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UNIVERSIDADE DE SOROCABA
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA
Cyro Augusto Pachicoski Couto
COMUNICAÇÃO DO MEDO: OS ATAQUES DO PCC
Sorocaba/SP
2009
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Cyro Augusto Pachicoski Couto
COMUNICAÇÃO DO MEDO: OS ATAQUES DO PCC
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura
da Universidade de Sorocaba, como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em Comunicação e Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Osvando J. de Morais
Sorocaba/SP
2009
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Ficha Catalográfica
C899c
Couto, Cyro Augusto Pachicoski
Comunicação do medo: os ataques do PCC / Cyro Augusto Pachicoski
Couto. --- Sorocaba, SP, 2009.
238 f.
Orientadora: Prof. Dr. Osvando José de Morais.
Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura) - Universidade de
Sorocaba, Sorocaba, SP, 2009.
Inclui bibliografias.
1. Comunicação – Aspectos sociais. 3. Midia e violência. 4. Crime
organizado – Aspectos sociais. I. Moraes, Osvando José de, orient. II.
Universidade de Sorocaba. III. Título.
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Cyro Augusto Pachicoski Couto
COMUNICAÇÃO DO MEDO: OS ATAQUES DO PCC
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba.
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
Ass. ______________________________________
Pres. Prof. Dr. Osvando José de Morais - UNISO
Ass.______________________________________
1º Exam.: Profª. Drª. Malena Segura Contrera –
Mackenze/UNIP
Ass.______________________________________
2º Exam.: Profª. Drª. Míriam Cristina Carlos Silva UNISO
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Dedico este trabalho (in memorian) ao meu avô Jacob Pachicoski.
Uma pessoa que aprendeu a superar os obstáculos da vida com alegria,
sempre distante de qualquer tipo de violência.
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AGRADECIMENTOS
A realização deste trabalho só foi possível graças à preciosa colaboração de várias
pessoas. Meus agradecimentos a todas, em especial, a:
Prof. Dr. Osvando José Morais, pela competência, profissionalismo e, acima de tudo,
pela sua amizade. Sua compreensão, apoio, confiança e carinho foram cruciais para
que eu chegasse aqui.
Profª Drª. Míriam Cristina Carlos Silva e Prof. Dr. Paulo Brás Schettino, pelo apoio
nas dificuldades encontradas, e pelos conselhos fundamentais na minha vida
acadêmica.
Profª. Drª. Malena Segura Contrera, integrante da banca de qualificação, cujas
sugestões colaboraram imensamente para a elaboração deste trabalho.
Todos os entrevistados que contribuíram para meu aprendizado.
Minha mãe e irmã, que colaboram de forma efetiva na realização deste trabalho.
Aos amigos Mário Sérgio Barbosa, Fábio Cenci, Nelson Cenci e Waldemar Neto,
pelas indicações e apoio.
A todos os amigos da primeira turma do mestrado em ―Comunicação e Cultura‖ da
Universidade de Sorocaba, em destaque para Patrícia Amaral, Lilian Rose e Eduardo,
pelas constantes oportunidades de aprendizado.
Meu pai, minha namorada, meus parentes e demais amigos, que tanto estiveram
torcendo por mim.
Aos queridos alunos do Curso de Relações Públicas da Universidade de Sorocaba, que
sempre me apoiaram com carinho e amizade.
Deus, por me iluminar em todos os momentos.
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Sermão do Bom Ladrão
Suponho que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis a
quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este gênero de
vida, porque a mesma sua miséria ou escusa ou alivia o seu pecado,
como diz Salomão: ―O ladrão que furta para comer não vai nem leva
ao inferno.‖ Os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são os
ladrões de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do
mesmo nome e do mesmo predicamento distingue muito bem São
Basílio Magno. ―Não são ladrões, diz o Santo, os que cortam bolsas,
ou espreitam os que vão se banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões
que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a
quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das
províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já
com força, roubam e despojam os povos.‖ Os outros ladrões roubam
um homem, estes roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo
do seu risco, estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são
enforcados, estes furtam e enforcam.
Pe. Vieira
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RESUMO
O objetivo deste trabalho é discutir a disseminação do medo por meio da comunicação, ao
propor uma discutição sobre os ataques do Primeiro Comando da Capital – PCC, no mês de
maio de 2006, como fenômeno midiático. Para tanto, buscou-se analisar nos dias de hoje, que
o crime organizado está associado de maneira ordenada a um contexto em que sobreviver
confunde-se com consumir e, juntos constroem certa subjetividade enfatizadas em modelos
propostos pela indústria cultural e pelos meios de comunicação massiva. Objetiva-se ainda
avaliar e aprofundar o levantamento da literatura especializada, visando destacar as principais
correntes do pensamento sobre o tema, além de expor as teorias vigentes, pesquisar e analisar
os resultados encontrados no advento da violência praticada pelo crime organizado, ora
confundida com ataques terroristas, encontrando assim espaço ideal na mídia para uma
divulgação intensa. Inevitavelmente, realizou-se uma pesquisa de profundidade com cinco
representantes da sociedade que vivenciaram o período dos ataques, possibilitando verificar
em suas práticas e falas, novos padrões de necessidades e desejos vinculados por meio da
violência, ou seja, novos padrões de relações humanas.
Palavras-chave: Comunicação, Medo, Violência, Crime organizado, PCC.
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ABSTRACT
The aim of this work is to discuss the dissemination of fear by means of
communication having as object the attacks of Primeiro Comando da Capital – PCC (São
Paulo County First Command), in the May 2006, as a mediatic phenomenon. For this, one
analyzed how, today, organized crime is deeply associated to a context where surviving is
confused with consuming and, together, construct a certain subjectivity emphasized in models
proposed by cultural industry and the mass media. We also aim to evaluate and to deepen the
survey of specialized literature, aiming to emphasize the main thought trends on the subject,
besides presenting the theories proposed up to now and analyzing results found in the advent
of violence practiced by organized crime, now confused with terrorist attacks, thus finding an
ideal space in the media for an intense spreading. Inevitably, a deep research was done with
five representatives of society who had lived deeply the period of the attacks, making possible
to verify in their practice and their discourse new standards of necessities and desires
associated by means of violence, that is, new standards for human relations.
Key words: Comunication, Feer, Violence, Organized crime, PCC.
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RESUMEN
Este trabajo busca discutir la difusión del miedo de promedio la comunicación y tiene
como objeto los ataques de Primeiro Comando da Capital – PCC (Primer Comando de la
Capital), en mayo de 2006, como fenómeno mediático. Para eso, uno ha analizado cómo el
crimen organizado se asocia hoy profundamente a un contexto en donde la supervivencia se
confunde con el consumo y, juntos, construyen cierta subjetividad acentuada en los modelos
propuestos por la industria cultural y los medios de comunicación. Se busca también evaluar y
profundizar el examen de la literatura especializada, acentuar las principales tendencias del
pensamiento acerca del tema, además de presentar las teorías propuestas hasta ahora y
analizar los resultados encontrados con el advenimiento de la violencia practicada por el
crimen organizado, ahora confundido con atentados terroristas, así encontrando un espacio
ideal en los medios de comunicación para una intensa divulgación. Inevitablemente, se ha
hecho una investigación profunda con cinco representantes de la sociedad que habían vivido
profundamente el período de los ataques, haciendo posible verificar en su práctica y sus
discurso nuevos estándares de las necesidades y de los deseos asociados de promedio la
violencia, es decir, nuevos estándares para las relaciones humanas.
Palabras llave: Comunicación, Miedo, Violencia, Crimen organizado, PCC
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. .12
2 REFLEXÕES SOBRE UMA CULTURA DO MEDO.................................................... .26
2.1. Cultura e medo .................................................................................................................. 26
2.2. História do medo no ocidente ........................................................................................... .33
2.3. As faces do medo .............................................................................................................. .40
3 CRIME ORGANIZADO NO IMAGINÁRIO SOCIAL: PCC REALIDADE
CONTROVERSA .................................................................................................................. .60
3.1. Medo do Crime .................................................................................................................. 60
3.2. Fragmentos sobre o crime organizado .............................................................................. .66
3.3. A evolução do crime organizado ...................................................................................... .82
3.4. Crime organizado no mundo contemporâneo ................................................................... .87
3.5. Crime organizado no Brasil: o mito PCC - Primeiro Comando da Capital .................... .100
4 PENSANDO OS ATAQUES DO PCC NA MÍDIA DO ENTRETENIMENTO ........ .116
4.1. Personagens do medo ...................................................................................................... 120
5 CONCLUSÃO................................................................................................................... .141
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. .148
APÊNDICE A - ENTREVISTA ......................................................................................... .164
ANEXO A – DEFINIÇÕES SOBRE CRIME ORGANIZADO ...................................... .237
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1 INTRODUÇÃO
O entendimento social nos dias de hoje, perpassa por labirintos cada vez mais
complexos. Caminhos sem saída se multiplicam em questões sem respostas, em que a única
opção, invariavelmente, recai sobre a violência. O uso da força, da persuasão e do
intimidamento ganharam status de uso comum, em uma sociedade assombrada pela sensação
de insegurança, totalmente engendrada na cultura cotidiana. O medo parece estimular a
sociedade em assumir uma ação defensiva, e isso confere proximidade, tangibilidade e
credibilidade às ameaças, genuínas ou supostas, de que ele presumivelmente emana.
Para tanto, a idealização dessa pesquisa representa uma análise crítica sobre o
processo de criação da informação pelos meios de comunicação de massa na construção e
disseminação do medo. O trabalho foi desenvolvido em torno dos ataques do Primeiro
Comando da Capital (PCC), sob a ótica da violência, que culminou na proliferação do medo
social, legitimando ações intensivas da polícia, assim como toques de recolher e fechamento
das atividades normais do dia-dia.
De todo modo, a discussão desse trabalho nos deve levar a compreender o
imperialismo dos meios de comunicação e seus efeitos, ou seja, pela necessidade de
manipular as informações, os órgãos de comunicação se transformaram em novos
instrumentos de poder, o que exige reavaliar a realidade desse fenômeno.
A partir do exposto, evidencia-se uma pergunta fundamental: Qual a relação entre o
crime organizado e os meios de comunicação de massa? Frente a essa questão outros
problemas são levantados: Até onde os fatos noticiados condizem com a realidade? A
sociedade estava preparada para receber as informações? Os meios de comunicação utilizaram
a linguagem correta para noticiar os acontecimentos? Qual é o lucro dos meios de
comunicação de massa com a popularização do ―crime organizado midiatizado‖ e vice-versa?
A mídia foi manipulada pelo crime organizado?
A busca de respostas para o conjunto dessas indagações exigiu a escolha de um
caminho teórico metodológico que permitisse, por meio de objetivos específicos: explicar os
fenômenos do medo, violência e crime organizado na realidade atual, vistos não como um
dado em si, mas como resultados de múltiplos processos da dinâmica social, no contexto do
desenvolvimento do capitalismo em seu momento atual e da mesma forma que atinge os
diferentes segmentos de classe.
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Explicar os nexos que entrelaçam a questão do crime organizado e sua expansão, com o
crescimento das desigualdades sociais e com os processos de exclusão social e de
globalização, além da impunidade e a ineficácia dos serviços públicos de segurança e de
justiça. A construção do entendimento do que é o medo social. De que maneira se origina e se
processa e como é construído na dinâmica das cidades; como é germinado e alimentado
cotidianamente na vida das pessoas, nas suas singularidades e potencializados pelos meios de
comunicação. Portanto, a pesquisa volta-se ao estudo da comunicação na disseminação do
medo por meio de seus personagens, principalmente dos meios de comunicação de massa.
Neste contexto, o medo torna-se capaz de impulsionar e intensificar por si mesmo.
Adquire um ímpeto e uma lógica de desenvolvimento próprio, precisando de poucos cuidados
e quase nenhum estímulo adicional para se difundir e crescer, irrefreavelmente. Com o
objetivo de discutir tais questões, Jean Delumeau (in NOVAES, 2007, p. 38) define o medo
como uma emoção-choque, freqüentemente precedida de surpresa, provocada pela
consciência de um perigo iminente ou presente. Como um alerta, o organismo reage por
comportamentos somáticos e alterações endócrinas que podem ser muito contrastantes,
dependendo das pessoas e das circunstâncias: aceleração ou diminuição do ritmo cardíaco,
respiração muito rápida ou muito lenta, contração ou dilatação dos vasos sanguíneos, aumento
ou diminuição da secreção das glândulas, paralisação ou exteriorização violenta e, no limite,
inibição ou, ao contrário, movimentos desconexos e atabalhoados.
Deste modo, o medo pensado em suas origens biológicas, ―[...] é um fenômeno de
paralisação ou detenção do curso vital, que se observa nos mais singelos seres vivos
unicelulares, quando se vem submetidos a bruscas ou desproporcionadas modificações em
suas condições de existência‖ (MIRA Y LOPES, 1988, p. 9). Entende, ainda, o autor que o
medo é um dos quatro gigantes da alma (medo, ira, amor e dever), e que o nutre é a carência
analisada. Entre outros, por exemplo, Bauman (2008, p. 125), acrescenta ainda que a carência
de respostas e soluções que nos remetem medo, e que não somos capazes de administrar o
desconhecido, pois o desconhecido é assustador. Medo, portanto, é o outro nome que damos à
nossa indefensabilidade.
Nesse sentido, a polivalência com que a violência se manifesta hoje, faz emergir o
medo, que leva as pessoas a paralisarem e alterarem suas relações e suas formas de ser no
espaço em que vivem, principalmente nos seus contextos individuais. O outro, o estranho
potencialmente ou não, de acordo com as circunstâncias, é objeto de medo e provoca no
sujeito as reações de paralisação, de entrega ou de agressão. Isso vai depender, contudo, do
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conjunto das normas e regras tecidas nesses contextos e dos códigos aprendidos e
internalizados pelas pessoas, chamado de cultura.
Por se tratar de uma emoção, os efeitos e reações que o medo provoca são distintos.
Isso significa que é uma experiência que se obtém passivamente, fora de qualquer controle,
que não depende de nós. Interferem nisso as singularidades de cada pessoa, sua história, seu
repertório e suas experiências nas quais o medo é desencadeado. Entende-se a emoção como
uma afeição brusca e geralmente de curta duração. O medo é, portanto, uma emoção negativa,
que é acompanhada de sofrimento, engendrado não por alguma coisa relacionada ao presente,
como a cólera, mas por alguma coisa ligada ao futuro. Temos medo, por definição, não do que
acontece no presente, mas daquilo que vai acontecer, ou melhor, daquilo que pode acontecer,
ou seja, o incerto. Ter medo é sentir no momento presente um desconforto em relação à idéia
do sofrimento, talvez mais tarde de algum mal ou ameaça. ―Um medo comum a todos os seres
humanos é o medo da dor‖, nos lembra Baumam (2008, p. 125). Dor e sofrimento têm duas
vertentes: a dor física e a mental. Esses dois componentes não são separáveis, e mutuamente
se influenciam. Por mais curioso que possamos ser a respeito das diferenças, tudo o que é
novo e diferente é desconhecido e, potencialmente, perigoso.
Dessa maneira, o medo nos seres humanos evoluiu para além de sua missão
tradicional, ou seja, a de prever e evitar a dor física. ―Em nós tornou-se o modo como o
cérebro prevê e evita também a dor mental‖, complementa Ciceri (2004, p. 135). Para a
autora, nossa capacidade de sofrimento mental aumenta muito o papel do medo em nossa
vida, desse modo, não tememos somente por nós mesmos, mas também pelas pessoas
próximas, ou também por objetos ou condição de vida que possuímos ou que aspiramos. O
medo assume muitos rostos e muitas formas e o perigo pode se apresentar fora, bem como
morar dentro de nossa cabeça, em nossa capacidade de prevê-lo, amplificá-lo e criá-lo.
Portanto, nos seres humanos, as ameaças internas alimentam-se de suas experiências
externas e nela se fundamentam. Ela pode ser por muitos motivos desfigurada, parcial ou
deformada, mas é aquela sobre a qual se fundamenta nossa avaliação do perigo e a reação de
medo que é, todavia, real. ―É específico do medo alimentado servir como filtro dos eventos;
por isso, todo indício que possa confirmá-lo é ressaltado e considerado a norma, ao passo que
os eventos contrários são considerados exceções‖ (CICERI, 2004, p. 139).
A sensação de insegurança provocada pelo uso da violência, no dia-a-dia das pessoas,
potencializa as reações do medo pressentido, criando, com isso, proximidade cada vez maior
de perigos latentes no convívio social. A percepção dessa afirmativa poder ser facilmente
observada nos grandes centros urbanos: as cidades, onde a violência assume papel
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preponderante na luta pela sobrevivência. Nos dias atuais, vivemos sem o otimismo utópico
de um mundo melhor, temos medo de que as catástrofes que atormentaram o passado não
apenas tendam a se repetir; mas, também, sejam inescapáveis. Bauman (2008, p. 124) de
forma enfática, acrescenta que o mais horripilante dos medos é o de ser incapaz de evitar a
condição de estar com medo ou de escapar dele.
A insegurança gerada por essa incerteza, ou melhor, falta de explicação, gera medo. A
reação ao medo é que provoca acidentes e mortes, que também vem sendo construída
socialmente e pode se constituir numa resposta coletiva às formas de uso feitas por meio da
violência. O terrorismo transnacional pode ser considerado um bom exemplo desse contexto,
pois é nos lugares com forte concentração humana que o medo, em escala mundial, é mais
intenso, a ponto de induzir uma mudança em nossas vidas cotidianas, em razão das medidas
de controle e de fiscalização tomadas pelas autoridades, ao que se soma o novo fenômeno da
globalização: a partir dos ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos, é no mundo inteiro
que podemos nos transformar em vítimas do terrorismo.
O terror não é simplesmente um medo mais forte que responde a uma ameaça mais
temerosa e mais difusa. É uma maneira de nomear a uma ameaça e de explicar o que causa
perturbação na alma de cada um de nós, assim como na ordem mundial. É uma maneira de
ligar uma ideologia da causalidade a uma forma de compreensão moral do bem e do mal.
De acordo com Bauman (2008, p. 76), a presença do mal – qualquer tipo de mal, tanto
os dilúvios e as pragas que afetam a todos como as infelicidades individualmente sofridas –
era um problema moral, da mesma forma que moral era a tarefa de enfrentá-lo e forçá-lo a
desaparecer. Com o pecado e a punição sendo os principais instrumentos do pensamento na
caixa de ferramentas da razão, a contrição e a expiação constituíam as rotinas naturais e
seguras a empregar na busca de imunidade em relação ao mal e na luta para expulsá-la do
mundo dos humanos. ―O mal talvez existente no universo podia ser atribuído em sua
totalidade, sem resíduos, aos seres humanos – a seus atos iníquos e pensamentos
pecaminosos‖ (BAUMAN, 2008, p. 76). Recorremos à idéia de mal quando não podemos
apontar que regra foi quebrada ou contornada pela ocorrência do ato para o qual procuramos
um nome adequado.
Portanto, o medo se enraíza em nossos propósitos, estabelece-se em nossas ações e
satura nossas rotinas diárias. A violência urbana e o medo gerados pela forma como cresce e
se desenvolve na atualidade, têm afetado profundamente o dia-a-dia das pessoas, alterando
formas e ritmos de ser e viver e, conseqüentemente, modificando de modo profundo as
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relações de sociabilidade. É exatamente no cotidiano que as diversas facetas da violência e do
medo social se expressam e se manifestam.
Ao abordar a violência como tema central de análise, nos deparamos com uma
dinâmica complexa, diversificada, concreta e material, permitindo que o tema seja
multifacetado e possua diferentes orientações teóricas. Por esse motivo, o estudo da violência
oferece subsídios suficientes para a interpretação das convulsões sociais nos dias de hoje, pois
a relevância da violência transcende ao entendimento comum de suas práticas, tornando-se o
assunto de muitas áreas acadêmicas.
Nesse sentido, ao empregar o uso da palavra violência, duas idéias nos ocorrem de
imediato. Primeiro, a idéia de coerção ou intimidação pela força de alguém em situação de
inferioridade física ou constrangimento moral. Violência, aqui, está associada à desigualdade
de poder entre os atores do conflito. A segunda idéia complementa a primeira, introduzindo
um outro elemento – a referência à lei ou à justiça. Violência, neste sentido, evoca ruptura de
um contrato ou de uma de suas cláusulas, por alguém que os conhece mas que
deliberadamente os infringe, abusando da força que detém.
O termo violência, por exemplo, vem do latim violentia que deriva da raiz vis,
significando força, vigor, potência, emprego da força física. ―Mais profundamente, a palavra
vis significa a força em ação, o recurso de um corpo para exercer sua força e, portanto a
potência, o valor, a força vital‖ especifica Yves Michaud (1989, p. 8).
Segundo Chauí (2006, p. 118), a origem na palavra violência vem de vis, força, onde
possui, também, um significado sexual afirmativo para os homens, mas assume sentido
negativo, quando essa força sexual se volta contra as mulheres (estuprar, deflorar); ainda pela
origem latina, a violência nos remete às forças militares e, por extensão, às forças policiais,
isto é, ao uso das armas como forma de relação entre humanos.
Para a autora, violência e violação estão ligados ao sentimento moral do ultraje, da
desonra, da deslealdade. A violência aparece, assim, como aquilo que, por não ter medida
nem limites, devasta a natureza, o corpo, o espírito e a sociedade.
Quando nos colocamos na perspectiva do métron, isto é, da medida ou da avaliação.
Estamos saindo da esfera da natureza enquanto algo dado ou enquanto fato bruto
para nos situarmos no interior da esfera da cultura, entendida como o modo de uma
sociedade interpretar a realidade por meio de símbolos e valores pelos quais passa a
medir e diferenciar o justo e o injusto, o verdadeiro ou falso, o bem e o mal, o belo e
o feio, o vício e a virtude, o possível e o impossível, o necessário e o contigente, o
essencial e o acidental, o legítimo e o ilegítimo, o legal e o ilegal, o prazer e a dor.
(CHAUÍ, 2006, p. 119)
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O significado etimológico da palavra violência expressa a dificuldade teórica dessa
definição. A nosso ver, essa dificuldade se dá pelo caráter variado, plural, multifacetado,
idealista das manifestações violentas no decorrer do processo histórico de constituição das
relações do homem em sociedade, e definir violência não seria um mero ato de aproximar um
conceito fechado de uma expressão.
De certa maneira, não obstante a definição de violência, tratar o termo como um
conceito seria uma grande armadilha. Segundo Gantheret (1980 apud. COSTA 2003, p. 14),
violência não é um conceito, assim como não o são loucura ou a paixão. Para COSTA (2003,
p. 18), ―a razão pode fazer trabalhar estes conceitos, delimitá-los em sua substância como em
sua extensão, distinguindo-os como elementos de cadeias lógicas, ou seja, animados pela
idéia de causalidade: isto é a definição de um conceito.‖
Portanto, a razão apresenta-se como agente fundamental de classificação conceitual, o
sentido ambivalente da expressão pode significar razão e ―irracionalidade‖. Nas palavras do
autor, não fica clara a pretensão em dizer que a dificuldade de definir a violência deve-se à
sua grande extensão e à sua pouca significação ou ao fato de ser um conceito mais abstrato
que concreto ou, ainda, ao fato de ser um conceito apriorístico.
Deixemos de lado a singularidade da lógica que orienta o entendimento da palavra
conceito. Por violência, inicialmente, adotamos a definição de Yves Michaud (1989), que
parte de uma análise do processo civilizatório, tendo a preocupação em preservar o sentido
etimológico da palavra, proveniente do verbo em latim violare, transgredir, profanar, tratar
com violência.
