelhantes. Precisamos trazer essas reflexões para sala de aula, pensando numa educação
na perspectiva freiriana, que aqui chamaremos de humanista.
Fotografia 3
A fotografia 3 traz um menino, apoiado em uma grade, no Bairro de Santo Antonio, na
cidade de Salvador. Essa imagem é o que consideraria “descrição sem palavras”, ela nos
toca só com o olhar da criança, para um lugar que não sabemos qual é, mas aquele olhar
nos diz tantas coisas... Percebo, mais uma vez, como nós educadores devemos ser sensíveis
diante da realidade dos nossos, como bem dizia Paulo Freire, educandos. Acredito que
decifraríamos todas as teorias pedagógicas se conseguíssemos decifrar aquele olhar, o que
ele está querendo dizer. Poderíamos perguntar ao autor da imagem/texto sobre a
intencionalidade desse retrato, para que possamos compreender um pouco melhor a
infância na contemporaneidade.
Fotografia 4
A fotografia 4, é um texto imagético bem interessante, partindo da perspectiva da imagem
anterior, ao repensarmos a infância na nossa sociedade atual, o que essa imagem pode
significar? Ao mesmo tempo em que parece que a criança vai nadar, ela nos dá a impressão
que voará. O que nos passa a sensação da liberdade. E voltarmos os nossos pensamentos ao
contexto educacional, numa época em que o educador baiano Anísio Teixeira, pensava em
uma escola integral, sem grades, observamos, porém, as escolas que temos hoje, que
muitas vezes, parece uma prisão. Vejamos como os nossos alunos querem a liberdade.
Repensemos assim o papel da escola e da própria sociedade atual.
Fotografia 5
A foto 5, no traz também uma imagem interessante, ao pensarmos nos padrões culturais
que são passados de pais para filhos, seja nos aspectos comportamentais, religiosos,
hábitos e costumes cotidianos. Observamos a criança sentada, cansada, mas, de certa
forma, sua postura demonstra respeito ao espaço em que está. Interessante observamos
como nós, seres humanos somos produtores e produtos de um meio social. Reporto-me a
música do Belchior, como nossos pais que nos fala exatamente isso. “Apesar de termos
feito tudo que fizemos, nós ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Essa
imagem é interessante, ao nos fazer refletir exatamente isso, somos, em certa medida,
influenciados pelo meio em que vivemos e assumimos a postura que aquele meio demanda.
Fotografia 6
Referindo-nos agora a fotografia 6, que foi tirada no Rio Vermelho, Salvador – BA, temos
a imagem de um gari, aparentemente, em momento posterior a limpeza da praia. Penso
nesse texto como uma temática muito rica, podendo-se tratar desde questões de trabalho,
situação do trabalhador no país, no estado, etc. Até o trabalho com a temática do meio
ambiente do por que é necessário se manter a praia limpa. Quando o aluno percebe na
imagem parte da sua cidade, ou seja, parte de si, essas temáticas tornam-se bem mais
interessantes de serem trabalhadas. Pensemos assim na educação: os textos imagéticos
podem e devem ser trabalhados em sala de aula, pois os alunos estão inseridos em uma
sociedade múltipla e que demanda várias leituras, incluindo a leitura do mundo tão bem
detalhada pelo Paulo Freire. O ser humano se constitui como tal a partir de várias coisas,
entre elas a fotografia que tem essa capacidade de deixar imagens gravadas para se
construir a história além de palavras escritas.
CONSIDERAÇÕES
O trabalho com imagens – nesse caso o de descrição/interpretação – não tem um fim em si
mesmo e não há completude em sua forma de leitura. É um eterno jogo entre a imagem e o
observador, tendo todas as possibilidades de leituras possíveis. Não há uma forma que
supere a outra, uma vez que esse universo possui um campo infinito e em movimento de
probabilidades.
Nós, como educadores devemos rever as nossas práticas e analisar o quanto “nossos
conteúdos” estão atingindo de maneira significativa e positiva aos nossos educandos. Os
educadores atentos ao processo de aprendizagem para que os alunos se sintam como
cidadãos, ampliando o conhecimento das diferentes formas de expressão textual, visto que
vivemos em uma sociedade que demanda tais conhecimentos.
Importante ressaltarmos que para tornar os nossos alunos leitores e admiradores dos mais
variados textos, é necessário que essas práticas façam parte do cotidiano da escola e não
sejam momentos pontuais. A formação integral do ser humano se faz necessária quando
pensamos em uma escola não separada da vida. A leitura desses textos imagéticos, bem
como o acesso a outros bens culturais tais como teatro, cinema, e etc. podem ajudar a
ampliar a formação do educando como ser humano.
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola, 1901 – Dicionário de Filosofia / Tradução da 1ª edição brasileira
coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone
Castilho Benedetti – 4ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BARROS, Diana Luz Pessoa. Teoria Semiótica do texto. 4ª edição, Editora Ática. São Paulo,
1999.
BARROS, Manoel de. Retrato do artista quando coisa. 5ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2007.
BELCHIOR,
A.C.G.
Como
nossos
pais.
Disponível
em:
http://www.mpbnet.com.br/musicos/belchior/letras/como_nossos_pais.htm,
acessado
em
10/06/2008.
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: Bakhtin: conceitos-chave. Beth Braint. (org). São Paulo:
Contexto, 2005.
BODGAN, Robert & BIKLEN, Sani: Investigação qualitativa em educação: uma introdução à
teoria e aos métodos. Porto Ed., 1994.
FARIAS, Iara Rosa. As imagens enquanto práticas discursivas: Elementos para reflexão.
Trabalho apresentado no II Seminário Internacional: As Redes de Conhecimento e a Tecnologia, 24
a 27 de junho de 2003. Publicação em CD-Rom, cadernos de resumo e programação do evento sob
o ISBN 85-86392-08-1.
FIORIN, José Luiz. SAVIOLI, Francisco Platão. Para entender o texto: Leitura e redação. 3ª
edição. São Paulo. Ática, 1992.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 Edição. São Paulo: Paz e Terra. 1987.
____________. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 28 Ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura).
___________. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 34. ed. São
Paulo: Cortez, 1997.
LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina et al. Leitura em crise na
escola: as alternativas do professor. 3.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984.
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 2. ed. rev. – São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, disponível
em http://imeviolao.googlepages.com/historia_atualidade_feira_joaquim_s.html, acesso em 03 de
julho de 2008, às 10 horas e 45 minutos.
A IMAGINAÇÃO POÉTICA DOS ELEMENTOS DA MATÉRIA NA ALFABETIZAÇÃO:
UM RELATO
Cristiane Joana dos Santos (FTC)
Aqui o passado cultural não conta; o longo trabalho de relacionar e
construir pensamento, trabalho de semanas e meses, é ineficaz. É
necessário estar presente, presente à imagem no minuto da imagem: se há
uma filosofia da poesia, ela deve nascer e renascer por ocasião de um
verso dominante, na adesão total a uma imagem isolada, muito
precisamente no próprio êxtase da novidade da imagem. (…)
(BACHELARD, 1996)
INTRODUÇÃO
A imagem, a interpretação, a sensação representam o olhar, o sentir, o ser sensível, estando
presentes no pensar, no aprendizado do mundo.
Nesse trabalho: “A imaginação poética dos elementos da matéria na alfabetização: um
relato”, sobre a relação da prática leitora e a imaginação, considerei as imagens dos quatros
elementos da matéria: água, ar, fogo e terra.
Toda a imagem deve ser considerada dentro de uma interpretação pessoal, pois o “olhar”
de cada indivíduo é singular e representa a experiência de vida pela qual o mesmo tenha
passado.
O indivíduo prima pelos mistérios interiores, por isso torna-se tão difícil alfabetizar nas
escolas, onde os conteúdos do bê–a–bá deformam a sensibilidade subjetiva e inquietante
que o indivíduo traz intuitivamente em seu ser.
É preciso sensibilizar a professora para um trabalho lúdico, da arte, da poesia, do ser
sensível, a escuta da natureza onde se observa a leitura da água, ar, fogo e terra como
elementos primeiros.
Na prática educativa, é preciso enfatizar os valores da sensibilidade crítico-criadora, a
diversidade de saberes. Visando o despertar inicial para essa prática, realizei os trabalhos
com base na imaginação poética dos elementos com 17 alunos da turma de alfabetização,
de uma escola municipal, localizada na cidade de Feira de Santana – BA, no mês de maio
de 2008, onde os alunos expressaram as concepções prévias e intuitivas sobre a temática.
Nas produções artísticas, gravuras de revistas e desenhos dos alunos evitei uma análise
técnica, por considerar a importância da subjetividade na leitura que cada leitor concebe a
experiência através da imagem, linguagem visual/tátil/artística.
OS PRIMÓRDIOS: QUEM SOMOS NÓS? QUAIS OS ELEMENTOS DA
NATUREZA NOS ORIGINARAM?
A sensibilidade da professora… aonde anda?
A preocupação constante com a transmissão dos conteúdos, com o cognitivo tem feito com
que a professora veja o aluno não como uma tríade (cognitivo–afetivo–sensível) unívoca,
mas como quem assumirá um papel produtivo, funcional, útil na sociedade.
A preocupação da sociedade é com o intelecto, com o acúmulo de informação. O pósguerra mundial leva à corrida desenfreada para saber quem detém mais informações, quem
mais se informa e informa. Essa era foi sustentada durante as últimas décadas como
primordial para a sobrevivência da sociedade tecnológica. O homem dava-se por satisfeito
se obtivesse algumas informações que garantissem sua sobrevivência. De repente, explode
a crise, o homem começa a ficar insatisfeito com as informações e passa a questionar sua
existência. É nessa hora que surge a busca pela essência, pela origem, pelo fenômeno da
vida.
A complexidade da explicação fenomenal do ser não está mais na informação e sim na
essencialidade do ser. A essencialidade aqui entendida como o âmago do ser, a imagem
mais íntima acessada pelo desejo da vida que transcende a exteriorização, estando no
interior à busca intuitiva da felicidade como garantia da continuidade humana. A busca por
essa essencialidade leva às expressões primordiais e originárias, que andavam esquecidas
devido à efervescência da informação. Concepções dos pré-socráticos, Gaston Bachelard e
outros começam a ser estudadas. A origem e a natureza vêm à tona, indagações são feitas
tais como realizadas pelos pré-socráticos antes de Cristo: Quem somos nós? Quais
elementos da natureza nos originaram?
A essas indagações os pré-socráticas deram as seguintes respostas: Para Xenófanes, de
Cólofon, o elemento primordial é a terra. Segundo Parmênides existem dois elementos: o
fogo e a terra. O primeiro elemento é o criador, o segundo é a matéria. Os homens
nasceram da terra. Trazem em si calor e o frio, que entram na composição de todas as
coisas. Tales de Mileto, explica que a água é o elemento primordial de todas as coisas, e
que a terra flutua sobre a água. Mover-se-ia como um navio; e que quando se diz que ela
treme, na verdade flutuaria em conseqüência do movimento da água. Para Anaxímenes de
Mileto, o ar é o elemento originante de todas as coisas; elemento vivo, que constitui as
coisas através de condensação ou rarefação. Assim, o fogo é ar rarefeito, e pela
condensação progressiva formam-se o vento, as nuvens, a água, a terra e finalmente a
pedra.
Esses pré-socráticos iniciam a discussão que se desdobra até hoje sobre a essência da vida.
GASTON BACHELARD E O REINO DA IMAGINAÇÃO.
Retomando antigas inspirações dos filósofos pré-socráticos, o filósofo francês Gaston
Bachelard (1884-1962) propõe estabelecer no reino da imaginação uma lei dos quatros
elementos. Essa imaginação conforme se associem os elementos fogo, água, ar e terra.
A poética de Bachelard desvenda e instiga os planos imaginários com base nos quatro
elementos.
A água sonoriza a vida na natureza. É voltando-se à água que se encontra a vida; todos os
seres vivos dependem da água para a sua sobrevivência. Mesmo os vírus, os seres mais
simples e menores que se conhecem, reproduzem-se utilizando o metabolismo de células
vivas e essas células sempre contém grande quantidade de água em seu interior.
Essa dependência dos seres vivos em relação à água está ligada ao fato de que a vida
surgiu na água. A água no estado líquido tem propriedade de dissolver um grande número
de substâncias.
A água é o símbolo universal do princípio feminino, das emoções, do inconsciente; de
todas as substâncias a água é a de interpretação mais complexa. Este elemento está sempre
ligado aos conceitos de fertilização, de maternidade, de geração.
A água gera poemas de fluição sentimental do vai e vem da existência.
O ar, sopro presente no existir, observado através do movimento das nuvens que
impulsionam o sonho das transformações do dia, das horas. A imaginação aérea nos faz
viajar sem sair do lugar.
As aspirações, os devaneios aéreos situam-se diante de uma poesia perfeita como o corpo
de um elmo, transparente como o ar, mensageiro que transforma em mensagem os
mistérios das coisas dos elementos. O mensageiro e a mensagem tornam-se assim uma só
coisa.
O ar comprimido, ou concentrado, cria o calor e o fogo, do qual todas as formas de vida
derivam. O ar está essencialmente relacionado com três conjuntos de idéias: o piro criativo
da vida, a palavra criadora; o vento (ar dinamizado), conectado em muitas mitologias com
a idéia de criação; e, finalmente, o próprio espaço, movimentos de onde emergem os
processos da criação e desenvolvimento da vida. Luz, luminosidade, bem como o sentido
do olfato estão relacionados com o importante simbolismo do ar.
Para Bachelard, o amor é a primeira hipótese científica para a reprodução objetiva do fogo
e antes de ser filho da madeira o fogo é filho do homem.
O fogo é amor, porque queima, arde e não se vê. É a instância do rubro da alma humana. É
o atrativo dos sensíveis. É regenerador dos esquecidos.
O fogo está associado à presença de Deus que limpa a terra das iniqüidades através do
incêndio. É purificador.
As armas de Deus fabricadas por ferreiros espalham experiência sagrada da transformação
da palavra dentro do processo de criação.
O fogo representa a vida e a morte, a origem e o fim de todas as coisas. Ele alcança e
transcende o plano do bem (calor e energia vital) e o plano do mal (destruição e conflito).
A terra inspira mistérios da arte ceramista propiciando o encontro com força cosmopolita.
A terra é a mãe de todos. É a associação com a mulher no processo de fecundidade. É
inspiração poética do continuar a existência do ser vivo.
Da terra saímos, a ela retornaremos.
METODOLOGIA
Para realização da atividade de Práticas Leitoras com os quatros elementos da matéria
assumi uma postura de pesquisadora tendo como princípio formativo a imagem objetiva
que transcende à subjetividade do indivíduo e, a imagem crítico construcionista, que tem
como gênese as relações sociais. Tal imagem abre-se à percepção da realidade humana,
enquanto complexidade, e caminha em direção à articulação ao que é relacional à
complementação e à dialetização dos saberes.
Por entender que a realidade é relacional e que percepções sensibilizadoras auxilia-nos na
compreensão de alguns fatos, desenvolvi minha metodologia em cinco momentos
evolutivos:
Momento 1 – produção de texto a partir da Figura dos elementos da natureza; jogos:
expressão verbal e “terra, mar e ar”.
Momento 2 – construção e seleção de arraia, explorando o ar.
Momento 3 – explorando o fogo/ar – observação da chama, produção de desenhos.
Momento 4 – explorando fogo/água: interpretação de gravura, linguagem oral.
Momento 5 – exteriorização da imaginação através da pintura.
O ESTUDO E SEUS RESULTADOS
PRÁTICA LEITORA: OS ELEMENTOS
O diálogo abaixo aconteceu no momento em que os alunos faziam a leitura da imagem dos
quatro elementos da natureza. Os elementos da natureza.
— Eu estou vendo um homem saltando do avião com pára-quedas; uma pedra; água; fogo.
(Everton)
— Não! Ele saltou do foguete. (Islei)
— Saltou do avião. (Vanessa)
— Ele saltou do avião, porque o avião ia descendo e o homem perdeu o controle, então ele
saltou com pára-quedas. (João Victor)
— O avião caiu no fogo. (Lidiane)
— Quando saltaram do avião caiu na água. (Larissa)
— Não! No mato. (Everton)
— Caiu na água. (Vanessa; Filipe)
— Você está vendo mato aí, Everton? (Filipe)
— Pró, estou vendo o foguete que corre atrás dos outros (referindo a solda). (Islei).
— Vejo o foguete e peixe. (Filipe)
— Pró, nessa imagem eu vejo uma pedra gigante, tem essa pedra por causa da água.
(Everton)
— Estou vendo a água e a pedra. (Jéssica)
— É, é. (Lidiane)
— Eu sei por que a pedra está no meio da água. (João Victor)
— Ela está no meio da água para as pessoas verem a água. (João Victor)
— Pró eu já sei, aqui é a pedra, aqui é o fogo, aqui é água e aqui é o homem saltando com
pára-quedas. (Everton)
— É pró. (Todos)
Além do diálogo foi realizado em sala de aula o jogo Expressão Verbal onde as crianças
responderam às seguintes situações:
— O que aconteceria se a água deixasse de existir…
— O que aconteceria se o ar ficasse todo poluído…
— O que aconteceria se o fogo queimasse uma pessoa… se a água não conseguisse apagar
— O que aconteceria se só tivesse terra para comer…
— Alguém sabe o que é areia movediça?
— O que aconteceria se a terra fosse toda movediça…
— Se não tivesse água para tomar banho…
— Se o mundo fosse escuro…
— Se só tivesse frio…
— Se faltasse ar para encher uma bola…
— Se o fogo queimasse sua casa…
Todas as respostas foram aceitas, as crianças souberam explicar suas respostas. Procuram
sempre relacionar os fatos às suas conseqüências. Foi uma brincadeira animada e todos
interferiam e sugeriam ao colega que estava com a palavra no momento.
Essa atividade visava à verbalização que é fundamental para o raciocínio, a troca de
experiência e sensibilidade de cada participante em ouvir e respeitar a opinião alheia à sua.
No recreio o jogo foi “Terra, mar, ar” – dizer objetos ou coisas que vivem na terra, mar, ar.
A criança deve manifestar-se quando solicitada. Se errar, paga prenda escolhida pelos
colegas.
Esse jogo serve para aguçar a curiosidade e colocar a criança em contato com os
elementos.
PRÁTICA LEITORA: AR
Abri a discussão da temática questionando o motivo pelo qual a pipa e a arraia voam. E por
qual razão o balão também voa. As explicações foram todas aceitas. Em seguida, sugeri
aos alunos que fizéssemos um campeonato de arraias. Durante a aula auxiliei cada aluno na
confecção de sua arraia. Ficou estabelecido que deveria ser premiadas as seguintes arraias:
A com o nome mais bonito, a mais bonita, a mais feia, a que voasse mais bonito, a que não
saísse do chão. Uma decisão bastante democrática, pois respeitava todos os participantes e
os colocava em pé de igualdade. Foi a maior vibração, teve arraias de todos os tipos,
arraias que não voaram, arraias rasgadas. Quem não sabia empinar, conselhos de como
empinar e sugestão de um novo campeonato.
PRÁTICA LEITORA: FOGO/AR
Não se sabe quanto tempo o homem viveu valendo-se apenas desses três elementos
principais: água, terra e ar – para seus serviços. Entretanto, sabe-se que uma grande
mudança se operou em sua existência, por força de uma descoberta revolucionária maior,
aliás, do que qualquer outra até então: o fogo – completando os quatro elementos
principais.
O fogo revolucionou o modo de viver humano, transformou os hábitos alimentares,
originou o raciocínio acurado e o planejamento das ações futuras, assegurou a existência da
família.
As chamas das velas ainda hoje permanecem como sendo um dos meios mais
proeminentes de auxiliar o homem a voltar-se para o seu interior, da mesma forma como
faziam, há milhares de anos atrás, os homens primitivos.
Fogo, símbolo da luz e bondade divina. É a sabedoria, num sentido simbólico. É vida e
morte.
As velas usadas nas igrejas cristãs constituem apenas um modo de expressão do
simbolismo místico do fogo.
Em prática de leitura simbólica realizada em sala de aula com alunos de alfabetização, os
mesmos expressaram suas experiências com o fogo.
No primeiro momento da prática, distribui velas coloridas (verde, vermelha, amarela, azul,
branca) para que os alunos observassem as chamas, seu movimento, sua coloração interna.
No segundo momento, juntaram-se todas as velas, cada um segurando a sua vela, apenas as
chamas formavam o todo. Foi um momento de comparação das chamas, observando as
semelhanças e diferenças; a ampliação do fogo. O prazer e a imaginação fluem sem que
houvesse um registro objetivo. O devaneio de cada pensamento pertence a seu autor, que
outro não ousa explicar, nem mensurar. Foi prazer pelo prazer. Foi superação dos seus
medos e receios. Foi o reencontrar-se nas chamas.
No terceiro momento, foi colocada à disposição dos alunos além da vela, papel ofício, lápis
cera para que eles desenhassem o que quisessem. Desse momento surgiu desenhos do tipo
carro, menino, flor, bolas, árvore, nuvem, casa, dado, janela, boneca, lápis, palito, quadro,
carroça, chuva e cama.
Os alunos demonstrando intimidade e interação com o objeto (vela/fogo) expressaram o
sentir; pelas cores utilizadas nos desenhos percebe-se que há harmonização do indivíduo,
paz, tranqüilidade, que o fogo a princípio tão assustador, absorve a concentração humana
para si e traduz a energia interior de cada um pela produção do que fez.
Fazer prática leitora sem letras é permitir que o homem construa sua letra, seu agir e
perceba o seu fazer.
PRÁTICA LEITORA: FOGO/ÁGUA
Foi mostrada a gravura indiana representando o matrimônio simbólico dos princípios
opostos, o fogo e a água: o ideal dos ocultistas e alquimistas. A gravura em questão foi
retirada da Revista Planeta – Símbolos Esotéricos, xerocada e ampliada,
para que as
crianças descrevessem o que viam. A conversa foi transcrita abaixo.
Professora — O que você está vendo?
— Um homem e uma mulher. (Everton)
— Um homem e uma sereia. (Fabíola)
— Um homem e uma sereia dentro do mar. (Islei)
— Homem, mulher e um pintinho. (Vanessa)
— O fogo no cabelo do homem. (Tamara)
— Não! É um gancho de escorpião pegando no cabelo do homem. (João Victor)
Professora — Eles estão fazendo o quê?
— Tomando banho. (Todos)
— Pró, eu estou vendo aqui fumaça. (Everton)
Professora — Então por que será que tem essa fumaça aqui?
— Pró, eu acho que é do fogo do cabelo do homem e a água da praia. (João Victor)
(RISOS)
Professora — Então o que é isso aqui? (Apontando para a imagem mostrando a água
simbolizada pela mulher)
— É água. (Vanessa)
Professora — E aqui? (As perguntas foram feitas com a intenção de confirmar a explicação
dada anteriormente)
— Eu já disse Fogo. (Tamara)
Professora — Aqui é o quê?
— Fumaça. (Everton)
— É pró quando a gente joga água no fogo sai fumaça. (Filipe)
— Minha mãe quando apaga o carvão sai fumaça. (Vanessa)
Nessa atividade observei a capacidade do aluno interagir com o objeto de descrição, sua
leitura, além da imagem apresentada.
PINTURA: UMA EXTERIORIZAÇÃO
A pintura é uma prática de exteriorização dos sentidos mais rebuscados do homem.
Através da pintura o homem interliga os elementos com matéria, pigmentos das cores, no
rito de recriação dos seres e das coisas.
Segundo Bachelard nenhuma arte é tão direta e manifestamente criadora quanto
a pintura. Para o pintor que medita sobre o poder de sua arte: a cor viva; a vive
entre a constante troca matéria e luz.
Pela fatalidade de uma representação de um sonho primitivo, o pintor renova
sempre os grandes sonhos cósmicos que ligam o homem aos elementos. (Cabral
– vídeo)
Foi dado tinta guache com as cores primárias (amarelo, azul, vermelho) e branca para que
os alunos desenhassem, pintassem.
Cada aluno expressou-se com liberdade. Foi observado que os alunos, ao usarem a tinta,
mantiveram harmonia nas misturas das cores, definição no que estava pintando, falaram
sobre o silêncio que cada um ficou para pintar sobre o papel. A fala individual dos alunos
reporta ao todo. É como se cada produção individual fizesse parte de um todo congregado
pela espiritualidade presente ao pintarem.
O objeto de desejo de expressão caminham juntos dentro de cada um ser, ser humano.
CONCLUSÃO
Despertar uma criança quanto a si mesmo, fazê-la tomar consciência de todas suas
faculdades, de todas as suas riquezas adquiridas durante a evolução da vida na Terra, eis o
que requer reflexão e, no entanto, a visão reducionista da educação não nos prepara
particularmente para isso. Estamos como que entregues a nós mesmos e ao modismo do
momento. Num primeiro instante, só a nós mesmos cabe assumir essa responsabilidade em
harmonia com nossas aptidões, a fim de que a consciência coletiva progressivamente
desperte e progrida para um mundo melhor, sempre mais consciente de si mesmo e do
sentido de sua manifestação.
Aproximar mais as crianças dos elementos da matéria é uma forma de contribuir para seu
processo evolutivo.
Despertar a sensibilidade, a harmonia através das imagens deve ser uma das metas das
práticas leitoras.
REFERÊNCIA
ARAÚJO, Miguel Almir L. De. Educação e autoconhecimento. In: Rev. da Educação CEAP,
Salvador - BA n.15. p. 49-54, mar. 1997.
BACHELARD, Gaston. A poética de espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 242p. (Coleção
Tópicos).
BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo: organização e notas Suzanne
Bachelard. São Paulo: Brasiliense, 1990. 142p.
CABRAL, Elisa Maria. A poética dos elementos: inspirado nas concepções do filósofo francês
Gaston Bachelard. UFBA/CNPQ. Video.
CHEVALIER, J., GHEER BRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1988.
PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. 167 p.
REVISTA PLANETA. Símbolos esotéricos. São Paulo: Três Editorial. p. 39.
O ESTÍMULO À LEITURA: FATOR ESSENCIAL PARA A FORMAÇÃO DO
LEITOR
Anne Jackeline Barbosa dos Santos 31
INTRODUÇÃO
A relação entre os educandos do ensino fundamental com os livros tem preocupado alguns
educadores, pois não se percebe uma aproximação estímulo em realizar atividades de
leitura. Isso tem refletido nos resultados educativos de forma significativa, abrangendo
todas as áreas curriculares.
Diante dessa realidade tem-se como objetivo estimular os educandos a buscar desenvolver
práticas de leitura no entorno escolar, bem como transcender para os ambientes do seu
convívio diário e então tentar encontrar as possíveis respostas para as seguintes
problemáticas: Por que os educandos não demonstram interesse pela leitura? E de que
forma os educandos podem ser estimulados a desenvolver práticas de leituras?
Essa inquietação surgiu, a partir da vivência em sala de aula numa turma de 4ª série do
ensino fundamental, na qual se pôde visualizar o distanciamento dos educandos com os
livros e a resistência em realizar atividades de leitura, bem como a vicissitude de
interpretação e produção de texto decorrentes da aversão dos educandos para com os
livros.
Nessa perspectiva, espera-se que esse trabalho venha a contribuir para a melhoria
educacional, como também para a prática educativa, ultrapassando os limites das
Instituições Educacionais para se efetivar no contexto social a partir das ações dos
educandos em seu convívio diário.
REFERENCIAL TEÓRICO
Na sociedade do conhecimento a qual vivemos, é condição sine qua non fazer uso de
práticas sociais de leitura para um bom desenvolvimento pessoal e profissional frente às
situações que surgem no nosso cotidiano.
Pozo(2004, p.11).) acrescenta que:
31
Pedagoga. Pós-graduanda em Gestão e Coordenação Escolar – Facceba. Professora do Ensino
Fundamental nas séries iniciais da cidade de Conceição da Feira-BA. E-mail: [email protected].
na sociedade da informação quem não pode ter acesso às múltiplas formas
culturais da representação simbólica(numéricas, artísticas, científicas, gráficas,
etc.) está social, econômica e culturalmente empobrecido, além de viver
oprimido e desconcertado diante de uma avalanche de informação que não se
pode traduzir em conhecimento, para a qual não se pode dar sentido.
Diante disso, a leitura é fundamental na formação do sujeito, visto que não se pode
construir conhecimento sem buscar o auxílio dos livros e as informações decorrentes do
ato de ler, pois a sociedade contemporânea exige um profissional capacitado e dotado de
auto-plasticidade para inovar e criar soluções para diversas questões que surgem na vida
cotidiana.
Isso porque, a leitura é compreendida não como um ato mecânico e de simples
decodificação, e sim uma prática dialética e reflexiva de produção do conhecimento.
Cunha (2006, p.47) vem reforçar que:
“a leitura exige um grau maior de consciência e atenção, uma participação
efetiva do recebedor-leitor. Seria, pois, muito importante que a escola procurasse
desenvolver no aluno formas ativas de lazer__ aquelas que tornam o indivíduo
crítico e criativo, mais consciente e produtivo.”
Nessa perspectiva a escola precisa assumir seu papel de formação de leitores, já que se
constitui em um espaço de aprendizagem e deve favorecer a inserção dos educandos nas
questões sociais marcantes.
É sabido que se a criança não é estimulada, consequentemente não haverá aprendizado e da
mesma forma acontece com a formação do leitor, pois se não existir atividades que
incentivem a prática de leitura, os educandos não terão o mínimo interesse em se
aproximar dos livros.
A aprendizagem está diretamente relacionada com a mediação, na medida em que o sujeito
depende das interações e intervenções existentes entre ambas para construir seus
conhecimentos e consequentemente se desenvolver. Pois, “a aprendizagem escolar orienta
e estimula processos internos de desenvolvimento” (VYGOTSKY, 1988, p. 116).
Assim, o papel do professor-mediador é de fundamental relevância, pois este incentiva a
criança para que a mesma se sinta capaz de desenvolver qualquer atividade. Através do
incentivo dado pelo docente, a criança buscará novas formas de conhecimento que
perpassam pelas práticas sociais de leitura.
Faz-se indispensável que o professor tenha internalizado que “a educação é uma forma de
intervenção no mundo” (Freire, 1996, p.98). Em função disso, o docente não deve ser um
mero transmissor de conhecimento e sim permitir aos educandos através de sua prática
construir o conhecimento de forma crítica e reflexiva.
Nesse contexto, o professor deve ter bons hábitos de leitura e na sala de aula, este deve
desenvolver um arsenal de atividades como (rodinha de leitura, cantinho dos livros, leituras
livres, leituras compartilhadas, contação de histórias) que venham a proporcionar o contato
dos educandos com os livros, pois sabemos o quanto ele tem uma representação marcante
na formação intelectual das crianças.
Por isso, as atividades devem ser diversificadas e planejadas visando o estímulo a
curiosidade natural da criança, sendo capaz de proporcionar a necessidade de elaborar
questionamentos e estabelecer relações entre os conhecimentos prévios e os conhecimentos
construídos no espaço escolar.
Por outro lado, a formação de leitores também é tarefa da família, pois os pais são as
primeiras referências na vida da criança e boa parte dos conhecimentos é fruto do exemplo
da prática absorvida durante o convívio no ambiente familiar, por isso faz-se necessário o
trabalho em parceria da escola com a família para que facilite a construção do
conhecimento fortalecendo as atividades desenvolvidas no entorno escolar.
Os pais devem fazer parte da vida escolar dos alunos acompanhando-os, estabelecendo
limites, educando-os juntamente com o professor.
Antunes deixa bem clara essa importância dos pais na escola para a aprendizagem das
crianças quando diz:
(...) Outro aspecto de valor inquestionável é a tentativa de trazer os pais a escola,
para que compartilhem com os mestres os propósitos dos conteúdos que serão
trabalhados. Um bom clínico não diagnostica e prescreve sem rico histórico de
cada paciente; também o trabalho da escola será preciosamente ampliado se a
família aceitar comparecer a reuniões específicas. (1999, p. 46)
Destarte o acompanhamento da família é muito importante para a aprendizagem da
criança, pois o docente sozinho encontra-se limitado a tomar certas atitudes que são
cabíveis à educação dos pais, dentre outros aspectos de aprendizagem. A criança rejeitada
pela atenção dos pais com relação aos estudos, é uma criança apta a fracassar.
Mas, a Instituição Escolar precisa entender que existem algumas limitações na educação
familiar e por isso não pode se eximir da sua responsabilidade de formar bons leitores, se
justificando pela concepção inatista de educação a qual nos leva a compreender que se os
pais não têm bons hábitos de leituras consequentemente seus filhos não terão.
A distância que existe entre o adulto e os livros pode ser explicada também pela questão
histórica, pois estes eram tidos como objetos proibidos e restritos a poucos Rangel
(2005,p.110) se coloca sobre isso quando afirma que:
sabendo-se que a leitura no país, durante o período da colonização, estava
submetida a uma política controladora da produção e circulação de impressos
pela Metrópole e que a escassez de livros era significativa, a leitura escolar ficou
restrita por um tempo, a manuscritos extraídos de processos judiciais e
documentos de natureza comercial.
Então, desde os primórdios os livros já se constituíam em um símbolo de proibição e
aversão para muitos e até hoje existe esses ranços trazidos pelo contexto histórico e que
refletem nas práticas e atitudes dos leitores.
Porém a história está ai para ser modificada e resignificada, a partir das necessidades que
surgem diariamente na sociedade atual. E a escola é um dos principais elementos
fomentador da aprendizagem e a sua função social não pode se limitar devido a
vicissitudes como: falta de recursos, indisciplina, ausência de interesse dos alunos e
famílias omissas para deixar de cumprir a sua missão.
Sabemos que esses elementos dificultam o trabalho educativo, porém faz-se necessário ser
um agente de mudança da realidade em que se atua, buscando alternativas dentro das
possibilidades para tentar sanar as situações do espaço escolar.
Diante dessa explanação, o presente estudo buscou investir em ações educativas de
estímulo à leitura, para perceber quais reações seriam desenvolvidas a partir das situações
propostas em sala de aula.
METODOLOGIA
O estudo realizado define-se como sendo do tipo de abordagem qualitativa, a qual de
acordo com Vianna(2001) ocorre a análise de cada situação a partir de dados descritivos,
buscando identificar relações, causas, efeitos, conseqüências e outros aspectos
considerados necessários à compreensão da realidade estudada e que, geralmente envolve
múltiplos aspectos.
Acrescenta-se que a abordagem qualitativa tem como função de investigar, averiguar para
compreender o fenômeno de forma mais ampla e profunda. Seguindo tal abordagem,
definimos os trabalhos no âmbito das pesquisas etnográficas.
A pesquisa etnográfica é um esquema de pesquisa para coletar dados sobre valores,
hábitos, crenças, práticas e os comportamentos de um grupo social desenvolvido pelos
antropólogos para estudar a cultura e a sociedade. Este tipo de pesquisa se caracteriza
especialmente por um contato direto do pesquisador com a situação pesquisada, renovando
os processos e as relações que configuram a experiência escolar diária.
Nesse sentido buscou-se investigar quais recursos literários e materiais que a escola
dispunha e o contato que os educandos já haviam estabelecido com atividades relacionadas
à leitura.
Essa investigação se deu através de observações in loco, e conversas informais com os
educandos e a gestora da instituição, análise de documentos como o diário escolar e livros
de registros da instituição.
No início do ano letivo de 2008, o qual iniciou o trabalho com essa turma, pude perceber a
aversão dos alunos para com a leitura, por isso surgiu a necessidade de investigar a
realidade em questão, para assim levantar possíveis instrumentos de intervenção nesse
espaço educativo.
A Instituição escolar pública em que foi realizado o presente estudo, está situada na cidade
de Conceição da Feira, numa área periférica com uma turma e 4ª série do ensino
fundamental composta por 20 educandos e por ser o local de trabalho em que atuo.
APRESENTAÇÃO DOS DADOS
A partir das observações que foi um dos principais instrumentos da coleta de dados, foi
demonstrado que os educandos pareciam não ter estabelecido nenhum contato com
atividades simples de leituras tais como contação de histórias, reconto oral e escrito,
interpretação e leituras livres, pois havia total desinteresse pelas atividades propostas.
Diante disso, busquei investigar quais elementos fomentadores do estímulo à leitura
possuía na escola, e foi verificado que existia naquele espaço educativo um pequeno
acervo de clássicos da literatura infanto-juvenil que poderiam despertar nos educandos o
gosto e o prazer pela leitura. Porém, estes não eram utilizados e ficavam armazenados em
armários fora do alcance das crianças.
Ao ser questionada, a gestora da escola confirmou que aqueles livros existiam ali há algum
tempo, porém nunca haviam sido solicitados por nenhum dos educadores da escola e
acrescentou ainda que os educandos eram muito indisciplinados e que poderiam danificar
os livros.
Nos diários escolares dos anos letivos anteriores, ficou evidenciado que a quantidade de
atividades relacionadas às leituras contribuiram de forma significativa para a postura atual
dos educandos em relação aos livros.
A fala da gestora juntamente com a análise dos registros e observação, vem a confirmar
que realmente os educandos dessa instituição não foram estimulados a exercer práticas
significativas de leituras, considerando tais atividades como enfadonhas e sem importância
para o seu contexto social.
Fica evidenciado que essa instituição escolar não estava cumprindo com a sua função
social de levar os educandos a formação da consciência critica através de leituras
significativas e prazerosas realizadas diariamente no espaço educativo. As crianças
estavam passando pela escola sem descobrir o prazer que a leitura pode proporcionar.
E por fazer parte dessa realidade escolar é que me senti motivada a desenvolver algumas
estratégias que estimulassem tais educandos a se interessarem mais pela literatura.
Iniciei o trabalho com a encenação da história de Ruth Rocha “O menino que aprendeu a
ver” leituras de contos e clássicos infantis com reconto diariamente, A produção da caixa
de leitura na qual os educandos levavam para casa com uma história e uma atividade a ser
desenvolvida sobre o que foi lido, e por fim momentos prazerosos de leituras livres.
Vale ressaltar que foi confeccionada inicialmente apenas uma caixa de leitura, para
analisar a aceitação das crianças, mas foi tão bem recebida essa idéia que hoje já são quatro
caixas de leituras circulando pela sala de aula.
Os livros estocados na escola foram organizados em um espaço da área escolar, no qual foi
instalada uma estante e algumas mesas e cadeiras, para que os educandos tivessem acesso e
escolhessem seus próprios livros para realizar suas leituras de acordo com a preferência de
cada um, podendo também fazer empréstimos de livros. Esse espaço se constitui em uma
mini-biblioteca que foi organizada devido às sugestões realizadas com a gestão escolar.
No início houve resistência dos educandos, pois estes não percebiam o significado da
leitura, mas logo depois passaram a compreender a importância de ser um leitor e hoje já
escolhem seus próprios livros para realizar suas leituras.
O impacto desse trabalho tem refletido em todas as áreas do conhecimento, melhorando
significativamente o empenho e aprendizagem dos educandos.
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
A realização desse trabalho veio confirmar a hipótese inicialmente estabelecida de que os
educandos dessa realidade educativa não demonstravam interesse pela leitura, pois não
eram estimulados para tais práticas.
Ficou evidenciada também a importância que a postura do profissional de educação exerce
diante das atividades desenvolvidas em sala de aula no processo de formação dos leitores.
É imprescindível proporcionar aos educandos atividades de incentivo ao gosto pela leitura,
pois eles precisam ser estimulados para daí então estabelecer boas relações com os livros.
As estratégias utilizadas surtiram tamanho efeito que até os pais procuraram a escola para
entender o porquê de tais mudanças nas atitudes dos seus filhos em relação à leitura e aos
próprios livros que eles estavam levando para casa.
A análise e o estudo dessas questões demonstraram o quanto a temática é relevante para o
contexto educativo e social no qual estão inseridos os educandos, pois se constitui num
elemento primordial da inserção do cidadão na sociedade atual tão necessitada de pessoas
competentes para desempenhar de maneira eficaz as suas ações sociais.
Portanto, a escola não pode se eximir da sua função social de formar cidadãos críticos,
atuantes, éticos porque o esforço individual de cada educador proporciona grandes
mudanças na realidade em que se atua. E o primeiro passo para isso acontecer é
despertando nos educandos o prazer e o gosto pela leitura.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Celso. Alfabetização Emocional: novas estratégias. Petrópolis, RJ. Vozes, 1999.
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil: teoria e prática. 18.ed. São Paulo: Ática.
2006.
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e terra,1981.
POZO, Juan Ignácio. Aquisição de conhecimento: quando a carne se faz verbo. Porto Alegre:
Art méd.2004.
RANGEL, Jurema Nogueira Mendes. Leitura na escola: espaço para gostar de ler. 2.ed. Porto
Alegre: Mediação. 2005.
VIANNA, Ilca Oliveira de Almeida. Metodologia do trabalho científico: um enfoque didático
da produção científica. São Paulo: EPU, 2001.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos
psicológicos superiores. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes. 1991.
ORALIDADE: O USO DAS FÁBULAS COMO RECURSO DE VALORIZAÇÃO
DAS VIVÊNCIAS DOS ALUNOS DA EJA.
Roselle Maria de Amorim Santos 1
Lílian Matos da Silva 2
A Educação de Jovens e Adultos é uma modalidade da Educação Básica que tem como
objetivo central promover o ensino da leitura – decodificação das letras e leitura de mundo
– e escrita como bens sociais aos indivíduos que não tiveram acesso na idade/período
adequado. A EJA sofreu com o descaso e a negligência da União no que se refere à sua
legalização, o escasso investimento financeiro e a falta de políticas públicas eficazes.
Historicamente, observa-se, apesar das iniciativas desenvolvidas desde o Brasil Colônia,
que só em 1930 – no governo de Getúlio Vargas – foi firmada uma infra-estrutura
educacional que valorizasse todas as suas características.
É evidente que, mesmo nos dias atuais, existem inúmeros problemas que permeiam a EJA.
Infelizmente, a educação brasileira, como um todo, não recebe a atenção devida do Estado.
Não se pode deixar de ressaltar que a Constituição de 1988, a LDB 9394/96, as Diretrizes
Curriculares e Parecer 2000/11 foram e são de fundamental importância para o crescimento
e reconhecimento dessa modalidade enquanto legislação. E, é baseando-se nesses
regimentos tão pertinentes que buscaremos desenvolver este artigo, bem como destacar a
oralidade como peça fundamental para a prática da EJA, valorizando os conhecimentos
prévios dos alunos e suas vivências, ações essas defendidas pelo estudioso Paulo Freire.
1. A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS A PARTIR DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Com o instalar da democracia na década de 80, definiu-se uma nova concepção de
educação de jovens e adultos a partir da Constituição Federal de 1988. Através do artigo
208, firmou-se como dever do Estado a promoção do ensino fundamental obrigatório e
gratuito assegurado a todos aqueles que não o tiveram em idade própria. Ao introduzir esta
mudança, a Constituição reconheceu a EJA e a colocou no mesmo patamar destacado à
Educação Infantil.
1
Graduanda em Licenciatura em Pedagogia na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
E-mail: [email protected]
2
Graduanda em Licenciatura em Pedagogia na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
E-mail: [email protected]
No que se refere à LDB 9394/96, a educação de jovens e adultos foi favorecida em alguns
pontos e enfatizada no capítulo II, seção V. Esse regimento, além de oferecer e assegurar
de forma gratuita este ensino defende a valorização dos conhecimentos prévios dos alunos
– resultante dos meios informais, considerar suas características e seu contexto, as suas
vontades, condições de vida e trabalho, fornecendo elementos educacionais apropriados
para a manutenção da qualidade de ensino. O poder público deve, segundo essa lei,
proporcionar, estimular e assegurar o acesso e a permanência do trabalhador na escola,
através de práticas que se integrem e se complementem. Assim, o aluno se sentirá à
vontade para permanecer e desenvolver-se em instituições regulares de ensino. Nesse
sentido, é fundamental a participação do Estado enquanto mantenedor de estruturas básicas
para a permanência do alunado e que, acima de tudo, ele se sinta estimulado a aprender e
crescer.
Após as delimitações da LDB, muitas dúvidas por parte dos educadores, das organizações
e entidades interessadas pelo assunto surgiram. Com o intuito de esclarecê-las foi lançado,
em maio de 2000, o Parecer CNE/CEB 11/2000. Este se ocupou da composição das
diretrizes para a educação de jovens e adultos relatando a existência de dois Brasis: aquele
que está determinado nas leis e aquele que é colocado em prática. Apesar do aumento das
iniciativas em prol de um atendimento mais amplo a adolescentes e jovens brasileiros, o
acesso à escolaridade obrigatória e à prevenção da distorção da idade/ano, de acordo com o
Parecer, o Brasil permanece exibindo um alto número de analfabetos e um elevado índice
de indivíduos que não sabem ler o mundo ao seu redor.
As práticas realizadas com orientação de docentes desta instituição (UEFS) a qual
pertencemos, foram pertinentes e de fundamental importância. A partir delas foi possível
observar esta realidade de perto, mantendo um contato com discentes provenientes dessa
realidade – falta de oportunidade para a escolarização na idade “normal” -. Nesse sentido, a
EJA se configura como “uma dívida social não reparada para com os que não tiveram
acesso” (Parecer 11/2000 p. 05). Essa modalidade de ensino deve ser trabalhada visando a
reparação dessa falta, valorizando, concomitantemente, a oralidade, os conhecimentos
prévios, a sua cultura e a sua experiência de vida. A partir dessa função reparadora, devese, de acordo com as considerações desse Parecer, proporcionar a equidade entre os
cidadãos, colocando-os no mesmo patamar e evidenciando a igualdade de todos os
indivíduos.
2. ORALIDADE
Numa perspectiva sócio-interacionista da educação, entendemos que as formas de
aprendizado realizam-se de maneira dialética entre seus membros. Este diálogo compõe
práticas sociais de aproximação contínua, conforme as interpretações de Kalman (2003)
sobre os estudos de Vygotsky que declara a linguagem (oral e escrita) como ferramentas
poderosas nessa visão de educação.
Segundo Kalman (2003), analisando as declarações de Hicks (1996), a aprendizagem se dá
primeiro no plano da experiência social mediada por sistemas simbólicos, culturais,
especialmente a linguagem humana e, segundo, no plano da cognição individual. Partindo
desse pressuposto, na educação de jovens e adultos devem-se levantar, no primeiro
momento, as contribuições, anseios, necessidades que estes sujeitos históricos querem
concretizar. Com isso, a oralidade é um instrumento importantíssimo para o trabalho
individual, quando utilizada para estabelecer trocas de conhecimentos entre os membros
(alunos e professor).
Além das interações, a oralidade pode contribuir satisfatoriamente para elevar a auto
estima desses sujeitos dando-lhes vez e voz. Os jovens e adultos quando lhes é dado a
oportunidade de expressar seus conhecimentos adquiridos ao longo da vida, sentem-se
motivados e reconhecidos. Com isso, o estabelecimento de um diálogo entre docente e
aluno será regido pela troca de saberes e respeito aos discursos lingüísticos diferentes.
Diante das elucidações feitas sobre a importância do respeito à oralidade na educação de
jovens e adultos, utilizamos desse instrumento para realizar nosso projeto com fábulas. Na
visão sócio-interacionista, colocamos em evidência aquilo que os alunos dominavam, a
oralidade, para então unirmos outras formas de conhecimento que essa categoria social
anseia aprender (leitura e escrita). Para tanto, recorremos ao estilo literário das fábulas com
o intuito de alcançarmos nosso objetivo: reconhecer os conhecimentos dos alunos e
estimular a partir de então a leitura e a escrita, formas de comunicação social que a
sociedade moderna exige.
3. FÁBULAS
Segundo o Dicionário Aurélio, “a fábula é uma narração alegórica, cujas personagens são,
em regra, animais, e que encerra lição moral.” (1988, p. 227). Tomando por base esta
definição e por meio de pesquisas realizadas em web sites, entendemos que fábulas são
narrativas, geralmente pequenas, nas quais os autores tentam transmitir uma postura crítica
sobre as nossas condutas conosco e com as outras pessoas. As lições de moral que as
fábulas trazem, muitas vezes vêm implícitas, transmitem esses posicionamentos e por meio
delas os fabulistas, assim são chamados os escritores de fábulas, tentam difundir conceitos
de ética e moral.
O termo fábula originou-se do verbo latim fabulare, que significa conversar, falar, mas
também possui uma origem da palavra grega Phaó que significa dizer, contar algo. Por
isso, as fábulas representam uma das maneiras mais antigas de se contar histórias. Existem
fabulistas muito famosos como Esopo, Theon, Fedon, no entanto, Jean de La Fontaine
(1621-1695) aparece como o autor de fábulas mais conhecido, isso porque, quando em
vida, inspirado em Esopo, escreveu muitas histórias, reinventou outras tornando-as mais
atuais e, com isso, ganhou mais notoriedade.
Contudo, não é somente em relação às nossas condutas que as fábulas falam. Utilizando-se
de animais como personagens, os fabulistas criticam valores e princípios da sociedade. A
ironia é outra característica deste gênero narrativo que procura conduzir-nos para a
reflexão acerca de fatos do nosso cotidiano numa analogia de ações entre animais, homens
ou objetos inanimados. A intencionalidade pode ser apontada como mais um elemento que
caracteriza a fábula. A história contada pelo autor deve vir em consonância com a sua
intenção de deixar determinada lição de moral ao final.
Assim, o alvo da crítica que acompanha essa narrativa, curta e bem-humorada, são as
próprias pessoas (com suas qualidades e defeitos). Sejam elas pertencentes a camadas
populares da sociedade ou nossos representantes de governo, isso porque, em uma fábula o
que importa são os conflitos entre querer/poder, ou bondade/astúcia, ou ainda
inteligência/força, etc. e estes independem de posição social.
4. DESCRIÇÃO DA PRÁTICA
O presente artigo foi idealizado a partir de um projeto solicitado pela professora da
disciplina Práticas Pedagógicas em Educação de Jovens e Adultos. Muitos foram os temas
que surgiram durante as nossas discussões e pesquisas a respeito do público para o qual
seria desenvolvido esse trabalho. No entanto, precisávamos de um que contemplasse
questões elementares da Educação de Jovens e Adultos e que representassem nossos
anseios em idealizá-lo, a saber: oralidade, escrita e leitura.
Escolhemos como tema o gênero narrativo Fábulas. Essa escolha foi feita porque as
características que esse texto literário possui conseguem abarcar aqueles aspectos
anteriormente citados.
As fábulas são textos narrativos que trazem em si uma lição de moral. São escritas
imaginárias, utilizam animais ou objetos inanimados como personagens para discutir temas
do cotidiano que envolvem reflexão e tomada de decisão a respeito de nossas condutas.
Baseando-se em comportamentos antropomórficos dos personagens, as fábulas buscam
expor de uma maneira criativa os valores e princípios disseminados em nossa sociedade.
Partindo dessas peculiaridades referentes à fábula é que desenvolvemos a idéia do nosso
trabalho.
O local escolhido para a realização dessa prática foi uma turma de alfabetização do
Programa Aja-Bahia coordenado pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Segundo
folheto recebido no primeiro dia de contato com a coordenação do programa, a
Universidade Estadual de Feira de Santana assume o desafio sócio-educativo, em parceria
com a Secretaria da Educação do Estado da Bahia, de reverter o grande índice de pessoas
analfabetas na região, com vistas a contribuir para a melhoria da qualidade de vida de seus
cidadãos.
Sensibilizada com o elevado número de pessoas não alfabetizadas, investe com
responsabilidade e competência no desafio de reverter o atual quadro desolador do
analfabetismo de jovens e adultos. Nesse sentido, pretende-se desenvolver o Programa
Brasil Alfabetizado/ AJABAHIA-2008, tendo em vista estratégias pedagógicas que
viabilizem integrar o indivíduo não alfabetizado, através do domínio da palavra escrita, ao
mundo letrado, levando ao exercício pleno da sua cidadania.
O propósito social é reduzir o índice de analfabetismo de jovens e adultos nos municípios
parceiros,
envolvendo
alfabetizadores,
alfabetizandos,
orientadores
pedagógicos,
coordenadores pedagógicos, coordenadores administrativos, através de uma ação
pedagógica numa perspectiva sócio-interacionista.
A turma de alfabetização visitada apresentou-se receptiva e participativa desde o primeiro
encontro. A classe era composta por onze alunos, sendo que a maioria era formada por
idosas de cinqüenta a setenta anos. Além dessas, tinha dois alunos, ambos com problemas
mentais. Com o auxílio de um questionário observamos que grande parte da turma parou
de estudar a mais de 20 anos para trabalhar ou cuidar da família. As mais idosas são
aposentadas e as mais novas trabalham como domésticas ou diaristas. Através de entrevista
informal, compreendemos que em sua maioria, a turma, apesar de gostar das aulas e da
professora, apresenta grande dificuldade para ler e escrever.
Elas estudam com o apoio das famílias, mas desejam, às vezes, desistir, pois acreditam que
“as coisas não entram muito na cabeça”. De acordo com a docente, a dificuldade é
proveniente da pequena freqüência, muitas vezes, por motivo de saúde, e por isso elas
acabam se atrasando nos assuntos ou desenvolvendo dificuldades nas tarefas. Através do
questionário percebemos que a turma era multiseriada, ou seja, alguns alunos sabiam
escrever, outros sabiam copiar e muitos deles não sabiam fazer nenhum dos dois. No
entanto, demonstraram consciência da importância do estudo e por isso estavam de volta à
sala de aula.
Ao final do nosso trabalho deveríamos construir fábulas individuais e uma coletiva. A
escolha de se trabalhar com fábulas deve-se ao fato de que esse gênero textual permite
discutirmos sobre temas, como por exemplo a solidariedade, a relatividade das coisas,
fraqueza sobre a força, a bondade sobre a astúcia e a derrota de presunçosos. São temas
que fazem parte das nossas vidas, do nosso cotidiano e por esse motivo entendemos que
cabia trabalhar numa turma de educação de jovens e adultos.
Após a intervenção e o aprofundamento sobre o tema, conseguimos contemplar o nosso
objetivo inicial. Produzimos as fábulas programadas, trabalhamos as suas características e
desenvolvemos, nos discentes, a compreensão do que venha ser leitura, através do uso de
narrativas. A turma se apresentou participativa e aberta a nossa prática. O apoio recebido
pela docente, nos indicando com paciência como trabalhar com a turma, mediando sempre
que necessário, foi fundamental para a concretização deste trabalho.
O gênero narrativo – fábulas – nos permitiu contemplar de maneira satisfatória o nosso
objetivo de trabalhar com ênfase na oralidade, questão que muitas vezes não é valorizada
pelos programas de alfabetização de jovens e adultos. Nesses espaços, entendemos que o
estabelecimento do diálogo entre docente e aluno pode ser regido pela troca de saberes e
respeito aos discursos lingüísticos diferentes.
Partindo desse pressuposto, acreditamos que, concordando com Haddad Di Pierro (2000),
o processo educativo deve fornecer os instrumentos e as técnicas para que os indivíduos
possam desenvolver-se e ter acesso a sua cultura. Sob essa perspectiva, procuramos dar
oportunidade para que os alunos exercitassem sua imaginação, criatividade, oralidade e
pudessem se encontrar como sujeitos históricos e participativos na construção de
conhecimentos. Nas fábulas, vimos um meio para que esse objetivo se concretizasse, uma
vez que esse tipo de texto aborda questões cotidianas e proporcionou aos alunos o
desenvolvimento dessas habilidades.
Como futuras educadoras, não podemos nos isentar da nossa responsabilidade e deixar de
fazermos a nossa parte, por menor que ela possa parecer diante do quanto precisa ser feito.
Assim, na educação de jovens e adultos defendemos ser imprescindível o levantamento das
contribuições, dos anseios e necessidades que esses sujeitos querem concretizar, colocando
a valorização da oralidade como uma possibilidade para o alcance dos objetivos em torno
deste processo educativo.
REFERÊNCIAS
DI PIERRO, Maria Clara; HADDAD, Sérgio. Escolarização de jovens e adultos. Revista
Brasileira de Educação. Mai/Jun/Jul/Ago 2000, N° 14.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988. 2ª ed.
KALMAN, Judith. O acesso à cultura escrita: a participação social e a apropriação de
conhecimentos em eventos cotidianos de leitura e escrita. In: Educação de jovens e adultos.
OLIVEIRA, Inês Barbosa; PAIVA, Jane (Org.). Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
LA FONTAINE, Jean de. Fábulas. In: Gustave Doré. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro:
Revan, 1999. 4ª ed.
PAIVA, Vanilda. História da Educação Popular no Brasil: educação popular e educação
de adultos. São Paulo: Edições Loyola, 2003, 6ª ed.
Informação disponível em:
<http://www.etfto.gov.br/documentos_institucionais/cursos_superiores/Constituição_Feder
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http://proffuturo.net/mundodafabula/index.php?option=com_content&task=view&id=24&I
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Informação disponível em: < http://criancas.uol.com.br/historias/
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Informação disponível em: < http://igeducacao.ig.com.br/
igler/materias/208501-209000/208539/208539_1.html> Acesso em: 01/04/08.
A INTERPRETAÇÃO DECORRE DAS EXPERIÊNCIAS TEXTUAIS.
Selma dos Santos (UEFS)
INTRODUÇÃO
O livro didático não garante a qualidade de ensino para que o estudante seja sujeito da sua
história e perceba-se cidadão. Diante da situação, propomos o trabalho com a crônica
literária como alternativa do ensino de história na educação básica, vislumbrando
considerar as contribuições das diferentes culturas e etnias da formação do povo brasileiro,
especialmente das matrizes indígena, africana e européia. Bem como discutir temáticas
pertinentes ao proposto pelas leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008.
A proposta é que a crônica literária seja escrita por artistas e não pedagogos, que não haja
um censor na produção literária, mas a palavra do escritor. A crônica pode ser uma
alternativa de ensino porque simplesmente ela é. Não busca um aval para ser produção,
contudo, pode indicar uma reflexão sobre a temática cotidiana da construção histórica do
sujeito, transcendendo as aparências. O cronista contribui com o estudo histórico quando
apreende a realidade total na produção que realiza. Escreve sempre com a possibilidade do
vir-a-ser.
E, pensando no vir-a-ser da crônica, hoje (2008) relato uma das práticas realizadas em sala
de aula com alunos do ensino fundamental, nas aulas de História. Durante muito tempo fiz
anotações sobre minha prática pedagógica para avaliar quais os progressos que poderia
realizar na alternativa do ensino menos “decoreba”, menos positivista.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Como professora da disciplina de História, do ensino fundamental, procurava usar
diferentes linguagens para explicar e justificar relações de dominação e subordinação
presentes em todas as dimensões sociais e, assim o estabelecimento dos fatos históricos.
Então, quando em uma aula de História usava o texto literário, como material, não fazia
reflexão sobre o autor, sua obra e sua posterior inserção no ambiente social e histórico,
como em geral nas histórias de literatura. Pensava a obra literária como parte integrante do
social que não se pode encará-la como reflexo da vida do autor; e o mesmo e sua obra
inseridos num contexto a priori.
A literatura, desta forma, expressa relações sociais propostas e, ao mesmo tempo, modela a
forma de agir e pensar. Oferece uma avaliação do real na medida em que tem uma visão
problemática da realidade.
Diante desta visão, entendo que os conhecimentos literários e lingüísticos ajudam na
compreensão histórica, mas extrapola esse campo de reflexão, procurando desvendar o que
se fala, como se fala, de onde se fala, etc., e, para isso, é preciso criar procedimentos
capazes de dar conta desta realidade, estar fazendo relações, pois de outra forma a
investigação será superficial ou inadequada. Torna-se necessário estabelecer uma
intertextualidade entre estudo histórico e literatura.
No caso da literatura, mais especificamente a aqui tratada, a crônica, o leitor tem que estar
atento às metáforas, imagens etc., pois os recursos da linguagem são recursos históricos.
Para a compreensão textual foi preciso aprender as significações básicas de textualidade:
coesão e coerência, utilizando-me, entre outros, dos trabalhos de Kleiman (1995); Koch
(1994, 1995) e Orlandi (1996) que auxiliam na análise textual, estudo fundamental para o
processo cooperativo entre produtor e receptor do texto.
2. METODOLOGIA
Para realização da aula buscando comprovar a tese – a interpretação decorre das
experiências textuais segui os seguintes passos:
1.
Leitura de várias crônicas com temáticas relacionadas aos conteúdos da disciplina
História;
2.
Decisão de usar a crônica “Ousadia” de Fernando Sabino que está relacionada com
o conteúdo a ser explorado nas aulas da quinzena e também por ter sido mencionado pela
professora Kleiman (1977);
3.
Reprodução de texto para a turma;
4.
Distribuição do texto à turma;
5.
Leitura silenciosa do texto pela turma;
6.
Leitura oral por mim;
7.
Definição do léxico “ousadia”;
8.
Discussão do contexto do texto;
9.
Aulas sobre situações cotidianas de racismo.
10.
Leitura bibliográfica para fundamentar a análise textual
11.
Análise textual
12.
Redação final sobre o trabalho
TEXTO ANALISADO
“Ousadia”, de Fernando Sabino (1967)
A moça ia no ônibus muito contente desta vida, mas, ao saltar, a contrariedade se
anuncia:
— A sua passagem está paga – disse o motorista.
— Paga por quem?
— Esse cavalheiro aí.
E apontou um mulato em vestido que acabara de deixar o ônibus, e aguardava com um
sorriso junto a calçada.
— É algum engano, não conheço esse homem. Faça o favor de receber.
— Mas já está paga…
— Faça o favor de receber! – insistiu ela, estendendo o dinheiro e falando bem alto para
que o homem ouvisse: — Já disse que não o conheço! Sujeito atrevido, ainda fica ali me
esperando, o senhor não está vendo? Vamos, faço questão que o senhor receba a minha
passagem...
O motorista ergueu os ombros e acabou recebendo: melhor para ele, ganhava duas vezes.
A moça saltou do ônibus e passou fuzilando de indignação pelo homem.
Foi seguindo pela rua, sem olhar para ele.
Se olhasse, veria que ele a seguia, meio ressabiado, a alguns passos.
Somente quando dobrou à direita para entrar no edifício onde morava, arriscou uma
espiada: lá vinha ele! Correu para o apartamento, que era no térreo, e pôs-se a bater
aflita:
— Abre! Abre aí!
A empregada veio abrir e ela irrompeu pela sala, contando aos pais atônitos, em termos
confusos, a sua aventura:
— Descarado, como é que tem coragem? Me seguiu até aqui!
De súbito, ao voltar-se, viu pela porta aberta que o homem ainda estava lá fora, no
saguão. Protegida pela presença dos pais, ousou enfrentá-lo:
— Olha ele ali! É ele, venham ver! Ainda está ali o sem-vergonha. Mas que ousadia!
Todos se precipitaram para a porta. A empregada levou as mãos à cabeça:
— Mas a senhora, como é que pode! É o Marcelo.
— Marcelo? Que Marcelo? – a moça se voltou surpreendida.
— Marcelo, o meu noivo. A senhora conhece ele, foi quem pintou o apartamento.
A moça só faltou morrer de vergonha:
— É mesmo, é o Marcelo! Como é que eu não o reconheci! Você me desculpe, Marcelo,
por favor.
No saguão, Marcelo torcia as mãos, encabulado:
— A senhora é que me desculpe, foi muita ousadia…
3. ANÁLISE
Leitura do texto “Ousadia” de Fernando Sabino, na aula da Disciplina História, na turma
05, Suplência II – Estágio I (5a e 6a séries), turno noturno, do Colégio Estadual Edith
Machado Boaventura, Feira de Santana – Bahia, em mil novecentos e noventa e sete.
Com presença de quarenta e quatro alunos. Sendo, 20% de repetentes (alunos que
estudaram o ano letivo anterior no Colégio).
A turma fez uma leitura silenciosa. E, em seguida fiz uma leitura oral para assegurar o
entendimento comum a toda a turma e provoquei uma discussão sobre o que tinham lido.
Então quando perguntados sobre o conteúdo do texto lido foram unânimes em afirmar que
se tratava da “estória de uma moça que tinha um homem querendo tomar ousadia com ela”.
Após essa afirmativa perguntei, então, o significado da palavra “ousadia”. Começaram a
surgir as respostas.
— “O cara queria paquerar a mulher, aí ele pagou a passagem”.
— “Sabe lá o que ele queria. Ele era tirado a engraçadinho”.
— “Ousadia, quer dizer que ele tava a fim dela e tava procurando uma chance.”
— “Ousadia é tomar intimidade”.
— “Professora, não posso falar o que significa ousadia aqui na sala. A senhora sabe não
fica bem”. (RISOS DA TURMA)
— “Ele quer dizer que a coisa que o homem fez com a mulher”.
— “Ousadia é tomar pé com a pessoa”.
— “É querer ganhar a mulher de qualquer jeito”.
As respostas seguiam no nível de entendimento acima transcrito quando um aluno
questionou: — “Eu não sei o que quer dizer ousadia no texto, mas sei que a professora de
História não ia trazer um texto que só falasse de um homem que quer tomar pé com a
mulher. Professora, por que o texto fala que a cor do homem era mulato e não fala a cor da
mulher? Será que pagar passagem é ousadia se ele conhecia a mulher? Eu acho que ela não
lembrava dele só porque era empregado”.
Houve a interrupção com a fala de outro colega: — “Deixa de ser besta, ele queria mesmo
era segurar a mulher”.
O aluno anterior retoma a palavra e diz: — “qual o sentido de um assunto deste na aula de
História, tenho certeza que a professora quer falar de algum fato da história, ela não é
boba. Professora, leia de novo o texto para a gente compreender melhor”.
Após uma nova leitura alguns alunos falaram que só poderia se tratar de fato do homem ser
negro. A turma ficou dividida na opinião, a maioria insistia na tese da paquera e uma
minoria no fato de ser um homem negro e pobre – apesar de bem vestido, pobre. Julgaram
que a moça só agiu porque o homem era negro e ela devia ser branca.
Dois alunos (4,44% da turma) concluíram que eu levei o texto para trabalhar o assunto
Racismo na aula. A partir desse entendimento explorei o tema em mais três aulas seguintes.
No momento em que ficou estabelecido o entendimento de que se tratava do tema racismo,
questionei em que partes do texto havia elementos que denunciam o sentido do texto. Dos
quarenta e quatro alunos presentes, só 4,44% continuou a participar da aula apontando os
elementos textuais. Veja o que disseram:
Aluno 1 — “Professora, a reação da moça que ficou contrariada quando soube que foi um
mulato que pagou sua passagem. Será que ela ficaria assim se fosse um branco?”.
Aluno 2 — “Professora, ela conhecia o homem. Porque ela era o noivo da empregada.
Bem, ela esqueceu que conhecia porque ela não o olhou bem quando ele tava trabalhando
na casa dela. Ela se julgava melhor que ele, porque ele era negro e pobre”.
Aluno 1 — “Ela chamou ele de ‘sujeito atrevido’ só porque ele pagou a passagem e ficou
esperando por ela para irem para casa juntos.
Ela não gostou porque ele era mulato, mas se fosse branco, alto e rico, aposto que ela iria
gostar.”
Aluno 2 — “No Brasil as pessoas tratam os outros com discriminação porque os negros
foram escravos. Muita gente pensa que deve continuar assim até hoje”.
Aluno 1 — “Quando o texto fala assim um ‘mulato bem vestido’, quer dizer que só por ser
mulato não deve ser bem vestido. Por quê? Isso é coisa de branco. Aí mostra preconceito
de raça”.
Aluno 2 — “Quem é preto vive sempre pedindo desculpas. O que ele fez não era errado,
mas mesmo assim pediu desculpas, só porque ela era patroa da noiva e vai ver que eles
precisavam de dinheiro para o casamento”.
Aluno 1 — “Ela o julgou pela aparência”.
Comprovei que 4,44% da turma fez uma leitura intertextual, isto é, exploraram o escrito
fazendo relações com outras situações de vida e textuais. Portanto, posso afirmar que a
interpretação decorre das experiências textuais e como esses alunos não tinham vivenciado
anteriormente uma leitura de crônica não perceberam que a estória banal tinha um cunho
social.
Contudo, o texto serviu de suporte para as três aulas seguintes com o tema racismo. As
aulas tiveram uma freqüência surpreendente, pois geralmente nos últimos horários quase
que a maioria ausentava-se do Colégio.
Após a prática em sala de aula realizei leituras (ver bibliografia) que fundamentassem uma
análise textual.
Parti para uma análise de texto buscando aprender suas significações básicas de
textualidade: coesão e coerência. A coerência se dá na organização verbal e seu contorno
semântico.
Entendi que o texto “Ousadia” é uma narrativa que conta com um sujeito da comunicação
e um observador-personagem (a moça). Os fatos são apresentados segundo o ponto de vista
da moça.
No início do texto, o tempo verbal, pretérito imperfeito, do verbo ir sugere uma ruptura de
situações de satisfação da personagem, evidenciada pela contraposição da oração
coordenada introduzida pela conjunção adversativa “mas” expondo o fato responsável pelo
rompimento. “A moça ia no ônibus muito contente desta vida, mas ao saltar, a
contrariedade se anunciou:” (linha 1).
O contraste fica mais evidenciado com o sintagma “muito contente”; o superlativo acentua
a oposição diante de “contrariedade”, cuja descrição dá-se por meio da fala do motorista:
“A sua passagem já está paga” (linha 2).
A primeira leitura que a moça fez do ato de Marcelo foi o que determinou seu
comportamento agressivo. Que leitura foi esta?
A busca de encontrar resposta ao questionamento, apresenta os elementos constitutivos da
coesão expressa na narrativa, em harmonia com a composição da coerência.
Um recurso coesivo utilizado é o vocábulo “passagem”, com sentido polissêmico dentro
do texto, um indicativo de referência do autor ao contorno das principais linhas semânticas
da narrativa: exterioridade/interioridade, em plano primeiro, e ainda, em outro plano,
esquecimento/lembrança. Em outras palavras, o vocábulo “passagem”, lexicalizado como
“bilhete que dá direito à viagem”, teria seu emprego justificado por outro sentido
subjacente, qual seja “ato ou efeito de passar (se), transformar (se)”, diluído na narrativa,
pelo desconhecimento/esquecimento da moça em reconhecer Marcelo.
A adequação dos padrões de coerência/coesão da narrativa é notória. Eles foram
percebidos pelos 4,44% dos alunos da Suplência, pois dá para perceber o valor
coesitivo/coerente quando eles afirmaram sobre a visão preconceituosa da moça,
discriminatória.
Observei que para o motorista, o fato do pagamento da passagem foi uma gentileza e
deduziu que o mulato e a moça se conheciam. Pois ao responder a moça fez uso do
determinante “esse” e do advérbio “aí”.
O substantivo “mulato” (linha 5) assume expressiva peculiaridade na definição dos padrões
de textualidade, indicar um dado notoriamente externo (cor da pele) na primeira referência
explícita ao personagem. E um dado sujeito de atitude discriminatória. Como acréscimo, o
sintagma adjetival “bem vestido” liga se a idéia da aparência.
Há também a utilização polissêmica da forma verbal “ousar”. Em “ousou enfrentá-lo”
(linha 23), descreve-se a decisão da moça, encorajada pela presença dos pais, ao perceber
o mulato; vale ajustar esse conteúdo semântico de verbo à idéia de “atrevimento,
petulância”, com que é empregado pela própria protagonista para caracterizar o
comportamento daquele. A coragem dele, ao contrário da sua, não corresponde a destemor,
mas a insolência. A moça ousou enfrentá-lo (uma associação positiva de defesa); Marcelo
ousou pagar-lhe a passagem e segui-la (associação negativa de intromissão).
No final da estória, a empregada desfaz o mal entendido e tudo volta ao normal.
4. CONCLUSÃO
A utilização de textos literários nas aulas da disciplina História favorece o gosto à leitura,
fortalece a participação da turma nas aulas, ajuda a explicar um fenômeno social, bem
como alguns fatos históricos complexos que requerem uma explicação mais sistemática.
Desperta a reflexão a partir de um texto aparentemente desprovido de significações.
Pode-se concluir, ainda, que seria necessário na disciplina Língua Portuguesa trabalhar
mais com textos enfocando a textualidade e usando os diversos gêneros literários.
A análise textual de “Ousadia” acarreta muito estudo a quem não é da área de lingüística.
Mas em si o texto traz os elementos facilitadores para análise.
A tese “a interpretação decorre das experiências textuais” foi comprovada. A interpretação
dada pelos alunos da Suplência II – Estágio I (5a e 6a séries) do turno noturno, do Colégio
Edith Machado Boaventura, deve-se principalmente às experiências textuais.
Passaram praticamente onze anos para que esse texto viesse a público. Contudo, continuo
acreditando na possibilidade de exploração do texto literário como uma alternativa do
ensino de História, especialmente por saber que a prática leitora é uma necessidade das
nossas escolas que anseiam por uma qualidade de ensino - entendida como direito à
inserção social das classes sociais marginalizadas – e, que o professor deve configurar
como um leitor que auxilia no desvendar da interpretação textual, que pode estabelecer as
múltiplas relações intertextuais de uma textualidade.
5. REFERÊNCIA
CUNHA, Celso, CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
KLEIMAN, Angela B. Análise e produção de textos. apostila.
KLEIMAN, Angela B. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 4 ed. revisada. Campinas, SP:
Pontes, 1995, 82p.
KOCH, Ingedore Greenfeld Villaça. A coesão textual. 7 ed. São Paulo: Contexto, 1994.
KOCH, Ingedore Greenfeld Villaça. A inter-ação pela linguagem. 2 ed. São Paulo: Contexto,
1995.
KOCH, Ingedore Greenfeld Villaça; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. 4 ed. São
Paulo: Cortez, 1995.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4 ed.
Campinas, SP: Pontes, 1996.
SABINO, Fernando. Ousadia. In: A mulher do vizinho. 4 ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1967.
VANOYE, Francis. Usos da linguagem: problemas e técnicas na produção oral e escrita. 10 ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1996.
III SEMANA DE ALFABETIZAÇÃO, LEITURA E ESCRITA:
Articulando universidade e comunidade na superação de situações de fracasso escolar
Ana Cristina Silva de Oliveira Pereira (UNEB)
[email protected]
Selma dos Santos (UEFS)
[email protected]
PALAVRAS INTRODUTÓRIAS... CONTEXTUALIZANDO A DISCUSSÃO
O mundo é uma grande história que se
lê diariamente...
Selso Cisto
As reflexões e análises travadas nesse artigo referem-se à experiência de trabalho que
culminou na III Semana de Alfabetização, Leitura e Escrita, cujo tema foi “Fracasso
Escolar ou Situação de Fracasso Escolar?”. Tal experiência se constituiu numa construção
interdisciplinar que mobilizou 11 Secretarias Municipais de Educação da Região, Direc 12,
professores do Ensino Fundamental e Médio, instituições educativas e sociais de Serrinha e
municípios circunvizinhos, alunos e docentes das disciplinas Metodologia da
Alfabetização, Metodologia da Língua Portuguesa, História da Educação Brasileira,
Literatura Infantil e Didática, que buscaram desenvolver atividades conjuntas, visando
integrar as ações para que os estudantes pudessem elaborar, executar e avaliar projetos de
cunho pedagógico. Tais disciplinas foram oferecidas no Curso de Licenciatura em
Pedagogia, da Universidade do Estado da Bahia – UNEB e a ação foi efetivada no
semestre 2005.2, possibilitando a articulação entre o discurso teórico travado no âmbito
acadêmico e a prática desenvolvida nas instâncias educativas.
Com a III SALE foi possível potencializar o ensino, colocando-o como um instrumento
facilitador da democratização do conhecimento, criando, recriando e, socializando a
produção de conhecimentos e os laços entre a comunidade acadêmica e a sociedade.
Além disso, esse projeto constituiu-se numa oportunidade para os acadêmicos exercitarem
experiências, práticas e terem acesso a documentos comprobatórios das ações extracurriculares tão essenciais à formação continuada e para a integralização do curso de
Pedagogia.
Assim, a relevância desse Projeto se justificou pela ação reflexiva e construcionista de
novas metodologias para a re-significação do ensino e aprendizagem da alfabetização,
leitura e escrita, tendo em conta os novos cenários sociais que se configuram, tecendo os
rumos da educação para o novo milênio.
Os objetivos que nortearam a ação buscaram contribuir com a educação e as comunidades
locais, no sentido de propiciar momentos de partilha, de amplo debate e, principalmente de
encontros de conhecimentos, na perspectiva de superação das situações de fracasso escolar
e estabelecer interdisciplinaridade a partir de conteúdos estudados nas disciplinas; e
promover o diálogo entre o ensino e a extensão, entre universidade e comunidade.
Toda a ação possibilitou evidenciar que esses acadêmicos passam a re-significar suas
práticas, concepções e postura, a partir do momento que se percebem como capazes de
intervir/contribuir na realidade, sentindo-se sujeitos de suas próprias histórias e
responsáveis pelas suas construções, conseqüentemente pela sua formação profissional.
SALE: ARTICULAÇÕES ENTRE UNIVERSIDADE E COMUNIDADE...
A vida não é um caminho perfeito, reto e tranqüilo, mas é isso que
nos desperta para novos sonhos/desejos; é isso que qualifica a
busca por novas conquistas e nos faz mais ousados para
continuar intentando novos desafios... alçando novos vôos. (Ana
Cristina O. Pereira)
Na contemporaneidade convivemos com a realidade do mundo globalizado, onde diversos
fenômenos sócio-político-culturais se configuram diante dos nossos olhares atônitos.
Dentre tantos, ressalta-se, sempre, nos discursos dos sujeitos, os benefícios da informática,
a comunicação cada vez mais massiva, a cibernética poupando fisicamente o homem, a
rapidez com que fluem as informações em todos os sentidos na vida social pós-moderna.
Entretanto, paradoxalmente a tudo isso, assiste-se com perplexidade à dissolução maléfica
dos valores éticos e estéticos, a deserção em massa, a descrença, a desestabilização familiar
e cultural, assim como a própria descontextualização paulatina das instituições escolares
com relação ao hipertexto tecido pelos movimentos do mundo pós modernista.
A escola, inserida neste labirinto, precisa estar atenta, pois cada vez mais fica obsoleta em
suas técnicas, métodos e discursos e se descaracteriza enquanto espaço de produção de
conhecimento, em que a leitura é elemento primordial. Uma escola que tem tido
dificuldades de lidar com o saber dos sujeitos que a compõe. É preciso salientar que
aquele velho modelo escolar, conteudista por excelência, baseado na linearidade
expositiva do mestre, na obediência cega e na rígida disciplina do aluno não mais
existe, simplesmente porque aquele mundo, pretensamente ordeiro e previsível
que lhe dava sustentação, também desapareceu (ROSA, 2003, p. 11).
Vasconcellos (2003. p. 40) destaca que a escola é uma instituição que permite, entre
outras coisas, a interação dos sujeitos com o conhecimento de modo dinâmico, interativo
que possibilite a reflexão, criatividade e, acima de tudo, a descoberta de suas
potencialidades. Nesses termos, a educação escolar apresenta um elevado grau de
notoriedade no contexto da formação das futuras gerações para o enfrentamento
sistemático da realidade em que se encontram inseridas e com a qual devem lidar
futuramente. Até porque, a
[...] escola contemporânea deve ser um espaço de aprender a aprender; de criação
de ambientes que favoreçam o conhecimento multidimensional, interdisciplinar;
um local de trabalho cooperativo/solidário, crítico, criativo, aberto à pluralidade
cultural, ao aperfeiçoamento constante e comprometido com o ambiente físico e
social (NEVES, 2002, p. 7-8).
É nesse sentido que o Brasil vem enfrentando o desafio de buscar melhorar a qualidade do
ensino fundamental, de modo a garantir que todas as crianças brasileiras em idade escolar
tenham acesso e permanência na escola e que tenham um ensino público coerente e
transformador que lhes garanta avanços significativos nas séries do ensino fundamental,
como boas produtoras de textos e que consigam ler para além das palavras.
Por outro lado, as universidades e seus educadores/educandos precisam estar
impulsionados a buscarem, cada vez mais, o aperfeiçoamento de sua esfera profissional,
principalmente no que tange à pesquisa como suporte para sua atuação, bem como a
articulação entre universidade e comunidade, no sentido de se estabelecerem na arena e
nos cenários sócio-educativos de forma competente, criativa e dinâmica, contribuindo para
a conquista da qualidade educacional.
Atentando-se para as novas configurações sociais que a realidade lhes apresenta
quotidianamente, faz-se mister que as instâncias educativas – escolas, universidades,
espaços não-formais de educação... abram espaços de diálogo com as famílias, com as
comunidades e, principalmente, com as pesquisas e extensão a fim de serem travados
diálogos frutíferos, partilhas de experiências e sobretudo, produção de novos
conhecimentos. Tal postura garante, como fito primordial, que os partícipes da ambiência
educativa, enquanto responsáveis pela formação/educação caminhem contextualizados
com os movimentos sociais, históricos, políticos e culturais de suas comunidades.
Foi nesta direção que nasceu e se desenvolveu a III Semana de Alfabetização, Leitura e
Escrita, com a temática “Fracasso escolar ou situação de fracasso escolar?”, numa
perspectiva dialógica com as escolas de educação infanto-juvenil do município serrinhense
e outros da região, a fim de serem abertos canais de interlocução construtivos que
objetivassem a reflexão crítica e, principalmente a elaboração de novas perspectivas
didáticas, que viessem a re-significar os processos ensino e aprendizagem da Linguagem
no seio “Tripartite”: escola-família-comunidade. Além disso, como afirma Pereira (2007)
as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Pedagogia,
licenciatura, apontam que é de fundamental importância oferecer aos alunos no
processo de formação acadêmica, estudos teórico-práticos, que possibilitem a
investigação e reflexão crítica de conhecimentos fundamentados em princípios
de interdisciplinaridade com pertinência e relevância social.
É justamente para atender a essa necessidade de articulação teoria e prática e à demanda
dos docentes das comunidades, que atuam com o infantil e da 1ª a 4ª séries que se deu a
realização desse projeto como espaço para ouvir, falar, trocar e, acima de tudo,
refletir/construir novos olhares e novos rumos para a educação lingüística dos nossos
alunos. Nesse sentido, vale ressaltar que a realidade é o grande desafio da prática
educativa, sendo seu ponto de partida, seu elemento de trabalho e seu destino, mesmo
porque o homem só se realiza na medida em que interfere na mudança da realidade
(VASCONCELLOS, 2003, p. 39).
Essa intervenção na realidade partiu da inquietação de discentes e docentes do Campus XI
em buscar construir estes espaços interativos na perspectiva de sanar/minimizar os
inúmeros equívocos que permeiam a educação na região.
Assim, para atingir os objetivos traçados, a ação metodológica pautou-se numa perspectiva
sócio-interacionista, por considerar que o conhecimento se constrói a partir de vivências,
da interação do sujeito com o objeto, como processo que se conquista gradualmente,
permitindo que cada um vivenciasse as propostas estabelecidas e se descobrisse como
sujeito construtor de suas próprias aprendizagens; autor de sua própria história.
As situações didáticas se basearam na observação e problematização, na tentativa de
promover conflitos cognitivos, a partir de estratégias que facilitaram essa construção
sujeito/objeto do conhecimento.
A construção de novas didáticas da linguagem foi pautada na educação comunicativa,
expressiva, discursiva para que, de fato, nossas escolas consigam cumprir com os novos
papéis que lhe foram atribuídos: a educação do saber, do ser, do conviver e do aprender a
aprender.
Nesse movimento equilíbrio/desequilibrações, a III SALE foi organizada tendo como
ponto de partida a discussão teórica, pois o estudo teórico permite a análise da prática no
sentido de re-significá-la. Segundo Pimenta (2002), o papel da teoria é de oferecer
perspectivas de análises para que professor e aluno compreendam os diversos contextos e a
si próprios, na perspectiva de transformação. Tais discussões tiveram espaços nas
disciplinas parceiras do projeto, as quais deram suporte para os alunos estruturarem ações a
serem desenvolvidas sob forma de mini-cursos, oficinas, pôsteres e sessões de
comunicações.
O projeto se desenvolveu dentro de uma cadeia de ações articuladas entre si.
Primeiramente, a partir do momento que foi detectada a carência do município de Serrinha
e outros vizinhos em algumas questões pedagógicas, principalmente as voltadas para a
leitura e a escrita – trabalho de campo desenvolvido pelos alunos sob orientação dos
professores; houve uma grande inquietação sobre os dados coletados em que ficava
explicitado que o professor da instituição pública se encontra desacreditado e sem
esperança na possibilidade da escola superar o “fracasso” em que está submersa.
Tal situação inquietou profundamente alunos e professores da universidade, principalmente
por acreditarem que a academia não pode ir à comunidade, detectar “problemas” e retornar
para dentro de seus muros sem sinalizar uma possibilidade de solução. Nesse contexto, os
cursos de formação de educadores precisam estar atentos à importância da reflexão, como
parte da produção intelectual, pois é a reflexão sobre a realidade que permite uma ação
consciente sobre ela, além de permitir uma auto-análise sobre nossas próprias ações diante
dessa realidade. Segundo Gómez (1999), a reflexão
é a capacidade de voltar sobre si mesmo, sobre as construções sociais, sobre as
intenções, representações e estratégias de intervenção. Supõe a possibilidade, ou
melhor, a inevitabilidade de utilizar o conhecimento à medida que vai sendo
produzido, para enriquecer e modificar não somente a realidade e suas
representações, mas também as próprias intenções e o próprio processo de
conhecer. (apud LIBÂNEO, 2002, p. 56)
Tal prerrogativa permite afirmar que a reflexão é elemento imprescindível ao educador,
desde a sua formação até a ação que desenvolve. Assim a comunidade acadêmica se sentiu
instigada a estruturar um evento que garantisse o encontro de coordenadores, docentes e
discentes do ensino fundamental das escolas públicas e os sujeitos da universidade –
professores e alunos, com ações diversas que pudessem provocar reflexões sobre a
situação, no sentido de construir propostas metodológicas alternativas que minimizassem
os problemas detectados.