[...] situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta,
maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas, seja em sua
integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas
participações simbólicas e culturais. (MICHAUD, 1989, p. 13)
Nesse mesmo sentido, Marilena Chauí (1998, p. 33-34), apresenta outro entendimento
para violência, acrescentado aspectos éticos, definindo-a como ―tudo o que abrange a força
para ir contra a natureza de algum ser‖. Para ela, a violência abrange manifestações de
coação, constrangimento, tortura, brutalizações, violações, sevícias, abusos físicos e
psíquicos contra alguém, produzindo, de algum modo, opressão, intimidação, medo e terror
de ―um contra todos‖, de ―um contra um‖ e de ―todos contra todos‖.
Para Alba Zaluar (1999, p. 9), a força (vis originada do latim violentia) ganha à
dimensão de violência, quando ultrapassa limites socialmente estabelecidos em acordos
tácitos, regras ou convenções que ordenam relações, adquirindo carga negativa ou maléfica.
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A autora incorpora ―atos‖ ou ―estados‖ de violência no âmbito das sociedades democráticas,
como sendo um descumprimento das regras, entendendo que é a percepção do limite e da
perturbação (e do sofrimento que provoca) que vai caracterizar um ato como violento ou não,
com variações culturais e históricas. Em acréscimo a essa linha de pensamento, recorremos à
área da psicanálise, para complementar o entendimento sobre o termo. Na visão de Costa
(2003, p. 39) ―[...] violência é o emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos.
Esse desejo pode ser voluntário, deliberado, racional e consciente, ou pode ser inconsciente,
involuntário e irracional‖.
Complementa Costa (p. 16), que a relação entre razão e irracionalidade, na discussão
sobre o entendimento da violência, ganha peso ao confrontar a linha psicanalítica tradicional.
Acrescentando ao citar Gantheret, podemos entender que a violência é estranha em sua
natureza, pois não apresenta uma clareza de sentidos para possíveis análises. Nesses termos,
violência é apenas um modo de se definir como ―irracional‖. Ao adotar este ponto de vista, o
autor filia-se a uma antiga e criticada corrente de idéias, que faz desse atributo o elemento
definidor do fenômeno.
Em contraponto, Costa (p. 36) afirma que a violência nem sempre é irracional e,
mesmo nos casos em que a irracionalidade dá origem à violência, não se pode dizer que essa
irracionalidade é instintivamente animal. A melhor prova de que a violência não está
necessariamente vinculada ao ―emocional‖ é o ato de violência premeditada. O ato calculado
de violência não dispensa a razão: ao contrário, solicita-a. Podemos usar como exemplo o
crime organizado, que se utiliza do planejamento para a ação violenta. Isso é evidente em
organizações criminosas como a Cosa Nostra, Camorra, Yakusa, Tríade Chinesa, Máfia Russa
entre outras.
Costa (p. 37) diz ainda que a irracionalidade do comportamento violento deve-se ao
fato de que a razão desconhece os verdadeiros motivos de suas intenções e finalidades. A
violência é irracional quando e porque se dirige a objetos substitutivos, na acepção
psicanalítica do termo. Em outro momento, o autor pondera que a violência não tem outra
causa senão a satisfação dos impulsos e desejos destrutivos do homem. Os motivos ―vis‖ ou
―nobres‖ são racionalizações (no sentido psicanalítico), destinadas a justificar, perante a
consciência, a existência desta destrutividade.
Para realçar esse entendimento, partimos do último tópico de análise da violência em
Freud nas obras ―Totem e tabu‖ e ―Psicologia das massas e análise do ego‖ (1974). Concluise que a comunidade dos homens ―se mantém unida por duas coisas: a força coercitiva da
violência e os vínculos emocionais entre seus membros‖ (FREUD, 1974, p. 241). Isto é, o
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direito e a lei são mantidos pela violência. A violência, nesse contexto, é posta a serviço da
preservação da comunidade e da vida cultural e não do desejo instintivo de matar ou fazer
sofrer o semelhante.
Para Freud o motivo que explica a passagem da agressividade instintiva do indivíduo
para seu pacifismo orgânico é a ação da civilização. Esse conceito para o autor, ―descreve a
soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos
antepassados animais, e que servem a dois intuitos: o de proteger os homens contra a natureza
e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos‖ (FREUD, 1974, p.109). Afirma o autor:
Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais
importantes: o fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida
instintual, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas
conseqüentes vantagens e perigos. (p. 256)
Freud vê a violência como pura manifestação da agressividade, como algo, portanto,
indomável, definindo-a como instrumento ou meio de que se servem os homens para
implantarem a ordem da lei e do direito. Para ele, não existe um instinto de violência, mas um
instinto agressivo que pode se transformar em ação violenta. A afirmação do autor diz que o
homem seria intrinsecamente mau e destrutivo, tendo de ser contido em seus desejos por
forças civilizatórias, sem o que estaria condenado ao modo de viver impulsivo próprio dos
povos primitivos. Esta era uma das mais difundidas representações da sociologia emergente
de sua época, tendo o evolucionismo e uma perspectiva etnocêntrica da civilização como
matriz comum. Freud localiza o maior problema da civilização na agressividade
constitucional do homem.
Para Freud (p. 400), as tendências agressivas manifestam, em parte, um caráter
reativo; isto é, constituem uma resposta a frustrações e têm como objetivo sua superação.
Tudo que tende a aumentar o poder ou o prestígio do sujeito pode ser usado como
reasseguramento contra a angústia. O sujeito, prevendo ser atacado, faz de forma ativa em
relação aos demais o que teria de sofrer passivelmente.
De acordo com Costa (2003, p. 120), pode-se verificar que Freud admite, embora não
explicitamente, que a mera existência da agressividade instintiva não pode ser considerada
responsável pela violência na História e na cultura. Conclui que, para o autor, não há algo
semelhante ao ―instinto de violência‖ e o que aparece, nas presumíveis incoerências no texto,
é a delimitação do conceito de um instinto agressivo, que pode coexistir com a possibilidade
de o homem desejar a paz e, também, com a possibilidade de o homem empregar a violência.
20
Segundo Costa (2003, p. 124), o caráter específico da violência é o desejo de causar
mal, humilhar, fazer sofrer o outro. O ato violento porta a marca de um desejo, o emprego
deliberado da agressividade. Não há, portanto, violência instintiva, porque falar de violência é
falar de uma intenção de destruir. Poderíamos dizer que a agressividade opera, portanto,
quando há reconhecimento pelo sujeito do objeto a quem endereça sua reivindicação
agressiva.
A partir desse entendimento, é possível perceber que o ambiente social nas últimas
décadas, traz em suas práticas relacionais a violência como o seu maior flagelo, incutindo
nesse meio batalhas diárias para testar os limites da escolha individual e avaliar a extensão do
terreno a ser ganho dentro e fora desses limites. Para Bauman (2008, p. 163), quando o
―déficit‖ de legitimidade se torna característica de todas as requisições e reivindicações, as
ações empreendidas em seu nome e no seu interesse, antes percebidas como as únicas
expressões adequadas da imutável, incontestável e irresistível ordem das coisas, tendem a ser
reclassificadas aos olhos do público como atos de imposição e, portanto, de violência, ou seja,
uma espécie de coerção ilegítima. Resulta disso a impressão generalizada de um volume
rapidamente crescente de violência: outra fonte prolífica dos medos contemporâneos.
Pode-se dizer ainda que os medos são espalhados e difundidos por todo o espectro de
atividades existenciais. Suas fontes permanecem ocultas e resistem firmemente a serem
mapeadas, pois, o mistério que envolve essas fontes aumenta ainda mais seu potencial de
inspirar o medo. O problema, porém, é que esses medos não fazem sentido facilmente. Como
surgem, um a um, numa sucessão contínua, embora aleatória, eles desafiam nossos esforços
para estabelecer ligações entre eles mesmos e encontrar suas raízes comuns. Portanto, a
violência nos dias de hoje, ganhou tradução variada, de caráter múltiplo, colocando em
questionamento direitos fundamentais, valores universais, liberdades individuais e coletivas.
A dificuldade em mapear e entender o medo traduz-se em complexidade maior: a
compreensão da violência, bem como o poder instituído em suas práticas.
Por suas conseqüências trágicas e seu grande apelo publicitário, a violência é um dos
temas favoritos da mídia. Por esse mesmo motivo, a sua abordagem tem sido superficial,
reforçando estereótipos e passando longe de suas particularidades, inclusive de suas graves
conseqüências jurídicas.
A banalização da violência, através da televisão e dos jornais (imprensa marrom) é um
dos grandes exemplos que temos para desmistificar a confusão entre medo e violência. Nos
últimos meses fomos bombardeados pelo sensacionalismo do ―caso Isabela‖ (29 de março de
2008), ―CPI das milícias nos morros cariocas‖ (19 de junho de 2008), ―tribunal do crime
21
organizado‖ (24 de maio de 2008), entre outros. Para tanto, violência não é sinônimo de medo
e vice-versa. Medo diz respeito a emoções, a violência é ato e ação.
O entendimento das relações entre mídia, violência e sociedade se aproxima muito do
materialismo marxista, pois permite analisar a consciência e as idéias desenvolvidas como
reflexos da realidade material introjetada no cérebro humano. Isto se evidencia, no cotidiano,
por meio do discurso político, que trata o fator econômico como a única saída da crise
governamental. O problema da má distribuição de renda, conflitos com o Movimento dos
Sem Terra (MST), corrupção política, alto índice de inadimplência nos setores público
(recolhimento de impostos) e privado, aumento na taxa de desemprego é, conseqüentemente,
o crescimento vertiginoso da violência.
Neste cenário é que se intensificam as lutas pela sobrevivência. Pode-se conceber que
o mercado ilegal tem surgido como resposta à marginalidade econômica. Enganam-se os que
acreditam estar o aumento da violência relacionado apenas à pobreza como nos afirma
Feffermann (2006, p. 14), ―[...] não existe relação direta entre pobreza e violência, e sim
violência estruturada, perpetrada pelo Estado, que vem oprimindo grande parcela da
população e que, muitas vezes, impede o próprio sustento‖.
É notório observarmos no Brasil as cicatrizes de uma guerra não declarada, uma
guerra civil amplamente divulgada pela mídia sensacionalista, comandada por organizações
até então desprezadas pelo Estado que se autodenominam representantes do povo, mas
conhecidas como crime organizado.
Hoje, a mídia registra e divulga as ações do crime organizado, em tempo real,
fornecendo ao público todos os elementos necessários à estruturação de uma opinião parcial.
É a mídia que possibilita e determina, muitas vezes, a passividade ou pró-atividade das ações
sociais.
Contudo, o crescimento da criminalidade já não se restringe aos habitantes dos morros
e periferias; avança com extrema facilidade nas hostes das classes médias e entre famílias
perfeitamente estruturadas. Superado o espanto inicial, já nos acostumamos a ver no noticiário
os relatos de filhos matando pais e avós para obtenção de dinheiro, gangues de adolescentes
arruaceiros pilhando, agredindo e matando os rivais, jovens bem postos ateando fogo em
índios e mendigos, o consumo crescente de drogas e toda a forma de condutas anti-sociais etc.
A midiatização surge, assim, das necessidades intrínsecas ao sistema capitalista
contemporâneo, mas na sua configuração própria, especializada como campo social, adquire
aspectos singulares, que não podem ser restritos só às lógicas econômicas. Apesar do modelo
estadunidense de mídias comerciais ser atualmente o hegemônico no mundo, não é adequado
22
definir a problemática midiática só por meio dessas estruturas. Seria aceitá-la como a única
opção na definição dos sistemas midiáticos.
Na perspectiva sociológica, as mídias configuraram um campo social central nas
formações sociais modernas. São lugares obrigados de passagem, definições e publicidade
dos outros campos, alguns com maior dependência que outros, mas todos atravessados pelos
fatores semióticos. A política, a produção simbólica, a religião, a cultura, a guerra, a
economia, a educação, os movimentos sociais, o mundo do trabalho e das vivências
cotidianas são exemplos paradigmáticos disso. A midiatização, desse modo, apresenta
similaridades cruciais com as outras realidades históricas participando, de forma estratégica,
na estruturação das dimensões semiótico/ideológicas que dão sentidos à barbárie
hipermoderna.
Lamentavelmente, a cultura do medo pela violência tem encontrado, nas condições de
midiatização atual, espaços de realização que vão dos vídeo-games aos experimentos de
guerra no Iraque, na Bósnia, na Croácia, na Sérvia, na Colômbia, na Palestina e no
Afeganistão. Essas ações concretas de destruição têm uma realização, em níveis de catarse,
nas produções cinematográficas e na programação televisiva das redes mundiais sob o modelo
americano.
Foi assim, que precisamente, no dia 15/05/2006, os meios de comunicação de massa
divulgaram incessantemente os ataques ―terroristas‖ da facção criminosa, Primeiro Comando
da Capital – PCC, que ocorreram em São Paulo, Capital e região. Além do
―bombardeamento‖ de imagens repetidas, nos canais abertos, inúmeros boatos foram
espalhados ao longo do dia: explosões em lojas, ataques com metralhadora em várias
localidades, ônibus queimados, assassinato de policias, carcereiros e civis. Um pânico geral
foi criado, forçando uma interpretação limitada dos fatos sociais, reduzindo-os à dicotomia do
bem e do mal para defesa de um modo de vida baseado na marginalização dos indivíduos,
bem como na imposição de padrões de consumo irracionais.
O lazer, o entretenimento, o lúdico, o consumo de bens simbólicos e de bens materiais
foram atravessados de forma avassaladora pela ação televisiva. A mídia passou a ser vista
como a referência da população, responsável direta das notícias em circulação hora a hora,
também em tempo real, da representação maciça da ordem social. O que foi visto foram às
atrocidades e o poderio do chamado crime organizado. Já não se trata somente do tráfico de
drogas, contrabando, roubo de carga e assalto a bancos. Assistimos ao crime organizado ditar
o que a sociedade deve fazer, onde e como pode a polícia atuar, quando o comércio pode
abrir ou deve fechar. Os chefes do PCC comportaram-se como verdadeiros governadores de
23
província, substituindo em tudo a autoridade dos poderes do Estado. Estamos diante de uma
realidade, na qual a substituição do uso da palavra pelo ato violento, torna-se fator
constitutivo da vida social (Feffermann, 2006, p. 13).
Policiais baleados, bancos destruídos, distritos e viaturas policiais alvejadas foram as
imagens repetidas massivamente, o ―show-jornalismo‖ ganha forma e o grotesco surge como
instrumento de fixação. Neste contexto, segundo Arbex (2001, p. 36), a notícia sofre os
efeitos do enfraquecimento ou o total apagamento da fronteira entre real e fictício. Os efeitos
podem ser facilmente identificados, conforme analisa Sodré (1972, p. 34), o grotesco não se
define pelo monstruoso, mas pelo espetáculo que gera o medo através do estranhamento do
mundo. É a reação violenta à violência constitutiva da sociedade.
A problemática intrínseca no cenário apresentado nos remete a uma perspectiva ampla
e complexa, de proporções imensuráveis sob a ótica da relação mídia e violência. Embora as
ações do Primeiro Comando da Capital (PCC) tenham causado uma perplexidade nacional,
exarcebada pela espetacularização midiática, encontra-se no cerne desta temática, o limiar
entre manipulação dos fatos como meio de sustentação da audiência e a disseminação de uma
cultura do medo.
Assim, o público, a sociedade é sistematicamente colocada diante de uma realidade
artificial, criada pela Imprensa e que se contradiz, contrapõe-se e, de maneira freqüente,
superpõe e domina a realidade real que ele vive e conhece. A informação é trabalhada para
que se apresente como entretenimento.
Diante disso, a dissertação constitui-se de quatro capítulos. No primeiro capítulo,
propomo-nos discutir as questões relevantes que fundamentaram o entendimento sobre cultura
do medo, como conhecemos hoje. Assim destacar alguns pensadores que asseguraram a
realização teórica complexa em que se encontram esse fenômeno, abarcando todas as áreas do
conhecimento e com isso proporcionando possibilidades, como é o nosso caso, de desvendar
as questões relacionadas a esses objetos de estudo: biologia, poder, ideologia, política,
manipulação e cultura. Nesse sentido, a análise recai sobre o surgimento de uma cultura
pautada no medo. Durante toda a História do homem, foi possível observar como o medo foi
trabalhado na sociedade e, enraizou-se nas culturas, principalmente, moldando o
comportamento das pessoas.
Tal estudo, teoricamente, tem em sua base não só a sociologia, mas também a
filosofia, sem esquecer os fortes pressupostos da psicanálise. Para se fazer um estudo
minucioso é preciso retomar os conceitos que definem os vários sentidos do medo e da
violência através dos tempos, percorrendo diversos autores e linhas de pensamento que
24
compõe as perspectivas atuais. Os conceitos abordados estão ligados à origem biológica tanto
do medo quanto da violência, constituindo uma visão fundamental para o desvelar de
comportamentos, muitas vezes confundidos, associados às práticas do dia-a-dia, como nos
mostra Ciceri e Freud.
Discute-se hoje, com muita ênfase, as relações possíveis entre comunicação, poder e
política. Não se pode isolar nenhuma destas, principalmente quando se pensa no intercambio
entre Estado e Capital que já ocorre diante dos inevitáveis efeitos da globalização.
Portanto, o objetivo deste capítulo é mostrar como a insegurança e o imaginário do
medo, instalados na sociedade e tratados usualmente do ponto de vista do poder, com medidas
restritivas e isoladoras, não são despertados somente pelo exercício e pela condição da
violência cotidiana, mas por um "estado de violência" - ostensivo ou dissimulado incorporado à cultura e ao imaginário individual e social. Ambos transformam as relações
sociais, provocando a busca de novos lugares de encontro, socialidade, proteção. No cotidiano
das pessoas, precisam ser geridos por meio de práticas simbólicas e sociais diversas, que
possibilitem lidar com essas novas relações.
O segundo capítulo trata de uma revisão da literatura nacional e estrangeira sobre o
crime organizado, descrevendo o processo de desenvolvimento desse fenômeno até a criação
da facção Primeiro Comando da Capital, vulgo PCC.
Crimes contra as pessoas, crimes contra a propriedade, crimes de colarinho branco,
fraudes, corrupção, delinqüência, tráfico, desemprego; as referências de performance
criminais são complexas e antagônicas, principalmente por meio de práticas organizadas. No
contexto atual, em face da definida violência urbana, as sociabilidades públicas e a vida
privada conhecem sistematicamente novos constrangimentos pelo aumento da criminalidade
organizada, transformando nossas concepções culturais sobre a confiança.
Problematiza-se, neste capítulo, como campo de investigação, portanto, o
entendimento sobre crime organizado como processo resultante do lucro. Ao iniciarmos este
estudo, orientamos o tema do medo da criminalidade como uma das prioridades em nossos
questionamentos sociais junto aos habitantes no contexto urbano. Esta análise se soma aos
diversos estudos que compõem o entendimento desse fenômeno pouco conhecido, balizado
em diferentes publicações literárias, jornais, revistas, artigos, teses entre outros, compondo as
interfaces interpretativas deste objeto.
O terceiro capítulo consistiu na análise de pesquisa de opinião sobre os ataques do
PCC no mês de maio de 2006. Mesmo que não haja um ponto de vista teórico predominante,
o interesse pelo assunto permanece bastante acirrado ao longo dos últimos anos. A
25
importância do tema tem gerado uma produção científica crescente, além dos estudos
culturais e estéticos sobre mídia e violência. A proposta deste capítulo é discutir as várias
vertentes de análise sobre a disseminação do medo pela mídia, em particular os ataques do
PCC, a partir do resultado das entrevistas realizadas, em uma contribuição para o campo
interdisciplinar da comunicação, psicologia, sociologia e cultura.
O quarto capítulo refere-se à conclusão das análises realizadas nos capítulos
anteriores, onde se buscou respostas para as indagações que objetivaram esse trabalho. A
crítica recairá sobre a cobertura da grande mídia nos ataques do PCC no dia 15 de maio, uma
vez que em nenhum momento ela se aprofunda nas causas e nos fatores que motivaram na
paralisação do Estado.
26
2 REFLEXÕES SOBRE UMA CULTURA DO MEDO
2.1 Cultura e Medo
A violência, na forma como vem se constituindo na realidade, faz emergir o medo, que
leva as pessoas a paralisarem ou alterarem suas relações e suas formas de ser no espaço em
que vivem, principalmente, nos contextos individuais. Por se tratar de um sentimento, de uma
emoção, os efeitos e reações que o medo provoca são distintos. Interferem nisso as
singularidades de cada pessoa, sua história, seu repertório, suas experiências e os contextos
individuais nos quais o medo é desencadeado. Portanto, o medo está vinculado
fundamentalmente à cultura, como também à violência, que só existe em relação a uma lei.
Frente a isso, podemos afirmar que o medo da morte representa a fonte de todos os
medos. A dualidade em se entender algo tão enigmático, corresponde a uma estrutura mental
estável, ou melhor, um sentimento suscetível ao perigo. Assim, o medo da morte se configura
como o extremo, ou seja, a sensação de perigo do fim ou término da vida. Todos os medos
contêm, em graus diferentes, essa apreensão biológica fundamental da morte; e, portanto, o
medo não desaparecerá da condição humana ao longo de nossa peregrinação terrestre.
Pode-se pensar, ainda, complementando o conceito de medo, segundo Wolff (in
NOVAES, 2007, p. 21-23), há no temor à morte quatro paradoxos que fazem dele algo
completamente singular e que dão seu conteúdo, seu teor, sua cor particular. O primeiro diz
que a idéia da morte mistura certeza absoluta com uma incerteza também absoluta, pois é
totalmente seguro dizer que um dia morrerei, e absolutamente incerto quando. O segundo fala
que a idéia da minha morte é um pensamento extremamente simples no seu conteúdo, mas
impossível na sua forma. Não posso ser sem o mundo, uma vez que ser, para mim, é estar no
mundo. É essa mistura singular de uma idéia muito simples de conceber racionalmente com
algo totalmente impossível de imaginar que constitui a idéia de morte, e talvez seu caráter
assustador. Em um terceiro ponto, a morte é arquétipo, razão de ser de todos os medos, o
medo por excelência e, em outro sentido, ele é o único que parece ser vazio de si próprio. Por
último, o medo da morte constitui ao mesmo tempo, aquilo que desperdiça nossa vida e aquilo
que a protege (sobrevivência). O medo e a dor são males da vida que nos protegem da morte.
Portanto, essas são as singularidades do medo da morte. A dificuldade em se
interpretar a morte para o ser humano se dá também pela própria estrutura do pensamento que
faz com que o indivíduo não consiga imaginar que estar morto não quer dizer nada. A própria
27
língua, como nos lembra Wolff (in NOVAES, 2008, p. 35), é um impedimento quando
conjugamos o verbo estar: dizemos ―estar morto‖, como ―estar vivo‖; como se fossem dois
estados, dois modos de estar. Mas, na verdade, há apenas um modo de estar para um vivo,
que é o de estar na vida. Estar morto não é estar, não é nada. A imaginação repudia o próprio
não-ser quanto à concordância gramatical.
É interessante, também, destacar que a morte é aterradora por uma qualidade
específica, a de tornar todas as outras qualidades não mais negociáveis. A memória da morte é
parte integrante de qualquer função da vida. A ela se atribui grande autoridade, talvez a maior,
quando quer que se precise fazer uma escolha numa existência cheia de escolhas. A luta
contra a morte começa no nascimento e continua presente pela vida afora, ou seja, é a
sobrevivência de todos os seres vivos.
De outro modo Bauman (2008, p. 44), afirma que nossos ―contos morais‖ tentam nos
vacinar contra esse medo banalizando a visão do morrer. São ensaios gerais diários da morte
travestida de exclusão social, na esperança de que, antes que ela chegue em sua nudez, nós
nos acostumemos com sua banalidade.
A esse processo chamamos de cultura, ou seja, um mecanismo dinâmico e adaptativo,
que garante a sobrevivência de seus portadores, ou seja, os membros de um grupo social
específico. Sua função básica é manter a coesão do grupo, resistindo às mudanças trazidas por
processos econômicos e políticos, sejam eles internos ou externos. Conforme assinala
Eagleton (2003, p. 18),
O que faz nossa cultura, então, é destilar nossa humanidade comum a partir de
nossos eus políticos sectários, resgatando dos sentidos o espírito, arrebatando do
temporal o imutável, e arrancando da diversidade a unidade. Ela designa uma
espécie de autodivisão assim como uma autocura pela qual nossos eus rebeldes e
terrestres não são abolidos, mas refinados, valendo-se de dentro por uma espécie
mais ideal de humanidade.
Portanto, a cultura molda os indivíduos por meio da assimilação normativa de atitudes,
costumes e valores; onde o medo torna-se parte integrante desse contexto. Podemos
interpretar que a cultura do medo é construída, e o importante nesse processo, é identificar as
razões que justificam a existência de determinados costumes. Razões acabam por envolver
histórias e, algumas leis existem e governam o crescimento da cultura humana. Nesse sentido,
como afirma Morin (1970, p. 254), o risco da morte está ligado à instituição da cultura, à
instituição do valor universal do indivíduo, à realização e à realidade de uma e de outra, de
uma na outra, sendo que risco de morte não é a morte. O risco de morte cultural exige-nos
28
simultaneamente que nos defendamos do medo da morte e que lhe conservemos o nosso
horror.
Para tanto, segundo Freud (1974, p. 61),
[...] todas as vezes que tentamos representar nossa própria morte, percebemos que
assistimos a isso como espectadores; é por isso que, no fundo, ninguém acredita na
própria morte, ou, o que dá no mesmo, no inconsciente, cada um está convencido de
sua própria imortalidade.
Acreditar que a alma nunca morre é apenas a contrapartida imaginária do fato de que o
pensamento jamais pode ser considerado não-existente. Temos o sentimento de que jamais
terminaremos de viver, uma vez que sempre haverá algo para viver ou desejar. O temor,
então, não é a própria morte na vida, mas já estar mortos, enquanto ainda estamos vivos, ou
seja, estar ao mesmo tempo vivos e mortos, fora do mundo enquanto ele avança, em
conformidade com o próprio processo do pensamento e do desejo. Nesse sentido, Morin
(1970, p. 32) afirma que o horror da morte é a emoção, o sentimento ou a consciência da
perda da individualidade. ―Emoção-choque, de dor, de terror ou de horror‖. Segundo o autor a
ruptura causada pelo mal da morte consiste em uma ruptura catastrófica para o indivíduo, ou
seja, um sentimento traumático. A violência do traumatismo provocado por aquilo que nega a
individualidade implica, portanto, uma afirmação não menos intensa da individualidade, quer
seja a nossa própria ou a do ente querido. A individualidade que se revolta perante a morte é
uma individualidade que se afirma sobre a morte.
Dessa maneira, o homem é, então, o animal mortal que, como dizia Hegel (2002, p.
32), deixa de ser animal quando lembra que é mortal. O medo da morte não é apenas um
medo humano universal, mas também um medo propriamente humano, aquele que alça a
animalidade do homem acima da animalidade. Segundo Morin (1970, p. 10-11),
A existência da cultura, isto é, dum patrimônio colectivo de saberes (saber fazer,
normas, regras organizacionais, etc.), só tem sentido porque as gerações morrem e é
constantemente preciso transmiti-la às novas gerações. Só tem sentido como
reprodução, e este termo assume o seu sentido pleno em função da morte.
Assim, todas as culturas humanas podem ser decodificadas como mecanismos
engenhosos calculados para tornar suportável a vida com a consciência da morte. Diante disto,
o convívio com o medo está relacionado com diversas formas e origens, ligado ao presente e
futuro das pessoas. A complexidade dessa extraordinária emoção perpassa tanto o plano
neurofisiológico como o psicológico, ao mostrar que através do medo enfrentamos o perigo.
29
Nesta análise, cultura do medo deriva do entendimento de um processo histórico
específico demonstrando a existência de uma cultura única, que descreve sua forma, a reação
dinâmica do indivíduo para com a cultura e vice-versa. Para tanto, sendo a parte ―aprendida‖
do comportamento humano, a cultura em seus variados aspectos confere ―sentido‖ para a vida
dos seres humanos, que se comportam de acordo com as normas e valores, ordenados e
expressos por uma linguagem de símbolos e em conjunto constituem o estilo de vida do
grupo. Segundo Eagleton (2003, p.18), ―[...] a cultura é uma forma de sujeito universal agindo
dentro de cada um de nós, exatamente como o Estado é a presença do universal dentro do
âmbito particularista da sociedade civil‖.
Segundo Rattner (2002, p.16)
O processo de socialização constitui parte central dos mecanismos pelos quais o ser
humano se ajusta ao convívio com os outros, adquirindo o acervo de normas e
padrões de conduta econômicos, sociais, tecnológicos, religiosos, estéticos e
lingüísticos enfim, o conjunto que compõe o estilo de vida ou cultura do grupo. A
internalização dos padrões culturais pelo indivíduo, nos primeiros anos de vida,
fortalece os mecanismos de estabilidade cultural, enquanto a incorporação de novos
padrões por indivíduos maduros influi mais na mudança cultural. A primeira fase de
aprendizado marca a criança de modo tão profundo que seu comportamento
raramente chega ao nível de consciência. Sendo condicionada sistematicamente a
conformar-se, seja através da doutrinação do código moral-religioso ou do exercício
de técnicas de recompensas e punições, a sociedade procura e consegue assegurar
sua estabilidade pela imposição de um sistema elaborado de sanções – positivas para
os conformistas e negativas para os que se desviam do comportamento ―normal‖
esperado.
Portanto, a cultura do medo pode ser somente explicada pela própria cultura da morte,
ou seja, é preciso conhecer o contexto em que ela se forma. A argumentação de Hatch
explica: ―[...] a idéia de relativismo cultural significa que a pessoa só pode entender as
práticas de uma determinada sociedade dentro de seu contexto cultural específico‖ (1990 apud
MOORE, 1996, p. 65). Entendemos assim que, para estudarmos um processo cultural do
medo, a única forma de conhecer o significado de um determinado comportamento violento é
avaliando sua experiência em termos de motivos, emoções e valores institucionalizados na
cultura, ou seja, estudando a cultura vivenciada pelas pessoas e conhecendo seus hábitos e
pensamentos, e as funções de suas instituições. Esse conhecimento não surge só de uma
reconstrução; é necessário que o momento esteja ocorrendo para essa identificação. O objeto
dessa investigação é encontrar o processo pelos quais certos estágios de cultura são
incorporados o medo, aprendendo as razões para a existência de determinados costumes e
crenças a partir de nosso contexto atual.
30
Nesse sentido, o conjunto de leis de uma determinada sociedade, de um país
específico, constitui o fator que ratifica e demarca raias da violência em cada sociedade,
sendo a violência ―um fato da cultura‖, e ―[...] psicanaliticamente essa lei ou contrato diz
respeito ao direito que todo sujeito tem de ocupar um lugar irreversível na cadeia das
gerações, conforme o sistema de regras que ordena seu meio sociocultural‖ (COSTA, 2003, p.
126). O que equivale a dizer que a todo sujeito é assegurado o direito a uma identidade
compatível com o desenvolvimento de sua vida, de sua história e do próprio sistema de regras.
Essa identidade é o que garante a transmissão desse direito às gerações futuras e obediência a
suas leis. Representam as condições necessárias à sobrevivência do sujeito e do grupo social.
Para Morin (1970, p. 253),
A cultura só tem sentido como luta de morte contra o mundo natural, a animalidade
e a barbaria, fora do homem e no homem. O que mata é a barbaria, e se a barbaria
não matasse não seria a barbaria, seria já a cultura. Ou antes, a cultura não existiria,
porque nunca teria havido tomada de consciência da cultura, nem talvez
simplesmente tomada de consciência.
Para aprofundar a questão, recorremos aos escritos de Espinosa. O filósofo nos indica
que ―conhecer alguma coisa adequadamente é conhecer o modo de produção‖ (ESPINOZA,
2003, p. 97). Conhecer pela causa significa descobrir o modo pelo qual é produzido. Trata-se,
portanto, de um processo genético. Alerta, ainda, que o conhecimento verdadeiro se dá através
do ―conhecimento das leis que produzem as coisas singulares e que determinam a natureza
própria de cada um deles no todo‖ (ESPINOZA, 2003, p. 98). Entende o autor que as coisas
singulares são finitas e sem uma existência determinada. Diz que ―[...] vários indivíduos
concorrem para uma mesma ação, de tal maneira que todos em conjunto sejam causa de um
mesmo efeito, considerando-os todos juntos como uma só coisa singular‖ (1983 apud
CHAUÍ, 2003, p. 131).
Espinosa afirma que o esforço realizado pelo homem para preservar sua existência,
vencendo obstáculos exteriores para se expandir e realizar-se plenamente, é o que ele
denomina de conatus. Trata-se do ―movimento interno do corpo e anexo interno das idéias na
alma‖ (ESPINOZA, 2003, p. 34), que vai se constituir na essência do homem. Cada conatus
se relaciona com outro conatus, podendo ou não realizar verdadeiras guerras de uns contra
outros para poder se preservar. É o mundo exterior que possibilita o aumento ou a diminuição
do conatus de cada um, e são entendidas como causas adequadas e causas inadequadas. As
primeiras referem-se à ação e significam apropriar-se de todas as causas exteriores que podem
aumentar e fortalecer o poder de conatus. Já a causa inadequada está vinculada ao que ele
31
denomina paixão, que significa deixar-se vencer pelas causas exteriores, o que faz diminuir o
poder de conatus. Segundo Chauí (2003, p. 137), ―[...] o corpo e mente se relacionam de
maneiras diversas com as causas externas, conforme as afecções corporais e suas idéias
dependam de constituintes mais fracos ou mais fortes‖. Ação para Espinosa é potência
positiva guiada pelo intelecto e paixão é potência em declínio guiada pela imaginação.
A pessoa livre, que sabe e vive o sentido da liberdade, é aquela que não se deixa
subjulgar e vencer pelo exterior, mas que, conhecendo as leis da natureza e de seu corpo, sabe
dominar o mundo exterior ((ESPINOZA, 2003, p. 123). O papel do Estado, por exemplo, não
seria de subjulgar pelo medo. Mas, de libertar os indivíduos do medo para que vivam em
segurança. É, a partir desse pressuposto, que Espinosa definirá a essência humana pelo desejo.
―O desejo é a tendência interna de conatus a fazer algo que conserve ou aumente sua força. O
desejo do homem livre é o desejo no qual, entre o ato de desejar e o objetivo desejado, deixa
de haver distância para haver união‖ (ESPINOZA, 2003, p. 124). O filósofo, em sua obra,
trata das formas como as pessoas são afetadas por coisas exteriores e de como essas afecções
podem diminuir ou aumentar a potência do agir, ou seja, do conatus. O autor define
―afecções‖ como ―afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada
ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as idéias dessas afecções‖ (ESPINOZA,
2003, p. 124).
Nesse sentido, as afecções podem ter causas adequadas, ou seja, aquelas cujo efeito
pode ser clara e distintamente compreendido, e causas inadequadas ou parciais, cujo efeito
não poder ser conhecido. Dirá Espinosa que os homens são ativos, ou seja, têm uma ação
quando se produz neles, ou fora deles, qualquer coisa que seja adequada. Quando a pessoa
pode ser adequada de uma afecção, Espinosa entenderá isso como ação, nos outros casos,
entenderá como uma paixão. Ação e paixão são intrínsecas e qualitativamente distintas, da
mesma maneira que o corpo e mente são singularidades complexas, podendo ser desiguais
quanto à potência de existir e agir. Entretanto, coloca Chauí (2003, p. 137) que ―somos ativos
e passivos por inteiro, de corpo e mente simultaneamente‖.
Um dos postulados de Espinosa é que o corpo humano pode ser afetado de diferentes
maneiras, cuja potência para ação pode diminuir ou aumentar, e por outras que nem
aumentam nem definem sua potência para agir. O corpo humano pode sofrer inúmeras
transformações e conservar-se. Entretanto, independentemente das transformações ocorridas,
as impressões ou vestígios de objetos e situações e, conseqüentemente, as imagens das coisas
permanecem nas pessoas. Afirma ele, em sua proposição XVIII, que o homem experimenta
pela imagem de uma coisa passada ou futura a mesma afecção de alegria e tristeza que pela
32
imagem de uma coisa presente. Portanto, a imagem da coisa e a imaginação são elementos
importantes na forma de afecção das pessoas.
Com base neste pensamento, Espinosa distingue esperança e medo, relacionando-os à
segurança e ao desespero. A esperança é uma alegria instável, nascida da imagem de uma
coisa futura ou passada, cujo resultado duvidamos; já o medo, ao contrário, é uma tristeza
instável, nascida também da imagem de uma coisa duvidosa. A incerteza aparece como
componente presente na esperança e no medo. Ao retirar a dúvida dessas afecções, a
esperança transforma-se em segurança e o medo, em desespero.
Em sua proposição XIX, Espinosa reafirma que uma coisa pode, acidentalmente ser
causa de esperança e medo. Causas de esperança ou de medo seriam os chamados bons e
maus presságios, sendo, portanto, causas de alegrias e de tristeza. Acrescenta, ainda, que é
próprio da natureza humana acreditarmos com facilidade naquilo que esperamos ou de
raramente acreditarmos no que tememos, formando em torno da questão opiniões favoráveis.
É aí que Espinosa coloca o surgimento das superstições, das quais os homens tendem a ser
vítimas. ―A superstição é descrita como a maneira de desespero que, por seu turno, buscando
alento, abre as comportas da servidão‖ (CHAUÍ, 1998, p. 61). Não há esperança sem medo,
nem medo sem esperança. A temeridade e a esperança, em alguma coisa, baseiam na incerteza
de algo favorável ou algo tremendamente assustador. Portanto, esperança e medo têm
fundamentos na incerteza, na dúvida do que virá.
Chauí (1995, p. 56), ao analisar Espinosa, afirma que o medo
[...] nasce de outras paixões e pode ser minorado (nunca suprimido) por outros
afetos contrários e mais fortes do que ele, como também pode ser aumentado por
paixões mais tristes do que ele. Ainda que o conhecimento de verdadeiro não o
suprima e que a ignorância não o cause, é nela e dela que ele vice e prospera.
O medo é uma triste paixão, que se nutre da ignorância, que tem origem e efeitos não
como uma paixão isolada, mas articula-se a outras paixões e imagens corporais. O medo
―envolvendo as idéias imaginativas na mente, urde um tecido de relações e causalidades
abstratas que pretendem oferecer-se como explicação dos acontecimentos, como interpretação
dos afetos e como conhecimento do real‖ (CHAUÍ, 1995, p. 57). As idéias imaginativas
constituem-se no que se denomina um ―sistema de medo‖ e forma um campo imaginário.
O campo imaginário, ―ao atribuir causas exteriores, o que são efeitos das causas
interiores, relaciona imagens por semelhança, contigüidade espacial e sucessão temporal,
opera com analogias e inventa uma causalidade nova e inexistente, isto é a causa final
(CHAUÍ, 1995, p. 57). A esse finalismo, Espinosa chamará de ―Ordem Comum da Natureza‖,
33
―onde corpos se encontram, se separam, concordam ou entram em conflito sem que saibamos
realmente como e por que isso acontece‖ (apud CHAUÍ, 1995, p. 57).
Em resumo, uma coisa pode afetar de forma diversa, diferentes pessoas, e a própria
pessoa, em momentos temporais e espaciais diferenciados, pode ser afetada por uma coisa de
forma diferente. Uma pessoa pode odiar alguma coisa que a outra ama; algumas podem ter
medos que outras não têm e, ao longo de sua existência, podem ter medos que nunca tiveram
segundo a forma como são afetadas pelas coisas. Por isso, estudar o medo é analisar como ele
é produzido de maneira singular – coletiva em contextos sociais e individuais historicamente
situados.
Embora possa ser expresso socialmente, fruto de relações sociais, ele é construído e
processado de forma singular por sujeitos singulares em situações semelhantes e similares. É
o eu que tem medo. É o eu que se sente agredido e violentado. É o eu que é afetado e reage de
diferentes formas. É a mãe que tem medo de morrer se assumir a denúncia da pessoa que
matou seu filho. É o morador que tem medo de denunciar o traficante e todas as suas ações
ilícitas e perversas. É o profissional que tem medo de admitir que para desenvolver trabalhos
em áreas de risco precisa construir a cada momento pactos. É o soldado do crime organizado
que tem medo de perder sua vida e seus sonhos. É o policial que tem medo de perder sua vida
em uma ação. Como assinala Chauí (1995, p. 60), dentre todos os afetos e sentimentos, ―mais
do que qualquer outro afeto, no medo, ficamos expostos à imagem de nossa impotência‖.
2.2 A História do Medo no Ocidente
O estudo do medo não é algo recente, desde a Grécia antiga foi possível encontrar
escritos a respeito. De qualquer forma, a forma como lidamos com o medo hoje se enraíza na
idade média. Segundo Delumeau (2003, p. 9), na história européia, a mentalidade obsessiva
foi acompanhada de uma culpabilização maciça, por meio de uma promoção sem precedentes
da interiorização e consciência moral promovida pela Igreja Católica nos séc. XIV à XVIII. O
medo, naquela época foi utilizado constantemente como ferramenta de dominação e controle.
Diante disso, nasceu uma ―doença do escrúpulo‖, pondera o autor, amplificada pela
agressividade desencadeada contra os inimigos do nome cristão. Para Delumeau (2003, p. 9)
era ―[...] uma angústia global, que se fragmentava em medos ‗nomeados‘, descobriu-se um
novo inimigo em cada um dos habitantes da cidade assediada; e um novo medo: o medo de si
mesmo‖.
34
O medo sentido pela civilização européia, diz Delumeau (2003, p. 12), no início dos
tempos modernos e antes da descoberta do inconsciente, caracterizados pelo temor, pavor,
terror e sobressalto, eram suscitados pelos perigos exteriores de toda a natureza provenientes
dos elementos e dos homens, assim juntaram-se a dois sentimentos não menos opressivos: o
horror do pecado e a obsessão da danação. A insistência da Igreja sobre um e outro levou, no
âmbito de uma sociedade inteira, a uma desvalorização espantosa da vida material e das
preocupações cotidianas. Para tanto, era considerada a afirmação de que ―Deus envia três
flagelos aos homens em punição de seus pecados: a fome, a guerra e a peste‖ (p. 70).
Diante disso, no discurso religioso da época, o homem era obrigado a pensar
incessantemente na morte a fim de evitar os pecados que poderiam levá-lo ao inferno. ―Devese pensar continuamente na morte como se permanece alerta em relação a um inimigo que
pode sobrevir de improviso‖ (p. 71). Podemos certamente dizer, julgando as coisas a partir da
noção de poder, que a dramatização do pecado e de suas conseqüências reforçou a autoridade
clerical, mas não reduziu a história da culpabilização a uma história do poder da Igreja.
Nesse sentido, Delumeau (2003, p. 13) acrescenta,
As duas estiveram certamente ligadas, mas a primeira ultrapassa amplamente a
segunda. Freud e Jung estão de acordo nesse ponto para sublinhar o lugar que todo o
estudo das sociedades deveria conceder ao pecado. Freud apresenta o sentimento de
culpabilidade como problema capital da civilização e Jung afirma: ―Nada é mais
propício a provocar a consciência e alerta do que um desacordo consigo mesmo‖.
Para tanto, o convite a um exame de consciência induz, na longa duração, a um
refinamento sem precedente da introspecção, ocasionando um progresso do sentido na
responsabilidade individual, ou seja, desenvolveu-se uma moral da intenção. Segundo o autor,
o homem cristão, submisso à culpabilização intensiva, foi levado a se aprofundar, a conhecer
melhor seu passado pessoal, a desenvolver sua memória e a precisar de sua identidade.
De qualquer forma, não se pode analisar e buscar explicações para a questão da
violência e do medo desvinculados das diferentes formas de interação social. Segundo
Delumeau (1996, p. 23), nada é mais difícil de analisar do que o medo. Essa dificuldade
aumenta ainda mais, quando se trata de passar do indivíduo ao coletivo. Ele se pergunta se as
civilizações podem morrer de medos como pessoas isoladas. Alerta para ambigüidades e
riscos de passagem do singular para o geral. Questiona o autor se uma concepção individual
pode ser tratada pelo coletivo. Distingue reações de medo coletivo de multidões e medos
particulares provocados por um perigo repentino, que gera reações habituais em que ―[...]
subentende e totaliza muitos pavores individuais em contextos determinados e faz prever
35
outros em casos semelhantes‖ (DELUMEAU, 1996, p. 24). O autor trata desse medo, de
forma mais ampla, que têm sua gênese não só em experiências individuais, mas no que ele
chama de singular coletivo, ―o medo é aqui o hábito que se tem, e um grupo humano, de
temer tal ou tal ameaça (real ou imaginária)‖ (p. 24).
A esse medo, que têm sua gênese nesse singular coletivo, trataremos como medo
social. O medo social é um medo construído socialmente, com o fim último de submeter
pessoas e coletividades inteiras a interesses próprios ou de grupos, e tem sua gênese na
própria dinâmica da sociedade. Sendo assim, o medo é produzido e construído em
determinados contextos, tanto sociais quanto individuais, por determinados grupos ou
pessoas, com vistas a atingir determinados objetivos em subjulgar, dominar, controlar o outro,
e grupos, através da intimidação e coerção. O medo social leva as coletividades, localizadas
em determinados espaços, a temer tal ameaça advinda desses grupos.
Por exemplo, ao recorrer a Paul Valéry, no livro Oeuvres (1957 apud NOVAES, 2007,
p. 9), observamos que a vida social se define como a passagem da brutalidade à ordem. Como
a barbárie é a era dos fatos, diz ele, é necessário, portanto, que a era da ordem seja o império
das ficções, pois ―não existe potência capaz de fundar a ordem apenas sobre a violência dos
corpos sobre os corpos. A ordem exige a ação de presença de coisas ausentes; ela resulta de
um equilíbrio dos instintos pelos ideais‖. Em toda ficção, devemos descobrir no medo razões
que criam novas e diversas significações. Como observa Rancière (in NOVAES, 2007), o
medo é cúmplice da razão. Já para Hobbes (1983, p. 100), medo é o princípio natural das
sociedades, hábil e grosseiramente usado pelo poder em busca da obediência civil.
Para Hobbes (1983, p. 111), o homem sempre tem medo de ser morto ou escravizado e
esse temor, em última instância, é a paixão que vai dar a palavra à razão. É o medo, portanto,
que vai obrigar os homens a fundarem um estado social e a autoridade política. Os homens,
portanto, vão se encarregar de estabelecer a paz e a segurança. Só haverá paz concretizável se
cada um renunciar ao direito absoluto que tem sobre todas as coisas. Isto só será possível se
cada um abdicar de seus direitos absolutos em favor de um soberano que, ao herdar os direitos
de todos, terá um poder absoluto. Não existe aí a intervenção de uma exigência moral.
Simplesmente o medo mostra-se maior do que a vaidade, e os homens concordam em
transmitir todos os seus poderes a um soberano.
Segundo Hobbes (1983, p. 118),
[...] é preciso que haja um Poder constrangedor; inicialmente, para forçar os homens
a executar seus pactos pelo temor de uma punição maior do que o benefício que
poderiam esperar se os violassem, em seguida, para garantir-lhes a propriedade do
36
que adquirem por Contrato mútuo em substituição e no lugar do Direito universal
que perdem. E não existe tal poder constrangedor antes da instituição de um Estado.