Vale salientar que a escolha da temática “Fracasso Escolar ou Situação de Fracasso
Escolar”, deu-se devido ao contexto em que o evento foi estruturado, por ser o tema tratado
nos estudos de mestrado do professor da disciplina Metodologia da História e considerando
que este assunto tem sido alvo de análises em diversos espaços educativos. Charlot (2000)
explica a situação, salientando que o fracasso escolar existe enquanto conjunto de
fenômenos que se expressam através de situações observáveis, comprovadas sobre a
aprendizagem do aluno. Segundo ele, para o pesquisador analisar o fracasso escolar, deve
estar atento às condições de apropriação do saber, considerando:
• O fato de que ele “tem alguma coisa a ver” com a posição social da
família – sem por isso reduzir essa posição a um lugar em uma
nomenclatura socioprofissional, nem a família a uma posição;
• A singularidade e a história dos indivíduos;
• O significado que eles conferem a sua posição (bem como à sua história,
às situações que vivem e à sua própria singularidade);
• Sua atividade efetiva, suas práticas;
• A especificidade dessa atividade, que se desenrola (ou não) no campo do
saber. (p. 23)
O sujeito, enquanto ser social, foi colocado no centro das discussões para o entendimento
de que “o fracasso escolar” não existe; o que existe são alunos em situação de fracasso
escolar, como afirma Charlot (2000).
A partir da temática escolhida, o projeto da SALE foi elaborado demarcando as ações a
serem efetivadas; foi feito um processo seletivo para monitoria e a partir de então as
equipes de trabalho foram estruturadas no sentido de fazer acontecer o evento: estabelecer
parcerias, viabilizar recursos, contactar com os palestrantes, fazer divulgação, organizar
material e selecionar os espaços, providenciar prospectos etc. Paralelamente a essas ações,
os professores, nas suas respectivas disciplinas, acompanharam/orientaram os grupos de
alunos para organizarem as oficinas pedagógicas e estruturarem os resultados dos diversos
estudos realizados ao longo do semestre para apresentarem nas sessões temáticas – cada
grupo com a sua temática.
Assim, a culminância de toda ação foi a III Semana de Alfabetização, Leitura e Escrita:
“Fracasso escolar ou situação de fracasso escolar?”, que aconteceu em setembro de 2005.
Foram 820 inscritos de toda a comunidade serrinhense e região. No evento, várias ações
foram desenvolvidas: Conferências, Mesas redondas, Comunicações orais; Painéis;
Oficinas pedagógicas; Vivências; Relato de experiências; Pôsteres; Trabalhos em
grupo; Debates; Círculos de leitura; Atividades sócio-culturais.
As sessões temáticas que aconteceram durante o evento, coordenadas por professores da
universidade, tiveram os seguintes eixos de discussão: Fracasso ou situação de fracasso;
Dificuldades de ensino e aprendizagem; Inclusão X exclusão escolar; Avaliação X
promoção (avaliação mediadora); Relações inter-pessoais na sala de aula e superação das
situações de fracasso; História da criança no Brasil; Educação e gênero.
Além das sessões temáticas foram oferecidas vinte e duas oficinas pedagógicas para
professores, coordenadores e pessoal da educação básica, na perspectiva de atender as
necessidades teórico-práticas da ação pedagógica, com as temáticas: educação inclusiva:
reflexões sobre a inclusão escolar de crianças com NEE na linguagem auditiva; dificuldade
de ensino e aprendizagem; dobrar e desdobrar algumas histórias para contar – práticas
pedagógicas com dobraduras; jornal como proposta pedagógica interdisciplinar;
planejamento de projeto didático com textos; metodologia de planejamento pedagógico
para as escolas do campo; a leitura e a sedução do leitor; aprendendo regras ortográficas
através de jogos; ortografia através de jogos; o lúdico nas classes de alfabetização;
matemática e cognição: aspectos de aritmética; sensibilização, construção da identidade de
gênero de professores (as);conte um conto que eu te conto; a leitura de mapa na aula de
geografia; pluralidade cultural e diversidade lingüística no livro didático de língua
portuguesa; educação e diversidade étnico-racial na sala de aula: as leituras possíveis. E,
duas oficinas para crianças com o tema a leitura como fonte de imaginação. Foram
publicado dois textos: Alfabetização pelo método fonético na Escola Ativa Montessoriana;
A experiência de sala de aula de uma alfabetizadora: o estudo, a prática pedagógica, a
reflexão.
As sessões de pôsteres também fizeram parte do encontro com resultados de experiências
de trabalhos e de pesquisas de acadêmicos e professores, com temas diversificados.
Houve, também atividades culturais, lançamento de livros, painéis e por fim uma plenária
final em que representantes da sociedade civil, educadores da educação básica e da
universidade, coordenadoras pedagógicas debateram sobre o “fracasso escolar e ou
situação de fracasso escolar”. A partir desse debate, foi elaborado um documentos “Carta
de intenção”, sinalizando o que se pretende fazer para construir o sucesso escolar. Esse
documento foi encaminhado às prefeituras/Secretarias de Educação parceiras da SALE, no
sentido de contribuir como elemento norteador de propostas pedagógicas para os
municípios. Nesse momento da avaliação do evento, os participantes salientaram a
importância do evento para a região e propuseram a temática para o próximo encontro.
Assim, ficou perceptível que a articulação comunidade e universidade é possível, além de
propiciar mais qualificação profissional aos sujeitos da academia, pois esses sujeitos
passam a re-significar suas práticas, concepções e postura, a partir do momento que se
percebem como sujeitos capazes de fazer intervenções na realidade e transformá-la.
Sentem-se mais responsáveis pelas suas construções, conseqüentemente, pela sua formação
profissional e postura que assumem frente à ação educativa.
OUSANDO TECER CONCLUSÕES INCONCLUSAS...
O que move o homem é a busca pelo domínio da realidade, pois este
conhecimento é a chave que possibilita ao sujeito abrir fechaduras
enigmáticas que dão acesso à compreensão do mundo e a solução de
problemas complexos. (autor desconhecido)
O desenvolvimento da III Semana de Alfabetização, Leitura e Escrita, sem dúvida, foi um
desafio interessante e envolvente de encarar, pois se constituiu em momentos de profundas
reflexões, de diálogos e de trocas, que contribuíram significativamente para o
amadurecimento profissional de educandos e educadores.
As construções reflexivo-analíticas que se efetivaram ao longo de toda a ação, serviram de
provocações intensas e de conflitos profundos, sinalizando a possibilidade de compreender
que o espaço pedagógico se aperfeiçoa na parceria entre Universidade e comunidade, entre
teoria e prática, entre vida social e acadêmica. Nesses termos, os resultados do trabalho
foram muito significativos, haja vista que os educandos explicitaram a percepção de que o
conhecimento se dá efetivamente quando a teoria transcende a condição de mero conteúdo
didático e ganha forma na realidade, permitindo que o sujeito participe da construção como
protagonista que se apropria conscientemente de um novo saber, como bem afirma Freire
[...] no processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquele que se
apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, [...] Aquele que é
“enchido” por outro de conteúdo cuja inteligência não percebe; de conteúdos que
contradizem a forma própria de estar em seu mundo, sem que seja desafiado, não
aprende (FREIRE, 1979, p. 28).
Assim, diante de todo o trajeto percorrido na ação, alguns elementos que merecem ser
analisados se salientam com a III SALE:
- Um grande esforço dos alunos para assumirem uma postura mais amadurecida quanto à
vida acadêmica;
- Mais envolvimento dos alunos e professores nas disciplinas;
- Maior estímulo dos alunos nas leituras textuais dos conteúdos das disciplinas;
- Envolvimento intenso da comunidade local e regional na atividade e na busca de
informações sobre a temática em questão;
- A desmistificação do ato de articular comunidade e universidade;
- O sentir-se sujeito de transformação do espaço escolar;
- Um olhar mais sensível e reflexivo dos alunos quanto aos conceitos e práticas educativas
desenvolvidas na educação infantil e no ensino fundamental;
- Maior preocupação com a prática pedagógica nos espaços em que atuam e tentam
melhorar enquanto docente;
- A IV Semana de Alfabetização Leitura e Escrita – cujo tema “Alfabetização e
diversidade: práticas de Inclusão”, que foi sinalizada pelos participantes.
Por fim o envolvimento universidade-comunidade proporciona o entendimento de que uma
educação de qualidade é possível ser sonhada e executada quando há parceria e respeito
pelo sujeito. Nesses termos, ajudar na formação de cidadãos críticos, reflexivos, dinâmicos
e preparados para construir saberes e, sobretudo, para o conviver - tarefa árdua, complexa,
que exige da sociedade a consolidação de parcerias sólidas e a junção de esforços. É
preciso ir em busca de novos rumos, novos caminhos alternativos para que, de fato, se
possa ajudar (universidade-escola básica) a edificar cidadãos capazes de enfrentar os
avanços e as mazelas do novo milênio. Até porque o objetivo da pedagogia moderna
consiste em ajudar o humano em sua humanização. Esta expressão tem o sentido de
maturação para a emancipação... A educação quis sempre assumir essa tarefa (HERZOG
1992 apud ARROYO, 2008 p. 242)
REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel G. Ofício de Mestre: Imagens e auto-imagens. Petrópolis: Vozes, 2008.
CHARLOT, Bernand. Da relação do saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed,
2000.
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1979.
LIBÂNEO, José Carlos. Reflexividade e formação de professores. In: PIMENTA, Selma Garrido e
GHEDIN, Evandro (Orgs). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São
Paulo: Cortez, 2002.
PEREIRA, Ana Cristina Silva de Oliveira; FONSECA, Zenilda de Jesus. Pesquisa e Formação do
Educador: desafios e possibilidades de articulação. IN: 18º. Encontro de Pesquisa Educacional
do Norte e Nordeste, Maceió, 2007
PIMENTA, Selma Garrido e GHEDIN, Evandro (Orgs). Professor reflexivo no Brasil: gênese e
crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002.
ROSA, Sanny S. da. Construtivismo e mudança. 9 ed. São Paulo: Cortez, 2003.
VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Para onde vai o professor? resgate do professor como
sujeito de transformação. 10 ed. São Paulo: Libertad, 2003.
LEITURA: CONCEPÇÕES DE PROFESSSORES
Dayb Manuela Oliveira dos Santos
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS
Este artigo insere-se nas discussões teóricas da história da leitura e da emergente didática
da leitura e da escrita. Assumo como objetivo de pesquisa investigar as diferentes
concepções de leitura presentes entre professores de uma escola pública de Feira de
Santana, município do interior baiano. Estou desenvolvendo esta investigação no Curso de
Especialização em Educação e Pluralidade Sócio-Cultural da Universidade Estadual de
Feira de Santana – UEFS, sob a orientação da Professora Dra. Maria Helena da Rocha
Besnosik.
O meu interesse pela leitura enquanto objeto teórico, teve início ainda na graduação, no
curso de Pedagogia da UEFS, com a vivência de atividades extracurriculares. Assim,
destaco a minha participação no Projeto Leitura Itinerante* e, especificamente, nos
Círculos de Leitura*, como também a inserção na disciplina “Leituras, Histórias e
Culturas”, do curso de Especialização em História da Bahia da UEFS, como aluna ouvinte,
como fatores significativos neste processo.
Com estas vivências pude problematizar a minha própria concepção de leitura. Desta
forma, somente quando a leitura deixou de ser para mim um resultado previsível da
aprendizagem escolar, uma habilidade difundida pela escola, para se tornar uma prática
cultural, socialmente constituída e historicamente condicionada, é que me foi possível a
assunção do objeto de estudo aqui perseguido, haja vista que só a partir disso pude refletir
acerca dos diferentes sentidos e representações construídos em torno da leitura e no perfil
dos sujeitos envolvidos na construção e comunhão destes significados.
Neste contexto, pensar a leitura, para mim tornou-se um ato dotado de insuspeitado
refinamento e grande complexidade. Para além dos discursos frequentemente presentes no
meu curso de graduação e também nos meios de comunicação, segundo os quais é preciso
inculcar o hábito da leitura nos alunos, passei a refletir sobre as formas e os sentidos pelos
quais a leitura constituiu-se e constitui-se ao longo da história. Enfim, a leitura tornou-se
um objeto de estudo.
Assim, foi de fundamental importância a descoberta de que “a leitura possui uma história”
(DANRNTON, 1992, p. 200). E, consequentemente, tão importantes e desafiadoras, as
descobertas de que o leitor, tão almejado, não é um ente abstrato, que as pessoas lêem de
formas diferentes, de lugares sociais desiguais; de que ler um romance não é o mesmo que
ler um artigo científico ou um manual de instruções; que a leitura ou as leituras nem
sempre são desejadas, afinal, não por acaso livros e leitores foram queimados por
representarem risco a determinadas configurações sociais. Desta forma, a leitura perdeu
para mim a sua suposta neutralidade e caráter universal.
Com isto, pus-me a pensar como a escola, fechada em si mesma e tradicionalmente alheia
às práticas sociais de leitura, tendo em conta sua atuação, pode se propor a formar leitores
sem esbarrar no artificialismo e em propostas pedagógicas vazias de fundamentação. Esta
inquietação, por sua vez, provocou-me a curiosidade sobre como os professores,
responsáveis diretos e “oficiais” pela formação de leitores, compreendem a leitura.
Busquei, então, sistematizar esta curiosidade observando a prática de colegas de profissão,
ficando mais atenta aos discursos sobre a leitura e lendo acerca da presença da leitura na
escola. Assim, pude vivenciar a afirmação de que “um dos saberes fundamentais à minha
prática educativo-crítica é o que me adverte da necessária promoção da curiosidade
espontânea para a curiosidade epistemológica” (FREIRE, 1996, p. 88).
Por isto que, num esforço de ultrapassar a mera constatação e descrição das práticas de
ensino da leitura, nesta pesquisa procuro compreender o que está dito nas entrelinhas
destas mesmas práticas. Assim, busco ouvir alguns dos sujeitos nelas diretamente
envolvidos, os professores, com o intuito de conhecer as suas concepções de leitura. Para
isto, a entrevista mostrou-se a metodologia mais pertinente para a coleta dos dados que
ainda estou analisando. Para viabilizar tal objetivo, defini como sujeitos da pesquisa
professores do ensino médio de língua portuguesa do Centro Integrado de Educação Assis
Chateaubriand, escola pública de Feira de Santana.
Não é demais afirmar que as concepções subjacentes às práticas culturais interferem no
devir destas mesmas práticas, [...]pois a concepção que se tem de um processo – seja ele
qual for – influencia sua operacionalização na prática e os valores daí decorrentes” (
ZILBERMAN, 1988. p. 113).
Haja vista que vivemos em uma sociedade grafocêntrica, a conquista da cidadania passa,
sem dúvida, pela inserção no mundo da cultura escrita. Sendo, neste caso, a leitura,
juntamente com a escrita, que aqui não constitui objeto de estudo, um dos principais
passaportes a esse mundo.
CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
A prática da leitura é anterior ao estabelecimento da escola de massa no século XIX. No
entanto, no mundo ocidental, desde este período, a esta instituição é atribuído o ensino da
leitura, antes bastante relacionado à aprendizagem doméstica e familiar.
Mais de um século depois e em diferentes contextos, torna-se perceptível uma versão
escolar da leitura diversa das suas múltiplas possibilidades, constatadas nas vivências
sócio-culturais. Assim, os múltiplos contextos e propósitos vinculados à leitura nos mais
diversos períodos históricos e configurações sociais, parecem ser desconsiderados pela
escola.
A leitura não tem sido colocada como objeto de ensino na escola. De outra maneira, esta
tem aparecido como instrumento para outras aprendizagens, assim como uma habilidade
geral e unívoca. Segundo Zilberman(1988, p. 13), tradicionalmente, “o ato de ler dissolvese entre as obrigações da escola, não se associando às diferentes modalidades de texto” e às
potenciais produções de sentido que a leitura pode proporcionar. O que, por sua vez, revela
que a escola e os professores, de forma mais direta, possivelmente, têm operado com uma
concepção de leitura desvinculada da versão social desta prática.
No entanto, segundo a emergente didática da leitura e da escrita, para que a escola possa
assumir com plenitude à formação de leitores, torna-se necessário centrar o programa
escolar nas práticas sociais em que aparecem os usos da cultura escrita. Mas, ao assumir
esta perspectiva, a escola depara-se com a transposição didática e a necessidade de uma
ciência que conceitualize as práticas de leitura.
Para Lerner(2002), no ensino de leitura o problema didático fundamental refere-se a
necessária preservação do sentido do objeto de ensino em relação ao modo como ele
funciona fora da escola. Para que esta preservação ocorra, portanto, é preciso conhecer o
objeto a ser ensinado e, neste contexto, a abordagem da história cultural torna-se salutar.
Para Chartier (1988, p. 151), “saber ler é outra coisa que não é apenas decifrar um único
livro, mas mobilizar com utilidade ou por prazer, as múltiplas riquezas da cultura escrita”.
Nesta perspectiva, para a formação de leitores ganha importância aspectos antes pouco ou
nada considerados, como os propósitos de leitura em diferentes situações e com diferentes
gêneros textuais; os diversos modos de ler; as relações entre leitores e escritores e os vários
textos e, ainda, as ações empreendidas pelos leitores em suas práticas de apropriação que
vão muito além do que é lido.
Nesta pesquisa, portanto, assumo uma concepção de leitura pautada em pressupostos da
história cultural, ligados, sobretudo, à história da leitura. Assim, aqui a leitura é entendida
como prática cultural que “não é simplesmente uma habilidade, mas uma maneira de
estabelecer significado que deve variar de cultura para cultura” (DARNTON, 1992, p.
218). Além disto, abrange maneiras de ler socialmente partilhadas, que, por sua vez,
condicionam as formas e os significados dos gestos individuais.
Esta concepção ganha relevância, sobretudo, ao se considerar outros sentidos atribuídos à
leitura. Segundo De Certeau (1994), na atual sociedade de consumo, marcada por uma
lógica produtivista, segundo a qual a eficácia da produção implica a inércia do consumo, o
binômio produzir/consumir poderia ser substituído por escrever/ler. Sendo, neste contexto,
a escrita entendida como uma atividade superior de quem detém a produção e a leitura,
atividade passiva de quem recebe algo pronto. Assim, a leitura pode representar o máximo
da passividade, pois, a partir dela, o leitor seria conduzido pelo pensamento do autor e
pelas intenções de quem “determina” o que deve ser lido.
Contra esta perspectiva, De Certeau (1994) argumenta metaforicamente que a leitura é uma
operação de caça, portanto, realizada no escuro, em surdina, com características singulares
como a improvisação, o levantamento de hipóteses e construção de significados
apreendidos pelo contexto. Além disto, para além das imagens da leitura como uma prática
exclusivamente acadêmica, este autor demonstra que ela compõe o nosso cotidiano,
estando, portanto, impregnada em nossas ações rotineiras.
O leitor, assim, caça no texto do outro, e não o faz desarmado, para isto recorre à sua
história de vida, suas leituras anteriores, suas interrogações e seus propósitos. O leitor
introduz no texto o seu mundo e instaura uma realidade imprevista, mesmo que de forma
sutil. Assim, para esta abordagem, o texto só ganha sentido em função de seus leitores.
O reconhecimento desta liberdade leitora não implica, por sua vez, a negação de tensões e
condicionantes existentes na prática da leitura. As tensões existentes na prática da leitura
fazem, por exemplo, com que cada leitor seja único e que, ao mesmo tempo, possa ser
identificado como pertencente a um coletivo específico, uma ou mais comunidades de
leitores com características singulares. A este respeito, afirma Chartier ( 1999, p. 77):
...esta liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada por limitações
derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas
diferenças, as práticas de leitura. Os gestos mudam segundo os tempos e lugares,
os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventadas, outras se
extinguem. Do rolo ao códex medieval, do livro impresso ao texto eletrônico,
várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras de ler. Elas
colocam em jogo a relação entre o corpo e o livro, os possíveis usos da escrita e
as categorias intelectuais que asseguram a sua compreensão.
Deste modo, percebe-se a relevância de se questionar o que acontece entre as leituras
autorizadas ou esperadas e o que realmente fazem os leitores, as brechas que eles
encontram ou criam para construir o seu sentido e a sua interpretação. Para Chartier (1999,
p. 19), em se tratando de leitura e de sua história coloca-se a necessidade de “compreender
como as limitações são sempre transgredidas pela invenção ou, pelo contrário, como as
liberdades de interpretações são sempre limitadas”.
Este questionamento, por sua vez, atravessa toda a história da leitura. De acordo com
Darnton (1992), voltar o olhar para as práticas leitoras do passado contribui para a
fundamentação do questionamento e da compreensão das atuais práticas de leitura. Por
isto, é indispensável conhecer e refletir acerca das características das revoluções da leitura
no mundo ocidental para o trabalho ora desenvolvido, segundo a ótica da história cultural.
Tradicionalmente, a historiografia ocidental abordou a leitura em relação aos aspectos
quantitativos dos leitores e das leituras. Assim, dava-se destaque ao número, classe social e
sexo dos leitores como também aos inventários de bibliotecas, registros de livrarias e à
produção escrita disponível. Com a emergência da história cultural, a partir dos anos 70,
novas indagações foram lançadas à prática da leitura, com isto, passa-se a buscar
compreender, com maior prioridade, as maneiras e os modos de ler.
Práticas antes desvalorizadas ou mesmo silenciadas, como as leituras de pessoas comuns e
anônimas, passam a
constituir a longa história da construção de sentidos.
Consequentemente, a concepção de leitura enquanto prática cultural e o estatuto de leitor
enquanto recriador de texto ganham notoriedade.
Destarte, das análises históricas podemos destacar um conjunto de saberes acerca das
práticas sociais de leitura, cujas conclusões podem fundamentar possíveis e necessárias
mudanças no ensino da leitura. Aqui, busco destacar elementos desses saberes por conta de
seu papel na constituição das práticas leitoras.
Neste contexto, segundo Chartier (1988, p. 128), as análises não simplistas sobre a leitura
trazem referência as relações estabelecidas entre três fatores básicos, a saber, o texto, o seu
suporte e a prática de apropriação da obra em questão. Assim , a escola precisa considerar
nas propostas didáticas, nas quais a leitura é objeto de ensino, as maneiras pelas quais os
textos são lidos e quais objetos lhe servem de suporte.
Isto porque, estes três fatores possibilitam variações fundamentais que implicam diferentes
significações e experiências leitoras. Como, por exemplo, um mesmo texto apresentado em
diferentes suportes propiciando diferentes maneiras de ler e, ainda, sujeitos variados a
construir diferentes sentidos acerca dos mesmos textos presentes em materiais impressos
idênticos.
Há também de se considerar o gênero do texto enquanto elemento condicionante, ou seja,
como protocolo de leitura. Haja vista que o gênero apresenta caráter classificatório em
relação à tipologia textual e, por conseguinte, torna-se gerador de antecipações em relação
à estrutura do texto, seus usos sociais, modo e lugar de lê-los, seu status e,
consequentemente, o conteúdo comumente veiculado por ele.
A história cultural aponta, ainda, outros protocolos de leitura. Assim é possível identificar
nos textos pistas e elementos inscritos pelo próprio autor com o intuito de indicar
significações e interpretações desejadas, a utilização de itálico, títulos e subtítulos, por
exemplo. Da mesma forma, o tipo de edição, a extensão dos parágrafos, o número de
capítulos, a presença ou não de imagens, permitem supor o leitor esperado, e mesmo, a
representação da leitura a ser realizada do material em questão.
Destarte, considerando que o modo como os professores compreendem a leitura apresenta
condicionamentos à prática destes profissionais, articulando a história da leitura e a
didática da leitura e da escrita, pretendo relacionar as concepções de leitura conhecidas na
realização desta pesquisa às maiores ou menores possibilidades de formar leitores assíduos
capazes de interagir com autonomia no vasto mundo da cultura escrita.
REFERÊNCIAS
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: 1 artes de fazer. Tradução: Ephraim Ferreira
Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre Práticas e Representações. Tradução: Maria
Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, S. A., 1988.
________________. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução: Reginaldo de
Moraes. São Paulo: Editora Unesp, Imprensa Oficial do Estado, 1999.
DARNTON, Robert. História da Leitura. IN: BURKE, Peter, (Org.). A Escrita da História: novas
perspectivas. São Paulo: Universidade Estadual de São Paulo, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura).
LERNER, Delia. Ler e Escrever na Escola. O Real, o Possível e o Necessário.Tradução de Ernani
Rosa. Porto Alegre: Editora Artmed, 2002.
ZILBERMAN, Regina (Org.). Leitura. Perspectivas Interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988.
SALA DE LEITURA “LER E CRIAR: CAMINHOS PARA O SONHO”.
Telma Nery da Silva*
*Professora especialista em Política do Planejamento Pedagógico: currículo, didática e avaliação.
Aluna especial do mestrado em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da
Bahia, professora do Centro Integrado de Educação Assis Chateaubriand, professora do Centro de
Educação Complementar Dom Silvério de Albuquerque, tutora da Faculdade de Tecnologia e
Ciências. Endereço para correspondência: Rua Graúna, 86 Muchila II – 44080420 Feira de
Santana – Bahia. E-mail: [email protected]
TECENDO OS PRIMEIROS FIOS
A contemporaneidade exige cada vez mais profissionais comprometidos, informados, mais
autônomos, capazes de gerir situações de grupo, de se adaptarem à situações novas, ou
seja, profissionais que estejam sempre prontos a aprender. As transformações no mundo
atingem a educação, mais especificamente a sala de aula, exigindo novas abordagens que
venham agregar valor ao trabalho desenvolvido pelo professor em sua busca por novas
condições sociais, morais, culturais, pedagógicas que tragam novos sentidos ao seu ofício e
mais significados para o alunado.
No dia-a-dia, observei muitas das dificuldades dos alunos do 5º ano, por exemplo, que não
sabem construir um parágrafo, pecam muito com relação à ortografia, não respeitam
margem e tão pouco utilizam inicial maiúscula. Detectados esses problemas, comecei a
fazer trabalhos voltados para a leitura e escrita em sala para tentar sanar as dificuldades e
senti nos alunos o desejo, a vontade de querer escrever, mas algo os impedia... Onde estava
a leitura?
Ler é uma das competências mais importantes a serem trabalhadas com o aluno,
principalmente após recentes pesquisas que apontam ser esta uma das principais
deficiências do estudante brasileiro. Não basta identificar as palavras, mas fazê-las ter
sentido, compreender, interpretar, relacionar e reter o que for mais relevante.
O gosto pela leitura se constrói através de um longo processo onde sujeitos desejam
encontrar nela uma possibilidade de interlocução com o mundo. O professor deve ser o
agente facilitador, fundamental na mediação entre alunos e livros trabalhados, um
impulsionador e guia no sentido de um contato cada vez mais intenso e desafiador entre o
leitor e a obra a ser lida.
É no encontro com qualquer forma de literatura que os alunos têm a oportunidade de
ampliar, transformar ou enriquecer sua vivência. A literatura infantil, por iniciar o sujeito
no mundo literário, deve ser utilizada como instrumento para a sensibilização da
consciência, para a expansão da capacidade e interesse de analisar o mundo.
Assim, (SOARES, 2002, p. 146) afirma que:
Indivíduos ou grupos sociais que dominam o uso da leitura e da escrita e,
portanto, têm as habilidades a atitudes necessárias para uma participação ativa e
competente em situações em que práticas de leituras e/ou de escrita têm uma
função essencial e mantêm com os outros e com o mundo que os cerca formas de
interação, atitudes, competências discursivas e cognitivas que lhes conferem um
determinado e diferenciado estado ou condição de inserção em uma sociedade
letrada.
Na sala de aula, deve-se procurar oferecer oportunidades para a criação de conexões com o
cotidiano dos alunos, respeitando a leitura de mundo de cada um.
NO ENTRELACE DOS FIOS...
E como seria a sala de leitura? Vários livros literários, os quais o Centro de Educação
Complementar já possui, uma parede colorida, um baú, fantasias, almofadas, fantoches que
contem histórias, um varal para pendurar as produções dos alunos, criando um ambiente
aconchegante e convidativo onde o alunado teria momentos para a resignificação, para a
releitura, e para a prática da escrita tranqüila, de criar, buscando no seu interior algo já
conhecido, vivenciado, já lido.
Iniciar os alunos pelos caminhos da leitura, pelo mundo das palavras, conhecer a sua
realidade, às vezes cruel, mas também perceber o belo, o poder fazer diferente. Ouvir
histórias na sala de leitura será o início da aprendizagem para ser um leitor/escritor. É
ainda “suscitar o imaginário, é ter a curiosidade respondida, é encontrar outras idéias para
solucionar questões. É cada vez ir se identificando com outra personagem (...) e assim,
esclarecer melhor as próprias dificuldades ou encontrar um caminho para a resolução
delas...” (ABRAMOVICH, 1989, p. 17). Indo além, diria que ouvir histórias é viver
emoções diferentes como alegria, tristeza, medo, insegurança, tranqüilidade. É ouvir, sentir
e enxergar com os olhos do imaginário.
É através de uma história que as crianças podem descobrir outros lugares, outros tempos,
saber mais de geografia, política, meio ambiente, história. E o que é mais interessante, tudo
isso aprendido com prazer.
Maria do Rosário Mortatti Magnani fala sobre a Pedagogia da Facilitação e aponta a
necessidade de intervenção dos educadores para a formação do gosto literário dos jovens,
através de um processo de vivência e reflexão com a leitura. Um ponto de partida seria as
leituras que os alunos gostam, valorizar os textos escritos por eles. O professor precisa
conhecer o que vai ser mostrado, ao contar histórias, tem que haver uma relação de carinho
e de ludicidade verbal – às vezes musical, uma entonação engraçada, séria...
O texto literário exerce grande influência no desenvolvimento da humanidade, ajuda no
crescimento pessoal, na compreensão do mundo, desempenha um papel libertador e
transformador. E como conclui (CHIAVINI, 1994, p. 473): “Como é fácil lidar com os
pequenos... Eles aceitam incondicionalmente as ofertas sinceras, deixam-se cativar sem
medo por tudo aquilo de que possam auferir prazer, e nos contagiam com o gosto com o
qual se envolvem nas tarefas propostas”.
TESSITURAS FINAIS
Assim,
Com delicadeza
Abrir as gavetas
Que guardam
As palavras de seda.
Deixá-las sempre
ao alcance
de um sopro,
prontas para o vôo,
para o ouvido,
para a boca.
Palavras de seda
São como borboletas
Douradas
Quando pousam
No coração do outro.
(Roseana Murray)
O poder está muito, muito próximo da vida de cada um... Como membro de uma família,
como cidadão, como aluno, como professor, como educador! É plantando sementes que
podemos ajudar a transformar a realidade das nossas crianças, vamos fazer isso de modo
poético, bonito, crítico. Não podemos deixar que os nossos alunos que vivem em situações
precárias, carentes, violentas, desrespeitosas, se acostumem e achem a vida que vivem
normal. Temos o dever de mostrar que eles podem conquistar outro tipo de vida. Dom
Helder Câmera em seu livro “Mil razões para viver”, diz que,
As verdades vivem e sofrem
Importante e urgente
Como libertar criaturas humanas
De prisões inumanas
É ir em socorro de verdades
Prisioneiras de sistemas de idéias
Que as retêm e asfixiam.
Temos que criar condições para que haja uma ampliação da visão que a criança tem do
mundo e se eu pudesse...
Se eu pudesse
Dava um globo terrestre
A cada criança...
Se possível até
Um globo luminoso,
Na esperança
De alargar ao máximo
A visão infantil
E de ir despertando
Interesse e amor
Por todos os povos,
Todas as Raças
Todas as Línguas
Todas as religiões!...
REFERÊNCIAS
ABRAMOVICH, E. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. 4.ed. São Paulo: Scipione,
1994.
ABRINQ. Projeto Biblioteca Viva: a mediação de leitura e as crianças. São Paulo, 1999.
CHIAVINI, V.L.M. Contar histórias é fazer arte. São Carlos: UFSCar, 1994. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Centro de Ciências Humanas. Universidade Federal de São
Carlos.
MARTUCCI,
E.M. Aprendendo a contar histórias. In: ______. Formação de contadores
de histórias. São Carlos: UFSCar, 1999. (Apostila)
MURRAY, Roseana. Manual da delicadeza de A a Z. São Paulo: FTD, 2001.
SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura.
Educação e Sociedade, Campinas, v. 23, n. 81, p. 143 – 160 dez. 2002.
LEITURA E SUAS MÚLTIPLAS FACES
Alexandra Soares dos Santos ∗
INTRODUÇÃO
O leitor, ao ler um texto, seja de qualquer natureza, cria novas imagens. Estas imagens
carregam uma significação cultural, com marcas geográficas, afetivas, religiosas etc., o que
permite ao leitor fazer leituras também múltiplas e relacionamentos intertextuais infinitos.
Leitura, seja de imagem, seja de escrita é intertextualidade. O sentido do texto é inacabado,
é social. Ele se constrói na relação dos homens, a partir das informações transmitidas pelo
autor e do conhecimento prévio de cada leitor.
Procurando adequar a prática de leitura em sala de aula à uma visão mais ampla do que é
ler, este trabalho investe na orientação do educador em busca de melhoria no ensino de
leitura. Faz-se necessário que o professor veja a leitura em suas múltiplas faces, não
limitada a textos escritos, e possa ampliar a visão de mundo de seus educandos. Dessa
forma, estes serão conduzidos a participar, efetivamente, da história de seu povo e
construir sua própria história.
A mudança de postura em relação à leitura requer uma prática renovada e crítica. A leitura
deve iniciar-se a partir da própria pessoa, a história de sua vida e o conhecimento de si
mesmo. Em seguida, é importante o conhecimento do outro, o contato com outras pessoas,
por ser a base da inter- relação pessoal e um dos pontos de partida para o trabalho
pedagógico. Conhecendo-se e conhecendo o outro pode se chegar à leitura da realidade.
Aqui entram gravuras, fotos e tantas imagens, nem sempre retratadas em textos impressos.
Enriquecendo e aprofundando a leitura da realidade, acrescentam-se a ela os encargos
sociais. Assim, torna-se mais fácil e consistente a leitura de textos escritos, que são os mais
utilizados pela escola.
Para uma leitura eficaz, que ultrapasse a simples decifração torna-se necessário que a
história de vida do aluno lhe dê condições para compreender a intenção do autor. Cabe ao
professor oferecer subsídios que permitam uma leitura mais prazerosa e enriquecedora.
∗
Aluna do curso Licenciatura em Letras Vernáculas, Departamento de Letras e Artes da Universidade
Estadual de Feira de Santana – UEFS.
Este trabalho tem como objetivo, portanto, contribuir para a compreensão de texto muito
além da decifração. Sendo apresentados os fatores de textualidade e os cinco níveis de
leitura (FRANCO, 1997), seguidos de uma reflexão sobre a prática de leitura em sala de
aula. Por fim, faz uma abordagem da dimensão interacional no ensino de leitura,
mostrando as implicações pedagógicas decorrentes da adoção dessa postura frente à leitura,
e sugestões de textos a serem trabalhados em sala de aula.
LEITURA E FATORES DE TEXTUALIDADE
A lingüística textual tem como objeto de estudo o texto e suas ações lingüísticas,
cognitivas e sociais, que estão envolvidas em sua organização e funcionamento no meio
social. Essas ações oferecem condições necessárias para a compreensão e o
desenvolvimento do processo de leitura e escrita, o que facilita a realização de atividades
no âmbito escolar.
Segundo Portela (2004), pesquisas desenvolvidas sobre ensino de leitura/escrita detectaram
que poucos professores demonstram preocupação no que se refere a essa temática. A
leitura, por exemplo, resume-se à decodificação dos símbolos de cada parágrafo, sem
discussão ou análise do texto lido. Contudo, o conhecimento dos postulados da lingüística
textual pode contribuir para a mudança de atitude dos professores diante de tarefas que
envolvam leitura.
O primeiro passo para essa mudança é entender o que vem a ser texto. Segundo Portela
(2004), “um texto é tudo aquilo que comunica algo, seja ele oral, escrito, visual ou
musical”. Consiste em ser o mediador entre leitor e autor no processo de interlocução.
Sendo assim, sua leitura não pode ser resumida à decodificação de símbolos gráficos. Não
existe um único tipo de texto, da mesma forma que não há um tipo exclusivo de leitura.
Todo educador também, precisa ter uma visão ampla do que é ler, pois o conceito de
leitura sendo muito vasto e complexo, envolve uma infinidade de possibilidades de
respostas, uma série de práticas e experiências. Tem que considerar diversos aspectos, tais
como a idade do leitor, seu grau intelectual, seu gostos, sua cultura, sua comunidade de
leitores, seu repertório prévio, suas necessidades de leitura, instrumentos, apropriação e
processos de interpretação. Enfim, ler é considerar aquilo que envolve o “mundo do leitor”
(CHARTIER, 1999). Não depende somente da decifração, mas de todo o contexto ligado à
experiência de vida de cada ser, para que este possa relacionar seus conceitos prévios com
o conteúdo do texto e, assim, construir o sentido.
De fato, pode-se ler texto, imagens, objetos, gestos, rostos, cenas, paisagens. A vida
familiar, a saúde, o lazer, o trabalho, a vida social, a cultura e a política passam
necessariamente pelo atalho da leitura. Mesmo assim, vemos na escola tão somente a
prática de exercícios de interpretação e análise de textos. E isso nada mais é do que simular
leitura (GERALDI, 2006).
Além de ter conhecimento do que vem a ser textos e dos aspectos que envolvem o ato de
ler, é preciso, para o ensino de leitura/escrita, entender textualidade. Dá-se o nome
textualidade ao conjunto de característica que tornam um texto realmente texto.
Beaugrande e Dressler (1983, apud PORTELA, 2004) apontam sete fatores responsáveis
pela textualidade de um discurso qualquer, a saber: a coerência e a coesão, que se
relacionam com o material conceitual e lingüístico do texto; e a informatividade, a
intencionalidade, a situacionalidade, a aceitabilidade e a intertextualidade que têm a ver
com os fatores pragmáticos envolvidos no processo sociocomunicativo.
A coesão ocorre quando um elemento pressupõe outro, sendo apenas decodificado por
referir-se ao outro; a coerência é resultado da configuração que assumem os conceitos e
relações, importantes para o sentido do texto. Segundo Fiorin (1997, Fiorin apud
PORTELA, 2004, p. 82), seis fatores contribuem para dar coerência a um enunciado: o
conteúdo, a situação de comunicação, o conhecimento de mundo, as regras de gênero, a
conotação e o intertexto. No que diz respeito aos fatores pragmáticos da textualidade, estes
são diretamente ligados à relação produtor-interlocutor. A informatividade visa às
expectativas e aos conhecimentos dos usuários; são rejeitados textos considerados muito
difíceis e também os óbvios. A intencionalidade permite o empenho do produtor em
construir um discurso coerente, coeso e capaz de satisfazer os objetivos que tem em mente
numa determinada situação comunicativa.
A situacionalidade refere-se ao que torna um texto relevante em determinada situação. A
aceitabilidade trata da recepção do texto pelo interlocutor. Por fim, a intertextualidade é o
diálogo entre textos. Pelo fato de a leitura proporcionar ampliação do repertório de
informação do leitor e permitir relacionamentos intertextuais ilimitados, focaremos os
fatores informatividade e intertextualidade.
O interesse do recebedor pelo texto vai depender do grau de informatividade de que o
último é portador (COSTA VAL, 1996, p. 14). Esse fator de textualidade diz respeito à
medida na qual as ocorrências de um texto são ou não esperadas e/ou conhecidas, no plano
conceitual e no formal. Se o texto for menos previsível torna-se mais informativo, por ser
sua recepção mais trabalhosa, porém mais interessante e envolvente. Já um texto
totalmente inusitado será rejeitado pelo leitor por não conseguir processá-lo. O ideal será o
texto se manter no nível mediano de informatividade, no qual se alternam ocorrências de
processamento imediato, que falam do conhecido, com ocorrências de processamento mais
trabalhoso que trazem a novidade (ibidem). A leitura mais prazerosa a leitura permitará ao
aluno relacionar seus conhecimentos prévios e obter novos dados.
A intertextualidade é o fator que faz a utilização de um texto dependente do conhecimento
de outro(s) texto(s). São muitos os textos que só fazem sentido quando entendidos em
relação a outros textos, que funcionam como seu contexto (idem, p.15). Como exemplos,
podem ser citados quadros que retratam um acontecimento real; noticiários de jornal, que
requerem conhecimento de um discurso já divulgado; fala coloquial que retoma conversas
anteriores. A própria leitura é intertextualizada, pois parte da história de vida do leitor em
direção ao que o autor quer comunicar, o que só terá sentido se houver relacionamento
intertextual.
OS CINCO NÍVEIS DE LEITURA
Franco (1997) compreende a leitura como processo de interlocução entre leitor e autor,
tendo o texto como mediador. Sua concepção ratifica a apresentação dos cinco níveis de
leitura, que serão abaixo comentados.
O primeiro nível compreende a história de vida do leitor. Segundo a autora, a leitura deve
iniciar-se a partir da própria pessoa, pois o conhecimento de si mesmo é o ponto de
referência mais próximo que o educando tem.
Aprender a usar os olhos e os ouvidos para enxergar e ouvir as pessoas ao redor se
constitui o segundo nível de leitura. Ler o que o corpo do outro diz é básico para a interrelação pessoal. Isso porque o corpo de uma pessoa conta muito de sua história, e somente
observando-o e sentindo-o se perceberá esta história. A história do aluno/leitor é o ponto
de partida para o trabalho pedagógico.
Conhecendo-se e conhecendo o outro, pode-se chegar ao terceiro nível de leitura – a leitura
da realidade. A vida do nosso povo deve ser conhecida, discutida e analisada pelos
educandos, provocando nestes, quando necessário, um desejo de mudança.
Para enriquecer e aprofundar a leitura da realidade acrescentam-se à leitura os encargos
sociais, que constituem o quarto nível de leitura. Fazem parte desses tributos receituários
médicos, registros de nascimentos, recibos, notas fiscais, um tipo de leitura nem sempre
fácil, mas exigida pela sociedade. Interpretar uma conta de luz, telefone ou água não é
simples, mas através desta leitura o aluno entenderá melhor a administração financeira do
lar e sua responsabilidade nesta administração.
No quinto nível de leitura, encontramos os textos escritos. Sabe-se que são os mais
utilizados pela escola. O aluno só é considerado leitor quando se mostra capaz de
interpretar um texto impresso.
O professor precisa ter claro em sua prática que a verdadeira compressão de um texto vai
além da simples decifração: ela exige que a história de vida do aluno lhe dê condições para
compreender a história de vida do autor e que nesta inter-relação leitor/autor haja, de fato,
leitura.
O TRABALHO COM A LEITURA NA SALA DE AULA
Refletindo sobre a prática de ensino da leitura, pode-se observar, no que diz respeito às
atividades, que a leitura é feita centrada nas habilidades mecânicas de decodificação da
escrita. A aquisição dessas habilidades não se dirige para a dimensão da interação verbal, o
que faz com que não haja encontro entre o autor e o leitor. Além disso, a atividade de
leitura configura-se desinteressante, sem função, pois aparece inteiramente desvinculada
dos diferentes usos sociais que se faz da leitura atualmente.
O ato de ler passa a ser um exercício puramente escolar, sem gosto, sem prazer, convertido
em momento de treino, de avaliação ou em oportunidade para futuras “cobranças”
(ANTUNES, 2006, p. 28). A interpretação se limita a recuperar os elementos literais e
explícitos presentes na superfície do texto. A atividade torna-se incapaz de suscitar no
aluno a compreensão das múltiplas funções sociais da leitura.
Uma questão ainda mais grave é a falta de “tempo para a leitura”, tão reclamada pelos
alunos, fruto da prioridade dada às atividades de literatura (estudo de textos literários), de
gramática e de vocabulário.
Contudo, o que pode embasar um trabalho verdadeiramente eficaz no ensino de leitura são
as teorias do texto, as concepções de leitura, de escrita, o uso interativo e funcional da
língua.
A atividade da leitura completa a atividade da escrita. É, por isso, uma “atividade de
interação entre sujeitos” (ANTUNES, 2006, p. 67) e supõe muito mais que a simples
decodificação dos sinais gráficos. O leitor, como um dos sujeitos da interação, atua
participativamente, buscando recuperar, interpretar e compreender o conteúdo e as
intenções pretendidos pelo autor.
Muito do que se consegue apreender do texto faz parte do conhecimento prévio do leitor,
isto é, antecede ao que lá está. Um texto seria inviável se tudo tivesse que estar
explicitamente presente. Os sinais (palavras e outros) que estão na superfície do texto são
elementos imprescindíveis para sua compreensão, mas não são os únicos. O que está no
texto e os conhecimentos prévios do leitor se completam neste jogo de reconstrução do
sentido e das intenções pretendidas pelo texto. É preciso, segundo Antunes (2006, p. 69),
que o professor entre pelo conhecimento da pragmática, para “abrir” os horizontes com que
vai perceber esse jogo da linguagem.
A DIMENSÃO INTERACIONAL NO ENSINO DE LEITURA
Na exploração da leitura na sala de aula, é importante que o professor fique atento a alguns
princípios que regem a realização desta prática. Em primeiro lugar, a atividade de leitura
favorece a ampliação dos repertórios de informação do leitor. Na verdade, por ela o leitor
pode incorporar novas idéias, novos conceitos e dados, novas e diferentes informações
acerca das coisas, das pessoas, de si mesmo, dos acontecimentos e do mundo em geral.
Num segundo plano, a leitura possibilita a experiência gratuita do prazer estético, do ler
pelo simples gosto de ler. Ler para admirar, para deleitar-se com as idéias, com as imagens
vistas ou criadas, com o jeito bonito de dizer as coisas.
Em outro plano, no qual entram os textos escritos, a atividade de leitura permite, ainda, que
se compreenda o que é típico da escrita, principalmente no que diz respeito à escrita formal
dos textos da comunicação pública. É o momento de observar características da escrita e
dos diversos gêneros textuais.
A leitura envolve diferentes estratégias de realização. Para cada tipo de texto (imagem,
objeto, paisagem, pessoa) o leitor assume diferentes comportamentos.
IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS
Decorrentes dos princípios acima explicitados pode-se apontar implicações pedagógicas
acerca da leitura (ANTUNES, 2006), a saber:
¾ Uma leitura de textos autênticos: os textos trabalhados em sala devem ter autor(es),
data de publicação e ter aparecido em algum suporte da comunicação social (jornal,
revista, outdoor, cartaz etc.). Portanto, devem ser reais. Na fase inicial de aquisição da
escrita, são exemplos de textos livros, jornais, revistas, textos fixados nas portas e
paredes etc.
¾ Uma leitura interativa: qualquer texto precisa ser lido como sendo o lugar de um
encontro entre autor e leitor. Enfatiza-se a compreensão e o sentido estabelecido.
¾ Uma leitura em duas vias: deve-se deixar claro para o aluno a interdependência
existente entre a atividade de produção textual e a atividade de ler e compreender, já
que nenhuma leitura está desvinculada das condições em que o texto foi produzido.
¾ Uma leitura motivada: o professor deve mostrar aos alunos as vantagens de praticar
leitura e de poder ler. Deve, portanto, ajudar o aluno a construir uma representação
positiva da leitura e dos poderes que ela confere ao cidadão.
¾ Uma leitura crítica: o ideal é que o aluno consiga perceber que nenhum texto é neutro,
pois traz em si uma visão de mundo, um modo de ver as coisas, uma crença. Qualquer
texto reforça idéias já sedimentadas ou propõe visões novas.
¾ Uma leitura de reconstrução do texto: a partir do entendimento global do texto, propõe
a reconstrução do mesmo.
¾ Uma leitura diversificada: assim como fora da escola, as oportunidades de leitura
devem variar, sendo oferecidos diferentes gêneros textuais, para que seja observada
característica e uso desses textos.
¾ Uma leitura gratuita: para simples prazer (os textos devem ser bem selecionados).
SUGESTÕES DE TEXTOS PARA TRABALHO COM A LEITURA
As aulas de leitura poderiam abranger os seguintes textos:
Quadros (pinturas)
Objetos
Paisagens
Fotografias
Histórias em quadrinhos com ou sem gravuras
Fábulas
Contos
Jornais
Revistas
Receitas
Cartões
Cartas
Poemas
Avisos
Folhetos
Cartazes
Adivinhas
Anedotas
Provérbios populares
Mapas, tabelas, gráficos
Propagandas
Instruções
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por essa abordagem percebe-se a importância do papel do professor no incentivo à leitura
de seus alunos, tornando-se evidente a pretensão quanto à diversidade de gêneros textuais
que o professor deve providenciar, além de outros tipos de textos (imagens, a história de
vida do aluno, o próprio aluno etc.). É importante que o aluno, sistematicamente, seja
levado a perceber a multiplicidade de usos e de funções a que a língua e a linguagem se
prestam, na variedade de situações em que acontecem.
Compete ao professor auxiliar o aluno a ultrapassar os limites do texto escrito em sua
leitura, ampliando, dessa forma, sua visão de mundo. Cabe ao professor, também, utilizarse de suas iniciativas e de sua criatividade para encontrar, principalmente na comunidade
local a que o aluno pertence, motivos e oportunidades de leitura. Antunes (2006) aponta
como sugestão começar pela descoberta de quanta coisa se pode ler na rua ou no próprio
colégio.
Dessa forma, a leitura deixaria de ser uma simples tarefa escolar para treinar decodificação
ou para avaliar, para ser, junto a outras atividades, uma forma de integração do aluno com
a vida de seu meio social.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola
Editorial, 2006.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Editora UNESP, 1999.
COSTA VAL, M. da G. Redação e Textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
FRANCO, Ângela. Os cinco níveis da leitura. In: Caderno AMAE. Alfabetização:
Desafios e Experiências. Belo Horizonte, 1997.
GERALDI, João Wanderley [Org.]. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2006.
PORTELA, Girlene L. Contribuições da lingüística textual para o ensino-aprendizagem da
escrita. A Cor das Letras: Revista do Departamento de Letras e Artes da Universidade
Estadual de Feira de Santana, n. V, UEFS, 2004. p. 75-90.
O PRAZER DE ESCREVER PELA INSERÇÃO CULTURAL
Murillo da Silva Neto (NELP - UEFS)
Trabalhar leitura e escrita com alunos de 5ª e 6ª séries do ensino fundamental, sobretudo
nas séries inicias, tem se mostrado, para os professores que atuam nestas séries, um entrave
cada vez maior e mais freqüente. É recorrente ouvirmos professores de língua primeira
(português, no nosso caso) se perguntar como vão ensinar seus alunos a ler e a escrever, de
maneira crítica. Essa inquietação também é percebida no momento em que partimos para o
campo de observação nas salas de aula. Vemos, com constância, o trabalho árduo que tem
sido para os professores, de língua portuguesa, ativar mecanismos de leitura e escrita de
modo satisfatório. Sabemos que as condições educacionais do Brasil estão em crise e por
conta disto, percebemos uma mobilização maior das Universidades brasileiras para
discutirem possibilidades de ensino que sejam, no mínimo, mais eficazes. Uma das
alternativas que encontramos no nosso projeto, “Ler e Escrever em ambiente de cultura: a
produção de materiais didáticos para o ensino de língua portuguesa no semi-árido baiano”,
é trazer para perto do aprendizado o próprio estudante e o contexto sócio-cultural que o
cerca. O enfoque puro e descontextualizado da gramática normativa, adotado nas salas de
aula, distancia o indivíduo do objetivo da aula: o aprendizado da língua. As nomenclaturas
gramaticais jogadas à esmo, como se fossem a única alternativa do ensino de línguas, já
não é mais aceitável, como diz Antunes (2003).
Pensar processos de alfabetização e aprendizado de leitura e escrita requer que tenhamos
uma postura crítica muito maior sobre nossas práticas, enquanto professores. Nas
observações que fizemos, notamos uma diferença discrepante na didática dos educadores
ao lidarem com a questão do ensinar. Enquanto uns buscam uma interação maior com seus
alunos e lhes permitem averiguar suas possibilidades culturais, através do ensino do
português, fazendo-os perceberem-se no contexto, outros apenas empurram “goela abaixo”
dos estudantes, uma porção de atividades sistemáticas sobre verbos, preposições e orações,
sejam elas subordinadas ou não. Com alguns resultados, das produções textuais dos alunos,
verificamos que ao versar assuntos mais próximos de sua realidade, eles têm muito mais a
dizer. Ao tratarmos o indivíduo na sua totalidade e com os traços que o forma, notamos
uma interação muito maior entre o aprender a ler e escrever e o prazer por se fazer isto.
Sobre abordar aspectos culturais, como relevantes para o ensino de línguas, Mendes (2002,
p. 186) ratifica:
Aprender uma língua, aprendendo sua cultura, significa muito mais do que uma
simples eleição de enfoques metodológicos, é, antes de tudo, uma forma
alternativa de construção do processo de ensino-aprendizagem de línguas. A
cultura, que normalmente assume o papel secundário nesse processo, em
detrimento da forma lingüística, passa a ser a porta de entrada, o elemento
fundador a partir do qual a experiência de ensinar e aprender se constrói.
Falar de cultura e de aspectos culturais, no ensino, requer de nós, professores, uma atenção
muito maior para o ser humano, mas será mesmo que estamos dispostos a trabalhar mais,
ou é preferível adotarmos os materiais didáticos (MD’s) que circulam no país? Diante
desse questionamento e de nossas observações, salientamos, mais uma vez, que a forma
com que têm sido trabalhados os aspectos estruturais da língua (oralidade, leitura e escrita)
variam, sobremaneira, de acordo com a experiência de vida trazida pelos discentes para a
sua sala de aula. É notório que o contato, a proximidade com o que se está lendo ou
escrevendo torna muito mais claro o que se tem a dizer, reflexivamente, sobre essa leitura
ou escrita. Negar esta premissa significa dizer que o aluno, ao chegar à escola neste
estágio, não tem bagagem cultural e só sabe aquilo que “aprende” na escola, ou seja, é
vazio, perdendo de vista que, de fato, todo ser humano é um ser social carregado de
ideologias e crenças que lhes são inerentes de sua cultura, de sua formação. De acordo com
Dacanal (1987), Freire (1996) e Solé (1998), as experiências prévias de vida dos
indivíduos devem ser consideradas no momento da leitura e das análises que possam ser
feitas a partir delas.
Uma abordagem culturalmente sensível no ensino não nos fará perder de vista as regras
que, segundo as correntes tradicionalistas, conduzem ao bem falar e ao bem escrever da
norma padrão, ao contrário, apostar na culturalidade como uma alternativa a mais para a
didática do ensino, possibilitará ao estudante à oportunidade de entender o porquê é preciso
saber falar, ler e escrever bem, se ele se entender enquanto ser social/real. Ainda sobre a
questão da abordagem cultural, Mendes (2008) explica:
Abordar a questão do ensino/aprendizagem da cultura, ou melhor, o
ensino/aprendizagem da língua como cultura, insere-se nesse contexto, o de
assumirmos, como pesquisadores e professores, uma postura crítica diante da
nossa prática; e também de enxergarmos o indivíduo, seja ele aluno ou professor,
dentro do contexto no qual ele vive, age e interage com os outros, com os seus
modos particulares de interpretarem o mundo à sua volta.
É pensando no processo de ensino/aprendizagem de línguas como conjunto de
ações engajadas social, cultural e politicamente, e no indivíduo como sujeito
atuante e crítico, o qual está imerso em ambientes sociais, históricos e políticos
específicos, que destacamos a importância de uma reflexão sobre o que significa
ensinar língua como cultura e sobre a eleição da interculturalidade como modo
privilegiado de criação e elaboração de novas perspectivas para se ensinar e
aprender línguas.
Escrever não pode ser meramente a arte de se reproduzir o que já foi escrito, mas,
sobretudo, a arte de poder se criar textos, em prosa ou verso, que expressem algo que é
genuinamente humano: a criatividade. Este trabalho, em especial, traz uma reflexão sobre
as produções textuais desses alunos da 5ª e 6ª séries, que foram retiradas do banco de
dados do NELP 32. Os professores, ao pedirem a criação dos textos, explicaram em sala de
aula três tipos textuais (conto, crônica e autobiografia), a escolha e a produção, no entanto,
ficou ao encargo dos alunos. Três textos foram escolhidos sem critérios específicos, a fim
de que percebêssemos se esse aluno diz alguma coisa concreta em sua produção, ou se ele
apenas é um re-escritor/copista de algo já existente. Descartamos, entretanto, o tipo
autobiografia, pois nessas produções, os alunos identificaram a si mesmos e à instituição
na qual estudam e para preservar a imagem dos autores e da escola com a qual
trabalhamos, optamos por não apresentarmos este material que tanto os expõe. Vamos aos
textos (TXT):
TXT 1 – tipo crônica – Conversa na secretaria
2 pessoas conversavam na secretaria (Marlene e Maria).
- Marlene perguntou para Maria como foi a sua noite.
- Maria respondeu, uau foi muito boa.
- Maria pergunta, como foi a sua marlene.
- Marlene responde, a minha foi pessima eu mandava ele parar, e ele não, já que
começamos vamos até o fim agora eu não estou aguentando mais, quando foi
agora de manhã 05:00 h ele parou e depois ele falou como foi cansativo essa
noite, é eu disse é quase que eu morro de tanto tentar sair com e você não deixar
Nesta produção notamos que houve uma nítida tentativa de se estabelecer um diálogo entre
duas pessoas, mas, na realidade, todo o trajeto foi narrado por uma terceira pessoa. Talvez
o autor(a) tenha tido a sensação de que estava, realmente, escrevendo um diálogo e que
suas personagens dialogavam entre si, mas devemos perceber que, inconscientemente, ou
não, a noção de que há uma conversa, foi transmitida para nós, leitores. Notamos essa
tentativa em se estabelecer a conversação, por parte do escritor, quando ele utiliza os
travessões, uma marca registrada nas narrativas para prenunciar a fala de uma personagem.
Crônicas e contos são tipos textuais inscritos na literatura e que para nós, pessoas letradas,
não têm essa formatação/estrutura. Como a nossa proposta não é a de se ater às regras da
gramática normativa, ou ainda à estrutura de um gênero textual, vamos analisar outro
prisma da produção textual: o conteúdo. Esse tipo de análise não é nenhuma inovação do
32
NÚCLEO DE ESTUDOS DE LÍNGUA PORTUGUESA, localizado no MT 25B, da Universidade
Estadual de Feira de Santana.
nosso projeto de pesquisa, Geraldi (1984), já comparava produções textuais de alunos nos
mesmos níveis escolares e chegava à conclusão de que um texto, mesmo não estando
formatado dentro da nossa gramática normativa, pode ser muito mais expressivo e
conteudista que um texto perfeitamente escrito nas normas. A diferença do nosso trabalho
é que não fazemos comparações, mas chegamos à mesma conclusão que Geraldi, pois este
texto nos diz que mesmo enfrentando problemas com as normas, este aluno(a) imaginou ou
presenciou, de fato, este acontecimento. Neste texto vemos que a presença da oralidade é
marcante na escrita e que a conversa pretendida entre as personagens é bastante informal.
Obviamente devemos levar em consideração os aspectos que contribuem para o nível desta
produção e das demais que serão apresentadas: as séries e o nível das escolas públicas das
cidades interioranas brasileiras e o histórico de vida do nosso aluno.
Escrever não é tarefa das mais simples, mas também não é nenhum bicho de sete cabeças.
A metodologia que todo educador deve utilizar para que seu aluno consiga ler e escrever é
aquela que dá resultado, aquela que ele faz consciente e com dedicação, sem se preocupar
muito com “a crista da onda”. Dacanal (1987, p. 41), diz que: no aprendizado da língua,
em todas as situações e em todos os níveis, deve ser aplicado o mais antigo, o mais
moderno e o mais eficiente dos métodos, o método de fazer falar, fazer ler e fazer escrever.
O estudante precisa estar convencido das vantagens de saber ler e escrever. Neste aspecto,
a função do professor é de primazia, porque ele, através de discussões, bem como a partir
da própria prática, pode mostrar ao aluno os pontos positivos de saber ler/escrever e
também os poderes que esse saber concede. Trata-se, como nos lembra Antunes (2003, p.
81), de “explicitar para os alunos os objetivos de toda atividade de leitura, ou seja, por que
ele é convocado a ler aquele texto, de forma a despertar-lhe o interesse de fazê-lo bem”.
Analisando o texto 2, verificamos o prazer e a descontração presentes e que para o/a
autor(a) a construção da escrita se dá de maneira tal, que mais parece que estamos fazendo
uma transcrição gravada em fita, de uma conversa casual ou de um bate-papo na internet.
Talvez, se a professora tivesse sido taxativa quanto à temática ou à tipologia textual, a
produção não teria sido tão descontraída, ou talvez mesmo, nem houvesse uma produção.
Ao ler o texto, desprezando a inabilidade do autor(a) com as regras gramaticais, perguntese e responda você mesmo(a), caro leitor(a), este texto tem conteúdo? É vazio? Vejamos,
entre outras coisas, as marcas gráficas que encontramos:
TXT 2 – tipo conto – Saída Do Colégio
De volta pra ksa, depois de uma tarde cansada de estudar, quando de longe
avistamos um menino:
- Ai! que menino bonito! Disse Tayla.
- Ah! não almenta ele paresse um xuxú de cabeça pra baixo! DISSE: LILICA
(Ainda distante do garoto, continuava-mos á falar dele.)
- ULaLá... que, que isso│DISSE LILICA A SE APROXIMA DO GAROTO.
- ta vendo Lilica ele não é tão feio e nen parece um xuxú de cabeça pra baixo.
- Ele é um, xuxú sim, mais lodo temperado num molho delisioso.
Ummm!!...│DISSE: JESSICA
(Ao passarmos do garoto continuamos os comentários sobre o ele
- Tayla, a bundinha dele é enpenado ou ele é chulado? – DISSE JESSICA.
- Era enpinadinha, uiuiui. DISSE: TAYLA
mas o que mais eu olhei foi o sapato se era de marca e o pince dele, q deixou ele
mais gato.
- Dá pra vê q ele gosta de uma Roquirinha eh! DESSE: Lilica
- É, ele ñ parou de olhar pra tayla! DESSE: JESSICA.
O que, a primeira vista, chama atenção nesta produção, fora o assunto em questão é claro, é
o fato de o/a autor(a) escrever palavras tal como em um “batendo um papo” na internet. A
abreviação e as marcas de algumas palavras escritas no texto denotam que essa
criança/adolescente, mesmo sendo de escola pública, tem algum tipo de contato com o
mundo virtual/globalizado. A internet, portanto, passa a ser, a partir dessa produção, uma
ferramenta a mais para o professor trabalhar as questões de oralidade, leitura e escrita em
sua sala. O docente pode fazer o aluno perceber que há mecanismos na nossa língua que
permitem uma adequação do uso da mesma em variados aspectos de nossa vida cotidiana,
fazendo-os perceber a importância de se trabalhar e aprender questões pertinentes à
variedade lingüística. Cabe ao professor valorizar a produção textual e intervir de tal
maneira que faça o aluno se sentir uma peça fundamental no seu próprio processo de
ensino-aprendizagem e não mais riscar com a “velha caneta vermelha” as incorreções
incidentes na grafia textual. Corroborando com essa idéia, Santos (2008) diz que:
Tradicionalmente, as intervenções dos professores no texto dos alunos tendem a
focalizar as infrações textuais como sendo lacunas do texto em si ou dos alunos.
A partir dessa perspectiva, se diz que o texto não tem coerência ou que o aluno
não tem informações suficientes para organizar a coerência no seu texto. Não é
levado em consideração, por exemplo, o papel institucional da escola e, ainda, a
competência profissional do professor para disponibilizar informações amplas e
relevantes sobre os temas geradores trabalhados na escola.
No texto 3, verificamos que é tão verdade que o indivíduo vem com sua bagagem
lingüística e cultural para a escola, que a presença de figuras de linguagem, como
metáfora, por exemplo, podem ser encontradas e já pudemos notar isso, também, no texto
2. Será que na 5ª ou 6ª séries de escolas públicas brasileiras, os alunos já viram e sabem o
que são figuras de linguagem? Acreditamos que sim, mas não que tenham aprendido na
escola com esta nomenclatura gramatical. Talvez hipérboles, metonímias e antíteses sejam
palavras estranhas para eles aprenderem, embora inconscientemente eles utilizem essas
figuras de linguagem, constantemente. Notemos isso, na próxima produção:
TXT 3 – tipo crônica – PORTARIA da ESCOLA
- Nossa que demora pra abri o portão. Cade esse porteiro já é 1:00 hs e ele não
chegou.
- Eu estou derretendo aqui nesse sol neste instante viro um espetinho.
- Só falta chega alguém e fala pra espera que o porteiro ta chegando.
- Ah, filha! Se isso acontece não vai dar o que preste. , Esse povo incompetenti!!
Vemos que este texto reflete uma denúncia da falta de compromisso de um funcionário da
escola para com os alunos. No mais, parece claro que o que o/a estudante traz da sua
experiência de vida, não pode ser desprezado. Fazemos nossas, as palavras de Freire (1996,
p.81):
Como educador preciso ir “lendo” cada vez melhor a leitura do mundo que os
grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior
de que o seu é parte. O que quero dizer é o seguinte: não posso de maneira
alguma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos populares,
desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que
faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem
explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo “leitura do mundo” que
precede sempre a “leitura da palavra”.
Traços culturais e regionais também devem fazer parte da língua portuguesa. A
responsabilidade e a tarefa árdua do professor, neste sentido, será fazer o aluno entender
que se ele tiver domínio de suas possibilidades lingüísticas ele será um leitor e um escritor
muito mais crítico de sua língua, de sua cultura e do mundo à sua volta. Ler e escrever
devem ser, antes de tudo, uma atividade prazerosa.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola
Editorial, – (Série Aula 1). 2003.
Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua
portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 144p. 1997.
Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e
quarto ciclos do ensino fundamental / língua portuguesa/ Secretaria de Educação
Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 106p. 1998.
DACANAL, José Hildebrando. Linguagem, poder e ensino da língua. 2ª ed. Porto
Alegre, Mercado Aberto. 1987.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 33ª
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GERALDI, João Wanderley (Org.). O Texto na Sala de Aula. 2 ed. Cascavel, Assoeste.
1984.
MENDES, Edleise. Aprender língua, aprendendo cultura: uma proposta para o ensino
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(Org.). Tópicos em português língua estrangeira. Brasília-DF: Editora Universidade de
Brasília, 2002, v. p. 185-199.
MENDES, Edleise. Por que ensinar língua como cultura? (No prelo)
SANTOS, Cosme B. A escolarização da escrita na perspectiva do letramento
contextualizado. (No prelo)
O GÊNERO NA LITERATURA E NO PROGRAMA BRASIL
ALFABETIZADO, 4ª ETAPA
Renata Greicy da Silva Santana (UEFS)
Sou filho de pai e mãe analfabetos, minha mãe não era capaz de fazer um
`o` com um copo. E o único legado que eles deixaram para mim era que
andar de cabeça erguida é a coisa mais importante que pode acontecer a
um homem e a uma mulher. Conquistei o direito de andar de cabeça
erguida e não vai ser a elite brasileira que vai fazer eu baixar a minha
cabeça. (Presidente Lula)
Como monitora do projeto Ensino e Extensão de Educação de Jovens e Adultos,
vinculado à formação continuada, acompanhamento e avaliação dos orientadores,
alfabetizadores e alfabetizandos do Programa Brasil Alfabetizado – 4ª etapa -, atuei
no município de Maragogipe, monitorando as ações supracitadas. Desenvolvendo a
ação de acompanhamento e avaliação através das listas de freqüência constatei que o
maior índice de matriculados no programa era de mulheres. Então, juntamente com a
coordenadora pedagógica, resolvemos fazer um levantamento por amostragem do
número de matriculados por município. Consideramos, dos dezenove municípios de
atuação, três municípios: Feira de Santana por ser o município onde está localizada a
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS; Urandi por ser o município mais
distante e Maragogipe, por ter o maior número de classes.
Com a constatação da presença feminina, em maioria, nas classes do Programa
Brasil Alfabetizado – 4ª etapa, o tema gênero surge e a partir das colocações de Santos
(2003, p. 74) o vemos
como eixo da construção social dos papéis de homem e mulher na sociedade.
Gênero - é a construção social do indivíduo como sujeito masculino e feminino
estabelecida a partir das relações sociais, estando homens e mulheres inseridos
em um meio que atribui significação diferenciada por papéis distintos e
desiguais, masculino e feminino. A categorização dos gêneros deve ser
reconhecida como construção social. A participação das mulheres deve tornar-se
visível na construção das ciências.
Para compreender o papel da mulher analfabeta nos reportamos à literatura e ao filme
“Central do Brasil”. Lemos o livro O Cortiço de Aluisio Azevedo e discutimos a
posição das personagens Bertoleza, ingênua, submissa, dedicada, trabalhadora e
analfabeta, Rita Baiana, uma mulata que chamava a atenção de todos (as) no cortiço e
Pombinha, menina-moça alfabetizada, respeitada por todos no cortiço pela sua
condição de leitora e escritora das mensagens das personagens.
O livro foi escrito em 1890 e tinha como objetivo a observação e análise dos
agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo
imigrante, principalmente o português, e também a questão do analfabetismo entre as
pessoas que faziam parte do cortiço. É visível a negatividade imputada à condição
feminina da classe trabalhadora de baixa renda não escolarizada.
O estudo apresenta cenas de mulheres humilhadas e reprimidas pela falta de leitura da
palavra, da escrita de sentimentos e da necessidade de comunicação com uma sobrecarga
de trabalho.
Deve se notar que, no romance, as mulheres são reduzidas a três condições: de objeto,
usada e aviltada pelo homem: Bertoleza; de objeto e sujeito, simultaneamente: Rita Baiana;
e de sujeito Pombinha, a mulher letrada.
Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de
caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às
quatro da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para
os fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma
pedreira que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda.
Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna, quando o amigo
andava ocupado lá por fora; fazia sua quitanda durante o dia no intervalo de
outros serviços, e à noite passava-se para a porta da venda, e, defronte de um
fogueiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas, que Romão ia pela
manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar à praia do
Peixe. E o demônio da mulher ainda encontrava tempo para lavar e consertar,
além da sua, a roupa do seu homem, que esta, valha a verdade, não era tanta
e nunca passava em todo o mês de alguns pares de calças de zuarte e outras
tantas camisas de riscado. (AZEVEDO, s.d. p. 16)
Sobre a mulata Rita Baiana o autor traz o seguinte:
Cercavam-na homens, mulheres e crianças; todos queriam novas dela. Não vinha
em trajo de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe deixava ver o
pé sem meia num chinelo de polimento com enfeites de marroquim de diversas
cores. No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, havia um
molho de manjericão e um pedaço de baunilha espetado por um gancho. E toda
ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas
aromáticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril baiano, respondia
para a direita e para a esquerda, pondo a mostra um fio de dentes claros e
brilhantes que enriqueciam sua fisionomia com um realce fascinador.
A personagem Rita Baiana é livre e despida de amarras e preconceitos, é como a maioria
de nós queria ser. É mulata decidida e generosa que enfrenta a vida de peito aberto,
disposta a sofrer e gozar com a mesma intensidade. Fiel aos seus gostos e às suas paixões,
a elas se entrega por inteiro.
E quanto à mulher alfabetizada ao fazermos referência à personagem Pombinha.
Pombinha era muito querida por toda aquela gente. Era quem lhe escrevia as
cartas; quem em geral fazia o rol para as lavadeiras; quem tirava as contas; quem
lia o jornal para os que quisessem ouvir. (AZEVEDO, s.d. p. 46)
...
Pombinha não apareceu durante o dia, porque estava muito ocupada, aviando a
correspondência dos trabalhadores e das lavadeiras: serviço este que ela deixava
para os domingos.
Numa pequena mesa, coberta por um pedaço de chita, com o tinteiro ao lado
da caixinha de papel, a menina escrevia, enquanto o dono ou a dona da carta
ditava em voz alta o que queria mandar dizer à família ou a algum mau
devedor de roupa lavada. E ia lançando tudo no papel, apenas com algumas
ligeiras modificações, para melhor, no modo de exprimir a idéia. Pronta uma
carta, sobrescritava-a, entregava-a ao dono e chamava por outro, ficando a
sós com um de cada vez, pois que nenhum deles queria dar o seu recado em
presença de mais ninguém senão de Pombinha. (AZEVEDO, s.d. p. 75-76)
Ao fazermos uma reflexão sobre estas personagens da literatura brasileira com as mulheres
que se encontram no Brasil Alfabetizado teremos muitas histórias semelhantes. As
mulheres que freqüentam as classes dos municípios visitados são mulheres, em sua
maioria, trabalhadoras, mães, domésticas, companheiras, etc. Muitas delas não tiveram
acesso à alfabetização, leitura e escrita, o que dificulta suas vidas, já que vivem em uma
sociedade que exclui, que desvaloriza, que as trata como submissas da sua falta de
intelectualidade.
Todo este processo vem sendo desconstruído por essas mulheres, que querem se tornar
independentes, livres para aprender, construir a auto-estima, contribuir para mudar o
mundo e ter acesso aos direitos do ponto de vista civil, social, econômico, político etc.
Tornam-se, hoje, com o esforço de se alfabetizar, formadoras de opinião, com liberdade
para ler e escrever independentes de qualquer pessoa, e buscam uma igualdade de direitos
e atualmente uma identidade.
Algumas mulheres, porém, são um pouco de cada personagem descrito por Aluísio
Azevedo, porém acreditam em uma possível mudança da realidade. Tem-se Bertoleza,
uma mulher negra, batalhadora, submissa e trabalhadora, que fazia de tudo para agradar
João Romão. Hoje, temos mulheres que se transformam em uma Bertoleza, vivem apenas
sua realidade, são as que se submetem a um conhecimento prévio de algo que apenas
vivenciam. Temos Rita Baiana, uma mulata que é lavadeira, mas ao mesmo tempo livre,
livre de suas opiniões e vontades. Assim também temos perfil de mulheres que são
corajosas, que lutam, querem ser livres, buscam sua inserção na sociedade e pretendem
participar ativamente dos seus direitos e deveres como cidadãs. E por fim, Pombinha, a
menina-mulher letrada, que tem liberdade de se expressar corretamente através da leitura
e da escrita. Teve uma boa educação e manifestava a bondade para poder ajudar as
pessoas que freqüentavam o cortiço, escrevendo cartas e enviando-as.
Esta última traz uma análise da idéia das mulheres que buscam o domínio do
conhecimento, que enfrentam e superam dificuldades e ampliam os espaços da
mulher. São as que, mesmo depois de alcançar uma determinada idade, procuram
enfrentar o estudo como um grande desafio, e a aprendizagem se torna significativa.
Fazendo uma reflexão sobre o filme Central do Brasil, temos Dora como personagem,
que é uma mulher que escreve cartas para analfabetos. Ela ouve e transcreve tudo o que
é dito pelas pessoas que procuravam através destas cartas manterem contato e laços
com os parentes mais distantes e o passado. Isto fazia com que esses analfabetos
tivessem uma oportunidade de estar em constante comunicação com as pessoas.
Relacionando todas estas questões elencadas e trazendo para a realidade das pessoas que
freqüentam ou freqüentaram o Programa Brasil Alfabetizado, pode-se perceber, através de
pesquisas realizadas, que o número de pessoas analfabetas encontradas no ambiente escolar
é caracterizado por mulheres. Na escola, elas procuram um resgate da sua valorização
pessoal e auto-estima como forma de incentivo familiar de mudança de perspectiva – sair
da ignorância e da pobreza - produzem conhecimentos não oficializados pela escola e que
formam um corpus do pensar humano na solução dos seus problemas e vêem a
alfabetização como a possibilidade de ascensão social. Faz-se necessário, portanto, uma
educação problematizadora em que o contexto apareça superando os estereótipos
construídos durante todo o processo histórico, cultural e educacional.
O quadro abaixo nos dá uma idéia da participação dessas mulheres no ambiente escolar.
QUADRO GERAL DOS MUNICÍPIOS ATENDIDO PELA EJA UEFS - GÊNERO
Nº DE CLASSES MUNICÍPIOS Nº DE CLASSES QT. QT. TOTAL DE PESQUISADAS FEMININO MASCULINO ALUNOS ARACI 40 11 156 91 247 BREJÕES 4 4 47 22 69 CACHOEIRA 7 7 93 69 162 CORAÇÃO DE MARIA 16 11 114 129 243 CRUZ DAS ALMAS 16 11 116 105 221 FEIRA DE SANTANA 25 11 192 65 257 HELIÓPOLIS 19 11 104 94 198 ITAPICURU 15 11 89 156 245 MARAGOGIPE 97 11 136 83 219 MILAGRES 10 10 110 112 222 QUIJINGUE 40 11 88 92 180 SÃO FILIPE SÃO FRANCISCO DO CONDE 20 11 135 130 265 2 2 ‐ ‐ 0 SÃO GONÇALO 5 5 72 48 120 SERRINHA 25 11 119 66 185 SOUTO SOARES 10 7 56 34 90 TERRA NOVA 20 11 110 83 193 UBAÍRA 9 8 61 85 146 URANDI 14 11 143 94 237 200
180
160
140
120
100
80
60
40
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Nº DE CLASSES
Nº DE CLASSES
PESQUISADAS
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QUANTITATIVO FEM/MASC. POR CIDADE 160
140
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100
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60
40
20
0
Este quadro nos deixa claro a inserção da mulher na escola. A participação delas está
presente na maioria dos municípios apresentados. Sendo assim, a mulher conhece a
possibilidade histórica de pensar sua condição, não mais como um destino biológico, mas
também como uma situação social imposta pelo direito do mais forte, como uma injustiça.
A mudança da percepção tradicional que a mulher tem de si mesma está ligada à
modificação de sua situação objetiva na sociedade burguesa. Vale dizer, as possibilidades e
as limitações de pensar em si mesma como sujeito e membro de um grupo oprimido.
A mulher enquanto ser humano do sexo feminino, capaz de conceber e parir outros seres
humanos, e se distinguir do homem por essas características, busca igualdade junto ao seu
companheiro de espécie, através do movimento da história e das pressões sobre as
mudanças sociais do trabalho e da luta. A mulher quer exercer seus direitos e deveres de
ser humano sem opressão. A mulher ao deixar de ser oprimida, pode expressar sua
sexualidade, sensualidade recordando momentos de opressão e vivenciando a conquista de
ser liberto.
Pretende Eugenio Pelletan que a mulher, com o andar dos tempos, há de vir a
exercer no mundo um papel político (…) Eu quisera uma nação, onde a
organização política e administrativa parasse nas mãos do sexo amável, onde,
desde a chave dos poderes até o último lugar de amanuense, tudo fosse ocupado
por essa formosa metade da humanidade. O sistema político seria eletivo. A
beleza e o espírito seriam as qualidades requeridas para os altos cargos do
estado, e aos homens competiria exclusivamente o direito de votar.”
(MACHADO DE ASSIS, “Comentários da Semana”, 21/11/1861)
Produzem conhecimentos que não estão oficializados pela escola e os mesmos formam um
corpus do pensar humano na solução dos seus problemas. Em seu contexto aparece
superando os estereótipos construídos durante todo o processo industrial, ganhando uma
característica de atuante.
Segundo Guacira,
É preciso notar que essa invisibilidade, produzida a partir de múltiplos discursos
que caracterizam a esfera do privado, o mundo doméstico, como o “verdadeiro”
universo da mulher, já vinha sendo gradativamente rompida, por algumas
mulheres. Sem dúvida, desde há muito tempo, as mulheres das classes
trabalhadoras e camponesas exerciam atividades fora do lar, nas fábricas, nas
oficinas e nas lavouras. Gradativamente, essas e outras mulheres passaram a
ocupar também escritórios, lojas, escolas e hospitais. Suas atividades, no entanto,
eram quase sempre (como são ainda hoje, em boa parte) rigidamente controladas
e dirigidas por homens e geralmente representadas como secundárias, “de
apoio”, de assessoria ou auxílio, muitas vezes ligadas à assistência, ao cuidado
ou à educação. (GUACIRA, s.d. p.17)
Sendo assim, a mulher que antes era oprimida, ganha destaque com o passar do
tempo, mesmo em menor proporção relacionada aos homens. As mulheres desejam
uma educação, uma ocupação, um direito, uma identidade que mostre o que ela é, e
o que ela através do ser mulher pode trazer para a transformação da realidade em
que vive. E, através de uma educação de qualidade e uma busca ao acesso desta
educação, ela mostra que quer criar dentro de si uma esperança que talvez tivesse
sido apagada e, desta maneira, ser caracterizada como mulher, mãe, trabalhadora,
cidadã. A educação
é concebida como uma prática social, uma atividade humana e histórica que se
define no conjunto das relações sociais, no embate dos grupos ou classes sociais,
sendo ela mesma forma específica de relação social. O sujeito dos processos
educativos aqui é o homem e suas múltiplas e históricas necessidades (materiais,
biológicas, psíquicas, afetivas, estéticas, lúdicas). (FRIGOTTO, 1996:31)
Sabe-se que às mulheres foram impostas a condição de submissa, de dona de casa, onde
essa era a sua única tarefa. A educação era algo distante e elas eram em sua maioria
iletradas e não possuíam direito algum. Mesmo enfrentando momentos de crises, elas
tiveram incentivo para poder disputar palmo a palmo o sagrado espaço na sociedade e no
mercado de trabalho junto aos homens, transpondo barreiras estabelecidas por uma
sociedade eminentemente capitalista e machista. E com todo processo, venceram os
obstáculos da credibilidade, da capacidade, da discriminação, dos baixos salários.
Penso, assim, que a mulher deve assumir uma postura de ser humano e exercer a sua
atividade de acordo com o que entende ser sua situação social ou grau de intelectualidade.
E mesmo tendo um fraco grau de intelectualidade, não deve permitir o desrespeito e a sua
desvalorização.
Com isso, as mulheres entram em cena desconstruindo a idéia de gênero, pois elas tomam
consciência de que é preciso romper com a ideologia machista que justifica o domínio
masculino sobre a sociedade e sobre as próprias mulheres.
Tendo em vista estes fatores elencados vemos que a educação abre caminhos e
oportunidades para a mulher ter seu espaço reconhecido na sociedade. No programa Brasil
Alfabetizado fica claro, através das pesquisas, que o número de mulheres na busca pela
aprendizagem é maior que a dos homens, e isto, de fato, demonstra que a idéia de gênero
deve ser reconhecida de maneira igual para todas as pessoas.
REFERÊNCIAS
ABRAMOWICZ, Anete. A menina repetente. Campinas, SP: Papirus, 1995.
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Abril/Caras, s.d.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 1996.
LOURO, Guacira. “A emergência do gênero” e “A construção escolar das diferenças”. In: gênero,
sexualidade, educação; Petrópolis, RJ: Vozes; 1997.
MACHADO DE ASSIS, “Comentários da Semana”, 21/11/1861.
SANTOS, Selma dos. Mulheres velhas em folha: memória e legado etnopedagógico de idosas
sobre plantas medicinais. 2003. 242 f. Dissertação (Mestrado) – Université Du Québec,
Chicoutimi, 2003.
O GÊNERO TEXTUAL POESIA NA SALA DE AULA DA EDUCAÇÃO
INFANTIL
Ester Maria de Figueiredo Souza (UESB) 33
POESIA E ESCOLA
O texto poético na sala de aula tem sido objeto de reflexões no campo dos estudos da
leitura literária na escola e seus métodos de ensino e, também, em relação à formação de
valores subjacentes ao processo de leitura. O texto literário poesia a leitura mais lúdica e
sonora apresentada aos estudantes da educação infantil e do ensino fundamental. Poesia é
brinquedo de criança, já acenava Bordini (1986). A sonoridade de rimas e imagens que se
formam despertam no leitor processos interativos com a linguagem, transformando os
versos e estrofes do texto poético em objeto de recriação da inventividade humana. O
arranjo de elementos sonoros pelas rimas e a própria disposição do texto poético na página
despertam a curiosidade infantil, traduzindo leveza e a poeticidade do material
escrito,transmutando-se em gênero textual poesia.
O trabalho com a leitura na escola tem se ampliado a partir das contribuições dos estudos
sobre os gêneros textuais. Abdicando-se da classificação tradicional de textos em
narrativos, descritivos e argumentativos, a prática docente vem incorporando a
compreensão de que um único texto pode se revelar em distintos gêneros textuais, a
depender do suporte no qual se vincula e da situação comunicativa na qual se realiza,
enriquecendo a aula de leitura e produção textual.
Entende-se por gênero textual realizações de formas e modos de linguagem que circulam
na sociedade. Os gêneros podem ser mais formais ou informais, contanto que cumpram
uma função sócio-comunicativa. Os gêneros textuais organizam a forma da língua nas suas
inúmeras realizações. Assim, quando se utiliza de um texto poético na escola, organiza-se a
sua exploração circunstanciada pelas condições de produção discursiva. Distingue-se,
desse modo, tipos textuais de gêneros textuais, conforme Marcuschi, apud
Dionísio
(2003).
A poesia é familiar a todas as crianças. É comum nos recreios das escolas, dirigirem-se aos
colegas inventando apelidos e rimas, como: Mariana,cara de banana, Rafae,l cadê meu
33
Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – [email protected]
pastel? As crianças rimam apenas pelo prazer de sentir o som, de concretizar a existência
sonora da palavra em rimas e versos. Elas reagem espontaneamente ao jogo de palavras.
São desafiadas com as imagens dos livros de literatura infantil, com os trava-línguas, com
as cantigas de roda etc, a exporem a sua verve poética, peculiar do mundo infantil.
Ainda Bordini (1986 p. 11) tece suas considerações sobre literatura infantil, afirmando
que:
O adjetivo infantil, acrescentado à poesia, portanto, é central para a discussão do
assunto, de vez que, ao postular esse Gênero literário como arte para um público
determinado, os estereótipos referentes a esse público retornam por efeito de
ricochete sobre o comportamento da produção poética, podendo privá-la de sua
especificidade artística. Impensável sem a criança como destinatário, a poesia
infantil precisa, apesar do paradoxo, esquecer-se de seu alvo para poder agenciar
o efeito poético que deverá provocar, caso não deseje trair um público confiante
e incapaz de defender-se de contrafações. (BORDINI, 1986. p.11.)
O texto poético objeto de ensino nas escolas, reconhecido como importante para a
formação do leitor, é muito questionado quanto aos seus métodos e concepções..De qual
transposição didática deve se apropriar o professor para não anular/matar a essência
poética
do
texto
apresentado
para
o
aluno,transformado
em
material
de
ensino?Apresentam-se sugestões de atividades de ensino, considerando-se a exploração da
sonoridade da poesia, a expressão de cotidianidade presente nos textos do mundo infantil e
a ludicidade como o jogo de palavras. Defende-se que esses três aspectos devam ser
considerados pelo professor, quando do planejamento com o gênero textual poesia na sala
de aula.
Afirma-se que a escola é um espaço educativo, provocativo de novas aprendizagens. Nessa
compreensão, os professores não podem se esquivar de criar situações de aprendizagens
com os seus alunos, mediando-as com a exploração do texto poético. A multiplicidade e
riqueza da poesia, no dizer de Jakobson (1982, p.130) define-se na expressão de
poeticidade. O gênero poesia infantil é denso dessa expressão de poeticidade. São as rimas,
a repetição de sílabas e letras, a disposição gráfica de palavras, verso se até mesmo
estrofes, em planos dispersos ou seqüenciais na página, são os refrões que encadeiam
ritmos e tempos e, ainda, personagens adjetivados que só existem no plano imaginário que
possibilitam ao leitor infantil o encontro com a leitura na sala de aula.
A escola é um tempo de infância e deve proporcionar aos seus infantes o encontro com a
poesia infantil. Muitos alunos, provenientes de classes populares, só terão o espaço da
escola para interagir com o mundo poético da literatura infantil. O trabalho com o texto
poético na sala de aula é um resgate da subjetividade e da imaginação da criança.
Carlos Drummond de Andrade perguntou, ainda, na década de 70
por que motivo as crianças são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo? Será a
poesia um estado de infância relacionado com a necessidade do jogo, a ausência
do conhecimento livresco, a despreocupação com os mandamentos práticos do
viver – estado de pureza da mente, em suma? Acho que é um pouco de tudo
isso, e mais do que isso, pois lá encontra expressão cândida na meninice, pode
expandir-se pelo tempo afora, conciliada com a experiência o senso crítico, a
consciência estética dos que compõem ou absorvem poesia. (ANDRADE,
1974.)
Parte-se para a apresentação de práticas de leitura do texto poesia infantil na sala de aula,
com a apresentação de procedimentos metodológicos para a sua exploração, observando-se
os aspectos destacados, a serem observados quando do planejamento didático.
PRÁTICA 1
Leitura e expressão verbal da poesia infantil como texto e como música
Essa proposta didática recupera a sonoridade do texto poético com a canção e com onomatopéias.
Seleção da poesia Os carneirinhos de Cecília Meireles.
Procedimentos didáticos.
a) Ouvir a música.
b) Cantar a música com os alunos.
c) Imitar fragmentos da música.
d) Distribuir com os alunos objetos macios como: algodão, metalassê, espumas para exploração
táctil.
e) Desenhar imagens poéticas do texto: margem do rio, estrelas da manhã, estrelas da noite,
carneirinhos.
f) Narrar hábitos de dormir com os alunos: Quem já contou carneirinhos antes de domir?
g) Ler o poema.
h) Cantar o poema.
PRÁTICA 2
Produção textual, com ilustração de palavras.
Essa atividade detém-se em apresentar a multiplicidade poética das palavras e a sua
expressão de cotidianidade presente nos textos com o mundo infantil.
Procedimentos didáticos
a) Criação de lista de palavras pelos alunos.
b) Definição poética desses palavras.
c) Leitura das palavras e suas definições pelos alunos.
d) Catalogação das palavras em ordem alfabética.
e) Escrita das definições em folha avulsa
f) ustração das palavras pelos alunos.
g) Organização do dicionário poético da turma.
A escola não tem como papel formar poetas. A função formativa da escola se processa nos
planos do despertar para a leitura e da propriedade literária para análise de textos.Se, por
um lado, é consenso que à escola não compete esse compromisso, por outro lado é de sua
competência aproximar o texto poético do mundo do aluno. Para tanto, faz-se necessário
que o professor seja um leitor de poesias, sensível ao mundo mágico das palavras.
Enriquecer o universo da sala de aula com o texto poético e possibilitar aos alunos o
encontro com novas formas de linguagem, representadas pelo universo de poeticidade das
personagens e imagens do texto.
Na escola, alunos e professores interagem com a linguagem. Cabe ao professor, nas classes
de educação infantil, provocar a afetividade com as crianças e das crianças entre si,
iniciando-as no mundo da poesia infantil. Deve-se atentar para o perfil do educador
infantil, pois cabe a ele o papel preponderante de desencadear o prazer de ler e a
conseqüente formação do leitor. Para isso os profissionais precisam ser sensíveis ao texto
poético, possibilitar a expressividade da criança, permitindo a exploração do texto poético
de diferentes modos e expressão. Professor e aluno seguem, assim, nos seus percursos de
constituição do ser poético na escola. Encontra-se na escola múltiplas práticas
pedagógicas. No que concerne ao trabalho com o texto poético, ainda persistem
professores que desconsideram a poesia, privilegiando o ensino conteudístico e
metalingüístico. Alguns afirmam que estão na escola para ensinar os conteúdos. Há de se
considerar, a necessidade de formação docente para o trabalho com a poesia infantil e a
própria formação, no professor, da dimensão de sujeito leitor. Professores que adotam essa
postura didática estão longe de despertar a educação do ser poético na escola. A poesia é
também conteúdo, mas não se reduz a isso. Observar a disposição do texto, compreender o
tema, revelar as suas partes em estrofes, versos, título, autor são aspectos que se extraem
do texto poético. O aluno formalmente capta essa percepção. Sensorialmente, o professor,
criando estratégias de leituras, fortalece o vínculo afetivo com a proposição de variadas
experiências com a linguagem.
Na infância, na sua cultura doméstica, mesmo antes da entrada da criança na instituição
escolar, o texto poético tem sido oralizado entre adultos e crianças. Recuperam-se das
parlendas, dos trava-línguas expressões de sonoridade e rimas, ludicidade e jogo de
palavras. A mãe recita versos, a avó ou tia canta cantigas de ninar, a TV expõe seqüências
de imagens que alguns pesquisadores atestam como a morte da imaginação. De qualquer
sorte, o texto poético sobrevive e reinventa-se na escola. Essa reinvenção deve ser
precedida da necessária reflexão sobre os seus processos e métodos de ensino. Abdicar do
uso do texto poético para exploração de significados de palavras, de reconhecimento de
sílabas e outros exercícios didáticos deve ser a primeira atitude que o professor deve se
apropriar, quando de sua proposição de trabalho com a poesia na escola. O texto poético
não é ajuste de contas de aprendizagens. É matéria viva. As práticas apresentadas deverão
se compreendidas nessa dimensão. A pedagogia do ensino da poesia pode se assentar na
lição filial de Oswald de Andrade: aprendi com meu filho de 10 anos que a poesia é a
descoberta das coisas que nunca vi.
REFERÊNCIAS
BORDINI, M. da G. Poesia Infantil. São Paulo: Ed. Ática, 1986.
ANDRADE, Carlos Drummond de. A educação do ser poético. Suplemento Pedagógico nº 34, do
jornal Minas Gerais: Belo Horizonte, outubro de 1974.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros Textuais; definição e funcionalidade. apud Dionísio, A. P. Gênero
Textuais e ensino.Rio de Janeiro: Ed. Lucerna, 2003.
III - LEITURA, LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS
ENTRE A LITERATURA E A HISTÓRIA: IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
EM CASCALHO, DE HERBERTO SALES
Adriana Silva Teles Boudoux
*
Há muitas maneiras de ver a realidade numa obra de
arte. E uma delas é ver a realidade através da fantasia.
(Herberto Sales)
Cascalho é o primeiro romance da carreira literária de Herberto Sales. Publicado pela
primeira vez em 1944 e reescrito em 1951, o romance tem como temática a sociedade e a
cultura das Lavras Diamantinas das primeiras décadas do século XX. Trata-se do espaço
que corresponde à parte da Chapada Diamantina constituída pelos municípios de Mucugê,
Andaraí, Palmeiras e Lençóis e que ganhou existência histórica e geográfica no discurso
oficial e no imaginário popular, a partir da descoberta e exploração de diamantes em
meados do século XIX.
No romance em questão, as Lavras são representadas a partir da cidade de Andaraí, terra
natal do escritor, através de uma seleção de fatos e imagens, nos quais se destacam a
paisagem, o cotidiano, a mentalidade, a diversidade social, as relações econômicas, sociais
e políticas e a apropriação de termos e expressões populares locais. Como definiu o próprio
escritor, trata-se de um livro garimpeiro, visto que o garimpo e tudo que o envolve são o
cerne da narrativa. Garimpeiro de palavras e imagens, Sales expõe a história de homens e
mulheres, cujas vidas foram marcadas, de um lado, pelo sonho da riqueza fácil e, de outro,
por uma realidade marcada pela miséria social e pela degradação humana.
Em Cascalho, é possível perscrutar sensibilidades, pensamentos, dizeres e situações que
caracterizam personagens e práticas delineadoras de uma identidade regional atribuída ao
universo sócio-cultural representado. Todavia, como assevera Hall (2000), as identidades
são multiplamente construídas por meio de discursos, práticas e posições, estando
relacionadas com a história, com a cultura e com a linguagem. Ou, como afirma Santos
(1996), as identidades não são fixas nem imutáveis, mas resultados plurais e transitórios de
processos de identificações em curso. Assim, é preciso levar em consideração a
participação da literatura na construção da identidade regional das Lavras Diamantinas,
visto que muitos são os romances que se debruçam sobre esta temática. Neste trabalho,
*
Mestre em Literatura e Diversidade Cultural, UEFS.
será dada atenção especial ao romance de Herberto Sales e às relações entre a literatura e a
história no processo de construção identitária nele representado.
A narrativa se divide em quatro partes interdependentes, que traçam as peculiaridades
culturais que, na perspectiva do autor, dão os contornos de um espaço e um tempo
específicos. Cruzando o tema e a linguagem, a literatura e a história, o real e o imaginário,
Herberto Sales rasura as versões que identificavam as Lavras Diamantinas como uma terra
prometida, de farturas e riquezas fáceis, atribuindo uma outra identidade à região. Em
Cascalho, as Lavras são representadas como um espaço permeado por tensões sociais e
humanas. Ao lado dos sonhos e das esperanças dos personagens, destacam-se a aventura, o
medo, a desconfiança, a exploração do trabalho, a pobreza e a morte. Seus personagens são
representativos dos diversos extratos sociais que compõem a sociedade: garimpeiros ricos
e pobres, retirantes da seca, criminosos, prostitutas, negros e estrangeiros. Enfim, homens e
mulheres de origens sociais e culturais diversas integram uma cultura multifacetada e
intrinsecamente ligada ao garimpo de diamantes.
Trata-se de um olhar produzido por meio das memórias do escritor, filtradas por meio do
diálogo com as concepções da história disseminadas pelo pensamento social e literário em
curso nos anos de 1930 e 1940, momento em que o Brasil passava por um processo de
redescoberta sob as lentes de seus intelectuais. De acordo com Sandra Jatahy Pesavento
(1998), realizava-se uma “redescoberta do Brasil”, na qual “a palavra de ordem era ir em
busca de um outro país que se ocultava por trás das aparências” (p. 31). A emergência de
setores urbanos e a consolidação de grupos detentores do capital industrial abalaram a
hegemonia dos grupos agroexportadores, explicitando a complexidade e as contradições da
sociedade brasileira. Concomitantemente, suscitaram o debate acerca da necessidade de
uma releitura do Brasil e da identidade nacional. Segundo Pesavento, “a releitura do Brasil
inspirava-se na diversidade, na multiplicidade, nos contrastes entre o moderno e o arcaico e
o rural e o urbano [...]” (Idem, p. 31). Partindo de abordagens distintas, intelectuais como
Caio Prado Jr., Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, conforme a estudiosa, se
voltaram para o conhecimento da “realidade brasileira”, dos obstáculos ao seu
desenvolvimento e dos meios para vencer o atraso.
No campo literário, a “redescoberta do Brasil” teve expressão numa geração de escritores
que se dedicaram, por meio da ficção, a apontar as disparidades, os conflitos sociais e a
multiplicidade cultural do país, destacando-se romancistas como Graciliano Ramos, José
Lins do Rego, Jorge Amado, entre outros. Tais romancistas apontaram a diversidade sócio-
cultural, opondo-se aos discursos que, desde o século XIX, sustentavam a defesa de uma
identidade brasileira homogênea.
Em compasso com estes escritores que transformaram a maneira de ver, sentir, pensar e
dizer a sociedade e a cultura brasileira, Herberto Sales se voltou para o que ele chamou de
“país dos garimpos”. O uso dessa expressão em Cascalho revela a preocupação do escritor
em traçar as peculiaridades de um espaço diversificado dentro do Brasil, processo no qual
entrecruza literatura e história. Assim a relação entre estas duas formas narrativas é
imprescindível para a compreensão do tema em análise.
Ao longo do tempo, a literatura e a história estabeleceram relações de aproximação e
distanciamento. De acordo com Raymond Williams (1979), no século XVIII, o uso do
termo literatura incluía nesta categoria todas as produções escritas, filosóficas, históricas,
poéticas, ensaísticas e etc. No século XIX, o movimento de constituição da história como
ciência contribuiu para a separação entre as duas narrativas, como demonstra José Carlos
Reis (2000). Nas trilhas do positivismo, a história começa a se configurar como um campo
distinto da literatura, passando a ser considerada como um conhecimento objetivo dos fatos
passados, possível pela pesquisa em documentos oficiais. Tal oposição se manteve até a
primeira metade do século XX, visto que mesmo com as mudanças realizadas a partir de
1929 pelo movimento dos Analles na França, introduzindo novas abordagens, novos
problemas e ampliando a noção de documento, os historiadores permaneceram presos a
uma visão cientificista da história.
Entretanto, a crise dos paradigmas nas últimas décadas do século XX, dos grandes modelos
de análise e apreensão da realidade que marcaram o pensamento ocidental, desde o século
XIX, levou ao questionamento da objetividade do conhecimento, resultando na
reaproximação da literatura e da história. Historiadores como Paul Veyne (1982), Peter
Gay (1990) e Hayden Whithe (1992), com suas especificidades, identificaram, em suas
análises, a presença de elementos literários nas obras de alguns historiadores do século
XIX, aproximando as duas formas de narrativa.
No campo dos estudos literários, o tema se tornou objeto de reflexão de teóricos como Luiz
Costa Lima (1989), o qual argumenta que aproximação não significa identificação. Para
Lima, história e literatura se assemelham pelo fato de serem construções discursivas,
distinguindo-se pela maneira como se relacionam com o mundo. A diferença residiria no
fato de que o historiador organiza os fragmentos do passado a partir da interpretação dos
documentos, enquanto o ficcionista estaria isento desta exigência. Desse modo, segundo o
estudioso, a distinção não estaria no caráter de verdade atribuído à história e a dimensão
imaginativa atribuída à literatura, uma vez que, na medida em que o ato de fingir, inerente
à segunda, remete ao mundo, interliga-o ao imaginário, ultrapassando os limites de um e
do outro.
No terreno dos historiadores, destacam-se as reflexões de estudiosos da abordagem da
história cultural, como Roger Chartier (1988). Segundo ele, a história é uma representação
do real, ou seja, uma forma de percepção do mundo social que produz estratégias e práticas
ligadas aos interesses daqueles que a constrói. Tal perspectiva aproxima a história da
literatura, rompendo com a oposição entre a objetividade do real e a subjetividade das
representações. Como representações, ambas devem ser vistas não apenas como produtos,
mas como produtoras de realidade, visto que constroem sentidos e dão significados ao
mundo.
Como se pode perceber, não há significados fixos e absolutos para a literatura e para a
história, possuindo, as duas, traços de aproximação e distanciamentos. O próprio Herberto
Sales (1964) concebia o romance como a história do homem como ser social e humano,
chegando a afirmar que “a história do mundo é contada mais pelos ficcionistas do que
pelos historiadores” (SALES, 1988, p. 22).
Aqui, literatura e história são concebidas como representações sociais, segundo a definição
de Chartier, acima mencionada. Enquanto representações, as duas formas narrativas são
elaboradas a partir de caminhos e princípios diferentes, por sujeitos sociais que “descrevem
a realidade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse” (p. 19).
Em Cascalho, literatura e história se relacionam na medida em que o romance se configura
como
representação
sobre
um
espaço
sócio-cultural,
as
Lavras
Diamantinas,
transformando-se a própria história deste lugar em objeto de representação. As relações são
também intertextuais, pois que a história é plural, apresentando múltiplas interpretações.
Nas representações identitárias construídas por Herberto Sales evidencia-se o diálogo com
as concepções da história propagadas pelo pensamento social das décadas de 1930 e 1940.
Sobre a relação existente entre a literatura e as Ciências Sociais nesse período, Flora
Sussekind (1984) ressalta a permanência do “naturalismo” no Romance de 30. Segundo a
estudiosa, em fins do século XIX, a estética naturalista, sob a influência das ciências
naturais, assentava-se nas concepções fisiológicas dos indivíduos e das sociedades. A
literatura dos anos de 1930, conforme Sussekind, ao se dedicar à descrição da realidade,
teria preservado traços do naturalismo, de um lado, mantendo a continuidade no plano
estético, de outro, realizando uma ruptura no plano ideológico. As explicações patológicas
deram lugar às explicações econômicas e sociais em sintonia com um dos caminhos
interpretativos abertos no campo das Ciências Sociais pelo teórico marxista Caio Prado Jr.,
o qual fundamentava-se no materialismo para explicar os problemas da realidade brasileira.
Para Flora Sussekind, a economia política freqüentou o “romance de 30” pela adoção dos
ciclos que são apropriados pela literatura. É o que se percebe, por exemplo, nas obras de
Jorge Amado e José Lins do Rego, nas quais se destacam a sociedade que se organiza em
torno da exploração de um fruto da terra, o cacau e a cana de açúcar, respectivamente.
No caso de Herberto Sales, o foco corresponde à realidade econômica e social
diamantífera. Além da representação dos hábitos, das práticas cotidianas e da mentalidade,
há em Cascalho a preocupação com as relações econômicas, sociais e políticas. Nesse
processo, o passado é tomado como referencial para o entendimento do presente, como
pode ser percebido através das vozes do narrador e dos personagens:
É a serra de maior tradição e de riqueza das Lavras. Quanto ao rio propriamente
dito, embora já muito trabalhado na grupiara das margens e em todos os serviços
de leito por volta daquele ano, continuava a desfrutar a mesma fama do tempo do
Cel. Joca de Carvalho, seu primeiro explorador. Os garimpeiros afirmavam:
– O Paraguaçu ainda tem serviço para cem anos.
Sua atual produção diamantífera, no entanto, estava longe de ser aquela que
caracterizara os anos das primeiras descobertas. Em outros tempos, não só pela
abundância de diamantes, como também pela facilidade de exploração dos
garimpos, adquirira todo o vale o prestígio de uma Terra Prometida. Na época do
Cel. Germano, porém, já não ocorriam casos de garimpeiros que encontravam
diamantes agarrados às raízes dos pés de canela-d’ema, ao arrancá-los para
acender fogo em suas tocas”. (SALES, 1975,p. 14)
Na passagem citada, é possível identificar uma dupla temporalidade: a das primeiras
explorações, caracterizada pela grande quantidade de diamantes facilmente encontrados, e
uma outra, posterior, marcada pelo esgotamento do diamante superficial. A ruptura entre as
duas temporalidades seria resultado da apropriação dos garimpos.
No tempo das primeiras descobertas esses garimpos não conheciam dono. O
povo trabalhava à vontade, nos cateamentos e nos serviços de mergulho, mas
logo veio o Cel. Joça de Carvalho com os seus Títulos de Terras e Minas, com os
seus registros de lotes reconhecidos pelo Governo, e estabeleceu o domínio
particular sobre o vale. (Idem, p. 18)
O processo de apropriação dos garimpos, representado pela fala do narrador, é um dos
traços que separam um passado remoto e curto, quando os garimpos não tinham donos, e
um outro, quando a propriedade privada já se encontra estabelecida, iniciando-se a fase de
exploração social do trabalho.
Em compasso com o clima de reflexão em curso, Herberto Sales apreende a “realidade”
histórica das Lavras, enfatizando a permanência, na primeira metade do século XX, de
traços do sistema de exploração colonial, como pode ser percebido nas falas de dois
personagens, o promotor, Dr. Oscar, e o telegrafista Nascimento, ambos funcionários
públicos. Recém chegado a Andaraí e em início de carreira, o primeiro se vê dominado por
sentimentos mistos de desânimo e de inconformismo, devido à impotência frente ao desejo
de fazer justiça à desordem, à criminalidade e à fusão entre o poder público e o poder
privado e despótico dos chefes políticos locais, representados pela figura do coronel
Germano. Trabalhando e vivendo na cidade há seis anos, o segundo mantém um olhar
crítico sobre a situação local afirmando: “– O Brasil para todos os efeitos continua a ser
uma colônia, esta é que é a verdade” ( Idem, p. 189). A voz do personagem nega o caráter
de nação economicamente independente do país. A relação entre a economia
local/brasileira e o capital internacional é denunciada de forma mais contundente na cartatexto que o promotor escreve ao procurador, explicitando os motivos pelos quais deseja
mudar para outra comarca.
Você precisa ver como funciona essa máquina de rapinagem e trapaça que é o
comércio de pedras preciosas!” – escreveu. E foi explicando: “Ao contrário dos
pequenos fornecedores, cujo objetivo imediato é a compra preferencial do
diamante extraído, os mosquitadores têm ação mais ampla, que não se limita às
garimpagens levadas a efeito com a manutenção de meias-praças, de vez que se
amplia nas atividades comerciais do ramo. Independentemente do fornecimento,
que é um sistema de ordem geral, auxiliam eles indiferentemente os garimpeiros
que eventualmente trabalhem por conta própria, abrindo-lhes crédito nas suas
pequenas casas de negócio, mantidas para tal fim, e obtendo, por esse meio, a
preferência sobre os diamantes que venham a ser encontrados. Sabe-se que, salvo
quando é, ao mesmo tempo, proprietário de terrenos diamantíferos, o
capangueiro, só muito raramente auxilia um garimpeiro que se ache em
dificuldade por estar trabalhando sem fornecimento. Tira então o mosquitador o
máximo partido dessa situação. É comum, nos dias de feira, verem-se seus
pequenos estabelecimentos comerciais cheios de garimpeiros – meias-praças ou
não de seu proprietários – e em todos eles, a mesma aparências de prodigalidade
e fartura. Aos sábados, o mosquitador vai atalhar os garimpeiros nas pontas de
rua [...] Na sua função intermediária, os mosquitadores exigem do garimpeiro
uma recompensa que consiste na troca do diamante por ele trazido, em troca da
ajuda que lhe deram um dia para completar o saco – a fim de matar-lhe a fome.
Enquanto isso, o capangueiro procura eliminar a seu modo essa concorrência,
transformando em seu agente o mosquitador que revele maior capacidade de
produção. Isto lhe permite explorar, indiretamente, sem se expor ao risco de
empreender garimpagens de resultados imprevisíveis, o núcleo dos garimpeiros
que cada mosquitador, transformado em agente passa a representar. Ora, o
agente recebe do gapangueiro, com o capital para a compra de diamantes e
carbonatos, uma tabela de preços de acordo com a qual deve operar. Aceita a
proposta, na ilusão de aumentar o volume de seus negócios, o msoquitador
assume o compromisso de vender, com excluisividade, ao capangueiro de quem
se tornou agente, tudo o que produzir durante a semana – comprado aos seus
meias-praças, ou não. O ‘emprétimo’ é feito com a usura de uma sociedade a
tantos por cento nos lucros. Mas, que lucros? Comprando pela tabela fornecida, o
agente só faz escravizar-se aos preços estabelecidos pelos capangueiros,
sujeitando-se, ainda por cima, ao arbítrio do sócio capitalista nos ajustes de
contas. [...] A única vantagem dos mosquitadores reside na transação direta com
os garimpeiros, que lhes proporciona lucros capazes de fazer face aos prejuízos
forçados na classificação final do capangueiro. O garimpeiro, em resumo, é
quem paga o pato! [...] Por outro lado, há entre os capangueiros os privilegiados,
que mantêm negócios diretamente com as firmas estrangeiras monopolistas.
Com elas se reproduz, embora em outras proporções e com outras variantes, o
mesmo caso dos mosquitadores transformados em agentes. Por esse motivo,
orientados pela tabela especial que lhes é fornecida pela firma estrangeira com
quem negociam, também forçam à margem dela seus preços indivisuais, e até
mesmo desastrosas baixas no mercado. [...] Trata-se de uma máquina de
rapinagem e trapaça, a serviço da malta de aproveitadores que vivem passando
para trás uns aos outros, roubalheira organizada”. (Idem, p. 241-243)
Com esta carta escrita pelo personagem, Sales expõe um sistema econômico assentado na
desigualdade resultante da relação de exploração entre trustes internacionais e
capangueiros, capangueiros e mosquitadores, mosquitadores e garimpeiros, estes, situados
no último patamar da cadeia social.
Em Cascalho, a idéia de região remete ao que é peculiar, porém sem negar a relação entre
as partes e o todo. As Lavras são vistas em sua singularidade, mas também em relação à
organização econômica e social brasileira e internacional, sob a perspectiva do escritor,
destacando-se as rupturas e permanências, a multiplicidade e a unidade.
Conforme demonstrado, a literatura se cruza com a história, remetendo a um mundo,
atribuindo-lhe sentidos e significados, enfim construindo identidades que, muitas vezes,
são vistas como reais, sobretudo quando o texto se faz acompanhar por outros do autor ou
da crítica que reforçam o seu estatuto de veracidade, como ocorre com Cascalho. O
próprio Herberto Sales sempre fez questão de deixar claro que muitos dos seus
personagens realmente existiram e que vivenciara muitos fatos narrados:
Em Cascalho muitos personagens foram tirados da vida real. Eu não teria
bastante imaginação para batizar uma personagem com o nome de Maria Cagana-telha. Nem com o nome de Licurgo Bunda-boa. Foram pessoas que conheci e
com as quais convivi. Entraram para o romance com seus apelidos pitorescos.
(SALES, 1988, p. 90).
Tal perspectiva foi também adotada pela maior parte dos críticos ao classificar o romance
como uma obra realista, como se observa na leitura de Ívia Alves (1979), para quem “o
autor apenas retrata a situação tal como ela existe” (p. 11).
De qualquer forma, situando-se ou não na esfera do acontecido, a narrativa literária, como
acentua Sandra Jatahy Pesavento (2006), possibilita-nos o acesso às sensibilidades
passadas, aos modos de ver, pensar e agir de outras temporalidades. Eis a sua dimensão
histórica. Como representação, Cascalho expressa significativamente esta dimensão do
texto literário, entrecruzando o real e o imaginário. Nele, a ficção e a vida interagem
reciprocamente, transformando-se o mundo em texto e o texto em mundo.
Referências Bibliográficas
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HAAL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu et al. (org.).
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
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WITHE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica no século XIX. São Paulo:
EDUSP, 1992.
A UTOPIA E IDENTIDADE EM VILA REAL, DE JOÃO UBALDO RIBEIRO
Ana Elisa Parca de Pinho (UEFS)
Busco, neste ensaio, fazer uma leitura do romance Vila Real, de João Ubaldo Ribeiro,
publicado em 1979. Neste estudo, abordo alguns elementos relevantes para a discussão da
cultura sertaneja, tais como: a religiosidade, as relações com o trabalho e a terra, a
violência, dentre outros presentes na obra.
Nas palavras do próprio autor de Vila Real, João Ubaldo Ribeiro, pode-se perceber que
procura fazer uma literatura voltada para as suas raízes, independente, não colonizada,
“comprometida com a afirmação da identidade brasileira.” Isso pode ser visto através da
exploração da língua, do verbo brasileiro, que, segundo o autor, contribui para o
aguçamento da consciência de nós mesmos, brasileiros.
Segundo Silverman (1978, p.89), “é interessante notar que os seus livros pouco têm de
comum entre si, seja do ponto de vista da trama, do conteúdo ou da forma. Essa peculiar
ausência de afinidade origina uma gama estilística geralmente associada a produções
ficcionais mais extensas.”.
Já Massaud Moisés (2001, p.401) traz que
“João Ubaldo Ribeiro explora o regionalismo nordestino, sobretudo baiano, num
tom grave, quase trágico, próprio dos adeptos nordestinos do gênero, e num
estilo cuidado, plástico, permeável aos coloquialismos e aos torneios frásicos
locais, no encalço dum linguajar tipicamente brasileiro, que possa refletir a
nossa identidade psicológica e histórica, forjada na luta contra a tirania e
opressão...”.
Isso pode ser observado no romance Vila Real, no qual o autor também, assim como em
Viva o Povo Brasileiro, investe na questão da identidade, partindo da oposição entre dois
grupos, em que um nega ao outro o direito de existir, inclusive de se afirmar pela palavra.
O romance Vila Real, desde o começo, traz indícios de uma luta pela posse de terras
através das notícias da guerra em andamento dadas por Nicoto, bem como certa
superioridade de um grupo em detrimento do outro, uma vez que esse grupo superior toma
o poder, as riquezas e as representações da nação e de seu povo para seu próprio
beneficio. Isso gera a problemática central do homem nordestino: aquele que por força do
sistema de propriedade de terra é obrigado a andar sem destino de um lado para outro.
Observa-se, assim, que as tropas de Godofredo ameaçam os “sem – terra”, liderados pelo
guerreiro Argemiro:
As tropas de Godofredo vieram armadas até os dentes, com fuzis reverberantes
sob a luz do sol, facões de puro azeitado e afiliados ao ponto de navalha e
mais todo tipo de ferro e armamento que se pode carregar. Atrás, uns poucos
cavalgavam, em montarias pequenas e espantadiças, das crinas aparadas rente e
relinchos de orgulho. O mato ricocheteia seus assobios entre as árvores e o ar da
manhã está cheio de pressentimentos. (RIBEIRO, 1997, p. 14).
Os jagunços de Godofredo, apesar de serem em número reduzido, possuíam cavalos,
facilitando a operação de procura, por isso, perseguiram por três dias e três noites os
retirantes. Com efeito, homens e crianças não tinham paz na terra em que estavam, em
função dessa luta contra a Caravana Misteriosa, e por isso, ficavam como errantes, de um
lugar a outro. No prosseguimento da narrativa, observa-se que “a terra nessas horas se
abre para as minhocas que querem sair para tomar sol e as rachas no chão todas têm
finalidade”. A natureza, assim, anuncia que algo está para acontecer através da mudança
das ordens das coisas no imaginário popular: os passarinhos vêem tudo de maneira
assassina, pode haver bichos que entrem pelos ouvidos, debatendo-se nos embrulhos de
suas próprias asas.
Vila Real (1979), conforme aborda Cláudio Novaes (1998, p. 11-12) no seu texto Os
sertões em Vila Real, Deus e o Diabo na Terra do Sol & Na Quadrada das águas
perdidas, é “uma narrativa dos conflitos de terra no sertão brasileiro do passado e atual,
lido pelo viés da epopéia dramática e lírica, que ressalta o tom heróico das lutas e
reivindicações das classes populares com uma consciência política”. Isso porque a
narrativa representa os sertanejos amotinados que lutam para reconquistar as suas terras
tomadas pela indústria e protegidas pela já citada Caravana Misteriosa, uma milícia de
jagunços.
É importante ressaltar que o romance inicia com a epígrafe: “este é um conto militar”.
Para Cláudio Novaes, mesmo que na narrativa exista a semelhança do tema com o
problema social agrário brasileiro, pelo início do romance, o leitor já fica em alerta para o
caráter ficcional através do gênero literário conto. Apesar de ficcional, o discurso de poder
aqui observado é um anúncio de novas expressões políticas e de classes sociais no Brasil.
Ademais, ainda segundo Cláudio Novaes, Vila Real, assim como Deus e o diabo e Na
quadrada das águas é uma releitura do tema sertanejo, “tomando-o como problema social
e estético do Brasil; e nela o nacionalismo intelectual, a cultura popular, a religiosidade e a
violência sertaneja se ligam ao problema inacabado narrado na obra de Euclides da Cunha,
como se a Canudos do Antonio Conselheiro continuasse viva na memória coletiva
nacional”. Demonstra-se aí a inspiração da obra na história de Canudos.
Prosseguindo, também Cláudio Novaes traz que “essa continuidade não é pacífica, porque
as narrativas atuam sobre os dogmas que formam a identidade brasileira oficial e traem
valores enraizados na tradição”. Cita como exemplo dessa complexidade na obra o padre
Bartolomeu, ao justificar a possibilidade do uso das armas pelos sertanejos em luta pela
terra. Isso porque o padre, na leitura feita por Cláudio, faz um discurso sobre as
contradições da vida e da morte do/no sertanejo, pois o padre expõe que, “a espada não é
melhor do que a enxada, mas há quem não prefira o melhor e assim desrespeita esse
melhor”.
Além disso, é importante também explorar, segundo Novaes, o momento de publicação de
Vila Real:
“da anistia e retorno dos exilados pelo regime militar, retomando o problema do
latifúndio no Brasil, tema tragicamente calado com a implantação da censura e a
repressão às organizações sociais depois de 1968, como as ligas camponesas, que
retornam também no movimento dos sem-terra – MST, com a abertura e o fim da
repressão.”(NOVAES, 1998, p.47-48)
Isso explica a representação identitária do povo nordestino e sua luta pela sobrevivência; as
questões pela posse de terra, as relações com a terra e o trabalho na obra de João Ubaldo
Ribeiro.
Na segunda parte da narrativa, o narrador desse conto militar informa que, com a invasão
dos “novos donos da terra”, muitas mudanças ocorreriam. Os camponeses sem-terra se
vêem obrigados a enfrentar as forças de um poder hegemônico, que representa a
interrupção de uma nova ordem econômica. Assim, o narrador possui a consciência dos
acontecimentos, relatando ao leitor que os homens inimigos tinham vindo para ficar. Dessa
forma, observa-se que:
Antes de serem tangidos de Vila Real, a notícia já correra por todas as cidades,
vilas, povoados e ajuntamento de casas. Ninguém podia informar com precisão o
que ia acontecer, mas era certo que muitas mudanças estavam para ser feitas e a
face da terra não haveria de permanecer a mesma. Sabia-se de homens que, já
por muito tempo, saíam de dentro de aeroplanos e se enfurnavam pelos ocos da
serra como tatus, catando pedras e fazendo a terra explodir. Esses homens pouco
falavam com quem se aproximava e, quando falavam davam ordens em voz alta
e gutural. Muitos deles carregavam revólveres à cinta e logo se sentiu que tinham
vindo para ficar e que viam todas as terras como coisa sua e só havia o céu a
quem recorrer, mas o céu não fala e são grandes todas essas extensões, onde tudo
o que existe pode ser que não exista. (RIBEIRO, 1997, p.27)
Argemiro lembra no romance a época em que as primeiras colheitas começaram e “o
movimento da feira em Vila Real”. Observa-se, a partir daí, no discurso do narrador, os
projetos para uma riqueza mais rápida e segura do que as colheitas pouco desenvolvidas
dos sertanejos. Vila Real, em sua representação de espaço, conforme apregoa Rita Oliveira
Godet no seu texto: “Vila Real: Errance et Combat”, procura construir uma topografia
mimética do território geográfico” 34. Isso porque, segundo a autora, as referências aos
lugares
autênticos tornam verossímeis os lugares imaginários onde as ações se
desenrolam(OLIVIERI - GODET, 2005 p.102).
No romance, percebe-se que o espaço de Aratanha, pela sua descrição, se contrapõe com
uma imagem do Jardim do Édem, uma vez que conduz o povo sertanejo à luta e à morte:
Por todo o vale chamado de Aratanha, ecoou a grita dos homens em marcha
acelerada e sentiu o chão estrondejar sobre as solas de seus calçados. Secundino,
muito antes de morrer tinha explicado que era assim chamado o vale de
Aratanha talvez pela peçonha das cobras e aranhas que nele estão em toda a
parte. Talvez pelo ar esgarranchado e amarelo das encostas, pela terra endurecida
e crespa, que resiste à mão e ao ferro. Talvez pelas urtigas e cansanções que
cobrem o chão e infernam por traiçoeiros as vidas de quem vai trabalhar o
campo, pelos moscardos que zumbem em torno dos viventes, as varejeiras
prenhes de larvas, as motucas, talvez por tudo isso. E ainda esse rio cinzento
que lá passa, oferecendo uma água suja e fedida, que se chama de Rio Triste e
Feio, o rio do vale de nome Aratanha. Agora então, quando o estrépito dos
homens de Godofredo fazia sacudir as plantas e o ímpeto de sua onda vergava
o capim e o tornava em capacho, Aratanha passou a ser mais feio, todo ele
uma boca de onça escancarada e nada mais senão escuridão e morte.
(RIBEIRO, 1997, p.16)
Para Rita Olivieri, os topônimos existentes não podem passar despercebidos, tais como
Vila Real, Barriga da Mãe, Jurupema, Japiau, Aratanha porque têm um papel determinante
nos processos de caracterização do espaço (p.104) 35. Ou seja, esses topônimos propõem a
importância da cultura popular na construção das referências do mundo sertanejo. Em
relação a Aratanha, por exemplo, observa-se que possui um valor simbólico extremamente
negativo, porque condena o homem ao sofrimento e à morte pelos traços atribuídos ao
lugar. Por outro lado, em Barriga da Mãe, nota-se uma simbologia positiva, em função de
esse lugar estar associado à função de proteção temporária. Conforme ainda a autora, o
símbolo do retorno ao ventre materno manifesta o desejo de um povo que falta a proteção e
a ternura, desejo de escapar dos obstáculos que lhe são impostos por uma terra que os
expulsa e os devora.
34
Dans sa représentation de l`espace, Vila Real cherche à construire une ¨topographie mimétique¨ du
territoire géographique.
35
Dans Vila Real, lê role déterminant dês toponymes dans lê processus de caracterisation symbolique de l’
espace ne peut pás passer inapercu. Lês toponymes aident a construire lê lieu comme signe: Barriga da Mãe,
Vila Real ou dês nomes d’ origine tupi comme Jurupema, Japiau, et Aratanha.
Nota-se aí a nação sendo narrada de forma peculiar pela linguagem e pelos locais por onde
os sem-terras passam, traduzindo a cultura local sertaneja através dos homens combatentes
e a relação desse homem com a natureza, sendo também vista na obra. O crítico Homi K.
Bhaba no seu texto “Narrando a nação” demonstra a idéia de nação aproximada de
narrativa:
As origens das nações, assim como das narrativas, perdem-se nos mitos do
tempo e apenas na memória seus horizontes se realizam plenamente. Esta
imagem de nação - ou narração - pode parecer excessivamente metafórica,
mesmo desesperadamente romântica, mas é a partir das tradições do pensamento
político e da linguagem literária que a nação surge, no Ocidente como uma
poderosa idéia histórica. Idéia cuja compulsão cultural encontra-se na impossível
unidade de nação como força simbólica (BHABA, 1997, p.).
O autor Homi Bhabha retoma o pensamento de Benedict Anderson, em cuja obra
Comunidades Imaginadas expõe seu argumento de que
o nacionalismo “tem de ser
entendido não lado a lado com ideologias políticas, conscientemente mantidas, mas com
grandes sistemas culturais que o precederam e partir dos quais - bem como contra os quais
passou a existir.” Pode-se perceber que a nação constitui-se não apenas de organização
política, mas, se não principalmente de um sistema de significação cultural. Nesse
contexto, conforme as idéias ampliadas de Anderson por Homi Bhabha, os discursos
narrativos, as produções que expressam a nacionalidade possuem a característica de serem
transicionais, além de possuírem uma indeterminação conceitual e uma adequação
vocabular. João Ubaldo, no romance, convida desde o começo a adentrar-se e identificar-se
com os excluídos e privados da terra pela violência:
Naquela noite, Argemiro explicou aos que se juntaram à porta de sua casa
precisando entender o que acontecia que os comedores de pedra tinham armas e
podiam chamar qualquer força regular em sua ajuda, pois eram os donos
legítimos daquelas terras , como haviam mostrado ao padre, e mesmo que não
fossem. A maior parte dos ouvintes ficou surpresa ao saber que aqueles homens
comiam pedras, mas pelo menos assim se podia ver razão de ser na sua fala
estranha e na má disposição para com todas as pessoas.
[...] que não se entregariam à escravidão, a qual já parecera a alguns um caminho
em outros tempos, que, pois esta nem ao menos a comida garantia e a promessa
que fazia era de ainda mais desespero e agonia, sem direito nem mesmo à
palavra. (RIBEIRO, 1997, p. 30-31)
Já para outro crítico, Renan (1997), no seu texto “O que é uma nação”, a nação só seria
possível se existisse o esquecimento de tudo aquilo que destaca a diferença, bem como
haver coisas em comum entre seus indivíduos. Assim, o autor enuncia:
“O esquecimento diria até o erro histórico, são um fator essencial na criação de
uma nação, e é por isso que o progresso dos estudos históricos é muitas vezes um
perigo a nacionalidade. Na verdade, a investigação histórica traz de volta à luz
fatos de violência ocorridos na origem de todas as formações políticas, mesmo
aqueles cujas conseqüências tenham sido benéficas”. Além disso, também expõe
que “a essência de uma nação é que todos os indivíduos tenham muito em comum,
e também que todos tenham esquecido muitas coisas”(RENAN, 1997 p.).
Na obra Vila Real, os homens do sertão não esqueceriam as lutas, as mortes, como também
a traição de Casimiro, que delatou o esconderijo dos sem–terra para a Caravana Misteriosa,
o que causou a morte de várias pessoas do seu grupo, dentre estas o padre Benedito. O
ressentimento pela traição demonstra-se na fala do narrador, sendo que Casimiro passa da
condição de lutador para um pecador que trai o seu povo, assim como os pecadores
bíblicos:
Ai, Casimiro, tua alma é turva e o sujo se espelha nos seus olhos. Teus olhos são
de lodo e nenhuma luz rebrilha neles. Agora que o sereno deita sobre ti, como
sobre todas as outras coisas na terra, e não podes suportar tua própria presença,
tens pena de ti mesmo. Teu destino é não ter pouso, é perceber em cada face uma
suspeita, é ter medo das paredes e das árvores. Tua sina é uma assombração
eterna, entre as cabeças de teus companheiros fincadas em estacas e te encarando
sem raiva nem rancor e seus corpos degolados te fazendo companhia. Tua
música são os gemidos e tua comida o gosto amargo do sangue derramado por
tua culpa Casimiro. Teu coração de minhoca deixará um dia de bater (RIBEIRO,
1997, p. 40).
Todavia, segundo Rita Olivieri
“o enfrentamento entre o Brasil arcaico e o Brasil Moderno, temática da literatura
brasileira, é aqui evocado a partir da desestruturação de uma ordem econômica
fundamentalmente baseada em cima da cultura da terra, organizada em volta de
domínios agrários e de pequenas aglomerações rurais e de sua substituição por
uma nova ordem capitalista internacional” 36(OLIVIERI, 2005, p107).
Assim, para a autora, mais do que nunca, a opressão e o massacre, hoje em nome do direito
da propriedade, são ainda fatos da atualidade.
Ademais, a narrativa incorpora, no nível mesmo de linguagem, a tensão social e política de
um contexto particularmente opressor, conforme afirma a autora. O padre Bartolomeu, no
início da chegada dos exploradores, tranqüilizou os sertanejos, dialogando com estes e
demonstrando que “nada tinham a temer, pois falaria com os homens da Caravana
Misteriosa e eles pagariam aos que viessem ser prejudicados.”
Na obra, o padre Bartolomeu, pela sua tentativa de ajudar os sertanejos através do diálogo
com os homens da Caravana Misteriosa, representava uma voz coletiva desse povo lutador
36
L’ affrontement entre lê Brésil archaïque et lê Bresil moderne, thematique toujors dans da litterature
brésilienne, est ici evoque a partir de la destructuration d’ unordre économique fondamentalement base sul a
culture de la terre organisée autour de domaines agraires et de petites agglomérations rurales, et de son
remplacement par um nouvel ordre capitaliste internacional. Ainsi plus que jamais, l’oppression et lê
massacre, aujord’ui au nom du droit de la de la proprieté, sont encore de faits d’ actualité.
do sertão, através do seu discurso organizado pelo tema do político que reveste um diálogo
fundante na obra e as formas de pensar a própria cultura. Argemiro, ao tomar
conhecimento que as terras habitadas pelo seu povo tinham donos legais, sente-se
revoltado e impotente, porque havia uma hierarquia social e uma relação de força/poder
que não conseguiria lutar contra, senão pelo combate. Assim, vê-se na obra:
Argemiro achou-se tonto mais uma vez e de novo teve vergonha de si mesmo,
porque não sabia como chamar o homem de mentiroso e se via na falta de
palavras. Olhando para cima e respirando fundo, no entanto, pôde falar como se
tivesse decorado alguma coisa remota ensinada, uma voz de flauta lhe
assoprando nos ouvidos, faces de amigos e parentes, sorrisos no passado e , à
medida que falava , sentia o peito mais leve e o ar mais fácil de inspirar. Disse ao
homem que um papel não poderia dar a ninguém direito à terra , porque esta era
de quem chegava até a sentir seus cheiro à distância e com ela misturar-se, pelo
trato de todo dia. E nada o papel tem a ver com a terra (RIBEIRO, 1997, p. 36).
Nota-se que os homens da Caravana Misteriosa sentiam-se donos da terra e desejavam que
os reais donos do território (pelo trabalho e luta diária) se retirassem do local para “comer”
as pedras preciosas. Com efeito, o religioso é morto pelos homens ambiciosos de
Genebaldo, retratando o narrador a reflexão de Argemiro acerca dessa perda:
Quero dizer uma coisa: a morte é a vida e a vida é a morte. Quero que se
lembrem. Antes, o padre falou que o reino não é deste mundo. Agora eu falo que
não é deste nem daquele. Falo que o reino é onde se encontre a paz. A vida é a
morte e a morte é a vida. Vamos repetindo, a vida é a morte e a morte é a vida.
Portanto, disse Argemiro, não vamos distinguir. Cada homem tem o direito de
escolher a sua vida e, quando escolhe sua vida, está escolhendo a sua morte.
Cada homem tem o direito de escolher sua morte e, quando escolhe sua morte
está escolhendo sua vida. Quero que todos entendam. (RIBEIRO, 1997, p. 156)
Argemiro busca, assim, justificar a vontade de conquistar um espaço para viver em
liberdade através de exposição dos sacrifícios “por esta utopia, relacionando-os à própria
realidade da vida e da morte”, conforme assinala Cláudio no seu texto “Euclides da Cunha
e o sertão vai virar mar.” A subversão é vista pelo sentimento de justiça do personagem,
que busca a terra prometida através da luta.
É importante ressaltar que Afrânio Coutinho aduz acerca do regionalismo que “o espaço
simultaneamente geográfico e social, mas o espaço que facilitava a captação na posterior
coordenação de um quadro” (COUTINHO, 2002, p.273). Revela também que o
“regionalismo, aliás, em sua penetração literária, surge dessa necessidade em não
ultrapassar uma topografia. Fecha-se horizontalmente e vai adquirir na pintura o segredo
da reprodução, com fidelidade, embora ao artista pertença o direito de impor sua
personalidade, quer preferindo um estilo quer selecionando uma forma.”(COUTINHO,
2002, p.273).
No contexto da obra Vila Real, a realidade ficcional apresenta a migração sertaneja em
dispersão, ou seja, o espaço e o tempo são desterritorializados pelo estranhamento dos
personagens, do narrador e do leitor, que assimilam o tema do naturalismo tradicional num
outro viés, problematizando o conceito de Afrânio Coutinho, conforme assinala Cláudio
Novaes.
Em Vila Real, apesar de ser expulso do território e ter que entrar em combate contra os
jagunços inimigos, o povo sertanejo possuía suas crenças religiosas para dar
prosseguimento na luta pela sobrevivência através da fé, que traria tanto o sentimento
sagrado, quanto a disposição para lutar. Pode-se perceber em várias passagens esse
elemento religioso no povo sofredor, que celebra Deus em todas as suas atividades. O povo
liderado por Argemiro não temia a morte, mas recuar frente ao combate com os inimigos
invasores da “Barriga da “Mãe”:
Minha Nossa Senhora, quero que vos lembreis de quanto rezei na igreja, olhando
a vossa imagem. Quero crer que meus pecados vosso Filho lhe escondeu, pois
maneja o véu do esquecimento e da misericórdia. Pois sendo a Senhora a mãe
que sofre. Pois nascendo flores por onde passam vossos pés, pois se perfumando
os ares na vossa passagem, pois se adoçando a alma de quem recebe o vosso
olhar. Salve - Rainha, mãe de misericórdia. Ponha mais fé, mais fé, mais fogo na
foqueira desta fé, mais desespero. Morrer não é o pior que pode acontecer, a pior
sina é a vergonha e a cabeça baixa. (RIBEIRO, 1997, p. 79)
Benedict Anderson (1989), no seu texto “Nação e Consciência Nacional”, a respeito da
idéia de nação, dando prioridade à seqüência e substituição da linguagem secular da
religião, afirma ser esta “uma transformação secular da fatalidade em continuidade, da
contingência em significado.” Em Vila Real, a situação das personagens é amenizada pela
reza:
Em Aratanha, padre Benedito disse missa, ouviu confissão, deu comunhão e
benzeu toda terra gretada e cheia de cipós e salpicou água benta nas gentes e nas
bestas. Mas nem por fazer serviço de padre e cumprir santas obrigações deixou de
trabalhar na construção dos telheiros que iriam abrigar todos, enquanto não
levantassem as casas. E nas primeiras capinações e em toda a labuta que era
necessário sustentar o dia todo e a noite adentro, mas sempre havia a alegria de
fazer telhados e completar tarefas.( RIBEIRO, 1997, p. 42)
Para Cláudio Novaes, observa-se no romance ubaldiano que “os discursos sociais
embutidos nesse religioso apontam a terra e a liberdade como bens principais da memória
sertaneja”, sendo que existe aí um processo de revisitação dos projetos de identidade
nacional, que, segundo Castells é “o processo de construção significado com base em um
atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s)
qual(is) prevalece(m) sobre outras formas de significado .”(CASTELLS, 1999, p.22). É
importante notar que, na obra, além da fertilidade da terra, o poder religioso define uma
nação utópica à qual o povo sertanejo é levado por seu líder Argemiro. Há diversas
partes que demonstram a história social do povo do sertão nordestino e sua fé.
Consoante às idéias retratadas por Rita Olivieri, essa narrativa “faz reviver um projeto de
resistência popular e, faz manter viva a memória histórica das lutas pela posse de terra e
desperta a esperança de construir uma comunidade nova, onde o individuo não será mais
vitima do movimento de territorialização imposto pelas elites colonizadoras.”
Assim, é narrado o momento em que Argemiro questiona quem seriam aqueles santos, os
guerreiros trazidos por Santo, o filho de Lourival, para lutar ao lado se sua gente:
Que santos podiam vir?- perguntou Argemiro à sua memória solitária. Pode ser
que tenham vindo todos os santos guerreiros, esses generais sagrados, esses
soldados de espada em forma de cruz? Pode ser que tudo neste mundo seja
possível. Pode ser que, quando o homem chega ao fim e já não se importa se a
terra onde está afunda ou se a água do rio vai cobrir-lhe a cabeça, ou se alguma
coisa escura virá de cima para tomar-lhe a mente e a defesa, pode ser que então
veja a verdade. (RIBEIRO, 1997, p.64.)
Outro momento importante na narrativa e que demonstra essa linguagem cristã, apesar da
linguagem “local” dar uma outra visão à morte, é quando o filho do sertanejo morre por
falta de atendimento e o padre Bartolomeu se comove e dá a extema-unção à criança,
bem como coloca
que os culpados pela morte do inocente sofreriam bastante:
Em nome do Pai, disse o padre com os olhos molhados e toda a cabeça ardendo,
do Filho e do Espírito Santo amém. Em nome de todos os santos, falou com a
voz rouca e os braços portando o menino tremendo tanto que parecia tremer a
terra e não eles, e todos os mártires e todos os que acreditaram e que sofreram e
nunca foram vistos e em nome de meus pés encardidos desta poeira esquecida,
em nome do céu que cobre estas terras, em nome da solidão que nos entolda,
em nome da ignorância inocente, em nome de todos os que não sabem nada do
que acontece e acreditam que a perversidade humana é fantasia. E, olhando o
médico, o padre disse que ele teria vida sofrida, dentro de seus panos brancos e
seus cheiros desencarnados , ao contrário do menino que trazia nos braços, cujo
sorriso os pais nunca veriam outra vez, nem a voz que deveria ter podido cantar
nesta terra tão amplificada. (RIBEIRO, 1997, p. 49)
O romance Vila Real traz uma visão política, ideológica e social do autor através dos
discursos dos personagens e das relações de poder materializadas nesses discursos, como
os de Argemiro e Genebaldo, personagens pertencentes a grupos opostos. O primeiro é
líder do grupo dos “sem–terra”, do qual se usurpa a terra e, por isso, os integrantes sentem
a necessidade de lutar pela subsistência. Já o outro é líder de um grupo que se utiliza do
poder na linguagem, a partir do lugar que ocupa, silenciando a voz e o direito do grupo
liderado por Argemiro. Por isso, há uma guerra nas terras sertanejas, o que causa mortes,
dor e sofrimento para muitas pessoas. Essas batalhas fazem rememorar outras ocorridas no
território do sertão, como em Canudos, fazendo-se referência explícita na obra. O romance
Vila Real acaba com uma utopia de transformação social e a incerteza sobre a vitória em
Vila Real, apesar do projeto de resistência contra um sistema de dominação territorial:
Era uma madrugada em cima da serra. Embaixo ninguém falava, todos dormiam
exceção de vigias. Em torno, carregando um ódio mais do que mortal,
carregando todas as histórias da infância, o povo retesou as carnes, porque ia
tomar de volta a terra e o cemitério. Ou ia morrer. Das ventas, saía fumaça.
Argemiro, embriagado, olhou em derredor e fez com a mão sinal para aqueles
que com ele cobriam as encostas da serra como formigas, o sinal que haviam
combinado para o ataque e, então, em silêncio, mas com as veias batendo de
orgulho em todos os pedaços do corpo, desceram para não voltar e lá ficaram
para combater pelo que tinha sido tomado sem razão. E não se sabe o resultado,
mas se cobriram de poeira e glória e até hoje estão pelo sertão e os gritos que
deram talvez se ouçam ainda agora. Tal como se conta esta história pelas
estradas, pelos caminhos e pelas vilas, onde quer que haja um viajante e uma
esperança. e onde quer que um olho se ponha a fitar o horizonte. (RIBEIRO,
1997, p.176-177)
Observam-se nesse contexto muitos elementos importantes para a construção da identidade
nacional, bem como aspectos para se pensar a cultura sertaneja, tais como: a religiosidade,
a relação com a terra e o trabalho. É notável também a representação da violência, que
ocorre em função dessa luta pela posse de terra em um combate, no qual os sertanejos
mostram-se, apesar das freqüentes adversidades, fortes e com crenças religiosas que os
ajudam a lutar veementemente contra um sistema opressor e injusto.
Referências
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Paulo. Ática, col temas, vol. 9, 1989.
BHABHA, Homi (1997). Narrando a nação. In. Maria Helena ROUANET (Org).
Nacionalidade em questão. Rio de Janeiro: VER 1 (cadernos da Pós / Letras, nº 19).
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo. Paz e Terra, 1999.
COUTINHO, Afrânio, A Literatura no Brasil. Era modernista; 6 ed. rev e atual. São
Paulo: Global, 2001.
MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. São Paulo: Editora Cultrix, 2001.
Vol. III. Modernismo.
NOVAES, Cláudio Clédson. Da Migração ao Nomadismo: Os Sertões em Vila Real,
Deus e o diabo na terra do sol e Na Guardada das águas perdidas. UFBA, 1998.
_________, Euclides da Cunha. ”O sertão vai virar mar...” In: O eixo e a roda: revista de
literatura brasileira. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2002. V. 8.
OLIVIERI-GODET, Rita. João Ubaldo Ribeiro: Litterature bresilienne et constructions
identitaires. Presses Univertaires de Rennes, 2005. Programa de Pós Graduação em
Literatura e Diversidade Cultural.
RENAN, Ernest. (1997). O que é uma nação. In. Maria Helena ROUANET (Org).
Nacionalidade em questão. Rio de Janeiro: UERJ (Cadernos de Pós / Letras, º 19).
RIBEIRO, João Ubaldo. Vila Real. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1997.
SILVERMAN, Malcolm. Moderna Ficção Brasileira (tra. G. Linke). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira / INL, vol.2, 1978.
A IMPOSSIBILIDADE DO ENCONTRO AMOROSO EM DIÁLOGO
COM O CONTO “ENTRE AS FOLHAS DO VERDE O”
DE MARINA COLASANTI
Raquel Lima Besnosik (mestranda Letras/UNEB)
Propõe-se, nesse trabalho, um diálogo entre a impossibilidade do encontro amoroso entre
homens e mulheres, com base no referencial teórico psicanalítico, e o conto “Entre as
folhas do verde O”, de Marina Colasanti.
“Opostos constituem uma totalidade como o dia e a noite; opostos fazem a guerra, não o
amor” (GOLDENBERG, 1995, p.18). Talvez por isso Kehl (1988) considere ser tão
surpreendente que homens e mulheres possam construir relações relativamente estáveis e
intensas, já que possuem interesses tão divergentes.
Esses interesses divergentes se expressam no conto “Entre as folhas do verde O”,
de Marina Colasanti. O príncipe e a corça-mulher falavam línguas diferentes e
não conseguiam se comunicar. De um lado, estava o príncipe: “Ele queria dizer
que a amava tanto, que queria casar com ela e tê-la para sempre no castelo, que a
cobriria de roupas e jóias, que chamaria o melhor feiticeiro do reino para fazê-la
virar toda mulher” (COLASANTI, 1979, p.40). Do outro lado, estava a corçamulher: “Ela queria dizer que o amava tanto, que queria casar com ele e levá-lo
para a floresta, que lhe ensinaria a gostar dos pássaros e das flores e que pediria à
Rainha das Corças para dar-lhe quatro patas ágeis e um belo pelo castanho”
(COLASANTI, 1979, p.40).
Estacolchic (1995, p.31) afirma que “um par se forma por engate da fantasia. Isto é: uma
zona onde a seqüência da fantasia inconsciente de um dos parceiros ‘cavalga’ sobre a
seqüência da fantasia do outro”. Um pensa conhecer o que o outro deseja. No entanto, o
que eles conhecem é apenas o modo como sua fantasia organiza cada uma de suas
realidades. No conto de Marina Colasanti acima mencionado, quando a corça-mulher
chora, o príncipe pensa ter compreendido a razão de seu choro e pede ao feiticeiro do reino
que a transforme em mulher. Mas não é isso que ela deseja.
Goldenberg (1995) afirma que o desejo masculino sempre é fetichista, que ele recorta e
cola as mulheres. Estacolchic (1995) corrobora dizendo que o homem pode buscar várias
mulheres, encontrando nelas um significante fálico, um pedaço do corpo que é recortado
pulsionalmente e que desperta o circuito do desejo. Para o homem, de acordo com Kehl
(1988), apaixonar-se é visto como perda de poder. Seu truque então, para tentar compensar
sua falta, será concentrar-se na potência sexual, focar no que pensa ter em excesso. Ele
separa desejo e amor. Deseja todas as mulheres, protegendo-se outra vez da castração e
transformando a mulher num objeto a serviço do falo.
A mulher, por sua vez, espera pela cura através do amor, mas reprime o desejo. Ela dá
novo valor ao seu corpo quando nega qualquer necessidade de contato ou de
preenchimento. Kehl (1988) diz que “a defesa do homem é desejar sem amor, a da mulher
é amar sem desejar: continua sendo espantoso que nos encontremos” (KEHL, 1988, p.
419). Homens e mulheres, entre encontros e desencontros, procuram um no outro o que
falta em si mesmos, mas sempre temem ver a extensão dessa falta.
Lacan (1982), enfatiza que nessa ordem fálica que organiza o mundo, o habitante da
linguagem pode se colocar do lado masculino ou do lado feminino da partição sexual. O
sujeito do lado masculino vai na direção de um objeto do lado feminino. O sujeito do lado
feminino vai na direção do falo que está do lado masculino. Cada um se relaciona, na
verdade, com o objeto de sua carência, sem nenhum tipo de garantia. Lacan (1992) afirma
que, numa relação de amor, o amante não sabe o que lhe falta e o amado não sabe o que
tem. “O que falta a um não é o que existe, escondido, no outro. Aí está todo o problema do
amor” (LACAN, 1992, p.46). No conto “Entre as folhas do verde O”, o príncipe e a corçamulher parecem se relacionar dessa forma, num desencontro de desejos. Segundo Lacan
(1982), “o amor preserva o lugar ‘de onde’ o Outro deseja, o lugar da falta” (TEIXEIRA,
1995, p.101).
Kehl (1995) afirma que um homem nunca pode saber o que uma mulher quer, porque o que
ela quer é ser objeto do desejo dele. Ele precisaria conhecer e suportar seu próprio desejo
para ter a resposta. Dessa forma, a autora reforça que o “melhor” homem é aquele que “não
quer saber”, mas que sabe fazer a mulher responder ao seu desejo, sabe fazer com que ela
lhe minta bem, sabe fazer com que ela acredite que ele sabe exatamente o que ela quer,
sem nem mesmo perguntar. Já a mulher sabe o que quer: ela quer manejar o desejo
masculino, mesmo sem nomeá-lo. Ela se coloca como objeto de desejo, tal como a corçamulher, no conto de Colasanti, que não foge ao som da tropa. Ela fica debruçada no regato
e assim o príncipe a vê e a aprisiona.
Esta posição de objeto, contudo, não é tranqüila (KEHL, 1995). É trabalhosa e sempre
ameaçada porque o desejo não se detém facilmente. A mulher fica insatisfeita por não
saber quem ela pode ser fora do domínio do jogo amoroso. Isso o homem não pode lhe
responder e ela precisaria levantar o véu da mascarada, desapontando aquele que lhe pede
apenas que saiba mentir.
Kehl (1996) diz ainda que quando o amor e o desejo da mulher se libertam do
aprisionamento narcísico e repressivo para corresponder aos do homem, algo parece se
esvaziar no próprio ser da mulher. Há uma perda de sentido nela mesma. Quando ama e
deseja tanto quanto foi amada e desejada, deixa de fazer sentido como mulher, para o
amante e para si mesma. Do que o homem ainda pode privar essa mulher – que
aparentemente já não se priva de mais nada, que expressa seu desejo, que não se detém
mais no gozo de suas conquistas recentes – é do reconhecimento amoroso. Ele faz isso não
(apenas) por vingança, mas porque de fato não consegue reconhecer essa mulher tão
parecida com ele e na qual também odiaria ter que se reconhecer.
Na medida em que a mulher amplia o leque de suas atividades – saindo do espaço
doméstico e adquirindo independência econômica, poder, cultura e possibilidades de
sublimação, tendo a possibilidade da escolha sexual, de conhecer vários homens, de ser
parceira do homem, reduzindo a distância entre os sexos – ela amplia também suas
possibilidades identificatórias (além da maternidade) e expande seus territórios pela
sociedade da qual faz parte (KEHL, 1996). O “ser mulher” torna-se mais do que ser objeto
causa de desejo para o homem.
No conto de Marina Colasanti “Entre as folhas do verde O”, inicialmente, a corça-mulher
coloca-se na posição de objeto de desejo para o príncipe. Depois escolhe outra
possibilidade de identificação. Faz uma escolha diferente daquela em que se tornaria
mulher apenas para corresponder aos desejos do amante. Antes somente o príncipe tinha a
chave da porta que aprisionava a amada. Achou que conhecia o desejo da moça e pediu ao
feiticeiro que transformasse a corça em mulher. Mas não era isso que ela desejava. Por
isso, fugiu à procura de sua rainha e voltou a ser apenas corça. A corça-mulher levantou o
véu da mascarada e foi em busca de seu próprio desejo.
De acordo com Kehl (1996), quando a mulher se lançou em condições iguais aos homens
na conquista de seu prazer sexual, ela ficou sujeita à lei do desejo do outro. Ficou também
sujeita a competir com o homem num domínio que é tradicionalmente dele. Dessa forma, o
homem é jogado na condição narcisista. O homem goza um tanto sadicamente com essa
nova posição da mulher – daquela que revela seu desejo, que faz com que ele experimente
cada vez mais o lugar do desejado, que permite que o preço do desejar seja dividido entre
homens e mulheres – e nega à mulher a antiga posição idealizada conferida pela tradição.
A mulher que manifesta mais diretamente sua sexualidade ainda se defronta com o horror
masculino diante desse “vazio-que-fala”.
Lacan (1993) frisa que, para a Psicanálise, há uma impossibilidade de complementaridade
na relação amorosa, dado que tanto homens como mulheres são seres em falta. Como fica
então o relacionamento a dois? Soler (1995) afirma que é melhor estar mal acompanhado
do que só, uma vez que não há completude no encontro amoroso e que o amor não resolve
a castração simbólica. Homens e mulheres estarão sempre mal acompanhados, mesmo no
melhor que puderem encontrar no amor, porque este sempre será pouco. Talvez, por isso, o
conto “Entre as folhas do verde O” apresente uma impossibilidade de concretização do
encontro amoroso, mas uma permanência do sentimento de amor: “O sol ainda brilhava
quando a corça saiu da floresta, só corça, não mais mulher. E se pôs a pastar sob as janelas
do castelo” (COLASANTI, 1979, p.41).
Referências
CABEDA, S. T. L. “O que quer uma mulher?” A construção do corpo pela cirurgia
plástica. In: CABEDA, S. T. L., CARNEIRO, N. V. B., LARANJEIRA, D. H. P (org.). O
corpo ainda é pouco: II Seminário sobre a contemporaneidade. Feira de Santana:
NUC/UEFS, 2000.
COLASANTI, M. Uma idéia toda azul. Rio de Janeiro: Nórdica, 1979.
ESTACOLCHIC, R. Desejo e fantasia. In: TEIXEIRA, A. B. R. (org.). Sobre o desejo
masculino. Salvador, BA: Ágalma, 1995.
GOLDENBERG, R. O ameaçado. In: TEIXEIRA, A. B. R. (org.). Sobre o desejo
masculino. Salvador, BA: Ágalma, 1995.
KEHL, M. R. A mínima diferença: masculino e feminino na cultura. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
KEHL, M. R. Masculino / Feminino: o olhar da sedução. In: NOVAES, A. (org.) O olhar.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
KEHL, M. R. O que um homem quer saber? In: TEIXEIRA, A. B. R. (org.). Sobre o
desejo masculino. Salvador, BA: Ágalma, 1995.
LACAN, J. O Seminário, Livro VIII, A Transferência, 1960-1961. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1992.
LACAN, J. O Seminário, Livro XX, Mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982
apud TEIXEIRA, A. B. R. (org.). Sobre o desejo masculino. Salvador, BA: Ágalma,
1995.
LACAN, J. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993 apud CABEDA, S. T. L. “O que
quer uma mulher?” A construção do corpo pela cirurgia plástica. In: CABEDA, S. T. L.,
CARNEIRO, N. V. B., LARANJEIRA, D. H. P (org.). O corpo ainda é pouco: II
Seminário sobre a contemporaneidade. Feira de Santana: NUC/UEFS, 2000.
NOVA, M. Meu desejo. In: TEIXEIRA, A. B. R. (org.). Sobre o desejo masculino.
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SOLER, C. Variáveis do fim da análise. Campinas: Papirus, 1995 apud CABEDA, S. T. L.
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TEIXEIRA, A. B. R. (org.). Sobre o desejo masculino. Salvador, BA: Ágalma, 1995.
TEIXEIRA, A. B. R. O mal-estar no feminino ou toma que o falo é teu. In: TEIXEIRA, A.
B. R. (org.). Sobre o desejo masculino. Salvador, BA: Ágalma, 1995.
DOIS AUTORES EM CENA: O DIÁLOGO ENTRE GIL VICENTE E
NELSON RODRIGUES
Solange Santos Santana (PIBIC/UEFS)
Prof. Dr. Márcio Ricardo Coelho Muniz (CNPq/UEFS)
INTRODUÇÃO
Para entendermos as obras dos autores que aqui vamos tratar, faz-se necessário,
primeiramente, compreendermos os momentos históricos nos quais eles viveram e criaram,
afinal. Toda grande obra de arte, como criação de certa época histórica, retrata a realidade
e simultaneamente a surrealidade, porque mesmo exagerando na sua representação de
mundo através das técnicas próprias da literatura, ainda assim, é a história a mais funda
dessa época e nação que encontraremos..
Como sabemos, Gil Vicente viveu no momento de transição da Idade Média para o
Renascimento, tempo no qual preponderava o realismo conceitual ligado intimamente à
visão hierárquica medieva. A plenitude da realidade não residia no múltiplo mundo
sensível que nos cerca, sim, no primeiro princípio – Deus. No Renascimento, no entanto, o
universo passa a ser concebido como um Todo, onde tudo é inter-relacionado e movido por
forças internas. A divindade, alma de nossas almas, é também a alma de toda a natureza
(ROSENFELD, 1973, p. 128). Evidentemente que este novo momento não significa uma
ruptura abrupta com o pensamento medieval. Concepções renascentistas já se notam em
plena Idade Média e idéias fundamentais do medievo exercem grande poder nos séculos
iniciais da modernidade, XVI, XVII E XVIII.
A verdade é que Gil Vicente viveu entre a transcendência e a imanência, entre o outro
mundo e o real, entre o céu e a terra, o intemporal e o temporal. Produziu no turbulento
século XVI, refletindo em sua obra a crise de um homem que não mais era medieval e
ainda não se via como renascentista.
Já Nelson Rodrigues viveu no século XX e conheceu a vertiginosa evolução científica e
tecnológica nas mais diversas áreas do conhecimento humano. Se foi fácil batizar o século
XVIII como o "Século das Luzes" ou o XIX como o "Século da Razão", não haverá a
mesma facilidade para encontrar a denominação mais adequada para o século XX. Afinal,
este foi o século das guerras mundiais, da bomba atômica, do automóvel, dos direitos da
mulher e de outras minorias, do avião, das viagens espaciais, da internacionalização da
economia, do comunismo, do fim dos impérios colonialistas, da eletrônica, dos
transplantes, da indústria cultural, da clonagem, da internet, etc.
Para Nietzsche, assim como para Marx, as correntes da história moderna eram irônicas e
dialéticas: os ideais cristãos da integridade da alma e a aspiração à verdade levaram a
implodir o próprio Cristianismo (BERMAN, 1986, p.21). O resultado constitui os eventos
que Nietzsche chamou “a morte de Deus” e “o advento do niilismo”, em que a moderna
humanidade se vê em meio a uma enorme ausência e vazio de valores.
Como podemos perceber, ambos os autores viveram e produziram em tempos conturbados
e, mesmo que sob perspectivas distintas, refletiram em suas obras a crise humana, seja no
século XVI, seja no século XX. Reconhecemos que, como autores integrados no seu
próprio tempo, Vicente e Rodrigues podem ser pensados como a consciência de seus
mundos, invariavelmente, “selfs” divididos, condenados ao mesmo tempo a se
expressarem e a comunicarem, a falarem por si e para os outros (BOORSTIN, 1996).
O PROCESSO CRIATIVO CRÍTICO-SOCIAL
Protestando contra o momento histórico, contra a angústia do tempo que tudo desconstrói,
já que desprovidos de ilusões, os dramaturgos convergem em muitos pontos, bem como
divergem noutros. O primeiro ponto convergente entre eles e o mais importante para nós é
a sátira social.
Gil Vicente, através da comicidade, principal instrumento de sua crítica, questionou o
mundo, procurando no riso uma função superior: a de evidenciar as relações da sociedade
com as imagens da realidade mascarada com que ela se identificava (ALVES, 2002, p. 26).
Rodrigues também fez uso do cômico ao explorar todos os ridículos humanos, mas a sua
obra criticou a sociedade de seu tempo muito mais pelo trágico teatro de costumes inchado
de superstições, pintado pelo grotesco, o anormal, o aberrante, o exorbitante e a caricatura.
Como diria Helena Parente Cunha, é o sentimento trágico se estribando num fracasso que
derruba o ideal supremo dos seres (CUNHA, 1979, p. 122).
A concepção de teatro rodrigueana rompe com o distanciamento entre platéia e peça, como
queria Brecht, provocando um efeito catártico sobre o público que, atingido pela
monstruosidade do enredo, pelo demoníaco presente nas personagens e na trama, enfurecese e agride atores e criadores, como se eles fossem o retrato realista da própria vida
(SAMPAIO, 2003, p. 130). Vicente representava os seus Autos nas festas palacianas, em
que os criticados faziam parte da platéia, como desta faziam parte as relações pessoais e
que, por isso mesmo, conheciam-lhe os pontos fracos, os lados obscuros e seus vícios.
Segundo Maria Theresa Abelha Alves, seguindo os passos de Bakhtin, a crítica em
presença dos criticados funcionava como um veículo de destronamento carnavalizante para
provocar o riso nos demais presentes (ALVES, 2002).
Ainda segundo a mesma estudiosa, o papel do espectador é de grande importância, pois
será a partir dele – público – que o teatro ultrapassará os limites do palco. Na atmosfera
trágica, pelo engajamento, a angústia da personagem é a nossa, visto termos assumido a
sua dramaticidade. Por outro lado, na atmosfera cômica, ao rirmos do que não nos agrada
nos outros (ou em nós mesmos), estamos rejeitando-os (ou rejeitando-nos) e ao mesmo
tempo fixando nossa força naquilo que podemos modificar, ou que poderíamos, se
quiséssemos, é claro.
Para fazer valer a sua crítica, Gil Vicente utilizou uma conhecida série de personagens
tipos, alguns herdados da tradição, outros produtos da sua observação pessoal. Todos eram
definidos segundo os atributos específicos de uma classe, abstraídos de qualquer variedade
individual, ou seja, faltam-lhes os caracteres, e sem indivíduos não há casos, havendo, no
entanto, problemas e dramas. No Auto da Barca do Inferno, por exemplo, Vicente faz
chegar ao braço de mar almas representativas das várias classes sociais e profissionais de
seu tempo: a nobreza, representada pelo fidalgo; o clero, pelo frade; a mesteiral, pelo
sapateiro; a judicial, pelo corregedor, bacharel e procurador; a dos agiotas e dos ladrões,
pelo judeu, onzeneiro e enforcado; a dos mistificadores, pela alcoviteira Brízida Vaz.
Diferente do teatrólogo português, Nelson Rodrigues não se utiliza das personagens-tipos,
mas da expressão do subconsciente, do individual. Rodrigues penetrou em cheio naquela
zona de introspecção que alguém chamou de “psicologia abismal”, que vem a ser essa
tentação para o mal, para o pecado e para as aberrações morais que existe no interior de
todas as criaturas (LINS, 1963, p. 307).
ENTRE TANTAS: UMA DAS INOVAÇÕES
Se divergem quanto ao tipo de personagens, esses dois dramaturgos comungam e muito
quanto ao uso da linguagem popular em suas peças. Vicente colocou muitas vezes na boca
de suas criações, provenientes do povo, uma linguagem única que mostrava o que os
homens tinham de grotesco e paradoxal, e que por meio de sua própria expressão oral, o
dramaturgo ridicularizava-os numa crítica, sem dúvida nenhuma, construtiva.
A dramaturgia vicentina tem por grande fonte as tradições populares, o que aumenta o
sentido cômico de muitas obras. É o que para Bakhtin seria o “riso carnavalesco”, um
patrimônio do povo (BAKHTIN, 1987). A Farsa de Inês Pereira, por exemplo, tem por
mote o dito popular “mais quero um asno que me leve, que um cavalo que me derrube”.
Por sua vez, em Nelson Rodrigues percebemos o quanto as suas crônicas folhetinescas,
principalmente no que diz respeito à linguagem, influenciaram sua dramaturgia.
Já Gil Vicente utilizava em suas obras uma linguagem do povo, com seus vocábulos e
dicções populares, sendo freqüente a omissão e troca de letras, a fuga às regras da sintaxe,
sobretudo nas dicções populares imprecatórias (TELES et alli, 1984, p. 31). Na Barca do
Inferno, por exemplo, Vicente adequou a fala do Diabo de acordo com os tipos sociais que
com ele vão dialogar. Esta adequação é verificável no diálogo entre o Diabo e o
Corregedor, em que aquele fala em latim com o magistrado, claro que em tom de ironia,
que certamente provoca o riso:
Corregedor: Domine, memento mei!
Diabo:
Non est tempus, bacharel;
Imbarquemini in batel,
Quia in judicastis malitia.
Corregedor: Semper ego in justitia
Feci, e bem por nível (VICENTE, 1984, p. 81).
No Brasil, os dramaturgos da geração anterior à Rodrigues faziam uso de um diálogo
artificial, um tanto rebuscado e empolado. O nosso dramaturgo adota, ao contrário de seus
antecessores, uma nova linguagem, que é o reflexo das conversas do homem comum, com
sua gíria, com seus modismos, com seus defeitos de vocabulário, incorreções gramaticais e
interrupções, enfim com muitas características da linguagem coloquial: perguntas e
respostas, repetições de palavras em tons diferentes que refletem diferentes estados
anímicos, curtas interrogações e a ausência de verbos. Tomemos por exemplo o diálogo
entre Boca de Ouro (da peça com o mesmo nome) e o dentista Lacônicas:
- Pronto?
- Pode sair.
- Que tal, doutor?
- Meu amigo, está de parabéns!
- (Abrindo seu riso largo de cafajeste) – Acha?
- Rapaz, te digo com sinceridade: nunca vi, em toda a minha vida – trabalho
nisso há 20 anos – e nunca vi, palavra de honra uma boca tão perfeita
- Batata?
- Dentes de artista de cinema. E não falta um!
- Quer dizer, uma perfeição!
- Sabe que quando eu vejo falar em dor de dentes, fico besta?
- Nunca tive esse troço!
- Lógico.
- Pois é, doutor: agora vou-me sentar, outra vez, porque eu queria um servicinho
seu, caprichado, doutor!
- Na boca?
- Na boca.
- Meu amigo, é um crime mexer na sua boca!
- Mas o senhor vai mexer, vai tirar tudo.
(...)
- Eu pago, doutor! Meu chapa, eu pago! (RODRIGUES, 1993, p.881-2).
Além dos tipos de fala, faz-se necessário assinalar o vocabulário, com presença de
brasileirismos como: “Batata?” (que aqui significa “com certeza?”, podendo também
equivaler, em outro contexto, a “asneira”, “tolice”); “chapa” (que é termo de gíria,
equivalendo a “camarada”, “amigo”); “troço” para designar tudo que tenha referência
anterior e o uso exagerado do diminutivo, como, por exemplo, “servicinho”.
A verdade é que não encontramos no teatro rodrigueano diálogo pomposo, artificial e
supercorreto, mas o diálogo natural, simples e salpicado de incorreções. Assim ele dizia:
“Não reparem que eu misture os tratamentos de tu e você. Não acredito em brasileiro sem
erro de concordância” (RODRIGUES, 1997).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De certa forma, Rodrigues, ainda quando segue uma corrente ou um enfoque jornalístico
em seus textos, difere, mesmo assim, de quantos o precederam: às sátiras a personagens
individuais ele acrescenta a generalização, às líricas e indulgentes são envolvidas numa
casca trágica e, às vezes, tragicômica. A expressão de um vilão frio e transparente como o
Tio Raul de Perdoa-me por me traíres – quer quando se complica com a traição da
cunhada, quer quando se define como tutor apaixonado pela sobrinha – assinala, entre
outras propostas, a projeção de uma linguagem nova, de uma maneira de ser irônico.
Foi através da comicidade que Gil Vicente fez sua crítica, questionou o mundo, procurando
sempre no riso evidenciar as relações da sociedade com as imagens da realidade. Já Nelson
Rodrigues reitera, através de suas personagens, a ausência de amor no mundo. A
inexistência cruel da solidariedade. A inveja, a rivalidade e a hostilidade que marcam os
laços pessoais e que nos levam sempre ao trágico, à dor e à desilusão. O seu método
funciona de um jeito paradoxal: por meio do ocultamento da realidade por detrás de
diferentes máscaras, Rodrigues pretende desmascará-las mais completamente (NUNES,
1994, p.179).
Em suma, a observação das consonâncias e divergências entre Gil Vicente e Nelson
Rodrigues realizada, principalmente, nos primeiros meses de pesquisa, nos levou a
identificar traços e temas comuns entre ambos. Com relação aos traços formais e
estruturais comuns aos dramaturgos, foi possível perceber que ambos inovaram quanto à
linguagem teatral. Passaram a representar as falas de suas personagens mais próximas do
público e muito mais acessível para o entendimento, por isso, as suas obras são tão
atemporais, porque alcançam todos e, principalmente, não excluem.
No que diz respeito aos temas, encontra-se, por exemplo, a representação da degradação de
valores sociais que tanto em Vicente como em Rodrigues visa a apontar o erro para
moralizar e corrigir. Assim, a observação destes elementos nos animou numa primeira fase
dos estudos, nos levando-nos à confirmação que tanto Vicente quanto Rodrigues
desempenharam papéis importantes como críticos de suas sociedades, do meio físico que
os rodeavam. Encenaram a vida criando estilos inigualáveis e únicos, propagando verdades
que só os grandes escritores têm a capacidade de ser e fazer.
Referências
ALVES, Maria Theresa Abelha. Gil Vicente sob o signo da derrisão. Feira de SantanaBa: UEFS, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais. São Paulo-Brasília: Hucitec, 1987.
BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
Trad. de Carlos F. Moisés; Ana M. L. Ioriatti. – São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
BOORSTIN, Daniel J. O escritor como consciência do mundo. In: O nariz de Cleópatra:
ensaios sobre o inesperado. Trad. de Gabriel Z. Neto. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1996.
CUNHA, Helena Parente. O gênero dramático. In: Os gêneros literários. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1979.
LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca: ensaios e estudos (1940 – 1960). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
NUNES, L. Arthur. O teatro de Nelson Rodrigues. In: NUNEZ, C. F. P. et alii. In: O
teatro através da história. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil; Entourage
Produções Artísticas, 1994.
RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo: volume único. Organização geral e prefácio de
Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993.
RODRIGUES, Nelson. Flor de Obsessão: As 100 melhores frases de Nelson Rodrigues.
Org. Ruy Castro. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1997.
ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto: ensaios. 2. ed. São Paulo: Perspectiva; Brasília,
INL, 1973.
SAMPAIO, Maria Lúcia Pinheiro. O demoníaco, o caos e o renascimento no texto de
Nelson Rodrigues. Cascavel: EDUNIOESTE, 2003.
TELES, Maria J; CRUZ, M. Leonor; PINHEIRO, S. Marta. Repercussões da Cultura
Cômica Popular Carnavalesca em Gil Vicente. In: O discurso Carnavalesco em Gil
Vicente: no âmbito de uma história das mentalidades. Lisboa: GEC publicações, 1984.
VICENTE, Gil. Antologia do teatro de Gil Vicente. Introdução e estudo crítico pela
Profa. Cleonice Bardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; [Brasília]: INL, 1984.
LITERATURA E CRÍTICA EM JULIO CORTÁZAR: DESDOBRAMENTOS
Ony Gomes de Santana
Especializando em Estudos Literários
Universidade Estadual de Feira de Santana
Julio Cortázar (1914-1984), escritor argentino, produziu, ao longo de sua carreira
profissional, uma quantidade considerável de contos e romances, no campo ficcional, e de
artigos, cartas e conferências, no campo de ensaísmo. Embora tenha seu nome associado ao
cânon da prosa hispano-americana, suas obras, de modo geral, são pouco difundidas e
estudadas no Brasil.