É o que também resulta da definição que as Escolas dão geralmente da justiça, a
saber, que a justiça é a vontade de atribuir a cada um o que lhe cabe pertencer; pois,
quando nada é próprio, ou seja, quando não há propriedade, não há injustiça; e onde
não há Poder Constrangedor estabelecido, em outras palavras, onde não há Estado,
não há Propriedade e cada homem tem direito a todas as coisas. (HOBBES, 1983, p.
118)
Nesse sentido, Hobbes afirma que o direito não tem outro limite quanto ao seu poder e
sua vontade. No estado de sociedade, como no de natureza, a força é a única medida do
direito. No estado social, o monopólio da força pertence ao soberano. Houve, da parte de cada
indivíduo, uma atemorizada renúncia do seu próprio poder. O efeito comum do poder
consistirá, para todos, na segurança, uma vez que o soberano terá, de fato, o maior interesse
em fazer reinar a ordem se quiser permanecer no poder. Apesar de tudo, esse poder absoluto
permanece um poder de fato que encontrará seus limites no dia em que os súditos preferirem
morrer do que obedecer.
Em todo caso, essa é a origem psicológica que Hobbes atribui ao poder despótico. Ele
chama de Leviatã ao seu estado totalitário em lembrança de uma passagem da Bíblia (Jó
XLI), em que tal palavra designa um animal monstruoso, cruel e invencível que é o rei dos
orgulhosos. Mas, como em Hobbes aprendemos também no ensaio de Maria Limongi (apud
NOVAES, 2007, p. 10), que se pode fazer outro uso do medo e
[...] retirar dele outros efeitos que não a obediência civil fundada sobre a ignorância
e o medo invisível. O homem pode conhecere tornar visíveis as causas próximas do
medo que lhe é peculiar e, em consequência deste esforço cognitivo, instituir uma
nova política, na qual ele é artificialmente racionalizado.
Em Hobbes (1983), o medo aparece como um operador positivo, criador da ordem,
propulsor da civilidade. Mas, ao analisar o medo em Tocqueville, o historiador Marcelo
Jasmim (apud NOVAES, 2007, p. 112), aponta outra direção:
Não é o medo do escravo em relação ao poder despótico do senhor, mas é o medo
burguês da revolução e da alteração do usufruto regular e satisfeito de bem-estar no
âmbito da vida privada. Para Toqueville, a nova forma da necessidade da segurança
intrínseca às sociedades democráticas modernas traz consigo o risco de inverter as
tendências até então consideradas naturais pela tradição: o silêncio das cidades se
oferece em troca da segurança; e o despotismo pode, então, florescer no Ocidente.
O pensamento clássico nos ensina, portanto, que o medo é um sentimento natural, uma
vez que ele é sempre a tomada de consciência de um perigo. Medo, historicamente, sempre
veio associado à idéia de covardia, oposto a coragem. Ter medo, sempre conotou a idéia de
37
falta de valentia, portanto, motivo de vergonha. Segundo Delumeau (1996, p. 11), o medo e o
papel do medo na História da humanidade sempre foram camuflados. Para o autor,
Por causa de uma confusão mental amplamente difundida entre o medo e covardia,
coragem e temeridade. Por uma verdadeira hipocrisia, o discurso escrito e a língua
falada – o primeiro influenciando a segunda – tiveram por muito tempoa tendência
de camuflar as reações naturais que acompanham a tomada de consciência de um
perigo por trás de falsas aparências de atitudes ruidosamente heróicas.
Desde a Antiguidade, sobretudo no período Renascentista, o medo foi visto como
sinônimo de covardia. Chauí (2006, p. 85), em seus estudos, recoloca a construção histórica
da valorização da coragem e do desprezo ao medo. Segundo a autora, coragem é virtude
natural dos nobres, enquanto o medo se constitui virtude intrínseca da plebe. ―Por natureza, a
plebe é covarde e, por natureza, seu mote é o medo‖ (1995, p. 42). O advento da sociedade
burguesa introduz a mudança dos valores éticos e sociais, transformando também a maneira
de definir e de se localizar o medo, que deixa de ser o vício característico da plebe para
tornar-se um sentimento comum a todos os homens (CHAUI, 2006, p. 87).
O medo exerceu ao longo de dois milênios o papel de ―distintivo social‖ e de
―instrumental político‖. Apregoar o medo à plebe, ao passo que a coragem era um ―dom‖ dos
nobres, fazia crer que um ―não nobre‖ jamais chegaria a se tornar um deles, não colocando em
risco a nobreza.
Esse arquétipo do cavalheiro sem medo, perfeito, é constantemente realçado pelo
contraste com uma massa considerada sem coragem. Virgílio já escrevera: ―O medo
é a prova de um sentimento baixo‖ (Eneida, IV, p.13). Essa afirmação foi tida como
evidente por muito tempo. (DELUMEAU, 1989, p. 14).
A ascensão burguesa ocorrida, no final da Idade Média, fez com que a exaltação à
coragem dos nobres se tornasse ainda mais evidente. A nobreza, sentindo-se ameaçada,
usufruiu do medo como uma insígnia para reafirmar sua condição social e a legitimidade de
seu poder político sobre os demais (ELIAS, 1990)
A evolução deste pensamento, forjado pela violência, nos revela um sentido
ideológico na constituição do medo. No momento em que a ideologia burguesa (conceito
marxista de que as idéias da classe dominante são as idéias dominantes) ultrapassa o sentido
da relação divina, a divisão social se constitui pelo antagonismo dos opostos: desejo dos
grandes em comandar e oprimir e o do povo de não ser oprimido nem comandado. Chauí
(2006, p. 89) afirma que a ideologia burguesa elaborou as teorias do contrato social e do
pacto social. A partir disso, podemos recorrer a Maquiavel (1996, Cap.IX), onde toda cidade
38
é constituída pela divisão entre dois desejos opostos: o desejo dos grandes de comandar e
oprimir e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado.
Tirano e plebe fazem parte dos extremos da divisão social, que é mantida como
apogeu da burguesia. Com o surgimento do Protestantismo, neste período histórico, afirma
Chauí (1995, p. 42), a virtude passe a ser o trabalho e o vício, à vadiagem. A disseminação e
compreensão do medo ganha novos contornos. Assim, a plebe passa de medrosa para vadia.
Vadiagem, enquanto sinônimo de ócio e vício, oposta à virtude, vista como temível.
Nesse contexto, pode-se observar que a marca fundamental da sociedade moderna, em
relevância ao processo histórico, encontra-se no fato de que não pode colocar sua origem na
vontade de Deus, mas é forçada a reconhecer que as relações sociais, o poder e a lei são
produzidos pela própria sociedade ou pela própria ação social dos homens divididos, seja
como indivíduos isolados, seja como indivíduos separados em grandes, opressores, e povo,
que não deseja ser oprimido (CHAUÍ, 2006, p. 90). Dessa maneira, a corrente de pensamento
político nascida com Maquiavel opõe-se às teorias do contrato social ou do pacto social,
teorias que vieram a ser criticadas por Marx, quando expôs as determinações econômicas do
surgimento social.
Com o desenvolvimento do capitalismo, aparecerá o esforço da ideologia burguesa
para afirmar o controle humano sobre o tempo, recuperando, de maneira laica, a
teologia da história providencial, isto é, a imagem do bom tempo, ou seja, a
ideologia do progresso. (CHAUÍ, 2006, p. 92)
A ascensão burguesa trouxe novas formas de desenvolvimento e, principalmente de
controle social, mas nada comparado à sensação de insegurança que nos acompanha até os
dias de hoje. Para tanto, entende-se que a necessidade de segurança é intrínseca ao homem e
simboliza a vida, enquanto a insegurança sinaliza a morte. Delumeau (1996, p. 19) afirma que
―a necessidade de segurança é, portanto, fundamental: está na base da afetividade e da moral
humana. A insegurança é o símbolo da morte e a segurança, o símbolo da vida‖.
Com base nessa afirmação, Castel (2005, p. 14) parte da constatação de que as
sociedades modernas são construídas sobre o alicerce da insegurança, pois não encontram em
si a capacidade de assegurar proteção. Em contraste com as sociedades pré-industriais, a
segurança do indivíduo era garantida a partir de sua pertença à comunidade: a chamada
proteção de proximidade. A sociedade moderna, segundo o autor, tem como premissa a
promoção do indivíduo, em que ele é reconhecido por si mesmo, independentemente de sua
inscrição em um grupo ou coletividade. Trata-se de uma sociedade individualista. O que lhe
39
dará proteção não será mais o grupo a que pertence, mas sua propriedade. É ela que garante a
segurança diante dos imprevistos da existência.
Castel (2005, p. 30) lembra que não foi por acaso que a propriedade foi colocada na
categoria dos direitos inalienáveis e sagrados da Declaração Universal dos Direitos Humanos
e Cidadãos. Os indivíduos proprietários podem proteger-se por si mesmos, com seus recursos.
No que se refere à proteção, o autor distingue dois tipos: a proteção civil, que diz respeito aos
bens e às pessoas em um estado de direito, e a proteção social, que se refere aos riscos de
doenças, aos acidentes, ao desemprego, à incapacidade de trabalho devido à idade. Assim, o
sentimento de insegurança se refere à possibilidade de estar à mercê de qualquer
eventualidade. Se o indivíduo não estiver assegurado contra esses imprevistos, passa a viver a
insegurança.
É interessante a constatação do autor de que a demanda de proteção das sociedades de
indivíduos é infinita e envolve todos os aspectos, inclusive os da vida privada. No entanto,
essa busca de segurança absoluta entra em contradição com os princípios do estado de direito,
visto que uma demanda de segurança se traduz em uma demanda de autoridade, que pode
ameaçar a democracia. No entanto, nem todo membro da sociedade de indivíduos pode se
assegurar, visto que uma significante parcela não possui propriedade que garanta a sua
proteção. A esses sujeitos não proprietários o Estado garante um novo tipo de propriedade: a
social, que diz respeito à proteção e ao direito da condição de trabalhador. Desta forma, a
propriedade social reabilita a classe não proprietária, condenada à insegurança social
permanente. Com a garantia de recursos e direitos comuns, com base nas organizações
profissionais, a sociedade salarial passa a se constituir no que o autor denomina de sociedade
de semelhantes.
Assim, na argumentação de Castel (2005, p. 50), ser protegido em uma sociedade
moderna, em uma sociedade de indivíduos é poder dispor de direitos e de condições mínimas
de independência, lembrando que a proteção social não é somente a concessão de benefícios,
mas uma condição básica para todos. Diz o autor (p. 51), que a proteção social é condição
para formar uma sociedade de semelhantes, o que podemos chamar de democracia.
Levando em conta as argumentações acima, conclui-se que no contexto da passagem
da comunidade medieval à sociedade moderna, compreendemos por que o medo muda de
sentido e por que será um motivo central na constituição do pensamento político moderno.
Durante muitos anos, os principais perigos que ameaçaram a humanidade e, portanto, os
principais medos, vinham da natureza: as epidemias – especialmente a peste negra e a cólera,
as más colheitas que levavam à fome, os incêndios provocados particularmente, por raios, os
40
tremores de terra, as erupções vulcânicas, os maremotos etc. Mas, ―[...] ao longo das épocas, a
guerra, como uma panóplia dos perigos, ocupou um lugar cada vez maior‖ (BAUMAN, 2008,
p. 163).
Com o aperfeiçoamento dos armamentos, a insegurança das nações para uma guerra
total, a multiplicação, hoje, dos atos terroristas, conduzem logicamente a um aumento
contínuo do número de vítimas e, especialmente, de vítimas civis. Isso significa que,
quantitativamente, os perigos e os medos oriundos da guerra, ainda que não tenham
desaparecido, tornaram-se cada vez menos importantes em relação aqueles oriundos dos
homens. A violência tornou-se sinônimo do medo, e o medo tornou-se, cada vez mais, o medo
do próprio homem.
Nesse sentido, levando em conta os progressos técnicos e o aspecto aterrador do qual
os conflitos armados se revestem, atualmente, não seria exagero afirmar que o século XX foi
o mais criminoso da História, somando-se os ―holocaustos‖ aos horrores da guerra
propriamente dita. Tal século foi, também, aquele em que Hitler tentou fazer uma limpeza
étnica, somam-se, antes e depois, o massacre dos armênios e os genocídios no Camboja e em
Ruanda, como nos lembra Jean Delumeau (in NOVAES, 2007, p. 42). A lembrança será
muito mais pela sucessão de guerras e genocídios que por qualquer outra coisa; e,
infelizmente, a aurora do novo milênio não pôs fim a essa horrorosa tradição.
2.3 As Faces do Medo
Esse passado recente, tão trágico quanto tenha sido não deve nos desviar de uma
reflexão mais geral sobre as diferentes formas de medo geradas pela violência. Estamos assim
diante de extremas derivações do medo, quando ele não é observado de maneira lúcida e
quando não é administrado. No sistema social vigente, o medo da violência se transformou
em violência do medo, através de práticas cotidianas que se aproximam da barbárie. É
exatamente no cotidiano que as diversas facetas da violência e do medo se expressam e se
manifestam.
O primeiro ano do século XXI produziu imagens que, provavelmente, marcarão a
década, como também a geração, que se inicia. Além dos ataques de 11 de setembro,
assistimos, em tempo real pela televisão, aos atentados terroristas em Londres, Moscou,
Istambul, Bali, Madri; guerra no Iraque, Palestina entre outros conflitos regionais. Nesta era
de lutas étnicas e religiosas, o conflito humano apresenta uma selvageria inexplicável. A
cacofonia produzida pelo sensacionalismo dos meios de comunicação, reproduzido dia-a-dia
41
repetidas vezes, nada mais fez do que cristalizar a violência como um estigma na cultura
mundial, pois as imagens do terror se alojaram na mente dos cidadãos de diversos países. A
violência ganhou projeção de espetáculo, em uma relação social intensa entre as pessoas,
mediada por imagens de impacto (DEBORD, 1997, p. 14).
As sociedades convivem com duas formas de medo: a imaginação (proveniente dos
pequenos medos, que antes existiam em menor intensidade, mas que hoje são anunciados a
cada momento, por exemplo: medos do outro, das balas perdidas, do sangue contaminado,
possíveis pragas, repetições de Chernobyl ou de um 11 de setembro), e a crença (calcada na
tradição cultural, fator preponderante de controle no pensar e agir), que dão sentido e
consistência ao próprio medo.
Esses males, decorrentes do impacto do desenvolvimento da tecnociência sem limites
sobre a natureza, sobre a sociedade e sua organização e sobre o homem como produtor e
consumidor da sua existência, terminaram por gerar um estado de medo e incerteza constante.
O medo do outro é consciente, como nos lembra Hobbes (1983, p. 125):
Que se pergunte qual a opinião dos compatriotas quando alguém viaja armado; de
seus cidadãos, quando ele põe tranca nas portas; de suas crianças e domésticos,
quando fecha os cofres à chave. Não estaria assim incriminando a humanidade
através de seus atos, quanto faço por minhas palavras?
Nesse sentido, o medo é um denominador comum. Entre o medo originário das
crenças religiosas e o medo político do poder não há hoje grande diferença, como nos lembra
Weber (1982, p. 102):
Acontece que, na realidade, motivos extremamente poderosos, comandados pelo
medo ou pela esperança, condicionam a obediência dos sujeitos, seja o medo de uma
vingança das potências mágicas ou dos detentores do poder, seja a recompensa aqui
na Terra ou no outro mundo.
No entanto, podemos observar a partir das citações, que duas espécies de medo nos
rondam, pois, os homens da sociedade contemporânea estão dominados pelo materialismo
vulgar: o poder e a ameaça da perda dos bens não naturais e não necessários. Assim, o medo
refugiou-se nas idéias de interesse e consumo e, portanto, no mais puro egoísmo.
No Brasil, como em qualquer outro país, há tragédias, mortes violentas. As tragédias
individuais são tão freqüentes que se transformaram em catástrofes coletivas. Os brasileiros
vivem com medo, da mesma forma que as populações residentes em áreas assoladas por
terremotos, erupções, furacões e tornados. Como as populações atingidas por essas
42
catástrofes, nosso comportamento é dirigido, em parte, pelo medo. Vivemos numa atmosfera
de medo: medo de assalto, medo de atropelamento, medo da polícia, medo de arrastão, medo
de bala perdida e de vários outros medos difundidos pelos meios de comunicação de massa.
Regida por causas múltiplas, o medo têm se firmado como o prenúncio do amanhã.
Castel (2005, p. 95) sugere que nosso sentimento agudo de insegurança deriva não
tanto da carência de proteção quanto da inescapável ―falta de clareza de seu escopo‖ em um
tipo de universo social que, como o nosso, ―foi organizado em torno da infindável busca de
proteção e de frenética busca de segurança‖ – estabelecendo assim padrões de proteção
sempre crescentes, e previamente impensáveis, sempre à frente do que é atualmente possível
de atingir. É nossa ―obsessão por segurança‖, assim como nossa intolerância a qualquer
brecha – ainda que mínima – no seu fornecimento, que se torna a fonte mais prolífica, auto
renovável e provavelmente inexaurível de nossa ansiedade e de nosso medo.
Desse modo, pode-se citar o bombardeio mediático de cenas e relatos violentos
diários, 24 horas por dia, resultando em uma sensação coletiva de insegurança – a de que
amanhã não pode ser, não deve ser, não será como hoje – significa um diário de
desaparecimentos, sumiços, extinção e morte. Segundo Baumam (2008, p. 196) ―como todas
as outras formas de coabitação humana, nossa sociedade é um dispositivo que tenta tornar a
vida com medo uma coisa tolerável‖. Silenciar as angústias do medo, nos parece mais
cômodo do que entendê-las e enfrentá-las. ―Os pânicos vêm e vão e, embora possam ser
assustadores, é seguro presumir que terão destino de todos os outros‖.
As advertências sobre o perigo eminente estampadas nos jornais e revistas, anunciadas
a todo o momento pela televisão e internet, ganham dimensões globais e, deixam de ser
assustadoras para se transformarem em entretenimento. Entender o sentido da violência, no
contexto da sociedade atual torna-se essencial para desvendar o impacto das manifestações
culturais, ora confundida com entretenimento, e vital para a análise da conjuntura atual. A
violência configura-se como uma linguagem singular, expressa por diversos grupos, na
tentativa de obtenção de visibilidade e poder. A ideologia intrínseca neste processo
corresponde ao paradoxo na dinâmica cultural.
O convívio diário com as atrocidades cometidas por meio da violência se faz presente
nas palavras de Stalin ―A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma
estatística.‖; pois a sociedade atual contabiliza suas vítimas de guerras, conflitos e disputas
cada vez mais próximas de nações e pessoas de paz. Como exemplo recentemente aconteceu
o ―caso Isabela‖ (29 de março de 2008), além da ―CPI das milícias nos morros cariocas‖ (19
de junho de 2008), o ―tribunal do crime organizado‖ (24 de maio de 2008), entre outro; todos
43
amplamente explorados pelos medias sensacionalistas, em contrapartida, o aumento
vertiginoso dos índices de violência nas grandes capitais brasileiras (Fonte: Pesquisa de
Vitimização Ilanud / FIA / GSI –2002) foram pouco explorados. Os números da violência
impressionam e a linguagem expressa, pelos meios de comunicação, reafirma as
características latentes de uma cultura permeada pela violência.
CHAUI (2006, p. 116) afirma que a imagem do mal banalizado é construída a partir
de outras imagens expressas em palavras como chacina, massacre, guerra civil tácita. Talvez,
por isso mesmo, a violência seja um fato sem comparação na era moderna.
Nesse sentido, é importante salientar que os meios de comunicação são utilizados
como estratégia, ou seja, mais uma forma de controle social do que um aparato ideológico
(EAGLETON, 1997, p. 42). O medo se configura, nesse contexto, por meio dos efeitos da
violência institucionaliza no discurso. A partir do plano das idéias, a abstração do subjetivo
ganha forma e sentido na ação social, sempre associado à verve política. Para tanto,
entendemos ideologia como um sistema de idéias, de símbolos, de critérios, de atitudes que
têm uma coerência entre si, de tal modo que se distingue e mesmo se opõe a outro sistema de
idéias, etc. Toda ideologia serve para acolher, selecionar e controlar a informação. Embora a
ideologia participe de toda a cultura humana, nem por isso se confunde com esta.
Segundo Boeira (1997),
As ideologias podem ser mais ou menos consolidadas, na medida em que expressam
idéias, símbolos, critérios, atitudes de indivíduos ou de grupos sociais. Geralmente,
as ideologias articulam idéias de grupos e mesmo de classes sociais. Para esses
casos, o controle das informações é mais evidente do que o acolhimento e a seleção.
O controle expressa o poder de dividir, de separar o que está dentro e o que está fora
da ideologia e portanto do grupo que a defende. As ideologias grupais estabelecem e
mantêm alguma forma de dominação entre dirigentes e dirigidos, funcionando como
cimento social dos grupos.
Diante disso, Ricoeur (1990, p. 65) afirma que a ideologia é função da distância que
separa a memória social de um acontecimento que, no entanto, trata-se de repetir. Seu papel
não é somente o de difundir a convicção para além do círculo dos pais fundadores, para
convertê-la num credo de todo o grupo, mas também o de perpetuar sua energia inicial para
além do período de efervescência. Ricoeur diz que a ideologia depende daquilo que
poderíamos chamar de uma teoria da motivação social.
Seguindo essa linha de pensamento, baseados em Eagleton (1997, p. 37), podemos
definir ideologia de seis maneiras diferentes, que se inter-relacionam e nos fornecem pistas
para a compreensão do medo na sociedade contemporânea. A primeira definição, segundo o
44
autor, corresponde ao processo material geral de produção de idéias, crenças e valores na vida
social.
A proximidade desta definição com o significado de cultura amplia o entendimento
das complexas práticas significantes e processos simbólicos em uma sociedade particular. A
―vivência‖ dos indivíduos assume um caráter primordial sobrepondo-se às práticas em si. No
caso da violência, é possível interpretar sua influência de várias formas, como condutora e
produtora de estigmas de medo.
Para os gregos, estigma se refere a sinais corporais com os quais se procurava
evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os
apresentava. Com base em Goffman (2000, p. 11-14), estigma é um tipo especial de relação
entre atributo e estereótipo, que pode ser caracterizado em três tipos: deformidade física,
culpas de caráter individual e marcas tribais de raça, nação e religião (transmitidos através de
linhagem). Adequar estes conceitos na sociedade contemporânea nos permite rediscutir o
processo de hibridação da cultura através da violência e do medo. A sociedade estigmatizada
por estes atributos, se vê imersa a uma realidade fictícia, pois tenta obstinadamente empregar
uma interpretação não convencional do caráter de sua identidade através dos meios de
comunicação de massa.
A violência é, geralmente, associada a um dano físico, mas ela pode também
corresponder a um dano psicológico ou à transgressão de uma norma — dano moral. Por essa
razão Yves Michaud (1989, p. 42) formula um entendimento que pretende reunir toda a
diversidade de significados que a expressão sugere. Podemos considerar que a fabricação de
ferramentas pelo homem remete a uma cadeia significativa, interligada à elaboração da
linguagem, indissociável da simbolização e da montagem de uma rede de transmissão social
de conhecimento e aprendizagem, enfim, a cultura. A cultura seria o elemento chave que
diferencia o homem dos animais.
A ideologia, nesse contexto, associa-se as práticas da violência e a determinação
social do pensamento, ou seja, a elucidação de facetas da cultura, por meio da relação entre
os códigos linguísticos e os processos do poder político. Girard (1990, p. 22) diz que a
violência é fundante nas relações sociais e constitui os sentidos para a caminhada das
sociedades, ganhando conotação ritualística, mítica e sagrada.