A presente comunicação visa, pois, contribuir com os estudos a respeito da produção
cortazariana. Isto posto, recorremos, no intuito de estabelecer uma leitura de suas
produções literária e crítica, ao conto “Casa tomada” (1951) e a três de suas conferências, a
saber: “Alguns aspectos do conto” (1962-1963), “El sentimiento de lo fantástico” (1967) e
“O estado atual da narrativa na América Hispânica” (1976). Destacamos, assim, a opção
cortazariana pelo conto fantástico, construção ficcional considerada na sua concepção
histórico-cultural e que contrasta com as perspectivas da literatura fantástica tradicional
(européia), vigente no século XIX.
A incorporação do fantástico na literatura hispano-americana é tardia. Enquanto na Europa,
desde fins do século XVIII e começos do seguinte, presencia-se um interesse por temas de
ciências ocultas, as nações hispano-americanas estão voltadas para o seu nascimento. Eis
que, no momento romântico destas, há o interesse, necessariamente, pela história e a
política; ou, ainda, por particularidades lingüístico-regionais. A América Hispânica não
segue, portanto, o nascimento e a infância do gênero, se a compararmos com a situação
européia.
Considerando o referido contexto europeu, para Todorov (2007), a literatura fantástica se
constitui num gênero específico e evanescente de atrações insólitas. Neste sentido, a
determinação dessa literatura deve passar pelo “leitor implícito” do texto, preservando-se a
“hesitação” em detrimento de uma explicação. A resposta a tal incerteza/indecisão
corresponde não mais ao fantástico, mas a um dos gêneros vizinhos: o estranho ou o
maravilhoso. O primeiro relata acontecimentos sobrenaturais explicáveis pela razão; o
segundo, situações em que o sobrenatural não implica quaisquer reações particulares nas
personagens ou no leitor implícito. De maneira geral, as idéias de Todorov são de
inestimável valia para entendermos a literatura fantástica do século XIX, de caráter
europeu, considerando-se que ela estava associada ao campo particular de sua ocorrência,
sem preocupações com a interpretação.
Feitas as considerações acima, Freud (1976), no artigo intitulado “O ‘Estanho’” (1919),
propõe-se a pesquisar o tema da estética, entendida esta não apenas como teoria da beleza,
mas, sobretudo, como a teoria das qualidades do sentir. Considerando o “estranho” um
ramo bastante negligenciado pela literatura especializada, diz-nos que o conceito se
relaciona com o que é assustador, com o que provoca medo e horror. Com isto, ele se
constitui naquela categoria do assustador que implica o que é, há muito, familiar.
De início, é possível compreender o “estranho” porque este não é conhecido e familiar:
partindo de um exame lingüístico, unheimlich significa, pois, o contrário de heimlich
(doméstico) e heimisch (nativo), o oposto do que é familiar. Contudo, da idéia de
“familiar”, “pertencente à casa”, desenvolve-se a idéia de algo alheio aos olhos de
estranhos, algo secreto; tal idéia se expande de muitas maneiras: heimlich é uma palavra
que se desenvolve na ambivalência e seu significado coincide, portanto, com unheimlich.
Neste sentido, a essência do estudo freudiano acerca do tema está nas seguintes
considerações: 1) conforme a psicanálise, qualquer afeto implica um impulso emocional e
aquele, se reprimido, transforma-se em ansiedade; assim, dentre as coisas assustadoras,
aquilo que amedronta pode se mostrar como algo reprimido que retorna, constituindo o
“estranho” e sendo indiferente se, na origem, o referido afeto era ou não assustador; 2) se
tal é a natureza secreta do “estranho”, torna-se compreensível porque o uso lingüístico
estendeu das Heimlich (doméstico, familiar) para o seu contrário, das Unheimlich, uma vez
que o estranho não é nada novo ou alheio.
Conforme o exposto anteriormente, só em meados do século XX, os vocábulos “realismo
mágico” e “realismo maravilhoso” se empregam para aludir a certo tipo de literatura, cuja
ideologia corresponde à procura da “americanidade”. Os referidos termos surgiram para
expressar, em autores diversos, uma preocupação estética comum: o esforço de abarcar
uma realidade americana que, proveniente das culturas tradicionais, escapa ao
conhecimento da “realidade”.
Dessa maneira, Mignolo (1983) trata das noções de “literatura fantástica”, surgida em fins
do século XVIII (na Europa), e de “realismo maravilhoso”, que aparece a partir da década
de 40 do século XX (na América Latina), as quais delineiam tendências estéticas de valor
determinado por cada autor em particular. Reconhece, pois, que toda definição pode servir
de orientação em um dado campo de investigação, mas alerta que pode, também, não
corresponder ao sentido que os autores lhes deram, uma vez que as referidas noções
obedecem a interpretações históricas. Daí, optar pelas definições dos próprios autores em
lugar das definições dos críticos ser uma decisão epistemológica, uma vez que a literatura
fantástica e a realista-maravilhosa se originam quando se toma consciência delas.
Segundo Mignolo, “realismo mágico” e “realismo maravilhoso” correspondem, em última
instância, a duas “realidades”. A noção de “realismo maravilhoso” se associa a Alejo
Carpentier, que no prólogo a O reino deste mundo (1949), expandido em seu artigo “O real
maravilhoso americano”, postula o confronto com o surrealismo. A referida noção resume
uma estética e uma ontologia: o escritor latino-americano, ao contrário do europeu, não
necessita inventar “sobre-realidades”, elas estão na realidade e na história da América.
Deste modo, no mesmo ano em que se publica o referido livro de A. Carpentier, aparece
Hombres de maíz, de Miguel Angel Astúrias. O conceito de “realismo mágico” serve a
este, também, para resumir uma estética e uma ontologia. Em sua conferência “Introdução
ao romance latino-americano”, publicada, depois, em América, fábula de fábulas (1972),
Astúrias rastreia a origem do romance indo-americano e recupera, através de investigações
arqueológicas e antropológicas, formas de relatos indígenas que considera próximas ao
romance. Essas noções primitivas, em contato com a cultura e a língua castelhanas,
adquirem um caráter peculiar. Assim, conforme Astúrias:
Mi realismo es ‘mágico’ porque él revela un poco del sueño como lo conceben
los surrealistas. Tal como cociben también los mayas en sus textos sagrados.
Leyendo estos últimos yo me he dado cuenta que exista una realidad palpable
sobre la cual se injerta una outra realidad, creada por la imaginación, y que se
envuelve en tantos detalles que ella llega a ser tan ‘real’ como la outra. Toda mi
obra se desenvuelve entre estas dos realidades: la una social, política, popular,
con personajes que hablan como habla el pueblo guatemalteco; la outra
imaginaria, que les encierra en una espécie de ambiente y de paisaje de sueño
(apud.: JOSEF, 1993, p. 47).
Chiampi (1980) nos fala que o termo “realismo mágico” se tornou onipresente e de uso
indiscriminado na crítica hispano-americana, sobretudo, entre os anos de 1940 e 1955.
Desse modo, a complexidade temática dos escritores e a necessidade de explicar a
mudança do Realismo/Naturalismo para a visão “mágica” da realidade se tornaram uma
resposta crítico-interpretativa.
Arturo Islar Pietri, em Letras y hombres de Venezuela (1948), foi o pioneiro da
incorporação do termo junto à crítica do romance hispano-americano. Contudo, acaba por
contradizer a sua concepção da atitude do narrador: ora o poético implica procurar o
mistério além das aparências; ora, a prática de negar a realidade.
Angel Flores, em Magical Realism in Spanish American ficcion (1954), lançou a moda da
nova designação. Ao justapor o exotismo modernista (cor local) e o “mágico”
(deslumbramento) dos cronistas, visões divergentes acerca da realidade local, incorre numa
conciliação errônea. Porém, determina, acertadamente, a publicação de História universal
da infâmia (1935), de Jorge Luís Borges, como marco inicial do realismo mágico.
A. Flores, no entanto, tendo em conta o processo kafkiano de “naturalizar o real”, o que
torna verossímeis acontecimentos sobrenaturais, peca, ainda, ao desconsiderar a
“sobrenaturalização do real”. Com isto, sua conceituação do magical realism se mostra
limitada, perdendo a possibilidade de aplicação aos textos da época. Em 1967, Luís Leal se
aproxima da fórmula “sobrenaturalização do real” e, no intuito de negar as orientações de
Flores, perde a oportunidade de integrar a sua proposta à de seu antecedente.
A partir deste breve esboço, é, portanto, perceptível a estagnação e a falta de comunicação
do discurso da crítica hispano-americana. Esta permanece em descompasso com ritmo da
criação literária, por conta mesmo da falta de diálogo e do isolamento de idéias. Nesse
contexto, dá-se a contribuição de Julio Cortázar, consideradas as suas produções ficcional e
crítica.
Assim, o conto “Casa tomada”, publicado no livro Bestiário, coloca-nos, desde o início, às
voltas com o suspense, uma vez que o próprio título nos remete à moradia ou propriedade
sob a qual se perde o poder. Esta se constitui na residência de dois irmãos, que, a princípio,
não sabemos que vivem em Buenos Aires, capital argentina, pois prevalece uma atmosfera
interior na narrativa.
Neste sentido, o próprio narrador-personagem, num envolvimento bastante estreito e sutil
com os fatos relatados, conta-nos uma história já acontecida, quando o presente parece
sempre se repetir e se associar com o passado. Também, o narrador em questão se preserva
sempre inominado, tratando da sua convivência rotineira com sua irmã, Irene, e com os
cuidados da casa. Daí, prevalecer uma perspectiva ambígua, até mesmo porque esta última
personagem não tem voz própria, é-nos descrita por aquele.
Desse modo, num primeiro momento, ocorre a descrição da casa, sinônimo de conforto e
de tradição familiar. Assim, com a devida naturalidade, o narrador parece nos conduzir
pela história, de maneira sutil e enviesada, dosando ou mesmo omitindo as informações
concernentes ao entendimento de uma realidade geral.
A seguir, surge a rotina solitária das personagens, que se mantêm ocupadas com os
afazeres da casa. Há, pois, a idéia de plenitude no “matrimônio de irmãos”; estes
permanecem, aos quarenta anos, sem compromisso de casamento com outras pessoas. Por
conta disto, há a expectativa do “fim necessário da genealogia”. A tal realidade interior
soma-se a apresentação de Irene, de personalidade dócil e perfil tradicional de mulher.
Aliás, tal nome, Eirene (em grego), mitologicamente, significa, conforme Kury (1999), a
paz personificada, filha de Zeus e de Têmis. O tricô da personagem, inclusive, implica
repetição: ora o sempre fazer, ora o fazer e desfazer.
Esta constante ocupação de Irene parece marcar o tempo cíclico da narrativa cortazariana.
Há uma proximidade com o mito de Penélope, que, diante da prolongada ausência de
Ulisses, é pressionada a escolher um novo marido. Com isto, ela propõe começar a tecer a
mortalha de Laerte, seu sogro, e fazer a escolha quando esta estiver concluída. “Nesse
ínterim ela desfazia de noite o que tecia durante o dia, e assim o trabalho não avançava”
(KURY, 1999, p.313).
Quando o narrador sai de casa para comprar lã para sua irmã e vai às livrarias, é,
inutilmente, que pergunta sobre as novidades em literatura francesa, numa sutil alusão à
realidade do país e ao isolamento cultural deste. “Desde 1939 nada de importante chegava
à Argentina” (CORTÁZAR, 1986, p.12). Mas, logo, nossa atenção é desviada para o
cotidiano da casa, num reforço à oclusão, inclusive. Isto por conta tanto do trabalho
repetitivo de Irene quanto do fato de os dois irmãos não precisarem “ganhar a vida”: a
renda era proveniente dos campos e o dinheiro aumentava.
Em meio à rotina do referido casal, dá-se um segundo momento da narrativa, ou melhor, a
quebra da normalidade daquele cotidiano. Assim, ao ouvir um som surdo e impreciso que
se aproximava, o narrador-personagem isola a parte mais afastada da casa, por meio da
porta de carvalho. Há, portanto, o reconhecimento da violação da residência por invasores
desconhecidos.
Desse modo, a referida ruptura com a normalidade é marcada, pois, pela interrupção do
tricotar de Irene. Há, ainda, os indícios do desgaste da vida rotineira das personagens: a
mesma poeira do ar de Buenos Aires parece se associar aos “graves olhos cansados” de
Irene e ao colete cinzento que esta tricotava. No entanto, ocorre, também, o retorno
irrefletido ao rotineiro, de modo alheio à consciência dos acontecimentos que se dão ao
redor.
Com a readaptação dos irmãos, repete-se, em movimento cíclico-temporal, uma nova
invasão, segunda ruptura da normalidade da casa. Neste momento, a parte dianteira da
casa, espaço vital para as personagens, é também tomada. “Apertei o braço de Irene e a fiz
correr comigo até a porta, sem olhar para trás. [...] Fechei de um golpe a porta e ficamos no
saguão” (Id., p.17). Deste modo, o tricô de Irene, ligado ao fio e ao novelo que se pendiam
por baixo da porta trancada, ironicamente, marca o corte da vivência das personagens em
uma realidade fechada.
Por fim, ao jogar a chave da casa em um bueiro, o narrador-personagem sela o seu destino
e o de Irene. Dá-se, pois, a fuga irremediável das personagens, numa ruptura definitiva
com o cotidiano conhecido.
Cortázar (2000, v.2), no texto “Alguns aspectos do conto”, trata do fantástico como
narração que o interessa, afirmando sua maneira singular de compreender o mundo, uma
vez que se opõe a um “falso realismo”, que consiste em pensar que todas as coisas podem
ser descritas e explicadas conforme ideal iluminista, num mundo regido por princípios,
relações de causa e efeito, de psicologias definidas. Assim, para esclarecer a sua própria
concepção de conto, recorre às idéias de Alfred Jarry, poeta francês do início do século
XX, o qual propunha o estudo da realidade conforme as exceções às leis.
Mas, em relação ao conto fantástico, destaca, também, que este, tal como o conto realista,
o dramático ou o humorístico, é passível de constantes gerais à forma narrativa em questão,
que dão a um bom conto sua atmosfera singular e sua qualidade de obra de arte. Volta-se
para a realidade hispano-americana, a qual mostra a importância excepcional que o conto
jamais teve na França (e na Europa), onde vive. Daí, sua concepção (histórica) sobre o
conto da América Latina:
Pouco a pouco, em seus textos originais ou mediante traduções, vai-se
acumulando quase rancorosamente uma enorme quantidade de contos do passado
e do presente, e chega o dia em que se pode fazer um balanço, tentar uma
aproximação valorativa a este gênero de tão difícil definição, tão fugidio em seus
aspectos múltiplos e antagônicos, e em última instância tão secreto e dobrado
sobre si mesmo, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra
dimensão do tempo literário (Idem, p. 349).
Dessa forma, para Cortázar, o sentido primordial do conto é a busca do entrecruzamento
entre a vida e a expressão escrita desta, “síntese viva” e “vida sintetizada”, ou seja,
fugacidade e permanência. Daí, a idéia de intensidade e tensão próprias à técnica
empregada para desenvolver o tema da narrativa, conforme é perceptível em “Casa
tomada”.
Com isto, embora entusiasta assumido da Revolução Cubana (1959), Julio Cortázar mostra
sua lucidez e consciência acerca de seu papel como ficcionista. Como homem
comprometido com a História e, também, escritor consciente do seu ofício, mostra-se
contrário ao critério limitado de confundir literatura com pedagogia, ensino ou
doutrinamento ideológico.
No texto “El sentimiento de lo fantástico”, Cortázar (1967) nos diz que a definição,
aparentemente, impecável do dicionário não dá conta da complexidade imponderável do
fantástico na literatura e na realidade. Nesse sentido, o fantástico proposto por Cortázar
pode ser encontrado a partir do nosso mundo interior e da nossa vivência, quando nossa
inteligência e sensibilidade têm a impressão de que as leis habituais não se cumprem de
todo, ou só de modo parcial, ou, ainda, estão dando lugar a uma exceção.
Assim, o fantástico ou o sentimento deste consiste num estranhamento, feito em que as
demandas da lógica e da inteligência racionalizante, aceitas desde Aristóteles como
imutáveis, são permeadas por uma realidade misteriosa, mostrando que a ciência e a
filosofia estão, apenas, nos umbrais da explicação da realidade. A seguir, salienta,
considerando o contexto da América Latina, que o fantástico e o conto estão,
umbilicalmente, ligados.
Em “O estado atual da literatura na América Hispânica”, Cortázar (2000, v.3), fala-nos da
poderosa presença do que se denominou “sobrenatural” ou mesmo “fantástico” em sua
obra. A sua infância mostra que toda criança é, essencialmente gótica, sobretudo, em
função da inocência, uma vez que está aberta para aspectos da realidade que mais tarde
serão rejeitados pelo aparelho lógico.
Em unanimidade com outros autores do Rio da Prata (Leopoldo Lugones, Jorge Luís
Borges, Bioy Casares (argentinos), Horácio Quiroga, Felisberto Hernández (uruguaios)),
Cortázar recusa o caminho formal e os recursos da literatura fantástica tradicional, que
depende da celebração do páthos (sofrimento) ou da cenografia verbal responsável por
desorientar o leitor, condicionando-o a um ambiente mórbido e impondo o terror. O
“sentimento do fantástico” lhe surge num plano ordinário, às vezes, de origem onírica (é o
caso do conto “Casa tomada”, conforme exemplifica), e nunca lhe parece excepcional, a
exemplo da teoria psicanalítica, voltada para o assombroso.
Julio Cortázar, conforme os ensaios que, na presente comunicação, discutimos, apresentanos suas idéias acerca da realidade e das possibilidades de conhecimento concernentes à
literatura, no intuito de interpretar as questões/problemas que envolvem o homem e o papel
da criação artística em nossa sociedade de consumo, racionalista. Daí, em sua escrita,
surgir uma abertura e uma complexidade, em relação a uma “outra” realidade, que o leva a
romper com os padrões preestabelecidos e a denunciar a violência do homem pelas
palavras e pelas reduções lógicas que encobrem o verdadeiro ser. Nesse sentido, através de
sua fantasia em liberdade, desconstrói, em sua obra, o “lugar-comum” e postula a busca de
novas fórmulas para ver e compreender o caráter múltiplo da realidade.
Desde a sua primeira obra sentimo-nos diante de um realismo que desconhece a
realidade, se podemos dizê-lo, pois está embebido numa atmosfera cheia de
magia, que se move em vários planos (JOSEF, 1993, p. 73; grifos nossos).
Daí, conforme as produções ficcional e crítica já discutidas, surgir a contribuição de Julio
Cortázar. O discurso do realismo mágico, aliás, faz-se presente em sua escrita, porém, de
modo bastante peculiar e sutil, por conta do seu “sentimento do fantástico”. É este, aliás,
que promove, no conto “Casa tomada”, os desdobramentos do real em formas que negam o
próprio real, numa lógica do ilógico, do absurdo.
A escrita cortazariana propõe, de modo geral, um jogo de desestruturação do leitor, seja
por conta do hermetismo (presente em “Casa tomada”), seja por conta da superficialidade
que frustra a vida cotidiana (caso do referido conto e, também, das conferências
abordadas). Tal escrita tanto é marcada pela complexidade e provocação como, também,
pela coerência e lucidez.
Referências
CHIAMPI, Irlemar. Avatares de um conceito. In: Id. O realismo maravilhoso: forma e
ideologia no romance hispano-americano. São Paulo: Perspectiva, 1980. p. 17-39.
CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: Id. Obra crítica, v. 2. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999. p.345-363.
_______. Casa tomada. In: Id. Bestiário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 9-18.
_______. El sentimiento de lo fantástico. Disponível em:
<http://www.juliocortazar.com.ar/obras.htm> Acesso em: 05/06/2007, às 17h15min.
Publicado em: Id. La vuelta al día en ochenta mundos. México: Siglo Veintiuno, 1967.
_______. O estado atual da narrativa na América Hispânica. In: Id. Obra crítica, v. 3. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. p. 81-101.
FREUD, Sigmund. O ‘Estranho’. In: Id. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 275-314.
JOSEF, Bella. O espaço reconquistado: uma releitura: linguagem e criação no romance
hispano-americano contemporâneo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
KURY, Mário da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Zahar,
1999.
MIGNOLO, Walter D. Literatura fantástica y realismo maravilloso. Madrid: La
Muralla, 1983.
TODOROV, Tzvetan. Introduçaõ à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2007.
AS INTERVENÇÕES AUTORIZADAS E NÃO AUTORIZADAS DOS TEXTOS
LITERÁRIOS
Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz *
As mãos fizeram o texto que o engenho criou. Está completo, mas não brotou
das mãos do autor como se diz que Palas terá saído, perfeita, da cabeça de Zeus.
Não está acabado, e isso pode ver-se: há palavras que se trocam, frases que se
deslocam, matérias de origem vária que se entrelaçam, se tecem, se conjugam.
São as mãos do homem e da 37mulher – autores – que nos seus papéis fazem
textos. E que a eles poderão regressar para corrigir, acrescentar, refazer,
abandonar. Ou afeiçoar. 38
Primeiras Palavras
Com o advento da escrita, todo o legado literário foi manuscrito até a Idade Média. Sendo
assim, a cópia manuscrita foi o único meio que o homem dispôs para reter o patrimônio
cultural na memória coletiva e transmiti-lo para a posteridade. A reprodução de uma obra
manuscrita solicitava do copista esforço físico, longas jornadas de trabalho e muita
paciência. Após a invenção da imprensa, no séc. XV, a transmissão textual ganhou novos
impulsos, podendo um mesmo texto ser lido em diferentes lugares e por pessoas distintas.
No entanto, isso não barrou as intervenções feitas, ora por copistas (quando o texto era
manuscrito), ora por tipógrafos e editores (na era da imprensa). Desde a Antiguidade
Clássica, no séc. III a. C. que os primeiros filólogos já se ocupavam do problema de haver
versões diferentes para um mesmo texto, sendo nesse caso as obras de Homero. Ao longo
da história, verificou-se que muitos textos conhecidos, como os de Camões, Gil Vicente,
Gregório de Matos, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Arthur de
Salles (apenas para citar alguns autores portugueses e brasileiros) apresentam versões
distintas, sendo estas muitas vezes que se tornam as conhecidas do grande público e que
são estudadas nos cursos superiores e médios das instituições de ensino no Brasil e em
outras partes do mundo. Neste sentido, pretende-se discutir no presente trabalho a
*
Doutora em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo – USP. Professora Titular da
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Coordenadora dos projetos de pesquisa: “Documentação
de Feira de Santana: um trabalho lingüístico-filológico”, “Estudo histórico, filológico e artístico de
documentos manuscritos baianos dos séculos XVIII ao XX (Financiamento FAPESB – Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado da Bahia – 2004 a 2007)” e “Edição crítica de autores baianos” (Financiamento
FAPESB – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – 2008 a 2010). Líder dos Grupos de
Pesquisa: Grupo de Edição de Textos - GET e Núcleo de Estudos do Manuscrito - NEMa / UEFS (Diretório
dos Grupos de Pesquisa – CNPq). [email protected].
38
Cf. MINISTÉRIO DA CULTURA. As mãos da escrita: 25º Aniversário do arquivo de cultura portuguesa
contemporânea. Organização Luiz Fagundes Duarte e António Braz de Oliveira. Lisboa: Biblioteca Nacional
de Portugal, 2007. p. 199.
importância de se conhecer os textos genuínos de autores tanto canônicos quanto não
canônicos para que a leitura das obras desses escritores não seja incoerente, pois muitas
das intervenções realizadas nos textos não foram autorizadas por seus criadores. Quando as
intervenções são autorizadas, é a última versão que deve ser lida, discutida, comentada e
analisada, pois deste modo se está respeitando a vontade autoral.
OS TEXTOS E SUAS MODIFICAÇÕES
Uma obra está sujeita a diversas formas de modificações, que se classificam em endógenas e
exógenas. As modificações endógenas ocorrem no decorrer do processo de reprodução e
podem ser autorais ou não-autorais. As modificações de cunho autoral, denominadas
endógenas, são movidas pela busca da perfeição, satisfação, embelezamento, etc. As não
autorais são introduzidas por terceiros, envolvidos no processo de reprodução e podem ser
causadas por censuras, divergências ideológicas, falta de atenção e, até mesmo, por motivos
“estéticos”.
As modificações exógenas ocorrem por conta da deterioração do suporte no qual o texto
está registrado, devido a fatores como depredação, ação do tempo, de insetos, da umidade
ou do fogo. A seguir uma mostra de um documento que sofreu esse tipo de modificação,
pois no local onde há o dano a informação foi perdida para sempre.
Fig. 1: Cópia de um fólio do testamento de Antônio Félix Pereira Período: 1749 – 1754
Fonte: Arquivo Público Municipal de Cachoeira – Bahia
É muito natural que boa parte das obras, literárias ou não, que chegou até à
contemporaneidade, contenham textos adulterados, não correspondendo, em essência, ao
conteúdo ideológico, filosófico, estilístico e lingüístico proposto por seus autores. A
filologia textual é um ramo que tem como um de seus propósitos resgatar o patrimônio
cultural produzido por um grupo social, oferecendo ao público um texto autêntico,
genuíno, representativo do ânimo autoral. Na seqüência, poderão ser observadas as
intervenções feitas em seus próprios textos por Guimarães Rosa, Érico Veríssimo e
Graciliano Ramos, ou seja, intervenções autorais.
Fig. 2: Originais do livro Grande Sertão Veredas, de
Guimarães Rosa
Fonte: MINDLIN, José. Uma vida entre livros:
reencontros com o tempo. São Paulo: Edusp/Companhia das
Letras, 1997. p. 104
Fig. 3: Originais do livro Sagarana, de Guimarães Rosa
Fonte: MINDLIN, José. Uma vida entre livros:
reencontros com o tempo. São Paulo: Edusp/Companhia
das Letras, 1997. p. 104
Fig. 4: Página e rosto do original de Olhai os lírios do campo, com emendas de Érico Veríssimo
Fonte: MINDLIN, José. Uma vida entre livros: reencontros com o tempo. São Paulo: Edusp/Companhia
das Letras, 1997. p. 43
Fig. 5: Primeira prova da página de rosto do livro Vidas Secas, antes intitulado O Mundo coberto de pennas,
com as emendas de Graciliano Ramos
Fonte: MINDLIN, José. Uma vida entre livros: reencontros com o tempo. São Paulo: Edusp/Companhia
das Letras, 1997. p. 43
A TAREFA DA FILOLOGIA TEXTUAL
Sendo a filologia textual o ramo do saber que estuda a literatura e todos os fenômenos de
cultura de um povo ou de um grupo de povos por meio de textos escritos, pode-se afirmar
que a sua função consiste na oferta de textos o mais genuíno possível. Com estes em mãos,
o crítico literário poderá exercer sua atividade de forma plena. No entanto, há aqueles que
se opõem. Quanto a isso, Cambraia (2005, p. 21), posiciona-se da seguinte maneira:
Ainda que se argumente que é legítimo realizar uma análise literária voltada para
a forma como o público-leitor percebe um dado texto independentemente de sua
forma ser genuína ou não, tal argumento não invalida o fato de que é igualmente
legítimo realizar outros tipos de análise, como aquelas voltadas para o texto
como ato de criação literária socio-historicamente contextualizado, caso em que
é fundamental saber se o testemunho do texto em estudo é ou não fiel à forma
que o autor lhe deu.
Neste sentido, atuam os filólogos textuais, objetivando sempre apresentar o percurso do
texto produzido por seu autor até a sua forma definitiva, genuína, mesmo que para isso
conte com a opinião daqueles contrários a essa tarefa. É o que afirma Telles (2003, p. 22):
“Vale ressaltar que o mais importante é que se usem textos fidedignos, não nos esquecendo
de que enquanto não dispomos de um texto fidedigno, todas as operações hermenêuticas e
críticas podem tornar-se arbitrárias, intempestivas e inseguras [...]”.
Seguindo-se a direção do que já foi exposto, apresentar-se-á um exemplo da atividade da
filologia textual para a preservação literária baiana. O texto a ser tomado é o Hino ao
Senhor do Bonfim, cuja canção é muito conhecida na voz de Caetano Veloso e que é
cantado nas festas em homenagem ao santo. A letra do hino foi composta pelo poeta
baiano Arthur de Salles, em 1923. Este texto foi editado criticamente pelo Grupo de Edição
Crítica de Textos da UFBA (GAMA, 1993), no entanto, circulam outras versões: em
jornais, pela internet, etc. Vejamos a cópia do manuscrito autógrafo, de posse do grupo da
UFBA, o texto crítico e as versões populares.
Fig. 6: Cópia do manuscrito do Hino ao Senhor do Bonfim, de Arthur de Salles
Fonte: GAMA, Nilton Vasco da et al. Arthur de Salles e o Dous de Julho. Salvador: UFBA/ALBA, 1993.
p. 35.
Texto editado criticamente pelo Grupo
de Edição Crítica de Textos da UFBA*
Glória a Ti neste dia de glória!
Glória a Ti, Redemptor, que há cem anos,
Nossos pais conduziste à victória,
Pelos mares e campos baianos.
Dessa sagrada colina,
Mansão da misericórdia,
Dá-nos a graça divina
Da justiça e da Concórdia.
Glória a Ti! Dessa altura Sagrada
És o eterno fanal, és o guia.
És, Senhor, sentinela avançada,
És a guarda imortal da Bahia.
Aos Teus pés que nos deste o Direito,
Aos Teus pés que nos deste a verdade,
Canta e exulta num férvido preito
A alma em festa da Tua cidade.
À alma heróica e viril deste povo,
Nas procelas sombrias da dor,
Como a pomba que voa de novo,
Sempre abriste o Teu seio de amor.
*Texto estabelecido a partir do cotejo dos seguintes
Texto divulgado no site da Ática
Educacional**
Glória a ti neste dia de Glória
Glória a ti redentor que há cem anos
Nossos pais conduziste à vitória
Pelos mares e campos baianos.
Dessa sagrada colina
Mansão da misericórdia
Dai-nos a Graça Divina
Da Justiça e da Concórdia
Glória a ti nessa altura sagrada
És o eterno farol, és o guia
És, Senhor, sentinela avançada
És a guarda imortal da Bahia.
Aos teus pés que nos deste o Direito
Aos teus pés que nos deste a Verdade
Trata e exulta num férvido preito
A alma em festa da nossa cidade.
Dessa sagrada colina
Mansão da Misericórdia
Dai-nos a Graça Divina
Da Justiça e da Concórdia.
**Fonte:
<http://www.aticaeducacional.com.br/
htdocs/secoes/festas.aspx?cod=420>.
testemunhos: manuscrito autógrafo (sem data); texto
integrante da partitura do hino, impresso pela
Litografia Viúva Reis (sem data); e uma publicação
da Ilustração Brasileira, v. 4, n. 34, 1923.
Texto cantado pelo Coral das
Crianças***
HINO AO SENHOR DO BONFIM
(Antônio Vanderley e Arthur de Salles)
Glória a ti neste dia de Glória,
glória a ti redentor que a cem anos
Nossos pais conduziste a vitória,
pelos mares e campos baianos
Dessa sagrada colina,
mansão da misericórdia,
Da-nos a graça Divina
da justiça e da concórdia
Gloria a ti dessa altura sagrada,
es o eterno fanal es o guia
Es senhor sentinela avançada,
es a guarda imortal da Bahia
Aos teus pés que nos deste o direito,
a teus pés que nos deste a verdade
Canta e exulta um fervido preito
a alma em festa da tua cidade
Àlma heróica e viril deste povo,
nas procelas sombrias da dor
Como a pomba que voa de novo,
sempre abriste teu seio de amor
***Fonte:
< http://www.coraldascriancas.salvador.ba. gov.br/
musica.asp#>.
Acesso em: 14 jul. 2007
Acesso em: 14 jul. 2007.
Texto veiculado no jornal O Globo*****
Hino do Senhor do Bonfim
João Antonio Wanderlei e Peiton de Vilar
Glória a ti neste dia de Glória
Glória a ti redentor que há cem anos
Nossos pais conduziste à vitória
Pelos mares e campos baianos.
Dessa sagrada colina
Mansão da misericórdia
Dai-nos a Graça Divina
Da Justiça e da Concórdia
Glória a ti nessa altura sagrada
És o eterno farol, és o guia
És, Senhor, sentinela avançada
És a guarda imortal da Bahia.
Aos teus pés que nos deste o Direito
Aos teus pés que nos deste a Verdade
Trata e exulta num férvido preito
A alma em festa da nossa cidade.
Dessa sagrada colina
Mansão da Misericórdia
Dai-nos a Graça Divina
Da Justiça e da Concórdia.
****Fonte:
< http://oglobo.globo.com/pais/ noblat/
arquivo16.asp>. Acesso em: 14 jul. 2007
Ao analisar as versões aqui apresentadas, conclui-se que não há uma preocupação, nem por
parte de cantores famosos e nem de estudiosos da literatura e críticos literários, em
examinar sempre o texto mais genuíno. Será correto fazer análises literárias a partir de
textos que não foram autorizados pelo autor? A qualidade dessas interpretações é válida?
Verifica-se, a partir dos exemplos aqui apresentados, que o texto de Arthur de Salles,
escrito em 1923, foi sendo modificado sem seu consentimento. Outra questão a ser
destacada é a atribuição da autoria do hino a Phetion de Vilar que, na versão veiculada no
jornal O Globo, aparece como Peiton de Vilar. Outro dado é a mudança de fanal para
farol. Fanal, segundo acepção registrada no Dicionário Aurélio século XXI, significa farol,
facho, guia, norte – cuja etimologia remonta ao século XVII, originada do italiano fanale
(CUNHA, 1991, p. 348). Farol, por sua vez, tem por significado figurado “coisa que
alumia ou guia, direção, diretor, guia” (FERREIRA, 1999, p. 877 e 881). Sabe-se que
fanal não é uma palavra de uso corrente, mas foi esta que utilizou o poeta Arthur de Salles
em todos os testemunhos encontrados do Hino ao Senhor do Bonfim, sendo esta que
deveria figurar em qualquer versão. Outro dado a ser ressaltado é o fato de faltar a última
estrofe nas versões veiculadas pela Ática Educacional e pelo jornal O Globo, uma
intervenção gravíssima.
Últimas Palavras
Faz-se de suma importância a preocupação que todos aqueles que lidam com o texto
literário devem ter, pois, como argumenta Teixeira (2006, p. 113-114): “Recolher,
colecionar, comparar, restaurar, restituir a autenticidade são ações que fazem parte do labor
filológico para que a sociedade de modo geral possa ter acesso ao saber armazenado nos
textos.” O que se deve retirar do texto é a mais autêntica expressão do seu autor, a fim de
que o seu pensamento seja valorizado. Sendo assim, faz parte da responsabilidade dos
filólogos textuais a recuperação, a transmissão e a preservação do patrimônio cultural
escrito, a fim de que cada vez mais sejam apresentados, ao público especializado e geral,
textos genuínos.
Referências
CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua
portuguesa. 2. ed. 4.. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
GAMA, Nilton Vasco da et al. Arthur de Salles e o Dous de Julho. Salvador:
UFBA/ALBA, 1993.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda [1910-1989]. Novo Aurélio século XXI: o
dicionário da língua portuguesa. 3. ed. 4. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
MINISTÉRIO DA CULTURA. As mãos da escrita: 25º Aniversário do arquivo de cultura
portuguesa contemporânea. Organização Luiz Fagundes Duarte e António Braz de
Oliveira. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2007.
SPAGGIARI, Barbara; PERUGI, Maurizio. Fundamentos da crítica textual. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2004.
TEIXEIRA, Maria da Conceição R. Os textos literários e a crítica textual: a importância do
labor filológico. In: TEIXEIRA, Maria da Conceição R.; QUEIROZ, Rita e Cássia R. de;
SANTOS, Rosa Borges dos (Org.) Diferentes perspectivas dos estudos filológicos.
Salvador: Quarteto, 2006. p. 95-115.
TELLES, Célia Marques. Que textos são oferecidos aos estudantes? Revista do GELNE Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste, João Pessoa, v. 5, n. 1 e 2, p. 21-28, 2003.
BUGRINHA, DE AFRÂNIO PEIXOTO: UMA LEITURA DOS ASPECTOS
CULTURAIS
Érica Azevedo Santos – IC-UEFS *
Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz – UEFS (Orientadora)
INTRODUÇÃO
A partir de uma rápida análise filológica acerca do vocábulo cultura, compreende-se que
este se originou do termo latino colere (cultivar) e seu significado relacionava-se com
agricultura, plantação. Segundo o Dicionário Etimológico-prosaico da Língua Portuguesa,
inicialmente se utilizava o termo cultura para as coisas do espírito, ou seja, a palavra
começou a ganhar uma conotação “simbólico-abstrata” que, também, viria a representar
desenvolvimento intelectual ou material da sociedade.
Michel de Certeau (2001) explicita que o significado de cultura está ligado ao
funcionamento de ideologias e sistemas dessemelhantes e exemplifica seis designações
aplicáveis à palavra, das quais quatro são relevantes para este trabalho, a saber:
a) Traços do homem culto;
b) Patrimônio das obras;
c) Compreensão do mundo próprio de um meio;
d) Comportamentos, instituições e ideologias que caracterizam uma sociedade e a
diferenciam de outra.
Tais designações comprovam que não é fácil uma definição de cultura, uma vez que há
muito já a utilizamos para denominações amplas, mas também restritas, concretas, e ao
mesmo tempo abstratas das atividades humanas. Como a cultura possui um caráter
coletivo, deve-se tentar concebê-la numa perspectiva múltipla, não restringi-la a um
determinado meio ou tendência, mas buscar perceber as relações que a definem.
A preocupação com a cultura, num sentido moderno, nasceu, segundo Santos (1996),
associada à necessidade do conhecimento científico no século XIX, embora esclareça que
no século anterior pensadores alemães já houvessem se engajado na interpretação da
história do homem, na tentativa de compreensão das particularidades de seus costumes, a
partir de questões relacionadas à cultura.
*
Graduanda em Letras Vernáculas. Bolsista de iniciação científica do projeto “Edição Crítica de Autores
Baianos”, coordenado pela Profª. Drª. Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz.
Aqui, compreendendo cultura numa acepção que diz respeito aos aspectos sociais e de
conhecimento de um determinado povo, buscar-se-á perceber as características culturais
que permeiam as páginas de Bugrinha.
Autor e Obra
Júlio Afrânio Peixoto nasceu em Lençóis, na Chapada Diamantina, em 17 de dezembro de
1876 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro, em 12 de janeiro de 1947. Médico, político,
romancista, educador, historiador, Afrânio Peixoto obteve sucesso e respeito em todos os
campos em que atuou. No campo literário, realizou pesquisas e publicações importantes,
como das obras de Camões e Castro Alves, por exemplo. Como escritor, deixou-nos obras
que retratam a gente de sua terra natal. Sua estréia literária ocorreu em 1900, com a
publicação de Rosa Mística, drama polêmico, repudiado por ele próprio. Após a publicação
desta obra, houve uma pausa na criação literária do escritor, que só voltou a escrever uma
década depois e, em 1911, após ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, publicou A
Esfinge, seu primeiro romance, livro que alcançou grande sucesso e teve a tiragem
esgotada em poucos dias, possuindo duas edições no mesmo ano.
Seus romances são classificados, do ponto de vista do cenário, em urbanos e sertanejos. Os
romances que pertencem a esta última denominação são páginas que, com grande riqueza
de descrição, mostram as paisagens naturais, a cultura, os típos humanos e a economia das
cidades-cenário. Em Bugrinha, considerado o romance de Lençóis, Afrânio Peixoto
descreve a cidade em que nasceu, homenageando-a, batizando mais um pedaço da Chapada
Diamantina na história da literatura brasileira.
Publicado em 1922, Bugrinha é o quarto romance de Afrânio Peixoto, penúltimo sertanejo,
classificado também na linha de romances da mineração do diamante. Protagonizado por
Bugrinha e Jorge, personagens que vivem um amor marcado por ciúmes, preconceitos,
inseguranças, que culminam com o sacrifício da protagonista, a qual entrega a própria vida
para salvar seu amado, a obra traça o perfil da cidade e do modo de vida de seu povo: “[...]
um romance que faz um raio-x de uma cidade, de sua gente, tão semelhante às outras da
chapada.” (SALES, 1988, p.45).
BUGRINHA E A FOLIA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO
A Folia do Divino Espírito Santo, festa religiosa trazida para o Brasil pelos portugueses no
século XVI, constitui-se em uma das formas de comemoração do Divino Espírito Santo.
Em Portugal, inicialmente, tal manifestação acontecia com cantos e danças rápidas, para
em seguida fixar, segundo Cascudo (2000), adotando características e modos peculiares
diferenciados. O Divino é representado simbolicamente por uma pombinha branca
ilustrada numa bandeira. É uma festa composta de novenas e ladainhas, procissão,
quermesse. A parte material é financiada pela população através de donativos.
Para Fernando Sales (1988), há em Bugrinha uma das mais perfeitas descrições da folia do
Divino Espírito Santo. O ritual é apresentado no romance aliado a uma divergência entre o
pároco da cidade e algumas personalidades:
Queria Cristina saber das novidades que achara em Lençóis.
- Nada que preste, respondeu o rapaz, desviando também a vista, e aparentando
calma e mudança de imaginação... – A luta dos caixeiros viajantes, que tudo
fazem para primazia [...] a política de sempre..., a baixa dos diamantes... e, agora,
o caso do Divino Espírito Santo...
Quiseram saber desse caso.
-Parece que vai dar que falar, e que fazer... O vigário, em varias rodas, e lá
mesmo em casa, no dia de minha chegada, abriu-se contra este costume, que ele
diz indigno de terra civilizada e católica, como Lençóis, de se queimar dinheiro
com fogo de planta, luminárias, bombas e foguetes, cavalhada e folia nas ruas,
orgia e bambochata nas casas, para festejar o Divino... Bastavam as festas de
igreja, a celebração do culto, o pé-de-altar. O mais, que se economizasse... não
faltaria destino... um hospital,uma escola, as obras paradas da matriz, a fachada
da Igreja do Rosário. 39 (PEIXOTO, 1924, p.92-93)
A festa do Divino permeia quase toda a trama, revelando a importância do evento para o
povo da cidade, que vê no ritual uma questão de fé tanto quanto diversão. O trecho
transcrito acima permite, ainda, fazermos uma leitura da visão da igreja, representada pelo
padre, acerca da parte “menos religiosa” da festa. Percebe-se que a maneira irônica que o
romancista explicita o que o pároco considera necessário para a folia, ao mesmo tempo em
que revela interesses não somente religiosos do representante da igreja revela também o
caráter religioso-profano da comemoração. A discussão sobre como deve ser a festa
acontece de forma a mostrar o embate que havia entre a igreja e alguns cidadãos.
A tradição da terra é registrada pelo romancista de maneira que demonstra a visão que a
igreja, os ricos e os pobres possuíam do ritual. No momento em que a festa acontece é
39
Os trechos foram transcritos com ortografia atualizada
como se todos, independentemente de seu desejo a respeito da forma como se deveria
realizá-la, apresentasse uma unicidade. O trecho seguinte descreve o momento em que,
finalmente, ocorre a folia,:
Como numa busca por coesão a referência à folia é retomada na seqüência dos
capítulos e tem seu clímax no antepenúltimo quando de fato ocorre o ritual,
exatamente como o povo a queria, com gastos e procissão pelas ruas:
Foi logo propalada a notícia pela cidade, em todo trajeto, cheio de gente, por
onde ia passar a folia. De boca em boca transmitia-se a boa nova, exultantes
todos, de comunicativa alegria. Cessava a excepção única feita aos sentimentos
comuns do povo, readquirida a solidariedade dos Castros, que eram benquistos, e
contavam como de melhor gente da terra. O fervor religioso alçava-se a
entusiasmo da turba, pela unanimidade do culto ao Divino Espírito Santo.
Supersticiosa a multidão que antevia castigo certo àquela defecção, desabafava
satisfeita. Ainda bem! [...]. (PEIXOTO, 1924, p.311).
Para Araújo (2008), este episódio da festa é o melhor momento de todo o romance.
A CULTURA DO DIAMANTE E ALGUNS COSTUMES
A abordagem literária que pretenda abranger uma totalidade, conforme Almeida (1999),
não pode prescindir do fator cultural, porque este se constitui em um elemento endógeno
ao estético, se encontra em seu centro. É o que se percebe em Bugrinha, em que Afrânio
Peixoto procura poetizar o pensamento e as ações de seus conterrâneos ao relatar, através
dos personagens, comportamentos do homem da terra e o que eles pensavam sobre ela.
Lençóis, como outras cidades da Chapada Diamantina, desenvolveu forte comércio de
diamante devido às minas exploradas na região, o que dava um status à cidade, fator de
orgulho para seus habitantes, registrado num diálogo de Bugrinha:
[...] _ Você não precisa ir tão longe... Na capital os presidentes, na Corte os
ministro, dançam... Temos nossos exemplos...
- De acordo, mas em Paris...
- Qual Paris, nem meio Paris... vocês têm aqui a mania de viver em Paris ...
Há a capital, de permeio, Capitão!
- De passagem... você sabe que apenas nos serve de ponto de embarque...
Lençóis corresponde-se com Paris: tudo nos vem de lá, e para lá vai o nosso
diamante... Que nos importa a Bahia?
- Não é assim, ou não deve ser assim, a capital é o centro...
- Lençóis é a capital do Sertão, Pereira & Miranda... Vocês da Bahia, é que nos
vêm procurar. [...]. (PEIXOTO, 1924, p. 30-31)
No diálogo acima é possível fazer uma leitura da posição em que Lençóis se encontrava no
estado da Bahia e de como os nativos se sentiam honrados com tal prestígio, bem como a
forte influência que a cultura francesa exercia nas pessoas. Como é sabido, durante o
século XIX, o modo de vida francesa foi admirado e copiado por muitos brasileiros. “Em
Bugrinha, temos, ainda, a conversa nos salões da sociedade lençoense-das mais cultas do
sertão baiano” (SALES, 1988, p. 45).
A leitura do romance nos mostra não apenas as riquezas oriundas do diamante, mas
também a obsessão pela descoberta do mineral:
_ Parece que não vivemos na mesma terra... venho aqui todos os dias e ainda não
pude conversar com o Manoel Alves... Como vai ele?
-Como Deus manda e é servido... no mesmo, de sempre.
_ Sempre com aquelas cismas, com aqueles planos de garimpos imaginários?
[...]
- Sempre... É um homem de força de vontade... o que tem no juízo, mas dia,
menos dia, faz... Trabalha, a semana inteira para os patrões, mas, nos domingos e
dias de guarda lá está ele, fura aqui, esburaca acolá, “faiscando”,
experimentando, provando, na esperança de achar a mina de sua esperança .
Chega cansado depois de ter sofrido fome, chuva, mau trato, mas chega alegre,
porque traz confiança... Ali, daqueles lados, em tal e tal altura, “tem umas
informações,” um cascalho virgem e engomado, que não deve falhar... Tem no
bolso porção de pedra à toa, mas também a certeza que hão de trazer o diamantepingos dágoa, cericória... que vai aí amontoando... E não desanima... A pobreza
não lhe faz medo... não tira a decepção a confiança... qualquer dia destes bota a
mão na sorte... E dorme rico, e acorda pobre, sempre disposto a recomeçar a
labuta... (PEIXOTO, 1924, p. 119)
Considerações Finais
As tradições e os pensamentos da comunidade baiana se manifestam nas páginas de
Bugrinha e os aspectos culturais que podem ser percebidos são inúmeros. Objetivou-se,
neste trabalho, apresentar a leitura de alguns deles a fim de suscitar outras possíveis
leituras.
Referências
ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro
(1857-1945). 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
ARAÚJO, Jorge de Souza. Floração de imaginários: o romance baiano no século 20.
Itabuna/Ilhéus: Via Literarum, 2008.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 9. ed. São Paulo: Global,
2000.
CERTEAU, Michel. A cultura no plural. Tradução Enid Abreu Dobránszky. 2. ed.
Campinas, SP: Papirus, 2001.
PEIXOTO, Afranio. Bugrinha. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1924.
SALES, Fernando. Aspecto da vida e obra de Afrânio Peixoto. Salvador: Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 1987.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 16. ed. 9. reimpressão. São Paulo: Brasiliense,
1996.
GÊNERO E ESPÉCIES DE POESIA NAS POÉTICAS
Clara Carolina Souza Santos (UESB)
Marcello Moreira (UESB)
Aspectos da circulação de textos aristotélicos
De Aristóteles, os homens de saber entre os séculos XII e XIV possuíam há tempos os
tratados de lógica traduzidos desde o final do século V por Boécio, cujo conjunto formava
o Organon. Sabemos, ainda, que nos anos 1200, já se tinha à disposição em tradução
latina a quase totalidade das obras filosóficas de Aristóteles e, a partir de então, o corpus
aristotélico passou a ser assumido pela maior parte das faculdades de artes criadas
posteriormente, ainda que, em algumas universidades meridionais, a filosofia tenha
assumido um papel secundário em relação à gramática e à retórica (VERGER, 1999).
Dizer isso não implica na certeza de que o conjunto de obras aristotélicas fosse ensinado de
maneira sistemática, no entanto, pode-se supor que qualquer pessoa que tivesse recebido
alguma formação de certo nível teria sido, por essa mesma razão, iniciada na lógica de
Aristóteles, ou, pelo menos, nos aspectos mais conhecidos de sua filosofia.
É comum a afirmação de que, entre os séculos XIV e XV vários intelectuais aderiram ao
aristotelismo, tomado como sistema filosófico corrente, mais conhecidos por nós
contemporâneos como “averroístas”, e o aristotelismo - sobretudo o compreendido à luz
dos comentários de Averroes - voltava-se para uma exposição de doutrinas dificilmente
conciliáveis com a revelação cristã: indício que justifica a aparição da Poética 40 de
Robortello apenas em 1532 (WEINBERG, 1961).
A partir de meados do Quinhentos, com a reapropriação dos escritos aristotélicos,
principalmente o comentário composto por Robortello em 1532, a Poética passa a definir
um campo unificador de várias espécies de discursos que não encontravam lugar no trívio
medieval, conceituando a poesia como um gênero discursivo que tem elementos de
composição, preceitos de excelência e finalidades próprias de destinação. Em nota, Adma
Muhama (2002) diz:
40Como esta análise baseia-se nos comentadores aristotélicos do XVI e XVII, buscamos traduções da Poética impressas
no XIX e XX para recuperar o texto de Aristóteles. Utilizamos, para tanto, três versões: uma em grego e duas em inglês,
e suas referências podem ser encontradas na bibliografia. Todas estas as versões atualizadas da Poética propõe traduções
não raro controversas, mas convergem na distinção entre modos e espécies de imitação, ponto de interesse para a
composição deste artigo. Todas as versões, fruto de estudos filológicos, são baseadas no manuscrito no.1741 de
Rapini(1675 ou 1674), designado como Ac. Outra fonte destas impressões no século XX, são as cópias de alguns
manuscritos renascentistas – que corrigem e reiteram a edição de Rapin – e também as traduções arábicas e sírias,
atribuídas, como se sabe, à Abu-Baschar e uma menos conhecida de al-Farabi. A editio princeps da Poética é a "edição
aldina" dos textos de Aristóteles, publicada em 1508 por Aldus Manutius em Veneza.
Pelo que consta, a primeira edição latina da Poética, numa tradução de Giorgio
Valla em 1498, passou desapercebida até a publicação do texto grego com a
tradução de Alessandro de Pazzi, em 1548. Sua efetiva divulgação, porém, terse-á dado a partir da edição comentada de Robortello. Talvez hoje essa opinião
necessite ser revista: são notáveis em autores dos séculos XIV e XV
considerações específicas da Poética que parecem não terem sido transmitidas
pelas retóricas de Cícero e Quintiliano, nem pela Ars Poética de Horácio, obras
que não sofreram interrupção de leitura durante todo o período medieval, mesmo
que incompletas. Uma explicação possível seriaque a tradução da Poética feita
por Averróis, no século XIII, não tenha sido assim tão desconhecida no Ocidente
quanto se tem assim por assente. (MUHAMA, 2002, p.12).
Posteriores aos comentários de Averróis, surgem outras traduções latinas do texto, por
exemplo, a de Vida (1527), que não possui nenhuma referência ao drama; a de Maggi
(1550), Minturno (1559), Vettori (1560), Trissino (1563), Castelvetro (1570), entre
outros...
O texto aristotélico permanece supostamente perdido por séculos; em
contrapartida, supomos que a Ars Poetica horaciana, por exemplo, quase não sofre
interrupção de sua circulação 41 (BALDWIN: 1939). Para compor o cenário controverso da
circulação de Poéticas no XVI, podemos citar, ainda, as publicações de Giorgio Valla concluídas para o latim em 1498, seguida de uma edição em grego composta por Aldine,
em 1508. Algumas outras Poéticas publicadas também ao longo do XVI priorizam o
cruzamento entre a Ars Poetica aristotélica e a horaciana, como, por exemplo, a de Dolce
(1535), seguida da de Daniello (1536), com poucas referências à tragédia e à comédia em
língua italiana. Em 1536, Allessandro de' Pazzi publica outra edição em grego, seguida do
texto em latim; e apenas em 1548 Robortello publica o conhecido como “primeiro
comentário”, em tradução latina;
Bernardo Segni, um ano após a publicação do
comentário de Robortello, traduz o texto para a língua vulgar, o italiano.
Ainda posteriores ao comentário de Robortello são impressas outras Poéticas conhecida
como Maggi's Explicationes (1550) e a de Muzio (1551), ambas tidas por detalhadas,
difusas e muito próximas ao “pensamento” dos próprios autores. Outras, como a de Varchi
(1553), nas Lezzioni, expõem didaticamente as categorias aristotélicas da tragédia, assim
como o faz Giraldi Cintio em 1543, no Discorso sulle Comedia e sulle Tragedie, impresso
em 1554, emulado das apropriações do já conhecido Daniello. Continuando a compor o
cenário profuso de impressões de Poéticas podemos, ainda, citar as de Minturno, De Poeta
41Muito já foi dito sobre o apagamento e reaparecimento dos escritos aristotélicos na europa ocidental entre os séculos V
ao XII e posteriores. Limitaremo-nos a sugerir alguma bibliografia básica para conhecimento da questão já amplamente
discutida: WEINBERG, Bernard. A History of Literary Criticism in the Italian Renaissance. Univ. Chicago Press, 1961;
__________, From Aristotle to Pseudo-Aristotle. IN: Comparative Literature, Vol. 5, No. 2 (Spring, 1953), pp. 97104; LAÍLLA, Luís Sánchez. «Dice Aristóteles»: la reescritura de la Poética en los Siglos de Oro , IN: CRITICÓN, 79,
2000 pp. 9-36.; Ch. S. BALDWIN, Renaissance Literary Tbeory and Practice. (Classicism in the Rhetoric and Poetic of
Italy, France and England, 1400-1600), New York, Columbia University Press, 1939; SORABJI, Richard (org). Aristotle
transformed.The Ancient Commentators and Their Influence. Duckworth, 1990; William W. Fortenbaugh,David C
Mirhady. Peripatetic Rhetoric After Aristotle.Rutgers University Studies. Transaction Publishers, 1994.
(1559) e Arte Poetica (1564), a Arte Poética de Piccolomini (1575), Viperano (1579),
Patrizzi (1586); o Discorsi dell ' Arte Poetica (1587) e Denores ' Poetica (1588), ambas de
Tasso; os Discorsi Poetici (1597), Insegnari 's Poesia Rappresentativa (1598) e Summo's
Discorsi Poetici (1600), do Buonamici, entre outras.
Podemos supor pelo demasiado número de edições, comentários, traduções, anotações, que
os gêneros são adequados às circunstâncias específicas, e podem, por vezes, ser distintos
em distintas poéticas. Com essa profusão de comentários das obras aristotélicas, podemos
ainda supor a produção poética do Quinhentos, Seiscentos, Setecentos e subseqüente como
baseada fortemente na noção aristotélica de poesia como imitação, logo, de seus modos e
espécies, aliada a preceitos oriundos das retóricas que nos chegaram acerca de gêneros
deliberativo, judical e demonstrativo e estilos dos discursos.
Talvez uma arqueologia de gêneros e sua determinação específica devesse partir dos usos
mais recorrentes das artes em determinados círculos de saber. Dizer isso não implica na
certeza de que os gêneros são circulares ou fechados; se são três, dois ou mais; se existem
gêneros comuns a todas as artes imitativas; se existem gêneros que são coetâneos em
produção em todos os estados monárquicos; se os gêneros que coincidem entre uma
Poética e outra – por exemplo, a tragédia - possuem em cada texto os mesmos preceitos e
modos de representação; e tudo o mais que se poderia inferir de um campo tão fecundo
como o Poético ao longo do século XVI. No entanto, mesmo que tenhamos mais dúvidas
que certezas quando falamos sobre gêneros e espécies de poesias, o entendimento dessas
noções em tratados sobre Poéticas é básico para uma correta compreensão dos
fundamentos e objetivos dos textos poéticos ou das práticas letradas do período.
Feitas as devidas considerações, passemos ao nosso ponto de partida para a discussão dos
gêneros de poesia aristotélicos nas apropriações e emulações da poética no XVI: o texto de
Robortello, o “primeiro” a discutir a recém descoberta Poética de Aristóteles 42, 43.
42Vários estudos apontam as apropriações da Poética aristotélica e suas modificações. Como o interesse deste artigo
consiste em exemplificar as divergências entre modos e espécies, logo, entre gêneros, nos limitaremos a sugerir uma
bibliografia de fácil alcance e que dê conta destas diversas anotações e “recriações” de poéticas que se vinculam a uma
estrutura mecênica de produção. São elas: FAHY, Conor. Reviewed work(s): Trattati di poetica e retorica del Cinquecento
by Bernard Weinberg IN: The Modern Language Review, Vol. 72, No. 4 (Oct., 1977), pp. 968-971; CLARK, Barret H.
European Theories of the Drama. Cincinnati: Stewart & Kidd Company, 1918. Outras sugestões podem ser encontradas na
bibliografia.
43Para uma visão mais precisa, menos geral, do campo Poético nos séculos em questão torna-se necessário
rastrear também os fundamentos da poética horaciana e em que medida ela serve de fundamento para a
produção das letras no XVI, XVII e XVIII. Sugerimos a leitura de A Arte Poética do Cândido Lusitano,
impressa em Portugal no XVIII, que apresenta brevemente as apropriações da Ars Poetica horaciana no período
em seu prólogo.
Librum de arte poetica explicationes
O texto da Poética aristotélica é uma incógnita. A maioria das versões dos séculos XIX e XX são baseadas no
manuscrito no. 1741 de Rapin (1675 ou 1674), designada como Ac, emulada da conhecida posteriormente como
editio princeps. Escamoteada em diversas traduções do árabe, sírio, grego, etc. feitas antes ou produzidas pelos
conhecidos “averroístas”, o século XIX reconhece a editio princeps da Poetica na publicada por Aldus Manutios,
em 1508. Sabe-se que, apesar da “edição aldina” de Manutios circular desde o início do XVI, a tradução da
Poetica de Aristóteles composta por Allezzandro de Pazzi, impressa em 1536, é apropriada por Robortello para a
execução de sua tradução, pois que a deste é inconclusa e não glosada. A cada um dos parágrafos propostos pelo
suposto Aristóteles, traduzido do grego pelo Robortello, segue um comentário do próprio tradutor, de modo a
tornar o texto mais acessível, compreensível e menos obscuro. São alguns destes comentários que nos interessarão
no texto que há de se desenvolver.
Assim, o Librum de arte poetica explicationes (Explicações à Arte Poética), impresso em
Florença em 1548, completava a versão latina da Poética aristotélica composta por
Alessandro de Pazzi, publicada em 1536. O livro pode ser dividido em sete sessões. A
primeira, dedicada ao comentário à Poética aristotélica –
Explicationes in librum
Aristotelis, qui inscribitur de Poetica -, e a segunda, dedicada a uma paráfrase do livro
horaciano (Francisci Robortelli Utinensis paraphrasis in libellum horatii, qui vulgo de arte
poetica inscribitur), cumprem a função de legitimar e autorizar o tratado poético de
Robortello.
As demais sessões dedicam-se à proposição dos gêneros epigramáticos, comédia, sátira e
elegia (De Satyra, De Epigrammate, De Comoedia, De Elegia) explicados com método e
artifício. Estas sessões são denominadas como vemos a seguir: (1)Francifci Robortellii
Vtinenfis explicatio eorum omnium, quae ad satyram pertinent; (2) Francifci Robortelli
Vtinenfis eorum omnium, quae ad methodum et artificium scribendi epigrammatis
spectant. Explicatio; (3) Francifci Robortelli Vtinenfis explicatio eorum omnium, quae ad
comoediae artificium pertinent; (4)Francifci Robortelli Vtinenfis explicatio eorum
omnium, quae ad quaestiones de salibus pertinent; e (5)Francifci Robortelli Vtinenfis
explicatio eorum quae ad elegiae antiquitatem, et artificium spectant.
Nas duas primeiras sessões, o tratadista compõe topicamente o louvor às autoridades em
poética, neste caso Aristóteles e Horácio, demonstrando retoricamente o domínio do
artifício proposto pelas auctoritates produzindo comentários explicativos ou reiterativos.
Este procedimento não é novidade na impressão de livros nos seiscentos e pode-se supor
que tal procedimento vincula-se a (1) um desenvolvimento da legitimação do caráter do
livro e das relações “sociais” e “de poder” que ele implica e (2) um dos “passos” efetuados
pelo letrado para que a ele seja conferida autoridade como tratadista, poeta, letrado,
historiador, etc.
Na primeira sessão, quando Robortello propõe o comentário à Poética aristotélica, diz sobre a conhecida
passagem acerca das espécies e da natureza da poesia 44:
Antequam contextum aggredior explicandum libelli huius, videtur esse
necessarium, ut perquiramus, Qualis sit poëtica facultas, & quam habeat uim;
Quem finem propositum; Quam materiem subiectam, ex qua opus suum
conficiat; Atque hoc postremum primo loco, nam cetera cõmodius consequentur.
Subiicitur tanquam materies poëtice facultati oratio,((f)) sicuti et aliis omnibus,
quae circa orationem uerfantur. Eae autem sunt quinq. numero, Demonstratoria
(sic enum [...] licet appellare) dialectice. rhetorice. sophistice. poëtice; nam de
grammatice, quae minutiora quaedam considerat, non est in animo quidpiam
dicere.(ROBORTELLO: 1548, n.s. )
Depois de expor as artes da Dialética, Retórica, Sofística, Gramática, Demonstratória e
Poética - o que se conhece como um dos modos de apresentação do sistema filosófico
aristotélico - Robortello comenta cada uma das artes demonstrando o que as torna
particulares: quais seriam as faculdade e matérias da poética; que posição ocuparia
hierarquicamente em relação às demais artes liberais. O seguimento do comentário compõe
o louvor à Poética em relação ao seu gênero retórico produzindo a persuasão mediante a
exposição laudatória das seguintes questões: (1) qual efeito a Poética produz? (2) Que
faculdade ela habilita ao orador, letrado, poeta, príncipe, ou qualquer outro homem da
corte?
O argumento é composto pela enumeração das diversas artes: demonstratória, dialética,
retórica, sofística... até a Poética, relacionando cada uma das artes ao efeito que sua
matéria de invenção se propõe a produzir: a demonstratória lida com a verdade; a dialética
com o provável; a retórica com a persuasão; a sofística tanto com a verdade, quanto com o
fabuloso. E conclui: o poeta lida com o falso, o fabuloso.
Ex his quaelibet facultas vnum arripit genus, Demonstratoria verum.
Dialectice probabile. Rhetorice suasorium. Sophistice idquod probabilis,
sed verisimilis habet speciem. Poëtice falsum, seu fabulosnm. (
ROBORTELLO: 1548, n.p.).
44 Torna-se conveniente recuperar o texto aristotélico, a fim de demonstrar as similaridades e diferenças entre os
comentários. No parágrafo [1447a] de sua Poética, diz Aristóteles: ”[1447a] Περ. [”My design is to treat of poetry in
general, and of its several species – to inquire what is the propor effect of each – what construction of a fable, or plan, is
essential to a good poem – of what, and how many parts, each species consists; with whatever else belongs to the same
subject:wich I shall consider in the order that most naturally presents itself. Epic poetry, tragedy, comedy, dithyrambic's,
as also, for the most part, the music of the flute, and of the lyre – all these are, in the most general view of them,
imitations; differing, however, from each other in three respects, according to the different means, the different objects, or
the different manner, of their imitation. For, as man, some through art, and some through habit, imitate various objects,
by means of colour and figure, and others, again, by voice; so, with respect to the arts above mentioned, rhythm, words
and melody, are the different means by wich, either single, or variously combined, they all produce their imitation.”]
Trataremos neste texto dos comentários produzidos ao longo do XVI e XVII deste excerto e como ele é alterado, anotado,
acrescentado, emulado, etc.
O comentário classifica hierarquicamente cada uma das artes em maiores, médias ou
menores em relação umas às outras, sendo justificadas as classificações com passagens dos
Tópicos e da Retórica aristotélicos para, em seguida, criar a razão da Poética (a fábula) e
como esta imita por necessidade e verossimilhança, podendo, em alguns casos, a fábula
conter uma razão verdadeira.
Cum igitur poëtice subiectam sibi habeat pro materie orationem fictam; &
fabulosam; patet ad poëticen pertinere, ut fabulam, & mendacium aptè confingat;
aulliúsque alterius artis proprium magis esse; mendacia comminisci, quàm huius.
(ROBORTELLO, 1548: p.20)
Retomemos um outro excerto do comentário à Poética aristotélica composto por
Robortello, para evidenciarmos a relação entre a poética e as demais artes liberais.
Talem igitur orationem suscipit poëtice, Quòd si rurfus ea, quae à me dicta sunt,
consideres Necessarium, & verum ad demonstratoriam solam spectat; Reliquae
verò & necessarii participes quidem sunt, aliae magis, aliae minus. Dialectice
maximè omnium, nàm proximè abesta demonstratoria. Rhetorice aliquantò
minus, quàm dialectice; nam longius abest à demonstratoria. Sophistice
perpausillum quidpiam, nam & posterior est rhetorice, & maiore distat intervallo
à magistra veritatis. Poëtice verò minimè omnium, ac nihil prorsus, nam est
veluti alterum extremum prosus à primo dissimile. Dialectice medium obtinet
locum inter demonstratoriam, & rhetoricen. Rhetorice medium inter sophisticen,
& dialecticen. Sophistice medium occupauit inter poëticen, & rhetoricen. Et
quoniam demonstratoria optimè id, quod verum est, cernit, acdignoscit; ideò
oculatissima dici potest; Dialectice non tàm procul prospicit; Rethorice minus
oculata, quàm dialectice. Sophistice lusciosa est, & parum cernit; Poëtice lippos
habet oculos, & prosus coeca estimò verò oculatissimae omnes, sed praeter
demonstratoriam, quae docet tamtùm; dialectice decipit, & ludificatur eos, qui
non longissimè prospiciunt. Rhetorice deludit minus oculatus, Sophistice
illusiones nõ perspiciunt ii, qui minimum cernunt. Poëtice eos decipit; qui
prorsus coeci sunt. (ROBORTELLO: 1548, p. 1)
A classificação da Poética em correlação com as outras artes liberais pode ser compreendida como uma
tentativa de determinação do lugar do ofício do poeta entre os que mereceriam privilégios reais, ou daqueles
que se propunham a cuidar das artes e altera a própria noção de “gênero” que vemos impressas nos textos
disponíveis, hipótese que pretendemos demonstrar ao longo da exemplificação da noção de gêneros nas
Poéticas. Para produzir esse efeito, o tratadista compõe anotações à Poética aristotélica propondo emulações
ao texto, “criando” preceitos para gêneros que não estão presentes no texto aristotélico. Os gêneros são
especificados pelos usos e determinados pelo domínio dos procedimentos expostos. Assim, a cada tratadista
“permitia-se” a proposição de diferentes “métodos de produção de poesia” com arte e técnica, já que os
gêneros tais quais pensados por estes letrados correspondiam a usos específicos e não ao “ser da poesia”,
como se tendeu a repensá-la após o XVIII. Por exemplo, no comentário de Robortello à Poética, os gêneros
aristotélicos (comédia, tragédia, épica, ditirâmbico) são acrescentados da sátira, do epigrama e da elegia.
Inter tot poëmatum genera & illud quod Epigrammata continet; de quorum
artificio necesse est, ut pauca dicamus, consideremúsque primum ad quam
poeseos partem spectent; Deinde exponamus, qualis sit ipsorum materies,
quídque in iis scribendis aut sequendum aut fugiendum. Poëmatum genera haec
fermè connumerantur à veteribus. Tragoedia. Comoedia. Epopeia. Dithyrambica.
Legum poësis. Grandia sunt haec poëmata; sed brevia, Satyra, & quam appellavit
Horatio Epistolam; & Statius Syluam. Horum omnium particulam quandam
valdè exiguam existimaverim esse Epigramma; nam sicuti Comoedia; aut
Tragoedia una particula est Epopeiae grandioris poëmatis; ducitur enim ex uno
illius Episodio, ut fatis patet, & apertè declarat Aristoteles in poëtice: Ita quoque
Epigrammata multa ducuntur ex una particula comoedia, aut tragoedia; adeò, ut
aliquis iure appellare posist ipsum epigramma particulam unius alicuius
particulaes comoedia, tragoedia, & aliorum poëmatum. An verò contineat
imitationem siquis quaerat; respondeo, aliquando quidem, in epigramate
imitationem inesse aliquam; aliquando verò non esse; sed simplicem tantùm
narrationem. Imitatio est in illo Epigrammate Catulli. (ROBORTELLO: 1548. p.
378)
O tratado, como documento, passível de reiteração da memória de uso coletivo em determinados períodos,
representa escritas ao mesmo modo do gênero histórico ou de poesias, sonetos, elegias, etc. nas quais
acumulam-se autoridades (Aristóteles, Horácio, Catullo, etc.) e compõe-se o argumento por esse acúmulo de
autoridades – poéticas, se o tratado for poético; históricas, se o tratado for histórico. A acumulação cria o
efeito de verdade do enunciado e possibilita ao tratadista o fim da emulação, da superação que o elevaria ao
status de auctoritates. A determinação dos lugares do ofício do poeta, do historiador ou do pintor se
justificaria pelo uso do gênero retórico demonstrativo ou laudatório.
Seguindo na exemplificação desta hipótese, quando pensamos num sistema mecênico de pessoas que
“galgueiam” por uma posição – que não se assemelha aos moldes burgueses de acumulação de capital –
podemos traçar uma “carreira” para cada uma dessas autoridades: pintores, escultores, poetas ou
historiadores constroem sua erudição a partir da leitura de textos antigos emulando-os e buscando superá-los.
Se o tratado se dispuser a falar sobre pintura, as autoridades são invariavelmente Vitrúvio e Plínio, o velho;
se for poesia, Aristóteles, Cícero, Quintiliano, e outros; se a matéria da invenção for história, entram em cena
Xenofontes, Tucídides, Tácito, papas seculares, etc.
Na busca de obtenção por privilégios reais, por exemplo, Mathia Pereira da Silva reúne em cinco tomos
glosas de sonetos de Camões, Francisco Rodrigues Lobo, sonetos de louvor a autoridades seculares
eclesiásticas e monárquicas, entre outros sonetos produzidos em Portugal no seiscentos. Esta reunião de
sonetos compõe o livro conhecido como Fenix Renascida, no qual, para compor o louvor ao Império louva-se
a modéstia, honra e crédito dos lusitanos que preocupam-se em exercitar o engenho por meio da produção e
apreciação de poesias emuladas de Góngora, Quevedo, Salazar, Polo, Garcilasso, Lope de Vega, entre outras
autoridades em poesia em Portugal no XVI. Para propor sua autoridade como compilador, Mathias Pereira da
Silva propõe a adição de várias poesias anônimas ou não e, entre elas, o Soneto de Soror Violante do Ceo,
religiosa no convento da Rosa de Lisboa, a uma senhora condessa de Vidiguera, vestida de marron pela
ausência do Conde. Temos, aqui, um duplo exemplo de busca por obtenção de privilégios ou fama e
perpetuação da memória. O primeiro, Mathias Pereira, obtém a fama e perenidade de sua memória pela
reunião dos sonetos e impressão do livro pela obtenção de privilégios reais. A segunda, pela proposição do
soneto a uma condessa a quem solicita a custódia, na ocasião da ausência do conde. Evidencia-se, portanto,
que a poesia, além de possuir preceitos de destinação e excelência a serem emulados, serve também à
obtenção ao que chamaríamos de prestígio, fama ou poder.
Assim como os poetas, os demais letrados, sejam eles tratadistas, historiadores ou homens da corte que se
destinam a outras artes, como a pintura e escultura, obstinam-se na busca desta fama que eleva o seu nome à
posteridade. O que propomos é que há uma indistinção entre a escrita de qualquer um destes tratados e o que
os diferencia (seus gêneros de execução das artes) são artíficios que são exteriores ao texto escrito. Portanto,
mesmo que leiamos um tratado sobre pintura, sobre história ou sobre poesia, podemos inferir que nestes os
procedimentos são símiles, homólogos, mesmo que a sua produção artificiosa seja de espécies diversas. Não
se pode mudar o fato de que uma Poética produz “poesias”, tratados de pintura “quadros” e história “textos
históricos”, mas, mesmo que diferenciemos cada um dos artefatos compostos por determinados tratados, o
efeito tencionado por eles convergem também para um mesmo ponto (seja ela poesia, quadro ou história): o
deleite.
Outro ponto de convergência entre as artes liberais consiste na aproximação com a retórica.Por exemplo, a
Poética propõe a expor os modos de produção de poesia; as Ars dictaminis propõem a produzir textos de
caráter epistolares; os tratados de pintura propõem a execução de pinturas... e aí por diante. Mas, o texto, o
tratado, o escrito, sejam eles de pintura, escultura, poesia, sermão, discurso, história, etc. contém
indistintamente os mesmos artifícios e procedimentos de execução, mesmo que com matérias destinadas a
fins diversos. Mesmo que a produção do artefato (poesia, quadro, escultura...) demande uma outra forma de
análise, os textos que legitimam o uso e a produção destes são compostos sob os mesmos procedimentos –
retóricos, persuasivos... - e podem ser lidos sob uma mesma “virtualidade”, sob os mesmos parâmetros de
escrita e produção discursiva.
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VIDAS SECAS: LEITURAS E REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS E
CINEMATOGRÁFICAS
Maria David Santos (IC - UEFS-PROBIC)
45
Prof. Dr. Cláudio Cledson Novaes (Orientador - UEFS) 46
INTRODUÇÃO
O interesse pelo estudo do Cinema e da Literatura foi suscitado a partir de reflexões sobre
a (des)humanização nos personagens Baleia e Fabiano do romance e filme Vidas secas, ou
seja, o problema da coisificação do sujeito na narrativa de ficção moderna. É importante
perceber como o autor desta narrativa articula o problema acima na arte nacional,
mostrando em Fabiano e sua família – Sinha Vitória, o menino mais velho, o menino mais
novo e a cachorra Baleia – a imagem dos sujeitos sertanejos que representam o problema
social dos retirantes. O romance de Graciliano Ramos é publicado em 1938 e narra em
terceira pessoa, em treze capítulos, uma travessia destes personagens através do sertão,
mostrando a penúria, a fome, a miséria e o abandono de uma família que vive fugindo da
seca. É uma narrativa de denúncia, conforme os ideais da ficção de 1930, ao mostrar uma
crise da realidade brasileira: a seca. Este ideal regionalista é também partilhado pelos
principais representantes do cinema novo. Em 1963, o romance Vidas Secas foi levado às
telas na adaptação cinematográfica dirigida por Nelson Pereira dos Santos, que traz em um
dos capítulos do livro o drama da cachorra Baleia, membro da família de retirantes, que
protagoniza a aproximação existencial entre os indivíduos e os bichos. A cachorra é
humanizada, interagindo nas aventuras e dificuldades da família. Analisando a
humanização de Baleia, procura-se entender o paradoxo da (des)humanização de Fabiano,
a partir de reflexões sobre a condição humana representada na narrativa moderna.
Aluna da graduação do Curso de Licenciatura em Letras Vernáculas da Universidade Estadual
de Feira de Santana.
46 Professor Doutor Adjunto de Literatura Brasileira Comparada e Literatura e Outras Linguagens
da Universidade Estadual de Feira de Santana.
45
Vidas Secas: leitura literária e cinematográfica
Pensar nas relações existentes entre literatura e cinema, logo se percebe que elas “são
múltiplas e complexas, caracterizadas por uma forte intertextualidade”, ou seja,
“inumeráveis filmes contêm, dialogicamente, alusões ou referências literárias, sejam elas
breves ou extensas, implícitas ou explícitas.” (JOHNSON, 2003, p. 37 apud
PELLEGRINI).
Embora questões relacionadas a adaptações e a diferenças entre os dois modos de
expressão artística tendam a dominar discussões sobre o assunto, uma obra artística seja ela
qual for (romance, conto, poema, filme, pintura, escultura) tem de ser julgada em relação
aos valores de outro campo. Portanto, o que se pretende aqui não é julgar o valor da obra
literária sobre a cinematográfica ou vice-versa, mas reconhecer os valores que cada uma
representa e contribui para o cenário cultural brasileiro.
O mais importante na relação entre uma narração literária e uma adaptação
cinematográfica é a (re)construção do significado, a partir da mesma realidade lida no
romance e vista na tela. Mostra como o texto escrito e o cinematográfico simbolizam os
sons e os movimentos na encenação do fenômeno cultural.
Segundo Novaes (2005), o livro de Graciliano Ramos, assim como seu tempo e lugar são
imprescindíveis para a compreensão do estilo neo-naturalista no romance moderno
brasileiro; assim, também o filme é indispensável para entendermos a formação do
pensamento político e estético do Brasil cinemanovista. Ambos são causadores de um
“estrago” na linguagem: um problematiza o Realismo Socialista do “romance de 30”; e o
outro problematiza o engajamento ideológico do neo-realismo do filme “regionalista”.
O (neo)realismo nordestino
A Semana de Arte Moderna fez brotar um período de profunda renovação na literatura
brasileira. A prosa, naquele momento representada por Macunaíma (1928) de Mário de
Andrade, Memórias Sentimentais de João Miaramar (1924) de Oswald de Andrade e Brás,
Bexiga e Barra Funda (1927) de Antônio de Alcântara Machado, rompeu com uma forma
tradicional de “contar histórias” e abriu caminho para uma nova forma de ler e narrar o
cotidiano, fazendo uso de uma técnica calcada na linguagem cinematográfica, na
sobreposição de planos narrativos, na síntese, na paródia, na mistura de gêneros, entre
outros.
Os romancistas de 30, embora não pretendessem se manter na linha de experimentalismo
estético das correntes de vanguarda, consideravam irreversíveis muitas das conquistas dos
primeiros modernistas, tais como o interesse por temas nacionais, a busca de uma
linguagem mais brasileira, o interesse pela vida cotidiana. O “passadismo cultural”, tão
combatido pela Semana de Arte Moderna, para eles estava definitivamente enterrado.
Entretanto, viram-se diante de uma questão de outra natureza: como dar uma resposta
artística ao momento de fermentação política e ideológica que estavam vivendo? E mais:
no tocante ao papel do escritor, de que forma o artista, com sua obra, poderia
concretamente participar das transformações que então ocorriam na sociedade? O resultado
desses questionamentos foi um romance mais amadurecido, com um enfoque mais direto
dos fatos, fortemente marcado pelo Realismo-Naturalismo do século XIX e tendo muitas
vezes um caráter documental.
Assim, os escritores desse período voltam-se para os problemas de sua realidade imediata,
o que ocasiona o surgimento de uma literatura regional, caracterizada pela denúncia social.
A seca, por exemplo, que periodicamente abatia a população nordestina, deixando-a em
condições de miséria absoluta, torna-se um dos temas mais importantes da literatura desse
momento. Primeiramente abordado por José Américo de Almeida em A bagaceira (1928),
mais tarde passou a ser explorada por muitos outros autores, como Graciliano Ramos,
Jorge Amado e José Lins do Rego, cujas obras trazem temas novos, como o cangaço, o
fanatismo religioso, o coronelismo, a luta pela terra, a crise dos engenhos.
Embora a geração de trinta englobe entre seus adeptos o famoso grupo de
romancistas do nordeste reunido em torno da problemática da terra, motivo agora
de meditação, aprofundamento e denúncia social, seus ficcionistas trazem para
essa realidade concepções unânimes apenas na acusação da injustiça e
desagregação humana. No mais, cada um tentará dar depoimento substantivo,
fruto da concepção de uma situação central específica e correspondente atitude
assumida frente a ela. (COUTINHO, 1986, p. 389-390).
As divergências de enfoque não se baseiam simplesmente numa variação na seleção e
tratamento de detalhes ou numa maior ou menor ênfase em determinado aspecto, mas
obrigará o romancista a uma tematização do real que traduza o significado básico que
constrói seu mundo ficcional e a posição de interdependência em que se ache nele.
De todos os escritores nordestinos que se revelaram por volta de 1930, Graciliano Ramos é
considerado o maior representante da geração neo-realista nordestina. É, sem dúvida, o
romancista que, sem se deixar encantar pelo pitoresco da região, soube exprimir com maior
agudeza a dura realidade do seu habitante.
Em Graciliano Ramos o regional não caminha na direção do específico, do particular ou do
pitoresco; ao contrário, as especificidades do regional são um meio para alcançar o
universal. Suas personagens, em vez de traduzir experiências isoladas, traduzem uma
condição coletiva, a do homem explorado socialmente ou brutalizado pelo meio. Vidas
Secas utiliza-se de um tema local, a seca do Nordeste e a vida martirizada dos retirantes,
para atingir um universalismo proveniente da riqueza humana de suas personagens, cuja
interioridade é esculpida com raro brilho e concisão.
Chamar este romance de “série de quadros, de gravuras em madeira, talhadas com precisão
e firmeza” é aludir a um de seus traços estilísticos fundamentais: o caráter autônomo e
completo de seus capítulos. (PEREIRA apud CANDIDO, 1992, p. 103). Estes podem ser
lidos como peças independentes, e como tal foram publicados em jornais, mas reúnem-se
com uma organicidade exemplar. Os capítulos de Vidas Secas mantêm uma estrutura
descontínua, não-linear, como que reafirmando o isolamento, a instabilidade da família dos
retirantes: Fabiano, Sinha Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e a cachorra
Baleia.
Formado por treze capítulos (Mudança, Fabiano, Cadeia, Sinha Vitória, O menino mais
novo, O menino mais velho, Inverno, Festa, Baleia, Contas, O soldado amarelo, O mundo
coberto de penas, Fuga) que se justapõe aparentemente sem nexos lógicos, o enredo de
Vidas Secas organiza-se principalmente pela proximidade entre o primeiro, “Mudança” - a
chegada da família de retirantes a uma velha fazenda abandonada e arruinada -, e o último,
“Fuga” - a saída da família, que, diante de um novo período de seca, foge para o Sul.
Do capítulo 2 ao 12, a família vive como agregada na fazenda, para cujo proprietário
Fabiano trabalha. Assim, passa uma fase de “descanso” em relação ao seu nomandismo,
provocado pela seca. No entanto, além da tortura gerada pela lembrança do passado e pelo
medo do futuro, o romance enfoca outras faces da opressão que se exerce sobre os
membros da família – seja entre eles e os outros homens, os moradores da cidade, seja
consigo próprios.
No capítulo 3, “Cadeia”, por exemplo, Fabiano vai à cidade, bebe e joga com o “soldado
amarelo”; quando resolve partir, este o provoca e o leva à cadeia, onde é preso e surrado.
Um ano depois, Fabiano o reencontra agora em seu território, a caatinga. Embora deseje
vingança, acaba se curvando e ensinando o caminho ao “soldado amarelo” (capítulo 11).
No episódio “Contas” (capítulo 10), Fabiano é lesado financeiramente pelo patrão. Embora
as contas do patrão não coincidam com as de Sinha Vitória, que as confere, Fabiano não se
defende; ao contrário, humilha-se e pede desculpas.
Outro exemplo de opressão e de falta de comunicação entre os seres da família,
animalizados pela miséria em que vivem, encontra-se no capítulo 6, em que “o menino
mais velho” ouve a palavra “inferno”, acha-a bonita e procura aprender o seu significado
com a mãe, que o repreende brutalmente. Já no capítulo 7, “Inverno”, há uma cena em que
a família se reúne numa noite de inverno, e Fabiano tenta contar histórias
incompreensíveis, enquanto os meninos passam frio.
Enfim, a questão central do romance não está nos acontecimentos, mas nas criaturas que o
povoam, nas “gravuras de madeira” (PEREIRA apud CANDIDO, 1992, p. 103). Com a
análise psicológica do universo mental das personagens, que expõe por meio de discurso
indireto livre, o narrador nos vai decifrando a sua humanidade embotada, confundida com
a paisagem áspera do sertão, neste romance que transcende o regionalismo e seu contexto
específico – a seca na região nordeste, a opressão dos pobres, a condição animalesca em
que vivem, para esculpir o ser humano universal.
Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça
Desde o final dos anos 1950, um movimento denominado Cinema Novo alterou as
configurações do fazer cinema no país. Este mesmo cinema expressou uma relação direta
com o momento político em filmes em que a voz do intelectual militante foi sobreposta à
do profissional de cinema.
O Cinema Novo foi a versão brasileira de uma política de autor que procurou
destruir o mito da técnica e da burocracia da produção, em nome da vida, da
atualidade e da criação. (...) atualidade era a realidade brasileira, a vida era o
engajamento ideológico, criação era buscar uma linguagem adequada às
condições precárias e capaz de exprimir uma visão desalienadora, crítica, da
experiência social. (XAVIER, 2001, p. 57).
A busca por esses ideais se traduziu na “estética da fome”, em que a escassez de recursos
técnicos acabou se transformando em força expressiva, fazendo com que o cineasta
encontrasse a linguagem em sintonia com os seus temas.
Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça era o lema de cineastas que, nos anos 60, se
propõem a realizar filmes de autor, baratos, com preocupações sociais e enraizadas na
cultura brasileira. Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, é o precursor. Deus e
o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, e Os fuzis, de Rui Guerra, também pertencem à
primeira fase, concentrada na temática rural, que aborda problemas básicos da sociedade
brasileira, como a miséria dos camponeses nordestinos. Após o golpe de 64, a abordagem
centraliza-se na classe média urbana, como em A falecida, de Leon Hirzman. O desafio, de
Paulo César Sarraceni, e A grande cidade, de Carlos Diegues, que imprimem nova
dimensão ao cinema nacional.
Os cineastas saíram às ruas, passaram a utilizar a câmera na mão, abandonando o velho
tripé, a empregar pouca luz e levar para as telas das salas de cinema espalhadas pelo país
novos atores e, principalmente, filmes com propostas revolucionárias. O cinema brasileiro
viveu de forma intensa o seu principal momento de ruptura estética, ou mais precisamente,
cumpriu aquilo que para Glauber Rocha era essencial na arte brasileira: “nacionalizar
através de sua expressão”, e não apenas ser considerado nacional por conter “temas
nacionais.” (ROCHA, 2003, p. 125).
Os jovens diretores defendiam a proposta, segundo a qual o cinema brasileiro deveria
assumir uma posição transformadora. Para isso, deveria adotar a estética revolucionária,
colocar em prática uma narrativa diferente da hollywoodiana. Dessa forma, o filme
nacional poderia se libertar das amarras, das imposturas e das artificialidades do cinema
norte-americano. Sem dúvida, uma das principais heranças dos diretores filiados ao
movimento cinemanovista foi a ousadia em defender e colocar em prática a liberdade de
criação artística e deixar em plano subalterno os interesses do cinema comercial.
Os diretores ligados ao Cinema Novo assumiram a posição de vanguarda na
discussão dos grandes problemas brasileiros, tentando, por intermédio de seus
filmes, refletir sobre a identidade nacional. O limitado êxito de público foi
compensado pela enorme influência que essas produções exerceram sobre os
segmentos mais intelectualizados da sociedade brasileira. (LEITE, 2005, p. 98).
A compreensão da evolução do Cinema Novo ainda segundo Leite (2005), fica mais clara
quando estudada em três fases. No entanto, nos atentaremos especialmente à primeira fase
cinemanovista, visto que a obra em estudo encontra-se inserida nesse movimento e na fase
em questão.
A primeira fase compreende os anos de 1962 e 1964, sendo denominada nacionalistacrítica. De forma direta ou indireta, os filmes desse período foram influenciados por
questões relacionadas às temáticas do nacional e do popular que norteavam o debate
travado pela esquerda brasileira. O cenário que mais predominava nos filmes foi o
ambiente rural, um mundo ao mesmo tempo arcaico, místico e alienado. “As produções
tentaram colocar em evidência o universo miserável das populações rurais, submetidas à
violência, à opressão política, à marginalização econômica e ao completo abandono pelo
Estado.” (LEITE, 2005, p. 98).
O nacionalismo foi a principal referência ideológica nesse momento inicial do movimento,
fomentado principalmente pelos intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(ISEB). Tais intelectuais denunciavam, entre outros aspectos, as conseqüências nefastas
para a cultura brasileira do imperialismo norte-americano, fonte permanente de alienação
do “povo brasileiro”. Os diretores filiados ao movimento abraçaram como compromisso
mais nobre produzir filmes capazes de contribuir para a transformação social do Brasil. A
tradução mais nítida desse compromisso foi a tentativa de compreender o enigmático
“homem brasileiro” e, concomitantemente, detectar e levar para as telas a triste e árida
realidade nacional.
Nesse contexto, cabe destacar o filme Vidas Secas, considerado por muitos especialistas o
melhor filme do diretor Nelson Pereira dos Santos, que conseguiu reproduzir na linguagem
cinematográfica a densidade contida na obra de Graciliano Ramos, acrescentando-lhe o
vigor de uma narrativa cinematográfica sofisticada e rigorosa. Também não se pode
desconsiderar dois filmes considerados não apenas marcas do Cinema Novo, mas
referências do cinema brasileiro, isto é, Os fuzis, de Ruy Guerra, e Porto das Caixas, de
Paulo César Sarraceni, produções representativas dessa fase e que contribuíram para mudar
as concepções não apenas do cinema nacional, mas da própria cultura brasileira.
A segunda fase do Cinema Novo é compreendida pelos anos de 1965 e 1966. Durante esse
período, o movimento foi dominado pelo novo contexto histórico, especificamente o golpe
militar de 1964. As grandes cidades brasileiras substituíram o campo. As capitais
estaduais, com seus dilemas, suas contradições e injustiças, passaram a ser o cenário
principal das produções cinemanovistas. Dentro desse contexto, dois filmes merecem
destaque especial: São Paulo S/A, do cineasta paulista Luís Sérgio Person, e A grande
cidade, de Cacá Diegues.
A terceira e última fase do movimento aconteceu entre 1967 e 1969, e a principal
característica foi a autocrítica, não apenas em relação a atuação dos intelectuais da
esquerda na história recente do país, mas do próprio Cinema Novo. Os diretores
enfatizaram suas próprias contradições e denunciaram o fracasso das utopias presentes na
primeira fase do Cinema Novo. O filme mais representativo desse momento foi Terra em
transe de Glauber Rocha.
A leitura cinematográfica de Nelson Pereira
A leitura cinematográfica que Nelson Pereira dos Santos fez do romance de Graciliano
Ramos não pretendia, originalmente, ser apenas uma adaptação de uma obra-prima da
literatura nacional; queria também ser uma intervenção na conjuntura política
contemporânea, nesse caso como parte do debate então vigente sobre a reforma agrária e a
estrutura social brasileira, como o próprio diretor observou em 1972:
Naquele tempo, grandes discussões sobre o problema da reforma agrária estavam
acontecendo no Brasil, e muitos grupos e setores da economia estavam
participando. Senti que o filme também deveria participar no debate nacional, e
que minha contribuição poderia ser a de um cineasta que rejeita uma visão
sentimental. Entre os escritores nordestinos, Graciliano Ramos é o mais
representativo, o que expressa a visão mais consistente da região,
particularmente em Vidas Secas. O que o livro diz sobre o Nordeste em 1938
ainda é válido até hoje. (SANTOS, 1972, p .61-67 apud PELLEGRINI).
O filme foi merecidamente louvado como uma obra-prima da primeira fase do Cinema
Novo, e em geral é considerado uma adaptação relativamente “fiel” do romance de
Graciliano. O filme de Nelson Pereira dos Santos inicia-se com uma espécie de
advertência, chamando o cidadão comum, o espectador, para a necessidade de não se ver o
filme meramente como uma transposição fiel de uma obra imortal da literatura brasileira,
mas como uma denúncia de uma realidade social, ou seja, a extrema miséria pela qual
estavam passando 27 milhões de brasileiros. Essa mensagem está colocada em letras
brancas sobre um fundo negro antes mesmo dos créditos da fita, chamando o espectador a
prestar atenção, de forma muito particular, pois a intenção do filme é a de ir para além do
espetáculo, é incomodá-lo em sua passividade indigna diante da miséria e reclamar-lhe um
posicionamento.
Ao propor a transposição fiel da obra imortal de Graciliano Ramos, o filme já trava com o
espectador uma interlocução: a de fazê-lo reconhecer na linguagem cinematográfica os
elementos do trabalho literário, cujo destaque estava precisamente na concisão, na ausência
de diálogos e de adjetivação, descartando tudo que não retratasse a concretude da vida dos
personagens.
Imagens da (des)humanização
- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. Conteve-se, notou que os
meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se vendo-o falar só. E,
pensando bem, ela não era um homem: era apenas um cabra ocupado em guardar
coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os
cabelos ruivos; mas vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobriase, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se um cabra. Olhou em torno,
com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase
imprudente. Corrigiu-a, murmurando: - Você é um bicho Fabiano. (RAMOS,
2003, p. 18-19).
Em Vidas Secas, considerado pela maioria dos críticos literários como a principal obra de
Graciliano Ramos, é praticamente impossível não se emocionar com o sofrimento de uma
família de retirantes que tenta sobreviver à seca. O grupo, que quase não se comunica e
mais se parece com bichos, é liderado por Fabiano que, para manter a família viva,
humilha-se diante do soldado amarelo e do proprietário das terras onde trabalha como
vaqueiro.
Além de Fabiano, o sofrido grupo é composto por: Sinhá Vitória, a esposa, cujo único
desejo era possuir: “uma cama real, de couro e sucupira”; os meninos, o mais velho e o
mais novo, que, por não terem nome próprio, representam a condição de anonimato em que
vivem os sertanejos; a cachorra Baleia, que é humanizada e faz contraponto à animalização
da família que ela acompanha; e o papagaio que só sabia “latir” e foi sacrificado para que o
grupo não morresse de fome. Pode-se dizer que o romance é marcado pela idéia de fuga
constante, o caminhar sem fim. “... A sina dele era correr mundo, andar para cima e para
baixo, à toa, como um judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca”. (RAMOS,
2003, p. 19).
Um dos aspectos que mais impressionam é o seu tema sempre atual. O romance escrito
entre 1937 e 1938, enfoca o problema da seca e as condições de vida miseráveis do
sertanejo brasileiro.
Instinto animal
No romance Vidas Secas o sertanejo é reduzido à condição de animal. Isso é percebido
pela ausência de fala entre Fabiano e seus familiares. Eles quase não conversavam e a
pouca comunicação existente era feita por meios de gestos e sons guturais: “Sinhá Vitória
estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com sons guturais que
estavam perto.” (RAMOS, 2003, p.10). Outro exemplo que comprova o pouco uso das
palavras entre a família é o fato de o papagaio imitar os latidos da cachorra Baleia. Os
papagaios, como se sabe, têm a capacidade de repetir sons e palavras que são repetidas
constantemente e, como a família falava pouco, os latidos de baleia eram os únicos sons
que a ave ouvia com freqüência. Por isso, ele aprendeu a latir. “Resolvera de supetão
aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e
inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois
daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro
aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.” (RAMOS, 2003,
p. 12-13).
A animalização das pessoas também pode ser percebida nas atitudes praticadas pelos
personagens. No trecho que segue, Sinhá Vitória, obedecendo ao seu instinto de
sobrevivência, lambe o sangue do preá que estava acumulado no focinho da cachorra
Baleia.
Assim, homem e animal são colocados em um mesmo nível.
Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um
preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras,
afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o
focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.
(RAMOS, 2003, p. 14).
Como Sinhá Vitória, Fabiano também é comparado a um animal. Isso pode ser visto em
várias passagens da obra. Primeiro ele mesmo diz que é um bicho: “Você é um bicho
Fabiano. Isso para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer
dificuldades.” (RAMOS, 2003, p.19). Depois ele é comparado a um macaco, “o corpo do
vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados.
Parecia um macaco.” (RAMOS, 2003, p.19). Logo na seqüência, Fabiano funde-se a um
cavalo deixando muito claro a questão da animalização do homem:
“Vivia longe dos homens, só se dava bem com a quentura da terra.
Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma
linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro
entendia.” (RAMOS, 2003, p. 20).
Ressalte-se que nesse trecho os pés de Fabiano são descritos de forma semelhante aos
cascos de um cavalo. Logo depois, o vaqueiro compara a sua condição de vida a de um
cachorro. “Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos” (RAMOS, 2003,
p. 97).
Em contraponto a tudo isso, temos a alegre cachorra Baleia que é humanizada e, de certa
forma, é tratada como um membro da família, uma irmã para os meninos. “Ela era como
uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam.”
(RAMOS, 2003, p. 81).
Outro aspecto que caracteriza essa humanização é o fato de Baleia possuir fluxo de
consciência. Isso fica claro no trecho abaixo, quando ela fica resignada e mostra que possui
opinião: “Quis latir, expressar oposição a tudo aquilo, mas percebeu que não convenceria
ninguém e encolheu-se, baixou a cauda, resignou-se ao capricho dos seus donos. A opinião
dos meninos assemelhava-se à dela.” (RAMOS, 2003, p. 81).
Quando Fabiano é forçado a atirar em Baleia porque ela estava com hidrofobia, o processo
de humanização se completa (aqui vale ressaltar que é costume do sertanejo colocar nome
de peixes em seus animais domésticos, embora baleia não seja peixe e sim um mamífero,
pois acreditava-se que com essa prática é possível livra-los da hidrofobia. No caso de
Baleia, nem mesmo essa tradição salvou a cachorra). “Defronte do carro de bois faltou-lhe
a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando
com dificuldade a parte posterior do corpo.” (RAMOS, 2003, p. 88). Nessa passagem,
Baleia anda com dois pés como gente, mas o clímax é atingido quando ela, como as
pessoas, imagina a existência de um mundo pós-morte. Baleia queria dormir. Acordaria
feliz num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. “O
mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.” (RAMOS, 2003, p. 91).
Considerações Finais
O entendimento do processo da (des)humanização presente respectivamente nos
personagens Fabiano e Baleia do romance e filme Vidas Secas requer, antes de tudo, a
compreensão ideológica do Realismo Socialista do romance de 30 (literatura) bem como o
neo-realismo do filme regionalista (cinema).
O tema (seca) tem sido fonte de inspiração para narrativas diversas: trágicas ou lúdicas,
dramáticas ou irônicas, o ambiente sertanejo é bem propício a essas vastas representações,
por apresentar solos de mitos e cactos, de jagunços e santos, de vários tipos e tratos
humanos, que de maneira real ou simbólica se fazem presentes. Graciliano Ramos, através
de sua narrativa em Vidas Secas, critica e expõe o descaso, a crueldade e a miséria
vivenciados por muitos sertanejos. Com maestria literária ele relata casos de fome, seca e a
terra agreste, de um povo sofrido, simples, mas resistente.
O autor encerra o romance com Fabiano e sua família dirigindo-se rumo à cidade e
sonhando com a perspectiva de encontrar um lugar onde o “amanhã” possa ser melhor. Lá
os meninos iriam para a escola aprender coisas difíceis e necessárias e Fabiano e Sinhá
Vitória ficariam velhinhos e se acabariam como a cachorra Baleia. Graciliano Ramos,
assim como Nelson Pereira dos Santos deixa um alerta a respeito das conseqüências das
secas no Nordeste: “o sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano,
Sinhá Vitória e os dois meninos.” (RAMOS, 2003, p. 128).
Esse trabalho, no seu conjunto, não tem a pretensão de bastar-se por si só. Assim, espera-se
que ele venha a instigar os interessados no tema discutido aqui, a ir adiante, pesquisando
em outros materiais aquilo que, de acordo com as suas necessidades, lhes é mais
conveniente.
Referências
CANDIDO, Antonio. A ficção e confissão – ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de
Janeiro: 34, 1999.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: UFF
– Universidade Federal Fluminense, 1986.
LEITE, Sidney Ferreira. Cinema brasileiro: das origens à retomada. 1 ed. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2005.
NOVAES, Cláudio Cledson. Cinema sertanejo: o sertão no olho do dragão. Feira de
Santana: MAC. 2005.
PELLEGRINI, Tânia. et al. Literatura, Cinema e Televisão. São Paulo: Senac, 2002.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 89 ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. SP: Cosac & Naify, 2003.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. Ri de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
LITERARTE: UMA VIAGEM NA LITERATURA NORDESTINA POR MEIO DA
LITERATURA DE CORDEL.
Fabiana Santos Farias - Graduada em Letras pela Faculdade de Tecnologia e Ciências e
pós graduanda em Língua Inglesa pela Faculdade do Noroeste de Minas.
e-mail: [email protected].
Considerações sobre o tema
A escola, como espaço privilegiado de construção do saber, tem como um de seus
objetivos primordiais oferecer condições reais de aprendizagem significativa para que o
indivíduo desenvolva sua potencialidade. Partindo deste pressuposto, o ensino de literatura
dentro do âmbito escolar assume papel relevante, na medida em que prioriza a liberdade de
criação do educando, bem como a dimensão artística evidencia a sensibilidade, própria do
ser humano.
Tendo em vista que “o ensino é um trabalho de criação e não uma obrigação mecânica que
se repete a cada aula que se dá” (SILVA, 2004, p. 27), a temática que envolve a abordagem
do ensino de Língua Portuguesa e Artes dentro da escola deve ser contextualizada com os
anseios e perspectivas dos alunos. Entretanto, é prática comum de alguns professores de
português, levar para sala de aula textos prontos e, muitas vezes, de difícil interpretação,
coagindo o aluno a pensar na língua portuguesa padrão, como algo distante de sua
realidade e desinteressante para seu cotidiano.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN´s, “O ensino da Língua
Portuguesa tem sido marcado por uma sequenciação de conteúdos que se poderia chamar
de aditiva: ensina-se a juntar sílabas para formar palavras, a juntar palavras para formar
frases e juntar frases para formar textos (...)” (BRASIL, 1999, p. 35). Esse encadeamento
lógico e sistêmico da aprendizagem, quase sempre, marginaliza os educandos que não
conseguem, por diversos motivos, acompanhar este processo.
Da mesma forma, os professores de Artes fazem leituras de obras acabadas de artistas
renomados e em grande parte estrangeiros, não deixando que o aluno desenvolva sua
capacidade criativa de produção artístico-literária, podando assim sua inventividade inata
de sujeito cultural. Isso contradiz, então, a idéia de cultura dada por Paulo Freire de que:
Com as discussões sobre o conceito de cultura o analfabeto descobriria que tanto
é cultura o boneco de barro feito pelos artistas, seus irmãos do povo, como
cultura também é a obra de um grande escultor, de um grande pintor, de um
grande místico, ou de um pensador. Cultura é a poesia dos poetas letrados de seu
país, como também a poesia de seu cancioneiro popular. Cultura é toda criação
humana. (FREIRE, 1983, p. 109)
Como educador popular, Paulo Freire já alertava para a necessidade de se partir da
realidade do aluno, observar sua cultura, respeitando sua trajetória e, em seguida, criar
condições para que novos elementos sejam incorporados às situações já vivenciadas por
esse educando, propiciando a sua inclusão, de fato, no ambiente social.
Numa visão mais idealizada de ensino, Rosa Virgínia converge sua idéia a de Freire
defendendo a formação de um sistema que priorize o ensino artístico, cultural e literário
desde o início da vida escolar:
É possível planejar um sistema educacional que, a partir da pré-escola, priorize
as necessidades efetivas da população brasileira, na sua totalidade diversificada,
criando espaços para instituições que permita a qualquer criança uma formação
ampla e profunda que considere e respeite como ponto de partida a diversidade
cultural e a leve em conta, não para homogeneizá-la, mas para tirar dela o melhor
de sua potencialidade, com o objetivo prioritário de enriquecer o patrimônio
cultural brasileiro. (SILVA, 2004, p. 25)
Outro fator que dificulta o desenvolvimento potencial dos alunos são as implicações
advindas da desigualdade social existente no país, em que grande parte da população é
desprovida do acesso a ambientes culturais como os museus, casas de cultura, teatro,
cinema e até mesmo bibliotecas, inexistentes nas próprias escolas. Além disso, tem-se a
idéia de que conhecimentos mais eruditos pertencem apenas a minoria elitizada, não sendo
de valia para a população mais simples a aproximação com os mesmos.
A responsabilidade da escola, diante dessa realidade, toma dimensões muito além de
simples transmissora de conhecimentos. É preciso, também, que ela desenvolva nos alunos
a consciência de que o acesso ao conhecimento sistêmico, ler, escrever, e ao conhecimento
artístico é um direito, um prazer e uma forma de alcançar condições para incluir-se na
sociedade vigente.
É oportuno, também, insistir em dizer sempre que atividades de dinamização da leitura e
estimulação da expressão artística nascem da criatividade que cada educador deve
imprimir em sua proposta pedagógica. Tal proposta deve ser pautada nos objetivos
almejados e principalmente nas reais condições à sua aplicabilidade. Aspirar à criação de
atividades como saraus poéticos só é plausível quando as condições físicas e humanas
oferecem meios para tal.
Qualquer projeto educativo pode ser realizado quando há a cumplicidade das partes
envolvidas. E existem dois caminhos para que aconteça o êxito do projeto educativo: a
motivação e a afetividade. A motivação acontece quando há afetividade e vice-versa. O
distanciamento afetivo entre educadores e educandos inviabiliza a compreensão, gerando
desencontros entre objetivos e trajetórias.
É importante que o educador tenha bem claro os objetivos, mas que também aprenda a
conhecer e respeitar o espaço do educando. Sobre isto Schettini Filho(1995) diz que:
“Educar é esculpir a pedra, não para dar a ela simplesmente a forma que imaginamos, mas
para libertar a potencialidade nela contida”. O professor tem muito mais a função de
desbastar a pedra inexplorada e afastar os obstáculos que impedem a revelação da
individualidade com suas potencialidades do que oferecer modelos pré-formados.
Por isso, é evidente que a utilização de textos literários e atividades artísticas no currículo
escolar atual, contribuem para a formação integral dos jovens contemporâneos de forma a
despertar seu potencial intelecto e sentimental, não importando sua cor, etnia ou classe
social e entendendo que a educação é um espaço globalizado e não isolado em livros e
provas que “desclassificam ou classificam” o nível de aprendizagem.
Historicamente, o Nordeste brasileiro tem se mostrado como um “berçário” das mais
variadas riquezas culturais existentes no país, e dentro desse contexto está a literatura de
cordel, que a partir da expansão européia no Brasil torna-se uma Manifestação artísticocultural de extrema significância para o povo brasileiro. A literatura de cordel é de suma
relevância para a sociedade brasileira, podendo permear questões no âmbito econômico,
social, religioso, histórico e científico.
Entende-se por literatura de cordel, uma manifestação artístico-cultural da cultura popular,
que registra a história e a trajetória de um povo, assim como, caracteriza-se por uma ação
poética que dá vida à sociedade. É, de fato, uma das mais ricas particularidades da cultura
brasileira e mundial. SegundoMarinho (2005), “a poesia popular impressa, denominada
literatura de cordel, é uma das mais legítimas expressões culturais do povo nordestino”. A
também chamada literatura popular é “[...] tipicamente impressa, não exclui a passagem à
oralidade”.
Dentro desta diversidade cultural e lingüística na qual se insere, o cordel torna-se um
instrumento de grande valia para o trabalho em língua materna, uma vez que, proporciona
a multilinguagem pautada na escrita, oralidade, musical e poética. “Ler é alegrar-se,
divertir-se. O cordel é literatura oral – tem de ser falada, cantada, assim como qualquer
poema. A partir daí pode-se trabalhar a métrica, a estrutura do texto. Temos que perder o
medo de “brincar” com a literatura”. (Patativa do Assaré)
PROJETO (Proposta de trabalho)
A proposta construída e apresentada abaixo foi desenvolvida para os alunos da primeira
série do Ensino Médio do Colégio Estadual Duque de Caxias.
O objetivo geral desta proposta é articular o aprendizado da linguagem em todas as suas
especificidades, de forma a garantir ao aluno uma inserção no mercado competitivo e
globalizado, desenvolvendo suas potencialidades e habilidades lingüísticas.
Objetivos:
¾ Valorizar a aprendizagem através das linguagens artísticas e literárias, a
partir da compreensão do seu papel como sujeito agente da aprendizagem;
¾ Possibilitar o desenvolvimento de habilidades cognitivas, sociais e
emocionais, por meio da leitura de textos inerentes à faixa etária e ao
currículo dos alunos;
¾ Proporcionar uma viagem ao Universo Literário enfocando a literatura
regional como fonte de variedades lingüísticas;
¾ Despertar a inventividade artística dos alunos e suas habilidades
psicomotoras;
Metodologia:
O projeto foi realizado num período de dois meses, correspondentes à primeira unidade do
ano letivo de 2007. O foco do projeto, ou seja, seu público alvo foi a turma do primeiro
ano A e B do Colégio Estadual Duque de Caxias, aproximadamente setenta alunos.
•
No primeiro momento, foi proposta uma pesquisa sobre o tema para conhecer o
universo da literatura de cordel, sua origem, forma de escrita, linguagem utilizada,
autores e contexto regional.
•
No segundo momento, foi trabalhada a relação entre o cordel e a lírica
trovadoresca, suas semelhanças e diferenças; (explicar as diferenças entre violeiro,
embolador e cordelista: violeiro – toca viola, canta e improvisa, embolador –
também conhecido como embolador de coco – toca pandeiro, canta e improvisa
(cunho pejorativo), cordelistas - são escritores de cordel). É importante neste
momento estabelecer comparações entre a escrita cordelista e a gramática
normativa, a linguagem coloquial e a oralidade;
•
A terceira etapa consistiu em conhecer a biografia dos cordelistas nordestinos e sua
individualidade de escrita; estabelecer a relação entre literatura de cordel e a música
popular nordestina (Zé Ramalho, Elba Ramalho, Mestre Ambrósio, Luiz Gonzaga,
Fagner, dentre outros).
•
Após a parte teórica, foi proposta aos alunos a confecção artesanal de cordéis com
temas atuais, fazendo analogias a temas históricos do país e seus resquícios para a
atualidade.
A culminância do projeto ocorreu numa noite cultural aberta à comunidade em que os
alunos apresentaram os cordéis em forma de recitais, dramatizados e dançados.
Referências
ALLEBRANDT, et al. O tecer da linguagem e o cotidiano escolar. Ijuí: Unijuí, 1998.
BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica.
Parâmetros curriculares nacionais, códigos e suas tecnologias. Língua estrangeira
moderna. Brasília: MEC, 1999. pp 49-63.
CALABRIA, Carla Paula Brondi. Arte história e produção, vol. 2. São Paulo: FTD,
1997.
FREIRE, Paulo. Educação como pratica de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983,
p. 109.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIOANIS ANÍSIO
TEIXEIRA. Médias de desempenho. Brasília: Inep, 2001 – 2004.
LEONARDO, Ângela Cantele e Bruna Renata Cantele. Arte: linguagem visual. São
Paulo: IBEP, 2004.
MACHADO, Alexsandro dos Santos. Relações interpessoais: é preciso abraçar. In:
Jornal Mundo Jovem. Rio Grande do Sul. Ed. 365, abril, 2006.
MARCUSCHI, Luis Antonio. Lingüística do texto: o que é e como se faz. Recife: UFP,
1983. (Série debates).
MARINHO, Ana Cristina e PINHEIRO, Hélder. Cordel na Sala de Aula, Ed. Vozes,
2005.
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS. Língua Portuguesa. Brasília:
Secretaria de Educação Fundamental. 1997, p. 35.
RESENDE, Vânia Maria. Literatura infantil e juvenil: vivencias de leitura e expressão
criadora. São Paulo: Saraiva. 2ª ed., 2000.
SCHETTINI, Luiz Filho. Carão com carinho. Bagaço: Recife, 1995.
SCHOLZE, Lia. Letramento e desenvolvimento nacional. Brasília: Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas educacionais Anísio Teixeira, 2004.
SILVA, Rosa Virgínia Mattos e. O Português são dois: novas fronteiras, velhos
problemas. São Paulo; Parábola editorial, 2004, p. 25.
TAKAZAKI, Heloisa Harue. Língua Portuguesa: ensino médio volume único. 1ª ed.
São Paulo: IBEP, 2004.
YAJIMA, Eiji. Plástica: Educação Artística, 7ª série. São Paulo: IBEP, 1998.
A IMPORTÂNCIA DA LEITURA CINEMATOGRÁFICA PARA A FORMAÇÃO
PROFISSIONAL DOCENTE
Jonelice dos Santos Rosa (UEFS)
Como único ser dotado de razão, o homem também é o único ser consciente das suas ações
e capaz de provocar transformações em si mesmo e no mundo, através do trabalho. Sua
inteligência abstrata ainda lhe confere o poder de produzir cultura e transmiti-la, de
geração a geração por meio da aprendizagem. Sendo assim, não podemos separar cultura
de educação, uma vez que esta última é imprescindível para o processo de socialização e
humanização, permitindo o aperfeiçoamento das atividades humanas.
Como subsídio para o nosso trabalho, consideramos relevante registrar o conceito de
educação apresentado pela filósofa brasileira Maria Lúcia de Arruda Aranha. Para ela,
educação é:
Um conjunto genérico mais amplo, que supõe o processo de desenvolvimento
integral do homem, isto é, de sua capacidade física, intelectual e moral, visando
não só a formação de habilidades, mas também do caráter e da personalidade
social. (ARANHA, 2000, p.51).
Pela abrangência que denota, tal conceito leva-nos a inferir o quão é importante, tanto para
o crescimento, quanto para a formação de qualquer ser humano.
Seja nas sociedades primitivas, onde inexistiam as instituições de ensino, seja nas
sociedades que as possuem, a educação sempre ocupou papel central na vida dos
indivíduos e hoje compreendemos como irrefragável o fato de que sem ela seria impossível
dar continuidade ao processo histórico e social, bem como transmitir os resultados do
desenvolvimento desse processo para nossos descendentes.
Nesse contexto, não podemos esquecer da escola, como veículo transmissor de
conhecimentos historicamente produzidos, unidade formadora de opinião que influencia a
sociedade, ao mesmo tempo em que também sofre as influências desta.
A sociedade contemporânea vive um novo momento em sua história, pois sofre mudanças
radicais, sejam elas políticas, econômicas, sociais ou ideológicas. Tais mudanças têm se
processado de maneira rápida e trouxeram insegurança em diversos níveis. O paradigma
moderno que estruturou o pensamento social, intelectual e educacional, durante várias
décadas do século XX, não consegue dar às respostas desejadas para o novo momento e
para muitos estudiosos, a exemplo de Michel Foucault e Jacques Derrida, vivemos a
formação de um novo paradigma: o pós-moderno.
Essa nova fase é caracterizada pelo questionamento de determinados valores, substituição
de outros sendo marcada pelo individualismo, pelo hedonismo e a falta de ética e de
solidariedade parecem naturais.Tais transformações, além de acarretarem impactos no
comportamento social, na política e no Estado, afetaram também o trabalho do professor.
O mundo globalizado tornou tudo mercadoria e, assim, as mudanças educacionais
caminham para formar um professor não-pesquisador, reprodutor de conhecimentos
produzidos por outros e, por isso, um sujeito a serviço da sociedade globalizada, das elites
neoliberais.
Segundo o professor Celso Vasconcellos (1997), diante desse momento de crise, até a
finalidade da escola foi colocada em xeque, o que angustia e desorienta o educador. Esse,
por sua vez, necessita perceber-se enquanto profissional que reflete sobre sua prática e que
pode ajudar as novas gerações a atribuírem sentido ao mundo em que vivem através do
conhecimento.
Diante do exposto, torna-se clara a necessidade de uma formação docente de qualidade, em
que profissionais possam observar a relação e a mútua influência exercida entre a realidade
social e a escola, desenvolvendo uma perspectiva de educação que seja emancipadora e
crítica. Dessa forma, a escola poderá ser um espaço onde o educando possa aguçar seu
senso crítico, alargar sua visão de mundo, aventando a possibilidade de construção de uma
sociedade melhor, na qual existam modificações na política, na cultura e nas relações
sociais. Tudo isso, associado ao prazer de estudar, interpretar, pesquisar e investigar.
Como produções artísticas e culturais, os filmes mostram-se excelentes aliados para que a
formação teórica docente tenha base sólida. Através das suas mensagens, aparece a
possibilidade de discussão de problemas cotidianos, teorias, comportamentos e valores.
Com um olhar aguçado, iluminado pelo estudo de assuntos variados, é possível analisar
aspectos das produções cinematográficas que vão além do entretenimento, chegando-se à
apropriação dos seus conteúdos, decodificando símbolos e analisando conceitos.
Foi sob essa perspectiva que assistimos e analisamos os filmes Happy Feet, ou “O
pingüim” e “Narradores de Javé”. O primeiro foi associado a três teorias sociológicas que
estudamos: a sociologia funcionalista, a teoria marxista e a sociologia compreensiva; o
segundo teve aspectos sociológicos do seu conteúdo relacionados ao conhecimento popular
e ao conhecimento científico.
Happy Feet, ou “O pingüim”, é um filme que mostra uma comunidade de pingüins que
nasceram para cantar. Precisam ser afinados, cantar canções de amor para que possam se
casar e ter filhos. Mano é uma exceção. Muito desafinado, o jovem pingüim demonstra ter
outra habilidade: sapatear. Tal habilidade é rejeitada por toda a comunidade onde vive.
Considerada uma heresia que provoca a falta de alimentos entre eles, a dança deveria ser
abandonada por Mano, caso contrário sua expulsão seria inevitável.
Depois de analisarmos o filme, percebemos sem grandes elucubrações a teoria
funcionalista de Durkheim à medida que o fato social (saber cantar) aparece como um
fenômeno exterior aos indivíduos e que se impõe a eles de forma decisiva. Além disso, a
coerção social (a expulsão de Mano) aparece como uma sanção espontânea, já que decorre
de uma conduta não adaptada à estrutura do grupo. Tal coerção só foi possível graças à
existência da consciência coletiva. Esta mostrou que na comunidade dos pingüins
imperadores também existiam formas padronizadas de conduta e pensamento.
Observamos ainda, duas outras características do fato social: a educação (existia uma
professora que ensinava os jovens pingüins a cantar) e a generalidade (todos os pingüins
tinham que saber cantar).
Para Durkheim, a sociedade é como um
organismo onde todos os órgãos precisam
funcionar bem e o objetivo máximo da vida social é promover a harmonia da sociedade e
desta com as demais. Tal harmonia só pode ser conseguida com o consenso social. Sendo
assim, se surge algum fato que põe em risco o consenso, esta sociedade se encontra doente
e o referido fato não é considerado normal e sim patológico, pois está fora dos limites
permitidos pela ordem social. No caso da comunidade dos pingüins, o sapateado de Mano
representou um fato patológico e como tal necessitava ser extirpado, para que não
“contaminasse” e não “adoecesse” toda a sociedade.
Com relação à corrente marxista, percebemos a divisão social do trabalho (as mães vão
pescar e os pais ficam chocando os ovos), a infra-estrutura (base econômica) é
representada pelas relações que são estabelecidas entre os pingüins e a superestrutura (base
político-ideológica) é representada pelas formas de consciência social (educação e
religião).
As relações de produção que pareciam tranqüilas, com a escassez de alimentos na
comunidade e a dança de Mano, entraram em conflito. A classe dominante, representada
pelos chefes da comunidade, inclusive “Amoroso”, o guru, tentou conter a classe
dominada, para que através da educação e da religião (é o grande Güim quem nos manda
peixes) continuasse sujeita as suas idéias e valores. Felizmente, não foi o que aconteceu,
apesar de estarem apegados às tradições e a religião que exerce o seu caráter de ópio, como
apontou Karl Marx, muitos decidiram seguir Mano, realizando uma verdadeira revolução,
transformando toda a vida da comunidade.
A sociologia compreensiva de Max Weber aparece no filme quando Mano resolve
enfrentar toda a comunidade e sai para investigar a razão da falta de peixes, contraria toda
a ordem estabelecida, se recusa a mudar seu jeito de ser e vai buscar o que acredita.
Segundo Weber, o homem como indivíduo, tem significado e dá sentido a sua ação social,
estabelecendo “conexão entre o motivo da ação, a ação propriamente dita e seus efeitos.
Como sujeito age levado por motivo que é dado pela tradição, por interesses racionais ou
pela emotividade.” No caso de Mano, seu motivo foi um interesse racional: desvendar um
mistério, soltando-se das amarras do que foi estabelecido pela tradição e ao mesmo tempo
impondo-se como um indivíduo corajoso, diferente dos outros, apesar de ter cedido no
início quando foi rejeitado por Glória, sua namorada. Além de descobrir o motivo da
escassez de peixes, Mano conseguiu mudar as regras da comunidade, libertando todos da
alienação, promovendo assim uma autêntica mudança social.
Em “Narradores de Javé”, observamos muitos elementos interessantes, como a tradição
oral, os diferentes olhares sobre um mesmo fato, a busca de uma “verdade”, de um método,
de uma teoria, além da suposta superioridade do conhecimento científico sobre o popular.
Para que consigamos atingir os objetivos aos quais nos propusemos no início deste
trabalho, começaremos com o referencial teórico sobre o conhecimento humano, para
depois adentrarmos no conteúdo do filme.
Segundo Santos (2003), o conhecimento humano tem dois elementos básicos: um sujeito e
um objeto e o homem possui três maneiras básicas de conhecer esse objeto: pelos sentidos
(conhecimento sensorial ou empírico), pelo raciocínio (conhecimento lógico ou intelectual)
ou pela crença (conhecimento de fé).
Vamos nos ater aos dois primeiros, pelo fato de serem os que mais nos interessam no
momento. Portanto, comecemos pelo conhecimento empírico, que aqui denominaremos
conhecimento popular.
Esse tipo de conhecimento, que recebemos por tradição dos nossos antepassados, ao qual
acrescentamos nossa experiência e que nos permite interpretar a realidade, compreender o
nosso dia-a-dia e agir sobre ele, é um conhecimento frequentemente subjetivo,
fragmentado, confuso, difuso e num primeiro momento não é questionado, pois é
assistemático, ametódico. Trata-se, portanto, de um conhecimento adquirido sem uma base
crítica, coerente.
O conhecimento intelectual, também chamado científico, deriva de ciência, palavra que se
originou do latim scientia, que significa “sabedoria”, conhecimento. A ciência é uma forma
de pensar, cuja elaboração teve como precursores os filósofos gregos, quando estes
desejavam um conhecimento diferente do saber comum e do mito, apesar de ainda serem
presos à metafísica.
O saber científico se fortaleceu no século XVII com o revolucionário método de Galileu e
os recursos de materialização e experimentação lhe conferiram a possibilidade de delimitar
seus objetos de estudo, “descobrindo regularidades que permitem estabelecer leis gerais e
teorias nos fenômenos observados” (ARANHA, 2002, p.105).
Quanto às suas características, o saber científico apresenta-se como um conhecimento
baseado em investigações sistemáticas, que são conseguidas através da criação de métodos
rigorosos, que transformam esse saber em um conhecimento objetivo e preciso, capaz de
agir sobre a natureza de forma mais segura, além de prever acontecimentos.
Assim, podemos deduzir com facilidade que o saber espontâneo ou popular distingue-se
quase que completamente do saber científico. Usamos a palavra quase, porque assim como
o saber popular, “as ciências também são gerais, no sentido de que as conclusões não
valem apenas para os casos observados, e sim para todos os que a ela se assemelham.”
(ARANHA, 2002, p.129). Além disso, a ciência também é influenciada pelo empirismo.
Vale salientar que a precisão, a objetividade, o rigor e a ausência de ambigüidade dos seus
conceitos fizeram com que o Positivismo transformasse a ciência em um conhecimento
infalível, certo e por isso superior ao saber popular, geralmente visto como ingênuo,
incoerente e conservador. Cabe aqui a ressalva de que o saber científico não é a única
explicação da realidade, nem é tão certo ou infalível e o processo de construção dos
modelos científicos, as contradições entre teorias e a constante evolução da ciência com
suas verdades provisórias legitimam nossa afirmação.
A esse respeito, consideramos de grande relevância registrar as idéias do educador Rubem
Alves, sobre mitificação da ciência:
O cientista virou um mito. E todo mito é perigoso, porque ele induz o
comportamento e inibe o pensamento. Este é um dos resultados
engraçados (e trágicos) da ciência. Se existe uma classe especializada em
pensar de maneira correta (os cientistas), os outros indivíduos são
liberados da obrigação de pensar e podem simplesmente fazer o que os
cientistas mandam (ALVES, apud COTRIM, 2001, p. 251-252).
Com essas palavras Rubem Alves chama a nossa atenção para três aspectos ligados a essas
duas formas de conhecer: a questão da diferença entre saber popular e saber científico; a
não existência de certezas absolutas com relação à validade das teorias científicas e, por
último, a relação entre o saber e o poder, pois nem o conhecimento científico, nem seu uso
são neutros, sendo a produção científica instrumento de dominação dos que exercem poder
social.
A Sociologia apareceu como uma resposta intelectual a uma sociedade criada a partir da
Primeira Revolução Industrial, e teve suas características ligadas a uma mudança na forma
de pensar dos homens, de conhecer, de interpretar a realidade. “A partir daquele momento,
o pensamento paulatinamente vai renunciando a uma visão sobrenatural para explicar os
fatos e substituindo-a por uma indagação racional.” (MARTINS, 1991, p.17)
Como a sociedade estava em grande processo de mudanças, houve a preocupação com
regras para organizar a vida social e controlar fenômenos sociais e por isso tinham que ser
observadas, comprovadas e medidas. Enfim, passaram a interessar também aos cientistas.
Desde então, “o homem começou a elaborar métodos e instrumentos de análise capazes de
explicar e interpretar sua experiência social de maneira científica”. (COSTA, 1997,p.08)
Nesse sentido, para melhor compreendermos as diferenças entre o conhecimento popular e
o conhecimento científico, voltemos agora ao filme “Narradores de Javé”.
O referido filme conta a história de uma comunidade (provavelmente da Chapada
Diamantina) muito simples, formada por pessoas analfabetas, que estão sendo ameaçadas
de perder suas propriedades e sua identidade local por conta da construção de uma usina
hidrelétrica. Para que a obra não seja feita, é necessário que Javé mostre algo de importante
que o transforme em patrimônio histórico. Como não poderia deixar de ser, no mundo
moderno, burocrático e capitalista, esse “algo importante” deveria ser organizado de forma
científica para que a comunidade “javélica” pudesse mostrar seu valor. “Antonio Biá”,
personagem interpretado pelo ator José Dumont, como é o único adulto alfabetizado do
povoado e outrora prejudicou seus conterrâneos espalhando fofocas sobre os mesmos para
manter seu emprego na agência dos Correios, precisa se redimir e é pego à força para
escrever um livro com fenômenos sociais que foram importantes para a história de Javé.
Relacionando o saber popular com o saber científico e o método de análise sociológica
com o filme, percebemos a dificuldade que “Biá” teve para tentar reunir várias histórias
diferentes e com muitos fragmentos e transformá-la em científicas e por isso rigorosas,
precisas e sistemáticas.
“Narradores de Javé” é uma mistura de comédia e drama. Comédia refletida pelo jeito
simples e espontâneo de falar dos personagens, jeito alegre de suas atitudes e até pelos
apelidos que “Biá” põe em seus conterrâneos. Drama porque mostra uma luta desigual em
que prevalece o conhecimento científico apresentando-se como superior a qualquer outra
forma de saber. Uma comunidade que, pelo fato de não possuir um conhecimento capaz de
libertá-la, estava sendo manipulada pela classe dominante da região e nem tinha
consciência disso. Observamos também que a alfabetização de “Biá” não o impede de
sofrer tal influência, pois o mesmo é incapaz de ver a importância do saber do seu povo e
de interpretá-la como outra forma de conhecer a realidade. Este fato é demonstrado
definitivamente no final do filme, quando “Biá” entrega-se à derrota e recusa-se a escrever
o “livro da salvação” e apresenta, além da dificuldade de sistematizar informações (mesmo
com todo o seu poder de “florear histórias”) a condição de inferioridade sua e dos seus
companheiros, diante daqueles que detêm o poder, o conhecimento e o dinheiro.
Não existe educação neutra, em todo o processo educativo existe uma ideologia. Sendo
assim, a docência é uma prática social que incide diretamente na formação dos seres
humanos. Sabemos também que apesar dos inúmeros problemas pelos quais a escola passa
– inclusive a desarticulação entre conhecimento e mobilidade social- esta continua sendo
reconhecida pela sociedade como instituição imprescindível para a formação de sujeitos
sociais e profissionais e a crescente “intelectualização” do processo produtivo também nos
mostra isso.
Cabe a nós, educadores, enfrentarmos com ousadia e coragem os nossos problemas,
resistirmos à racionalidade técnica e vencermos a desqualificação intelectual. Assim,
teremos condições de estruturar um modelo de educação que possa priorizar as relações
humanas, tornando-as mais fraternas e menos desiguais.
Como acabamos de mostrar, a análise de produções cinematográficas constitui-se em mais
um elemento importante para essa busca.
Referências
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. São Paulo: Moderna, 2002.
_______________. MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando. Introdução à Filosofia.
São Paulo: Moderna, 2002.
COSTA, Cristina. Sociologia: Introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna,
1997.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia – história e grandes temas. São Paulo:
Saraiva, 2001.
MATINS, Carlos Benedito. O que é sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1991.
SANTOS, Antonio Raimundo dos. Conhecer ou não conhecer, eis a diferença . In: CORDI,
Cassiano. Para Filosofar. São Paulo: Scipione, 2003, p.31-32.
VASCONCELLOS, Celso. Finalidades da Escola: novos olhares a partir da crise de
paradigmas. In: Revista Dois Pontos. Belo Horizonte: Editora Dimensão, nº 04, 1997,
pp.71-75.
LIMA BARRETO À BRASILEIRA D’O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS
Edson Oliveira da Silva (UEFS) 47
[...] Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde
Deus der [...]
(Mario de Andrade, 1924)
INTRODUÇÃO
No que se refere às tendências literárias ou até mesmo às tendências críticas, os primeiros
anos do século XX, no Brasil, especialmente o espaço de tempo compreendido entre 1907
e 1922, pode ser observado como reflexo ou ainda como prolongamento das idéias
positivistas, deterministas e cientificistas que dominaram o cenário intelectual do século
que o antecedeu (COUTINHO, 2004). No caso, especificamente de Afonso Henriques de
Lima Barreto, autor do conto O homem que sabia javanês, então objeto de nossa análise,
o que se pode destacar como baliza norteadora de sua escrita, ainda no campo do
desenvolvimento do pensamento científico, é a contundente crítica à sociedade brasileira,
por ele considerada preconceituosa e profundamente hipócrita.
Filho de uma escrava com um português, nem negro nem branco, simplesmente mulato, o
autor ocupava uma posição de subalternidade na sociedade carioca dos primeiros anos do
Brasil República. Assim, não apenas a ascendência mestiça, mas também a intolerância
ao álcool, além da revelia ao abstrato ufanista de conotação romântica (PEREIRA, 2002)
lhe custaram a negação de posições de prestígio nas rodas culturais daquele período. De
tal sorte, apesar do emprego público e das várias colaborações nos jornais da época, Lima
Barreto sempre circulou com reservas pelos bastidores daquela imprensa opinativa que
mais tarde passaria a ser alvo de sua narrativa mordaz.
Dessa forma a trajetória intelectual do autor foi, notadamente, marcada pelos aclives e
declives de sua vida social, de maneira que a condição do narrador, em grande parte de
sua obra, passou a desempenhar o papel de porta-voz do seu alther-ego. Nesses termos,
para compreender em linhas gerais o posicionamento da obra literária de Lima Barreto ou
47
Edson Oliveira da Silva é especialista em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de
Santana (UEFS) e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural também
por essa instituição.
até mesmo da própria crítica direcionada a ele, é imprescindível, pois, que reconheçamos
a natureza do campo intelectual da época, pelas palavras de Pierre Bourdieu:
[...] a objetivação da intenção criadora que se poderia chamar de publicação se
realiza através de uma infinidade de relações sociais particulares, relações entre o
editor e o autor, entre o editor e o crítico, entre o autor e o crítico, entre os
autores, etc. [...] Em cada uma dessas relações, cada um dos agentes empenha
não só a apresentação socialmente constituída que tem do outro termo da relação,
mas também a representação da representação que o outro termo tem dele, isto é,
da definição social de sua verdade e de seu valor que se constitui no interior e a
partir do conjunto de relações entre todos os membros do universo intelectual.
(BOURDIEU, 1968, p. 125).
Tomando-se como ponto de partida que as relações estabelecidas entre um escritor e a sua
obra, e a obra e o leitor são influenciadas, a todo instante, pela geometria das relações sociais
e pelo prestígio que o autor ocupa na estrutura do campo intelectual, Bourdieu destaca a
relevância de que terceiros não somente julguem, mas também emitam um juízo de valor a
respeito dos artistas, intelectuais e suas produções. Logo, como se vê, de acordo com o
próprio teórico, a sujeição de autor e obra ao julgamento de críticos e leitores é inevitável,
uma vez que este não logra evadir-se dos sucessos e insucessos de sua obra, e especialmente,
das leituras que tenham sido conferidas à sua escrita, além do jogo de representação social e
dos lugares-comuns que naturalmente são construídos pelo grande público.
Conseqüentemente, ao observarmos que é exatamente no epicentro desse sistema de relações
sociais que se dá a construção da opinião pública no que diz respeito à obra e ao autor, nos
damos conta da importância de se questionar a validade da gênese desse senso público e
investigar as premissas que corroboram para a sagração ou abnegação de um texto literário
em meio às intempéries da nossa produção cultural. Portanto, vítima desse processo de
exclusão intelectual e audaz ao perceber os artificialismos que circundam a elite pensante do
Brasil- República das primeiras décadas do século XX, em seu conto O homem que sabia
javanês, de forma absolutamente jocosa e irreverente, Lima Barreto denuncia a impostura
inerente à produção e à aquisição do conhecimento naquela época.
JAVANÊS PARA QUÊ?
A leitura do conto em análise nos permite, antes de qualquer movimento de imersão
interpretativa, a compreensão das condicionantes que acompanharam a produção de Lima
Barreto. Afinal de contas, mesmo que de maneira não muito explícita, é inconteste que o
próprio escritor é parte integrante desse mesmo campo intelectual que é fruto de seu ataque
e de sua crítica. Contudo, não podemos perder de vista que o espaço que esse autor ocupa
no cenário das letras, em princípios do século XX, no Brasil, é marcado, notadamente, pela
divergência e pela luta constante contra as representações do pensamento acadêmico
instituído pela tradição oficial.
Assim, o desejo de revanche e de distensão literária e cultural, somado às inquietações em
relação às formas que tomavam o cenário político do país, além de sua genialidade
criadora, eram, sem dúvida, a mola propulsora para a construção de sua narrativa.
Já nas primeiras letras do texto em estudo, tendo como pano de fundo uma destas
confeitarias que enfeitavam a capital carioca em princípios do período republicano, entre
um e outro copo de cerveja, Castelo – O homem que sabia javanês – narrava ao seu amigo
Castro as peças que já havia pregado às “convicções” e às “respeitabilidades” para
sobreviver em meio à burocracia e a imbecilidade da vida sociocultural e política daquele
seu Brasil:
[...] uma dada ocasião, quando estava em Manaus, em que fui obrigado a
esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança dos
clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. [...] O
meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil
Blas vivido [...]. (BARRETO, 2001, p. 49).
- Eu tinha chegado havia pouco ao Rio e estava literalmente na miséria.
Vivia fugindo de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e
como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o anúncio
seguinte: “Precisa-se de professor de Javanês. Cartas, etc.” Ora, disse cá
comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu
capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. (BARRETO, 2001, p.50).
Como se vê, por meio de uma ironia desmedida e um eloqüente senso de observação que
lhe permite criar caracteres individuais, e absolutamente convincentes no que se refere à
vociferação dos intelectuais em seu tempo, Lima Barreto reproduz com extrema
fidedignidade as circunstâncias em que tais caracteres e arquétipos se configuram, e ataca
diretamente a elite pensante de nosso país através da “picardia” e “peripécias” da
personagem Castelo. Basta lembrar que para ele, seria simplesmente necessário debruçar-
se, rapidamente, sobre a letra “J” da Grande Encyclopédie e dominar não mais que quatro
palavras do idioma malaio para tornar-se um exímio professor de javanês. Está aí, portanto,
a denúncia proposta pelo autor de Triste fim de Policarpo Quaresma à superficialidade e à
inconsistência que, aos seus olhos, dominavam os padrões literários da época.
De tal forma, “com o olhar crítico na tradição, e descentrado em relação aos modismos de
seu tempo [...] como intelectual dissidente, tanto em relação ao abstrato ufanismo
nacionalista de conotação romântica, quanto aos referenciais alinhados com a produção
cultural da belle époque” (PEREIRA, 2002, p. 224), em O homem que sabia javanês, Lima
Barreto ataca tanto à produção literária do início do século quanto à crítica que se
estabelecia sobre ela.
Logo, o que ressoa por detrás, senão na própria face da personagem Castelo, é exatamente,
a voz combativa de um escritor que investia contra o ideário dominante e contra a própria
crítica que se preocupava apenas em alavancar uma literatura inofensiva e idealizada, e
marcadamente invadida pela linguagem dos clichês e do apadrinhamento. De tal forma, o
discurso reivindicatório, lido nas entrelinhas do conto em apreciação, revela a gana do
autor em desmascarar a realidade fatigante de uma sociedade que se vê embrutecida por
conflitos e tensões das mais diferentes espécies.
Contudo, são justamente essas tensões que refratam e alimentam a narrativa de Lima
Barreto. Afinal, determinada pela participação social e efervescente atividade literária, a
sua produção corrói os pilares dos padrões dominantes, amalgamando-se às contradições e
desmandes de seu tempo, o que nos mostra a preocupação do autor em aproximar o
máximo possível a sua ficção do real, sem que isso represente, evidentemente, a
compilação de fatos históricos, e sim, sobretudo, a ficcionalização de histórias e a
subversão da realidade, a qual pretende transformar e transfigurar, conforme nos apresenta
Antonio Candido (1989, p.163) na passagem seguinte :
A criação literária traz como condição necessária uma carga de liberdade que a
torna independente sob muitos aspectos, de tal maneira que a explicação de seus
produtos é encontrada sobretudo (sic) neles mesmos. Como conjunto de obras de
arte (sic) a literatura se caracteriza por essa liberdade extraordinária que
transcende as nossas servidões (grifo nosso). Mas na medida em que é um
sistema de produtos que são também instrumentos de comunicação entre os
homens, possui tantas ligações com a vida social [...].
Como notamos, seria perigoso por demasiado tentar estabelecer puras conexões entre a
progressão da literatura de Lima Barreto e a história política e social daquele seu Brasil do
século XX. Afinal, tal leitura nos pareceria uma tentativa de mecanicizar a realidade como
se os fatos históricos fossem determinantes para a produção deste autor. Em razão disso, o
que nos chamou a atenção, de modo geral, foi a sua capacidade de manejar a arte literária
com a observação da dinâmica social, sem que esta última se sobrepusesse à primeira ou
vice-versa.
Entretanto, é indiscutível que o seu projeto criador se contrapunha às demais produções
dos autores de seu tempo. Em face disso, Lima Barreto se vê desterrado daquele campo
cultural, tornando-se um marginal para a crítica literária oficial de sua época que ora o
desprezava e ora o criticava, com base em premissas que se relacionavam unicamente com
a possível negatividade de alguns aspectos literários e estilísticos, ou puramente
biográficos (BARBOSA, 1956).
Feitas tais excursões sobre a interação e a correspondência entre autor, obra e sociedade,
voltemos às farpas d’ O homem que sabia javanês. Reconhecido o alfabeto do idioma
malaio, tomadas “duas ou três regras de gramática” e sabedor de um pouco mais de vinte
palavras do seu léxico, Castelo mostrava-se um ilustre mestre da língua javanesa ao doutor
Manuel Feliciano Soares Albernaz, ironicamente chamado pelo narrador de Barão de
Jacuecanga. Dessa maneira, por conta de sua suposta habilidade com a tal língua oceânica,
penetrava nos ambientes mais aristocráticos da nossa Velha República. O javanês, de fato,
lhe rendera livre trânsito por entre as personalidades mais influentes da alta sociedade
carioca. E quando lhe faltava o conhecimento de uma ou outra expressão, sobrava-lhe um
sarcasmo peculiar e uma imaginação sem limites. Vejamos:
Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem
tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon (grifo nosso). Como ele
ouvia aquelas bobagens!... [...] Ficava extático, como se estivesse a ouvir
palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos.
Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado.
Passava, enfim, uma vida regalada. (BARRETO, 2001, p.55).
Com isso, Castelo acaba se tornando uma personagem-símbolo e caricaturada dos literatos
brasileiros, que instituíram a mentalidade de toda uma época; uma espécie de metonímia da
intelectualidade de um Brasil que ressurge sem retoques e distorções por meio da escrita de Lima
Barreto.
“PÁTRIA É ACASO DE MIGRAÇÕES”
É bem verdade que o desenrolar da narrativa desse nosso autor esteve sempre em
consonância com os acontecimentos históricos de sua época; no entanto, como já foi dito,
não podemos falar em relação de determinação. O que se vê é uma cadência entre o seu
projeto literário e o momento em que a ficção e a arte literária, de modo geral, alcançam,
tanto na forma quanto no conteúdo, uma identidade brasileira, ou outra coisa qualquer que
naquele tempo se pudesse considerar como tal (BARBOSA, 1956).
Em vista disso, não somente O homem que sabia javanês, mas praticamente toda a sua
obra se retroalimenta dos assuntos que lhe são oferecidos por seu país, tornando-o um
homem alinhado às discussões de seu tempo e espaço. Noutras palavras, para que
compreendamos tais considerações, leiamos a seguir :
[...] o empenho intelectual serve à afirmação do homem enquanto indivíduo e
cidadão, definindo-se em funções das necessidades de seu próprio tempo e meio.
O esclarecimento que tem por meta implica na divulgação de idéias e na
instauração do debate, a fim de desestabilizar dogmas e preconceitos e dinamizar
a coletividade. Assim fazendo, ele a conduz a pensar sua identidade,
compreender seus problemas e especular sobre seu destino [...]. A vontade de
verdade se apresenta ao mesmo tempo, portanto, como vontade de transformação
social, movida pelo desejo de afirmar o direito de cada povo a definir sua própria
constituição política, moral e cultural (PEDROSA, 1992, p.283)
Em tal grau, de acordo com o que propõe Pedrosa, o projeto criador de Lima Barreto, ainda
que intuitivamente ou assumidamente contestador, estaria em absoluta harmonia com o
processo histórico-cultural vivido pelo Brasil, naquele período. À vista disso, questões
ligadas à escravatura e ao ideário nacionalista tomam em sua narrativa um fôlego de
proporções inimagináveis.
Assim, nesse mesmo texto que motiva as nossas discussões - O homem que sabia javanês –
em vez de revolta e embate, o autor dá mostras do seu sentimento de pendor, e lastima a
respeito da condição dos negros em um país no qual a escravidão havia sido recentemente
abolida: “Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam
à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento” (BARRETO,
2001, p. 52).
Desse modo, à luz de nossa epígrafe, entendemos ser, de fato, a nossa pátria um acaso de
“migrações”, uma construção histórica que se afirma por meio de uma multiplicidade de
forças que ora se atrem e ora se repelem, de modo a constituir um espaço de tensão - o
entre-lugar - que privilegia, acima de tudo, a constante negociação entre essas forças
(BHABHA, 2005). Desse modo, tanto o elemento branco, quanto o negro, o indígena e o
mestiço, além de suas respectivas histórias, culturas, contradições e discursos de afirmação
contribuem para a elaboração do Brasil cantado pelo poeta Mário de Andrade e ratificado
pelo seguinte trecho do conto em análise:
Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha basané podem dar-me
muito bem o aspecto de um mestiço de malaio... Tu sabes bem que, entre nós,
há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches e até godos. É uma
comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro (BARRETO,
2001, 53).
Portanto, assim como as narrativas, que, aliás, aqui são o nosso objeto de estudo, também
as poéticas de fundação, como sabemos, acabam centrando-se em discussões sobre
nacionalidade, não obstante, devemos levar em consideração que somente na memória é
que os conceitos propostos por essa literatura alcançam plena realização. Ainda assim, a
narrativa de Lima Barreto sugere que se investigue, analise, e, sobretudo, se questione as
“raízes” de nossa nação, a fim de que se possa alterar o próprio objeto conceitual a ponto
de que se entenda tal estrutura como uma figura ambivalente que, por sua história
transicional, a todo o momento oscila e se transforma.
Por conseguinte, em O homem que sabia javanês, além de se colocar em xeque os
pressupostos que alicerçavam a intelectualidade da Velha República, num segundo plano,
Lima Barreto também imprimia um discurso que ia de encontro ao projeto nacional de
conotação romântica que há algum tempo havia dominado a cena de nossa historiografia
literária, na tentativa de talvez estabelecer novos referenciais para os debates sobre nação e
os seus desdobramentos. A seguir, leiamos dois trechos do conto, nos quais o autor torna
clara a sua relação de desarmonia com a idílica natureza cantada pelos românticos.
Contudo, se num primeiro momento, podemos ler uma suposta redenção a tal recusa, num
instante posterior o que se sobressai é exatamente o tom satírico- parodístico com o qual
trata o ufanismo romântico:
[...] com maternal carinho, as anosas mangueiras que se perfilavam em alameda
diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me confortaram. Em
toda a minha vida, foi o único momento que cheguei a sentir a simpatia da
natureza... (BARRETO, 2001, p.51).
Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o
carrapicho haviam expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons
continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças (BARRETO,
2001, p.52).
Tais passagens ilustram perfeitamente a idéia de que a compreensão dos fundamentos que
tomam parte da elaboração daquilo que, hoje, se entende por nação, é extremamente
necessário que nos distanciemos de todo sentimento de absolutismo científico que de longe
objetive estabelecer verdades, tidas como irrefutáveis. Em face disso, o entendimento das
condicionantes que corroboram para a criação de conceitos que tentam explicar os
meandros da nação brasileira pressupõe, sobretudo, o fortalecimento de um ambiente no
qual o debate e a diversidade teórica possam imperar. Logo, em resposta à sua história, seu
espaço e seu tempo, a produção de Lima Barreto nos oferece uma farta contribuição para
“a discussão da identidade nacional num contexto onde não se pode mais desconhecer o
aspecto plural de nossa cultura” e de nossas letras (PEREIRA, 2002, p. 224).
Considerações Finais
Em síntese, o retrospecto do campo intelectual e a compreensão das estruturas dominantes
no cenário literário dos primeiros anos do século XX, proposta pela leitura do conto O
homem que sabia javanês, nos permite reconhecer um pouco mais de perto o espaço de
atuação do escritor, ademais de também considerar as forças ou o conjunto de forças que o
constituíam.
Nessa medida, numa tomada reflexiva das personagens, do foco narrativo e do lugar de
enunciação do narrador, notamos que a ironia crítica assumida pelo autor, no texto
discutido, revela, claramente, o cunho dissidente não apenas de sua escrita, mas também,
do homem e autor Afonso Henriques de Lima Barreto. Tal dissonância não se dá
simplesmente por conta das divergências estilísticas e formais, mas talvez, acima de tudo,
em virtude do silêncio assumido pela crítica frente a sua obra, revelando,
indiscutivelmente, a resistência por parte do pensamento crítico dominante em relação aos
propósitos criadores do escritor.
Dessa maneira, portanto, como um inseto em busca de luz, Lima Barreto se viu atraído
pelas lutas de reivindicação e a crítica social. Diante disso, de modo análogo, as peripécias
da personagem Castelo – O homem que sabia javanês – contêm resquícios de suas
amarguras, suas decepções e sua revolta diante do silêncio ou da resistência por parte da
caricata elite intelectual com respeito à sua obra.
Referências
ANDRADE, Mario de. Poesia. (Org.). Dantas Motta. Rio de Janeiro: Agir, 1961.
ASSIS, Machado de. Obra completa. 3 v. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
BARRETO, A. H. de Lima. Melhores contos. (Org.). Francisco de Assis Barbosa. 7. ed.
São Paulo: Global, 2001.
BARRETO, A. H. de Lima. Obras completas. (Vol. XVI) Org. Francisco de Assis
Barbosa, com a colaboração de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença. São Paulo:
Brasiliense, 1956.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia
Renate Gonçalves, Myriam Ávila. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.
BOURDIEU, Pierre. Campo intelectual e projeto criador. In: Pouillon, Jean et alli.
Problemas do estruturalismo. Trad. de Rosa Maria R. da Silva. Rio de Janeiro: Zahar,
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CANDIDO, Antonio Candido. A educação pela noite e outros ensaios. 2. ed. São Paulo:
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COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 7. ed. São Paulo: Global, 2004
MARTHA, A. A. P. Lima Barreto: um escritor em seu tempo. In: XI Semana de letras e
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PEDROSA, Célia. Nacionalismo Literário. In: José Luiz Jobim. (Org.). Palavras da
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PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. A brasilidade de Policarpo Quaresma: modelo, moldura,
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Revista de literatura e diversidade cultural. Feira de Santana: UEFS, nº 1, 2001-2,
p.224-236.
GENTILEZA GERA GENTILEZA: LEITURA E ESCRITA NO TEXTO DA CANÇÃO
Renailda Ferreira Cazumbá 48
Aproveito a oportunidade de confissão e ruminação de idéias que a escrita pode me proporcionar para trazer
à apreciação dos leitores este relato de experiência vivenciada na oficina Elementos da textualidade: um
olhar sobre a produção escrita no ensino fundamental, realizada com estudantes do curso de Pedagogia, a
fim de que possamos fertilizar o terreno das propostas em torno do processo de aprendizagem da leitura e da
escrita, enquanto uma atividade prazerosa.
Realizada durante um seminário temático, a oficina teve como objetivo refletir sobre o processo de produção
textual no ensino fundamental, a partir dos fatores de textualidade e verificar até que ponto os textos
produzidos na escola podem ser considerados “incoerentes”, “sem lógica” e “confusos”. Para tanto,
buscamos entender o conceito de texto, verificar a idéia de não-texto e analisar algumas produções escritas de
alunos do ensino fundamental, no entanto, adotamos como base para reflexão, os fatores de textualidade
presentes na canção Gentileza, de Marisa Monte.
A oficina também propunha a reflexão sobre a importância da música popular enquanto um recurso profícuo
para o incentivo à leitura e à escrita de textos coerentes, de forma que o professor possa utilizá-la em suas
atividades, buscando o diálogo interdisciplinar, buscando aportes norteadores de seu trabalho em outras áreas
de conhecimento e em outras linguagens.
Sabemos, enquanto educadores, que no ambiente escolar o texto é abordado como um produto acabado,
isolado das situações reais de comunicação social. No tratamento pedagógico que se tem dado ao texto, o seu
processo de significação global fica comprometido, pois o trabalho é calcado em atividades mecânicas de
leitura e escrita, as quais incluem ignorar a competência leitora dos estudantes, os seus conhecimentos
prévios e partilhados e ainda as condições de produção que a escola oferece. Ou seja, o contexto, as intenções
sociocomunicativas e os sujeitos envolvidos na ação produtiva e receptiva, são elementos que geralmente não
tem relevância no contesto escolar, e por isso, recebem um tratamento artificializado.
Explicitando melhor essa questão, afirmamos que o texto quando abordado no ambiente escolar perde o seu
estatuto de objeto cultural, construído a partir das práticas sociais e históricas e de sua relação dialógica com
outros textos, pois é abordado como um construto didático, utilizado para de forma fragmentada, tratado
apenas como base para a feitura de exercícios e leitura orais ou para atividades de cópia e mera avaliação de
língua portuguesa. O principal meio de divulgação é o livro didático, enquanto que fora da escola muitas são
as formas de veiculação dos textos escritos aparecem em espaços variados de interlocução e atribuição de
significados: a banca de revista, o outdoor, as canções, a internet...
A partir das contribuições recentes da Lingüística Textual, calcamos as nossas indagações nos pressupostos
teórico-metodológicos de João Wanderlei Geraldi (1997) Igedore Villaça. Koch (2000) e Girlene Lima
48
Professora de Metodologia do Ensino de L. Portuguesa e aluna do Mestrado em Literatura e Diversidade
Cultural – UEFS. E-mail: [email protected]
Portela (1999) e Darcila Simões, em seus trabalhos sobre o texto e sua produção na escola, pois tais
pesquisadores nos apontam que o texto é resultado das práticas globais de comunicação, envolvido em
situações reais de interlocução. Para esses autores, o sentido não está no texto em si, mas na capacidade do
leitor em atribuir-lhe significado, das intenções do produtor, do meio veiculado, da quantidade de informação
que contém.
A proposta metodológica da oficina partiu de atividades de leitura da letra da canção, consulta a materiais
consultados na internet que trouxessem informações sobre as condições de produção da canção. No primeiro
momento da atividade solicitou-se uma possível interpretação da canção por meio de provocações, partindo
apenas do texto da canção Gentileza, de Marisa Monte.
A partir da letra da canção solicitamos uma possível interpretação. O grupo apresentou diversas
interpretações, válidas, é claro, no entanto, percebemos que o texto em questão apresentava pistas, elementos
lingüísticos que nos remetiam para um contexto maior, os quais precisavam ser recuperados para que
pudéssemos atribuir-lhe sentidos.
O primeiro obstáculo para uma leitura mais competente foi o título da canção: Gentileza. Questionado sobre
este aspecto, o grupo remeteu suas observações ao contexto atual: o mundo precisa recuperar os sentimentos
nobres! Mas alguns versos do texto intrigavam os futuros professores que não conseguiam entender por que
o autor do texto afirmava: “Apagaram tudo, pintaram tudo de tinta, só ficou no muro tristeza e tinta fresca”.
Para eles, esses versos remetiam a algo que eles não sabiam explicar.
A partir dessa dificuldade, utilizamos outros materiais de análise além da letra da canção, como trechos de
entrevistas feitas à cantora, informando que quando era adolescente, Marisa Monte ficava fascinada com a
visão de um personagem que se aproximava da janela de seu carro. A cantora afirma que viu o profeta varias
vezes, “com sua barba de profeta, sua bata de profeta, mas o suficiente para nunca esquecer”, conta ela.
Como Marisa Monte, outros milhares de passageiros de carros e ônibus que chegam ao Rio por umas das
principais artérias que conduzem ao centro da cidade tiveram a visão do homem conhecido por Profeta
Gentileza, que dava as boas vindas a todos, dizendo: “Meus filhos, não usem problemas, usem gentileza”.
Além dos trechos das entrevistas, apresentei ao grupo a história do profeta Gentileza, trazendo à luz
informações sobre a sua biografia pessoal e o que o levou a criar esta personagem denominada Gentileza,
sobre a qual a música se referia.
Mas alguns versos do texto intrigavam os futuros professores que não conseguiam entender por que o autor
do texto afirmava: “Apagaram tudo, pintaram tudo de tinta, só ficou no muro tristeza e tinta fresca”. Para
eles, esses versos remetiam a algo que eles não sabiam explicar.
Humberto Eco esclarece que o texto é "uma máquina preguiçosa”, que requer do leitor um árduo trabalho
cooperativo para preencher espaços do não-dito ou do já-dito, espaços, por assim dizer, deixados em branco.
O autor também enfatiza que o texto deixa os seus próprios conteúdos no estado virtual, esperando que o
trabalho cooperativo do leitor lhe dê a sua atualização definitiva.
Diante de tais questionamentos, provocados pelo texto em questão, que afinal solicitava ser interpretado,
apresentei-lhes algumas informações sobre as condições de produção da canção.
Apresentei ao grupo a história do profeta Gentileza:
José Datrino, o Profeta Gentileza, nasceu em Cafelândia-SP e aos 20 anos foi para
o Rio de Janeiro, enquanto sua família mudava-se para Mirandópolis. Vivia em
Guadalupe, zona norte do Rio, tinha duas filhas, uma pequena empresa de
transportes de carga e 44 anos quando teve uma “revelação”. Isso aconteceu no dia
23 de dezembro de 1961, seis dias depois do incêndio no “Gran Circus NorteAmericano” que se encontrava em Niterói. Na tragédia morreram 500 pessoas a
maioria crianças. Dizendo que “O Mundo é redondo e o circo arredondado; por
esse motivo, então, o mundo foi acabado”, mudou-se para o local da tragédia,
plantou um jardim de flores sobre as cinzas e distribuía estas flores pelas ruas
sempre pregando a bondade entre os homens. Viveu lá por quatro anos,
consolando os familiares das vítimas e Durante os 35 anos seguintes, viveu sob o
signo da solidariedade 49
A partir dessas informações, o grupo pôde perceber o texto sob outra perspectiva, munidos
de condições suficientes para entender o sentido os versos que não conseguiam apreender
na primeira leitura.
A palavra “Gentileza”, agora, corporificava-se na figura de um
personagem da história do um personagem da história do Rio de Janeiro, não era apenas o
“ato de ser gentil”. Apresentei-lhes também a continuidade da história: A partir dos anos
80, Gentileza faz uma grande intervenção na paisagem urbana do Rio de Janeiro. O suporte
escolhido foram as pilastras do viaduto que vai do Cemitério do Caju até a Rodoviária
Novo Rio, numa extensão de aproximadamente 1,5km. O que o levou a escolher este local
foi exatamente por reconhecer na rodoviária o portal de entrada para a cidade maravilhosa,
além de possuir grande fluxo de pessoas que transitam pela cidade. Este cenário,
considerado o maior mural espontâneo do Rio, constitui num livro aberto, sem
camuflagens e ao alcance de todos (GUELMAN, 2000, p. 57):
Quem chega ao Rio de Janeiro por uma de suas principais via de acesso, a Avenida
Brasil, e segue pelo Viaduto do Caju até a rodoviária Novo Rio, tem uma grata
surpresa. Em meio à paisagem hostilizada pela poluição química, sonora e visual,
o visitante é confrontado por uma seqüência de murais das cores da bandeira
brasileira, que anunciam mensagens de paz e sugere a gentileza como princípio das
relações humanas. Inscritas sobre o concreto de 55 pilastras do viaduto, as palavras
do mítico andarilho conhecido por Profeta Gentileza (1917-1996), descortinam-se
como páginas de um livro urbano ou painéis de uma exposição de arte mural de
proporções monumentais (Idem, p. 57).
Utilizamos várias ilustrações, dentre as quais a imagem abaixo, para ilustrar a frases do
profeta Gentileza: impressas em sua túnica.
49
Disponível em: www.gentileza.org.br. Acesso em 19/12/06.
Partindo de tais abordagens, o texto revelou outra perspectiva de análise para os participantes da oficina.
Com isto, podemos afirmar que o significado do texto se encontra também nas relações que se estabelecem
entre o autor e o leitor.
Igedore Villaça Koch, (1997, p.68) afirma que “para produzir-se um texto, deve-se ter em mente certas
condições que venham a validá-lo como tal”. Para tanto, o leitor ou produtor textual deve perseguir as
“pistas” capazes de revelar a rede de relações e redundância, buscando o sentido global e a coerência do
texto. Portanto, o sentido de um texto não esta no texto em si, mas na capacidade do produtor/leitor de
reunirem os elementos necessários para a textualidade.
Percebemos na canção Gentileza a montagem de um jogo lingüístico e uma rede de relações discursivas que
concorriam para a construção do sentido global do texto, dentre eles os elementos lingüísticos e o contexto
sócio-histórico em que a canção fazia remissão, que poderia não fazer parte do conhecimento de mundo e
partilhado dos leitores envolvidos.
Sabemos que no estudo do texto literário, o centro das atenções deverá constituir-se especificamente na volta
do texto, na exploração de seu significante, mas não apenas isto, pois o excesso de formalismo pode dificultar
a compreensão global da montagem lingüística elaborada pelo autor. A sua estrutura, a sua dimensão
semântica, os seus aspectos fônicos e retórico-estilísticos terão necessariamente de ser trabalhados pelo
receptor-leitor, com vista a uma recomposição, reorganização do texto inicial, os do autor. No entanto, o
plano conceitual que evolve o contexto de produção colabora muito para a reconstrução do sentido textual.
Dessa forma, percorremos ambos os caminhos.
Para Koch, a coerência de um texto é resultado de uma construção feita pelos interlocutores, numa situação
de interação, levando-se em conta fatores de ordem cognitiva, situacional, sociocultural e interacional.
A autora quer dizer com isto que o texto necessita de ser decodificado, interpretado, lido. O que significa
afirmar que sem um leitor cooperativo, munido de conhecimentos anteriores e informações suficientes, um
texto pode não passar de emaranhado de frases que nada têm a dizer.
A partir de “pistas” e inferências pode-se negociar o sentido de um texto, portanto, tal sentido nunca é dado,
pronto, mas é resultado das diversas negociações, dos fatores de textualidade, além da coesão e a coerência,
a aceitabilidade, a intencionalidade e a situacionalidade, o conhecimento de mundo e a intertextualidade
(Koch, 2005).
Em um artigo sobre os rumos da Lingüística Textual no Brasil, a professora Maria Cristina
Bentes, da UFMG, demonstrou que músicas como ECT, de Carlinhos Brown, Sina, de
Djavan e muitas outras, foram criticadas em artigos publicados em jornais de grande
circulação no Brasil e consideradas como produto de falta do que dizer e de pouca
criatividade. Para a professora, um estudo dessas canções, à luz das contribuições da
Lingüística Textual, poderia ser revelador, no sentido de apresentar essas canções como
sendo o resultado de diversas relações dialógicas e discursivas entre a tradição musical
brasileira e a literatura e outras formas de conhecimento, num processo de paráfrase e
paródia que enriquecem a produção dos cancionistas brasileiros, como foi demonstrado por
Portela (1999), ao analisar as relações intertextuais da produção musical de Caetano
Veloso.
Também os estudos que tenho realizado sobre a poética medieval e as canções sertanezas
de Elomar têm sido reveladores para perceber as intrínsecas relações entre a música e a
poesia, pelos componentes que mantém em comum, como a performance vocal, pelo
aspecto rítmico e melódico, que as aproximam, dando-me a revelar que estas duas irmãs
siamesas têm muito a nos revelar para o trabalho interpretativo de sua natureza.
Na Grécia Antiga havia um efetivo parentesco entre a poética e a música. O conhecimento
etimológico do termo grego “mousiké” pressupunha um sentido global, pois a melodia
pressentia o verso, e vice-versa, pois a música era um discurso que poderia veicular a
poesia e “moldar” e “controlar” a formação dos homens.
Sócrates afirmou na República que “para o corpo temos a ginástica e para a alma, a
música” (1997, p.64). Sendo um alimento da alma, a música representava para os
pensadores da Grécia antiga um atributo fundamental para a educação dos jovens,
concebida como o início da preparação mental.
Neste sentido, seria interessante que nos questionássemos, enquanto educadores de crianças e jovens
oriundos principalmente das classes populares, de onde vem essa má vontade, esse mal-estar com a música
popular? Por que as representações das construções populares apenas ganham espaço na escola quando temos
que tratar do folclore ou algo parecido? Sabemos o quanto é complicada esta questão da folclorização do
popular, caracterizado por pesquisadores como Peter Burke (2002) e Canclini (1998) como um aspecto de
apagamento das culturas ditas periféricas em oposição a uma cultura de elite.
A análise de canções populares brasileiras com valor literário pode contribuir como base para a demonstração
da competência lingüística de seus autores, tomada como referência para o aperfeiçoamento vernacular dos
estudantes. Para tanto, se impõe a seleção dos objetos textuais e da moldura teórica que se mostra fator
relevante para nossas considerações, já que esses materiais vão alicerçar a orientação de processos de leitura
e produção textual, e as condições para a realização do indivíduo como homem integral.
Na verdade, a música popular poderia ser uma introdução ao estudo da literatura, considerando-se que as
duas artes são diferentes, mas afins, e trabalham com a musicalidade e a plasticidade das palavras. No caso
Elomar, por exemplo, verificamos uma tênue fronteira que separa literatura da música. As suas canções
geram um diálogo entre ambas, ao passo em que promovemos outras possibilidades de pensarmos a poesia.
Dizemos que Elomar é um poeta que escolheu a música como forma de expressão.
Darcila Simões afirma que “apesar de sua longa trajetória, as relações entre música e literatura só vão
solidificar-se a partir do século XVI, com a gradativa afirmação da melopoética” (SOMÕES, 2005).
A inauguração da Literatura Comparada alarga os espaços de reflexão acerca das relações entre música e
literatura, a partir da inclinação pós-moderna pela fusão dentre os vários objetos artísticos. Literatura
Comparada e Semiótica redimensionam a crítica aos objetos de arte, uma vez que as homologias aproximam
as artes em geral, e literatura e música, em especial. Ezra Pound (In ABC da Literatura) consideraria a poesia
como uma arte mais próxima da música do que da literatura propriamente dita, tal a diferença substancial, de
natureza estrutural, existente entre poesia e prosa. Arte sinestésica por excelência, a poesia, ensejou estudos
que buscassem base científica para a correlação entre som instrumental e combinações sonoras na poesia.
Mesmo sem o sucesso de tal hipótese, é indiscutível a origem musical da poesia.
Da Literatura Clássica, passando pela Medieval e projetando-se sobre a de Cordel, é incontestável a
fundamentação melódica desses textos. Além disso, a fronteira indelével entre poesia e música manifesta-se
também nas opções temático-formais. Canções, acalantos, sinfonias, sonatas, baladas, tiranas, cirandas,
rondós, etc são estilos musicais transpostos para a poesia. Logo, a proposta da utilização da letra-de-música
como texto-objeto a ser explorado nas aulas de português intenta trazer para a sala de aula o poder inebriante
e de elevação espiritual propiciado pela música.
Convém acrescentar que a variedade rítmica também funcionaria como elemento
icônico na interpretação dos textos; e que a análise que se propõe é
transdisciplinar, ainda que partam do sistema, da norma e dos usos lingüísticos
como referências primeiras. Verifica-se assim a necessária releitura dos sistemas
culturais e respectivas produções artísticas, para que o docente se municie de
informação de alta relevância para a interpretação dos textos eleitos para suas
aulas. (SIMÕES, 2006).
Falar de objeto artístico inclui conhecimento sócio-histórico que, aliado ao domínio do sistema lingüístico em
foco (no caso, o da língua portuguesa), propiciará recortes isotópicos ajustados à realidade textual, sem
limitar as possibilidades de leitura tampouco permitir toda e qualquer leitura indisponível no tecido textual,
que é resultante de uma trama sígnica que, por sua vez, emerge de um ecossistema que regula e é regulado
por uma entidade invisível, mas notória, denominada interpretante coletivo (SIMÕES, 2006).
Quando se fala em significado, verifica-se que há acepções catalogadas nos dicionários das línguas que
servem de referência para o entendimento das mensagens. Contudo, não se pode perder de vista que, apesar
disto, os textos podem inaugurar novos significados (não dicionarizados) e que os sentidos muitas vezes
extrapolam os significados, uma vez que os usos figurados parecem ser muito mais freqüentes que os literais.
Em decorrência destes fatos, os estudiosos oferecem ao leitor contemporâneo suporte teórico consistente
quanto à produção de leitura a partir de recortes temáticos (ou isotópicos) emergentes dos signos-chave
(verbais ou não-verbais) que se apresentam na superfície dos textos. Segundo Simões (2003), isotopia é um
recorte temático fundada na identidade de significantes aberta para a pluralidade de significados e balizada
pela rede interna perceptível na trama textual.
Os componentes perceptíveis no texto apresentados pela Semiótica e pelas análises da Lingüística Textual,
foram considerados na canção Gentileza como nosso objeto de reflexão, utilizada para que o grupo envolvido
na oficina percebesse os processos responsáveis pela tessitura da canção e a partir disso pudesse recuperar o
contexto sócio-histórico o qual foi produzida a música para que pudessem reconstruir o significado do texto.
Em todos os versos da canção Gentileza, podemos perceber os elementos ou “pistas” que podem revelar o
sentido do texto: elementos que apontam o contexto e situação de produção (nós que passamos pelas ruas da
cidade), alguns argumentos apontam a intencionalidade do autor em protestar através da letra da música e
levar a refletir sobre o contexto, mas que fica subentendido na terceira pessoa do plural, indeterminando
quem praticou a ação (apagaram tudo, pintaram tudo de tinta), mas pode ser esclarecidos pelas informações
textuais (Gentileza), quem foi Gentileza? Esse recurso ativa a curiosidade do leito/ouvinte em sabem quem o
foi o profeta que pronunciou as frases citadas no texto (O mundo é uma escola / a vida é um circo), frases que
demonstram a intertextualidade entre a canção e a personagem Gentileza.
Neste sentido, pudemos perceber que a canção Gentileza comporta todos os recursos da textualidade e revelase recheada de pistas textuais e extra-textuais, num imbricado jogo lingüístico e discursivo, que nada tem de
incoerente, pois a coerência textual foi construída a partir do uso do campo semântico Gentileza, profeta,
ruas, cidade, letras e palavras, as quais remetiam a um contexto social e histórico da vida brasileira,
envolvendo a criação artística e sociocomunicativa das frases de José Datrino, o Gentileza.
Referências
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GERALDI, J. W. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997.
KOCH, Igedore V. , TRAVAGLIA, L. C. Texto e coerência. São Paulo: Cortez, 2000.
KOCH, Igedore V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2005.
PORTELA, G.L. O intertexto (“a que será que se destina?”) na produção de Caetano
Veloso. Feira de Santana: UEFS/EGBA, 1999.
SIMÕES, Darcila. Semiótica, música e ensino do português. Instituto de LetrasUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Disponível em
www.darcilia.simoes.com. Acesso em 19/12/06.