Sem violência, apontam Bourdieu e Passeron (1975, p. 23), não há cultura. Cultura é a
imposição violenta de uma seleção arbitrária de significações. A violência é, portanto, uma
propriedade da cultura. Mais que isso, é motor-propulsor da reprodução cultural
45
Outra vertente sobre o entendimento da ideologia recai sobre as idéias e crenças
(verdadeiro ou falso,) que simbolizam as condições e experiências de vida de um grupo ou
classe específico (EAGLETON 1997, p. 37). A Ideologia aproxima-se aqui, da idéia de uma
―visão de mundo‖ que remete às condições e experiências de vida de um grupo ou classe
específico, socialmente significativo.
Nesse sentido, podemos recorrer ao pensamento clássico sobre o medo, para
exemplificar essa vertente ideológica. Os sofistas, como nos lembra Bauman (2008, p. 45),
pregavam que o medo da morte é contrário à razão – argumentando que quando a morte esta
aqui eu não estou mais, e quando eu estou aqui a morte não esta -, estavam enganados: onde
quer que eu esteja, estou em companhia de meu pavor de que mais cedo ou mais tarde a
morte vai pôr um fim a minha presença aqui.
Nesse contexto, é importante destacar a formação de idéias e crenças não só através da
coletividade, mas principalmente pela individualidade. Ocorre que, em todo o tipo de
sociedade, a individualidade tende a ser um privilégio cobiçado, estritamente vigiado e
guardado, de que poucos usufruem. Ser um indivíduo, significa destacar-se na multidão; ter
um rosto reconhecível a ser conhecido pelo nome; evitar ser confundido com quaisquer outros
indivíduos e assim preservar sua própria identidade.
Assim, conforme nos alerta Bauman (2008, p. 51), o acesso aos meios de preservar a
singularidade identificável do rosto e do nome no futuro, incluindo o período subseqüente à
morte de seu portador, é um atributo necessário da ―individualidade‖ – mas talvez também
seu ingrediente mais desejável. Desse modo, o direito à fama individual repercute como um
dever de esforço incessante e vigilância sem trégua – tal como o direito à salvação exigia uma
bondade vitalícia e sem deslizes. Não promete descanso e pressagia uma vida cheia de
ansiedade, autocrítica e possivelmente auto-reprovação. A imortalidade personalizada é uma
proposta de expansão da vida, exigindo duros esforços para realizar efeitos memoráveis.
A imortalidade impessoal compensa a impotência pessoal. A existência anônima
ganha uma chance de imortalidade. O que vai causar esse impacto, contudo, e deixar marcas
profundas no tempo infinito, é a forma como eles morrem. Incapazes de alcançar a
imortalidade por meio da vida, ele a obtêm assim mesmo por meio da morte.Segundo Barthes
(1976 apud BAUMAN, 2008, p. 58), o mito da contingência da morte é construído e
sustentado mediante a representação de um ato natural, como produto de muitas falhas
humanas que poderiam ser evitadas ou tornadas evitáveis.
Contra a cultura se mascarando de natureza, da forma exposta por Barthes, a
naturalidade da morte é camuflada de cultura. Mas, a função dos mitos investigados por
46
Barthes era proteger ―o corpo da cultura, frágil e contingente, por trás do escudo do
extraordinário‖ – enquanto o propósito da desconstrução da morte é exatamente o oposto:
―despi-la da aurora do extraordinário que porta e sempre portou‖. Fragmentada em
incontestáveis ameaças, o medo da morte satura a totalidade da vida, embora na forma diluída
de uma toxidade um tanto reduzida. ―Graças à ubiqüidade de suas pequenas doses, é
improvável que o pavor da morte seja ‗ingerido‘ totalmente e confrontado em toda a sua
medonha horripilância, sendo suficientemente comum para poder paralisar o desejo de viver‖
(BAUMAN, 2008, p. 59).
Portanto, diante disso, as várias significações e interpretações do medo da morte,
correspondem ao ideário de justificativas que são usados para controlar e coagir os
indivíduos. Carregada de interpretações múltiplas, a violência torna-se então, responsável pelo
entendimento das causas e efeitos conflitivos de uma ideologia globalizada.
Eagleton (1997, p. 37) aborda, também, a ideologia como promoção e legitimação dos
interesses de grupos sociais em face a interesses opostos. Nesse sentido, a ideologia pode ser
vista como um campo discursivo no qual os poderes sociais que se autopromovem conflitam
e colidem acerca de questões centrais para a reprodução do poder social como um todo. A
ideologia apresenta-se, aqui, não como um discurso verídico, mas como um tipo de fala
retórica ou persuasiva, mais preocupada com a produção de certos efeitos eficazes a
propósitos políticos do que com a situação ―como ela é‖.
Na sociedade e na História da humanidade, o medo tem sido usado como instrumento
de manipulação ideológica (modelar o espírito de pessoas e povos a fim de adquirir domínio
sobre eles de forma rápida, contundente, massiva e fácil) das pessoas, subjugando-as,
tornando-as escravas e dominadas por determinados indivíduos, grupos ou situações. As
pessoas atemorizadas tornam-se reféns de outras. O fato é que as pessoas acabam tendo
―medo do medo‖ e, então, para não sentir medo, se sujeitam a qualquer preço. Segundo
Maquiavel, em sua obra ―O Príncipe‖, o poder garante o domínio de uns sobre outros (1998,
p. 103).
Para o melhor entendimento da formação ideológica do modo, através do poder,
recorremos ao autor Elias Canetti (1960, p. 12), que agrega à categoria de poder o controle e
domínio da informação. Diz ele que o segredo está no núcleo do poder, os dominados devem
permanecer sob a ignorância, ocorrendo aí a ―confiscação do saber‖. Neste sentido,
entendemos que ―não é o poder que corrompe, mas o medo; medo daqueles que exercem o
poder, de perdê-lo; o medo das metralhadoras, daqueles que são oprimidos pelo governo‖,
Aung Sun Kyi, Prêmio Nobre da Paz (1991 apud Bauman, 2008. p. 60).
47
Ao partir desse pressuposto, é importe ressaltar a relação homem e violência, como
agente e ferramenta de poder, imbuída de verve ideológica para a conquista de objetivos.
Conforme apresentado por Roger Dadoun (1998, p. 98), o homo violens é fruto da violência
originária da sua gênese, descrita no texto bíblico e cristalizada de forma simbólica no
imaginário humano. Ao analisar a História, é nítida a presença constante de crimes, massacres
e genocídios; isso não deixa dúvida sobre a presença da violência nas mais distintas formas de
organização social. Toda a história de horror da humanidade, desde a dupla violência
originária narrada por Freud (1993) em Totem e Tabu, leva Dadoun a concluir que o homem é
―fundamentalmente, primordialmente, um ser de violência, homo violens‖ (1998, p. 101).
Não se trata de discutir se o homem é por natureza bom, como queria Rousseau (1989)
ou não, mas de perceber que a violência é uma arma, ou melhor, um meio, a serviço do
homem que traz na sua essência o desejo de dominação, o desejo de poder, uma insaciável
libido dominante.
Ao seguir, nessa linha de pensamento, é possível destacar outra classificação
ideológica (EAGLETON, 1997, p. 38) do medo, por meio da promoção e legitimação dos
interesses setoriais às atividades de um poder social dominante. Isso envolve a suposição de
que as ideologias dominantes contribuem para unificar uma formação social de maneiras que
sejam convenientes para seus governantes; não se trata apenas de imposição de idéias pelos
que estão acima, mas de garantir a cumplicidade das classes e grupos subordinados e, assim
por diante. Dessa maneira, o medo é que referenda a lei dos tiranos, que não se detêm diante
das regras de convivência e respeito pelo outro. O medo torna o governante, a pretexto de
proteger seus súditos de ameaças externas ou internas, absoluto em seu poder.
No mito freudiano (FREUD, 1974) sobre o assassinato do pai primordial, o medo do
desamparo em que se encontra a órfã traz a necessidade de uma lei que proteja o grupo contra
as conseqüências mais temíveis da luta de todos contra todos. A lei simbólica, que impõe
como condição do convívio com o grupo a renúncia ao excesso do gozo pulsional – o que em
psicanálise se traduz como interdição do incesto, institui-se por decisão coletiva para
substituir a lei arbitrária do tirano assassinado. Se a lei simbólica perder a sustentação
coletiva, o medo voltará a dominar e impor uma lei fundada sobre o temor imaginário da
morte: há sempre um fantasma no horizonte para justificar a lei do medo.
A lei do medo pode ser comparada ao estado de terror em que vivem os moradores de
algumas favelas das grandes cidades brasileiras, oprimidos pelo regime imposto pelo tráfico e
a violência da polícia. É uma lei que não pode ser questionada, muito menos transgredida: se
a transgressão cobra o preço da exclusão do transgressor dos termos da lógica que comanda o
48
convívio de uma comunidade, a transgressão à lei do medo sempre é paga com a morte. Por
exemplo, o medo absoluto imposto pela lei do medo não é instigante nem criativo. A lei do
medo reduz o homem à condição de homo sacer, recuperada por Agamben, sujeito cuja vida
foi excluída do campo simbólico e ficou à mercê da violência banal, prestes a ser abatido por
qualquer motivo, pelas mãos de qualquer um.
Na sociedade brasileira, Chauí propõe a divisão social do medo, ao analisar as
expectativas das diferentes classes sociais.
A classe dirigente teme perder o poder e seus privilégios; a classe dominante teme
perder riquezas, bens, propriedades; a classe média teme a pobreza, a proletarização,
a desordem; a classe trabalhadora teme o desemprego, a morte cotidiana, a violência
patronal e policial, a queda vertiginosa na marginalidade, na miséria absoluta, a
arbitrariedade dos poderes constituídos. (CHAUI, 2006, p. 104)
A ideologia presente, nesse contexto, contribui para o entendimento da posição
governamental, frente à condução das relações sociais. Conforme aponta Chauí (2006, p.
104), essa diferença dos medos é reveladora. Em primeiro lugar, revela os medos que estão
no alto político, econômico e social são os da perda de privilégios, medos que dizem respeito
aos seus interesses. Em contrapartida, os medos dos que estão no baixo político, econômico e
social são de queda na desumanização, de perda da condição humana e por isso medos que
dizem respeito aos seus direitos.
Não obstante a essa vertente, a ideologia (EAGLETON, 1997, p. 37) pode ser
interpretada como idéias e crenças que ajudam a legitimar os interesses de um grupo ou
classe dominante, mediante a distorção e a dissimulação; no caso deste trabalho, insere-se o
poder e a violência.
Desde os séculos passados, muitos teóricos acreditavam na possibilidade de uma
dualidade de poder entre aqueles que estavam por cima, dominando, impondo suas visões de
mundo, e os que estavam por baixo, a quem só restava receber e absorver as versões
dominantes. Por outro lado, no pensamento político moderno não existe mais essa separação,
e os receptores – o povo, a opinião pública – não agem, como supunha a pesquisa anterior, de
forma tão passiva. A manipulação, sem dúvida alguma, é algo tentado, é algo em que se
investe uma grande quantidade de capital e poder; entretanto, por parte de quem recebe essas
tentativas manipulativas existe também uma participação, nesse jogo, quer aceitando, quer
refutando essa manipulação, à medida que as informações entrem ou não no universo de
interesse e no seu campo de ação ideológico-político. Para tanto, racionalizar o medo quer
dizer racionalizar a relação com o desconhecido.
49
Tal é, com efeito, a singularidade que apresenta a configuração ideológica da ―guerra
contra o terror‖. O discurso oficial põe o terror como seu inimigo. Ele proclama a alteridade
radical: a luta do bem e do mal e da liberdade contra o terror, luta às vezes identificada com o
choque das civilizações. Mas, esse discurso só é recebido por meio da exploração do
sentimento que é aparentemente contrário a isso: o sentimento de uma solidariedade secreta e
incontestável entre o bem e o mal, entre a liberdade democrática e a repressão de um terror
radical; o sentimento de que o suposto choque entre as civilizações só faz disso o produto de
um conflito mais fundamental da civilização com ela mesma (RANCIÈRE, 2008, p. 64).
O pressuposto ―choque de civilizações‖ pretende traçar uma oposição simples entre
países ricos e democráticos versus os países pobres, cravados na afirmação étnica e na
submissão religiosa. Mas, na realidade, os dois princípios tendem a dividir entre si o próprio
governo de nossas sociedades na medida em que aí se apaga a singularidade da invasão
democrática que mantinha a sociedade à distância dela própria. A distinção política cede lugar
à confusão ética: confusão da comunidade política com o medo de vida de uma sociedade;
tensão ou confusão dos dois princípios dessa vida: a reprodução da riqueza comum e a
transmissão da participação comunitária; tensão ou confusão da afirmação identitária e da
submissão para com a alteridade. Segundo Bauman (2008, p. 141), ―[...] são essas confusões
em cadeia que produzem o sentimento do terror que une numa só síndrome a ansiedade íntima
de cada um (com as ameaças sobre a ordem mundial) e a confrontação com o mal indefinido‖.
Mudar o foco da atenção dos perigos para o risco se revela outro subterfúgio – uma
tentativa de fugir do problema, e não um passaporte para a conduta segura. Nesse sentido, os
perigos mais assustadores e aterrorizantes, sejam precisamente aqueles cuja previsão é
impossível, ou extremamente difícil: os imprevistos; e muito provavelmente imprevisíveis. O
obstáculo mais terrível à prevenção de uma catástrofe é sua incredibilidade. Portanto, o fato
de tais medos não serem absolutamente imaginários pode ser confirmado pela autoridade
dominante da mídia, que defende – visível e tangivelmente – uma realidade que não se pode
ver nem tocar sem a ajuda dela.
Diante das definições sobre ideologia apresentada, ainda resta uma última linha de
pensamento intrínseca na dinâmica proposta, são elas as falsas ou ilusórias crenças oriundas
da estrutura material do conjunto da sociedade como um todo (EAGLETON, 1997, p. 38).
Nessa linha recorremos ao pensamento Marxista (materialismo dialético), onde ideologia é
definida como um conjunto de proposições elaborado na sociedade burguesa, com a
finalidade de fazer aparentar os interesses da classe dominante no interesse coletivo,
construindo assim, uma situação dominante daquela classe (EDGAR; SEDGWICK, 2003, p.
50
202). A manutenção da ordem social requer dessa maneira menor uso da violência através de
força explícita. Assim, a ideologia torna-se um dos instrumentos da reprodução do status quo
e da própria sociedade. O termo ideologia permanece aqui, depreciativo, mas evita-se uma
descrição genético-classista (EAGLETON, 1997, p. 39), ou seja, uma rotulação entre ricos e
pobres. Podemos retornar à questão da ideologia como ―relações vivenciadas‖, e não como
representações empíricas. Segundo Eagleton (p. 40), ―[...] uma transformação de nossas
relações vivenciadas com a realidade só poderia ser assegurada mediante uma mudança
material dessa mesma realidade‖.
Por exemplo, a ditadura dos meios de comunicação de massa utiliza-se de todas as
ferramentas possíveis para a disseminação do consumo, ou melhor, o incentivo à dinâmica
mercadológica: comprar. Isso se deve ao próprio sistema capitalista vigente que pressiona o
indivíduo ao consumo pelo viés da sobrevivência e inclusão social. Tão importante quanto o
que se diz nos media são os silêncios que não se diz. O medo transforma-se no mote do
momento caracterizado pelo valor da perda. Nesse sentido, regido por ideologias múltiplas, a
violência têm se firmado como o prenúncio do amanhã, pois os medos podem mudar segundo
os tempos e os lugares, em virtude das ameaças que pesam sobre nós. A corrida por um ―lugar
seguro‖ perpassa o sentido de viver, para o sentido de se proteger. O consumo desenfreado
por esse novo nicho de mercado, incentiva a criação de formas cada vez mais agressivas em
chamar a atenção, ou publicizar, através do trágico.
Maria Rita Kehl (2007, p. 89), diz que, no Brasil de hoje, o espaço público e o
imaginário social são preenchidos pela emissão constante e indiferenciada – sem cortes
significativos – de imagens televisivas e publicitárias. A tevê é o representante do ―outro‖ no
contexto social atual. Como o Deus cristão, ela parece onipresente, onisciente e onipotente.
Mas, é um ―outro‖ que não fala em nome de nenhum ser imaginário; seu mestre é o mercado,
sua lei é o gozo.
Neste sentido, Kehl (2004, p. 90) acrescenta que a potência paterna passou a ser
medida pelo poder de consumo. A publicidade demonstra, constantemente, que a fruição
individual de um objeto de consumo (apresentado sempre como objeto do desejo) vale mais
do que todos os ideais coletivos do mundo. Para Kehl (p.108), a imagem, nem tão fantasiosa
quanto gostaríamos, deste mundo ameaçador, desenha-se a partir do declínio da dimensão
―imaginária do pai‖, ou seja, é aquele representado à criança, no Édipo, através do discurso da
mãe (1991 JOEL DOR apud KEHL, 2004, p. 108). Embora a função paterna seja simbólica,
ela é indissociável da dimensão imaginária do pai, que lhe dá consistência e sustentação na
cultura.
51
Segundo Kehl (2004, p. 109)
Os imperativos de gozo que predominam nas sociedades, ligando através das
imagens publicitárias as motivações e os projetos de vida dos sujeitos à voracidade
do mercado, dificultam que o pai real (ou seu substituto) encontre, na criança, uma
posição legítima a partir da qual possa fazer valer a lei. O pai real, esse ser de carne
e osso que concebeu a criança e convive com ela, vem perdendo lugar no imaginário
social na proporção direta da expansão dos apelos midiáticos ao gozo e à
transgressão. O imaginário paterno não pode ser sustentado apenas pela capacidade
de consumo, único fator que ainda parece respeitável no que concerne à potência do
pai real. A desmoralização do pai imaginário fragiliza os adolescentes, sobretudo os
meninos, abrindo diante deles a perspectiva da entrada em um mundo ameaçador,
regido pela lei do mais forte, diante do qual, muitos deles apresentam recuos
sintomáticos.
Afirma a autora, que o adolescente, em pleno momento de ressignificação edípica, vêse convocado a realizar, metaforicamente, o incesto, gozo mortífero que ameaça dissolver sua
precária integridade psíquica. Por uma outra via – a das fantasias inconscientes que se
materializaram no campo do ―outro‖ – a forte rivalidade exigida pelo estágio selvagem do
capitalismo impõe padrões de masculinidade cada vez mais agressivos às relações entre os
adolescentes, convocando todos a uma disputa fálica mortífera. Tal predisposição a resolver
os conflitos de interesse pela via da violência não beneficia nem os mais fortes – que se
defendem atacando primeiro – nem os mais fracos, que não sabem a quem recorrer para se
defender. A vigência da lei do medo restringe a atividade psíquica, o campo de representações
do sujeito e o espaço de circulação dos indivíduos (KEHL, 2004, p. 110). Como nos lembra
Ricoeur (1990, p. 68), é por isso que o fenômeno ideológico começa demasiadamente cedo:
porque, com a domesticação, pela lembrança, começa o consenso, mas também se iniciam a
convenção e a racionalização. Neste momento, a ideologia deixou ser mobilizadora para
tornar-se justificadora; ou antes, só continua sendo mobilizadora com a condição de ser
justificadora.
A ideologia intrínseca neste processo se confunde com a mercadoria-fetiche discutida
por Marx, pois a economia de consumo depende da produção de consumidores, e os
consumidores que precisam ser produzidos para os produtos destinados a enfrentar o medo
são temerosos e amedrontados, esperançosos de que os perigos que temem sejam forçados a
recuar apenas graças a eles mesmos. Ao abordar a mercadoria, Marx (2002, p. 57) faz
referência a um objeto, a uma coisa que se pode tocar, ou seja, ―a mercadoria é, antes de mais
nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades
humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenha do estômago ou da fantasia‖.
52
A preocupação de Marx é distinguir o valor de uso do valor de troca. A base do valor
de uso de uma mercadoria está nas suas qualidades materiais específicas. Mas, como valor de
troca, a mercadoria deve ser considerada não naquilo que tem de qualitativamente distinto,
mas no que possui de essencialmente comum, o trabalho socialmente necessário para a sua
produção; trabalho abstrato porque trabalho qualquer. Então, a mercadoria possui a dimensão
de uso e a de troca. Mas, é só como valor de troca que uma mercadoria circula. E ela só
circula porque é, nesse sentido, uma mercadoria com um trabalho incorporado.
Na sociedade do capitalismo global, diz Feffermann (2006, p. 32), observa-se um
aumento de tendências totalitárias, que podem estar relacionadas, entre outros fatores, ao
avanço das forças produtivas e das relações de produção, que acirram a contradição entre o
desenvolvimento tecnológico e a reprodução da miséria e das desigualdades sociais, Nesse
processo, a cultura de massa tornou-se hegemônica, promovendo a integração de diferentes
aspectos da consciência das pessoas, em todo o mundo, às esferas da produção material e do
consumo, tornando-se uma das influências determinantes das relações sócias. O homem, na
cultura de massa, assimila como seus os desejos e necessidades externas: os bens de consumo.
O seu pensamento e o seu desejo são condicionados aquilo que o mundo administrado pode
atender (ADORNO, 1993, p. 82).
Em ―A sociedade do consumo‖, Baudrillard (1995) afirma que jamais se consome o
objeto em si (em seu valor de uso), os objetos são manipulados em seu sentido amplo como
signos. Não se consome realmente um objeto, mas seus signos a fim de mostrar a pertença a
um grupo. A superindústria que opera no ramo do imaginário fabrica, assim, uma marca antes
de fabricar o objeto. O valor de troca substitui, então, o valor de uso numa situação em que o
indivíduo não adquire mais a mercadoria fetiche (aquela que oculta as relações sociais nela
embutidas).
Nas sociedades de produção do século XIX (cuja racionalidade era a acumulação de
capital), a mercadoria tinha se tornado um fetiche na medida em que era considerada como
figurativa de um produto (objeto) e não como resultado de uma relação social. Nas sociedades
modernas, em que o consumo é a racionalidade primeira, todas as relações humanas têm sido
impregnadas da racionalidade do intercâmbio mercantil. Tudo pode ser convertido em
mercadoria.
O capital se revela como imagem e essa imagem da mercadoria, que aparece querendo
capturar os olhos do sujeito, é o próprio capital se movimentando como imagem. O capital se
torna, nesse sentido, uma entidade visível, ele aprende a falar a linguagem da publicidade. É
por isso que se pode dizer que o capital vira espetáculo. A sociedade do espetáculo é um
53
conceito de Debord (1997), que se refere a um modo de reprodução da sociedade baseado na
reprodução da mercadoria. Debord denuncia a dominação da lei mercantil sobre a vida. O
espetáculo é a ideologia econômica, é ―[...] o capital‘ num tal grau de acumulação que se
torna imagem‖ (DEBORD, 1997, p. 25), ele é o conjunto das legitimações com as quais a
sociedade contemporânea se identifica para assegurar a reprodução de seu poder e de
alienação geral. Não se trata de ―[...] um conjunto de imagens, mas uma relação social entre
pessoas, mediada por imagens‖ (p. 14). Nesse sentido, Sodré (1996, p. 23) afirma que,
Reduzir conceitualmente, as mutações culturais da contemporaneidade a termos
(econômico-políticos) de mercadoria, exploração e mais-valia, seria perder de vista
o que já se chamou de ―dessublimação das forças produtivas‖. Isso implica na
prática uma operacionalização das trocas sociais sob a égide do signo, o que
equivale a uma espécie de espetacularização da vida social. Na sociedade do
espetáculo, o poder ou o controle são discursivamente sutis.