Anexo:
Gentileza
Apagaram tudo, pintaram tudo de cinza
A palavra no muro, ficou coberta de tinta
Apagaram tudo, pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro, tristeza e tinta fresca
Nos que passamos apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras as palavras de Gentileza
Por isso eu pergunto
A vocês no mundo
Se é mais inteligente
O livro ou a sabedoria
O Mundo é uma escola
A vida é o circo
Amor palavra que liberta
Já dizia o profeta
Marisa Monte - Cd "Memórias, Crônicas e Declarações de Amor"
NAS ÁGUAS DA PALAVRA: AS MUTAÇÕES NA POESIA DE MANOEL DE BARROS
Maria Carolina Bonis (PUC.SP)
Poesia do Rio mar com suas águas escorrendo às fontes, refluindo ao princípio, onde
cantam uníssonas as vozes derramadas serenas, míticas, à primeira fonte incessante de
poesia oniplasmável. O rio, onde o mar é fim e início, sabe que a literatura deságua na foz,
nas ondas dos sonhos, e nos diz histórias das águas primordiais. O rio que divide suas
margens e recorta, entre duas, a terceira, o lugar em que a abundância da terra e o brilho
dos céus espelham numa revelação, seu lado mágico.
A poesia existe suspensa numa história secreta. Reflui em ondas d'água. Numa leveza de
reflexos emerge enigmática na superfície tranqüila do rio. Num instante tudo se agita, são
as palavras que desaguando nos ritmos sensíveis da linguagem encantam com seus
mistérios o que há por trás da paisagem. Como suas águas que avançam sobre a terra,
aduba florescimentos, irrompe, semeia, desencobre germinações obscuras, lava e descama
as dobras do barro. Traça múltiplos caminhos, canais, correntes, irrigando e recompondo a
natureza do chão por onde toca.
A essência do ato poético conjugada por um ritmo intrínseco da poesia deixa-se
transparecer em mutações de águas cristalinas, transparentes. A matéria líquida da palavra
assimila o simbólico, descasca os arquétipos adormecidos de seu peso da cultura
cristalizada. Cada poema conta uma história secreta de palavras que nascem, morrem e
renascem, numa busca em que o verbo é sempre o veículo entre o finito e o infinito, ele
opera a mediação que de um salto no chão alça vôo à imagem mais abstrata:
O poema é mediação: graças a ele, o tempo original, pai dos tempos, encarna-se
num momento. A sucessão se converte em presente puro, manancial que se
alimenta a si próprio e transmuta o homem. A leitura do poema mostra grande
semelhança com a criação poética. O poeta cria imagens, poemas; o poema faz
do leitor imagem, poesia. (...) A poesia não é nada senão tempo, ritmo
perpetuamente criador. (PAZ, 1982, p.30).
No refluir às origens move-se a poesia de Manoel de Barros. Sua poética inaugura a
existência de um universo, o Pantanal, que feito de deslimites desenha-se em paisagens
peculiares, recompõe, encarna uma natureza particular derivada da imaginação, alinhada à
invenção. É um espaço primário, ancestral, situado numa zona longilínea, distante de
qualquer vestígio da civilização. Cria-se um Pantanal que é um reino de recortes
simbólicos, um espaço onde o pensamento voa, um espaço de nascimentos: “Este não é um
livro sobre o Pantanal. Seria antes uma Anunciação. Enunciados como que constativos.
Manchas. Nódoas de imagens. Festejos de linguagem.” (BARROS, p.9)
Ao mover-se num universo novo e inexplorado, a poesia, habita fronteiras estrangeiras que
estão entre o real e o poético. Manoel de Barros escolhe o poético sem intervalos, adere ao
inverossímil, criando halos de implicações de imagens desdobradas, a partir de seres e
objetos que habitam seu mundo linguístico. As palavras, sons, cores e outros elementos
quando arrastadas pelas águas da poesia sofrem uma transmutação e passam a ser outra
coisa, ser em outra coisa. Quando árvores querem ser em borboletas, rãs em pedras, poeta
em aves, exercíta-se o processo de transformação de sentidos.
O artista não se serve de seus instrumentos – pedra, som, cor ou palavra – como
o artesão; ao contrário, serve-se deles para que recuperem sua natureza original,
transcende-a. Essa operação (...) produz a imagem. O artista é criador de
imagens: poeta. (PAZ, 1982:27).
O poeta é um criador de imagens, aguarda-as libertas das experiências anteriores. Seu dom
instala no concreto um refluir abstrato. Pedra, som, cor e vocábulos servem como meios a
feixes de sentidos que gravitam numa zona de fronteira: a paisagem iniciática une
misteriosamente o mundo fazendo com que o verbo seja entregue ao delírio:
Há um cio vegetal na voz do artista.
Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto
de alcançar o murmúrio das águas nas folhas
das árvores.
Não terá mais o condão de refletir sobre as
coisas.
Mas terá o condão de sê-las.
Não terá mais idéias: terá chuvas, tardes, ventos,
passarinhos.... (Retrato do artista quando coisa, p.32).
A ancestralidade da voz nasce por meio de inversões de sentido. O poeta retira do objeto
sua função primária para que ele fique nas mediações para transfigurar-se, feito as palavras
do idioma que são seu principal instrumento para operar no espaço sinestesicamente,
misturando, revezando devaneios próprios com o natural da paisagem.
As garças descem nos brejos que nem brisas.
Todas as manhãs.
As árvores me começam. (Livro sobre nada, p.32).
A questão paisagística ocorre por escolhas, a dizer que não se trata da paisagem toda do
sublime captada pela idéia, mas de um universo singular desenhado a bico de pena,
compartilhado por seres miúdos como pedras, rãs, caracóis, orvalhos, beija-flor, até as
coisas jogadas fora, onde tudo é aderido pelas sensações, pelo ser do poeta, rasgando a
carne da voz.
As palavras tornam-se vivas quando irrigadas pela matéria exótica que as compõem,
adubadas pelo rio, seu chão poético floresce, num sentido metafórico, semelhante ao
discurso poético de Barros, que não sedimenta a palavra, pois a vê como parte orgânica de
um todo: um organismo vivo que nasce e (des)morre, possui história, onde esta mesma
pode ser abolida, para que a palavra seja vista no seu abandono que se encontra. Sem
vestimentas ele aceita os infortúnios, para encontrarem-se os mistérios da pronúncia, seus
gorjeios, seu som selvagem, a decomposição lírica:
Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau,
folhas secas, penas de urubu
E demais trombolhos.
Seria como o percurso de uma palavra antes de
chegar ao poema.
As palavras, na viagem para o poema, recebem
nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades.
E demais escarralhas.
As palavras se sujam de nós na viagem.
Mas desembarcam no poema escorreitas: como que
filtradas.
E livres das tripas do nosso espírito. (Ensaios fotográficos, p.21).
A palavra é vista enquanto morada do poético e procura extrair da forma o oculto que a
abriga, o nascimento, as cintilações do ovo. Poesia para esse poeta não é exatidão da
forma, não é subtração do supérfluo, mas é voar fora da asa. Por meio da reconstituição e
da reinvenção entorna no que já existe o adubo, na quantidade certa para florescer. Nesse
florescer conte-se ainda com a ajuda da natureza, com os mistérios que dia-a-dia envolvem
o tempo. Mistérios do poeta que nos ritmos da linguagem entoa palavras que refluem,
navegando na imaginação e na memória do leitor. Estabelece um pacto de criação e
recepção, isto é, persuade desde o início pelo inverossímil aproximando o leitor ao texto,
habitando-o com as imagens familiares, fazendo-o conviver com elas, ao ponto em que são
impregnadas pelo outro:
Para entrar em estado de árvore é preciso partir de
um torpor animal de lagarto às três horas da tarde,
no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em
nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato
sair na voz. (O livro das ignorãças, p.17).
O poeta da mesma forma metamorfoseia-se, como num ciclo, desloca-se do centro às
margens e vice-e-versa até portar-se do avesso. É aquele que da mesma forma que cria
transfere-se para a matéria criada. Feito um jogo no pensamento.
No momento em que Barros pensa a linguagem diferentemente, ela o deslinda a habitar um
espaço desconhecido, e, no entanto, reconhecido pelas estranhas familiaridades das
palavras. O universo das palavras comanda os fenômenos do ser, quando dizer é avançar,
seguir em frente, confundir-se em espirais.
Faço vaginação com palavras até meu retrato
aparecer.
Apareço de costas.
Preciso de atingir a escuridão com clareza.
Tenho de laspear verbo por verbo até alcançar
o meu aspro.
Palavras têm que adoecer de mim para que se
tornem saudáveis
Vou sendo incorporado pelas formas pelos
cheiros pelo som pelas cores. (Retrato do artista quando coisa, p.46).
O poeta é também feito um pássaro de grandes asas que sobrevoa mais alto, no espaço
distante, onde ele avista o mundo e cria suas metamorfoses. Suas palavras nascem do canto
adâmico, das águas do rio que alimentam com suas vazantes o chão onde germina a poesia;
criam uma mediação entre o profundo conhecimento da terra, da forma, para as coisas de
linguagem, das palavras, agora, cheias de asas e as asas cheias de alma.
A poética de Manoel de Barros, a meu ver, está no espaço puro da invenção, suas formas
desembocam num jogo de pensamento, conjugam-se no exercício da concepção. As
imagens são introduzidas como se fossem antigas pertencentes do poema, misturam-se
para que não sejam esquecidas. As coisas contaminam-se umas às outras, o poeta
embaralha as certezas imaginárias, transfigura a natureza com arranjos inéditos. Suas
palavras perseguem desvios, percorrem caminhos do não-sabido.
Agora, o poeta desintegra o véu que compõe o estado poético, invertendo os meios. Há
sabiás que recitam o sol, árvores que voam, garças que sombreiam o silêncio, pássaros que
trocam seus gorjeios, caracóis com desejo de voar. Uma metáfora prende-se na outra,
decompondo progressivamente a origem do real, tem-se uma sobreposição de imagens,
destroçadas, fragmentadas:
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílios nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras. (Retrato do artista quando coisa, p.17).
Seus enunciados afirmam-se pelo absurdo, o poeta inverte o discurso, fala em primeira
pessoa, ensina-nos suas verdades num monólogo que pega carona no ombro da prosa. Sabe
que “é branco o silêncio do orvalho”, comunica-nos uma revelação. Como em feitiço
encontra a língua-pássaro.
Agora só espero a despalavra: a palavra nascida
para o canto – desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga.
Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma
imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo. (Retrato do artista quando
coisa,p.53)
A língua pássaro seria inerente à poesia que, no princípio, ligada ao canto sublimava de
grau em grau à conversão dos sons em desenhos de uma voz, em imagens efêmeras sempre
prontas a serem frutos de outras imagens. Quando falamos de um poeta, pensamos apenas
em quem profere as notas líricas, à maneira de pássaros (BORGES, 2007, p.42). Mas na
medida em que a imagem se depreende de si e passa a ser um objeto capaz de discurso,
atinge um alto grau de liberdade, dirigindo-se à própria natureza do poético que é ser
inefável:
O ato de ver é inefável. E às vezes o que é visto também é inefável. E é assim
certa espécie de pensar-sentir que chamarei de “liberdade”, só para lhe dar um
nome. Liberdade mesmo – enquanto ato de percepção – não tem forma. E como
a verdadeiro pensamento se pensa a si mesmo, essa espécie de pensamento
atinge seu objetivo no próprio ato de pensar. (LISPECTOR, 1998, p.81).
Opera uma transgressão esse instante de revelação, nele principia algo, as palavras que já
não podem ocupar o lugar das imagens chegam à memória antes mesmo de serem
pronunciadas, percorrem por trás do rio as voltas do esquecimento, momentos de epifania:
Com aquela sua maneira de sol entrar em casa
E com o seu olhar furado de nascentes
O menino podia ver até a cor das vogais como o poeta Rimbaud viu.
Contou que viu a tarde latejar de andorinhas.
E viu a garça pousada na solidão de uma pedra.
E viu outro lagarto que lambia o lado azul do
silêncio. (Poemas rupestres, p.19).
Manoel de Barros transforma a imaginação do real em presságio do sonho, decompõe as
substâncias, retoma ao início, estende os meios, desabrocha, para compor em estado de
concepção um ato de invenção poética. E bebendo dessa fonte, ele transforma o real na
imaginação da imaginação. Sua liberdade traz às palavras elementos ficcionais, traz a
poesia uma veia de estórias.
Eis porque suas palavras são matéria líquida, pois não findam em si mesmas, travam laços
transubstanciais, envolvem como as águas todos os lugares por onde tocam. Não tem
forma em início, mas são aquilo que as circundam. As águas das palavras refluem ao chão
contaminando-se daquilo que a terra guarda até saírem prenhes de outras histórias.
O chão é a ressurreição dos musgos, das árvores, dos passarinhos, das borboletas,
substantivos comuns que são o poeta, guardam sua voz: “Ele me coisa/ Ele me rã/ Ele me
árvore.” Nomes que fertilizam a linguagem e voltam do canto primordial às águas de
origem, movimentando-se para atingir sua verdadeira essência
Referência
BARROS, Manoel de. Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 1999.
__________________. Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record, 2003.
__________________. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 2003.
__________________. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 2004.
__________________. Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004.
__________________. Retrato do artista quando coisas. Rio de Janeiro: Record,
2004.
BORGES, Jorge Luís. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
CONFIGURAÇÕES DO TRÁGICO MODERNO EM A MARIA
LIONÇA, DE MIGUEL TORGA
Solange Araújo Fioravanti (Msc. em Literatura e Diversidade Cultural - UEFS)
No conto torguiano A Maria Lionça, o narrador relata a vida pregressa da personagemtítulo com síntese dramática e simplicidade, como convém a um conto exemplar, reunindo
concisão e economia de meios narrativos.
O conto descreve a priori o espaço em que irá se desenrolar o evento trágico, já
antecipando a atmosfera circundante: Galafura, cidade cavada na fraga que, para subir
sobre o “macho”, são necessários “duas horas de penitência” (TORGA, 1996a, p. 15).
Torga, utilizando-se de uma linguagem plástica em sua narrativa, localiza com precisão o
espaço geográfico da protagonista trágica, já preparando o leitor para o seu conflito
psicológico: “Lá, é uma rua comprida, de casas com craveiros à janela, duas quelhas
menos alegres, o largo, o cruzeiro, a igreja e uma fonte a jorrar água muito fria. Montanha.
O berço digno de Maria Lionça” (TORGA, 1996a, p. 15).
A descrição paisagística é bastante sugestiva neste conto, porque reflete o interior das
personagens, sendo interiorizada pelas três personagens-nucleares da ação: Maria Lionça,
Lourenço Ruivo e Pedro, que co-participam de um ambiente “cavado na fraga”, cavado na
dureza da vida. Um ambiente a que, para se ter acesso, são necessárias, pela linguagem
hiperbólica, “duas horas de penitência”, ou seja, duas horas de castigo, de mortificação
sobre um animal de montaria. Talvez seja por isso que este seja “o berço digno” da
sofredora Maria Lionça, por ser um lugar de purgação, um purgatório transmontano,
revelador das angústias e sofrimentos dos seus habitantes.
Fala-se nela e paira logo no ar um ar silencioso, uma emoção contida, como
quando se ouve tocar a Senhor fora. E nem ler sabia! Bens ― os seus dons
naturais. Mais nada. Nasceu pobre, viveu pobre, e os que, por parentesco ou mais
chegada convivência, lhe herdaram o pouco bragal, bem sabiam a grandeza da
herança estava apenas no íntimo desses panos. Na recatada alvura que traziam da
arca e na regularidade dos fios de linho de que eram feitos, vinha a riqueza duma
existência que ia ser a legenda de Galafura (TORGA, 1996a, p. 15).
Observa-se que Torga descreve Maria Lionça com a mesma ternura com que fala da
montanha, do seu torrão natal. Por vezes, deixa impresso na narrativa a sensação de que a
personagem é a metáfora da Terra-Mãe, como bem sublinhou Teresa Rita Lopes.
Apesar de ter nascido, vivido e morrido na pobreza, Maria Lionça traz intrínseco o porte da
vítima trágica, já que sofre imerecidamente. Além disso, é portadora de uma dignidade
legendária, pois “na recatada alvura que traziam da arca e na regularidade dos fios de linho
de que eram feitos, vinha a riqueza duma existência que ia ser a legenda de Galafura”
(TORGA, 1996a, p. 15).
É importante também observar que Torga individualiza Maria Lionça, não por acaso
recorre ao artigo definido para distingui-la das outras mulheres de sua aldeia. Por certo,
como ressaltou Feitosa (1984), o traço estilístico do artigo definido utilizado pelo autor, no
decorrer de seus contos, contribui para marcar a grandeza da personagem ou demarcar
idiossincrasias de sua individualidade.
O conto instaura o conflito dramático ao reverter o estatuto seqüencial do começo, meio e
fim, colocando-nos frente a frente com o seu fecho trágico — a morte e o sepultamento da
protagonista no começo da narrativa. O conto trabalha, dessa forma, com os flashbacks da
vida da personagem trágica, apresentando pequenas fotografias de sua infância, mocidade
e maturidade.
Ao contrário da falta de atrativos da louca/estéril, a Raquel do conto O Milagre, Maria
Lionça é, consoante a narrativa, a “cachopa mais bonita, dada e alegre da terra”, além de
ser “a mais assente e respeitada” (TORGA, 1996a, p. 17). Conforme já assinalamos,
percebe-se que o narrador tem uma especial ternura e predileção pela personagem-título,
aventando-lhe atributos físicos e morais que a distinguem das moças do vilarejo: “Embora
igual às outras, pela pobreza e pela condição, havia à sua volta um halo de pureza que
simbolizava a própria pureza de Galafura. Na pessoa da Maria Lionça convergiam todas as
virtudes da povoação” (TORGA, 1996a, p. 17-18).
Podemos perceber que Torga, ao elencar as virtudes de Maria Lionça, o faz de forma
idealizada. O conto é entrecortado por um lirismo muito grande. A voz narrativa evidencia
tons líricos, extravasando-se no decorrer da narrativa. Logo, o narrador louva, celebra as
qualidades da personagem-protagonista: formosura, bondade, lealdade, honra, discrição ao
rir: “[...] o seu riso significava tudo menos licença” (TORGA, 1996a, p. 17)). Maria Lionça
é tão plena de graças, qualidades e virtudes que se torna a personificação da imagemsímbolo “[...] da própria pureza de Galafura” (TORGA, 1996a, p. 18), chegando a reunir
em si mesma “[...] todas as virtudes da povoação” (TORGA, 1996a, p. 18).
Assim, a voz narrativa, ao idealizar a personagem, coloca-se, a nosso ver, numa posição de
vassalagem, uma vez que Maria Lionça, idealizada, é alçada à posição de senhora.
Desse modo, ao adentrarmos na atmosfera da narrativa, temos a impressão de que Torga se
posiciona como um trovador, ao enumerar as qualidades de uma dama exponencial do
meio agrário português, contudo, sem porte aristocrático. Dela emanava a “[...] riqueza
duma existência que ia ser a legenda de Galafura” (TORGA, 1996a, p. 15), e que vive o
sofrimento dentro de uma perspectiva altamente realista: a lembrança do marido que
emigra para o Brasil, deixando-a sozinha em companhia do filho recém-nascido, as
dívidas, a doença, a falta de notícias, a pobreza, as mortes dos entes queridos.
De fato, no conto, o tom de vassalagem é tão explícito que o narrador torguiano chega a
questionar acerca de quem seria o homem digno de se casar com Maria Lionça: “Quem é
que merecia a riqueza de uma dádiva assim?” (TORGA, 1996a, p. 18). A nosso ver, esse
questionamento é o prenúncio de que qualquer rapaz que viesse a se casar com a moça não
estaria à sua altura, causando-lhe um desequilíbrio, o sofrimento, por ferir a ordem da
natureza absolutamente pura e virtuosa da personagem, surgindo, dessa forma, o trágico.
Esse trágico que se instaura pela fragilidade da própria existência do ser vivente, já que
“[...] existir meramente é perturbar o equilíbrio da natureza” (FRYE, 1973, p. 209).
Por certo, a existência de Lourenço Ruivo e de Pedro, filho de Maria Lionça (personagensnucleares do conto), foi transformada ao longo da narrativa em um grande desequilíbrio na
vida da personagem-título, causando-lhe a desventura, a desdita, tornando-a, por
excelência, vítima trágica.
Maria Lionça é muito mais vítima trágica do que heroína ou figura trágica, já que sofre por
meio de uma resignação sem precedentes, sem levantar uma queixa sequer em todos os
percalços desastrosos do marido e do filho, caindo na desdita e na desventura sem se
revoltar com as potências divinas, com o destino, que ela sabe, foi fruto de sua escolha e
opção. Por sua vez, a tragédia de Maria Lionça está circunscrita na tragédia moderna por
esta se resignar com a vida, com o mundo, com as suas escolhas e opções, vendo-os como
inelutáveis, acomodando-se ao sofrimento, mesmo tendo condições de interferir nas
situações.
Maria Lionça poderia ter deixado de pagar as dívidas da passagem do marido, não tê-lo
socorrido em sua doença ou morte, mas não o fez, revelando seu lado humano e solidário.
Da mesma forma, poderia ter deixado morrer no esquecimento o filho Pedro. Ao contrário,
resignou-se em sua dor e aflição, indo buscá-lo já desenganado para morrer no torrão natal,
apesar de este também tê-la abandonado e nunca lhe ter enviado notícias. Não é à toa que o
sugestivo nome Maria faz recorrência à Maria bíblica, ícone da pureza e de todas as
virtudes do mundo cristão católico. Por certo, Maria Lionça, a exemplo da Maria bíblica,
também fica viúva e acolhe seu filho morto, “transformada em uma outra Pietá”
(ARNAUT, 1997, p. 72).
Ao longo da narrativa, vê-se o destino a pregar peças na vida de Maria Lionça. Esta fica
viúva de marido vivo: o Lourenço Ruivo que parte para o outro lado mar, deixando o filho
ainda recém-nascido e a dívida da passagem a encargo da esposa. De fato, a tragédia de
Maria Lionça gravita em torno dos retornos trágicos: primeiramente do marido, o Ruivo,
que volta fraco e doente. Em seguida, é o filho único, o Pedro, que revoltado e
decepcionado com o progenitor, torna-se um marinheiro, um “proscrito” a exemplo do pai.
Percebe-se que o trágico se instala quando as personagens torguianas se recusam à lei da
terra, quando desprezam o Mito de Anteu, conforme ilustrou Teresa Rita Lopes (1993). O
Ruivo, em seu livre arbítrio, toma uma resolução que lhe custará a própria vida ― decide
emigrar para o Brasil assim que o primeiro filho nasce, cometendo um erro, uma hamartia
que deverá ser paga com a própria vida.
Maria Lionça, por sua vez, “[...] teria que sofrer a mesma separação expiatória, a pagar os
juros da passagem anos a fio, numa esperança continuamente renovada e desiludida na loja
da Purificação” (TORGA, 1996a, p. 18-19). Observa-se que, pelo excerto, o
estabelecimento onde Maria Lionça paga os juros da passagem do cônjuge é denominado,
não por acaso, de loja da Purificação, fazendo remissão ao processo de purgação trágica
que ela terá que passar para expiar o seu erro, ou seja, o casamento com o “proscrito”
Lourenço Ruivo.
Por outro lado, percebe-se que o tempo cronológico caminha pari passu com o tempo
psicológico, na narrativa. O estatuto da resignação trágica, própria da tragédia moderna, de
acordo com a concepção de Williams (2002), corporifica-se na narrativa, quando vemos
que durante quinze anos Ruivo não dera o menor sinal de vida e, no entanto, a esposa
continuava a esperá-lo com a mesma fidelidade de um cão:
— O teu homem tem-te escrito, Maria? – perguntava o prior de Páscoa a Páscoa.
— Ele não, senhor. Há quinze anos...
Não acrescentava a mínima queixa à resposta. Fiel ao amor jurado, deixava que
todos os encantos lhe mirrassem no corpo, numa resignação digna e discreta
(TORGA, 1996a, p. 19).
Com efeito, de acordo com Massaud Moisés (1996), a tragédia exige uma absoluta
concentração de efeitos, o que significa suprimir tudo quanto possa assumir uma dimensão
de supérfluo ou marginal. Da mesma forma, o conto, em linhas gerais, exige essa mesma
concentração de efeitos, economia lingüística, abolindo o supérfluo do conteúdo narrativo.
Assim, nota-se nitidamente, pela síntese dramática, que a protagonista trágica além de
perder o marido, perde os encantos femininos, torna-se assexuada em nome do “amor
jurado”, sempre à espera do marido pródigo: “Até que um dia o Ruivo deu finalmente
notícias. Regressava. E Galafura, solidária com a grandeza humana de Maria Lionça,
dispôs-se a esquecer todas as ofensas e a receber festivamente a ovelha desgarrada”
(TORGA, 1996a, p. 19).
O Ruivo, emblema do filho pródigo bíblico, gastara tragicamente sua saúde, seu vigor
físico e agora retornava como uma “ovelha desgarrada”, para aumentar ainda mais os
sofrimentos da esposa resignada:
[...] culpado diante da mulher, do filho e dos montes eternamente arejados e
limpos da Mantelinha, o renegado confessou tudo. Vinha doente e desenganado.
Males ruins... Já lhe custava engolir. E aquela aflição a apertar, a apertar... Mas
nada de aflições. Voltava só para morrer (TORGA, 1996a, p. 20).
Sabe-se que a tragédia moderna trabalha com o viés da culpa e da consciência,
diferentemente da tragédia antiga que privilegiava o erro, a hamartia. Pelo excerto acima,
observa-se que o Ruivo regressava com a culpa entranhada em seu corpo, “comido pelos
vícios do mundo”, com a consciência plena do mal cometido, por isso “[...] voltava só para
morrer” (TORGA, 1996a, p. 20).
Conforme já assinalamos, a culpa não traz a dimensão comunitária do erro a ser
expurgado, mas se circunscreve no campo do individual, por isso é mais recorrente na
tragédia moderna, por vivenciar “[...] um sentimento interior dilacerador, pertinente apenas
àquele que se sente em dúvida com o todo e/ou consigo próprio” (GAZOLLA, 2001, p.
28). Ao passo que, na tragédia antiga, o erro deveria ser expiado a fim de preservar a
comunidade da mancha, desencadeadora da desdita e da infelicidade.
Por sua vez, de acordo com Massaud Moisés (1996), a atmosfera trágica localiza-se
sempre no inexorável e no irrecorrível da situação. Dessa forma é que Maria Lionça vê
fenecer, após um mês, a vida do marido desenganado, arcando também com as dívidas e
todos os juros da operação do hospital de Galafura. Sem conhecer um instante de paz, a
tensão trágica persiste na vida da personagem-protagonista. Desta vez será o filho, o Pedro,
que “[...] envergonhado dum pai que lhe passara apenas pelos os olhos como um fantasma
de podridão” (TORGA, 1996a, p. 21), decide deixar o torrão natal e tornar-se marinheiro,
alheio a todo o sofrimento da mãe e da solidária Galafura, metonimicamente falando.
Conforme preconiza Teresa Rita Lopes (1993), Torga, ao contrário da mentalidade
portuguesa, considera o mar como um caminho de perdição e a terra, como uma via de
salvação, portanto, exalta o telurismo e encara negativamente a face da história que só dá
lugar e vazão ao estatuto de povo de navegadores. “O mar é para Torga, um caminho não
de salvação mas, as mais das vezes, de perdição. Quando fala do mar é para desconfiar do
seu apelo de ‘enganosa sereia rouca e trista’” (LOPES, 1993, p. 7). Dessa forma, a
narrativa não oculta a “nova via sacra” (TORGA, 1996c, p. 21) em que Maria Lionça se
meteu. A personagem trágica vai buscar o filho único “a exalar o último suspiro”
(TORGA, 1996a, p. 22) no hospital, após anos sem lhe dar notícias: “O tempo dera-lhes a
chave daquela existência destinada, afinal, mais às provações do sofrimento do que ao
gosto das alegrias. Só ela os podia esclarecer e ajudar no desespero de certas horas e
situações” (TORGA, 1996a, p. 21-22).
Por certo, o tempo, Chronos, aliado ao poder insofismável do destino, da Moira, abortaralhe a alegria de um lar estável e feliz, avultando-lhe ainda mais a tensão trágica pela via da
tensão cronológica. O momento catártico, bem como a resignação trágica da personagemprotagonista instaura-se na narrativa quando esta consegue conduzir o filho morto, sem
despertar suspeita do revisor da embarcação, mostrando-lhe os bilhetes da passagem, com
o filho encostado ao ombro e com a manta enrolada nas “pernas hirtas”.
Nassetti (2005), em comentário introdutório à Arte Poética, de Aristóteles, sublinha que a
tragédia, em seus primórdios, usa da imitação dos caracteres e das paixões, apropriando-se
do concurso da música, do canto, da dança e do espetáculo para provocar um prazer que
lhe é típico, despertando no espectador o terror e a compaixão. Ao provocar o terror e a
compaixão, a tragédia desencadeia a catarse das emoções, que Nassetti identifica como um
“[...] tratamento homeopático, similia similibus” (NASSETTI, 2005, p. 18). Dessa forma, a
catarse seria a expulsão de um humor incômodo por sua superabundância, no dizer do
ensaísta, em consonância com as teses aristotélicas, mas que deixaria um gozo ao final do
espetáculo, favorecendo o “escoamento do excesso de emoções” (2005, p. 18).
Por seu turno, a catarse se projeta na narrativa do conto em análise, despertando o terror e a
compaixão tão ao gosto da episteme aristotélica, já que, conforme observamos, Maria
Lionça: “[...] é o retrato primordial da mulher portuguesa, fiel, resignada, terna, heróica.
Mas nem por isso deixa de ser universal [...], porque encarna as grandes virtudes
femininas, matriarcais, que são valores emblemáticos de todos os tempos e lugares”
(ARNAUT, 1997, p. 73).
Por certo, a protagonista trágica, Maria Lionça, traz a marca do meio rural português à
espera do “regresso milagroso dos homens que ficaram do outro lado do mar” (1997, p.
73), “proscritos” por terem traído à lei da terra, por não terem fixado raízes na terra
“humosa, enraizada no dorso da serra de S. Gunhedo” (TORGA, 1996a, p. 22).
No conto A Maria Lionça, podemos observar que a hamartia (falha trágica) não se
configura quando Ruivo decide deixar a família, num gesto pusilânime, e viajar para o
exterior. O gesto do marido não pode ser encarado como uma falha trágica, mas como uma
falha (ausência) de caráter, já que a culpa de Ruivo é materializada quando este abandona a
mulher parturiente e o filho recém-nascido, além de deixar os juros da dívida da passagem
para o Brasil a encargo da esposa, no momento de maior fragilidade física e emocional da
mulher, tornando-se definitivamente um “proscrito”.
Em contrapartida, Pedro, envergonhado da figura paterna, incorre muito mais em uma
falha trágica por ser movido por uma paixão, do que por um ato irresponsável
propriamente dito. Esta personagem pratica a hamartia guiado por sua hybris, seguindo,
paradoxalmente, os mesmos passos do pai, repetindo a guénos, já que como descendente
direto do Ruivo, reitera seu erro, tornando-se também um “proscrito”, fazendo-se
marinheiro.
Como preconizou Rosane Feitosa( 1984, p.22), o filho, dentro do sistema organizacional
da Montanha, é geralmente educado para ser pastor ou lavrador e chefe de família. Os que
enveredam por outros caminhos e se tornam marinheiros ou soldados, fugindo à lei
imposta pela aldeia de não se distanciar dela, são severamente punidos, como acontece
com Pedro. Dessa forma, tanto a Ruivo como a Pedro só restará a morte trágica, já que
ambos infringiram a lei da terra ao se desligarem definitivamente do cordão umbilical da
Terra-Mãe, como bem ressalta Lopes (1993).
Maria Lionça, por sua vez, mesmo reunindo em si nobreza de caráter, respeito e dignidade,
cometeu também uma falha trágica ao ter se casado com o Lourenço Ruivo, já que pelos
expedientes da narrativa havia na personagem-protagonista “um halo de pureza” que a
distinguia das demais cachopas do vilarejo, simbolizando a própria pureza do lugar e, por
isso, convergindo hiperbolicamente na pessoa da personagem trágica “todas as virtudes da
povoação” (TORGA, 1996a, p. 18). Desse modo, o narrador chega a questionar sobre
quem poderia ser merecedor de uma dádiva como a Maria Lionça?
Assim, a narrativa cria um clima de expectativas, bem como uma aura de pureza em torno
da personagem, antecipando pelos expedientes do texto literário o estatuto de mulher
intocável e intangível, já que “ninguém lhe punha um dedo” (TORGA, 1996a, p. 17). Por
seu turno, tal situação só será infringida com os laços do matrimônio no seio ortodoxo
cristão, mas culminando, posteriormente, na desgraça plena, na morte trágica que dizimará
toda a família de Maria Lionça. Maria Lionça conhecerá de perto o que preconiza
Aristóteles no capítulo VI de sua Arte Poética, ou seja, a mudança de fortuna, ou peripécia.
Ela passará de um estado de felicidade para a desgraça plena, o mesmo ocorrendo com o
marido e o filho.
Com efeito, Lourenço Ruivo, uma das figuras trágicas do conto em análise, manifesta um
ethos (caráter) covarde, irresponsável, pouco afeito ao trabalho, por isso quando nasce o
filho “[...] em vez de tirar daquela presença ânimo para se atirar às leiras, acovardou-se de
uma boca a mais na casa” (TORGA, 1996a, p. 18), deixa a esposa e o filho recém-nascido
e parte para o Brasil. Entretanto, o filho, Pedro, outra figura trágica do conto, após a
decepção de ver o pai como um fantasma apodrecido, “[...] uma sombra esbatida da
imagem recortada que sonhara” (TORGA, 1996a, p. 20), conhece a desdita. Opera-se,
dessa forma, o reconhecimento, ocorrendo, neste ponto, também a peripécia, já que a
imagem paterna construída por Pedro era, antagonicamente, o da “saúde personificada”
(TORGA, 1996a, p. 20), mas o que se apresentava à sua frente era a materialização de sua
desilusão.
Por outro lado, a narrativa faz recorrência ao destino como o artífice de toda a desgraça de
Maria Lionça: “Só o destino, fiel às misérias do mundo, sabia que fora reservado à Maria
Lionça um papel mais significativo: ser ali a expressão humana dum sofrimento levado aos
confins do possível” (TORGA, 1996a, p. 18). O destino se configura, portanto, como a
personificação do trágico por dar voz ao inexplicável, ao inexorável das situações, e “[...]
torná-la imune à desgraça seria desenraizá-la do torrão nativo” (TORGA, 1996a, p. 18).
Além disso, o destino trágico que atingiu Maria Lionça está inscrito nos postulados da
verossimilhança aristotélica, por ser o mesmo daquelas mulheres portuguesas, que segundo
Arnaut (1997), ficam à espera dos homens ao se aventurarem pelo mar durante anos, às
vezes fixando-se em terras longínquas e sem mandar-lhes notícias. Segundo o crítico
português, tais mulheres nunca amaldiçoam o destino, por ser este a própria vida, por isso
trabalham arduamente, mas “têm como lenitivo o choro noturno das orações e a esperança
de poderem restituir aos regressados, quando se der o milagre, as courelas intactas do seu
sofrimento” (ARNAUT, 1997, p. 73-74).
Sem sombra de dúvidas, a personagem-título que o ensaísta português Antônio Arnaut
(1997, p.74) metaforizou como sendo “a força indomável do leão” poderia ter seu nome
semanticamente trocado por Maria Leoa, já que luta, sofre e morre estoicamente como uma
camponesa, mas com a dignidade e o respeito de uma personagem trágica sofocliana.
Com efeito, Miguel Torga opera a mudança de status do herói, uma vez que despe de
pompa real e da deslumbrante ostentação as suas personagens. Desenvolve, por meio da
narrativa, a desgraça a partir das cenas comuns da vida transmontana, já que a classe social
não pode ser o fator decisivo para que o trágico aconteça, de acordo com as máximas de
Albin Lesky (1976) e Raymond Williams (2002). A exemplo disto, no conto torguiano A
Maria Lionça, a personagem trágica vive o drama da perda do patrimônio simbólico: o
marido e o filho morrem após terem abandonado o torrão natal.
Conforme pudemos perceber, Torga não pretende, com sua contística trágica e neo-realista,
moralizar, mas exibir a humanidade em conflito. Este escritor quer apenas expor aos olhos
do leitor o espetáculo vário da existência humana em seus múltiplos percalços e
vicissitudes.
Referências
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FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Tradução Péricles Eugênio da Silva Ramos. São
Paulo: Cultrix, 1973.
FEITOSA, Rosane Gazolla Alves. Os contos da montanha de Miguel Torga: um painel
transmontano. 1984. 213 f. Dissertação (Mestrado em Letras) — Faculdade de Filosofia,
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MOISÉS, Massaud. O Conto português. São Paulo: Cultrix, 1995.
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Paulo: Cultrix, 1994. p. 29-101
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Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 11-19
TORGA, Miguel. Contos da montanha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996a.
TORGA, Miguel. Novos contos da montanha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996b.
AS TRÊS MARGENS DA FICÇÃO ROSIANA: LITERATURA, CINEMA E
MÚSICA
Sandra Lúcia sant’Ana dos Santos
Introdução
“O rio passa dentro do coração do homem que foi morar no coração do rio”
(Tavinho Moura)
Têm-se a intenção neste artigo de demonstrar como o universo rosiano foi recriado a partir
de outras artes, preservando a poeticidade do conto A terceira margem do rio. Neste
trabalho não há o objetivo de analisar os pormenores do processo de transmutação, mas
sim, como este processo conseguiu preservar a beleza do conto de Rosa em outras
linguagens, e como a perduração dessa beleza redimensiona o sujeito. Estas expressões
artísticas, cheias de peculiaridades que as diferenciam da literatura, conseguem dar ritmo e
movimento ao referido conto.
A literatura possui um caráter puramente verbal, é descritiva e requer muita imaginação e
habilidades para sua apreciação. Um bom leitor precisa ter características como
concentração, imaginação, sendo que, tudo o que não é narrado ou descrito é preenchido
pela imaginação do leitor.
O cinema, com suas expressões lingüísticas e extralingüísticas, traz o mundo ficcional com
som, palavras e imagens em movimento, o que o torna mais perto do real. No momento
que o espectador entra em contato com a narrativa fílmica, este passa a fazer parte do
filme, vivenciando cada cena e aguçando sua imaginação, para preencher as lacunas
deixadas pela cinematografia.
A literatura cantada remonta o Trovadorismo, movimento literário, no qual a poesia era
oralizada ao som de uma melodia. Essa antiga relação ganha nova roupagem em
compositores como Caetano Veloso e Milton Nascimentol, os quais cantam poesia, unindo
então, som, ritmo e letra para sensibilizar o ouvinte
A ligação estabelecida entre essas três linguagens: literatura, cinema e música demonstra o
poder do artista de criar obras fantásticas, a partir de outra já existente, preservando o
encanto da arte original e recriando outros encantos.
A inter-relação aqui proposta se justifica pelo interesse na linguagem de Rosa, unida à sua
metáfora no conto, os quais engendram subjetividades. Pois, pretende-se analisar se este
poder de sensibilizar o sujeito é mantido pelas outras duas artes.
Para tal análise houve um estudo das três expressões artísticas, relacionando-as. O conto
foi analisado a partir de sua linguagem, a poética nas palavras de Guimarães Rosa; No
cinema foi observado focando o que permaneceu e o que foi acrescido do conto; e na
música interpretou-se a letra, comparando com o sentido do conto. A escolha de tais
aspectos se deve ao fato deles demonstrarem o efeito estético das referidas artes para,
através de uma introspecção, transformar o leitor.
As três margens da ficção rosiana: a estética, a subjetividade dos personagens e do
leitor.
A literatura tem o poder de representar o considerado ‘irrepresentável’ pelas limitações da
vida comum do ser humano. Em um percurso por este caminho representativo, o conto “A
terceira margem do rio” de João Guimarães Rosa, traz uma linguagem simbólica e
metafórica que, como o ir e vir de um barco sem rumo, traz o mundo dos sujeitos para a
ficção rosiana, assim como a ficção rosiana para o mundo dos sujeitos.
A magia deste conto reside principalmente, muito além da estória que em si constitui uma
metáfora, no caráter estético de sua linguagem. Estético tomado aqui, não somente como o
belo, mas sim, partindo de sua origem grega: estesia, que significa sensibilidade, sentido.
Esta estética redimensiona o sujeito para a plurissignificação da leitura literária, ou seja,
para compreender de forma singular a realidade circundante.
A leitura do conto “A terceira margem do rio” nos remete a diversas construções
subjetivas, pois ao proporcionar ao leitor um mergulho de si em si mesmo, quando se
depara com um silêncio angustiante do ‘nosso pai’ que “nada não dizia” (ROSA, 1988, p.
32) e que ao morar na canoa cria um mundo intransponível pelas palavras e lógica humana,
provoca neste (o leitor) uma sensibilização, elaboração e reelaboração do seu próprio eu.
Esta reflexão em torno do personagem ‘o pai’ é estendida para o rio, que é personificado e
ganha uma dimensão existencialista “[...] o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado
que sempre” (ROSA, 1988, p. 32), contribuindo junto com o vazio deixado pelo
personagem ‘nosso pai, para engendrar subjetividade no leitor.
O próprio nome do conto já constitui um enigma indecifrável. O que está contido nesta
terceira margem? O sujeito com suas aflições, as relações interativas entre os homens, a
morte do “pai”, a insanidade mental, ou todos estes aspectos interagindo na subjetividade
do personagem? São indagações que permeiam o imaginário do leitor e o envolve nessa
magia estranha, que marca a obra rosiana.
O leitor compartilha também, o sentimento de culpa que permeia o mundo do narrador da
estória. Por que será que este carrega um sentimento muito forte de culpa? O que o fez
permanecer “com as bagagens da vida” (ROSA, 1988, p. 35), ou melhor, permanecer
vivendo a vida do pai, sem ter a sua própria?
Sou um homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta culpa? Se o
meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio – pondo perpétuo [...] Ele
estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em
aberto, no meu foro. Soubesse – se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.
(ROSA, 1988, p. 36).
A linguagem de Guimarães Rosa (1988) demonstra uma força própria do sertão, uma
particularidade que o faz quase ‘senhor de um estilo’ e uma beleza estética que ultrapassa
as convenções lingüísticas e polissêmicas das palavras.
O leitor deste conto, então, vivencia um navegar, entre as vivências e angústias dos
personagens, a linguagem rosiana, a metáfora da estória e emerge, com todas essas
construções narrativas, na profundeza de reflexões e assimilações com a estória lida. Cria
e recria o seu mundo, assim como a água que não pára, de longas beiras: rio abaixo, rio a
fora, rio a dentro – o rio.
Recriando A terceira margem, num olhar cinematográfico
A linguagem cinematográfica traz um outro mundo para o conto A terceira margem do rio
o, o qual é recriado pelo diretor Nelson Pereira dos Santos, entrelaçando a este, outros
contos do mesmo livro, Primeiras estórias: A menina de lá, Os Irmãos Dagobé, Seqüência
e Fatalidade. Aqui será, especificamente, focada a narrativa “A terceira margem do rio”.
Ao entrelaçar estes contos, Nelson Pereira recria a estória, conservando o que cada um
carrega em si de mais singular, os personagens, a seqüência narrativa, mesmo que
intercalada com outras estórias, são preservadas. Por outro lado percebe-se que devido ao
processo adaptativo, o tempo e o espaço são modificados, o enredo também passa por
alterações e os sentimentos dos personagens ganham outra dimensão.
Estes processos de adaptações aliados à ilusão do “cinema que dá a impressão de que
vemos a própria vida na tela” (BERNARDET, 2000, p.12), são que nos permitem
vivenciar as estórias junto com os personagens, sofrendo, nos angustiando e torcendo,
assumindo o papel de co-participante da obra.
Balogh (2004) ratifica essa idéia mimética transmitida pelo cinema “A sensação de mimese
da realidade é muito mais forte no cinema do que em qualquer das outras artes visuais,
devido à possibilidade de criar a ilusão do movimento e combiná-lo ao áudio” (BALOGH,
2004, p.42).
A transmutação remete a outras angústias diferentes da narrativa rosiana. Esta além de uma
sensação de vazio e incompletude, causada pela não explicação do pai sobre suas razões
para ir habitar uma margem sem margem do rio, “nessa água que não pára, de longas
beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – rio”, como nas palavras do próprio Rosa,
é permeada pelo sentimento de culpa, sem razões do filho. Já no filme, as inquietações são
provocadas pela dureza da ‘mãe’ em relação à atitude do ‘pai’, pela fuga de Liojorge dos
irmãos Dagobé, pela tristeza em perder sua amada, entre outras.
Estes aspectos da passagem intersemiótica não retiram da obra adaptada a sua poeticidade,
muitas das palavras da linguagem rosiana permanecem, o que garante, também uma
aproximação entre as duas artes. Neste caráter, aliado ao enredo, reside o poder da
cinematografia de gerar subjetividades, pois, “as obras literárias e as fílmicas [...] são
regidas pela função poética, ou estética da linguagem” (BALOGH, 2004, p.49), o que cria
a sensibilização do sujeito leitor/ espectador.
Tais características levam-nos a inferir a capacidade adaptativa de Nelson Pereira, que
alem de recriar a obra de Rosa, sensibiliza o espectador, mas principalmente não foge à
diversidade metafórica que o conto A terceira margem do rio impõe. Percebe-se um espaço
à plurissignificação, pois a polissemia da obra é mantida, sem prejuízo adaptativo.
Uma poesia cantada por Caetano Veloso e Milton Nascimento
Como passar para uma canção o ambiente ficcional de Guimarães Rosa? Como proceder a
tradução intersemiótica da palavra literária em Rosa à palavra cantada em Milton e
Caetano? Como explicitar a homologia que existe entre as duas diferentes linguagens, no
instante em que elas falam do mesmo tema da solidão metafísica de um homem em busca
da terceira margem do rio?
A canoa é uma das contribuições indígenas à cultura brasileira. Os índios a construíam, esculpindo com
auxílio do fogo e suas parcas ferramentas, a partir de um tronco único de árvore. O objetivo consistia em
tornar oco o todo da árvore para que ela boiasse e pudesse levar consigo o homem em sua infinda travessia. É
dessa falta existencial do cerne da madeira, é deste estado vago que faz da árvore uma pequena embarcação,
que Milton e Caetano buscam dar voz:
Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, triztriz
Risca certeira
A arte tem esta capacidade: permite a vacuidade emitir sua declaração de identidade. O oco
do pau se afirma em madeira, nos explica ser em si um porto seguro (“beira boa”), que
oferece lugar firme para pisar (“dá vau”) e serve de seta para se seguir no mundo em busca
de um objetivo (“risca certeira”).
A musicalidade de Caetano e Milton traz uma personificação para o rio e resgata o silêncio
do ‘pai’ que permeia o conto A terceira margem do rio. A ausência da palavra é cantada,
reafirmando a dureza que este silenciar impõe.
Água da palavra
Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai
Num jogo de palavras, como numa tentativa de contrapor o silêncio do ‘pai’, Caetano e
Milton recriam e dão voz às águas, resgatando o que Rosa tem de mais singular, através da
personificação do rio: suas palavras.
O rio riu, ri
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas
A palavra, então, baila na música de Caetano e Milton, como se estes quisessem devolver a
voz silenciada ao ‘pai’. Transpondo a barreira do silêncio imposto no conto, estes
compositores ressignificam a margem, dando uma interpretação a este. A terceira margem
então seria a palavra.
Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai
O nome desse conto já carrega a idéia dessa presença da palavra líquida, amoldando suas formas
para transmitir o encantador da arte, o que não se pode explicitar apenas pelo palpável e pelo concreto dos
fatos, mas através do seu silêncio espesso. É esta palavra oculta que guia o barco da existência e do mistério,
que gira em torno do pai.
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Nesta mistura de som, ritmo e letra, o apreciador da música, A terceira margem do rio, é
sensibilizado e profundamente tocado a um mergulho no vácuo do seu silêncio. Para
através deste, se reconstruir como sujeito, pois parafraseando Descartes (século XVII) em
As paixões da Alma, a arte tem o poder de tocar mais profundamente o homem, por chegar
a este através dos sentidos, o que é muito mais forte do que o que é determinado pela
razão.
Considerações Finais
Nelson Pereira, Caetano Veloso e Milton Nascimento percorreram o mundo rosiano,
buscando ressignificar este mundo, a partir de seus olhares, com novas interpretações, mas
sem perder a essência da narrativa de Guimarães Rosa.
Três formas artísticas que mantêm o mesmo ponto de intersecção: o vazio gerado pelo
silêncio e uma ausência existencialista, em meio a presença física do ‘pai’. Estas, causam
desequilíbrio nos seus apreciadores, através de um mergulho na linguagem artística, para a
partir desta mergulhar no próprio eu.
Os caminhos entre a subjetividade dos elementos artísticos e do apreciador da arte se
encurtam no momento das “leituras” feitas. O contemplador se vê nos seres animados e
inanimados, refletindo sobre sua existência com o silêncio do ‘nosso pai’ ou se espelhando
na profundidade e eternidade do ‘rio a dentro – o rio’.
A arte produz novos sujeitos, pois ao proporcionar um mergulho do homem em si mesmo,
provoca neste efeitos, os quais incitam reflexões em torno de sua existência e da
organização social como um todo.
O poder das obras artísticas é indiscutível, pois é uma fuga necessária à realidade cruel em
que os seres humanos estão inseridos. Esta “fuga” é proporcionada nas linguagens fílmica
e musical que refizeram o mundo rosiano.
As análises feitas na música, no cinema e no conto homônimos A terceira margem do rio
permitiram perceber como o jogo de palavras, de imagens e ritmos, remetem o sujeito do
seu mundo para o mundo ficcional e como depois, estes trazem o universo ficcional para a
suas vivências. Então há o ir e o vir do sujeito, como no barco na prosa de Rosa, em busca
do próprio eu, através de um mergulho no outro.
Referências
BALOGH, Anna Maria. Conjunções, disjunções, transmutações da literatura ao
cinema e à TV. 2.ed. São Paulo: Annablume, 2004.
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FERNANDES, Andréa. Entre a fronteira da literatura e da música – Um estudo da
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FISCHER, Ernst. A função da Arte: In_____ A necessidade da arte. 9. ed. Rio de Janeiro:
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GARRIT, Luciana Lima Alves Da Silva. Comparação Semiótica Entre O Cinema e a
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LIMA, Luciano Rodrigues. O sujeito estético. Salvador: Quarteto, 2003.
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LOPES, Denise.O grão da escritura, segundo Roland Barthes, e a noção de fidelidade
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RÜCKERT, Ernesto von .Música e Literatura. Disponível em http://www.ruckert.pro br/
blog/ ?page_id=78. Acesso em: 31 jul.2008.
A terceira margem do rio. Direção: Nelson Pereira Santos. Produção: Ney santana e Dora
Sverne. Roteiro: Nelson Pereira dos Santos. Intérpretes: Ilya São Paulo, Sonjia Saurin,
Maria Ribeiro, Bárbara Brant, Mariane Vicentini, Chico Diaz, 1994. Dvd (100 min).
MAYRANT GALLO E O LEITOR: UMA LEITURA DOS CONTOS: “VACINA, O
AMOR COMO DEVE SER E ÁGUA ESCOANDO”.
Paulo André de Carvalho Correia (UEFS) 50
Com três livros de contos publicados – Pés quentes nas noites frias, Egba, 1999; O inédito
de Kafka, Cosac e Naify, 2003 e Dizer adeus, Edições K, 2005 –, Mayrant Gallo vem
estabelecendo sua arte na tradição literária brasileira. Seus contos estão ambientados na
urbe moderna, com seus labirintos e desilusões, espaço de banalização da vida e
desajustamento do homem. Seus personagens – seres desajustados - são Ícaros que alçam
vôos nas asas da imaginação, buscando sempre uma epifania nas sombras do real, uma
verdade que se revele sobre a superfície opaca da vida. Esta epifania, no entanto, nunca
está explícita no conto, espera um leitor capaz de construí-la.
Na primeira de suas “Conferências Norton”, Umberto Eco (1994, p.9) afirma que “todo
texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho”. Os
contos de Mayrant Gallo pedem esta colaboração do leitor. Muitos deles têm o final aberto
deixando a mercê de seu colaborador os destinos das personagens e a construção do
sentido da história. Três iremos analisar aqui: “Vacina”, “O amor como deve ser” e “Água
escoando”.
Se todo texto demanda um leitor como disse Eco, há algo que está além ou aquém da
superfície do texto que o leitor necessita resgatar para dialogar com o texto. O conto
demanda um leitor que seja capaz de (re)construir a história secreta cifrada nos interstícios
da história visível. Pois, como afirma Ricardo Piglia (2004), o conto conta duas histórias:
uma visível e a outra secreta. A história secreta tem a estrutura do segredo, está posta a
parte, reservada para o final, pois este “faz ver um sentido secreto que estava cifrado e
como que ausente na sucessão clara dos fatos”(Piglia, 2004, p.103).
Em “Vacina”, algo se oculta sob a história visível. A primeira vista o conto seria a história
de uma mulher que num sábado, uma semana depois após ter cortado levemente o pé numa
pedra na praia, acorda o marido para acompanhá-la a um posto de saúde para tomar a
vacina contra o tétano. Sabendo que só tomaria a vacina na segunda seguinte volta para
casa, inquieta com o medo da morte. Após a vacina, a vida segue o rumo normal. Um dia
50
Mestrando em Literatura e Diversidade Cultural - UEFS
Virgínia descobre que o marido tem uma amante, sai de casa. O relato termina com o
narrador deixando-a sob o poste de luz de onde se aproximam “dois vultos maciços e
corpulentos”.
O final aberto do relato exige a colaboração do leitor. Mas outras partes do conto
necessitam da explicitação dos elementos cifrados nos interstícios da história visível. Um
deles é momento em que, após sair do médico, a personagem sente o mundo, o real, a vida
de maneira diferente, como Ana, personagem de “Amor”, de Clarice Lispector, que após
ver um cego mascando chicles, percebe a realidade de maneira mais intensa:
(...) Virgínia se deixava envolver pelo medo tardio da morte, que, se quisesse,
poderia tê-la abraçado vorazmente, pelo tétano, sem que ela nada percebesse,
quase se entregando. Porque era sábado e havia no céu um sol magnífico, mais
redondo e mais claro, sem contornos, atado a um elementar céu azul, Virgínia
pensou que aquele era um bom dia para morrer ou, se ficasse viva, ir à praia, ao
cinema, visitar museus e exposições de pintura, passar a limpo o diário que
mantinha desde criança. Seus pés, dentro dos sapatos, reconheciam o chão de um
modo agora menos óbvio. E com mais calor, mais afeição, compreensão, súplica.
A tolerância de um doente que, cansado, do frio da branca enfermaria, sai ao sol
e fica alguns minutos de pé, no meio do pátio, sentido o vazio tépido que salta
dentro de seu corpo, o milagre que lhe sobe... (Gallo, 2003, p.87)51
Mas, como acontece na obra clariciana, o momento epifânico cede lugar a ordem natural
das coisas. Virgínia e o marido voltam à vida normal:
Nos dias seguintes nada de muito especial aconteceu (...) Virgínia continuou a
trabalhar, e o marido a ler . Ela tomou as três doses da vacina e algum tempo
depois já nem lembrava o passeio involuntário pelo Vale dos Barris. Muito
menos o que vira e sentira ao atravessar as ruas. A recordação das casas de
tijolos nus e roupas estendidas sem nenhum cuidado estético se volatizou em
meio às obrigações e afazeres do cotidiano (...) Sua vida tinha um gosto
medicamentoso de vacina ( p. 90).
Uma ação da personagem rompe outra vez a rotina, jogando seu destino à imaginação dos
leitores. Virgínia uma tarde vê o marido com outra mulher, briga com o marido quando
este chega em casa, arruma e mala e sai à deriva. Pára sob a luz de um poste, dois vultos
maciços e corpulentos se aproximam. Não sabemos se Virgínia os vê, aliás:
Nunca saberemos ao certo o que é que arde dentro de cada homem, de cada
mulher. O que é isso que os impulsiona e, às vezes, sem mais nem menos, os
imobiliza debaixo de um poste de luz, numa noite nada especial e até mesmo
monótona... (p. 94)
51
As próximas citações dos contos são feitas a partir de Gallo, 2003, indicando-se apenas a página
correspondente.
Cabe ao leitor decifrar o que é isso que arde dentro de cada um. Será o sentido da vida? Ou
melhor, será o sentido da morte? O leitor eficiente busca construir o sentido implícito nos
interstícios da história visível. O leitor de história de início, meio e fim talvez saia
frustrado pela falta de final na história, talvez, habituados com violência cotidiana,
quisesse ver a personagem estuprada e morta. Mas seus olhos estariam embotados da lama
cotidiana.
Outro conto que nos chama a atenção pelo final aberto é “O amor como deve ser”. Uma
história de incesto que também deixa a critério do leitor o destino das personagens. O
conto começa relatando o encontro de Cátia e Cláudio, dois jovens, numa tarde chuvosa de
outono. Seria a primeira transa dos dois e a primeira vez de Cláudio. A mãe de Cátia sai e
ela chama Cláudio ao seu apartamento. A tentativa é frustrada pelos “muitos dedos dele”
que não sabe conduzir a situação. Dias depois o pai de Cátia vai buscá-la para passar o fim
de semana com ele. Revela-se, então, para o leitor a relação incestuosa entre pai a filha. O
narrador deixa-os na estrada diante de “um bloco de luz veloz” que surge de repente.
Talvez o conto nos chame a atenção a primeira vista por encerrar um relato sobre um tabu
da cultura ocidental: o incesto. Mas ele tem muito mais a nos dizer. O título já nos dá
algumas pistas: que vamos encontrar no relato uma possível receita de como deve ser o
amor. O conto encerra duas histórias: a história de Cátia e Cláudio e a história de Cátia e o
pai.
A primeira história é uma história de antagonismos. Cátia e Cláudio não se entendem no
que pretendem fazer: sexo. Talvez pela inexperiência do personagem.
Sem perder tempo, ele colocou a primeira roupa que avistou sobre a cama
desarrumada e saiu. O aroma adocicado de alguma fruta cujo o sabor
Cláudio ainda não conhecia pairava no ar, e ele aspirou forte com volúpia
(p.11, grifo nosso).
Ao chegar à casa de Cátia: “Ele entrou, ela fechou a porta atrás dele. Logo estavam no
sofá, sentados, ouvindo música. Os dois mau se olhavam”(p.12). As primeiras ações dos
personagens começam a criar o muro que vai permear o encontro entre os dois. Depois
vem as negativas ao sorvete, ao pudim, ao vinho e à gelatina; a resposta tosca e sem vida
sobre se gostava dela; o jogo que termina com os dedos de Cláudio sobre os aparelhos,
desligando-os. Por fim, com o muro que se ergue entre os dois, o pedido de Cátia: “Acho
melhor você ir” e o leve golpe no joelho levam Cláudio embora.
A segunda história é a história do incesto. Ao entrar no carro do pai. Cátia logo é assediada
por ele – o que não faz Cláudio: “Mal entrou no carro, o homem enfiou a mão sob sua saia
e tocou com os dedos, de leve, o tecido liso de sua calcinha. Ela sorriu e fechou os olhos.
Sempre sorria e fechava os olhos quando o pai a tocava daquele jeito” (p. 14). A narrativa
segue e, “já distante do bairro, num trecho escuro”, Cátia beijava o pai na boca. Então ele
pensava no quarto, na cama, nos lençóis limpos que os esperavam, pois
Ali, naqueles lençóis, todos os fins de semana eles deixavam impressas suas
sombras, que algum dia se levantariam enormes para censurá-los, ou então
aplaudi-los, marcando uma nova etapa secreta . E os lençóis usados, substituídos
por novos, iam um a um se acumulando dentro do guarda roupa , como registro,
marcas autênticas e mensuráveis do que tinham feito com a coragem que só o
amor real e o desejo puro alimentam. (p. 16).
Estes lençóis são evidências destinadas ao leitor. A ele cabe decidir se “O amor deve ser
desse jeito, intenso, carnal e vivo, ou do jeito da primeira história, insosso e sem vida. Por
isso, o final aberto. Somos nós leitores que vamos decidir a direção daquele bloco veloz.
Podemos buscar o sentido de um amor frio e banal que vemos na primeira história ou um
amor mais intenso e mítico, que vem dos extremos recônditos do homem.
“Água escoando” nos oferece o relato do velho Dovico, um homem velho e só, que,
chamado para consertar uma pia num apartamento, depara-se com dois corpos jovens e
desejáveis, sem nenhuma alteração de ânimo. Aliás, poderíamos dizer que a história
secreta, que encerra o sentido do conto, seria o caminhar desencantado deste personagem,
que percorre toda a narrativa sem alterar o ânimo, a não ser quando descobre um estranho
numa casa abandonada.
A narrativa começa nos apresentando o personagem – o homem moderno, desiludido e
banalizado:
Dovico era velho e vivia só. Mantinha viva uma hérnia à altura da virilha
esquerda, o que certamente o obrigava a mancar um pouco, de um jeito quase
imperceptível. Era magro, curvado e lançava no ar uma voz abafada e rouca, de
personagem de desenho animado, frases mal expressas e que, por isso mesmo,
eram antes adivinhadas que compreendidas, mesmo que estivesse calmo, muito
calmo, com uma preguiça de se esticar à primeira sombra em torno. Ele era
assim: fora ao dezoito anos e o era também ao setenta...não evoluíra, apenas
esticara-se. E agora encolhia (p. 131).
Dovico era aposentado, vivia com uma filha – Cíntia − e fazia biscates em
estabelecimentos comerciais e prédios residenciais da vizinhança. Um dia, prestando
serviço, a um morador de um dos prédios, vira um estranho na casa abandonada que iria
inquietá-lo em toda a narrativa, que apresenta-o destituído de sonhos. Cíntia, a filha,
mesmo explorada sexualmente pelos donos da loja onde trabalhava, sonhava com um gozo
das moças dos filmes. Ricardo, o segurança do estacionamento, sonhava com as duas irmãs
que Dovico iria encontrar nuas. Ivan, porteiro do prédio onde moravam as duas irmãs,
sonhava com uma mulher casada que raras vezes saía. Dovico era o único que não
sonhava.
Sua passividade é tão extrema que Ricardo não acredita no relato de que vira as duas
meninas e mãe nuas, indiferentes à sua presença, quando fora consertar a pia. Sua atitude, e
umas das ações que encerra o conto, é dar de ombros à incredulidade do outro. Dar de
ombros, entregando os pontos aceitando a derrota diante do mundo. Seu estoicismo chega
ao extremo.
Outra ação que encerra o relato é a observação do negro escondido na casa abandonada.
Dovico queria saber “o que era” ele. O conto termina com esta inquietação. Nem Dovico,
nem nós, leitores, sabemos o que ele é. Mas a narrativa pode nos dar algum indício. Sua
presença é a única coisa que inquieta o personagem. O estranho pode ser o único a alterar o
desencantamento de Dovico. Como já sofre do desamparo da idade extrema, este ser
indefinido e vago pode ser algo que venha libertá-lo, possibilitando uma vida nova, mesmo
que pelas vias da morte.
“Água escoando” não tem o mesmo final aberto dos outros dois contos. Mas na sua forma
fechada permite ao leitor imiscuir-se nos interstícios da história para construir o sentido.
Na história inalterada de Dovico, surge o elemento que perturba a ordem e permite a
intrusão do leitor para dar-lhe um sentido.
Estes três contos de Mayrant Gallo enquadram cenas banais do cotidiano: a esposa e o
marido andando nas ruas da cidade, o encontro entre dois jovens num apartamento
qualquer, um pai que vem buscar a filha para um final de semana, o biscate de um velho
cansado e doente. Mas enquadram também um sentido oculto por trás destas cenas. Como
afirma Miguel Sanches Neto, na orelha do livro O Inédito de Kafka, os contos “exploram
as tensões ocultas nas sombras do real”.
Por explorar estas tensões ocultas, os contos as transfiguram em seu corpo, deixando ao
leitor a possibilidade de descobri-las e dar-lhes sentido. Se, como diz Neto, os personagens
dão dotados de imaginação, também seus leitores incorporam este dom. Também nós
alçamos vôos abandonando a ordem cotidiana, tornando o visível invisível e diluindo o
concreto. Ao adentrarmos no bosque de Gallo – usando a metáfora de Eco – assumimos,
como seus personagens, uma vida nova, instantânea e libertadora, assumimos um novo
sentido para a vida, para o mundo.
Referência
ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. São Paulo: Companhia das Letras.
1999.
GALLO, Mayrant. O inédito de Kafka. São Paulo: Cosac e Naify. 2003.
PIGLIA, Ricardo. Novas teses sobre o conto. IN: Formas Breves. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
TROPA DE ELITE: VELHAS HISTÓRIAS, NOVAS LEITURAS
Quezia Souza Carneiro Silva (UEFS) 52
Introdução
O artigo trata da violência no Brasil, baseado na leitura da obra cinematográfica “Tropa de
Elite”. O filme foi alvo de inúmeras críticas paradoxais: de um lado estão aqueles que o
condenaram por ser, segundo a crítica, uma obra fascista que estimulava a violência
policial; do outro, os que torciam pelo Capitão Nascimento, um “anti-herói com muito
caráter”53. Mas, para além das críticas feitas ao filme, questiona-se: o que desencadeou
tamanha aceitação e defesa da violência militar?
Em busca de respostas à pergunta anterior, este trabalho pretende analisar as relações de
poder entre os grupos conflitantes, que representam a lei (policía) e a desordem
(criminosos), baseando-se na concepção de Foucault – relações de poder - e Nietzsche gênese dos valores morais.
Velhas Histórias
Até a década de 90, novelas, filmes e documentários deixavam de fora os cenários pobres
e violentos das periferias brasileiras. A partir do início da década de 90, houve um
rompimento da invisibilidade dos segmentos populares do país. Hoje, inúmeros são os
exemplos de programas que exibem a violência cotidiana do morro: novelas como “Duas
Caras”, da Rede Globo, cujo cenário principal era uma favela; documentários a exemplo de
“Falcão: Meninos do tráfico” e “Ônibus 174”; e filmes como “Carandiru”, “Cidade de
Deus” e “Tropa de Elite”.
O crescimento da violência entre forças estatais assusta. Nos anos 1990, uma série de
massacres cometidos por forças policiais ou de polícia paralela marcou a história brasileira.
A partir de 2000, o crime organizado passa a desenvolver ações de guerrilha urbana como
toques de recolher, ataques a ônibus e delegacias policiais. Talvez por esse motivo, houve
52
Graduada em Licenciatura em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Aluna
do curso de Especialização em Estudos Lingüísticos (UEFS). E-mail [email protected]
53
AZEVEDO, Reinaldo. Capitão Nascimento bate no Bonde do Foucault. Revista Veja. Edição 2030, 17 de
outubro de 2007.
a necessidade social de enfocar a violência da polícia, a qual vem dizimando milhares de
pessoas a cada ano. 54
Tropa de Elite é mais um filme brasileiro que revela a guerra entre traficante e policiais,
transformando o drama de milhares de pessoas em “espetáculo”. “Nunca houve tanta
circulação e consumo de imagens da pobreza e da violência, e esse sensacionalismo
espetacular atrai cada vez mais espectadores.”, afirma Ivana Bentes55, que, ao analisar a
violência no cinema, embasa-se no pensamento do cineasta Sergei Eisenstein, defendendo
que a presença desse recurso é capaz de tornar o indivíduo um sujeito da sua realidade e
não um ser passivo. Para ela, a violência
“é um dos mais belos movimentos de crença (ideário revolucionário) no cinema
como lugar de produção de sujeitos e não de assujeitamento, produção de
pensamento e não da paralisia do pensamento. Um choque sensorial, um soco
visual capaz de levar a um entendimento ("rachar o crânio"). A violência
necessária para sairmos da inércia do hábito, dos pensamentos habituais.” 56
Partindo das intenções do autor para analisar a obra cinematográfica, por recomendação de
Jacques Aumont 57, em seu livro “A estética do filme”, percebe-se que Padilha tinha o
objetivo de mobilizar a opinião pública a pôr em questão as práticas de tortura e
humilhação empregadas pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar
de Rio de Janeiro como forma de deter a criminalidade e o tráfico de drogas. Embora a
obra almejasse essa conscientização, acabou por provocar a defesa da cultura “olho por
olho; dente por dente”.
O que se ouviam eram discursos de apoio à polícia que não ouve nem se compadece;
apenas atira e tortura. O Capitão Nascimento - homem conturbado psicologicamente,
desajustado na família e impiedoso no trabalho - é aclamado herói. Entretanto, em Tropa
de Elite não há heróis, pois em uma guerra não há heróis. Na verdade, todos são vítimas da
omissão das instituições políticas e sociais. Mas, principalmente, são vítimas da
reformulação de valores morais na busca pelo poder. Por que criticar um filme que
denuncia a violência e a corrupção policial se ele é fruto de uma sociedade corrupta e
violenta? “O cinema apenas veicula para a sociedade valores de que é representante” 58
54 HAMBURGER, Esther. Violência e pobreza no cinema brasileiro recente: reflexões sobre a idéia de espetáculo. Novos estudos. - CEBRAP no.78. São
Paulo: Julho, 2007
55
BENTES, Ivana. Estéticas da Violência
interdisciplinares.UERJ. ANO 5 nº 1 – 2003.
56
BENTES, Ivana. Estéticas da Violência
interdisciplinares.UERJ. ANO 5 nº 1 – 2003.
no
Cinema.
Interseções:
Revista
de
Estudos
no
Cinema.
Interseções:
Revista
de
Estudos
57 AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Tradução de Marina Appenzeller – Campinas, São Paulo: Papirus, 1997.p. 110
58 Ibidem. p. 90
Ao assistir ao filme, é possível reconstituir o drama vivido por milhares de policiais
brasileiros que, constantemente, entram em conflito interior entre a ética e a conquista do
poder. Ou ainda, entre os valores morais e a garantia do sustento da família. Ao iniciar a
narrativa, o narrador-personagem Capitão Nascimento confessa: “É burrice pensar que
policiais vão subir favela só pra fazer valer a lei. Policial tem família. Policial também tem
medo de morrer” 59. Para ele, só há três saídas: corromper-se, omitir-se ou ir para guerra.
Ele e os outros dois protagonistas – Matias e Neto – escolhem a guerra; outros, corrupção
ou omissão.
O público sente-se indeciso quanto à reputação dos policiais: ora defende-os, afirmando
ser necessário agir com violência para não serem abatidos pela própria violência, ora
condena-os, acusando-os de corruptos e criminosos. Certamente há, na obra, certa
desordem nos papéis de algozes e de vítimas. Confunde-se oprimido com opressor; polícia
com delinqüência. Dentre os que julgam, uns condenam; outros inocentam. Em Tropa de
Elite há uma complexidade de narrativa na qual não há uma simples oposição entre bons e
maus, mas uma situação limite cuja saída é inacessível. Os envolvidos no enredo são
vítimas de condições sociais perversas que agem na construção e reconstrução de valores
morais.
Novas Leituras
Seguindo a mesma rota de Kroef e Gallicchio (2005) 60, esse trabalho evitará fazer uma
simples descrição do enredo, acrescentando-lhe alguns conceitos filosóficos de dois
grandes e polêmicos pensadores: Nietzsche e Foucault. Para justificar a relação cinemafilosofia, Kroef e Gallicchio (2005) 61 afirmam que “Filosofia e cinema constroem planos.
Assim como a filosofia põe o pensamento em movimento, o cinema põe movimento na
imagem.” Mas as imagens cinematográficas relacionam-se entre si e, assim, tornam-se
pensamento.
A idéia de relacionar o filme a idéias filosóficas surge a partir de uma passagem, no filme,
em que universitários, alunos do curso de Direito,– alguns deles militantes de uma ONG e
aliados do tráfico – apresentam um seminário sobre o filósofo francês Michel Foucault.
59 Fala do personagem Capitão Nascimento. Tropa de Elite.
60
KROEF, Ada e GALLICCHIO, Gisele. Onde está o poder? In: SOULTAU, André (org.). Palavranômade: o cinema em pauta.. Santa Catarina: Editora Cultura em Movimento, 2005. p. 11
61
Ibidem, p. 12
Falam sobre o livro Vigiar e Punir 62, em que o autor discorre sobre a evolução da
legislação penal ao longo da história e caracteriza, de modo muito crítico, os métodos
coercitivos e punitivos do estado. Professor e alunos aproveitam para criticarem a polícia
por suas atitudes agressivas e criminosas.
Matias, também aluno de Direito, discorda das acusações, mesmo sem revelar que faz parte
dessa instituição. Mas ele estava errado. Ainda não conhecia os recursos vis de tortura
empregados pelos militares, principalmente, os do BOPE, na inquisição dos criminosos.
Essa prática, segundo Foucault, baseia-se na busca da “disciplina, que é a própria
(micro)física do poder, instituída para controle e sujeição do corpo, (...) ensinando a fazer o
que queremos e a operar como queremos.” 63 A fim de vingar a morte do seu possível
sucessor, o líder do Batalhão faz uso dos meios mais torpes para controlar os moradores da
favela, obrigando-os a fazer o que ele, detentor do poder, queria: revelar o esconderijo do
traficante Baiano. E esse recurso trouxe-lhe êxito em sua busca.
Michael Foucault visualiza o poder “pulverizado”, distribuído entre os micro-sujeitos
históricos. A idéia de poder centralizado na figura do Estado encontra nele um árduo
inimigo e opositor. Segundo as teorias Foucaultianas, o conceito de poder insere-se na
própria interação humana e não como uma posição pela qual se luta, conforme o conceito
moderno. O poder, assim, é entendido como:
“...um elemento constitutivo deste ser do homem, dele não podendo ser
abstraído. Estudar o Poder em Foucault é estudar o homem, pois homem e Poder
são no autor francês como que faces de uma mesma moeda, ou seja, o homem
para Foucault se constrói a partir das relações de poder que existem em sua
sociedade e da qual ele faz parte inexoravelmente.” 64
Sendo assim, o poder é constantemente distribuído entre os seus personagens: Neto, ao
elaborar o plano de tomar para si as propinas pagas ao seu superior a fim de concluir sua
tarefa na oficina e ser promovido; Matias, ao se rebelar contra os burgueses usuários de
drogas; Capitão Nascimento, ao treinar o grupo para ingressar no Batalhão de Operações
Especiais; o Capitão Fábio, ao cobrar dinheiro para garantir a segurança de bares e
prostíbulos; os policiais que recebiam dos traficantes a fim de se omitirem nas
investigações sobre do tráfico de drogas; os próprios traficantes, ao dominarem toda a
comunidade do Morro do Turano; todos exerciam, ali, seus micro-poderes. E por esse
exercício de poder perpassa a violência. “Homens dominam outros homens e é assim que
62
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Fonte:
63 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Fonte:
13 Ibidem
http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/microfisica.pdf.
http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/microfisica.pdf
nasce a diferença dos valores; Em cada momento da história a dominação se fixa em um
ritual; ela impõe regras e direitos.”
65
Mas as regras não existem para pacificar as
relações, ao contrário para satisfazer a violência.
“É justamente a regra que permite que seja feita violência à violência e que uma
outra dominação possa dobrar aqueles que dominam. Em si mesmas as regras
são vazias, violentas, não finalizadas; elas são feitas para servir a isto ou àquilo;
elas podem ser burladas ao sabor da vontade de uns ou de outros. O grande jogo
da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles
que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las ao inverso e
voltá-las contra aqueles que as tinham imposto;”
Nietzsche, um dos filósofos com quem Foucault se identificou, também defendia que os
organismos estatais, ao instituir as leis que regem uma nação, geram a violência, e seus
alicerces encontram-se na teoria que diz: "o poder dá o primeiro direito e não há direito
que no fundo não seja arrogância, usurpação e violência". 66 Para ele, há sempre o
interesse na formação de cidadãos obedientes, pois todo instinto é ávido de domínio.
No filme, os protagonistas Neto e Matias, aspirantes a oficiais da polícia militar do Rio de
Janeiro, eram obedientes às regras ditadas pelo “sistema” (usando uma expressão do
filme). Eram pacíficos, defendiam a proteção da vida e a honestidade, mas percebem que,
em um meio cuja lei é criada para burlar, seus objetivos não seriam alcançados por meios
lícitos. O sonho de combater a criminalidade, de Neto, e o desejo de fazer cumprir as leis,
de Matias, são ignorados, e as virtudes de ambos passam despercebidas pelos seus
superiores. Esquecem, então, da obediência às regras e buscam atingir suas aspirações
copiando modelos já pré-estabelecidos pela corporação.
Capitão Nascimento também conhecia as regras de proteção à vida humana, mas na
conquista da dominação do “outro” - dominado, ele – dominador – cria suas próprias
regras. Sua postura contraditória conquista admiradores e acusadores. Apesar de suas
técnicas de tortura, era um homem incorruptível que buscava o fim da marginalidade com
todas as armas das quais dispunha. Apenas combatia a violência dos traficantes com mais
violência. E os valores morais como a compaixão e o amor ao próximo, defendidos pelos
grupos de defesa dos direitos humanos? Esses eram, naquele contexto, questionáveis.
Quem, entretanto, criou tais valores morais? Qual a genealogia da definição de bem e mal?
Esses foram alguns questionamentos feitos por Nietzsche em sua obra A Genealogia da
Moral (1887). Segundo a sua teoria, deveria ser discutido “o valor desses valores,
conhecendo os meios ambientes em que nasceram, em que se desenvolveram e se
65
FOUCAULT,
Michel.
Microfísica
do
Poder.
-
Rio
de
Janeiro:
Graal,
http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/microfisica.pdf
NIETZSCHE, Friedrich. Disponível em: http://www.culturabrasil.org/zip/nietzsche.pdf>
66
2001.
Fonte:
deformaram 67. O homem, dizia ele, é o criador dos valores, mas esquece sua própria
criação e vê neles algo de "transcendente", de "eterno" e "verdadeiro", quando os valores
não são mais do que algo "humano, demasiado humano". Para o filósofo alemão, as teorias
cristãs são formas de escapar da dor e da luta e renunciar à felicidade por meio dos
dogmas e crenças. Os mestres da fé, segundo Nietzsche (1887), inventaram falsos valores
para se consolar da impossibilidade de participação nos valores dos senhores e dos fortes.
Ao entrar na faculdade de Direito, Matias, que acreditava nas leis e na justiça, passa a
adotar uma conduta passiva, temendo criar conflitos e desavenças com o seu grupo. Vê o
crime entre os seus colegas, mas os sentimentos “bons” o fazem refém. Medo e fraqueza o
impedem de agir, e essa atitude alienada lhe traz angústia e conflito. O narradorpersonagem, entretanto, profetiza: “Não dá pra perdoar, porque traficante não perdoa.” 68
E, realmente, os traficantes não perdoaram. Liderados por Baiano, os traficantes vingamse de Matias, atiram em Neto por pensarem ser ele. Somente quando a violência age contra
sua vida –por sua própria omissão - Matias resolve tornar-se agente na trama. “A vontade
de potência cria no homem o espírito de vingança, de dominação, de ressentimento.” 69 E é
esse espírito de vingança que Nascimento almejava em Matias para que chegasse a
substituí-lo.
Alguns conceitos de valores enraizados na nossa sociedade, por exemplo,
poderiam
representar outras possibilidades. Portocarrero (2005) 70cita um significado apagado da
palavra "bom", que, em latim (bonus) significava também o "guerreiro", conceito esse que
foi abolido pelo cristianismo. O bem seria então a vontade do mais forte, do "guerreiro", do
anunciador da ultrapassagem dos valores estabelecidos. Capitão Nascimento, portanto,
poderia ser rotulado como um homem do “bem”, sob essa ótica; seria o guerreiro forte que
derruba valores e rompe as barreiras de regras impostas, cria novas regras a fim de garantir
sua dominação e poder. Isso é o que podemos chamar de uma verdadeira transvaloração
dos valores, uma verdadeira inversão de valores, uma retomada de virtudes, onde o que era
"bom" passa a ser "mau" e vice-versa.
67
NIETZSCHE, apud PORTOCARERRO (2005) p. 228. Capitão Nascimento, Tropa de Elite.
Capitão Nascimento, Tropa de Elite.
69
NIETZSCHE, Friedrich. Disponível em: http://www.culturabrasil.org/zip/nietzsche.pdf>
70
PORTOCARRERO, Vera. Nietzsche: Uma crítica Radical. In: REZENDE, Antonio (org.).Curso de
Filosofia. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2005.
68
Conclusão
Aqueles espectadores do filme que aplaudiram a conduta do líder do BOPE , portanto,
reforçaram, ainda que inconscientemente, a teoria de Nietzsche. Capitão Nascimento foi
proclamado herói, embora fosse severo em sua conduta e adepto de ações ilícitas e nãoconvencionais, por ter abandonado sua fraqueza, atingindo o estado de super-homem,
sendo essa expressão entendida no sentido de um ser humano que transpõe os limites do
humano denominado por Nietzsche (1887) de além-do-homem. E quanto àqueles que se
escandalizaram com a crueldade do BOPE, são os indivíduos que seguem a teoria cristã,
que conservam a ideologia da moral altruísta e que entende por indivíduo do “bem”
aqueles que possuem valores como a compaixão, amor ao próximo e solidariedade. Não é
o caso, entretanto, de defender esta ou aquela teoria. Apenas tentei justificar a valorização
da violência nas práticas da polícia militar brasileira por grande parte do público que
assistiu ao filme, mostrando que não existe nada de tão absurdo no indivíduo que
interpretou como heróis os militares do BOPE.
Referências
AZEVEDO, Reinaldo. Capitão Nascimento bate no Bonde do Foucault. Revista Veja.
Edição 2030, 17 de outubro de 2007.
BENTES, Ivana. Estéticas da Violência no Cinema. Interseções: Revista de Estudos
interdisciplinares.UERJ. ANO 5 nº 1 – 2003. RJ: 2003. Disponível em:
<http://www.eco.ufrj.br/semiosfera/anteriores/especial2003>. Acessado em 20/07/2008.
HAMBURGER, Esther. Políticas da representação: Ficção e documentário em Ônibus
174. In: MOURÃO, Maria Dora e LABAKI, Amir (orgs.). O cinema do Real. São Paulo:
2005. Cosac Naify.(p. 196 - 215)
HAMBURGER, Esther. Violência e pobreza no cinema brasileiro recente: reflexões
sobre a idéia de espetáculo. Novos estudos. - CEBRAP no.78. São Paulo: Julho, 2007
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php. Acessado em: 20/07/08
KROEF, Ada e GALLICCHIO, Gisele. Onde está o poder? In: SOULTAU, André (org.).
Palavra-nômade: o cinema em pauta.. Santa Catarina: Editora Cultura em Movimento,
2005. (p. 11 - 24)
MORAES, Eduardo Jardins de. e MURICY, Kátia.Visões da Modernidade: Michel
Foucault e a organização do poder. In: REZENDE, Antonio (org.).Curso de Filosofia. Rio
de Janeiro: ZAHAR, 2005.(p. 219 – 231)
PORTOCARRERO, Vera. Nietzsche: Uma crítica Radical. In: REZENDE, Antonio
(org.).Curso de Filosofia. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2005.( p. 267 – 274)
NIETZSCHE, Friedrich. Disponível em: http://www.culturabrasil.org/zip/nietzsche.pdf>
Acessado em: 25/07/2008
RECEPÇÃO CRÍTICA: UM OLHAR DIFERENTE SOBRE A MÍDIA
JORNALÍSTICA, POR UM BAIRRO DE FEIRA DE SANTANA – BA.
Joelson Santiago Santos 71
INTRODUÇÃO
Diante do perceptível preconceito social, no qual se enquadra o bairro Baraúnas como local
apenas de marginais, vinculados nos relatos jornalísticos locais como Tribuna Feirense e
Folha do Estado, que conotam uma visão altamente estigmatizadora e depreciativa,
pretende-se, com esse artigo, fazer uma seleção e análise crítica do estereótipo produzido
na mídia jornalística feirense.
Dada a multiplicidade de significados impressos num texto escrito, esse trabalho busca
espaço para discussão e contraponto do estereótipo que a sociedade feirense adota ao
referir-se sobre o bairro Baraúnas. E como Rocha (1991) diz, no livro Que é
etnocentrismo, o presente se reconhece pelo passado histórico das culturas. Por isso,
partimos com ênfases e bases teórica das concepções de cultura e as que os estudos
culturais oferecem.
Adotando o pressuposto de que ''a discussão sobre cultura também pode nos ajudar a
pensar nossa própria realidade social'' como diz Santos (2003), em Que é cultura? ela é
uma maneira de pensar acerca de uma sociedade, além de contribuir no combate a
preconceitos. Ainda no livro Que é cultura? o autor destaca que é através da reflexão sobre
uma realidade cultural que podemos perceber as relações de poder: “O importante para
pensarmos a nossa realidade cultural é entendermos o processo histórico que produz as relações de
poder e o confronto de interesse dentro da sociedade. SANTOS, 2003, p.34”
Essas relações de poder que poderão servir para compreensão da pesquisa proposta, podem
ser apresentadas ou se constituir através de vários meios de comunicação, dentre os quais
um será o objeto de análise nesse trabalho - a mídia jornalística - Segundo o autor os meios
de comunicação exercem grande difusão e propostas de ideologias em uma sociedade:
Tais meios de comunicação não só transmitem informações, não só apregoam
mensagens. Eles também difundem maneiras de comportar, propõem estilos de
vidas, modos de organizar a vida cotidiana, de arrumar a casa, de se vestir,
71
Estudante de graduação em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
maneira de falar e de escrever, de sonhar, se sofrer, pensar, lutar de amar.
SANTOS, 2003, p. 69.