Na era do espetáculo, todas as indústrias convergem para ele. Todas as mercadorias –
e não mais apenas as mercadorias típicas da indústria cultural – se manifestam por meio de
imagens, através do espetáculo. As mercadorias circulam como imagens, como se fossem
arte. Toda mercadoria quer falar ao consumidor, propondo a ele um gozo espiritual, a
revelação de uma verdade que estaria encoberta e o consumo da revelação do sentido de sua
própria vida. O sujeito consome a própria identidade, reduzindo-a ao objeto-signo que
consome.
Diante deste contexto, Feffermann (2006, p. 31) afirma que ―[...] o consumo
tecnológico em massa, aparentemente tão magnífico, no qual se esperava produzir equilíbrio
social, ao contrário, reforçou ainda mais a alienação mútua dos homens, pois cada vez mais se
relacionam menos uns com os outros‖. Frente a isso, a ação da indústria cultural contribui
para o não desenvolvimento do pensamento crítico, resultando na predominância de uma
dimensão da razão com caráter instrumental, que se alicerça no processo técnico e se torna
automática aos objetivos a que se serve. Decorre daí a manipulação da consciência coletiva,
cuja primeira conseqüência é o embotamento da dimensão emancipadora, tornando os
indivíduos sempre mais incapazes para desenvolver uma forma autônoma de pensamento.
Eles são controlados e relegados à condição de meros consumidores de bens materiais e
culturais unificados e produzidos em escala industrial.
O espetáculo é o modo de produção contemporâneo (DEBORD, 1997, p. 28). E se é
verdade que nós vivemos num modo de produção que pode ser nomeado espetáculo, é
verdade que estamos tiranizados pela imagem e pelas mercadorias traduzidas em imagens e
54
pelas imagens revestidas da condição de mercadoria. Nesse universo, não há lugar para o
pensamento.
A operação psíquica do pensamento não combina com o fluxo de imagens tal como a
televisão propõe. O pensamento, entendido como o esforço de simbolização, de articulação
lingüística que dá nome às coisas, que cria conceitos, não tem espaço regular no fluxo de
imagens da mídia. Uma coisa se opõe à outra. Mesmo havendo teorias que consideram a
possibilidade de um raciocínio se estabelecer por meio da imagem (da abstração por
imagens), esta não é a linha do discurso dominante da mídia.
A linha dominante é a que aplaca o pensamento, promovendo as identificações
imaginárias e o encontro paralisante, ainda que efêmero, do sujeito com o seu objeto signo. O
pensamento arranca o sujeito das certezas desse mundo determinado pelo espetáculo, onde é o
signo que completa o sujeito. Para acontecer, o pensamento precisa interromper este processo.
O pensamento crítico poderia acontecer abrindo brechas nessa lógica. Além do caráter
econômico, a teia social abarca interesses individuais múltiplos ramificados em estruturas de
pensamento coletivo e intensificados através do uso indiscriminado da mídia como arma de
propagação ideológica.
O crédito passou a acompanhar a vida de grande parte da população, gerando a falsa
sensação do ter. ―Nenhuma geração passada foi tão endividada quanto a nossa – individual e
coletivamente‖, nos lembra Bauman (2008, p. 16). O cartão de crédito, mágico, traz um futuro
evasivo direto para o indivíduo, que pode consumir o futuro, por assim dizer, por antecipação
– enquanto ainda resta algo para ser consumido. Parece ser essa a atração latente da vida à
crédito, cujo benefício manifesto, a se acreditar nos comerciais, é puramente utilitário:
proporcionar prazer, complementa Bauman (2008, p. 16).
A partir dessa exemplificação, é possível relacionarmos a construção ideológica do
medo por meio da violência mediatizada, além de sua sustentação mercantil. As diversas
significações imbuídas neste bojo confundem-se com práticas cada vez mais lucrativas. Nesse
sentido, aproximamo-nos mais das diversas configurações da violência na sociedade
contemporânea, sem deixar de citar o agente fomentador dessa ideologia.
No entanto, o objeto de alicerce e de desenvolvimento dessa ideologia nos parece
confuso em meio a tantos interesses. As teorias cognitivas apontam para o fato de que o
significado não está na mensagem. Ele é construído pelos processos psicológicos da atenção e
da memória na cabeça das pessoas. Significado é a ativação de um elenco de links semânticos
associados na memória e disparados pelo uso dos signos. Adorno (1993, p. 94) nos auxilia na
compreensão desse processo:
55
O poder magnético que as ideologias exercem sobre os homens, mesmo quando já
dão sinais de estarem derrotados, explica-se, para além da psicologia, pela
decadência objetivamente determinada da evidência lógica enquanto tal. As coisas
chegaram ao ponto em que a mentira soa como verdade e a verdade como mentira.
Cada declaração, cada notícia, cada pensamento está pré-formado pelos centros da
indústria cultural. O que não traz a marca familiar dessa pré-formação está, de
antemão, destituído de credibilidade, tanto mais que as instituições de opinião
pública fazem acompanhar aquilo que divulgam de milhares de comprovações
factuais e de toda plausibilidade, de que pode se apoderar o poder de disposição
total. A verdade que tenta se opor a isso não só porta o caráter do inverossímil como
é, além disso, pobre demais para entrar em concorrência com o aparato de
divulgação altamente concentrado.
Conforme afirma Eagleton (1997, p. 43), a ideologia é essencialmente uma questão de
significado, mas a condição do capitalismo avançado, conforme alguns poderiam sugerir, é o
não significado que a tudo permeia. O predomínio do utilitário e da tecnologia obstrui a
significação da vida social, subordinando seu valor de uso ao formalismo vazio do valor da
troca. O consumismo afasta-se do significado a fim de enredar o sujeito subliminarmente,
libidinalmente, no nível da resposta visceral e não da consciência refletida.
Nesse contexto, bem como no âmbito da mídia e da cultura cotidiana, a forma
sobrepuja o conteúdo, os significantes prevalecem sobre os significados, para nos oferecer as
superfícies vazias, desafetas e bidimensionais de uma nova ordem social. Essa hemorragia de
significado em grande escala é a causa dos sintomas patológicos que afetam a sociedade por
todos os lados: drogas, violência, revoltas estúpidas, a busca desnorteada de significados
místicos.
A riqueza visual serve como estímulo adicional em perpetuar-se como um
surpreendente espetáculo, ou melhor, forma de significação. Ela é amplamente utilizada pela
indústria do entretenimento, pois as pessoas aproveitam atalhos mentais, por meio de imagens
pré-constituídas, para enquadrar os fatos corriqueiros do mundo, poupando energia e tempo
(NEWHAGEN, 1992, p. 30)
Portanto, a imagem que os públicos em geral têm do mundo é assim constrangida por
tal limitação. O fluxo constante de mensagens é um fenômeno complexo, de difícil digestão.
Em outras palavras, ―o receptor tem capacidade cognitiva limitada para entender isso tudo‖,
aponta Newhagen (1992, p. 32). Não é incomum perceber, portanto, mesmo em temas de
extrema gravidade, como é o caso do crime organizado, falta de níveis superiores de
compreensão. Afinal, a sensibilidade emocional, aguçada episodicamente, predomina o
monitoramento a distância de tais cenas de horror.
56
Importa, assim, considerar a construção do medo social pela imprensa, pelo mercado
de segurança, pelas políticas públicas e pela ação cotidiana dos habitantes na busca de
diminuir suas vulnerabilidades à criminalidade na cidade no âmbito das teorias reflexivas do
risco, aproximando-nos, por exemplo, de Mary Douglas (1992 apud ECKERT, 2002, p. 17),
que afirma que
Vivemos, hoje, numa sociedade de riscos, reveladora de uma nova cultura
individualista relativa ao quadro de determinações abstratas e universais onde os
riscos se tornam fatos sociais. Lembramos que nossa sociedade tende a transformar
cada indivíduo em suspeito, criando uma paranóia coletiva e a angústia da culpa. Ao
analisarmos os riscos que se tornam fatos sociais (DOUGLAS, 1992), a consciência
do aumento da vulnerabilidade e a diminuição da probabilidade de segurança
patrimonial e pessoal, acompanhamos Ulrich Beck (1992) e Anthony Giddens
(1991) em suas críticas a políticas institucionais na era industrial e em sua análise do
surgimento de peritos para mediar as situações de risco. Para esses teóricos, a
violência urbana, como risco em potencial, alimenta um mercado de segurança e
promove a qualificação de especialistas nesses riscos. O acesso ao conhecimento dos
riscos, por parte da população, converge com projetos de ―conscientização‖ do
estado de violência para prevenção ao perigo, cuja reflexividade, no sentido de
Giddens ou Beck, consiste na identificação dos efeitos e perigos pela dinâmica de
radicalização da modernidade com uma profunda crítica à crise institucional.
Diante disso, é notório que os efeitos da insegurança gerada pela criminalidade
construam uma cultura do medo. A violência e sua utilização desmesurada corroboram para a
disseminação do medo social, contribuindo de tal forma, para o enraizamento de suas práticas
nas mais diversas instâncias sociais. Além de problemas como falta de emprego, atendimento
médico, condições básicas de moradia e higiene; constituem apenas a ponta de um grande
iceberg presente no mundo todo. No Brasil, a complexidade de tais problemas ganha
dimensões maiores, principalmente quando o Estado é complacente com essa situação, sendo
corrompido e corrompidor.
A essa ambigüidade se soma o papel dos meios de comunicação, que se
especializam em espetacularizar a violência na cidade, gerando um sentimento de
medo e pânico na população.A indústria oferece paliativos instrumentais. As
serralherias especializam-se em correntes e chaveiros, grades, portões automatizados
e pantográficos, estruturas metálicas e basculantes. Dado seu custo acessível, essa
opção transforma-se em fonte de consumo de todas as camadas sociais. Já as ―lojas
de segurança especializadas‖ propõem uma parafernália de instrumentos antifurto:
câmeras para circuito interno, sensores internos e externos etc (ECKERT, 2002, p.
22).
Portanto, viver o dia-a-dia passou do processo empírico habitual para tornar-se uma
aventura carregada de significados ilusórios, pois estamos diante de uma realidade na qual a
substituição do uso da palavra pelo ato violento, torna-se fator constitutivo da vida social
(FEFFERMANN, 2006, p. 13). Acostumados a se pautar por informações enlatadas dos
57
diversos veículos informacionais, a grande maioria da população vive imersa na sociedade do
medo.
Nesse sentido, a cultura da violência deixa suas marcas por meio do medo. Tomar o
medo social como objeto é buscar explicá-lo como um instrumento criado socialmente, por
determinados grupos, que impede as pessoas de coletivizarem seus interesses e o seu próprio
medo, tecendo uma nova cultura e novos padrões éticos, no âmbito do privado e na esfera
onde se gesta a vida cotidiana, alterando sua dinâmica, seus ritmos e seus procedimentos. É
entendê-lo, não como um fenômeno pronto e acabado, mas como resultado de múltiplos
processos, buscando explicações no cerne das relações sociais, das condições reais de vida
dos sujeitos e na forma concreta como se expressam no cotidiano das pessoas (BAIERL,
2004, p. 23).
Por exemplo, um dos paradoxos relativos a uma cultura do medo é que os problemas,
mas sérios continuam amplamente ignorados, ainda que causem exatamente os perigos mais
abominados pela população. A pobreza correlaciona-se com molestamento de crianças,
crimes e consumo de drogas. A desigualdade de renda também se associa com resultados
adversos para a sociedade como um todo. Quanto maior a diferença entre ricos e pobres em
uma sociedade, maiores são os índices de mortalidade provocados por doenças cardíacas,
câncer e homicídios (GLASSNER, 2003 p. 27).
Nos tornamos reféns de nossos próprios temores ao constituir uma cultura moldada
pela medo e estigmatizada pela violência. Segundo Glassner (2003 p.17), ―[...] o sucesso da
difusão do medo depende não somente da forma como é expresso, mas da eficácia em
exprimir ansiedades culturais profundas‖. Estamos diante de novos tempos, novas formas de
interpretar e solucionar os efeitos da violência. Como nos lembra Marx (apud ARENDT,
2003, p.48), ―[...] a violência é a parteira de toda velha sociedade prenhe de uma nova‖, o que
nos remete a avaliar o período histórico em que vivemos. Ao contrário do mundo grego, a
condução dos negócios, ou relação social, acontece por intermédio da violência, através da
persuasão e não mais pelo discurso (ARENDT, 2003, p. 50).
Entender o sentido da violência no contexto da sociedade contemporânea torna-se
essencial para desvendar o impacto das manifestações culturais, ora confundidas com
entretenimento, e vital para a análise da conjuntura atual. A violência configura-se como uma
linguagem singular, expressa por diversos grupos, na tentativa de obtenção de visibilidade e
poder. A ideologia intrínseca, nesse processo, corresponde ao paradoxo na dinâmica cultural.
O paradoxo em que a violência se inscreve, atualmente no Brasil, nos obriga a compreendê-la
numa dupla perspectiva. Por um lado, surge como realidade alheia e hostil à realização mais
58
plena das tentativas democratizantes da sociedade em todos os níveis, da marginalização do
pequeno criminoso até a repressão militar aos conflitos trabalhistas. Por outro, a violência
aparece como expressão-limite de articulações dinâmicas, a opção para reivindicar exigências
sociais justas, a forma de representar novas identidades culturais ou ressimbolizar a situação
de marginalidade, dando, assim, início a uma tentativa de superação da exclusão social.
(PEREIRA et al., 2000, p. 14)
Portanto, ao refletir sobre a violência, nos dias de hoje, nos vemos envoltos em um
emaranhado de pensamentos que perpassam o entendimento real do cotidiano. A crescente
sensação de insegurança que assola milhares de pessoas parece ser rejeitada pela cultura
moderna. Deve-se colocar em xeque a barreira que cada um de nós tenta erigir para proteger a
esfera íntima, qualquer proximidade com o perigo é refratada, visto a dramatização dos
acontecimentos violentos narrados pelos meios de comunicação, em especial o crime.
Pinheiro (2003, p. 12) nos recorda que o ―medo do crime é um sentimento que está colocado
em nós desde a infância. As primeiras histórias infantis souberam como nenhum outro meio
de comunicação lidar com esse sentimento‖. A proximidade com que a violência atua sobre a
formação social, desde os tempos mais remotos, enraíza seus efeitos no comportamento
cotidiano.
O medo da violência, então, pode ser atribuído para diversas formas de representação
social, no entanto, o crime organizado vem ganhando notoriedade nos meios de comunicação.
Mesmo em tempos de ataques terroristas, é o crime organizado, muitas vezes, confundido
com terrorismo, que afugenta o ideário social, principalmente por suas características
mercantis.
De qualquer forma, neste capítulo procurou-se fazer uma leitura crítica dos termos que
orbitam em nosso campo de estudo: o fenômeno do medo, da violência e da cultura. A análise
sobre o desenvolvimento do medo e seu enraizamento na cultura contemporânea, foram
examinados à luz da preocupação em se obter complementaridade, transitividade ou
compatibilidade na construção da temática que fornece o título da dissertação.
Sublinhamos que a reflexão sobre o medo, no campo da praxis da cultura e da violência,
não é uma imposição externa e sim exigência epistemológica intrínseca e essencial. Sem
pretender esgotar esta reflexão, julgamos importante ressaltar que, ao se lidar com o tema do
medo e da cultura, só se alcançará legitimidade através da argumentação num coro polifônico
e dialógico. O presente capítulo deve ser relativizado, já que se apóia em preocupações
acadêmicas.
59
Todo o levantamento conceitual e teórico sobre as formações ideológicas do medo através
da violência, será aplicada na atuação e efeito social de uma das organizações mais antigas do
mundo: o crime. O objetivo do capítulo seguinte é desvendar o fenômeno do crime e sua
influência na disseminação do medo. As estruturas do crime, nos dias de hoje, são cada vez
mais complexas, tornando-se, muitas vezes, organizadas.
Frente a esse contexto, iremos traçar o perfil histórico do crime, até a formação do que se
compreende, hoje, como crime organizado. O foco dessa análise será dirigido à facção PCC –
Primeiro Comando da Capital, movimento criminoso que parou o Estado de São Paulo em
uma série de ataques orquestrados, no mês de maio de 2006.
60
3 O CRIME ORGANIZADO NO IMAGINÁRIO SOCIAL: PCC
REALIDADE CONTROVERSA
3.1 Medo do Crime
O medo possui diferentes faces de repontar no meio social, mas nenhum deles merece
tamanho destaque como a ascensão do crime. A relação mocinho e bandido, ou melhor,
polícia e criminosos ganharam contornos complexos, pois o que antes transcorria no
imaginário social com histórias e estórias de final feliz, hoje se mostra uma realidade presente
e não tão feliz. Hoje, ironicamente, é difícil distinguir quem são os mocinhos e quem são
bandidos. De um lado, os soldados do Estado combatem os criminosos e, algumas vezes se
tornam criminosos ao serem corrompidos pelo capital. De outro lado, temos um contingente
crescente, que se aproveita da falência estatal para lucrar, sem escrúpulo algum nem respeito
pela vida, para eles o que interessa é o lucro. Diante deste cenário, a sensação de proximidade
com que o crime se apresenta, encontra-se no dia-a-dia, em todos os meios mediáticos, nas
conversas informais, nos discursos políticos e, principalmente, na narrativa de suas vítimas. A
angústia coletiva da sociedade frente a essa realidade remete ao sentimento de insegurança
presente no mundo, onde o crime se organizou, transcendeu fronteiras territoriais e se
consolidou em muitos países, alguns, como fonte econômica, por exemplo, a Transnístria
(GLENNY, 2008, p. 123).
O medo do crime avalia Dantas, Persijn e Silva Júnior (2006, p. 05),
[...] incide sobre o Brasil e outros países, já que, o crime está perpetrado em todo o
mundo. É fato que o medo do crime cause um impacto negativo na qualidade de
vida dos indivíduos e das comunidades, podendo, por isso mesmo, trazer
conseqüências individuais, coletivas, políticas e econômicas significativas. Entre
elas, vale citar, o dano psíquico; o abandono e esvaziamento demográfico de certas
regiões; a descrença pública no Estado e nas autoridades da justiça e da gestão da
segurança pública; a desvalorização imobiliária e conseqüente diminuição ou
mesmo cessação do turismo local, bem como a perda econômica correspondente em
termos de geração de renda.
O crime, portanto, incide diretamente na saúde estatal, obtendo um impacto
considerável na opinião pública por meio da mídia, ―que passa a pressionar as autoridades
responsáveis pela gestão da segurança pública, no sentido da adoção de medidas efetivas de
controle da criminalidade e neutralização ou cessação do medo do crime‖ (DANTAS;
PERSIJN; SILVA JÚNIOR, 2006). Segundo aponta o Comitê Europeu sobre Problemas
61
Criminais (European Committee on Crime Problems ECCP, 2003), o "medo do crime" diz
respeito, essencialmente, ao medo da ocorrência de certos delitos, caso, por exemplo, dos
homicídios, delitos sexuais, arrombamentos e lesões corporais, ou seja, da violência.
Diante disso, é possível compreender que certos crimes causem maior impacto
individual ou coletivo, sob a forma de medo, o que pode produzir significativas implicações
psíquicas, no plano individual, bem como sociais, políticas e econômicas na perspectiva
coletiva. Os crimes violentos podem ser determinados a partir da identificação de tipos penais
específicos na legislação de cada sociedade. Como regra geral, os crimes são considerados
violentos, quando envolvem o uso da força física, ou sua ameaça, sobre as vítimas finais ou
potenciais. A categoria engloba tanto os crimes cujo objetivo é o próprio ato violento, como
ocorre no homicídio, quanto o seu uso instrumental, como ocorre no estupro ou no roubo.
Os primeiros estudos sobre o medo relacionado à violência criminal surgiram na
década de 60, nos Estados Unidos, em decorrência da emergência de temas como: medo de
vitimização, medo do crime, sentimento de insegurança, práticas de proteção, inquietude
generalizada etc. (1993 ROCHÉ apud AGUIAR, 2005, p. 10). Incentivados pelo governo,
esses estudos tentavam demonstrar ser plausível a explicação dada pelas pessoas de que os
seus sentimentos de medo e insegurança estavam relacionados diretamente à criminalidade.
O autor mostrou os procedimentos metodológicos das pesquisas americanas sobre o
estudo do medo, ressaltando a relevância dada por essas pesquisas à criminalidade, enquanto
um elemento-chave para se compreender o aumento dos sentimentos de medo e insegurança
da população. As pesquisas apresentavam vários níveis: indivíduo, bairro ou cidade, porém
sempre associando o medo e a insegurança sentidos pelas pessoas ao grau de vitimização. As
pesquisas que centravam a atenção sobre os indivíduos, apoiavam-se em variáveis como sexo,
idade, raça, etc., para mensurar o aumento do medo e da insegurança.
Se, por exemplo, a variável escolhida fosse ―idade‖, consideravam que os sentimentos
de medo e insegurança seriam maiores no grupo de faixa etária mais vitimada. As pesquisas
que se utilizavam como variáveis o bairro ou a cidade, seguiam a mesma metodologia da
variável ―indivíduo‖, assim, se moradores de um bairro ou cidade foram mais vitimados que
de outros bairros ou cidades, essas pesquisas pressupunham ser maiores os sentimentos de
medo e insegurança nesse perfil da população.
Posteriormente, segundo Roché (1993 apud AGUIAR, 2005, p. 11), as pesquisas se
enriqueceram, pois passaram do foco da vitimização para o risco objetivo (exposição ao risco,
antecipação ao risco). Esses estudos criticaram as pesquisas sobre vitimização, iniciada nos
anos 60, por tentarem analisar variantes globais do medo (sexo, idade, raça etc). Para os
62
autores o medo da vitimização está muito menos relacionado a fatores relacionados ao
indivíduo, e mais à relação entre a gravidade da ameaça e a probabilidade de que ela ocorra.
Se há uma grande probabilidade das pessoas estarem correndo risco de serem vítimas de um
determinado crime, mas este crime não é grave, não há medo, ou, se é grave, mas o risco é
pequeno, também não o há.
A literatura francesa sobre o medo, iniciada na década de 70, e, pesquisas realizadas na
Inglaterra, Suécia, África do Sul, Austrália e países da América Latina, nos anos seguintes,
mostraram a permanência da ―construção do outro como inimigo.‖, afirma Aguiar (2005, p.
20). A primeira associação feita pelas populações ao se referirem ao medo é associá-lo à
criminalidade. A segunda é dar ―rostos‖ aos causadores da criminalidade. Na França, são os
imigrantes estrangeiros, no Brasil, precisamente em São Paulo, são os imigrantes nordestinos,
os negros e os pobres.
Lagrange e Roché (1993 e 1995 apud AGUIAR, 2005, p. 21) mostram, através de
estatísticas, um aumento real da criminalidade desde os anos 60 (estagnado no final dos anos
80), e que o crime se tornou preocupação crescente da população. Porém, evidenciaram que,
embora a delinqüência tenha aumentado nas últimas três décadas, o medo não está vinculado
somente ao crime e ao risco de vitimização. Através das sondagens de opinião, observaram
que um dos elementos evidenciado, no discurso das pessoas, são reclamações quanto às
incivilidades percebidas, tais como grafitismo, barulho ou mesmo a presença de adolescentes
ou de pessoas tidas como vagabundas nos bairros. Um segundo elemento é a figura do
estrangeiro.