E através do estudo das relações de poder podemos direcionar a atenção para as
subjetividades implícitas no discurso alvo da pesquisa (os textos jornalísticos)
Já os estudos culturais, corrente iniciada na Inglaterra por volta da década de 50 com Stuart
Hall, Richard Johson e Richard Hoggart como percussores dessa linha de pesquisa, se
caracterizaram em não ser um campo unificado e sim de tendência interdisciplinar e um
grande instrumento para análise/leitura de culturas nos seus múltiplos textos. No livro Que
é, afinal, estudos culturais, Tomaz Tadeu Silva diz o seguinte sobre essa corrente:
Os estudos culturais dizem respeito às formas históricas da consciência ou da
subjetividade, ou às formas subjetivas pelas quais nós vivemos ou, ainda, em
uma síntese bastante perigosa, talvez umas reduções, os Estudos Culturais dizem
respeito ao lado subjetivo das relações sociais. SILVA, 2000
E as formas de subjetividades — como Silva apresenta que ''não é dada, mas produzida'' —
vão ser alvo dessa pesquisa no intuito de entender, e sistematizar e discutir a visão
estigmatizadora da sociedade feirense sobre o Bairro em questão. Como todas as práticas
sociais são passiveis de serem analisadas de um ponto de vista cultural como defende Silva
(2000), esse trabalho de pesquisa pode ser um relevante exemplo, pois utilizaremos como
objeto de exame o material textual da mídia jornalística, um dos meios de análise nos
estudos culturais. Silva define esses materiais textuais como elementos complexos,
múltiplos, coexistentes, justapostos; em uma palavra, intertextuais. E isso implica em uma
categoria não precisa, mas sinalizadores para compreensão do aspecto analisado.
Dentro desse contexto, podemos destacar o nosso trabalho como objeto complexo e multifacetado já que
temos um embate de opiniões acerca do bairro pesquisado de um lado uma sociedade, que em geral,
marginaliza e discrimina os moradores do bairro; do outro os próprios moradores que não se enquadram ou
se reconhecem no estereótipo divulgado pela sociedade de Feira de Santana acerca da comunidade de
Baraúnas.
Assim, como esse tipo de enquadramento estratificado de estereótipos, nos quais o bairro
"A'', ''B'' ou ''C'' são habitados por pessoas trabalhadoras, estudantes, ricas, honestas e
ordeiras, Baraúnas e outros bairros populares de Feira de Santana são ocupados por
marginais, traficantes ou ladrões arruaceiros, podemos encontrar paralelos em nossa
sociedade brasileira na qual como explicita DAMATTA no seu ensaio, O que faz o brasil,
Brasil?, classifica a sociedade brasileira dentro de uma evidente hierarquia por critérios
como cor da pele, lugar onde mora, forma de se vestir, etc.:
De fato, é mais fácil dizer que o Brasil foi formado por um triângulo e raças, o
que nos conduz ao mito da democracia racial, do que assumir que somos uma
sociedade hierarquizada, que opera por meio de gradações e que, por isso
mesmo, pode admitir, entre o branco superior e o negro pobre inferior, uma série
de critérios de classificação. Assim, podemos situar as pessoas pela cor da pele
ou pelo dinheiro. Pelo poder que detêm ou pela 'feiúra' de seus rostos. Pelos seus
pais e nome de família, ou por sua conta bancária. As possibilidades são
ilimitadas, e isso apenas nos diz de um sistema com enorme e até agora
inabalável no credo segundo o qual, dentro dele, ' cada um sabe muito bem o seu
lugar'. DAMATTA, 1986, p. 47.
Embora não concluindo a discussão sobre identidade brasileira DAMATTA retorna à
temática e indica algumas pistas, o que não finaliza a discussão, do que é ser brasileiro
dizendo o seguinte em seu livro:
Basta observar que nós, brasileiros, somos um povo marcado e dividido pelas
ordens tradicionais: o nome da família, o título de doutor, a cor da pele, o bairro
onde moramos, o nome do padrinho, as relações pessoais, o ser amigo do Rei,
Chefe Político ou Presidente. DAMATTA, 1986, p. 77.
No primeiro momento desse artigo, pretendemos traçar uma contextualização histórica do
bairro buscando estabelecer as possíveis relações das concepções preconceituosas, que
foram produzidas ao longo dos anos sobre o bairro. É importante ressaltar a dificuldade de
estabelecer um levantamento histórico do bairro dado as dificuldades de encontrar material
bibliográfico acerca da sua história. Sendo necessário trazer informações coletadas de
entrevistas com moradores antigos, que foram atores principais de vários momentos
históricos do bairro em questão. E posteriormente analisando algumas matérias
jornalísticas que tratam do bairro e fazendo um contraponto desses discursos.
UM POUCO DA HISTÓRIA...
Canonicamente é divulgado nos livros que relatam sobre Feira de Santana que a cidade
foi oriunda, no início do século XVIII, de uma fazenda administrada pelo Tenente
Domingo Barbosa de Araújo e sua esposa Ana Brandão, nomeada de Santana dos Olhos
D’Água, que com o passar do tempo tornou-se ponto de referência para tropeiros,
vaqueiros e viajantes que vinham do Piauí e de Goiás para Cachoeira., Santo Amaro ou
Salvador comercializar gado.
Sua localização e facilidade de se encontrar água, além do pequeno comércio, que aos
poucos crescia ao redor da fazenda, estimularam o povoamento daquela fazenda ao longo
dos anos culminando na cidade, atualmente, com cerca de 500 mil habitantes.
No processo de surgimento da cidade de Feira de Santana, o bairro Baraúnas se inseriu
com um dos primeiros bairros da cidade, no qual, segundo alguns moradores antigos da
comunidade, foi um local privilegiado. Muito procurado para residir, pois se localizava
próximo do campo do gado e da famosa feira livre – principais centros comerciais do
final do século XIX e início do século XX, em Feira de Santana. Esse bairro era
procurado para se morar principalmente por pessoas de outros estados que buscavam se
estabelecer na cidade visando o rentável comércio de gado e por isso, ainda, encontramos
na linha genealógica de muitas famílias do bairro descendentes de migrantes
pernambucanos, alagoanos, sergipanos e outros nordestinos. De acordo com a publicação
no jornal Tribuna Feirense de uma pesquisa realizada pelos estudantes de geografia da
UEFS: Elane Fiúza e Kátia Pereira Lima:
Esta comunidade recebe tal denominação [Baraúnas] devida às inúmeras árvores
de baraúnas que ali se encontravam. O mesmo apareceu a partir de uma fazenda
de gado, os quais eram vendidos no Campo do Gado Velho e na feira livre da
cidade. Com o passar do tempo a área foi adquirindo importância pelo comércio
de gado(...) criou-se então currais, matadouros e charqueadas, além da instalação
de fábricas (...) Baraúna é um bairro carente, mas com complexidade
organizacional evidenciada pelo processo de coesão, além dos equipamentos
urbanos como escolas, igrejas, desportistas, universitários, centro cultural,
agentes de saúde, associação de bairro, comerciantes, comunicadores políticos,
policiais e centenas de famílias.
Já no dicionário personativo, histórico, geográfico e institucional da Feira de Santana
temos o registro de sua origem apresentando:
(...) Por ali existiam muitos pés de uma madeira chamada baraúna de grande
valia. Está situada[sic] entre a Avenida José Falcão e o Sobradinho. Por lá estão
02 escolas (...). É um bairro quase esquecido dos administradores municipais.
Sua infra-estrutura é bem precária, suas ruas são recheadas de casas humildes,
terrenos baldios. Tudo carente, portanto, de muita atenção da administração
pública. p. 146
Verificamos que o registro histórico do bairro possui poucos impressos
e muito
superficiais, por isso um dos meios mais eficientes do resgate histórico do bairro é
entrevista com moradores, principalmente os mais antigos, que são praticamente unânimes
em dizer que o bairro foi e ainda é um excelente lugar de morar.
DE BARAÚNAS PODE SAIR ALGUMA COISA BOA?
Essa comunidade, há muito tempo, perdeu seu status de boa localização geográfica em
detrimento aos aspectos da violência atribuída ao local, no qual a mídia jornalística
exemplifica em seqüenciadas matérias, muitas vezes estereotipadas, como, por exemplo,
em matérias como: '' Outra traficante presa no bairro das Baraúnas'', ''Traficantes presos
pela DTE nas Baraúnas'', ''Luanda (...) cumprirá pena ao lado da mãe e da irmã que já estão
lá’’Palcos de guerra entre gangues'', Baraúnas virou mesmo um palco de guerra'' entre
outras.
Ao analisarmos os textos jornalísticos, percebemos que mesmo diante de uma informação
positiva do bairro uma depreciativa do local ou do seu povo, em geral, é emitida, como
demonstra o trecho de uma entrevista realizada com o delegado de Tóxicos e
Entorpecentes, em Feira de Santana, na época. O trecho seguinte é vinculado ao Jornal
Tribuna Feirense de 26 de junho de 2003:
Wilson Jr. – números estatísticos [sobre o tráfico de drogas] não. Mas, temos um
parâmetro em torno do assunto que nos apresenta locais considerados críticos, a
exemplo dos bairros Rocinha, Jussara e Baraúnas. Neste último, conseguimos
reduzir em torno de setenta por cento a comercialização de drogas, após uma série
de investigação, e operações in loco. (...)
Wilson Jr. – Percebemos que as classes média e baixa são as mais consumidoras,
principalmente entre os jovens. Mas, a classe pobre predomina.
No citado fragmento do jornal, o delegado entrevistado, embora não tenha estatística
oficial do tráfico de drogas na cidade, elenca a comunidade de Baraúnas como uma das três
localidades mais críticas. Decerto com embasamento nas ocorrências policiais registradas.
E na mesma reportagem destaca um aspecto positivo: a redução de setenta por cento da
comercialização de entorpecentes no bairro, mas logo em seguida diagnostica que a classe
mais baixa predomina no consumo de drogas, ou seja, no discurso do delegado quem
financia o tráfico é a classe menos favorecida economicamente, então podemos citar
bairros com Baraúnas, no qual predomina a baixa renda, como o grande sustentáculo do
tráfico, porém, de fato, é isso que acontece?
No trecho a seguir o jornalista não perde a oportunidade de ser irônico no relato da prisão
de uma jovem traficante da comunidade de Baraúnas quando cita que ela fará companhia à
mãe e uma irmã. O trecho a seguir é datado de 12 de abril de 2003 do jornal Folha do
Estado:
A equipe da delegacia de tóxicos e entorpecentes prendeu na quarta – feira a
traficante Luanda de Jesus Nascimento, 18 anos, Avenida Riachuelo, 226,
Baraúnas e os comparsas Benilson Souza Santos ''Beu'', Cláudio Alves Silva, 26
anos, e Vanilda Silva dos Santos, 24 anos, do mesmo bairro. (...)
Luanda foi atuada em flagrante e será encaminhada para o conjunto penal de
Feira de Santana e cumprirá pena ao lado da mãe e da irmã que já estão lá. Pág.
13.
Fica o questionamento quanto aos motivos da construção desse estereótipo de "marginais"
que a sociedade feirense, através da mídia, difunde e impõe ao referido bairro, por que
existe uma clara repugnação aos residentes desse bairro, como se aí só morassem pessoas
fora da lei ou de qualquer regra de convivência pacífica?
Esses relatos incomodam e, em muitas vezes, até constrangem os moradores residentes no
bairro referido, que não se enquadram nesse rótulo imposto de forma seqüenciada pelos
principais meios jornalísticos da cidade.
As matérias vinculadas nos jornais resumem-se, em maioria, à violência, ao tráfico ilegal de entorpecentes e
as supostas disputas entre gangues por pontos de drogas como se essas práticas fossem rotineiras e exclusivas
do bairro em questão, deixando de lado que ali se encontram pontos positivos como uma localização
geográfica privilegiada próxima ao centro da cidade, ter uma das grandes escolas de samba de grande
representatividade na cultura local, a qual inclusive já levou várias premiações ao longo das micaretas de
Feira de Santana, uma equipe de futebol amador altamente organizado, o qual já perdura há mais de
cinqüenta anos, são alguns dos exemplos que ficam "esquecidos" ou não destacados pela mídia local.
Também residem no bairro cidadãos honestos que trabalham, estudam, fazem faculdade, inclusive nas
grandes unidades de ensino superior da Bahia como: UEFS, UNEB, UESC e UCSAL, além de bolsistas do
PROUNI em faculdades particulares, que sendo integralmente ou parcialmente estudantes de escolas públicas
do bairro em questão, lograram os seus espaços nas instituições de ensino superior. Por que será que esses
aspectos não são colocados em questão pela mídia?
PALCO DE GUERRA
Diante das constantes reportagens que destacam e enfatizam as práticas de crimes ou até
mesmo direcionam fatos criminosos ocorridos nas adjacências para o bairro citado, faz-se
necessário estabelecer um contraponto dessa situação. Quais as intenções e implicações da
construção e perpetuação de um "rótulo" depreciativo acerca do bairro, conceituando-o
como um local apenas de marginais e palco para o tráfico de drogas e disputas entre
gangues por causa de pontos de comercialização de tóxicos?
Como um exemplo contundente dessa situação, temos o ''lead'' de uma reportagem do
Jornal de circulação local: o Folha do Estado datado de 11 de agosto de 2002, que tinha
inicialmente a ''intenção'' de divulgar a iniciativa de alguns jovens da comunidade em
realizarem uma feira cultural, mas o primeiro parágrafo da reportagem conota uma
concepção altamente depreciativa, preconceituosa e deturpada do local:
Baraúnas, um bairro localizado distante do centro da cidade e conhecido como
um local bastante perigoso, palco de crime e disputas entre Ganges. Mostra que
tem muita coisa boa, por trás de tanta influência negativa. Nasceu dentro da
comunidade um grupo de jovens que e defende a paz o bem comum e procura
ajudar os moradores dando-lhes apoio moral e espiritual é o grupo Javé – Jovens
Atuantes Vivendo o Evangelho. p. 11.
Depois dessa chamada quem iria para a Feira de cultura? Pois é esse o tipo de conteúdo,
em geral, vinculado ou associado ao nome do bairro, somente nesse trecho já podemos
perceber o grau de desinformação e preconceito do editor da matéria do jornal: primeiro
que o bairro é bem próximo ao centro da cidade, cerca de 10 minutos a pé se chega ao
centro comercial, segundo não temos registro até o momento de brigas de Gangues por
causa de pontos de drogas na região e para finalizar o jornalista enfatiza as influências
negativas que predominam no bairro, mas quais são essas tantas influências negativas?
Supomos que o profissional do jornal também não teria essa resposta, até porque ele
sequer tem uma noção exata da localização geográfica do bairro mencionado e tampouco
acompanha as ocorrências policiais da nossa cidade, o que fez o jornalista reproduzir em
seu texto uma ignorância freqüentemente adotada em nossa sociedade.
Corroborando como esse trecho do Jornal Folha do Estado temos outro trecho do Tribuna
Feirense que data do dia 28 de novembro de 2007, no qual o termo '' palco de guerra''
retorna no texto do jornalista:
O Baraúnas virou mesmo um palco de guerra. Assassinos em motocicleta estão
matando em série naquele bairro. São quatro homicídios registrados em menos
de uma semana. Ontem a vítima foi Genivaldo da Cruz Santos, 42 anos, o
'Mocotó', como era mais conhecido. Ele sofreu pelo mesmo 10 tiros de revólver.
Mais uma vez, uma dupla de assassinos em uma moto foram os autores do crime
– não se sabe se os mesmo são responsáveis pelas mortes dos últimos dias.( p.
04).
Nesse relato, percebemos numa matéria que foi escrita depois de cinco anos na qual o
termo ''palco de guerra'' é reafirmado e consolidado. Porém fica o questionamento: o que é
guerra? Pois no relato que lemos nesse jornal dois assassinos em uma moto executaram a
vítima friamente com 10 tiros sem nenhuma possibilidade de revidar, isso pode ser
intitulado como uma guerra, ou uma execução? Novamente a concepção estigmatizadora
sobrepõe no texto da mídia.
Além disso, sabemos que a criminalidade não escolhe pouso, por isso o(pre)conceito
imposto não deve ser generalizado, acentuado e tão pouco falseado. Tal comportamento
marca um paradigma de descriminação social relevante de ser discutido suas causas,
origens e possíveis conseqüências, além de fazer um contraponto com a visão e opinião
dos moradores acerca da temática.
Outro aspecto relevante encontrado em um dos jornais pesquisado é uma matéria do Folha
do Estado no dia 30 de dezembro de 2005 com o título Jovem encontrado morto dentro de
canal:
O corpo de Gutenberg da Silva Ramos, 21 anos, foi encontrado despido dentro de
um canal de macro-drenagem, nas Baraúnas, na manhã de ontem. Gutemberg
residia na Avenida Riachuelo, no mesmo bairro, aparentemente foi morto por
espancamento, pois haviam vários hematomas espalhados pelo corpo
principalmente nas costas e na cabeça. p. 07
De fato esse jovem residia na comunidade, mas o canal de macro drenagem se localiza às
margens do bairro citado, e não no bairro, essa pequena conjunção pode fazer grande
diferença na interpretação do leitor que pode deduzir que dentro da localidade uma pessoa
foi espancada até a morte.
Contudo, encontramos contradições acerca das idéias da mídia sobre o referido bairro, pois
verificamos numa reportagem sobre o bairro vizinho(Sobradinho) no qual destacam-se as
vantagens de se morar nele. Geograficamente Baraúna e Sobradinho são muito próximos,
por isso na própria reportagem é relatado o nome das Baraúnas, por que juntamente com o
Sobradinho e outros bairros adjacentes eles formam uma espécie de bairro cidade.
É muito vantajoso para aqueles que residem nessa região, pois encontra uma infra-estrutura
e comodidade de locomoção, de comércio, e lazer, que, muitas vezes, não é vista em várias
cidades pequenas do nosso interior como registra a reportagem datada em 18 de setembro
de 2003, no Folha do Estado:
Localizado em um dos pontos mais altos da cidade, ao lado do Jardim Cruzeiro,
o Sobradinho é mais um bairro cidade, tendo ainda em volta do seu território
grandes comunidades, como: Cruzeiro, Baraúnas, Jardim Sucupira, Morada das
Árvores. Separado do centro comercial pela ladeira do Nagé, os moradores não
precisam utilizar o curto percurso em busca de lazer e serviços. Quem mora no
amplo território comandado pelo Sobradinho dispõe de Estádio Municipal
Alberto Oliveira, o Jóia da Princesa, dos clubes como SESI, AABB, com seus
parques aquáticos para a prática de esporte e lazer. O primeiro e único
observatório do Norte e Nordeste, o Antares, está no seu território, localizado no
jardim Sucupira. Na área educacional além do Centro Integrado de Educação
Assis Chateaubriand, a população conta com unidades de ensino tanto na rede
municipal como na rede estadual. Sem falar que ali perto está a Universidade
Estadual de Feira de Santana. p. 03
E na própria comunidade de Baraúnas temos como relata também o Folha do Estado no
dia 29 de janeiro de 2003:
O prédio do centro de Educação complementar de Feira de Santana (...) que
objetiva atender crianças matriculadas em escolas da rede municipal (...) com salas
de aula, cozinha, refeitório, prédio administrativo, área de desenvolvimento de
artes, cursos profissionalizantes e quadra poli – esportivas. p. 03
O próprio jornal admite, através da valorização do espaço urbano do bairro Sobradinho,
que as Baraúnas como integrante desse território se beneficia de todas essas comodidades e
vantagens de residir nessa localidade que no caso da Baraúna é separada do centro
comercial pela ladeira do antigo Minadouro, atualmente Rua São José. Logo, a
comunidade tem um espaço vantajoso para se residir, é próximo do centro comercial de
Feira de Santana.
VINDE E VEDE
O incômodo com os comentários depreciativos da comunidade de Baraúnas já foi objeto de
debate de vários moradores que não aceitam esse estereótipo, inclusive registrado pelo
informativo comunitário É Tempo de Mudar que circulou no bairro durante o ano de 2005,
no qual o Editorial de fevereiro relata:
Percebemos o preconceito acerca do bairro Baraúnas, porém esse tipo de
discriminação que a sociedade feirense nos impõe não ofusca o brilho e os
talentos genuínos do bairro, provando que esse tipo de generalização é estúpida e
inadequada, pois muitos são os valores desse espaço geográfico que sempre vem
se destacando positivamente. É claro que aqui existem alguns desafios e mazelas
a serem enfrentados, assim como todos os bairros da cidade os têm, mas não é só
isso que deve ser posto em evidência, por isso esse espaço de reflexão foi criado
para mostrar os valores, os talentos, as idéias, enfim mostrar nossa cara.
Por tudo isso, queremos trazer através desse veículo de comunicação,
informações relevantes ao bairro, e construir um espaço de reflexão na
comunidade, no qual mostrar que somos capazes de apresentar nosso legado.p.
01
Esse informativo foi construído por alguns colaboradores residentes do bairro dentre eles
escreviam estudantes secundarista e universitário, pedagoga, agentes de saúde, e outros
moradores interessados em temas sempre relacionados com um pouco da história e os
eventos locais, política e saúde.
Em outro trecho desse informativo local, podemos identificar o posicionamento dos
organizadores em relação ao estereótipo do bairro que circulou na comunidade em maio de
2005:
Este informativo comunitário não tem a pretensão de ser a única maneira para
melhorar o bairro Baraúnas. O nosso desejo que os moradores possam entender
que através daqueles que lutam com coragem devem levantar a bandeira da
comunidade, por que só assim teremos um futuro promissor.
Baraunenses, não esperemos por uma sociedade preconceituosa que tem uma
intenção visível de colocar as comunidades simples como localidades que
produzem apenas violência.
Portanto, você da Baraúna não seja mais um que balança a cabeça como
lagartixa confirmando que a comunidade é um local de drogas, prostituição e
assaltos, como alguns que promovem essa idéia e encontram, infelizmente,
forças em moradores desinformados, descomprometidos com a verdadeira face
do bairro. p. 01
Dos relatos coletados durante a pesquisa com os moradores não podemos deixar de
destacar três moradores com experiências diferenciadas para acrescentar os aspectos
positivos, negados e/ou ocultados pelos jornais, e seus apreços em morar no bairro, o
primeiro é Kátia, 27 anos, professora de uma das unidades escolares do bairro. Ela
destacou escolher essa escola para trabalhar, pois para ela é muito significativo contribuir
um pouco, dentro da sua profissão, para educação no bairro que ela nasceu e se criou. Pois
Kátia acredita numa perspectiva emancipatória da educação, trabalho com empenho e amor
nesse bairro.
Outros moradores que destacamos nessa abordagem, Seu Dórico e Dona Lurdes um casal
que já reside no bairro há mais de 50 anos, ambos trazem uma opinião positiva do bairro,
pois nesse local, com diz seu Dórico, 74 anos:
(...)Eu criei aqui [Baraúnas] 8 filhos: 6 homens e 2 mulheres, graças a Deus,
nunca tive nenhum trabalho, já estou na faixa de mais de 30 netos e bisnetos
mais de uma dúzia ... e vou lhe ser sincero (...) fui feliz e sou feliz com todos
criei com eles brincando na rua aqui dentro do bairro(...) e tenho prazer de dizer
que criei eles aqui pra qualquer um.
Com dona Lurdes, 73 anos, encontramos a seguinte declaração:
(..) Nasci e me criei na Baraúna, morei casei e vivi aqui (...) nunca me desgostei do
meu bairro não, até hoje eu amo bairro, não acho outro lugar melhor do que o meu,
aqui ninguém nunca me buliu, eu nunca buli ninguém (...) aqui minha mãe dormia
de porta aberta (...) era um bairro sossegadíssimo e até hoje pra mim é sossegado ,
por que ninguém me boli, eu não vou falar mal do bairro, né? (...) mas aqui é um
povo muito unido, se um morrer todo mundo tá junto, se um gritar todo mundo
ajuda, se um tá com fome outro dá um prato de comida. Na Baraúna todo mundo
se uni é praticamente uma família.
Através dessas pequenas falas, porém muito significativas, percebemos como o discurso
dos moradores destoam do que é trazido pela mídia. Aqui se fez apenas um recorte da
questão e uma sintética demonstração dos diferentes discursos que podem permear a nossa
sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos que o trabalho de pesquisa nesse campo não é uma tarefa simples, pois é
necessário se defrontar com paradigmas ultrapassados e com uma sociedade que se intitula
''igualitária'', mas não democratiza o mesmo ponto de partida e possibilidades para a
expressão de opinião, não obstante, tal situação não possa ser ignorada.
Por isso, se faz necessário a criação de espaços para discussão e contraponto dos mais
variados estereótipos produzidos em nosso meio por subjetividades limitadas por
preconceitos estabelecidos, em geral, como absolutos ou verdadeiros. Os exemplos aqui
citados são exemplos contundentes de como podem ser essas subjetividades, muitas vezes,
distorcidas e contraditórias.
É preciso mostrar também que existem espaços para mudanças tanto dos discursos quanto
de paradigmas. E que sociedades homogeneizadas são meras ilusões como apresenta
Rocha (1985), pois embora os símbolos culturais tenham existência coletiva, eles são
passíveis de manipulação. Articulam-se no interior de uma mesma cultura, concepções e
interesses diferentes ou mesmo conflitantes.
É claro que não conseguiremos efetuar uma pesquisa a qual consiga abarcar todos os
sentidos e implicações em torno desse problema, e sim iniciar uma discussão e reflexão
crítica sobre o tema proposto.
Referências
ALMEIDA. Oscar Damião de. Dicionário Personativo, Histórico, Geográfico e
Institucional da Feira de Santana. 3. Ed. Gráfica Nunes Azevedo: Feira de Santana,
2002.
NOTÍCIA DE REDAÇÃO. Baraúnas registra outro assassinato. Tribuna Feirense, Feira
de Santana, 20 nov. 2007.
NOTÍCIA DE REDAÇÃO. Centro de Educação Complementar em breve funcionamento.
Folha do Estado, Feira de Santana, p. 3, 16 jul. 2003.
NOTICIA DE REDAÇÃO. Classe média e baixa consomem mais drogas. Tribuna
Feirense, Feira de Santana, p.?, 26 jun. 2003.
NOTÍCIA DE REDAÇÃO. Jovens Atuantes, Vivendo o Evangelho. Folha do Estado,
Feira de Santana, p.3, 11 ago. 2002.
NOTÍCIA DE REDAÇÃO. Sobradinho é outro exemplo de bairro cidade, Folha do
Estado, Feira de Santana, 18 de set. 2003. Caderno Especial, p. 03.
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo. 11. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Coleção Primeiros Passos.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. Brasiliense. São Paulo. 2003.
SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org. e Trad.). Que é, afinal, Estudos Culturais.
Autêntica:Belo Horizonte, 2000
LEITURA, DISCURSO E LITERATURA:
REPRESENTAÇÕES SOBRE “MENINOS DE RUA”
Andréa Barreto Borges de Souza
UNEB – Campus V
[email protected]
Marginais, malandros, pivetes, gatunos, larápios. Estas são algumas denominações
utilizadas para “meninos de rua”, identificadas na pesquisa que desenvolvemos para
melhor compreendermos os sentidos atribuídos a estes sujeitos, bem como à casa e à rua,
no contexto de Santo Antônio de Jesus, Bahia. Como as palavras não são transparentes, os
sentidos expressos por meio dessas palavras são construídos historicamente e são trazidos à
tona por meio de uma memória, da qual nem sempre temos consciência.
Mas, os sentidos pejorativos – direcionados às crianças e adolescentes em situação de rua –
que temos encontrado nas trajetórias do nosso estudo, não sanam a nossa inquietude diante
dos questionamentos que temos feito sobre esses sujeitos, seus discursos, os discursos
produzidos sobre eles e por eles.
Quem são os meninos de rua? Para essa pergunta, existem diferentes tipos de respostas.
Depende do olhar de cada um sobre as crianças e adolescentes que se encontram nessa
situação. Depende também do papel social exercido pelo sujeito. Certamente, policiais
militares, representantes da igreja, conselheiros tutelares ou um cidadão comum, que
estaciona o seu carro onde há meninos de rua, têm diferentes concepções. Além disso, o
discurso da criança e do adolescente em situação de rua, que fala e cala sobre suas formas
de vida, demonstra outros olhares e sentimentos.
Além dos olhares das pessoas, a vivência da população infanto-juvenil pode ser
compreendida, ainda que parcialmente, a partir de diferentes leituras: histórica, geográfica,
sociológica, antropológica e, dentre tantas outras, por que não, literária.
Diante da riqueza da relação entre História e Literatura, aproveitamos, já que temos
estudado a relação dos “meninos de rua” na História, para também buscar olhares sobre
eles expressos em textos literários. Para tanto, buscamos refletir sobre a seguinte
inquietação diante da literatura. Trata-se de mentira ou de verdade? Para pensar sobre essa
questão, Lhosa nos aponta para a seguinte reflexão:
De fato, os romances mentem – não podem fazer outra coisa –, porém essa é só
uma parte da história. A outra é que, mentindo, expressam uma curiosa verdade,
que somente pode se expressar escondida, disfarçada do que não é. (...) No
embrião de todo romance ferve um inconformismo, pulsa um desejo
insatisfeito. 72
Não objetivamos aqui aprofundar esta reflexão. Tampouco queremos defender uma ou
outra posição sobre a literatura, sobre esse reino da ambigüidade. Apesar disso, não
pretendemos deixar de lado a riqueza oferecida por textos literários, nem queremos deixar
de mergulhar nos textos em que pulsam os possíveis inconformismos e insatisfações
citados por Lhosa.
Em se tratando da realidade da Bahia, não podemos deixar de citar a obra Capitães da
Areia 73. É desafiador compreender a realidade de sujeitos que vivem ou viveram em
situação de risco em Santo Antônio de Jesus, que não contaram – e talvez ainda não
contem – com o apoio da família, tradicionalmente vista como suporte necessário para a
construção da identidade, e buscar semelhança com as vivências de rua apresentadas nesta
obra de Jorge Amado. Parece loucura buscar relações entre realidades aparentemente tão
distantes: Santo Antônio de Jesus, década de 1990 e Salvador, década de 1930, século XX,
ficção.
O fato é que, longe de querermos fazer uma análise literária, ou buscar o contexto histórico
em que Capitães de Areia surge, podemos comentar o realismo transmitido pela obra, que
por meio de uma linguagem crua, relata as experiências conflituosas, o cotidiano do grupo
e as aventuras vividas como forma de sobrevivência.
O romance Capitães da Areia trata da vida de crianças e adolescentes abandonadas da
Bahia, que vivem num velho trapiche. O grupo é liderado por Pedro Bala, corajoso e
generoso e ainda por outras figuras marcantes: Professor: aquele que por meio da leitura
tem consciência do heróico de suas vidas. Desde cedo revela pendores para a arte; Pirulito:
místico, conhece Deus por meio das conversas com o Padre Pedro; Sem-Pernas: revoltado
por não ter um lar; Volta Seca: afilhado e admirador de lampião; Dora: a mãe, a irmã,
noiva e esposa dos capitães da areia; gato: elegante e conquistador; e o negro João
Grande: bondosa e forte criatura.
A narrativa realça a personalidade e os destinos individuais, embora trate os capitães da
areia enquanto grupo, que tem coesão e cooperação. “Os companheiros da orfandade
72
LHOSA, Mario Vargas. A verdade das mentiras. Tradução: Cordelia Magalhães. São Paulo: AEX, 2004, p.
12.
73
AMADO, Jorge. Capitães da Areia. 112ª ed. RJ: Record, 2004.
vivem, como seu líder, tentando escapar à degradação num mundo hostil, muitas vezes sem
o conseguir.” 74
Interessa-nos, portanto, conhecer mais, também por meio da literatura, esses sujeitos e a
cultura alternativa que desenvolvem na ânsia pela sobrevivência diária daqueles que
“vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando
pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente,
os que a amavam, os seus poetas.”
Há uma criatividade constante nas ações dos capitães da areia. Os sujeitos são criativos, a
fim de alcançar seus objetivos. Um deles é a necessidade de fuga dos problemas e das
diversas carências existentes. Dentre outros exemplos, Pirulito fugia por meio da sua
religiosidade, da sua fé. Pedro Bala trazia para si a responsabilidade de protetor do grupo.
Ele se sentia na obrigação de fazer qualquer coisa, até sofrer, em nome da proteção
daqueles a quem liderava.
Atitudes semelhantes são verificadas em Santo Antônio de Jesus, onde, por meio de drogas, violência,
brincadeiras, e outras aventuras, crianças e adolescentes sobrevivem, ou sobreviviam, como é o caso dos
entrevistados que serão apresentados no próximo capítulo.
Muitos deles não têm referências familiares, vieram de outras cidades ou simplesmente são atraídos a viver,
assim como os capitães da areia, as contradições da rua que reúne liberdade e miséria. A liberdade, que é o
bem mais precioso que possuem e a miséria, que é o preço que pagam pela ausência de um lar, da família.
Pagam o preço por fazerem parte de classes sociais desajustadas e desfavorecidas, por isso são excluídos,
mas, contrariamente, dominam os espaços públicos como ninguém.
O que percebemos, nesse romance amadiano, é que nos é mostrada a diversidade e o jogo
de poderes em que estão envolvidos os”meninos de rua”. Se, de um lado, são vítimas de
constante violência por parte da sociedade, do poder público, das instituições; por outro
lado, os meninos e meninas também usam suas “armas”, seja para sobreviver, para lutar
contra os inimigos ou para usufruir a liberdade que tanto desejam.
Consideramos textos literários como um olhar importante para a compreensão da realidade
de crianças e adolescentes em Santo Antônio de Jesus. Dessa forma, buscamos textos
literários escritos no próprio município, especialmente por escritores que possuem
vivências no contexto, e que, consequentemente, conhecem aspectos sociais, culturais e
econômicos da cidade, que influenciem direta ou indiretamente na vida de “meninos“ e
“meninas de rua”.
74
DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. RJ: Record, Natal, RN:
UFRN, 1996, p. 114. 4 AMADO. Op. cit., p. 21.
Na busca por estes textos, que são escassos (não só em Santo Antônio de Jesus, na Bahia e
no Brasil e isso merece uma leitura), encontramos algumas obras literárias publicadas na
década de 1990. A obra Viagens Poéticas, publicada em 1991, pela Universidade do
Estado da Bahia, Campus V, consiste em uma coletânea de poemas. Neste trabalho,
pudemos refletir sobre os poemas Patriamãe, de Silvia Brito e No mundo das crianças, de
Celina D’Ávila.
Observamos a língua fazendo sentido, comotrabalho simbólico, parte do trabalho social
geral, constitutivo do homem e da sua história. Se se trata da construção dos sentidos, do
movimento dos sentidos, quais os sentidos atribuídos a crianças e adolescentes em situação
de rua? Qual a identidade ou as identidades construídas para esses sujeitos? Como
podemos perceber, não há o objetivo aqui de avaliar os textos e a qualidade literária deles.
Observemos, inicialmente, o poema a seguir:
PATRIAMÃE 75
Sou filho da puta,
filho da rua,
do suor e da luta.
Sou transviado
como dizem aqueles
que falam bonito.
Acredito no olho
que bate certo na mira.
Me lambuzo de ódio,
dou gargalhadas histéricas
e fodo com preguiça.
Se precisar, mostro a faca,
ranjo os dentes, viro fera
cheiro cola, caca e choco
com minha anti moral
onipresente.
Sei que incomodo
encho de medo
a sólida estrutura dominante.
A escolha de Patriamãe deu-se porque, dentre as leituras realizadas sobre crianças e
adolescentes em situação de rua em Santo Antônio de Jesus, este poema é um texto em que
há a apresentação de uma identidade marcante do “menino de rua”.
Embora não seja feita uma alusão direta à categoria “menino de rua”, a referência ao “filho
da puta, filho da rua” nos faz pensar na vida desses sujeitos que, sendo “filhos da rua”,
parecem ser donos da rua e ao mesmo tempo a elas pertencerem. O sujeito anônimo, que
75
BRITO, Sílvia. in MOTA, Maria de Lourdes Almeida de et. alii. Viagens Poéticas. Santo Antonio de
Jesus, Ba: FFPSAJ / UNEB, 1991, p. 31.
vive fora da “ordem” e do “lugar”, por meio do poema, quer ser ouvido, quer mostrar sua
identidade, enquanto esconde outras: “Sou filho da puta”. “Sou transviado”. “Acredito no
olho que bate certo na mira”. “Mostro a faca”. “Me lambuzo de ódio”. Para concluir, o
sujeito revela: “Sei que encho de medo a sólida estrutura dominante”. Será esse o momento
em que esse sujeito se sente com poder?
A autora, ao construir essa identidade para o possível “menino de rua”, escolhe a
identidade que ideologicamente aparece como única para a maioria da população. Parece
que, ao perceber a dificuldade vivenciada cotidianamente por “meninos” e “meninas de
rua”, e a quase impossibilidade de mudarem de vida, lhes é dado o direito de gritar e dizer
que podem se defender. Se preciso, “ranjo os dentes, mostro a faca, viro fera...”
A “luta”, a “faca”, a “cola”, a “coca”, elementos presentes no texto, não se aproximam
apenas pela semelhança fonética. Trata-se de elementos que fazem parte do cotidiano de
meninos e meninas, enchendo de medo grande parte daqueles que, por fazer parte de outro
estrato social, têm casa, comida, educação, emprego, sente-se diferente dos sujeitos que
vivem na rua e por isso, costuma tratá-los e encará-los como seres subumanos.
É curioso observarmos que, como nenhum discurso é neutro, assim também não o é o
discurso ora materializado no poema citado. Engajada em projetos e atividades voltadas
para crianças e adolescentes, a autora busca mostrar a imagem da vida na rua, de pobreza,
de exclusão social, para, por meio dos sentidos construídos, motivar o leitor a refletir,
justamente em um período de mudança na legislação, com a criação do ECA, e constantes
movimentos em favor da população infanto-juvenil. Trata-se, portanto, de uma estratégia
discursiva construída de forma a chamar a atenção para o sujeito que demonstra algo a que
a sociedade teme: a violência, a reação diante da exclusão e do descaso a que são
submetidos crianças e adolescentes que vivem na rua.
Ainda em Viagens Poéticas, há o poema No mundo das crianças, de Celina D’Àvila,
citado a seguir:
NO MUNDO DAS CRIANÇAS 76
Eu senti a esperança
Nos olhos das crianças
Que pelas ruas corriam.
E o desespero senti
76
D’ÀVILA, Celina. in MOTA, Maria de Lourdes Almeida de et. alii. Op. cit., p. 34.
Em outras que gemiam:
Num catre sem espumas,
Por não poderem sair.
E outras, ainda
Que próceres desse mundo,
Em seus palácios viviam.
Eu senti, pois,
Em mundo de acasos
Um outro desesperado
E outro mais cintilante.
Mas, na realidade,
Um mundo de crianças
Num mundo de ninguém.
Neste poema, na contraposição entre “Um mundo desesperado / e outro mais cintilante”,
percebemos uma alusão às desigualdades entre as formas de vida das crianças que felizes
correm pelas ruas e “outras que gemiam”. Isto é, a rua, a vida, a realidade têm outros
sentidos e formas diferentes para cada um dos mundos.
O título do poema nos aponta para a posição da autora. Embora inicie fazendo alusão ao
“Mundo das crianças” e comece o primeiro verso citando a “esperança”, segue nos
apontando para um mundo plural, onde há várias formas de vida para as crianças. Isto é,
não há aqui a ideologia de um mundo infantil idealizado. Mesmo nas ruas, com desespero,
gemendo, tratam-se de crianças, diferentemente da posição daqueles que diferenciam
crianças de menores.
Este poema, diferente do primeiro, cita a palavra criança. Certamente, a abordagem da
autora sobre a desigualdade social que atinge a população infanto-juvenil é feita de
maneira diversa da que é feita no poema Patriamãe, que nos mostra a criança e o
adolescente na rua, vítimas de total exclusão, adentrando no mundo do crime. As autoras
falam de lugares diferentes, a partir de suas posições políticas.
Em No mundo das crianças, há uma proximidade maior, pelo menos por comparação, com
o mundo feliz e idealizado da criança. Existe um mundo que se contrapõe a este, pela dor,
pelo desespero.
Em outra obra, Do Cotidiano da gente, Celina D’Àvila aborda, de maneira mais direta, o
problema do adolescente em situação de rua. Desta vez, trata-se de uma crônica, intitulada
Confiança.
CONFIANÇA 77
Ele era branco, pálido, com cerca de 14 anos, abusado, larápio; um pivete, e
ninguém queria nada com ele. Entretanto, eu gostava dele, e não me
importava com as opiniões dos outros, levando-o em meu carro; quando pedia
uma carona, deixando-se sentar-se comigo em alguma lanchonete, toda vez
que ele ia passando a enxergava numa delas, entrando rápido e logo pedindo
refrigerante e alguma coisa para comer, pegando tudo isso com satisfação,
vendo-o feliz.
Mas, certo dia, eu estava parando o carro em frente a uma lotérica, quando o
avistei em frente a mesma, e, como sempre, ele se aproximou de mim, então
aproveitei e dei-lhe Cr$5 mil e alguns volantes da Loto, para que fosse fazer o
meu jogo, enquanto eu ia a outro lugar, antes que fechasse, pois já era quase
18 horas, quando o comércio fechava.
Procurei-o na volta e não o encontrei. Mas, ao encontrá-lo depois, por umas
duas vezes, ele se fazia de esquecido, e depois passou a me evitar.
Eu, sinceramente, não me importei! Mas, tempos depois, tendo ele já lá para
seus 16 anos, candidatei-me à vereadora
e ele apareceu ao meu lado pedindo algumas propagandas para distribuir com
o povo que estava assistindo os shows e discursos, em torno de um trio
elétrico. Minutos depois, um colega entregava-me um maço delas, dizendo:
“Tomei-as de
um garoto que estava jogando tudo para cima!” Dessa vez, para mim o pivete
tornou-se feio: aquele não era mais o pobre garoto que eu tanto valorizava e
esperava, com minha ternura, que se tornasse alguém.
No entanto, com a chegada do 14º Batalhão da Polícia Militar, um dos seus
comandantes, o major Walter, criara um pequeno contingente deles, e, a partir
daí, os pivetes desapareceram das ruas da cidade.
Somente agora, em 1991, poucos dias antes da festa de São João, foi que voltei a rever o
Sérgio. Já com seus 18 anos mais ou menos, e embora de constituição franzina, mostravase forte, sereno e vestido como um rapazinho.
Se a compreensão e a ternura de uma mãe não forem suficientes, a força e o exemplo de
um pai serão as melhores armas para modificar o comportamento de quem, por tudo isso,
sempre sentiu falta.
Já no início da crônica, a autora apresenta o garoto: “um pivete”. Essa é certamente a visão
de grande parte da sociedade, que direciona aos meninos e meninas de rua essa identidade.
Embora não esteja explicito no texto, é evidente que esse menino, que se encontrava nas
ruas de Santo Antônio de Jesus, era de família desestruturada, pois estava sempre
perambulando, coincidentemente encontrando constantemente Celina D’Ávila. Houve uma
gradação do pensamento desta em relação ao garoto: desde a sua confiança e aproximação
até a perda destas, por decepcionar-se com ele, pelos fatos ocorridos e citados na crônica.
77
D’ÀVILA, Celina. Do cotidiano da gente. ART – CONTEMP, Salvador / BA, 1992, p. 50/51.
O texto retoma diversas memórias, desde o fato de a ação da polícia ser a forma de retirar
meninos das ruas; a forma e o exemplo do pai em contraposição à ternura da mãe, isto é, a
escolha da severidade como modelo de educação; o pivete, cujo modo de vida se
caracteriza por pedir, abusar, roubar, já que era uma “larápio”.
A cronista buscou demonstrar, no início, que tinha uma posição diferenciada da dos outros,
já que estava sempre conversando, apoiando, “pagando tudo isso com satisfação, vendo-o
feliz.” No entanto, o adolescente não respondeu positivamente à confiança a ele
direcionada. Seriam assim todos os “meninos de rua”?
Se Sérgio tornou-se feio com o decorrer do tempo, tal posição coincide com a ideologia
dominante, para quem crianças e adolescentes de rua são apenas menores, caso perdido e
um perigo para a sociedade.
A ESTEREOTIPIA DO MAL NOS CONTOS DE FADAS
Maria Lúcia Cardoso Santos 78
Consolidação de um gênero
Durante muito tempo, a literatura infanto-juvenil era considerada como uma literatura
inócua, sem objetivos determinados, uma modalidade considerada inferior por alguns
pesquisadores. Por ser destinada a crianças, não significa que a literatura infantil está
destinada apenas ao público infantil e sim aos anseios dos leitores que se identificam com a
mesma. Atualmente, a literatura infantil é compreendida pelos estudiosos de outra maneira.
É sabido que ela tem uma contribuição peculiar no desenvolvimento social, intelectual e
emocional da criança.
No século XVII, no fervor das mudanças na estrutura da sociedade (ascensão da família
burguesa, reorganização da escola, etc) a literatura infantil ganhou força, constituindo-se
como gênero. É nessa época que surgem os livros escritos por pedagogos, destinando-os a
objetivos educacionais. Apenas no século XVIII essa modalidade passou a ser encarada
com características próprias do público a quem era destinada, chegando ao Brasil no final
do século XIX, com a contribuição da literatura oral doada pelo folclore das culturas
indígenas, européias e africanas. A década de 70 daquele século, foi de grande progresso
no desenvolvimento da literatura infantil brasileira. Muitas editoras investiram sem medo
nessa nova modalidade, porém a produção constitui-se basicamente de traduções de
clássicos que eram importados para o Brasil, em desacordo com o nosso contexto; mesmo
assim o crescimento era notável; e isso ocorreu devido à contribuição de dois fatores: o
crescimento da classe média e ao aumento do nível de escolaridade provocado pelo
incentivo à leitura.
Contos de fadas
A palavra fada, etimologicamente provém do latim fatum (destino, fatalidade,
oráculo). (...) são de origem celta e pertencem a área dos mitos. (...) Elas ocupam
um lugar central na estrutura dos mitos e contos de fadas, pois detêm o poder de
tornar possível a realização dos sonhos e/ou ideais inerentes à condição humana.
Esses seres fantásticos ou imaginários são dotados de grande beleza e se
apresentam sob a forma feminina.” (David, 2008)
Segundo Chevalier (apud OLIVEIRA, 1999), as fadas representam simbolicamente a capacidade que o
homem possui para construir, na imaginação, os projetos que não pode realizar.” (DAVID, 2008).
78
Estudante do 7º de Letras Vernáculas do Campus II da UNEB. Trabalho apresentado a profª Ângela
Márcia como atividade avaliativa da disciplina o Estético e o lúdico na Literatura Infantil.
A psicanálise afirma que toda a ideologia presente nos contos destinados a criança estão
diretamente ligados aos desafios e dilemas enfrentados pelo homem até seu
amadurecimento. Nesse ponto, os contos de fadas ganham atenção especial, pois propiciam
à criança o reconhecimento do mundo a sua volta e a descoberta de si mesmo. Por meio da
dicotomia mal e bem os contos representam, de maneira fantástica, questões universais de
relação de poder e valores, em um misto de realidade e fantasia. O enredo básico dos
contos de fadas trazem obstáculos a serem vencidos ou enfrentados, para que assim a vida
possa prosseguir de forma natural, espontânea e feliz.
Estereótipos
Segundo o minidicionário Luft, estereótipo é:
1
Clichê estereotípico
2
Chavão, lugar
comum. Ao passo que estereotipar, segundo o mesmo autor é 1. imprimir pelo processo de
estereotipia; 2. tornar fixo, inalterável. Da junção dos diversos conceitos existentes para a
palavra, a definição que se adequa melhor a este trabalho é a de imagem preconcebida de
determinada pessoa, coisa ou situação Nesse contexto, remete à imagem do personagem
mau, presente nos contos de fadas e contos maravilhosos.
Aspectos do mal
Com o fim de verificar as formas tradicionais e atuais de caracterização das personagens do mal, foram
postos em paralelo alguns contos tradicionais, como Gato de Botas, a Moura Torta – conto espanhol que
remota ao tempo em que a pensínsula ibérica se libertava do domínio árabe – (fronteira do tempo, 2008),
Branca de Neve e Os Três Porquinhos, com outros contemporâneos, como A Bruxinha que Era Boa, de
Maria Clara Machado, A Bruxa e o Caldeirão, de José Leon Machado, O peixinho e o Gato, de Lenira
Almeida e Lobinho na escola da enganação, de Ian Whybrow.
Maria Clara Machado, escritora, diretora e atriz de teatro, principalmente infantil, que se consagrou com a
peça mais famosa do Brasil, “Pluft, O Fantasminha”, com A Bruxinha que Era boa, faz uma inovação
relativa, pois na mesma peça contracenam a “velha” e a “nova” bruxa (a primeira apresentação data de 1958).
Fredegunda, Fedorenta e Zarolha, são as companheiras de Ângela, a bruxinha boa. A presença do estereótipo
“personagem do mal” principia pelo nome das companheiras de Ângela, quanto às vestes, são roupas escuras,
maquiagem pesada, chapéu de cone. Enquanto suas colegas de escola de bruxarias dão orgulho ao Imperador
maior, Dom Belzebur III, com suas maldades, o máximo que Ângela consegue fazer é cavalgar na vassoura.
Mas a reprovação no exame da escola de malcaratismo a preocupa, porque o castigo é a prisão na torre
escura (ou torre de piche), o que a privaria de “nunca mais ouvir o canto dos pássaros ou voar pelos céus,
que são as suas diversões favoritas” (MOURATO, 2006). Enquanto suas colegas, as bruxas más, “têm como
missão contrariar a alegria na floresta, cheia de fadas, duendes e crianças felizes” (ibidem), Pedrinho, um
lenhador, parece não se incomodar com a aparência de Ângela (expressão pesada, maquiagem e roupas
escuras). Há, entretanto, algumas versões da peça em que alguns diretores já diferenciam a “bruxa boa”,
dando-lhe feições delicadas e roupas de cores leves, salvando-a da torre e dando-lhe o nome de bruxinha boa.
Contrapondo às bruxas tradicionais, como em Branca de Neve, com as de Maria Clara Machado e a de José
Leon Machado ( Moura Torta), o que há de inovador são somente as intenções e os atos de Ângela que, como
o próprio nome diz, são muito angelicais: só quer sair voando com a vassoura, ouvir o canto dos pássaros e,
além disso, estabelece uma amizade com um ser humano, o que é inconcebível às “velhas bruxas”.
Em A Bruxa e o Caldeirão, José Leon, autor da nova geração literária portuguesa, cuja “temática das suas
obras vai desde a questão das origens, passando pelo fim do mundo rural, até à perda da memória cultural
da sociedade moderna”, (Wikipédia), apresenta destacada ilustração de uma mulher magérrima, coberta de
vestes escuras, de tons em preto e vinho (em desalinho), feições grosseiras, nariz adunco, detentora de um
caldeirão que apresentou um furo. É nitidamente perceptível a permanência da tradição nas personagens de
contos de fadas, pois verifica-se a reprodução do estereótipo “bruxa – expressão do mal” nas vestes e nos
atos, como se comprova no trecho seguinte, em dado momento da negociação da compra do novo caldeirão:
“– mas avisou-o – acrescentou a bruxa – Se lhe acontecer o mesmo que o outro, pode ter a certeza que o
transformarei em sapo” (Domínio Público, pág. 8).
Tanto em Charles Perrault com ‘O Gato de Botas”,quanto em Lenira Almeida Heck ( professora e escritora
contemporânea de livros infantis, obras disponíveis no site Domínio público), com O Peixinho e o Gato, a
caracterização do personagem “gato” é como um indivíduo cheio de audácia e artimanha, dotado da arte da
“esperteza”, proeza que utiliza para atingir seus objetivos pessoais, com Lenira e para agradar seu dono, com
Perrault. Lenira ainda caracteriza o gato como terrível, malandro e desonesto: “ escuta aqui peixinho otário,
se eu fosse honesto, não teria a fama que tenho. (...) E, quando meu dono chegar, miarei suavemente, me
enroscarei na sua perna, lançarei um doce olhar, e tudo estará resolvido.” (HECK, pág. 17). Vale salientar
que essas duas obras citadas, segundo Coelho (1998), constituem o que ela denomina de “contos
maravilhosos”, e não contos de fadas. Todavia, julgamos importante registrar a caracterização da personagem
“gato” no enfoque estereotipado.
Ian Whybrow, professor e escritor de literatura infantil a partir de 1989, em Lobinho na escola da enganação,
conto maravilhoso, faz uma inferência à tradicional história do lobo mal, Os Três Porquinhos, inovando ao
tratar de um lobo que nascera bonzinho e, em virtude desse fato seus pais, preocupados, colocam-no na
escola do tio mal, o lobão. Ele nasce bom, seus pais a principio acreditam ser “coisas da idade”, mas depois,
preocupados, colocam-no para aprender as nove regras do malcaratismo. Ele aprende, mas, “desvirtua-se”
com os lobinhos escoteiros. Denota-se nessa obra, apesar da tentativa de inovação, a permanência da relação
animal – lobo, com o caráter – mau. É perceptível, inclusive, a diferenciação no léxico “lobinho x lobão”,
para destacar “lobo bom” e lobo mau”.
Considerações finais
Da breve análise realizada em algumas obras, constata-se que, resguardadas algumas
inovações, os contos de fadas ou contos maravilhosos estão sendo (re)contados com as
marcas tradicionais.
Ou seja, caracterização do personagem mau como algo feio,
medonho, mal vestido e mal encarado, contrapondo-o com personagens delicadas, bonitas
e benquistas, representativas do bem. Em suma, a estereotipia do mal em algumas obras
sofreu uma leve maquiagem, mantendo-se o teor original. Se essas marcas são positivas ou
negativas à literatura infantil e à relação direta que estas obras têm com o processo
formativo da criança, não é da abrangência deste trabalho. Resta-nos, todavia, a certeza da
importância da fantasia, da estimulação do maravilhoso, do mundo imaginativo infantil
para o desenvolvimento sadio da criança.
Referências
COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. Série Princípios. São Paulo: Ática,1998.
(p.11)
DAVID, Flávia Rocha. Os contos de fadas, da tradição a contemporaneidade. Internet.
Disponível em: http://www.webartigos.com/articles/921/1/os-contos-de-fadas-da-tradicaoa-contemporaneidade/pagina1.html (acessado em 31 de maio, às 7:20 horas)
HECK, Lenira Almeida. O Peixinho e o Gato. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eu00002b.pdf.pdf (acessado em 27 de
maio, às 21:15)
MACHADO, José Leon. A Bruxa e o Caldeirão. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pv00001a.pdf (acessado em 27 de
maio, às 21:15)
MOURATO, Paula. A Bruxinha que Era Boa enfeitiça crianças em palco. Diário de
Notícias. Disponível em: http://dn.sapo.pt/2006/04/15/cidades/a_bruxinha_era_boa _enfeitica_crianca .html (acesso em 31 de maio de 2008, às 22:00 horas).
SERRA, Elisabeth D’Angelo.(org) Trinta anos de literatura pra crianças e jovens –
algumas leituras. Coleção leituras do Brasil. São Paulo: Mercado das Letras, 1998.
TRAVESSIA, Livraria na. Lobinho na Escola da Enganação. disponível em:
http://www.travessa.com.br/LOBINHO_NA_ESCOLA_DE_ENGANACAO/artigo/fe3595
-17-8fb7-4ecb-bb18-460deec68dcb (acesso em 31 de maio, às 22:30 horas)
TEMPO, Fronteira no. Contos de fadas. disponível em:
http://fronteirasnotempo.blogspot.com/2007/04/contos-de-fadas-moura-torta.html (acessado em 31 de maio, às 7:00 horas)
ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2005.
A TRANSITORIEDADE DA VIDA EM CECÍLIA MEIRELES
Marcelo Brito da Silva ∗
INTRODUÇÃO
Cecília Meireles (1901-1964) estreou como poeta em 1919 com Espectros e produziu até o
ano de 1963, sendo Solombra a sua última obra publicada em vida. Esse período foi
marcado, do ponto de vista filosófico, pela influência do existencialismo, que definiu o
homem como “um ser para a morte”, ou seja, que sabe que é finito e que, por isso, precisa
encontrar em si mesmo o sentido de sua existência. Segundo Marilena Chauí,
para a maioria dos existencialistas, dois eram os modos privilegiados de o
homem aceitar e enfrentar sua finitude: através das artes e através da ação
político-revolucionária. Nessas formas excepcionais da atividade, os humanos
seriam capazes de dar sentido à brevidade e finitude de suas vidas (1997, p. 52)
Essa forma de entender o ser e a realidade afetou profundamente as artes de modo geral e a
literatura em especial, no século XX. O que pretendemos demonstrar nesse artigo, através
de uma seleção de poemas, é a presença desse sentimento de transitoriedade da vida na
obra ceciliana, que leva, em vários momentos, a poetisa a buscar a ausência e o nada, como
afirmou Bosi (1997). Nessa mesma linha de pensamento, Massaud Moisés afirma que:
a fugacidade do tempo e da vida e dos desencontros da paixão amorosa, porque
também sujeitos à universal transitoriedade, constituem forças motrizes desse eu
lírico angustiadamente debruçado sobre a própria interioridade e sobre o
espetáculo da Natureza (1996, p.136).
É importante destacar que as experiências constantes da autora com a morte e o infortúnio
familiar, desde a infância, deixaram marcas profundas em sua poesia, que ajudam a
explicar a presença recorrente do tema da brevidade da vida, como ela mesma certa vez
declarou:
Nasci no Rio de Janeiro, três meses depois da morte do meu pai, e perdi minha
mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram
muitos contratempos materiais, mas ao mesmo tempo me deram, desde
pequenina, uma tal intimidade com a morte que docemente aprendi essas
relações entre o Efêmero e o Eterno. Em toda a vida, nunca me esforcei por
ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de
tudo é o fundamento da minha personalidade (VIRTUAL book store).
∗
O autor é graduando do curso de Licenciatura em Letras Vernáculas, da Universidade Estadual de Feira de
Santana.
ESTUDO DO TEMA A PARTIR DOS TEXTOS
Passemos ao exame de alguns poemas (todos os oito poemas analisados foram extraídos da
terceira edição de Antologia Poética, de Cecília Meireles).
Máquina breve
O pequeno vaga-lume
com sua verde lanterna,
que passava pela sombra
inquietando a flor e a treva
— meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva;
o pequeno vaga-lume,
queimada a sua lanterna,
jaz carbonizado e triste
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.
Parecia uma esmeralda
e é um ponto negro na pedra.
Foi luz alada, pequena
estrela em rápida seta.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo
sabe que não a conserta.
Máquina Breve é, a começar pelo título, uma metáfora que aponta para a fugacidade da
vida. Revela os paradoxos desconcertantes da existência: o vagalume, que num momento
passeava triunfante exalando vida, logo se torna um simples corpo carbonizado levado pelo
vento. A estrela em rápida seta encontra invariavelmente a precipitada queda. A autora
coloca o problema da brevidade da vida como uma questão inexorável, pois o maior sábio
do mundo sabe que não a conserta.
Canção
No desequilíbrio dos mares,
as proas giram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.
Eu te esperei todos os séculos
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto
Quando as ondas te carregaram
meu olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.
Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.
E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro destas águas sem fim.
Selecionamos esse poema para ilustrar um dado interessante, que tem a ver com o tema em
apreço, a recorrência da idéia e do termo “morte” e seus correlatos nos poemas cecilianos
(e morri diversas mortes). Dessa forma, encontramos a idéia e a expressão “morte” em
vários poemas, como Canção, Balada das Dez Bailarinas no Cassino, Lamento do Oficial
por seu Cavalo Morto, Motivo da Rosa, Discurso, Aceitação, Motivo, Mulher ao Espelho,
dentre outros.
No poema acima, o eu lírico morre diversas vezes em função do amor não concretizado. O
amor, como tudo nessa vida, na visão da poetisa, é marcado pela fugacidade.
Panorama além
Não sei que tempo faz, nem se é noite ou se é dia.
Não sinto onde é que estou, nem se estou. Não sei de nada.
Nem de ódio, nem amor. Tédio? Melancolia.
-Existência parada. Existência acabada.
Nem se pode saber do que outrora existia.
A cegueira no olhar. Toda a noite calada
no ouvido. Presa a voz. Gesto vão. Boca fria.
A alma, um deserto branco: -o luar triste na geada...
Silêncio. Eternidade. Infinito. Segredo.
Onde, as almas irmãs? Onde, Deus? Que degredo!
Ninguém.... O ermo atrás do ermo: - é a paisagem daqui.
Tudo opaco... E sem luz... E sem treva... O ar absorto...
Tudo em paz... Tudo só... Tudo irreal... Tudo morto...
Por que foi que eu morri? Quando foi que eu morri?
Aqui, diferentemente do que faziam os poetas românticos que desejavam ou buscavam a
morte como fuga, Cecília Meireles simplesmente antevê a morte como uma realidade
irremediável, que não conduz às trevas ou à luz, mas ao nada.
Noções
Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.
Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que
a atinge.
Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se
encontram.
Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.
Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e
precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e
inúmera...
Nesse poema, a autora parece sugerir que a solução para o peso insustentável da
transitoriedade é a indiferença. Para ela, a virtude consiste em transcender para além das
angústias advindas dessa consciência de finitude. Alguns dos versos acima lembram o
poema Motivo, que veremos mais adiante e no qual a poetisa confessa: não sinto gozo nem
tormento / atravesso noites e dias no vento... Vale lembrar que, no poema acima, Cecília
lança mão, novamente, de um substantivo que lhe é caro: “existência” (Veja também
Panorama Além).
Pássaro
Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.
Ele amava a água sem sede,
e, em verdade,
tendo asas, fitava o tempo,
livre de necessidade.
Não foi desejo ou imprudência:
não foi nada.
E o dia toca em silêncio
a desventura causada.
Se acaso isso é desventura:
ir-se a vida
sobre uma rosa tão bela,
por uma tênue ferida.
O que foi dito sobre Máquina Breve se aplica também ao poema Pássaro, pois ambos
sinalizam para a fragilidade e transitoriedade da vida. Mais uma vez Cecília recorre ao
tema “morte” em sua poesia.
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Nesse poema o eu lírico toma consciência do seu próprio “passamento”. O tempo é tão
veloz que, às vezes, mesmo algo tão previsível e invariável como o envelhecimento nos
pode surpreender (Eu não dei por esta mudança tão simples, tão certa, tão fácil). O poema
que segue, como o anterior, revela essa consciência de finitude, uma regra geral da vida
que não isenta nem a vaidade feminina. A autora, como mulher, vive e externa essa
experiência também nos versos que seguem:
Mulher ao espelho
Hoje, que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.
Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz,
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.
Que mal fez, essa cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se é tudo tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?
Por fora, serei como queira,
a moda, que vai me matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.
Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.
Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho
Por último, escolhemos Motivo que se constitui uma espécie de poema-síntese de tudo o
que abordamos em relação ao tema proposto. Nele constatamos, seguindo a análise
sugerida por Massaud Moisés, uma verdadeira profissão de fé literária: o louvor do
instante, como expressão do eterno; o ser poeta (“não sou alegre nem sou triste: sou
poeta”); o sabor “das coisas fugidias”; o culto do abstrato; o elogio da poesia (“A canção é
tudo”). (1971, p. 455)
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Conclusão
A autora estudada representa a voz feminina mais sonora das nossas letras e, como pensa
Massaud Moisés, “inscreve-se sem favor nenhum entre os maiores nomes da poesia
brasileira do século XX” (1996, p. 136). Este artigo, embora analise uma breve seleção de
poemas, serve para sinalizar que o tema da transitoriedade da vida perpassa a poesia de
Cecília Meireles como nota dominante, conseqüência de um momento histórico marcado
pela mundividência existencialista e em virtude das cicatrizes que ficaram na alma da
poetisa deixadas pela experiência de morte na família, sentida desde a infância.
Referências
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 35 ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 9 ed. São Paulo: Ática, 1997.
MEIRELES, Cecília. Antologia Poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1963.
MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1996.
MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através de textos. 20 ed. São Paulo: Cultrix,
1997.
VIRTUAL book store. Disponível em <http://vbookstore.uol.com.br/biografias/cecilia.shtml>
Acesso em: 06 jun. 2008.
NOVOS TEMPOS: LAMPIÃO E O CORDEL NA INTERNET
Rubervânio da Cruz Lima ∗
INTRODUÇÃO
O presente texto, que se direciona a todos os pesquisadores e estudantes das áreas de
leitura, literatura de cordel e cultura popular, bem como a interessados na temática do
cangaço e suas manifestações culturais, aparece como objeto de realce nas novas formas de
escrita e propagação da Literatura de Cordel. Os cordelistas além de suas produções no
modo tradicional de confecção dos livrinhos, muitos ainda conservando as tradições
artesanais de impressão e venda, contribuem para uma modernização de seus cordéis,
divulgando-os na internet, através de sites, blogs, e-books e, principalmente através do
Orkut, um site de relacionamentos que conta com mais de vinte milhões de membros
associados, até o presente momento, fazendo muito sucesso no Brasil.
Que a internet se mostra uma ferramenta magnífica para enriquecimento do conhecimento,
juntamente com os livros, dando subsídios para a formação acadêmica, não temos dúvida.
Entretanto, é um recurso que deve ser criteriosamente analisado, entre informações falsas e
verdadeiras, já que essas informações são disponibilizadas por pessoas de vários segmentos
e níveis de informação e opiniões. Constatando-se ser o texto confiável, fidedigno,
podemos usufruir dessas informações em nosso benefício e também desenvolver nossas
próprias criações. Diante disto, vários cordelistas da atualidade estão aproveitando esse
mundo cibernético para propagarem a chamada “Moderna Literatura de Cordel”, que vem
renascendo, através da internet, paralelamente aos seus trabalhos confeccionados e
vendidos ainda de maneira tradicional, por meio da construção artesanal do livreto e da
impressão das capas com a Xilogravura, que é uma espécie de carimbo produzido em
madeira.
O Orkut, em suas inúmeras comunidades sobre os mais diversos temas e teores, agrega um
número gigantesco de membros, cujos objetivos variam entre conhecer e encontrar
pessoas, divulgar seus produtos, além do entretenimento dentre outras coisas, tem espaço
para a leitura e para a literatura, através das comunidades relacionadas, no que a Literatura
de Cordel também achou lugar nesse meio virtual, de modo que com as várias
∗
Pós-Graduando em Estudos Literários, pela UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de
Santana – BA, Pesquisador da Cultura e Literatura do Cangaço vinculado ao Centro de Estudos da Memória
do Cangaço CECA/NECTAS pela UNEB - Campus VIII, Professor de Inglês e Português do ensino
fundamental em escolas públicas, em Paulo Afonso - BA.
comunidades relacionadas ao tema, as pessoas têm oportunidade de ler, comprar e até se
aventurar a produzir suas próprias poesias, no estilo do Cordel, já que um bom número de
cordelistas conhecidos também está ligado nessas comunidades, dando suas contribuições,
teorizando o Cordel e divulgando seus textos para quem desejar conhecê-los.
É com essa perspectiva que adentramos nas particularidades da poesia do cordelista e
apologista dessa moderna forma de divulgação do cordel e da cultura nordestina,
Compadre Lemos, através de seu site pessoal e da comunidade no Orkut, que participa
“Literatura de Cordel”, contendo textos, tanto de sua própria autoria quanto de outros
escritores e participantes, para analisarmos os benefícios dessa nova maneira de propagar a
literatura e a leitura. Percebemos, através de seu texto intitulado “Pois Lampião vai
vortá!”, alguns aspectos do cordel e da influência de Lampião e o cangaço, ainda hoje
presenças constantes na temática dessa literatura peculiar, tal qual acontecia no período do
banditismo no sertão e posteriormente ao fim desse fenômeno nordestino.
O texto apresenta, de maneira resumida, a Literatura de Cordel em suas origens, de modo a
compará-la às formas modernas de propagação dos livrinhos, apontando aspectos que
contribuíram para essa modernização, sendo seqüenciado pelas breves abordagens sobre o
que vem a ser a Moderna Literatura de Cordel e as relações entre o Cordel e o Cangaço e o
Cordel e a Internet, trazendo à tona as inter-relações e aspectos entre essas vertentes. Na
seqüência, surgem as explorações do cangaço na internet, através da análise de alguns
aspectos da poesia de Compadre Lemos.
LITERATURA DE CORDEL: UM PANORAMA
A Literatura de Cordel, de modo geral, significa literatura relacionada às expressões
culturais e que possui o aspecto de ter ganhado força nas feiras e mercados, através da
oralidade, abordando temas diversos, contando histórias e noticiando acontecimentos em
uma realidade de informação escassa do Nordeste, tendo em sua confecção o caráter
artesanal e a comercialização, na maioria das vezes, pelo próprio escritor.
O cordel, no decorrer dos tempos, desde seu surgimento no Brasil, contribuiu para a
autenticidade e o reconhecimento da cultura nordestina, centrando-se mais na oralidade e
trazendo consigo elementos eruditos agregados ao popular, tendo como aspecto marcante a
reivindicação social e política, em que o poeta não é só o repórter da realidade, mas
interfere nela, tentando modificá-la com o seu discurso lírico e avançando diante das
temáticas de cangaceiros, de bichos que falavam de princesas e cavaleiros andantes 79.
A sua origem remete-nos à Espanha e Portugal, de modo que no Nordeste, obteve grande
desenvolvimento, por diversas maneiras, conforme podemos constatar em Galvão 80,
quando argumenta que essa literatura emerge num contexto onde a imobilidade, folclore,
ruralismo e o atraso são marcantes. O nome Literatura de Cordel, oriundo da maneira como
os folhetos eram encontrados à venda nos mercados e feiras, passou por diversas etapas em
seu desenvolvimento, até chegar atualmente ao mundo virtual e computadorizado, com
benefícios aproveitados por vários cordelistas como digitalização da Xilogravura e
impressão offset dos folhetos, bem como da divulgação dos textos na internet 81. Maxado,
ao falar do formato do livrinho, diz:
Os folhetos são geralmente livretos de oito até dezesseis páginas e que tratam mais
de fatos circunstanciais. Já os romances possuem trinta e duas páginas e tratam de
enredos de bravuras, de amor, etc. Estórias são os de mais de trinta e duas páginas.
São impressos em papel-jornal, com o papel da capa colorido. Este papel é o
manilha, ou seja, de embrulho. As capas contêm título, xilogravura, nome do autor
e vinhetas ilustrativas. 82
Tomando como pré-suposto a fala de Curran, temos o folheto como uma extensão da
tradição literária de Portugal, bem como a representação do desenvolvimento e evolução
da tradição oral já existente no Brasil há muito tempo. 83 Com isso, percebemos que, no
Brasil, esse tipo de literatura se desvinculou das suas origens e ganhou forma peculiar, na
sua maneira de escrita em versos e na fabricação atrelada também à confecção das capas
pela Xilogravura.
A Moderna Literatura de Cordel
O Cordel, após ter percorrido um caminho longo desde as suas origens, passando pela sua
autonomia no Nordeste e melhoramentos de sua fabricação e distribuição, surgindo na
figura dos vários cordelistas consagrados e ganhando força, até consagrar-se como genuína
literatura ao gosto popular, no contexto dos dias atuais, aparece com mais um elemento de
elucidação, através dos novos escritores adeptos a essa modalidade de escrita, chamados
contemporâneos. Estes objetivando abrir o leque e possibilitar a propagação de sua escrita,
veiculam-na gratuitamente nos meios eletrônicos, precisamente, na internet, de modo que
79
CAVALCANTI, Carlos Alberto de Assis. A atualidade da literatura de cordel. 2007, p. 13.
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Cordel Leitores e Ouvintes. 2001, p.27.
81
BRASIL, Alexia. Cordel: memória e comunicação em rede. 2006, p. 15.
82
MAXADO, Franklin. O que é Literatura de Cordel?.1980, p 42.
83
CURRAN, Mark J. A Literatura de Cordel. 1973, p. 11.
80
essa escrita ganha força e agrega mais e mais leitores, prováveis interessados em conhecer
mais trabalhos desses cordelistas modernos, criando ambiente para a comercialização de
sua obra e abrindo espaço para que o seu público também opine, crie e desenvolva seu
próprio texto, diante de temáticas e espaços virtuais criados com esses fins.
O escritor Luyten(2005) chama a atenção para o fato dessa literatura ser, atualmente,
fortemente influenciada pela mídia, nomeando esse período de folkmídia, utilizando o
conceito anterior da folkcomunicação. 84
Em se tratando dessa Moderna Literatura de Cordel, cujos elementos principais são o uso
da internet como ferramenta para a expansão universal dos textos, não se desatrelando das
formas tradicionais de produção e venda dos livretos, surgem nesse cenário os poemas e as
pelejas virtuais, embates entre cordelistas. Percebemos um cenário de autores modernos e
pioneiros, que por meio do avanço da informatização e das redes, dão mais um respaldo às
suas produções literárias, utilizando-se do computador e recursos modernos para produzir
suas obras, a exemplo de cordelistas renomados tais como J. Borges e Dila, em
Pernambuco e Abraão Batista em Juazeiro do Norte, que, de certa forma tentam
acompanhar a pressa do presente na evolução do cordel. Eles têm suas xilogravuras
digitalizadas e impressas em offset ou compostas no computador e impressas em “jato de
tinta” 85, abrem espaço para novos escritores se aventurarem nesse campo, compondo um
cenário vastíssimo de novos cordelistas, que se utilizam dos Hiperlinks.
O Cordel e o Cangaço
“Olê mulher rendeira
Olê mulher rendá
Tu me ensina a fazer renda
Que eu te ensino a namorar.” 86
Esses versos, quando soavam no sertão, nas décadas de 1920 e 1930, causavam temor e
admiração, pois podiam ser a anunciação de guerra, sangue ou festa, por parte dos
cangaceiros. 87 Nos momentos de paz, quando estavam escondidos, aliviados das
perseguições das volantes, os cangaceiros procuravam divertimentos variados, como jogos,
84
LUYTEN, Joseph M. O que é literatura de cordel. 2005, p. 8 a 10.
BRASIL, op. cit., p 15.
86
Versos em toada ou baião atribuídos aos poetas do próprio grupo de Lampião, conforme vemos em “Serrote
Preto – Lampião e seus Sequazes” de Rodrigues de Carvalho, 1945, p. 45 e 46. Há relatos e estudos que
afirmam que tanto Virgulino Ferreira, quanto outros de seus cangaceiros criavam e recitavam poemas, quadras
ou músicas.
87
REVISTA SUPERINTERESSANTE, ANO 11 - n.6 – Julho de 1997.
85
apostas, lutas de homens e de cachorros, bebidas, rezas, bailes, entre outras coisas. Nesses
momentos escassos, achavam tempo para compor poemas, quadras, músicas e cantorias,
versejando romances, vitórias, glórias, e muito mais. Havia bons poetas e cantadores entre
os grupos, a exemplo de Gitirana, considerado o maior improvisador do cangaço 88 e
Zabelê, que tocavam e cantavam. Os cangaceiros festejavam a vida, promoviam bailes,
recitações, sem contar que gostavam muito de versos. Na literatura do cangaço há
inúmeras composições que são atribuídas a Lampião e aos cangaceiros. Há histórias
inusitadas, retratando “seqüestros” de tocadores de concertina (sanfona) para
acompanharem os bandos durante as incursões nas cidades e povoados 89. A poesia tinha
participação constante na vida dos bandoleiros das caatingas.
Além dos próprios cangaceiros em suas criações poéticas, incontáveis cantadores, poetas e
repentistas, vendedores de cordel nas feiras sertanejas também cumpriam com sua parte, na
propagação do mito lampiônico, relatando em seus versos os acontecimentos e fantasias a
respeito do Rei do Cangaço, o que foi um dos fatores marcantes para a circulação das
“notícias” do cangaço. O tema Lampião e Cangaço estavam sempre entre os mais usados
pelos cordelistas, que contribuíram também para a propagação do temido cangaceiro como
herói e invencível. O cordelista José Ferreira da Silva, Dila, em uma matéria do New York
Times disponível na internet, diz que a temática de Lampião e o cangaço nunca saem de
moda e diz já ter perdido a conta de quantos cordéis sobre o mito escreveu. 90 Tanto
contemporaneamente, como posteriores à sua morte, surgiram vários textos em cordel
sobre a temática do cangaço, como podemos constatar num dos textos mais conhecidos e
consagrados do cordel, o poema de José Pacheco da Rocha, A Chegada de Lampião no
Inferno, relato enquadrado no gênero fantástico, cujo início se assinala:
Um cabra de Lampião
por nome Pilão Deitado
que morreu numa trincheira
um certo tempo passado
agora pelo sertão
anda correndo visão
fazendo malassombrado
E foi quem trouxe a notícia
que viu Lampião chegar
o inferno nesse dia
faltou pouco pra virar
incendiou-se o mercado
88
ARAÚJO, Antonio Amaury Corrêa de. Gente de Lampião: Dadá e Corisco. 2003, p. 131.
LIMA, João de Souza. Lampião em Paulo Afonso. 2003, p. 113 e 114.
90
THE NEW YORK TIMES, Junho de 2005.
89
morreu tanto cão queimado
que faz pena até contar 91
Assim como as notícias dos jornais da época, as ações dos cangaceiros eram comentadas o
tempo inteiro pelos promotores da cultura popular. Os poetas populares, os cantadores de
viola e os cordelistas se encarregavam de divulgar as peripécias desses cangaceiros, muitas
vezes fantasiosas, no que atiçavam a curiosidade dos sertanejos. O Cordel, bem como a
poesia popular, caminhou no imaginário do povo, construindo a memória coletiva do mito
Lampião, o que é visto nos dias atuais.
O Cordel e a Internet
A Internet, a rede mundial de computadores interligados, com seu infinito número de
informação circulando nesse ambiente virtual, trouxe para a Literatura de Cordel, como em
todas as outras expressões literárias, um grandioso leque de possibilidades e subsídios, de
modo a projetá-la mundialmente. No entanto, mesmo tendo essa modernização da
informática feito uma revolução nos meios de comunicação e na forma com que as pessoas
têm acesso ao conhecimento, não conseguiu e não conseguirá anular a importância do
livro, da biblioteca, do folhetinho de cordel, enfim, da informação tradicional. Entretanto,
devido a essa ampliação e popularização da internet, alguns poetas e cordelistas, que
produziam seus livros ainda nos moldes tradicionais, aderiram também à praticidade e
abrangência da internet, para tornarem-se conhecidos e divulgarem seus textos.
Essa empreitada no cyber espaço, assunto que já não é tão novo, tem crescido a cada dia,
através da popularização do computador e da internet. Com o advento da internet, abre-se a
temporada das pelejas virtuais, alçada no ano de 1995 pela possível primeira “peleja
virtual” 92, dando início a uma série de incursões de poetas pelo mundo da web, pelo correio
eletrônico, pela conversa instantânea nos chats, pelos blogs, etc. O Orkut reúne cordelistas
experientes e amadores em várias comunidades, como podemos ver em Amorim, ao falar
da utilização desse espaço como ambiente de encontro, no que mostra esse outro abrigo
cibernético para o repente, que são as comunidades no mais conhecido site de
relacionamentos, em que os desafios são constantes. 93 Vejamos um trecho que sinaliza
esses embates e a referência do uso da internet como ferramenta para o cordel, através das
91
ROCHA, José Pacheco da. A Chegada de Lampião no Inferno. Capa com xilogravura de J. Borges 1993, p.
1.
92
AMORIM, Maria Alice. No visgo do improviso ou a peleja virtual entre cibercultura e tradição. 2007, p.
79.
93
AMORIM, op. cit., p 93.
pelejas virtuais e que mostra também o uso da temática da tecnologia para compor os
poemas.
Fiz meu saite com repente,
De poesia a homepeige:
Não basta que tu deseje
Pra passar na minha frente!
Não basta clicar somente
Num link pra acessar;
Como você vai entrar
Sem módem, log-in e senha?
Ronca pau, troveja lenha
No tronco do juremá! 94
Também, na sua versão poética sobre a internet e essa nova técnica de escrever, o poeta
Compadre Lemos, em seu poema, diz:
Na Internet ele lança,
Seus versos, correndo a terra.
Divulgando, desde a serra,
Onde mora, às capitais.
Sua poesia correndo
O mundo, e ele vendo
Os resultados finais.
(...)
E tudo isso se tem
Graças ao computador
Que se fez mediador
Da Poesia Virtual.
É hora, pois, de criar
De produzir e mostrar
Nossa arte genial. 95
Assim como na sua versão primordial, bem como surgindo como um importante veículo de
comunicação, particularmente noticiando peripécias do cangaceiro mais temido e admirado
do sertão, o Rei do Cangaço, o cordel da internet também faz a vez de jornal e informativo,
abordando temas recentes, trazendo para o contexto popular fatos ocorridos, notícias de
jornal, eventos, entre outras coisas, de modo que nos remete à fala de Alda M. R. de
Siqueira Campos, quando confirma:
Como importante veículo de comunicação, exerceu o cordel a função de um
jornalismo popular, onde os poetas, precursores das agências de notícias,
transformaram em rima e registraram acontecimentos importantes de ordem
política, social, grandes tragédias, a exemplo de Lampião e Getúlio Vargas, a
maneira como decorreram, como também as figuras que delas participaram.
Inicialmente conservados na memória das gerações mais antigas que os
transmitiram fazendo assim a sua história através da história popular. 96
94
TAVARES, Braulio; BASÍLIO, Astier. Peleja de Braulio Tavares, o Raio da Silibrina, com Astier
Basílio, o Arquipoeta das Borboremas. 2003, p. 3.
95
96
LEMOS, Compadre. Novos Tempos - O Cordel na Internet. 2006.
CAMPOS, Alda Maria Rodrigues de Siqueira. Literatura de Cordel e difusão de inovações. 1998, p. 81.
Nesse sentido, compreende-se que essa expressão cultural, ao contrario do que se concluía,
está longe de ter seu fim anunciado. A tradição, mesmo com o avanço tecnológico,
continua firme e forte, como é apontado por Maria Alice Amorim, quando mostra que o
moderno e a tradição caminham juntos, no que diz:
Embora se tenha anunciado tantas vezes o fim desta tradição, a literatura de
cordel, sobretudo com o vertiginoso avanço tecnológico dos meios de
comunicação de massa, a realidade é que o folheto se mantém vigoroso neste
século 21. Uma prova de tal vigor são as pelejas virtuais, acontecendo em tempo
real na internet ou correio eletrônico, e que se transformam posteriormente em
folheto impresso, com a versificação e o charme da linguagem poética tradicional
em sintonia com as demandas contemporâneas. 97
Há inúmeros exemplos dessa apropriação dos recursos da informatização e da internet
como ferramenta para projeção do cordel, das cantorias, no mundo virtual e a freqüente
utilização também do computador, não só como instrumentos de inclusão da cultura
popular no contexto cibernético, mas como glosa, para inúmeros poemas que surgem
relacionados ao tema, como podemos ver no repente dos Nonatos, que, partindo do mote
“O planeta movido à Internet/ É escravo da tecnologia”, cantaram:
Transatlânticos no mar fazem cruzeiros
E pelos micros das multinacionais
Hoje tem conferências virtuais
com os executivos estrangeiros
O email é correio sem carteiros,
tanto guarda mensagem como envia
Os robôs usam chip e bateria
e videogame é brinquedo de pivete
E o planeta movido a internet
é escravo da tecnologia
Cibernética na prática e no papel
deixa os seres online e ganham IBOPE
Com Word tem Palm e laptop
e ainda mais PowerPoint e Excel
É possível quem mora em Israel
pelo Messenger teclar com a Bahia
Se os autômatos ganharem rebeldia
tenho medo que a máquina nos delete
O planeta movido a internet
é escravo da tecnologia 98
Podemos ver, também, nos versos de Compadre Lemos, mais exemplos do aproveitamento
do espaço virtual para benefício do cordel e da cultura popular, quando exprime em seu
texto as vantagens dessa nova modalidade e do Orkut como lugar para a propagação do
cordel,:
A coisa está bem mudada,
Não precisa nem de chute.
97
AMORIM, op. cit., p 117.
98
SANTOS, Idelette Muzart-Fonseca dos. Memórias das vozes: cantoria, romanceiro & cordel. 2006, p. 161.
Já existe um tal de Orkute,
Que ajuda muito a gente.
O Poeta, confiante,
Posta o verso e, num instante,
O mundo já está ciente!
(...)
Se são versos de valor,
Na Internet há lugar!
E nós vamos encontrar
Muitos Sites de Poesia,
Diversas Comunidades,
Divulgando raridades,
O que antes não havia!
Este agora é o dia a dia
Do tal Poeta Moderno:
Acabou-se, pois, o inferno
Ele escreve, confiante!
Pois o fato se repete,
No Sertão, a Internet
Leva o Cordel adiante. 99
A vitalidade do cordel, na sua confecção tradicional, mesmo em detrimento das novas
modalidades virtuais e do Hipertexto, não se vê fadada à extinção, mas ao contrário disso,
caminha junto da modernidade, adequando-se nesses novos padrões de escrita, como
constatamos na fala de Diniz, quando aponta que:
Não é possível prever se o folheto de papel chegará a um fim como não podemos
ainda antecipar a morte ou não dos livros no formato tradicional. Outrossim, o
cordel virtual não põe em jogo a natureza e tradição da prática do folhetim.