As percepções de Lagrange e Roché (1993 e 1995 apud AGUIAR, 2005, p. 22) são de
que o ―medo do crime‖, ao qual as pessoas se remetem ao falar de seus temores, está
associado às incivilidades e à figura do estrangeiro. O aumento das incivilidades, assim como
a presença do imigrante, significariam para os cidadãos uma ameaça à ordem social. As
incivilidades, por se tratarem de práticas que estão cotidianamente atentando contra os valores
dominantes da comunidade, e a presença do estrangeiro por ele recobrir dois elementos no
imaginário da comunidade: daquele que não tem lugar e nem grupo, portanto, não tendo o
porquê de compartilhar dos valores comuns daquela determinada comunidade na qual se
instalou.
Caldeira, antropóloga brasileira que se dedicou ao estudo do medo na década de 80 na
cidade de São Paulo, evidenciou o efeito que a ―fala do crime‖ exerce na criminalização e
discriminação de certos grupos, assim como as conseqüências danosas à democracia devido a
este imaginário do medo. Através de entrevistas com moradores da Moóca no referente à
63
criminalidade, constatou que os moradores antigos atribuem o aumento da violência no bairro
à imigração nordestina, assim como de todas as mudanças ocorridas no bairro.
Caldeira aponta que o medo da violência cresceu nos anos 80 e 90. É fato que o
número de crimes, em todas as suas modalidades, cresceu a partir da década de 80 em todo
Brasil (ADORNO, 1989; CALDEIRA, 1984; VARGAS, 1993; ZALUAR, 1994). Um dos
objetivos da autora nessa obra é o de refletir sobre o medo e a violência, não como elementos
que colocam em risco a linguagem; mas, ao contrário, pensar a linguagem como mediadora da
violência e cooperadora na proliferação tanto do medo como da própria violência.
O medo é representado, segundo Caldeira, como algo criado e recriado pelas próprias
pessoas, pessoas comuns que contam e recontam suas experiências de violência através de
comentários, conversas, brincadeiras, piadas. Percebe que a ―fala do crime‖ tem um papel
fundamental que é o de ―reorganizar a ordem e o significado rompidos pela experiência do
crime‖. Em entrevistas realizadas com moradores de diferentes classes sociais na cidade de
São Paulo nos anos 80, a autora diz:
[...] na narrativa do crime esse acontecimento traumático divide a história em
―antes‖ e ―depois‖. Essa divisão ordenada faz com que o crime assuma na narração o
efeito contrário do que teve na experiência: ser vítima de um crime violento é uma
experiência extremamente desorientadora. Um crime violento cria uma desordem na
experiência vivida e provoca uma desestruturação do mundo, um rompimento. A
vida não caminha do mesmo jeito que antes. Como muitos me disseram
repetidamente: ―Esse medo você nunca mais perde.‖ (CALDEIRA, 2000, p. 33).
O trauma da experiência violenta deixa seqüelas profundas, não só no indivíduo
vitimado, mas em todas as pessoas em sua volta, pois a experiência cria uma sensação de
insegurança ao despertar o pânico em situações que recordem o ato. Segundo Caldeira, a fala
do crime produz, porém, efeito contrário, pois, ao combater a violência, faz com que ela
prolifere. A mesma fala que tenta resignificar o mundo, faz disseminar o medo e a própria
violência, gerando novas formas de segregação espacial e discriminação social.
A ordem simbólica engendrada na fala do crime não apenas discrimina alguns
grupos, promove sua criminalização e os transforma em vítimas da violência, mas
também faz o medo circular através da repetição de histórias e, sobretudo, ajuda a
deslegitimar as instituições da ordem e a legitimar a privatização da justiça e o uso
de meios de vingança violentos e ilegais. (CALDEIRA, 2000, p. 43).
A fala do crime, portanto, traz consigo: discriminação e criminalização de certos
grupos, disseminação do medo, legitimação da justiça privada e deslegitimação das
instituições de lei e ordem. ―A fala do crime nunca abandona suas categorias preconceituosas,
64
essas categorias a constituem. Associam o crime às favelas e denigrem os favelados; mas, ao
mesmo tempo, reconhecem que os favelados que conhecem são trabalhadores.‖ (CALDEIRA,
2000, p. 81)
Delpierre, estudioso francês do medo, diz que um ―efeito do medo é a objetivação‖,
dando-nos um exemplo:
No medo da violência, o homem ao invés de lançar-se à luta ou fugir dela, satisfazse olhando- a de fora. Encontra prazer em escrever, ler, ouvir, contar histórias de
batalhas. Assiste com certa paixão às corridas perigosas, às lutas de boxe, às
touradas. O instinto combativo deslocou-se para o objeto. (1974 apud DELUMEAU,
1989, p. 3).
Se o efeito do medo é a objetivação, os efeitos da objetivação foram, portanto dois: a
caracterização do medo em figuras concretas, nomeadas e atingíveis e a disseminação dele, ao
ler, ouvir, contar histórias entre outros. No caso de São Paulo, para uma classe média e alta, a
necessidade de se construir um ―outro como inimigo‖ se deu na figura de negros, pobres ou
nordestinos, apontados como responsáveis pelo aumento da violência. O sentimento de medo,
sendo cada vez mais propagado nas grandes cidades do mundo, propiciou aos indivíduos
―erguerem seus muros‖, tanto no sentido literal da palavra, colocando grades em suas
residências, em seus ambientes de trabalho, em seus espaços de lazer, como no seu sentido
metafórico, ao colocarem uma barreira nas relações sociais, evitando pessoas que não sejam
do seu convívio e lugares que sejam públicos, pois, nestes não há como selecionar os seus
próximos, estando a pessoa sujeita ―aos outros‖.
Nas duas últimas décadas, em cidades tão diversas como São Paulo, Los Angeles,
Joanesburgo, Buenos Aires, Budapeste, Cidade do México e Miami, diferentes
grupos sociais, especialmente das classes mais altas, têm usado o medo da violência
e do crime para justificar tanto novas tecnologias de exclusão social quanto sua
retirada dos bairros tradicionais dessas cidades. Em geral, grupos que se sentem
ameaçados com a ordem social que toma corpo nessas cidades constroem enclaves
fortificados para sua residência, trabalho, lazer e consumo. (CALDEIRA, 2000, p.
9).
Paralelamente a este quadro de segregação espacial e social, o aumento do crime e do
medo provoca na população de uma forma geral o desejo de que o mal seja extirpado o mais
rápido possível. Uma vez que a ―categoria do criminoso é uma simplificação radical que o
reduz à encarnação do mal‖, matá-lo seria a melhor solução. Segundo a autora, em debates
públicos ocorridos na mídia, por mais que defensores de direitos humanos escrevam sobre o
assunto, políticos de direita e elite pregam a pena de morte, utilizando como um dos maiores
65
argumentos o atendimento ao ―sentimento popular‖. A preocupação destes na aplicação da
pena de morte se dá mais em termos de vingança do que em termos da lei ou eficácia para
reduzir a criminalidade.
Acuados pelo aumento da violência e pelo medo, ações privadas também são bemvindas por parte dos cidadãos (especialmente procedentes de setores conservadores das
classes média e alta como, também, de segmentos das classes trabalhadoras) uma vez que
―são vistas como legítimas numa luta urgente contra o mal‖. Nessas ações, incluem-se
contratações, pela população, de grupos de extermínio (na maior parte, formados por
policiais), justiceiros para matarem pessoas que parecem colocar em risco a ordem social ou a
vida de outras pessoas, assim como ações de linchamentos, em que um grupo de pessoas se
reúne com pedras, paus, objetos pontiagudos para aplicar punição àqueles julgados como
tendo infringido regras legais ou morais da comunidade. Há, também, apoio às ações
arbitrárias da polícia, contanto que a violência seja contida.
As ações citadas acima colocam em risco a Democracia, pois produzem segregação,
preconceitos, racismo e expropriam do Estado o monopólio legítimo da força, delegando o
controle do exercício da violência às mãos de particulares, no qual o livre-arbítrio, e não as
leis, é o que rege a distribuição da justiça. Caldeira intitula a Democracia vivenciada, no
Brasil, de ―democracia disjuntiva‖, pois, ao passo que os direitos políticos e sociais são
resguardados, os direitos civis não o são, sendo constantemente violados. Essa é uma das
principais contradições que marcam o Brasil contemporâneo, segundo ela.
Se de um lado houve uma expansão real da cidadania política, expressa nas eleições
livres e regulares, livre organização de partidos, nova liderança política e
funcionamento regular do legislativo em todos os níveis associados à liberdade de
expressão e fim da censura aos meios de comunicação. De outro, no entanto, há o
universo do crime e um dos mais intrigantes fatos da consolidação democrática
brasileira: o de que a violência, tanto civil quanto de aparatos do Estado, aumentou
consideravelmente desde o fim do regime militar. Esse aumento do crime e da
violência está associado à falência do sistema judiciário, à privatização da justiça,
aos abusos da polícia, à fortificação das cidades e à destruição dos espaços públicos.
Em outras palavras, no Brasil, a democracia política não trouxe consigo o respeito
pelos direitos, pela justiça e pela vida humana, mas, sim, exatamente o seu oposto.
(CALDEIRA, 2000, p. 56).
Considerado, portanto, um dos grandes obstáculos à democratização, o medo, além de
reforçar o autoritarismo, por meio da ―fala do crime‖, acaba por ensejar o ―medo do outro‖,
segregando e estimulando o preconceito e o racismo e, tornando natural, as desigualdades
sociais (CALDEIRA, 2000, p. 45). Segundo a literatura, o ―outro‖, rosto nomeado e temido
pelos demais, sob o fulcro da criminalidade, exerce a função de ocultar os reais elementos que
66
incitariam os sentimentos de medo das pessoas. Para os estudiosos da violência criminal, as
transformações sociais ocorridas, na segunda metade do século XX, assim como a
―instrumentalização‖ do medo por parte de políticos ou empresas privadas, compreenderiam
alguns dos elementos chaves para se entender o aumento crescente dos sentimentos de medo e
insegurança das populações.
Para tanto, antes de abordarmos a evolução do Primeiro Comando da Capital – PCC e
o impacto de suas ações, no âmbito social, julgamos importante fazer considerações sobre as
definições existentes de Crime Organizado, além de contextualizar o enraizamento dessas
atividades ilícitas no mercado legal.
3.2 Fragmentos sobre o Crime Organizado
Usado e abusado pela indústria do entretenimento, o Crime Organizado virou ícone de
consumo através de filmes, jogos de ―vídeo game‖, novelas, revistas, jornais, Internet,
noticiários radiofônicos e, principalmente, televisivos. A popularização dessa ameaça vem
assumindo, de forma gradativa, o papel de algoz na proliferação do medo social, colocando
em xeque o papel do Estado no combate, prevenção e contenção de tais formações
organizadas. Antes de abordarmos a evolução do Primeiro Comando da Capital – PCC,
julgamos importante fazer considerações sobre as definições existentes de Crime Organizado,
além de contextualizar o enraizamento dessas atividades ilícitas no mercado legal.
Ao decompor a expressão ―Crime Organizado‖, inicialmente, recorrermos ao
pensamento sociológico de Philippe Robert para análise de crime. Segundo Robert (2007, p.
8), o vocabulário jurídico francês reserva esta palavra para designar as infrações mais
duramente punidas, aquelas julgadas pelo Tribunal Especial – Cour d’assises (que
compreende nove jurados populares e três juízes togados presidentes). Para o autor, crime
nada mais é do que uma categoria particular do comportamento humano, ou seja, trata-se de
uma ação ou, por vezes, de uma omissão, ou mesmo de um estilo de vida.
Robert (2007, p. 18-19) diz que,
O crime é inegavelmente um comportamento, mas ficar nisso impede suas
especificações e, portanto, seu estudo. Não basta acrescentar que o crime é um
comportamento desviante, essa fórmula permanece vazia quando a norma em função
da qual se afere o desvio não está definida. O crime é sem dúvida um
comportamento, mas um comportamento valorado pelo direito, que ameaça seu
autor de uma pena, ou seja: um comportamento tipificado.
67
Falar de um comportamento tipificado, ou melhor, penalizado, nos faria retornar ao ponto de
partida indicado por Émile Durkheim (2002), quando definiu um crime como aquilo que é
sancionado por uma pena. A intervenção do Direito (conjunto de leis) é a única tipicidade
capaz de reunir a transgressão e a repressão numa mesma classe de fenômenos sociais. Deve
partir daí toda análise sociológica que pretenda explicar o crime. Dessa forma, Durkhein
indicou que a Sociologia não podia mais construir o estudo do crime sobre a pesquisa dos
determinantes da ação e que se devia começar pela reação social suscitada pelo crime. Aliás,
Durkhein bem definiu o crime como a violação dos estados fortes e definidos da consciência
coletiva: mas, isso não formou um programa de pesquisa, tratava-se tão somente de uma
concepção do lugar do Direito dentro do universo normativo, da qual ele se havia munido em
sua tese principal de 1893. Esse autor compreendeu que a sociedade não era simplesmente o
produto da ação e da consciência individual, pelo contrário, as maneiras coletivas de agir e de
pensar têm uma realidade exterior aos indivíduos que, em cada momento do tempo, a elas se
conformam (DURKHEIM, 2002, p. 23) e, mais que isso, não são só exteriores ao indivíduo,
como dotados de poder imperativo e coercivo em virtude do qual se lhe impõem
(DURKHEIM, 2002, p. 30).
O tratamento do crime, como um fato social, de caráter normal e, até necessário,
permitir-lhe reabilitar, cientificamente, o fenômeno criminal e demonstrar que a prática de um
crime poderá depender não tanto do indivíduo que, de acordo com essa concepção, age e
pensa sob a pressão dos múltiplos constrangimentos que se desenvolvem na sociedade; mas,
diversamente, poderá apresentar em abstrato uma ampla raiz de imputação social.
Para não restringir o entendimento sobre crime às definições anteriormente citadas,
recorremos a uma visão mais abrangente relacionadas ao Estado e ao Direito, pois o status do
crime varia de acordo com as sociedades. O único traço comum a todas as condutas
criminosas é sua tipificação, a ameaça de penalização a que o legislador sujeita quem possa
cometê-las. O direito é obra de um poder institucionalizado, autônomo e, até certo ponto,
estabilizado. Conferindo forma jurídica a suas injunções, esse poder procede a uma fórmula,
por meio da qual ele se torna universal e prefixado: ele julgue o passado, o presente e o
futuro; ele promete garantir sua reprodução (BOURDIEU, 1986 apud ROBERT, 2007, p. 49).
Nesse sentido, Robert (2007, p. 26) diz que a intervenção do Direito interpõe formas e
prazos, ela obriga a obtemperar, ou mesmo, a interromper o recurso direto a força pura e
simples para que se tomem as vias do debate e do contraditório; e se o resultado for julgado
pouco equânime, o procedimento atenua, ao menos, o risco de violência, embora não sirva de
garantia contra a servidão.
68
Para o autor, sua justiciabilidade assinala a presença da autoridade, mas é sua
recepção como legítima que aponta o mistério da obediência social. Embora a manifestação
de força associe-se às normas instituídas pelo direito de Estado, ela não é puramente
unilateral, podendo ser proclamada coletivamente e ―recebida‖ por seu destinatário. O termo
―norma‖ invoca o esquadro de arquitetura e, por analogia, o modelo contra o qual se afere a
conformidade de uma conduta. A norma é um ato volitivo, pois supõe prescrição e
justiciabilidade: é uma maneira de pensar ou de agir, socialmente definida e suscetível de
sanção (ROBERT, 2007, p. 33).
Para impor uma norma, deve-se estar apto a punir a conduta não conformante: o
universo normativo exprime poder e desigualdade. Anthony Giddens (1989, p. 80)
rememorou-o veementemente: as sanções e as normas exprimem assimetrias estruturais de
dominação. Ele acrescentou, contudo, que todo o poder é, ao mesmo tempo, capacidade e
coerção. A norma é feita de força e de sentido, ela prescreve modelos comportamentais,
impõe uma ordem, como, também, a descreve. Mais precisamente, a norma complementa
Robert (2007, p. 40), traça seus limites de forma negativa pela sanção dos transgressores.
A regularidade normativa de um Estado faz com que o sistema penal manifeste, antes
de tudo, a assimetria entre o culpado e o perseguidor, mesmo que ele traduza a pretensão de
monopolização da força, ou seja, a idéia se resume em pura violência. Segundo Robert (2007,
p. 42), esse traço é assegurado pela legalidade das penas, embora essa seja uma
particularidade recente na longa história do direito criminal. Mais fundamentalmente, a pena é
regulada, pois administrada por um juiz, ao fim de um processo, que o Direito organiza de
acordo com certas fórmulas. Essa característica distingue a pena da pura violência;
paralelamente, ela a diferencia da sansão disciplinar ou administrativa, mesmo que essas
pessoas possam se servir do procedimento penal.
Para Robert,
O fato de o Estado reclamar para si o monopólio da violência, obrigando-se a
castigar aqueles que ousam empregá-la a seu grado, não significa que ele o consiga
imediata ou plenamente. Mormente porque o conteúdo dessa violência não é fixado
de maneira inteligível numa lista decretada peremptoriamente: os conflitos
merecedores de penalização são definidos de maneira variável de acordo com as
épocas, de acordo com o tipo de Estado e, por fim, de acordo com a situação das
relações sociais. (2007, p. 53)
Percebemos, no entanto, que todo grupo social é normativo e a incorporação de suas
normas de conduta, durante um processo de socialização, estrutura a personalidade social.
Todo indivíduo é membro de diversos grupos dentre os quais podem se erigir divergências
69
normativas. Sob essa ótica, Edwin Sutherland (1939 apud ROBERT, 2007, p. 100)
considerava o crime como um comportamento aprendido. Para o autor ―a ocasião não faz o
ladrão‖, e sim o processo de socialização e a interiorização de modelos culturais específicos
indispensáveis, o que supõe, simultaneamente, a existência de uma cultura, a aplicação de
certo aprendizado e, enfim, estruturação da personalidade. Sutherland edificou sua teoria da
associação diferencial com o intuito de explicar a delinqüência sistemática em sua obra, no
ano de 1939, transformando-se na base da Sociologia do Crime. Essa construção
desempenhou uma função suficientemente importante para que se destaquem seus enunciados
(1939 apud Robert, p. 101-102):
1) O comportamento criminoso é aprendido (nunca herdado, nem inventado) pelo contato
com outras pessoas mediante um processo de comunicação (por vezes verbal, mas
principalmente exemplar);
2) Aprende-se o comportamento criminoso no interior de um grupo restrito de relações
pessoais (daí, a diminuta influência dos meios de comunicação de massa);
3) Quando a formação criminosa é transmitida, ela compreende tanto o ensino de técnicas de
infração (por vezes, bastante complexas, por vezes muito simples), como também a
orientação das motivações, ou seja, as formas de raciocínios e atitudes criminosas;
4) Essa orientação dá-se em função da interpretação favorável das disposições legais (aqui,
menciona-se o conflito de culturas). Um indivíduo torna-se criminoso quando as
interpretações desfavoráveis a respeito das leis sobrepõem-se às interpretações favoráveis;
5) As associações diferenciais podem variar quanto à freqüência, à duração, à anterioridade
ou à intensidade;
6) A formação criminal pela associação com modelos criminosos ou anti-criminosos opera
mediante os mesmos mecanismos que estão implicados em qualquer outra formação;
7) Enquanto que o comportamento criminoso exprime um conjunto de necessidades e de
valores, ele não se explica mediante suas necessidades e valores, pois o comportamento
não-criminoso, expressa as mesmas necessidades e os mesmos valores
A partir do exposto, verificamos fragmentos importantes para a formação de uma cultura
criminosa relativizada as especificidades da norma penal e de sua operação. Isso se deve ao
70
comportamento que prospera em razão da criminalização, pois como afirma Robert (2007, p.
126), é o clássico risco da proibição que atrai os indivíduos. Para o autor, aquele que assume o
risco de produzir ou de distribuir o produto proibido, fatura sobre o risco de repressão e de
sorte que a atividade pode se tornar muito rentável. Diante dessa situação, a atividade ilícita
atrai tanto aqueles para quem a delinqüência se tornou um modo de vida – o crime organizado
– quando aqueles que, alijados do mercado de trabalho ou acuados na precariedade, penam
em encontrar formas legítimas de renda.
Como nos lembra Robert,
O exemplo da proibição das bebidas alcoólicas nos Estados Unidos durante o entre
guerras, ensina que a legalização não basta para a supressão de uma organização
criminal que teve o tempo de se estruturar e de acumular lucros importantes: ela
apenas a impele para outro setor (2007, p. 126).
Essa realidade pode ser percebida através da ideologia de uma sociedade aberta, na
qual a ascensão social é oferecida a todos, além de largamente partilhada, mas contrasta com
as diminutas chances de sucesso das pessoas carentes, de instrução, ou de meios econômicos.
Em outras palavras, essa anomalia é percebida por Merton (1968, p. 45) como a conseqüência
inesperada e paradoxal da conjunção de uma ideologia igualitária com uma estrutura social
que mantém salientes desigualdades de acesso aos meios de concretização desse ideal. A
teoria de Merton será importante para explicar o senso comum de que a classe baixa tem
maior propensão a delinqüir, o que leva o sistema prisional a se conformar como um lugar de
reprodução da miséria. Portanto, não existe relação direta entre pobreza e violência, e sim
violência estruturada, perpetrada pelo Estado, que vem oprimindo grande parcela da
população que muitas vezes impede o próprio sustento (FEFFERMANN, 2006).
A violência estrutural se materializa envolvendo, ao mesmo tempo, a base econômica
por onde se organiza o modelo societário (a estrutura) e sua sustentação ideológica (a
superestrutura). Trata-se do uso da força, não necessariamente física (ainda que não se
abdique dela, quando necessário), capaz de impor simultaneamente regras, valores e
propostas, quase sempre consideradas naturais, normais e necessárias, que fazem parte da
essência da ordem burguesa, ou seja, formam sua natureza. A miséria em si não engendra a
violência e sim a desordem normativa que a acompanha nas áreas, onde uma renovação
perpétua da população impede qualquer estabilização das relações sócias.
A população pobre está sob grande vulnerabilidade social e, em decorrência disto, vive
situações de desrespeito e privações. Essas condições não são definidoras para a adesão ao
71
crime, mas podem ser vereda propiciadora para que setores ilegais e criminosos se expandam,
como no caso do tráfico de drogas. É nesses lugares que as atividades ilícitas tornam-se
visíveis, em regiões em que o Estado é omisso e/ou violento. Esses lugares tornaram-se
campos férteis para o desenvolvimento do crime organizado. De qualquer forma, concluímos
que o conceito de crime depende dos modelos hegemônicos vigentes em determinada época.
São os processos normativos e disciplinadores que permitem a elaboração do conceito. No
caso da definição do conceito de crime organizado, não existe consenso a respeito das
diversas interpretações dadas ao termo. Todavia, existe acordo quanto ao fato de o crime
organizado apresentar características próprias, diferindo-o da criminalidade comum e
eventual.
Levando em consideração a finalidade que inspira a atuação do crime organizado –
acumulação de poder econômico. É possível vislumbrar duas espécies de organizações
criminosas (LUCAS, 2007, p. 108): ―as que exercem suas atividades ilegais com vistas a
alcançar fins políticos e/ou ideológicos, e aquelas, tal qual uma empresa, que realizam ações
ilícitas com objetivo de obter lucro‖. As organizações criminosas ―ideológicas‖ constituem
espécie pouco estudada, confundida muitas vezes com grupos terroristas (ex. Al Quaeda) e
paramilitares (ex. FARCs). Geralmente, tanto a mídia quanto os acadêmicos, ao cunhar a
expressão ―Crime Organizado‖, dificilmente estão querendo referir-se a esse tipo de
organização criminosa. Na verdade ―Crime Organizado‖ virou sinônimo de ―Máfia‖
(ZIEGLER, 2003, p. 60), ou seja, foi incorporada ao vocabulário cotidiano como forma de
expressar um grupo que explora um ramo de atividade ilícita, sempre com vistas à obtenção
de lucro, relacionada ao modelo empresarial. Segundo Ziegler (2003, p. 51), ―o capitalismo
encontra sua essência no crime organizado. Mais precisamente, o crime organizado constitui a
fase paroxística do modo de produção e da ideologia capitalista‖. É importante ressaltar que o
crime organizado funciona à margem de toda a transparência e numa clandestinidade quase
perfeita, operando a cartelização ideal de suas atividades no vácuo de alguma proibição
estatal, sob processo de dominação monopolística.