Muito pelo contrário, o hipertexto revitaliza e confere uma importância ainda
maior, criando um conceito mais complexo e ambíguo que é da cultura popular
virtualizada. 100
O CANGAÇO POR UM FIO
Quem iria imaginar que o cangaceiro mais temido, o famigerado Lampião (que só a
menção do seu nome, em determinados lugares do sertão dos anos 1920 e 1930,
desencadeava alvoroços, em sua atuação de bandido) chegaria ao mundo virtual,
percorreria pelas redes de computadores e pelo cyber espaço, sendo contado e cantado por
pesquisadores, cantadores e cordelistas, admirado por inúmeras pessoas em todo o globo,
como é visto nos sites, blogs, salas de bate-papo, fóruns virtuais, comunidades do Orkut
relacionadas à temática, enfim, nas diversas proporções cibernéticas dos nossos dias.
Realmente, para as manifestações populares e principalmente para o cordel, a internet
99
LEMOS, Compadre. op. cit. 2006.
100
DINIZ, Madson Góis. Do folheto de cordel para o cordel virtual: interfaces Hipertextuais da cultura
popular. 2006, p. 9.
surge como veículo fortuito, dando ao poeta popular que desejar conectar-se, que estiver
disposto a adequar-se a essa nova revolução, a possibilidade de projetá-lo, torná-lo
conhecido e fazê-lo lido, que é o principal objetivo de um escritor.
É nesse pré-suposto que, prestando atenção nas várias comunidades do Orkut que tratam da
temática do Cordel, sejam elas com teor teórico, cômico, estético, percebemos que existem
vários poetas que merecem um estudo de análise de suas obras, como é objetivado nessa
pesquisa, através da figura de Luiz Carlos Lemos, o Compadre Lemos, residente em Juiz
de Fora - MG, um aposentado fascinado pela Cultura Popular, pesquisador e escritor de
Literatura de Cordel, que além de sua produção literária impressa, também atua de maneira
ativa e dedicada na propagação de seus textos por meio da internet, mantendo um site
pessoal e participando com poemas e aportes teóricos em diversas outras culturas virtuais,
como é o caso da comunidade no Orkut chamada “Literatura de Cordel”.
Em uma apresentação bem ao gosto popular, o poeta em questão, ao falar de sua pessoa,
nos presenteia com os seguintes versos, extraídos do poema “Novos Tempos - O Cordel na
Internet”:
Leitor Amigo, permita
Que aqui eu me apresente:
Compadre Lemos, somente,
É o nome que eu tenho usado.
Sou poeta de Cordel,
Não sou nenhum Coronel,
Pra de Senhor ser chamado.
Eu nasci em um estado
Que é lindo, por demais,
Pois sou das Minas Gerais.
E vivo entre montanhas.
Paisagens maravilhosas
Me cercam, nas Alterosas,
E eu não aceito barganhas! 101
Diante da sua própria apresentação, vamos utilizar um de seus poemas para mostrar a sua
destreza no fazer poético e evidenciar a figura de Lampião, presente até hoje como mito no
cenário do cordel.
Lampião, o herói cibernético
Dentre os inúmeros textos contidos na internet sobre o cangaceiro que deixou seu nome na
história, os vários comentários, matérias de jornal, inferências teóricas, trechos de livros,
existe também um infinito de textos poéticos sobre Lampião, de modo que podemos
101
LEMOS, Compadre. op. cit.
encontrar, desde os poemas escritos na época em que o bandido “reinava”, à medida que os
cordelistas e cantadores iam relatando suas peripécias e acontecimentos, aos textos mais
recentes, produzidos pelos novos poetas, adeptos ao mundo cibernético.
Diante disso, trazemos à tona o poema de cordel em Décimas de Patativa do Assaré com
mote, cujo esquema de rimas se dá ABABCCDEED, escrito por um cordelista que, mesmo
com sua produção paralela de textos ao modo tradicional, se aventura nas modernas formas
de propagação da cultura popular, através da internet e especificamente do Orkut, com seu
poema “Pois Lampião vai vortá/ Pa botá o Brasí na linha!”, disponível tanto no seu site
pessoal quanto na comunidade do site de relacionamentos, intitulado “Literatura de
Cordel”. Observemos, então, algumas particularidades e comparações possíveis, tomando
como referencial o estudo analítico de poesia, para evidenciarmos aspectos importantes do
texto. Vejamos alguns trechos selecionados do poema do escritor Compadre Lemos,
seguidos de algumas análises sobre cada parte.
O poema se inicia, sendo ele todo confeccionado com foco no falar sertanejo, por uma
espécie de inconformidade por parte de um cidadão que está cansado de ser enganado pela
política corrupta. Indica alguém que precisa desabafar sobre acontecimentos injustos e
violência, como um grito de socorro para a figura do cangaceiro que, em uma análise
grotesca, mesmo tendo cometido todo tipo de atrocidades, conseguiu fazer com que o
mundo olhasse para a precariedade e abandono do sertão:
Seu Dotô, mi adiscurpe
Pela minha inguinorânça:
Mai nun gosto dessa trupe,
Dos home das liderança!
Uma tropa de safado,
Variadô e deputado,
Só qué é canja de galinha...
Iscuite o que eu vô falá:
Pois Lampião vai vortá
Pa botá o Brasí na linha!
Apois, o Meu Capitão,
No tempo que era vivo,
Nun temia nada não,
Brigava inté sem mutivo!
Se ele vivesse agora,
Cunsertava, numa hora,
O Brasí das Panelinha...
Eu falo, sem duvidá:
Pois Lampião vai vortá
Pa botá o Brasí na linha!
Pá cumeçá o selviço,
Vai oiá pelo Nordeste!
Vai cumpri os cumpromisso,
Cabá ca seca e ca peste!
Vai cabá cos Coroné
Vai dá roça pra Jusé,
Tirá da Zona a Zefinha...
E tudo vai cunsertá,
Pois Lampião vai vortá
Pa botá o Brasí na linha!
Na última parte dos versos, acima, Lampião aparece como a solução para os problemas de
corrupção do Brasil, de modo que, em seu tempo, o cangaceiro, ele próprio, já se intitulava
“Governador do Sertão”, justamente por sua atuação deliberada de crimes e fugas por
quase todo o Nordeste e por, graças a sua inteligência em estratégias de guerrilhas nas
caatingas, ser considerado inovador. Em sua época, em oposição ao texto acima, Lampião
soube fazer as conexões com os Coronéis, que eram donos de terras que detinham o poder
de suas propriedades e regiões, ditando as leis, e por diversas vezes teria dito que as
autoridades o deixassem trabalhar, pois sabia exatamente como cuidar dos sertões. Há, no
presente texto, também, a visão utópica do sertanejo em relação à figura de Virgulino
como herói, como alguém que detém poder, sendo uma figura mitológica, já uma
característica da literatura de cordel ao retratar o cangaceiro.
Podemos constatar a atualidade do texto através de trechos de acontecimentos recentes e
polêmicos, tal qual acontecia aos carrascais remotos do sertão, quando o cordel se valia de
assuntos contemporâneos, servindo também como uma espécie de jornal informativo. Isso
é constatado em trechos, tais como “Vai matá inté o musquito/Da dengue, cum
parabélo,/Pois esse bichin mardito/Num respeita mais chinelo!”, quando se referindo ao
surto generalizado da Dengue, que recentemente apavorou o povo brasileiro, ou ao retratar
o polêmico e trágico assassinato de uma garotinha de cinco anos, em São Paulo, que
causou revolta, conforme expressou os versos:
Vai vin fazeno justiça,
A quem bole cum criança,
Coisa qui nem a Puliça
Nun consegue e nun arcança!
Pra quem matô Isabella
Num tem prisão, num tem sela:
A cova já tá prontinha!
Pus lazarento interrá,
Pois Lampião vai vortá
Pa botá o Brasí na linha!
O poeta, no verso seguinte, aponta uma característica da maioria dos sertanejos até hoje,
tendo na figura de Lampião o herói que ajudava os pobres e que lutava pelos
desfavorecidos. Percebemos que, na época em que o cangaço imperava, Lampião, em
algumas ocasiões, distribuía dinheiro para os pobres e pagava muito bem aos seus
“coiteiros” (pessoas que o recebiam em suas casas, em quem o cangaceiro depositava
muita confiança e que faziam as compras dos suprimentos e munição dos bandos),
estrategicamente, quis realmente passar essa imagem de “bom ladrão”, como mais uma
ferramenta de auxílio à sua sobrevivência, pois, mais do que ninguém, sabia que sua vida
dependia, quase que completamente, desses “coiteiros”, dos sertanejos e dos coronéis que
o tinham como protegido. Até hoje, o cangaceiro Lampião é visto como um Robin Hood
dos sertões, graças à sua habilidade em desenvolver as relações. Vejamos o trecho,:
Quem fala que O Capitão
Foi bandido, e não herói
Já fala sem tê razão,
Pruquê nun sabe onde dói!
Pois Lampião nun gostava
De quem póbe martratava
E munta réiva ele tinha
Dos qui só sabe cobrá,
Pois Lampião vai vortá
Pa botá o Brasí na linha!
O texto passa a mensagem de que, para presidir a nação, o povo desejaria que fosse o
cangaceiro Virgulino Lampião, pelo fato de, o cangaceiro, em diversas ocasiões, ter-se
declarado “Governador do sertão”. Isso mostra o estado de endeusamento, por parte dos
sertanejos, à figura do vilão que cometia atrocidades, mas que também demonstrava ações
de honestidade, no que sabemos, pela forma organizada em que viviam os cangaceiros,
demonstrando respeito ao capitão Virgulino, dedicando tempo à religião, tendo respeito e
admiração a figura de autoridades religiosas como o idolatrado Padre Cícero, de Juazeiro,
repreendendo moças por suas atitudes consideradas devassas, o respeito às mulheres
companheiras dos cangaceiros, por parte dos solteiros dos grupos. Sobre essa questão,
poucos casos de traição dentro dos grupos de cangaceiros, registrados na literatura do
cangaço, tiveram como fim desastroso a morte da traidora, para servir de exemplo, como
foi o caso da cangaceira Lídia, que traiu o companheiro Zé Baiano e pagou com a vida o
deslize 102. Outra característica do comportamento organizado dos bandidos era a lealdade,
fato que tanto Lampião como os outros cangaceiros seguiam estritamente, para demonstrar
que sua palavra e honestidade eram garantia de fato.
Diante desse endeusamento da figura de Lampião, podemos destacar alguns trechos de um
poema do cordelista Vicente Campos Filho, intitulado “A Candidatura de Lampião para
Presidente da República”, que retrata no texto em estudo, a visão propagada até hoje do
mito e evidencia, também, o papel dos poetas e cantadores, desde antes, como promotores
da mitificação de Lampião, tendo-o como solução contra os corruptos.
102
LIMA, João de Souza. op. cit. p. 63 e 64.
Das histórias que surgiram,
No nordeste do Brasil,
Sobre um tal de Virgulino,
Lampião, homem viril,
Tem uma que ficou fora,
Dos registros da história,
Pouca gente já ouviu.
(...)
Me disse que era tanta,
A fama de Lampião,
Que um cangaceiro seu,
Deu sua opinião,
‘Meu Capitão vosmecê,
É quem merecia ser,
Presidente da nação’.
Pois não é que Lampião,
Aceitou logo no ato,
E disse em cima da bucha:
__ Eu quero ser candidato,
E quem não votar em mim,
Só pode ser cabra ruim,
Eu esfolo, capo e mato.
(...)
Lá pras bandas de Angico,
Fuzilaram Lampião,
Mas acabaram também,
Com os planos da nação,
De criar um país novo,
Calaram a boca do povo,
Venceu a corrupção.
No nordeste inteiro o povo,
Chorou a morte do bando,
Do Capitão Virgulino,
Ficavam só comentando,
Ô cabra macho da peste,
Representou o nordeste,
Viveu e morreu lutando. 103
O poema, ao abordar questões relacionadas às estradas e à chegada do progresso, entra em
contradição proposital com os atos do cangaceiro Virgulino, em sua época de bandido,
visto que este, por saber que a construção das estradas e a chegada do progresso
implicariam no fim do cangaço e, conseqüentemente, na sua própria extinção, rebatia as
investidas do Governo e das empresas privadas com unhas e dentes, interrompia como
podia o avanço do progresso. Essa contradição fantasiosa é exposta pelo cordelista
estudado de acordo com os versos: “O Irmão Caminhonêro/Num vai mais achá
buraco/Nas istrada, o tempo intêro,/Pus caminhão virá caco!/Os asfarto, cunsertado,/Os
brocão tudo tapado/As pista, tudo lizinha.../O pogrésso vai chegá,/Pois Lampião vai
vortá/Pa botá o Brasi na linha!”
103
CAMPOS FILHO, Vicente. A Candidatura de Lampião para Presidente da República. 2008.
Há também versos que apontam as novas formas tecnológicas sendo adequadas ao povo,
de modo que o poeta coloca, na figura do cangaceiro Lampião, a incumbência de renomear
inúmeros objetos e nomes relacionados ao computador e à informatização, como uma
forma de deixá-los compreensíveis a toda gente. Podemos constatar, no falar poético, mais
um exemplo da apropriação, por parte dos criadores de versos de cordel, da moderna
tecnologia, como uma espécie de busca por parte dos poetas da conquista do espaço
midiático e do mundo virtual, tornando-se palpável para muitos, de modo a levar o cordel
avante pelo mundo numa maneira nova e abrangente que é a internet Há um reflexo de
valorização do nosso idioma, tão pregado pelo célebre Ariano Suassuna, em repúdio ao
estrangeirismo. Vejamos a animosa seqüência de versos que retratam a nova nomenclatura
proposta por Lampião:
Os nosso computadô
Vai ficá bem mais manêro:
Lampião vai mandá pô
Uns nome bem brasilêro:
Agadê vai sê discão,
O máuse, rato de mão,
Munitô vai sê telinha...
Pa ninguém si atrapaiá,
Pois Lampião vai vortá
Pa botá o Brasi na linha!
Os "bug" vai sê defeito
"Disfragmentá" é imenda,
Anti Virus, parapeito,
Do jeito qui o pôvo intenda!
Suporte vai sê oficina
Os "game" é jogatina,
Deletá é burrachinha...
Nunca mais eu vô errá,
Pois Lampião vai vortá
Pa botá o Brasi na linha!
Os técno, cunsertadô,
Assitênça é digitóro,
Pois Ingrês, faça o favô,
Êsse tróço eu nun decoro!
Os softiuére é pograma
Pois o qui nóis mais recrama
É os nome das pecinha...
Essa moda vai pegá,
Pois Lampião vai vortá
Pa botá o Brasi na linha!
O cordelista, ao se aproximar do fim do texto, apresenta-nos um desfecho triste vivido pelo
personagem-narrador, depois de relatar seus ideais de justiça na figura do cangaceiro, tal
como uma referência ao período da repressão militar, quando as pessoas eram reprimidas
por suas atitudes em oposição à ditadura. Demonstra atitude repressora dos governantes da
nação, ao relatar que não poderá mais escrever, pois acaba de ser preso, mas não perde as
esperanças e continua afirmando que, com a chegada do mito Lampião, inda haverá
mudança. Isso nos remete também ao período em que o cangaço era presente, e os
sertanejos acabavam ficando à mercê da violência e represália, tanto dos bandidos quanto
das volantes que os perseguiam,:
Pur aqui eu vô parano,
Que já chegô a Puliça.
Fôro chegano e entrano
De licença, nem nutiça!
Me déro vóiz de prisão
Vão amarrá minhas mão,
Num iscrêvo mais nadinha,
Eu só disse: - Dêxa istá,
Qui Lampião vai vortá
Pa botá o Brasí na linha!
A caminho da prisão
O povo tá mi apraudino
Uns vem apertá minha mão,
As mocinha até surrino!
E eu, pensano cumigo:
Cadeia num é pirigo
Eu tem padrin e madrinha...
Eles num vai mi ganhá,
Pois Lampião vai vortá
Pa botá o Brasí na linha!
E a todos brasilêro,
Dos qui tem força e corage,
Mermo tano prisionêro,
Eu grito minha menságe:
Ninguém disanima não,
Querdita no Capitão,
Nun demora uma lasquinha...
E tudo aqui vai mudá,
Pois Lampião vai vortá
Pra botá o Brasí na linha!
Uma característica muito utilizada pelos cordelistas no final de sua escrita é um acróstico,
contendo o nome, pseudônimo ou parte dele nos versos finais de quem fez o poema como
uma espécie de assinatura do escritor. Destacamos também a finalização dos versos do
cordelista em estudo, de forma a evidenciarmos o vinculo ainda presente da tradição nas
modernas formas de escrita,:
Cunforme foi atestado,
O Conseiêro adivinha:
Má qui vai sê dimudado
Pa Sertão, e já caminha!
Antonce, é só isperá
Deus tomém vai ajudá
Rezando, nóis chega lá
E o Brasí entra na linha!
Lampião vai vim pra cá
E dividi a farinha!
Mostrá pressa bandidáge:
Onde o povo tem coráge,
Seu país entra na linha!
Em finalização da análise, tendo destacado alguns aspectos relevantes relacionados ao
texto extraído do tópico da comunidade do Orkut e também disponível no site pessoal do
autor estudado, embora não tendo o esgotado por completo, deixamos a guisa do leitor, de
modo que o texto de cordel seja lido e estudado pela simplicidade e, ao mesmo tempo, pela
vastidão de leituras e interpretações possíveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao acompanharmos a trajetória do cordel, desde a sua origem no Brasil, oriunda das
tradições orais e sendo agregada à cultura e ao folclore dos sertões até as expressões
modernas de propagação dos textos por intermédio da tecnologia de informação e da
internet, percebemos que essa modalidade literária, que já foi profetizada que seria extinta,
permanece atual e vívida, ganhando força através da reciclagem dos fundadores e dos
novos escritores que surgem. Nesse âmbito, tendo como finalidade o melhoramento das
técnicas e utilizando-se dos recursos presentes como forma de expansão da modalidade,
observamos o crescente interesse por parte das pessoas pela literatura de cordel e
confirmamos que, através dessa escrita peculiar e do seu espaço no mundo virtual, o tema
Lampião e o cangaço continua sendo um dos preferidos pelos cordelistas e pelos
admiradores dessa literatura, de modo que os Neo-cordelistas, com a ajuda da internet e de
elementos como blogs, chats, fóruns e principalmente o Orkut, disponibilizam seus textos
para a massa, participam de pelejas virtuais, trocam versos em tempo real, contribuem com
aportes teóricos sobre a escrita, mas também, não se desatrelam dos moldes tradicionais do
fazer literário e da confecção dos livretos, perdurando-se com isso, a tradição. A diferença
é que, ao invés de arrumarem seus cordéis num barbante, o livrinho é posto numa grande
teia, aos olhos do mundo todo.
Referências
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tradição. 2007. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obr
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Traço Editora. 2003.
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CURRAN, Mark J. A Literatura de Cordel. Recife: UFPE, 1973.
DINIZ, Madson Góis. Do folheto de cordel para o cordel virtual: interfaces
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LEMOS, Compadre. Novos Tempos - O Cordel na Internet. 2006. E-book Disponível
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Published: June 14, 2005, disponível em:
http://www.nytimes.com/2005/06/14/books/14bard.html?pagewanted=1&_r=1&sq=cordel
&st=nyt&scp=3. Acesso em: 7 de julho de 2008.
SITES PESQUISADOS
www.dominiopublico.gov.br
http://nomeiodonada.blogspot.com/2007/10/o-planeta-movido-internet-escravo-da.html
www.orkut.com
www.compadrelemos.com
www.ablc.com.br (site da Academia Brasileira de Literatura de Cordel)
PEÇAS DE UM MUNDO INCONGRUENTE: UM DIÁLOGO ENTRE
INFÂNCIA E A TERRA DOS MENINOS PELADOS, DE GRACILIANO RAMOS.
Teresa Cristina Fernandes de Carvalho (mestranda do Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Linguagens – PPGEL /UNEB).
Muitos trabalhos e pesquisas sobre a obra de Graciliano Ramos costumam fazer
associações entre suas obras, e às vezes, acabam por cair no equivoco de associações
forçadas, lendo uma obra como apêndice da outra. A esta conclusão parcial chego, após
pesquisas e leituras sobre esse autor, enquanto me proponho a remontar infâncias 104 e
constato e aborreço-me ao encontrar essas esquisitices. A obra não basta, por si só?
Decerto, é comum a recorrência da aridez dos limites humanos e o reencontro de leitores com personagens já
conhecidos, isso fica evidenciado, sobretudo, após a publicação de Infância, onde encontramos a leitura
adulta da vida do menino Graciliano, pistas sobre o nascedouro da poética do escritor, e a discussão inerente
a um estudo autobiográfico: o limite entre invenção e inventário, uma vez que a infância esquiva, árida, de
aprendizagens duras e metafóricas renderam a Graciliano Ramos a charada que este comporta ao afirmar em
suas páginas memorialistas ter “certa afeição por mentiras impressas”.
A proposta deste ensaio é relacionar o tema infância presente nas obras Infância, publicada em 1945 e A
terra dos meninos pelados, que a antecede publicada em 1939 e direcionada para o público infantil.
A terra dos meninos pelados é uma narrativa leve, em que o menino Raimundo tem características diferentes,
sendo um motivo de troça por ter um olho azul, o outro negro e a cabeça pelada. Daí empreende-se a viagem
de Raimundo a um mundo desconhecido: a terra do Tatipirum, onde o menino não só encontra pares e
similitudes, mas uma infância pronta à experiências inusitadas. O mundo apresenta-se possível, um lugar
onde as ladeiras e serras se aplanam para a passagem, os rios se fecham para os pedestres, as árvores
oferecem frutos aos meninos e as aranhas tecem roupas de vestimenta.
Já a obra Infância é considerada pela crítica e leitores, uma obra autobiográfica, na qual
Graciliano narra suas experiências infantis e a memória ambienta a sua escrita, em uma
construção de imagens, que prefiguram a própria infância do escritor. Pretende-se aqui que
104
Realizo, no Mestrado em Estudos de Linguagens – PPGEL – UNEB, a pesquisa intitulada Imagens da
Infância: a leitura nos escritos memorialistas de Gilberto Amado e Graciliano Ramos.
essas obras sejam relacionadas e, para tanto, aponto caminhos e percursos que sustentam
essas relações que se constituem como impressões e não como fim dessas leituras .
Na terra dos meninos pelados, romance infanto-juvenil, amiúde encontrado como paradidático temos como
temas centrais: a viagem e a alteridade, temas que compõem cenários e narrativa, aproxima discussões densas
a uma leveza poética e, sobretudo, aproxima a criança a um dos maiores autores brasileiros.
Penso que a viagem ocupa nessa narrativa um sentido metafórico, de deslocamento de idéias, de mudanças de
perspectivas, uma vez que a narrativa envereda pela viagem imaginária, nos levando ao encontro de uma
outra lógica, de um novo pensar. O texto nos faz olhar por outro ângulo a diferença e a
produção/necessidades de semelhanças, nem sempre viáveis. Mesmo o Graciliano, em um dos seus
depoimentos, reconhece: “Não sou um viajante, mas sempre vivi como uma ave de arribação, como um
cigano”.
O menino Raimundo explana esse confronto: conhece um mundo diferente, encontra meninos parecidos com
ele, conhece coisas novas, faz amigos e volta à sua casa, prometendo retornar ou, pelo menos, contar as
novidades do reino de Tatipirum aos amigos. O menino que experimenta outras noções de mundo, de serras,
de rios, volta para o lar, pois deve fazer a lição de geografia.
O escritor experimenta novos mundos e o mundo que é a escrita e tem a necessidade de memória como
matéria poética, tal como Raimundo experimenta a vida em um outro mundo e volta à sua lição. Onde se
tocam e onde se distinguem ficções da realidade? Quais os pontos de apoio na memória que a literatura, ou
mesmo a ficção, fazem uso?
Quem raspou a cabeça dele? 105 Sobre a alteridade.
A saga do menino que leva o mundo no nome, inicialmente incompreendido e humilhado
por outras crianças, posteriormente não compreendendo e/ou encontrando pares, comporta
descrições e conceitos sobre a infância, fazendo dialogar, a meu ver, as obras em questão.
O menino alvo de troças, que foi Graciliano, interage com o menino de um olho azul e
outro negro, na medida em que a exclusão e rejeição contracenam, já que, sabemos, através
de pistas autobiográficas, que o menino Graciliano era quase cego, estigmatizado por ser
corcunda, frágil e “lerdo”.
Em Infância temos a descrição da exclusão que o menino Graciliano sofria por parte da
mãe e dos familiares: “e a gente da casa se impacientava. Minha mãe tinha franqueza de
manifestar-me viva antipatia. Dava-me dois apelidos: bezerro encourado e cabra-cega”.
O apelido de bezerro encourado deve-se, segundo a própria descrição, a “meus desarranjos,
à feiúra, ao desengonço” em detrimento de vestimentas de seus colegas que “usavam na
105
Os subtítulos são inspirados em passagens das obras.
vila fatiotas iguais e conseguiam modificá-las, ajeitá-las”. (RAMOS,1993, p.130). Aqui
encontramos a necessidade/disposição à semelhança, à paridade. A criança e o desejo do
encontro, que devido à doença e à difícil situação econômica vivida na infância, Graciliano
não pôde encontrar. Vejamos um fragmento em A terra dos meninos pelados, onde o tema
da paridade volta à tona, quando Raimundo encontra um menino sardento que propõe:
- O meu projeto é o seguinte: podíamos obrigar toda a gente a ter manchas no
rosto, não ficava bom?
- Para quê?
- Ficava mais certo, ficava tudo igual.
Raimundo parou sob um disco de vitrola, recordou os garotos que mangavam
dele. (RAMOS, 1996, p.45).
Lembremos que no inicio desta trama Raimundo era um menino solitário e diferente,
enquanto outros garotos faziam troças ora de sua cabeça pelada, ora de seus olhos
diferentes. É nessa discussão sobre alteridade e diferença que Raimundo prossegue:
- Então você acha o meu projeto ruim? [pergunta o menino sardento].
- Para falar com franqueza, eu acho. Não presta não. Como é que você vai pintar
esses meninos todos? (RAMOS, 1996, p.48)
Mais tarde, Raimundo conclui:
- Não senhor, que a gente não é rapadura. Eles não gostam de você?
Gostam. Não gostam do anão, de Fringo? Está ai. Em Cambará não é
assim: aborrecem-me por causa da minha cabeça pelada e dos meus olhos.
Tinha graça que o anão quisesse reduzir os outros ao tamanho dele. Como
havia de ser? (RAMOS, 1996, p.48-49)
O menino Raimundo percebe a diferença como algo inerente ao processo humano,
desconsiderando a similitude como fator de importância. Raimundo reconhece a diferença
em meio à diversidade da qual ele mesmo é um representante. No Cambará, cidade onde
vive Raimundo, ele se torna um menino diferente, assim como o menino Sardento em
Tatipirum.
O pequeno mudo incongruente – sobre a autobiografia.
Observemos a obra Infância e a trama possibilitada pela memória. Acredito prudente que
não caiamos em armadilhas assim como Raimundo e um passarinho em Tatipirum:
- Parece um teatro, cantou um pardal.
Raimundo pôs-se a rir:
Que passarinho besta! Pensa que teatro é gente. Teatro é casa.
Estou falando nos sujeitos que estão dentro do teatro, pipilou o pardal.
Bem, isso é outra cantiga, concordou Raimundo (RAMOS, 1996, p. 28).
A cantiga que agora nos deteremos, é a da autobiografia como sendo um gênero literário de um “discurso
artístico particular”, (LEUJENE, 1996), porquanto o mesmo faz dialogar o real e a imaginação como lugares
possíveis desta “existência narrativa”.
A obras de cunho memorialista como Infância foram agregados outros novos e importantes sentidos a partir
dos Estudos Culturais 106e da mobilidade reclamada por esta “quase-disciplina” 107,que influencia os estudos
literários, bem como as iniciativas de pesquisa a partir de então. A essência desta “teoria-viajante” consiste
na “sua natureza vinculada a contextos históricos e geopolíticos” o que, neste caso, irá contrapor-se a
modelos positivistas de ensino e pesquisa, assinalando o lugar da cultura e do sujeito nos processos
históricos.
As relações entre vida e obra de Graciliano Ramos, entre expressão cultural e
representação tecem o discurso de valor “artístico-biográfico” em Infância. No comentário
sobre o livro feito por Otavio Faria, vemos:
a coincidência das imagens – as da infância e as do escritor já homem- não é se
não o sinal mais sensível da sua admirável fidelidade à verdade humana, à
exatidão dos fatos, à implacável realidade exterior que não sabe ou não quer
disfarçar e deturpar. Por demais escrupulosa ?Ás vezes quase fanática? Mas
como poderia deixar de ser assim se, o homem que escreve, que corrige, que
‘torturava’, que se exarceba no aprimoramento do texto, não é senão o menino
desconfiado, vigiado, espezinhado? (FARIA, 1993, p. 258)
Vemos em Infância o diálogo entre real e imaginário, sensibilidade e razão, história
pessoal e escrita, possibilidades e entraves que um trabalho com memórias proporciona. O
próprio Graciliano comenta e discute os entraves da memória, as armadilhas do que parece
ser , como nos aponta acima o pardal de Tatipirum. Vejamos um exemplo sobre as
armadilhas da memória comentada em Infância:
Acordei, reuni pedaços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que
boiavam no passado confuso, articulei tudo, criei o meu pequeno mundo
incongruente. Às vezes as peças se deslocavam – e surgiam estranhas mudanças.
Os objetos se tornavam irreconhecíveis, e a humanidade, feita de indivíduos que
me atormentavam e indivíduos que não me atormentavam, perdia os
característicos. (RAMOS, 1993, p.17).
Observemos a alegoria que se traça na citação onde o autor (re) une e (re) memora,
esforçando-se por articular um passado confuso – objetos e novidades confessadamente
106
Os Estudos Culturais, segundo pesquisadores, vêm a se configurar como sintoma que se constitui em um
campo de pesquisa que abarca reflexões teóricas de vários outros campos e da realidade sócio-cultural.
107
Heloísa Buarque de Hollanda traz essa referência em seu texto intitulado ‘ A questão do mútuo impacto
entre a historiografia literária e os Estudos Culturais (2004). Segundo esta autora, “Os Estudos Culturais vai
se revelar como sintoma das alterações que vem sofrendo a própria trajetória da migração de idéias e teorias”.
equívocas e incompletas – para a criação daquilo que define ser o seu “pequeno mundo
incongruente”. Essa leitura pueril que o autor nos oferta com “estranhas mudanças” e
“objetos irreconhecíveis” é um exemplar desta narrativa constituída por um lado de
descrição de fatos e objetos a partir da leitura infantil, e por outro, da leitura do adulto da
experiência passada, num re-conhecimento das mesmas.
Decerto são muitas as possibilidades de diálogo e comparação das descrições e temas que
circundam as infâncias, a do menino Graciliano e a do menino Raimundo, da literatura,
sobre a infância e da literatura para a infância.
Sem duvidas, traços da autobiografia deste escritor são exportados para suas outras obras ,
dentre elas A terra dos meninos pelados, mas essa não pode e nem deve ser uma chave de
compreensão. Procurei, senão discutir, ao menos apontar aproximações e vizinhanças entre
as obras, a fim de melhor entendê-las e/ou melhor aproveitá-las.
REFERÊNCIAS
RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1993. [Mestres da Literatura
Contemporânea].
RAMOS, Graciliano. A terra dos meninos pelados. Rio de Janeiro: Record, 1996.
FARIA, Otavio. Graciliano Ramos e o Sentido Humano. In: Infância. Rio de Janeiro:
Record, 1993. [Mestres da Literatura Contemporânea].
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. A questão do mútuo impacto entre a historiografia literária e os Estudos
Culturais. In: Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS, Porto Alegre, v. 10, n. 1, p. 33-38,
2004.
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique . Éditions du Seuil, Paris, 1996.
IV – RESUMOS DOS PÔSTERES
A PRÁTICA LEITORA: UMA PERSPECTIVA DE ALFABETIZAR-LETRANDO
Vânia Ribeiro dos Santos (UEFS) 108
O Brasil Alfabetizado é um programa voltado para a Educação de Jovens e Adultos, em
que a Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, em parceria com a Secretaria da
Educação do Estado da Bahia e o Ministério de Educação, assumiu o desafio sócioeducativo, de reduzir o numero de analfabetos na região, contribuindo para a sua inserção
na sociedade letrada. Portanto, tem como objetivo reduzir o índice de analfabetismo de
jovens e adultos, promovendo a inter-relação entre alfabetizadores, alfabetizandos,
orientadores, coordenadores administrativos e monitoras por meio de uma ação
pedagógica, numa perspectiva sócio-interacionista.
Selecionada como monitora no Programa Brasil Alfabetizado da UEFS atuei na formação
continuada dos alfabetizadores e orientadores pedagógicos dos municípios de Ubaíra e
Milagres no processo de acompanhamento e avaliação da prática pedagógica dos
alfabetizadores com visitas às classes e observação das aulas dos alfabetizadores.
O grupo de monitoras trabalhou sob a orientação da coordenadora pedagógica que, em
parceria com a Pró-Reitora de Extensão, desenvolveram as ações que caracterizaram a
responsabilidade social da UEFS, a qual agregava respeito aos parceiros e aos cidadãos
envolvidos diretamente no programa.
Todo o processo desenvolvido teve a finalidade de compreender a alfabetização de jovens
e adultos no contexto atual, assim como ampliar a reflexão sobre valores sócio-culturais
construídos nos espaços de interação analisar as iniciativas políticas sobre a educação de
jovens e adultos ao longo da história. Pretende também refletir criticamente sobre a prática
do educador deste segmento a partir das concepções sócio-cultural e sócio-interacionista,
de modo a sugerir a continuidade dos estudos dos alfabetizados, no intuito de promover
uma aprendizagem que subsidie a construção social do sujeito a partir da concepção de
letramento.
Com base nesta concepção discutirei como o alfabetizador trabalha a prática leitora na
perspectiva de alfabetizar letrando.
108
Graduanda do Curso de Licenciatura em Pedagogia - 4º semestre, da Universidade Estadual de Feira de
Santana. Bolsista do Núcleo de Alfabetização – NEPA. [email protected].
Relatando a experiência
Cenas do cotidiano
O Município de Milagres foi um parceiro do Programa Brasil Alfabetizado com
implantação de dez turmas de Alfabetização de Jovens e Adultos. Na qualidade de
monitora do Programa, participei diretamente do processo de formação dos
alfabetizadores, assim como fiz o acompanhamento da prática no ambiente da sala de aula,
na intenção de verificar o cuidado que se deve ter ao ensinar jovens e adultos, tendo em
vista que eles são sujeitos providos de uma bagagem previamente construída pelas relações
histórico-sociais estabelecidas no âmbito das suas vidas.
Num momento do acompanhamento, observei a prática da alfabetizadora, diagnosticando
os procedimentos e mediação do conhecimento no ambiente da sala de aula.
A professora - alfabetizadora passou uma atividade solicitando dos alunos que
descrevessem suas férias, mostrando o que sentiu, de que forma aproveitou, entre outras
questões. Muitos não sabiam ler e escrever, então o posicionamento da alfabetizadora foi
dizer que cada um poderia expressar-se da forma que quisesse, através de um texto, de um
desenho, de uma poesia, de uma música, ou seja, formas variadas de comunicação em sala
de aula para além da decodificação.
Após a realização da atividade, ela sugeriu que os alunos compartilhassem entre si as suas
produções. Dessa forma, a professora conseguiu ocasionar o diálogo no/do grupo
contribuindo a partir das práticas sociais de leitura e escrita, para a inserção social dos
sujeitos envolvidos no processo de alfabetização. Por tal procedimento, pode-se perceber
que aprender a ler e a escrever não sugere somente o conhecimento das letras e do modo de
decodificá-las, mas as possibilidades de utilizar esse conhecimento sob a forma de
expressão e comunicação (COLELLO, 2007, p.3).
Com essa experiência, pude entender a relevância e a importância das práticas de leitura e
escrita contextualizadas, o que contribui para a minha formação em relação a alguns
aspectos, abaixo relacionados.
O primeiro dos aspectos refere-se aos resultados da atividade, no momento em que
constatei a participação tão significativa da maioria dos alunos, de maneira que as idéias
foram partilhadas e compreendidas a partir do conhecimento prévio de cada um e do
diálogo estabelecido na apresentação das produções.
Do ponto de vista de Scholze e Rösing, (2007, p. 9) “saber ler e escrever é, para o
indivíduo, uma garantia de existência política e cultural num país, que, por sua vez, se
pretenda letrado e assim desenvolvido”.
A princípio não acreditei que aqueles alfabetizandos pudessem desenvolver o que foi
proposto, porque muitos não sabiam ler e escrever, por outro lado, compreendi a
importância do saber ler e escrever para aqueles sujeitos, levando em consideração que o
analfabeto é visto pela sociedade como ser um marginalizado.
As referidas autoras consideram também, que: “saber ler e escrever significa apropriar-se
das diversas competências relacionadas à cultura orientada pela palavra escrita, para, dessa
forma, atuar nessa cultura e, por decorrência, na sociedade como um todo”. (2007, p.9)
Dessa forma, o fato do indivíduo não saber ler e escrever, não implica que ele não possa
necessariamente discutir ou expor suas opiniões, ou que esse indivíduo tenha que ser
excluído dos vários espaços, porque a ação educativa no ambiente da sala de aula é
responsável por promover a transformação do indivíduo e o conduzir a desvelar o
conhecimento e aquisição da escrita, por meio de um processo de leitura de mundo.
Nessa perspectiva, Freire (1996, p. 30) aponta em sua obra que: “ensinar implica em
respeitar os saberes dos educandos e não simplesmente transferir os conteúdos sem discutir
o porquê daqueles conteúdos” [...], ou seja, apesar de não ser alfabetizado o individuo traz
uma bagagem que deve ser considerada pelo alfabetizador. E para melhor situar esse
sujeito Soares (2000) defende que o indivíduo
[...] pode ser analfabeto, porém ser letrado, na medida em que interage com o
meio social, ouvindo leituras de jornais realizadas por pessoas alfabetizadas, se
recebe cartas que as outras pessoas escrevem, ou seja, faz uso da escrita através
de praticas sociais de leitura e escrita. (p. 24)
Foi justamente o que aqueles alfabetizandos fizeram no momento que foram expor os seus
textos, apesar de alguns não saberem ler, tiveram a capacidade de, através de outras formas
de representação da escrita e leitura, desenvolverem o processo de comunicação, para que
cada pessoa presente naquele espaço pudesse visualizar a atividade desenvolvida por todos.
Isto estimulou a comunicação oral e sua leitura de mundo, através do desenho ou do texto,
expressões que contribuem para incentivar a capacidade inventiva do homem.
Desse modo, fui capaz de perceber que o processo de leitura começa no momento em que
compreendemos e damos sentido às coisas que estão a nossa volta. Ressalto uma fala de
Freire que diz: “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo:
os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (1987, p. 39).
Sendo assim, é importante pensar quais são os limites e as estratégias pedagógicas que
norteiam as propostas para a Alfabetização de Jovens e Adultos no ambiente alfabetizador.
Um segundo aspecto, vale ressaltar a questão do sentimento que o processo de leitura e
escrita causa no indivíduo, também é um fator importante, pois, muitos dos alfabetizandos,
na hora de expressar o seu texto, tiveram emoções distintas (risos, choros, silêncios). Vale
lembrar que diante da individualidade do ser e do texto que cada pessoa produziu, cada um
anunciou uma atitude diferente, exclusiva de cada autor presente ali, ou seja, as pessoas
não se comportam da mesma maneira perante uma poesia, ou um desenho, mas apresentam
reações únicas e distintas.
Um terceiro aspecto se constituiu em existir várias formas de utilizar a leitura em sala de
aula para além da decodificação. Entende-se que a formação de leitores se dá por meio dos
diversos suportes como: o livro, a fotografia, a música, uma pintura, a internet, a
linguagem verbal, entre outras, o mundo da leitura é amplo e mexe com aspectos tanto
cognitivos, quanto sociais, na busca da aprendizagem e na inserção do sujeito no meio
social.
A atividade desenvolvida pela alfabetizadora possibilitou, portanto, formas de utilizar a
leitura e da escrita em sala de aula para além da compreensão do código, ou seja, inseriu a
alfabetização na perspectiva do letramento. Pois, segundo as autoras Scholze e Rösing
(2007) nas práticas leitoras apresentadas de diferentes formas pelas leituras de mundo, a
mediação é essencial para o desenvolvimento e a aprendizagem dos indivíduos.
Assim, é importante situar conceitualmente alfabetização e letramento para o leitor
compreender as diversas possibilidades de leituras estabelecidas nos contextos sociais.
Alfabetização e letramento: aspectos conceituais
A alfabetização durante muito tempo foi considerada algo sistemático, onde o que
importava era a compreensão do código, que se fundamentava no encontro entre fonemas e
grafemas, hoje apesar do histórico do analfabetismo ainda ser significativo e de ainda se ter
indivíduos com práticas reduzidas de leitura, alguns aspectos, como as transformações
sociais, culturais, tecnológicas, políticas, entre outras, contribuíram para a mudança dessa
forma de aprendizagem mecânica, abrindo espaço para uma nova forma de se valer da
leitura e da escrita a qual é classificada como letramento.
Para Tfouni (1995, p. 14), “Alfabetização é processo de aquisição individual de
habilidades requeridas para a leitura e escrita ou como um processo de representação de
objetos, de naturezas diferentes”.
Na alfabetização vista como um processo mecânico, o indivíduo aprende por um processo
de repetição sem analisar o procedimento de aprendizagem dentro de um contexto, o que
dificulta a percepção do mesmo no que tange a interligar os conhecimentos à compreensão
da realidade.
Sob essa perspectiva Soares (2000, p.24) diz que: [...] “alfabetizado é aquele que apenas
aprendeu a ler e a escrever, não aquele que adquiriu o estado ou a condição de quem se
apropria da leitura e da escrita incorporando as práticas sociais que as demandam”.
Já letramento para Tfouni é representado como algo que dá ênfase às questões sóciohistóricas, da construção da escrita.
[...] o letramento, desse modo, não se restringe somente àquelas pessoas que
adquiriram a escrita, isto é, aos alfabetizados. Buscam investigar também as
conseqüências da ausência da escrita a nível individual, mas sempre remetendo
ao social mais amplo, isto é, procurando, entre outras coisas, ver quais
características da estrutura social têm relação com os fatos prontos (1995, p. 21).
O letramento sob esse aspecto, além do conhecimento do código, estimula o indivíduo a
relacionar esse código no seu contexto social.
Desse modo, Soares (2000, p.18) afirma que: “Letramento é, pois, o resultado da ação de
ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou condição que adquire um grupo social
ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita”. Ou seja, não é o
suficiente ler e escrever mecanicamente, mas utilizar essas habilidades a partir das
necessidades que se tem na sociedade.
Para Kleiman (1995, p.19) letramento é [...] “um conjunto de práticas sociais que usam a
escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos”.
Partindo dessa concepção de Kleiman e atrelando-a à formação de Jovens e Adultos, fica
claro que muitos deles apesar de ainda não saberem ler e escrever levam para a sala de aula
todas as suas experiências de oralidade e todas as convivências com o uso da escrita,
mesmo que de forma indireta, quando eles têm contato com rótulos, propagandas, entre
outros.
Dessa forma, podemos caracterizar letramento como a conseqüência do processo de
ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita, algo que pode ser adquirido tanto
por um grupo social como por um indivíduo, no momento em que ocorre a apropriação da
escrita e de suas práticas sociais.
O termo alfabetização e letramento são distintos, mas é necessário manter relação entre
eles, levando em consideração que a concepção que se tem de letramento é fundamental
para resignificar as práticas artificiais de ensino e também para fazer refletir o processo de
alfabetização, criando, portanto, uma nova forma de ensinar que é o alfabetizar letrando.
A prática leitora na perspectiva de alfabetizar letrando
O processo de aprender a ler e escrever é muito importante para caracterizar a vida do
sujeito. Não podemos desconsiderar o principio alfabético e as conveções ortográficas que
são essenciais para formar leitores, todavia o que não se pode é permitir a mera
decodificação do código sem refleti-lo, a partir de uma alfabetização contextualizada e
significativa, como forma de expressão e comunicação, no contexto sócio-cultural em que
vivemos.
Para Colello (2007, p. 5) [...] “a compreensão que hoje temos do fenômeno do letramento
presta-se tanto para banir definitivamente as práticas mecânicas de ensino instrumental,
como para se repensar na especificidade da alfabetização”.
Não se pode esquecer também, da relevância em considerar a variabilidade da língua e a
sua heterogeneidade, já que a língua é um elemento social para que o sujeito seja aceito na
sociedade e possa expressar com naturalidade sua maneira de pensar a partir dos valores
pessoais e culturais pertinentes.
Acreditar que o uso da escrita só é legitimo se atrelado ao padrão elitista da “norma culta”
e que esta, por sua vez, pressupõe a compreensão de um inflexível funcionamento
lingüístico, [...] em síntese, uma prática reducionista pelo viés lingüístico e autoritário pelo
significado político; uma metodologia etnocêntrica que, pela desconsideração do aluno,
mais se presta a alimentar o quadro do fracasso escolar. (Collelo, 2007, p. 5).
Para Cagliari (1991), essa variação tanto na língua portuguesa, quanto em qualquer outra
língua, é um processo dinâmico em constante evolução, que deve ser considerado, tendo
em vista, que "o alfabetizando traz para a escola a variedade lingüística do meio em que
vive, em que aprendeu a falar, e que deve ser respeitada porque interfere diretamente no
seu processo de alfabetização”.
Desse modo, no procedimento pedagógico, é função do professor promover e estimular a
prática leitora, bem como mediar o conhecimento, considerando os saberes que os
educandos já possuem. Para isso, o professor precisar ter um planejamento adequado com
objetivos claros e pertinentes, que mostre o mais relevante para o processo educacional.
O docente partindo de uma prática que estimule o processo metacognitivo do sujeito,
dando sentido ao conhecimento, precisa ter consciência de todo o processo e se preocupar
com a construção e efetivação do conhecimento, de maneira reflexiva e analítica, ao invés
de uma aprendizagem mecânica e sem sentido.
Nessa perspectiva Soares (2004) reflete que:
“Alfabetizar letrando ou letrar alfabetizando pela integração e pela articulação
das várias facetas do processo de aprendizagem inicial da língua escrita é sem
dúvida o caminho para superação dos problemas que vimos enfrentando nesta
etapa da escolarização; descaminhos serão tentativas de voltar a privilegiar esta
ou aquela faceta como se fez no passado, como se faz hoje, sempre resultando no
reiterado fracasso da escola brasileira em dar às crianças acesso efetivo ao
mundo da escrita”.
Por isso, os educadores têm um desafio face ao ensino da língua escrita: O Alfabetizar
Letrando, na tentativa de eliminar as práticas mecânicas do ensino em face de um ensino
contextualizado da língua escrita.
Conclusão
Pretendeu-se neste trabalho mostrar que o professor, através da prática educativa e da sua
intervenção no processo educacional, pode estar inserindo na ação de aprender a ler e
escrever a perspectiva do letramento, desenvolvendo habilidades para que os sujeitos não
realizem esse processo de forma mecânica, mas se auxiliem das práticas sociais de leitura e
escrita, na tentativa de melhor contextualizar o ensino da língua escrita, através do
alfabetizar letrando, tornando, desse modo, o sujeito um cidadão na sociedade letrada.
Referências
CAGLIARI, Luis Carlos. Alfabetização e lingüística. São Paulo: Scipione, 1991.
COLELLO, Silvia. M. G. Alfabetização e Letramento: Repensando o Ensino da
Língua Escrita. http://www.hottopos.com/videtur29/silvia.htm, 2007.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
_________________Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra 17º Edição,
1987.
KLEIMAN, A. B. (org.) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a
prática social da escrita. Campinas, Mercado das Letras, 1995.
SCHOLZE,Lia e Tânia M. K. Rösing. Teorias e práticas de letramento. Brasília:
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2007.
SOARES, Magda. Alfabetização e Letramento, Caminhos e Descaminhos. Pátio, 29,
2004.
_______________ Letramento um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica,
2000.
TFOUNI, Leda Verdinai. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 1995.
A PRESENÇA DA LITERATURA DE CORDEL NO ENSINO DA HISTÓRIA NAS
SÉRIES/ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Marla Matos Moreira (UEFS)*
Michelle Garcia Carvalho (UEFS)*
Milena Santos Rodrigues (UEFS)*
Este trabalho foi encaminhado a partir da proposta da disciplina Fundamentos e Ensino da
História para a Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental, através de um
levantamento feito nas escolas públicas, no Município de Feira de Santana, de como
vinham sendo trabalhados os conteúdos de história nessas séries. Tendo sido observado
que a prática educativa de muitos professores encontra-se restrita ao livro didático.
Diante dessa situação, detectou-se que em nenhum momento das observações e entrevistas
existia uma contextualização da história dos grupos dominantes e a história das minorias,
que estavam representados na sala de aula, ou seja, as histórias de vida e as experiências,
das crianças filhas de trabalhadores rurais, operários, catadores de lixo, empregadas
domésticas, ambulantes, não estavam presentes na fala dos professores.
Portanto, as discussões e reflexões acerca desse panorama fez surgir a idéia de trazer a
literatura de cordel como alternativa para o ensino da história nas séries e anos iniciais do
ensino fundamental, pois a sua utilização poderia servir como veículo de comunicação
popular, uma vez que se aproxima da linguagem oral e versões dos acontecimentos
históricos. Dessa maneira, busca-se, através desse artigo, discutir sobre a prática educativa
restrita ao livro didático, bem como propor uma alternativa de ensino da história atrelado à
literatura de cordel a possibilidade de usá-la em sala de aula.
Prática educativa restrita ao livro didático
Ao abordar a relação da prática educativa com o livro didático é necessário que façamos
uma análise da trajetória de inserção do livro didático no Brasil, para que possamos
compreender o atual significado deste na educação. Segundo Freitag (p. 11, 1997) “o livro
didático não tem uma história própria no Brasil.
Partindo dessa problemática, pode-se notar que uma das primeiras ações da política do livro
didático aconteceu em 1937 com a criação do INL (Instituto Nacional do Livro), órgão filiado
ao MEC. O INL foi uma das primeiras ações do Estado Novo, e era formado por órgãos
menores responsáveis pelo planejamento das atividades, a produção e distribuição dos livros
didáticos.
Ao longo dos primeiros anos da iniciativa de produção do livro didático, foram decretadas
algumas leis “moldando” a atual política do livro didático, como a Lei 1.006 de
30/12/1938, que aborda como competências do livro didático expor os conteúdos das
disciplinas curriculares, e estes serem utilizados pelos alunos. Por meio desta mesma lei foi
criado o CNLD (Comissão Nacional do Livro Didático), um órgão que examina e
seleciona os livros didáticos a serem produzidos.
Segundo Richaudeau (in Dantas, p.11) “o livro didático será entendido como um material
impresso, estruturado, destinado ou adequado a ser utilizado num processo de
aprendizagem ou formação”. Nesse sentido, encontra-se no livro didático a importância de
influenciar na aprendizagem dos educandos. Porém, o livro didático não se limita apenas
ao aspecto pedagógico, mas também aos aspectos que abordam a política, cultura, as
relações que envolvem a sociedade, pois a escola esboça através das suas atividades e
metas o perfil de sujeito que se faz necessário na atual conjuntura social.
O primeiro aspecto, que se refere ao pedagógico, irá analisar a elaboração dos livros
didáticos, levando em consideração que este será distribuído para diferentes realidades, ou
seja, o livro, em muitos casos, não está condizente com a realidade dos educandos. Esta é
uma das críticas de muitos autores, pois a maioria dos livros são elaborados no Sul do país
e distribuídos por todos os Estados, assim sendo, não atendem às particularidades de cada
região. Outro aspecto relevante é o econômico, que está diretamente relacionado aos
investimentos do governo e suas ações para arrecadar recursos para fabricação e
distribuição dos livros. O terceiro aspecto é o ideológico, que segundo Dantas (1984,p. 15),
“o livro didático enquanto instrumento educacional permite a passagem da cultura oral à
escrita”, ou seja, os aspectos ideológicos estão relacionados aos conteúdos que serão
abordados.
A partir desse breve levantamento histórico, pode-se notar que o livro didático é um
instrumento que vem auxiliando os professores na sua prática educativa. Porém, em muitos
casos, não colaboram com os professores nesse processo, devido à qualidade dos mesmos,
uma vez que os conteúdos são desvinculados da veracidade, utilizando-se, em alguns
casos, de gravuras para desvincular o foco do assunto.
Ao se analisar o livro didático de história, percebe-se que este possui o ensino
fragmentado, os conteúdos reproduzem uma história que não condiz com os fatos reais, ou
não abordam os assuntos completos, excluindo fatos importantes para o ensino de história.
Desta forma, o livro didático, pode ser visto como um “vilão” no processo de ensinoaprendizagem. Porém, não se pode responsabilizá-lo por completo uma vez que este é um
instrumento relevante na prática educativa.
Assim, podemos concluir que o livro didático é importante no processo de ensinoaprendizado dos alunos, porém não pode ser visto como a única fonte histórica na prática
educativa. Nesse processo, os professores podem recorrer a outros instrumentos didáticos,
como a literatura de cordel, que possibilita uma analise da história retratada, na grande
maioria, pelas camadas populares.
Uma alternativa para o ensino de história: literatura de cordel
A prática educativa do ensino de história nas séries iniciais estava condicionada à atividade
de cunho mecanicista e a escola como “representante oficial” dos interesses dominantes.
No atual momento educacional, não é mais possível continuar vendo a escola como um
campo de atuação unicamente das manifestações culturais dominantes, uma vez que tem
como princípio básico a formação de cidadãos na sua expressão mais ampla e democrática,
afinal vivemos em uma sociedade em que a diversidade política e cultural são múltiplas.
Nesse contexto, faz-se necessário a construção de uma prática educativa e pedagógica que
privilegie as diferenças existentes no próprio ambiente da sala de aula, e lembrar que
dentro desta existem alunos reais, concretos, afetados pelas influências históricas, sociais,
políticas, econômicas, culturais, as quais atuam sobre seu modo de ser, viver, compreender
e atuar no mundo.
Nesse processo, um educador que se preocupe com que sua prática educacional esteja
voltada para a transformação, não poderá agir inconsciente ou irrefletidamente, como cita
(FREIRE 1996, p.34) “... na formação permanente dos professores, o momento
fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de
hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática”
Assim, abordar o ensino de História na atual perspectiva sócio/histórica do Brasil significa
refletir sobre as questões sociais e sua relação direta com o processo de formação e atuação
do sujeito. Nesse sentido, o professor do ensino fundamental das séries iniciais (1º ao 5º
ano) deve ocupar posição central de análise da conjuntura e pensar na possibilidade que
tem de construir situações concretas de superação de estereótipos, através de uma prática
pedagógica desenvolvida e fundamentada na construção de um trabalho que envolva o
coletivo escolar.
Considerar a diversidade existente em cada realidade do espaço escolar e adequar as
abordagens realizadas em sala de aula a estas realidades é o primeiro e o mais importante
passo a ser dado. Nesse contexto, a prática pedagógica
“... ajuda o aluno a adquirir as ferramentas de trabalho necessários para aprender
a pensar historicamente, o saber-fazer, o saber-fazer-bem, lançando os germes do
histórico. Ele é o responsável por ensinar ao aluno como captar e valorizar a
diversidade das fontes e dos pontos de vista históricos, levando-o a reconstruir,
por ação de trazer o percurso da narrativa histórica. Ao professor cabe ensinar ao
aluno como levantar problemas procurando transformar, em cada aula de
história, temas e problemática em narrativas históricas” (SCHIHIDT e
CAINELLI, 2004;30).
Portanto, a aula de história pode possibilitar a construção do saber histórico através da
interação educador e educando, transformando essa prática em ato de transformação
consciente do fazer histórico. Ressaltando a importância do professor ser também um
pesquisador e produtor do conhecimento e não apenas um mero executor de saberes já
produzidos.
Em tempos atuais, existe a necessidade de as novas gerações redescobrirem o mundo
paralelamente à assimilação da herança cultural de seus povos, uma vez o ensino da
história tem sido marcado e demarcando por um discurso unilateral, de verdades absolutas
dos grupos dominantes, em detrimento dos grupos minoritários, como os negros, índios,
mulheres, crianças, homossexuais, pessoas com necessidades especiais, entre outros, que
não aparecem na história como sujeitos sociais.
Sendo assim, observa-se que muita coisa precisa ser revista, pensada, redescoberta e a porta
de entrada para essa nova postura de ensino pode estar atrelada à literatura de cordel, pois a
mesma se constitui como verdadeira criação popular, que revela uma visão intuitiva e crítica
das realidades enfocadas.
De acordo com a colocação de Carlos Drummond de Andrade, a literatura de cordel “é uma
das manifestações mais puras de espírito inventivo do senso de humor e das capacidades
crítica do povo brasileiro, em suas camadas modestas no interior. O poeta cordelista exprime
com felicidade aquilo que seus companheiros de vida e de classe econômica sentem
realmente [...]. É esta, pois, uma poesia de confraternização social que alcança uma grande
área da sensibilidade.”
Desse modo vale analisar que essa vertente literária faz parte do universo da arte popular
brasileira, que expressa a identidade de um grupo social, aparentemente sem “ideologias”,
sem postura crítica, pois se evidencia dentro de um contexto de cunho popular onde a
simplicidade se transfigura no movimento das feiras livres, mercados, romarias e praças
públicas. Contudo, é necessário assegurar que o cordel pode servir como um instrumento de
mudança e transformação, uma vez que documenta a situação presente, vivenciada no
cotidiano das pessoas de uma dada comunidade, estando intrinsecamente ligada a questões
ideológicas.
O nome cordel refere-se a barbante, cordão, guita, corda onde os livrinhos, folhetos ou
folhetes ficam pendurados e expostos a visitação e a compra. Quanto ao surgimento da
literatura de cordel, sabe-se que foi difundida em Portugal, antes do século XVII e se
proliferou por toda a Europa. No Brasil, esse tipo de literatura acompanhou a dinâmica da
colonização. Dessa maneira, é nessa ordem de idéias que se insere a importância dessa
arte, no ensino da disciplina história, uma vez que a própria inserção da literatura de cordel
no Brasil pode fornecer bases para o entendimento da história do país.
De certa forma, ao considerar e reconhecer enorme significação social, lingüística e
histórica da literatura de cordel, o professor poderá conscientizar-se que “em contato com
essas produções, o aluno do ensino fundamental pode exercitar suas capacidades
cognitivas, sensitivas, afetivas e imaginativas, organizadas em torno da aprendizagem
artística e estética.” (BRASIL, 2001, p.114). Ao mesmo tempo em que trabalham com
questões cotidianas e históricas: falam de problemas econômicos, sociais e políticos,
documentam fatos da história, redescobrem as manifestações culturais dos seus ancestrais,
inquietam-se e se questionam sobre o hoje e o amanhã, enfim, o aluno tem a possibilidade
de refletir sobre as bases que orientam a vida diária, percebendo as injustiças, os
contrastes, as características, os pontos positivos que fazem deles sujeitos sociais leitores e
intérpretes do mundo.
Possibilidades do uso do cordel em sala de aula
1. Na exploração de conteúdos na historia local.
Titulo: Viagem astral do Rio Subaé a outros rios
Autor: Vieira, Antônio
“Grande Feira de Santana
Princesa bela e chique
Com seu comercio possante
Tudo ela tem, acredite
Desde eu muito menino
Tomei banho a sol a pino
Nas águas do rio Jacuípe.”
2. Na apresentação e desmistificação de heróis ou vilões.
Titulo: Deus e Lampião no sol da caatinga
Autor: Monteiro, Luíz de Assis
Ninguém soube decifrar
A alma de lampião
Sempre muito atribulada
Vivendo em contradição
Ao Diabo se entregava
E ao mesmo tempo buscava
Conforto na religião.
3. Na relação do cotidiano
Titulo: Panvermina e Zabelê nas quebradas do Sertão
Autor: Freitas, Jotace
Lambedor de aroeira
E melancia-da-praia
Eram dietas constantes
Com o mel das mandassaia
Para curar o menino
Da asma sua ‘cangaia’
4. Na exploração dos saberes populares em temáticas complexas
Titulo: Se o progresso vem de trem. E porque o trem parou!
Autor: Vieira, Antônio
E para do trem
Esse invento colossal
Que mudou toda rotina
Do transporte mundial
Convém se fazer menção
À grande revolução
Chamada industrial
Essas são algumas possibilidades dentre outras que o professor de acordo ao seu contexto
posa vir explorar, como sugestão de alguns cordéis e locais para pesquisa indicamos
respectivamente:
• Sugestões de cordéis:
Titulo: O apaixonado de Maria por Lampião
Autor: Batista, Abraão
Titulo: Seu Jiló e as histórias perdidas no tempo
Autor: Machado Junior, Osmar Simões
Titulo: A medicina altruísta de doutor José Silveira
Autor: Vieira, Antônio.
Titulo: A passageira que armou o maior barraco no buzu.
Autor: Vieira, Antônio
• Sugestões de locais para realizar pesquisa com cordéis:
Feira de Santana:
-Museu Casa do Sertão
-Biblioteca Municipal Julieta Carteado
-Biblioteca Arnold Silva
-Mercado de Arte Modelo
-Serrinha
-Feira Livre
-Banzaê:
-Feira Livre
-Biblioteca Municipal de Banzaê
Conclusão
A literatura de Cordel é uma expressão artística produzida pelo povo, fornece
características trazendo abordagens voltadas para o seu cotidiano, assuntos e eventos
simples que alcançam e perpassam as histórias que o povo conta.
Dessa forma, faz-se necessário a utilização da Literatura de Cordel no ensino da história
como uma possibilidade interessante, que pode levar os alunos a refletirem sobre os
acontecimentos do passado e a realidade atual, colocando-os como sujeitos construtores
dos seus próprios caminhos.
Referências
BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:
introdução aos parâmetros curriculares nacionais / Secretaria de Educação
Fundamental. 3ª ed. Brasília: MEC/SEE, 2001. p.115
FREIRE,Paulo.Pedagogia da autonomia:Saberes Necessários a Prática Educativa.São
Paulo:Paz e Terra,1996.
FREITAG, Bárbara; MOTTA, Valeria Rodrigues; COSTA, Wanderly Ferreira da. O livro
didático em questão. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997.
FREITAS, Jotace. Panvermina & Zabele nas quebradas do sertão. Salvador: Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 2005.
MONTEIRO, Luiz de Assis. Deus e Lampião no Sol da Caatinga. Feira de Santana, BA:
Museu Casa do Sertão, 1998.
OLIVEIRA, João Batista Araújo e; GUIMARAES, Sonia Dantas Pinto; BOMENY,
Helena Maria Bousquet. A política do livro didático. São Paulo: Summus, Campinas:
Unicamp, 1984.
SHIMIDT, Maria Auxiliadora, CAINELLI, Marlene. Ensinar Historia. São Paulo:
Scipione, 2004.
SLATER, Candace. A vida no barbante: a literatura de cordel no Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
VIEIRA, Antônio. Se o progresso vem de trem. E porque o trem parou!. Salvador:
Secretaria da Cultura e Turismo, 2004.
VIEIRA, Antônio. Viagem astral do Rio Subaé a outros rios. Salvador: Secretaria da
Cultura e Turismo, 2004.
A Literatura Infantil para uma Educação Moral
109
Camila de Oliveira Ribeiro
110
Lílian Miranda Bastos Pacheco
Origens dos Contos
Para falar de literatura infantil faz-se necessário situar historicamente a mudança que
ocorreu na concepção sobre infância. A partir do modelo de família que surgiu após a
Idade Média, passou-se a pensar e zelar pela criança. Os primeiros textos de literatura
infantil foram produzidos no final do século XVII e início do século XVIII, a exemplo dos
contos de fada que anterior a esse período serviam para divertir adultos.
Ao contrário do que se pensa, os contos infantis em sua origem são folclóricos e
direcionados para adultos. Segundo Souza (2005), os contos ganharam repercussão na
França, no século XVII, para falar aos adultos.
Segundo Darnton, (2001, p.59) “os contos ajudavam a orientar os camponeses. Mapeavam
os caminhos do mundo e demonstravam a loucura de se esperar qualquer coisa, além de
crueldade, de uma ordem social cruel”. Os contos folclóricos, a exemplo da França, eram
guias que revelavam aspectos de uma camada social (camponeses) que sofria com a fome,
as epidemias e a falta de terras. À noite, os camponeses se uniam em torno do fogo para
escutar a narrativa de histórias. Esses contos tinham um fundo moral que muito ajudavam a
elaborar as dificuldades do cotidiano na luta pela sobrevivência.
Darnton retrata as condições de vida daquela época onde “todos enfrentavam um trabalho
interminável, sem limites, da mais tenra infância até o dia da morte” (Darnton, 2001, p.55).
A família tinha que trabalhar, das crianças aos adultos, de forma incessante, para
permanecerem vivos por mais algum tempo, uma vida fatigável do começo ao fim.
A infância não existia, não havia um cuidado especial com as crianças, os bebês muitas
vezes eram sufocados acidentalmente por seus pais, enquanto dormiam ao dividir a mesma
cama.
Darnton (2001) vai apresentando algumas condições materiais de vida e convivência da
sociedade camponesa na passagem do mundo medieval ao moderno. Relata que,
109
Licencianda em Pedagogia, aluna de iniciação científica junto ao Grupo de Pesquisa
DEHPE/NEPA/DEDU/UEFS.
110
Profa. Dra. de Psicologia da Educação, coordenadora do Grupo de Pesquisa DEHPE/NEPA/DEDU/UEFS.
praticamente ao começar a caminhar, as crianças passavam a trabalhar junto com seus pais
e quando adolescentes ingressavam na força de trabalho adulto como lavradores, criados e
aprendizes. As crianças não eram revestidas de pureza e fragilidade, o trabalho infantil
existia como algo natural que daria suporte a elas durante seu crescimento.
Grandes escritores da literatura infantil vieram a se destacar, a partir do século XVII,
como, por exemplo, Charles Perrault. Este buscou redescobrir os relatos maravilhosos
numa época em que as narrativas entravam em declínio. De acordo com Sousa (2005) e
Darnton (2001) ele não estava preocupado com as crianças, só mais tarde voltou sua
atenção para elas, buscando diverti-las e orientar a formação moral das meninas.
Inicialmente seu objetivo era divertir a burguesia adulta de sua época, adocicando, fazendo
modificações nos contos folclóricos que tinham um requinte de crueldade e realismo.
“Longe de ocultar suas mensagens com símbolos, os contadores de histórias do século
XVIII, na França retratavam um mundo de brutalidade nua e crua” (Darton, 2001, p.29).
O autor argumenta que não é propriamente que se estivesse advogando a imoralidade, mas
Perrault intencionava desmentir a noção de que a virtude seria recompensada ou de que a
vida pudesse ser conduzida por qualquer outro princípio que não a desconfiança.
Segundo Souza (2005), no século XVIII, as fadas são relegadas a um segundo plano,
deixando de interessar os adultos e se recolhendo ao mundo infantil. Zilberman (1994)
afirma que os primeiros livros para crianças foram produzidos ao final do século XVII e
durante o século XVIII.
As histórias que Perrault contandas na corte, passaram a ser direcionadas às crianças, com
o surgimento da infância. A mudança da concepção de infância foi acompanhada pela
emergência de uma nova noção de família, centrada não mais em amplas relações de
parentesco, mas num núcleo unicelular, preocupado em manter sua privacidade e
estimulando o afeto entre seus membros.
A organização política das localidades em nações, ou seja, o surgimento do Estado
moderno gerou a necessidade de mudanças na estrutura familiar, para que o poder fosse
mais centralizado e os seus membros se preocupassem mais com a unidade familiar e com
o cuidado com as futuras gerações.
(...) difundiu-se um conceito de estrutura uni-familiar privada, desvinculado de
compromissos mais estreitos com o grupo social e dedicado à preservação dos
filhos e do afeto interno, bem como de sua intimidade. Estimulada
ideologicamente pelo Estado absolutista, depois, pelo liberalismo burguês, que
encontraram neste núcleo o suporte necessário para centralizar o poder político e
contrabalançar a rivalidade da nobreza feudal, ela recebeu o aval político para
irradiar seus principais valores a primazia da vida doméstica, fundada no
casamento e na educação dos herdeiros. A importância do afeto e da
solidariedade de seus membros, a privacidade e o otimismo enquanto condições
de uma identidade familiar. (Zilberman, 1994, p.14)
O ideal de família, que já vinha sendo difundido, foi consolidado pelo discurso
pedagógico, que destacou a importância de zelar pelas crianças, dando ênfase à
dependência destas em relação ao adulto. A falta de experiência existencial dos infantis
justificou a necessidade de preparar os pequenos para a vida. As crianças, principalmente
da camada social privilegiada, foram revestidas de inocência e fragilidade.
Outros renomados escritores de histórias infantis foram os irmãos Grimm. Souza (2005)
argumenta que seus interesses, inicialmente, não recaíram nem na preocupação com as
crianças, nem no interesse de divertir os adultos, mas foram guiados por uma preocupação
lingüística. Em suas pesquisas passaram a coletar e analisar uma grande quantidade de
textos, vindo a publicar contos de fadas para crianças e adultos, entre os anos de 18121822.
Além de Perrault e dos irmãos Grimm, podem ser encontrados outros grandes expoentes da
literatura infantil no século XIX, como, por exemplo, Jeannette Hassenpflug, Hans
Christian Andersen, a condesa de Segur, Lewis Carrol, Colloti etc.
Função dos Contos Hoje
A literatura denominada contos de fada que aqui foi situada em uma breve história, tem um
papel enorme na vida e no imaginário das crianças que têm acesso a ela. Bettelheim (1999)
considera que ela assume o papel de ajudar as crianças a descobrirem o significado da vida,
aprendendo com essa literatura a enfrentar os conflitos cotidianos, levando à maturidade
psicológica.
Vivemos em uma sociedade confusa e complexa. Os contos de fadas trazem a
possibilidade das crianças aprenderem a lidar com os conflitos existenciais e é fundamental
que a criança possa ter esperança, confiança de que poderá resolver estas questões, se não
agora no futuro. “Nossos sentimentos positivos dão-nos força para desenvolver nossa
racionalidade, só a esperança no futuro pode sustentar-nos nas adversidades que
encontramos inevitavelmente”. (Bettelheim, 1999, p.12).
A literatura infantil tem elementos sedutores para a criança, desperta a curiosidade e faz
com que elas reelaborem, através da fantasia, os seus dilemas vividos no mundo real.
As histórias infantis devem despertar a curiosidade da criança, estimular sua imaginação.
Contudo, esta literatura não tem apenas a função de mero entretenimento, ela contribui
com o desenvolvimento intelectual, permite a tomada de consciência das próprias
emoções, das ansiedades e aspirações, assim como das dificuldades e, ao mesmo tempo,
sugere soluções para os problemas que a perturbam. Este recurso narrativo auxilia na
organização da personalidade dos sujeitos, no seu processo de descoberta da identidade. O
outro aspecto do desenvolvimento da criança que os contos contribuem refere-se à busca
pela autonomia, à educação moral.
Através da identificação afetiva com os personagens, a criança vai se identificar com eles,
porém ela tem a possibilidade de tomar decisão e escolher seguir as atitudes desse ou
daquele personagem ou apenas se deleitar ao ouvir a estória. Além disso, as escolhas das
crianças são baseadas não tanto sobre o certo versus errado, mas sobre quem desperta a sua
simpatia e quem desperta a sua antipatia. “A criança se identifica com o bom herói não por
causa de sua bondade, mas porque a condição de herói lhe traz um profundo apelo
positivo” (Bettelheim, 1999, p. 18).
Esses contos estão voltados para todas as idades e falam à criança sobre seus conflitos, de
forma compreensível, tocando na individualidade de cada um. “Como sucede com toda
grande arte, o significado mais profundo do conto de fadas será diferente para cada pessoa,
e diferente para a mesma pessoa em vários momentos de sua vida. A criança extrairá
significados diferentes do mesmo conto de fadas, dependendo de seus interesses e
necessidades do momento. Tendo oportunidade, voltará ao mesmo conto quando estiver
pronta a ampliar os velhos significados ou substituí-los por novos.” (Bettelheim, 1999, p.
21).
Existe uma extensa produção de literatura moralista como as fábulas que de forma
impositiva e colocando a criança como agente passivo passa valores morais, ao contrário é
o conto de fada que de forma construtiva deixa que ela escolha e reflita através da
identificação afetiva dela com os personagens aquilo que é exemplo de conduta e postura,
claro que levando em consideração a fase de seu desenvolvimento moral.
De acordo com Bettelheim (1999) as fábulas constituem outro antigo gênero literário, que
tem propósito direto de impor aquilo que considera certo, se utilizando de elementos que
mechem com o imaginário infantil. Elas apresentam uma situação, um conflito ou dilema,
conduzindo o leitor a uma sentença moral. A fábula sempre afirma explicitamente uma
verdade moral; não há significado oculto; nada é deixado à nossa imaginação. Um único
modelo da conduta é apresentado como o correto, não deixando a possibilidade da criança
refletir sobre o mesmo se a postura é realmente ética.
Esses dois tipos textuais, conto ou fábula, dão exemplos de posicionamentos morais, mas de
maneiras bem diversas um do outro. O primeiro possibilita a construção de valores, posturas
ou atitudes morais, enquanto que o segundo simplesmente impõe a sanção e o modelo de
conduta.
Nucci (2000) faz uma diferenciação entre moralidade e convenção moral. A moralidade
refere-se aos conceitos do individuo, seus raciocínios e posturas referentes ao bem-estar,
aos direitos e aos deveres que regulam a vida das pessoas em grupo. Enquanto que
convenção moral são padrões de conduta consensualmente determinados dentro de um
certo grupo social.
Existem dois tipos de educação moral, a autônoma e a heterônoma sendo o autônomo
aquele que leva o sujeito a tomada de postura de forma racional, considerando os outros e
o respeito mútuo na construção das regras de conduta. Por outro lado, a moral heterônomo
impõe as regras. Segundo Kamii (2006, p.103) “Autonomia significa ser governado por si
próprio. É o contrário de heteronomia, que significa ser governado por outrem”.
A autonomia moral não quer dizer liberdade por liberdade, mas uma liberdade responsável
que não pensa apenas em si mesmo, mas no bem de todos e age segundo tal regra.
A essência da autonomia é que as crianças tornem-se aptas a tomar decisões por
si mesmas. Mas a autonomia não é a mesma coisa que liberdade completa. A
autonomia significa levar em consideração os fatos relevantes para decidir agir
da melhor forma para todos. Não pode haver moralidade quando se considera
apenas o próprio ponto de vista. Quando uma pessoa leva em consideração os
pontos de vista das outras, não está mais livre para mentir, quebrar promessas e
ser leviano .(Kamii, 2006, p. 108)
Infelizmente a heteronomia naturaliza a dependência da criança ao adulto e é estimulada
pelos pais através de reforços negativos e positivos, enquanto uma possível autonomia
moral pode ser construída pela criança levando-a a escolher, e pensar sobre suas atitudes.
São posturas diferentes: “os adultos reforçam a heteronomia natural das crianças, quando
usam recompensas e castigos, e estimulam o desenvolvimento da autonomia quando
intercambiam pontos de vista com as crianças”. (Kamii, 2006, p. 106)
Um exercício importante no cotidiano é usar a sanção por reciprocidade para trabalhar o
seu ponto de vista e reflexão sobre suas ações e concepções, levando as crianças a criar
suas regras de conduta. “As sanções por reciprocidade estão diretamente relacionadas com
o ato que se deseja sancionar e com o ponto de vista do adulto, tendo o efeito de motivar a
criança a construir por si mesma, regras de condutas através da coordenação de pontos de
vista.” (Kamii, 2006, p. 109)
Os contos de fada que vieram de estória que expressavam o sofrimento e as possíveis
saídas para a vida cruel dos camponeses, hoje já com o toque aburguesado, têm como
função ser espaço do fantástico que faz as crianças aprenderem a lidar com seus conflitos
cotidianos. Essas estórias passam valores de conduta por existir uma energia afetiva em
volta dos protagonistas desse imaginário.
O “era uma vez” possibilita à criança decidir pela conduta de algum desses personagens ou
simplesmente se deleitar no mundo encantado da estória, sem medo de ser recriminada.
Cria-se uma atmosfera na qual ela pode lidar com suas forças anti-sociais de forma a
coordená-las a partir da reflexão, assim construindo seus valores. Os contos maravilhosos
podem ser excelente recurso para a educação moral autônoma.
Referências
BETTELHEIM, B. A Psicanálise dos contos de Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. 13
ª ed.
DARNTON, R. O Grande Massacre de Gatos, e outros episódios da história cultural
francesa. Rio de Janeiro: Graal, 2001. 4 ª ed.
KAMII, C. A criança e o número. São Paulo: Paripus, 2006. 34ª ed.
NUCCI, Larry. Psicologia moral e educação: para além de crianças “boazinhas”.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.26, n.2, p. 71-89, jl./dez. 2000.
SOUZA, T. C. C. Valorizações afetivas nas representações de contos de fadas: Um olhar
Piagetiano. Boletim de Psicologia, 2005, vol. IV, n° 123: 205-232.
ZILBERMAN, R. A Literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1994. 9ª ed.
V – CONTO PREMIADO
Um passeio literário na biblioteca
Rubervânio Cruz Lima (UEFS)
Apagam-se as luzes da pequena biblioteca da escola fundamental Passos para o saber. É o
fim do expediente. Mas a biblioteca reserva uma surpresa, depois que todos saem. Na
prateleira de literatura, algo está se movendo...
_Oh, puxa vida... O que é isso?
A biblioteca guarda um mistério até hoje tão impressionante quanto uma história fantástica
de um livro. Só indo lá e vendo você mesmo...
Não acreditaria se não houvesse, eu mesmo, comprovado. Aconteceu assim:
Adormeci dentro do banheiro e acabei ficando preso na escola, no dia turbulento de uma
festa em comemoração ao Natal. Mas alguém pode questionar: Espere aí! Como alguém
cochila num banheiro ou como pode todos irem embora e ninguém se lembrar de um
garoto de doze anos? Bom, vamos deixar essas pequenas questões de lado, mas certifico
que isso aconteceu mesmo. Ninguém, impressionantemente, deu por minha falta e todos se
foram. Fiquei, no começo, desesperado e quis chorar, mas meu lado aventureiro me
mostrou uma possibilidade única, para depois contar à turma. Percorri por toda escola
escura e silenciosa, adentrei em todos os compartimentos que havia e explorei cada
cantinho com meu ar de Indiana Jones. Abri, por fim, a porta da pequena biblioteca, cheia
de livros e prateleiras, querendo ver como era lá sem ter ninguém. Foi então que eu ouvi
um barulho esquisito, vindo de uma das prateleiras. Era a seção literária, que eu já
conhecia bastante, nas minhas aventuras literárias. Ler livros é comigo mesmo... Eu não
pude distinguir, a princípio, o que via, por conta da escuridão, mas consegui visualizar um
movimento estranho naquela prateleira. Vi que alguns livros se abriam sozinhos e algumas
coisas saiam de dentro deles. Ratos? Não... Não pode ser. Aquelas coisinhas mais pareciam
com gente. Gente em miniatura. Consegui distinguir o que eram. Pareciam figuras de
pessoas e animais, como se fossem recortes de revista. Mas, como pode? Perguntei-me.
Aquilo estava muito estranho e tentei me aproximar mais para tentar identificar do que se
tratava, quando vi que eram desenhos e fotos de recorte, alguns me fizeram lembrar
personagens de livros literários que já havia lido. Ouvia também um zumbidozinho vindo
daqueles recortes de papel em forma de gente, como se estivessem em uma discussão ou
algo assim. Depois que me recompus do espanto presenciado naquele momento, de
mancinho, fui me aproximando daquelas figurinhas recortadas para tentar compreender o
que diziam, quando de repente, algo veio em minha direção, como se fosse um minúsculo
aviãozinho de papel, batendo na minha roupa. Aquela coisinha foi caindo como uma pena,
bem devagarzinho e eu consegui apara-lo na mão. Reparei que parecia um recorte de uma
seta, ou uma flecha. Índio? Viajei por instantes a todos os livros que havia lido sobre
índios, me lembrando das histórias impressionantes, tentando imaginar de qual delas esses
ali haviam saído, quando uma vozinha cortou meu devaneio.
_Quem és tu, nobre infante?
_Eu? Ah... Eu... Sou...
_És um alferes?
_Não, sou um garoto que estuda aqui nessa escola.
_Como te chamas, garoto?
_Sou Frederico.
Naquele instante, já conseguia visualizar o meu interpelador, uma figurinha que me
lembrava um velho, de barba, um chapéu branco. Perto dele, mais um tantão de figurinhas
se movendo e um indiozinho em miniatura com um arco na mão.
_Vocês saíram dos livros? Perguntei, com um afobamento danado.
_Ah, sim, mas é claro... Fazemos isso todas as noites agora. Respondeu o velho de chapéu.
E continuou.
_Bem, antes que eu me esqueça, sou Bentinho, mas todos me conhecem como Dom
Casmurro. Estes aqui meus novos amigos. Ao meu lado esquerdo estão os nobres Quincas
Borba e Brás Cubas, esse cachorrinho também se chama Quincas, este aqui atrás é o João
Romão, o do cortiço, esta aqui é a Iracema, esta é a Ceci e este indiozinho valente é o
Peri. Desculpa a indelicadeza do impulso. Espero que não o tenha machucado com meu
ímpeto.
_Tudo bem, não foi nada. E essas moças, quem são?
_Bem, algumas dessas damas você já deve ter ouvido falar, suponho que já deva ter lido
algum livro... Essa dama chama-se Aurélia Camargo e é conhecida por Senhora, essa
outra ao lado chama-se D. Carolina, a moreninha, esta bela dama chama-se Isaura, a
escrava e ao seu lado a bela Inocência. Este rapazinho aqui é o pequeno Príncipe. Dissenos que veio de um planetinha bem pequeno e sempre nos pede para desenharmos
carneiros. E estes quatro irmãos ao lado chamam-se Pedro, Edmundo, Susana e Lúcia.
Este leão falante chama-se Aslan e esses animais todos ao redor são de um lugar chamado
Nárnia.
_Puxa vida... Ninguém vai acreditar... Eu gosto muito de ler, sempre venho qaui na
biblioteca enquanto meus colegas se reúnem para falar sobre internet e PlayStation.
Gente, aquilo era demais... Eu estava diante de personagens das histórias que eu havia lido
e quando o Dom Casmurro ma falou os nomes de cada um, era como se eu saísse numa
viagem imaginária, percorrendo todas aquelas histórias dos livros de uma vez só, como se
todas fossem uma só. Indescritível. Resolvi questionar:
_Como vocês fazem isso? Como saem dos livros?
_Não sabemos. Respondeu-me o senhor com chapéu comprido, tipo cartola, Quincas
Borba. O leão Aslan acrescentou:
_De uns tempos pra cá, como mágica, saímos dos livros onde moramos, saímos de nossas
histórias e viemos aqui conversar e conhecer as outras histórias. Até parece nossa Nárnia,
cheia de novas aventuras.
_Eu sei o que é! Exclamou Lúcia, a garotinha. Sei o que é e estou tentando dizer a todos da
nossa missão.
_O que é então? Perguntei impaciente.
_Tudo aconteceu por causa de um livro que foi colocado nessa prateleira há uns dias.
Aquele livro grandão ali. (apontando para um livro na mesma prateleira com o título
“Harry Potter e o cálice de fogo”) Depois que este livro foi colocado aqui, não sei por
quem, tudo aconteceu. E estou falando isso justamente porque em uma noite eu vi um
garoto com uma varinha mágica na mão e corri para perguntar seu nome e o que fazia,
ele saiu correndo para o seu livro e gritou para que eu não o seguisse, pois era muito
perigoso dentro de seu livro. Outro dia consegui conversar com ele para ver se sabia por
que estava acontecendo isso, porque estávamos saindo dos livros e ele me revelou que ele
havia feito aquilo e que era para que nós realizássemos uma grande missão nesse mundo,
mas não deu tempo dele explicar, pois apareceu um pássaro grande e o levou nas garras
para dentro do livro. Mas eu já descobri qual é a grande missão que temos que realizar.
_Então qual é? Gritamos todos ansiosos.
_Há muito tempo que os livros e nossas histórias não estão sendo lidos. As pessoas, no
mundo todo não sentem mais prazer em uma boa leitura. Preferem as novas formas de
entretenimento, filmes, vídeo games, televisão, computador, quase ninguém se interessa
mais por livros. Precisamos chamar a atenção das pessoas sobre o magnífico prazer de
ler. Talvez se os contássemos como um livro é esplêndido, como podemos nos divertir em
uma leitura, eles compreendam e voltem a ler histórias como as nossas.
_Eu talvez, possa ajudar. Disse eu. Quem sabe se eu convocar minha diretora e todos os
professores desta escola, eles possam mobilizar um grande evento literário que incentive a
todos a voltarem a ter o hábito de leitura.
_Muito boa idéia, mas precisaríamos que isso fosse feito em todas as escolas do mundo.
Disse um dos personagens.
Nessa hora, lá pelas onze horas da noite, escutei barulhos vindos de fora, alguns gritos.
Logo as figurinhas correram cada uma para sua história.
_Frederico, meu filho, você está bem?
_Puxa, mãe... A senhora não vai acreditar...
_Vamos para casa, meu amor. Lá você nos conta essa sua aventura.
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VIII Encontro de Leitura