De acordo com José de Faria Costa (2001 apud SILVA, 2003, p.28),
Na criminalidade organizada, a relação capital/lucro é quase infinitamente favorável
no sentido do lucro, pois de um capital relativamente pequeno há a forte expectativa
de um lucro fabulosamente alto. O investimento concentrado no crime organizado,
como em tantos outros campos, faz nascer o ciclo vicioso de produção de capital
incomensurável que vai determinar um lucro ainda maior. E assim sucessivamente.
72
Estima-se que o mercado envolvendo todas as modalidades de criminalidade
organizada seja responsável por mais de um quarto do dinheiro em circulação em todo o
mundo (SILVA, 2003, p.28). Segundo o autor, pesquisa realizada pelos jornais The Los
Angeles Times e O Estado de São Paulo, revelou que as organizações transnacionais (que
operam em todo o mundo) movimentam, anualmente, cerca de US$ 850 bilhões, quantia
considerada superior ao PIB de uma das sete nações mais ricas do mundo. Para a Organização
das Nações Unidas, só a renda obtida com o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes –
cerca de US$ 400 bilhões – corresponde a 8% (oito por cento) da renda do comércio
internacional.
Diante de mercado tão lucrativo, o crime organizado diversifica suas modalidades de
comércio: tráfico de entorpecentes, de órgãos humanos, de pessoas (principalmente mulheres
para a prostituição), animais em extinção, entre outros. No entanto, não é a modalidade do
crime que identifica a existência de ―Crime Organizado‖. O que o define são algumas
características que o tornam diferente do crime comum.
Recorremos, então, à evolução conceitual de crime organizado, que surge em um
primeiro momento, na Itália antiga, por volta de 1810 (MENDRONI, 2007, p. 6). Segundo
Salvatore Aleo (1999 apud MENDRONI, 2007, p. 6), o processo de formação do modelo
criminoso autônomo associativo advém, especialmente, da criminalidade interna na Itália, do
Direito romano, decorrente do sistema crimen maiestatis. A forma organizada como delito, tal
como na figura napoleônica de associazone di malfattori, decorre da necessidade de repressão
do esquema de cumplicidade na prática de determinados crimes, de forma a englobar as lesões
a um ou diversos bens jurídicos. O autor esclarece que a noção do crime era um tipo aberto.
Informado pelo princípio moderno de determinação e taxatividade. Citando Florian, Slavatore
Aleo (apud MENDRONI, 2007, p. 7) enfatiza que, na análise daquele autor, no tempo do Rei,
perduellio, compreendia, provavelmente, todos os atos contra o Estado e a paz púbica, a
integridade e independência, como também a dignidade da Pátria. Perduellio era um crime
contra a ordem política, um crime de alto tratamento, um atentado à segurança do povo
romano, ou seja, um conceito próximo do que venha a se convencionar sobre crime
organizado.
Houve, na verdade, diversas tentativas de se definir, de forma pormenorizada, o que
seja uma organização criminosa. O crime organizado é considerado, por alguns autores, como
qualquer associação destinada à prática de crimes que, muitas vezes, surge sob a proteção do
poder econômico e/ou político, tendo a certeza, dessa maneira, da impunidade principalmente
dos seus líderes (ver Anexo A).
73
É possível observar uma proximidade nas definições, no entanto, o entendimento varia
à circunstância de organização, país e até mesmo cultura. Mingardi (2007, p. 56) explica que,
na maioria dos autores, existem cinco características para a definição do crime organizado. A
primeira é a hierarquia, pois não existe empresa sem hierarquia, que não preveja qual o
retorno de seus investimentos e onde o trabalho não seja setorizado e especializado. O mesmo
acontece como crime organizado, mas não nas quadrilhas comuns, cuja liderança é mais
fluida e, muitas vezes, baseada na capacidade que o líder tem de se impor fisicamente.
Em segundo encontra-se a previsão de lucros. Essa habilidade, normalmente, passa longe
da capacidade das quadrilhas, mesmo que especializadas. Já numa organização criminosa de
jogo ou tráfico, por exemplo, existe uma rotina que permite prever o próximo mês, tendo
como base os anteriores;
A terceira característica é a divisão do trabalho, ou seja, utilização da competência e
habilidade dos integrantes da organização em cada processo do crime. Por exemplo, em uma
organização criminosa que atue na venda de peças de carros roubados é nítida essa divisão,
pois existem membros especializados em furtar os veículos, outros em desmanchá-los, outros,
na venda de peças, na produção de contabilidade falsa, no acobertamento, etc.;
Na quarta característica constitui-se um dos fatores mais importantes, o planejamento
empresarial. Segundo o autor, são raras as quadrilhas que planejam, com um mês de
antecedência, motivo pelo qual muitos acabam presos. No crime organizado, o planejamento é
fundamental para o sucesso da operação;
Por último está a simbiose com o Estado. Todas as organizações criminosas estudadas
aparecem, de algumas forma, ligadas com a máquina do Estado. Um desmanche de carros
roubados só consegue operar se tiver o respaldo da fiscalização ou da polícia. Um ponto de
tráfico, que atende sua clientela anos a fio, no mesmo local, tem necessidade constante de
algum tipo de proteção. Para confirmar essa informação, basta verificar a tranqüilidade com
que os apontadores do jogo do bicho operam nos maiores centros urbanos.
Para o autor, as quatro primeiras características, encontradas em toda atividade
empresarial moderna, foram apenas adaptadas pelas organizações criminosas. Neste sentido,
Mingardi (1998, p. 81), no Brasil, apresenta a seguinte definição:
Grupo de pessoas voltadas para atividades ilícitas e clandestinas que possui uma
hierarquia própria capaz de planejamento empresarial, que compreende a divisão do
trabalho e o planejamento de lucros. Suas atividades se baseiam no uso da violência
e da intimidação, tendo como fonte de lucros a venda de mercadorias ou serviços
ilícitos, no que é protegido por setores do Estado. Tem como características distintas
de qualquer outro grupo criminoso um sistema de clientela, a imposição da Lei do
74
silêncio aos membros ou pessoas próximas e o controle pela força de determinada
porção de território.
Podemos observar que, nesta definição, apresentam-se quinze características do crime
organizado (MINGARDI, 1996, p. 69): práticas de atividades ilícitas, atividade clandestina,
hierarquia organizacional, previsão de lucros, divisão do trabalho, uso da violência, simbiose
com o Estado, mercadorias ilícitas, planejamento empresarial, uso da intimidação, venda de
serviços ilícitos, relações clientelistas, presença da lei do silêncio, monopólio da violência e
controle territorial.
Diante disso, torna-se evidente as organizações criminosas que existem atualmente.
Cada uma assume características próprias e peculiares, amoldadas às próprias necessidades e
facilidades que encontram no âmbito territorial em que atuam. Condições políticas, policiais,
territoriais, econômicas, sociais etc; influem, decisivamente, para o delineamento dessas
características, com saliência para umas ou outras, sempre na conformidade das atuações que
possam tornar mais viável a operacionalização dos crimes planejados e com objetivo de obter
maiores fontes de renda. Há, entretanto, algumas características que podem ser destacadas
como básicas e servem bem ao objetivo de busca da sua distinção.
Mingardi (2007, p. 57) aponta outra característica marcante do crime organizado, a
formação de três modalidades estruturais diferentes: a tradicional, a empresarial e a endógena.
As organizações que seguem o modelo tradicional, possuem um modelo de relacionamento
entre os membros baseado no apadrinhamento. Um membro recomenda um calouro e, a partir
de então, a carreira dos dois fica interligada.
Outras características marcantes são: sistema de clientela, imposição da lei do silêncio
e o controle pela força de determinada porção territorial. Não se especializam, optando pelos
crimes mais rentáveis do momento. A Máfia siciliana, por exemplo, nas últimas décadas, já
atuou no contrabando de cigarros, tráfico de heroína, tráfico de morfina, extorsão, seqüestro,
venda de proteção, formação de cartel, homicídio de aluguel etc. Um elemento interessante
desse tipo de organização criminosa é que, normalmente, ela nasce de circunstâncias muito
específicas, por exemplo: na cadeia, a partir de uma liga de presos. Como a Camorra
napolitana, que tem mais de um século de existência. No nosso país, a cadeia é a grande
gestora dessas organizações. Foi nela que surgiram o Comando Vermelho (CV), o Primeiro
Comando da Capital (PCC) e o Terceiro Comando (TC). Outra circunstância é a união de
pequenas quadrilhas, criando um conselho ou indicando um chefão, como a Yakusa. Os laços
de sangue também criam sinergia para formação criminosa, pois unem grupos em uma terra
dominada por estranhos, num modelo parecido com o da Máfia de Nova York. A união de
75
grupos interessados na manutenção do monopólio de uma mercadoria ou serviço, é outra
circunstância corriqueira no mundo do crime, como o Cartel de Cali.
Na modalidade empresarial, afirma Mingardi (2007, p. 58), existem princípios
modernos de Administração. As relações entre os membros são apenas de trabalho, sem
nenhum vínculo mais forte. Além disso, geralmente são especializadas, ou seja, atuam com
determinado tipo de crime. A lavagem de dinheiro, por exemplo, é uma especialidade desse
modelo. As que seguem a modalidade endógena são aquelas que nascem dentro de
determinadas instituições, visando aproveitar vantagens ilegais que não estão acessíveis aos
―de fora‖. Normalmente, são geradas dentro do aparelho estatal; mas, em alguns casos,
aparecem em empresas. Atuam em desvios de dinheiro público, corrupção, favorecimento etc.
Isso implica em uma atividade constante e a manutenção dos mesmos indivíduos, por longos
períodos, em situação de poder, além do recrutamento, ou cooptação, de novos elementos que
possam influir na situação. No Brasil, a ―Máfia dos Fiscais‖, combatida pelo Ministério
Público paulista, no final da década passada, é o exemplo mais gritante.
A dificuldade em se definir ―Crime Organizado‖, conforme apresentado, transcende a
questões acadêmicas e práticas, visto o grande poder de mutação que essas organizações
apresentam, além do impacto globalizante de ações criminosas sem fronteira geográfica. Em
razão disso, a Organização das Nações Unidas – ONU, no dia 9 de dezembro de 1998, decidiu
criar um comitê de trabalho com o fim específico de elaborar uma convenção internacional
para enfrentar esses crimes. No ano seguinte, em dezembro de 1999, realizou-se em Palermo,
Itália, a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional. No dia 15
de novembro de 2000, a Convenção de Palermo foi adotada pelas Nações Unidas, na qual
convencionou-se a seguinte definição, expressa no artigo 2º,
Grupo criminoso organizado – grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente
há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou
mais infrações através ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de
obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material.
O Congresso Nacional, de nosso país, aprovou, em maio de 2003, o texto da
Convenção de Palermo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pelo decreto 5.015, de 12 de
março de 2004, sacramentou a adesão do Brasil a esse documento do Direito Internacional.
Lucas (2007, p. 110) diz que o conceito da Convenção de Palermo acaba por incorporar a
finalidade que norteia a atuação da organização criminosa, qual seja, a afirmação antes feita
76
de que quando se usa a expressão ―Crime Organizado‖, usualmente, relaciona-o à exploração
de atividades ilegais com vistas à obtenção de lucro econômico.
Por meio de uma visão legalista, Mendroni (2007, p. 9) contrapõe a adoção de uma
definição permanente sobre crime organizado. Para ele, não se pode definir organização
criminosa através de conceitos restritos ou mesmo de exemplos de condutas criminosas como
sugerido. Isso porque não se pode engessar esse conceito, afirma o autor, restringindo-o a esta
ou aquela infração, pois as organizações criminosas detêm incrível poder variante. Elas
podem alterar as suas atividades criminosas, buscando aquela atividade que se torne mais
lucrativa, para tentar escapar da persecução criminal ou para acompanhar a evolução mundial
tecnológica e com tal rapidez, que, quando o legislador pretender alterar a Lei para amoldá-la
à realidade – aos anseios da sociedade, já estará alguns anos em atraso. E. assim, ocorrerá
sucessivamente. Mendroni (2007, p. 10) complementa que,
Não se pode definir para atribuir características rígidas, como formas
preestabelecidas. Aliás, tolice é a definição legal, pois, como dito, em um país como
o Brasil existirão diferentes organizações criminosas com distintos modus operandi
conforme a deficiência estatal da região que adotem para operar. Eventual definição
que incorpore a legislação penal vigente fará restringir os dispositivos processuais
que lhe possam ser aplicados, caso a sua tipificação se torne difícil.
Independente das diversas contradições em se adotar uma definição para o crime
organizado, acreditamos que Mingardi se aproxima mais da complexa realidade do crime
organizado, trazendo diretrizes distintas para o entendimento e classificação desse fenômeno.
Para tanto, quanto se diga a respeito de organizações criminosas no Brasil, ainda não se pode
considerar definitivo uma classificação sólida, porque os estudos a esse respeito são quase
inexistentes. Entretanto, as organizações criminosas tipicamente brasileiras, segundo
Mendroni (2007, p. 14), fundamentalmente especializadas em crimes contra a administração
pública, tráfico ilícito de entorpecentes, quadrilhas de roubo de carros e de cargas, seqüestro,
lavagem de dinheiro, e de jogo do bicho, têm se constituído por características estruturais
hierárquico-piramidal. Esse sistema de comando é liderado por ―chefes‖, ou seja, pessoas que
ocupam cargos públicos importantes, possuem muito dinheiro, posição social privilegiada por
qualquer razão. O chefe situa-se na posição suprema da organização e o subchefes logo
abaixo, como um ―sistema presidencialista‖, apenas um comandará. Os subchefes existem,
basicamente, para transmitir as ordens da chefia para os gerentes e tomar decisões na sua
eventual ausência. Os chefes e subchefes quase nunca aparecem, pois comandam através dos
77
―testas de ferro‖ ou ―laranjas‖ que, na maioria das vezes, coincidem com as pessoas dos
gerentes, dificultando sobremaneira a produção de prova criminal contra eles.
Em um nível de comando abaixo dos chefes e subchefes encontram-se os ―gerentes‖:
pessoas de confiança do chefe, com capacidade de comando, a quem aqueles delegam algum
poder. Recebem as ordens da cúpula e as repassam aos ―aviões‖. Por vezes, tratando-se de
tarefa especial, eles mesmos podem ser designados para a execução. Alguns dos ―gerentes‖ de
organizações criminosas de médio e grande porte recebem dos chefes concessões de negócios,
franquias de grandes redes internacionais, como McDonald‘s, Pizza Hut etc. Estas franquias,
embora presenteadas aos gerentes, permanecem normalmente sob o domínio do chefe, por
exemplo, através de uma procuração, ou de um ―contrato de gaveta‖, de modo a mantê-lo
vinculado. Na hipótese de ele não mais servir à empresa criminosa, torna-se fácil a retomada
daquele negócio por parte do chefe. O produto do negócio é auferido pelo gerente, que
assume um status financeiro que depois não deseja perder – colocando filhos em boas escolas,
comprando imóveis, carros, barcos etc. Isto faz com que ele crie fortes vínculos com a
organização. Os gerentes servem, também, na maioria das organizações, como ―testas-deferro‖ ou ―laranjas‖. Transações são realizadas em seus nomes, empresas são abertas em seu
nome (com a finalidade da lavagem de dinheiro); são aqueles que, para todos os efeitos,
emitem as ordens, protegendo, fielmente, a figura de seus chefes que, a exemplo da forma
como se faz com as franquias acima referidas, são mantidos sob vigilância e controle através
de preocupações e ―contratos de gaveta‖.
Na base da pirâmide estão os ―aviões‖: pessoas com algumas qualificações (por vezes
especializadas) para as funções de execução a serem desempenhadas. Evidentemente que a
―construção‖ desses ―trutas‖ dependerá dos ramos de atividades a que se dedique a
organização. Se pretender roubar veículos ou furtá-los (denominados de ―puxadores‖ na gíria
dos criminosos). Se pretender dedicar-se ao tráfico de entorpecentes, necessitará de pessoas
com atribuições específicas para a venda da droga no varejo e assim por diante.
Nota-se que essa forma estrutural tem sua origem nas famílias mafiosas italianas, onde
o ―patriarca‖ - capo di famiglia, decidia todas as situações conflitantes. As famílias eram
organizadas, hierarquicamente, e cada uma tinha absolutas responsabilidades com os
―familiares superiores‖ e direitos também absolutos em relação aos seus subordinados, em
escala de hierarquia. Já a divisão direcionada de tarefas costuma a ser estabelecida segundo as
especialidades, e subdividida em estrutura modular, sendo a subdivisão dos módulos,
geralmente, determinados pelos ramos das atividades criminosas variadas.
78
É notório que a violência seja a característica mais marcante das organizações
criminosas. Como afirma Ziegler (2003, p. 87) ―os senhores do crime são escravos de seus
desejos, submetem os outros à violência e mostram-se cegos de si mesmo. Seu poder baseiase, exclusivamente, no medo [...]‖. Para Mendroni (2007, p. 18), o uso de violência é aceitável
e utilizado sempre e, quando seja necessário, para que o objetivo seja alcançado. Todavia, é
normalmente determinado pelo(s) chefe(s). A ordem é especificada, quanto à pessoa que deve
cumprir contra quem deve ser executada a violência e a maneira de execução. Em uma
organização bem estruturada, esse expediente é utilizado como último recurso, precedendolhe as ameaças e as corrupções, sempre que possíveis. Isto porque a prática de crimes
violentos causa repulsa por parte da população e dos investigadores, fazendo nascer
sentimento de justiça. Os assassinatos, quando acontecem, na grande maioria das vezes, seja
pela própria ação criminosa, seja por ―queima de arquivo‖ da testemunha-chave, são
praticados sob ―dissimulação‖ ou são executados de forma a deixar poucos vestígios da
autoria.
Outro ponto marcante dessa estrutura criminosa é a forma de captação ou inclusão de
pessoas à organização. Segundo Mendroni (2007, p. 17), a restrição dos membros que venham
a integrar o grupo criminoso é praticamente condição de sua sobrevivência e manutenção. As
suas qualificações são, normalmente, obtidas por meio de experiências a que são submetidos,
como testes de habilidades, parentescos, indicações por outros membros, etnia, fichas
(atuações) criminais e considerações similares. A rede de relacionamento que esses indivíduos
possuem, é mais uma das qualificações primordiais para sua aceitação.
Por tratar-se de organizações criminosa a necessidade do relacionamento e integração
com os agentes do Estado, no âmbito do grupo, é fundamental para garantir a existência. Por
isso, a conivência de policiais e, principalmente, agentes públicos, torna-se essencial. Trata-se
de característica bastante evidente no Brasil. Quando os agentes públicos não participam
efetivamente do grupo, são corrompidos para viabilizar a execução das ações criminosas.
Geralmente, estão colocados em postos e locais estratégicos para poderem auxiliar, de
qualquer forma, na execução das ações. Para Mingardi (1998, p. 74), a relação promíscua
entre os aparelhos do Estado e o crime organizado, pode ser constatada na soltura de detentos
e na cobrança mensal, realizada por policiais nas ―bocas de fumo‖ para permitirem a
permanência do ponto de distribuição. Assinala o autor que essa prática de propina é
generalizada, impedindo a delação. Diante disso, as organizações criminosas que atingem
certo grau de desenvolvimento, já não conseguem sobreviver sem o auxílio de agentes
públicos.
79
Além do exposto, para uma organização criminosa ser bem estabelecida, isto é, ter
bases mais sólidas, necessita manter um domínio territorial considerado o seu QG (Quartel
General). Isso não impede que, na medida do seu crescimento, venha aventurar-se em
territórios neutros, sem domínio de qualquer outra organização ou até em territórios de
domínio de outras, o que certamente acarretará conflito em vários níveis, desde o político até
o armado. Observemos a classificação por porte das organizações criminosas, segundo
Mendroni (2007, p. 19),
Grandes Organizações Criminosas
São as máfias italianas (Cosa Nostra, Camorra, ‗Ndranghetta, Sagrada Coroa Unida), famílias
italianas nos EUA, Yakusa, máfias russas, tríades chinesas, cartéis colombianos –
Medelín/Cali, máfias nigerianas etc. Concentram suas atividades nas grandes cidades,
principalmente nos centros financeiros.
Médias Organizações Criminosas
Concentram suas atividades nas cidades médias. Em regra, são intermunicipais, embora
possam atuar e ser interestaduais. O problema da atuação interestadual está no domínio do
território, no Brasil, consegue, via de regra, impedir o ingresso de outra alienígena.
Em alguns casos de alto grau de desenvolvimento da organização criminosa, estas acabam por
substituir a atuação que seria peculiar da Justiça e da polícia. Atuam como verdadeiros
defensores dos pobres e oprimidos pela Polícia e com eles dividem um pouco do produto do
crime. Propagam a repulsa à Polícia e vivem próximos das pessoas, nas quais pretendem
imbuir raiva dos organismos estatais. Entretanto, importa considerar que o Estado ainda tem
mais força, e força suficientemente para combater qualquer tipo de estrutura criminosamente
organizada. Quanto maior a sua atuação e grandiosidade, tanto maior poderá ser a do Estado.
Pequenas Organizações Criminosas
Delimitam-se em territórios de uma cidade. Confundem-se muitas vezes com quadrilhas
especializadas. Assalto, tráfico de entorpecentes etc. Uma quadrilha (do crime de quadrilha ou
bando – do artigo 288 do Código Penal) não se confunde com organização criminosa porque
não revela estrutura organizada.
Diante dessa realidade, Silva (2003, p. 30-31) destaca que o fenômeno da
criminalidade organizada também se caracteriza pelas conexões locais e internacionais, assim
80
como pela divisão de territórios para a atuação. No cenário internacional, por não estarem
submetidas às rígidas regras de soberania, as organizações criminosas não encontraram
grandes obstáculos para se integrarem notadamente, após o desenvolvimento do processo de
globalização da economia, que contribui para a aproximação das nações, possibilitando aos
grupos que ainda operavam, paralelamente, um novo impulso em suas relações, com maiores
perspectivas de expandirem seus mercados ilícitos.
A implantação desse processo de abertura econômica também resultou no incremento
de novas formas de crimes, sobretudo econômicos e financeiros, ante a facilidade para a
circulação do capital pelos mercados econômicos dos diversos países. Como constatado por
Ziegler (2003, p. 48), os grandes cartéis do crime de origem russa, italiana, caucasiana,
colombiana, norte-americana, chinesa e japonesa são organizações multinacionais que, entre
si, celebram acordos de colaboração ocasional, assinam convenções de partilha temporária
dos mercados e concedem, mutuamente, apoio logístico.
Frente a esse contexto, as grandes organizações criminosas não podem se dar ao luxo
de depender de apenas uma atividade criminosa, pois, na eventualidade de ocorrer qualquer
atuação da Política e da Justiça, que impeça ou dificulte o seu prosseguimento imediato, ela se
verá diante de uma paralisação das atividades e rompimento da obtenção de dinheiro. A
exemplo de uma empresa, sendo evidentemente uma ―empresa criminosa‖, ela necessita
diversificar o seu produto de forma a garantir a sua perpetuação. Mescla de atividades lícitas
com atividades ilícitas Nesse sentido, os cartéis colombianos não mais se dedicam apenas ao
comércio da cocaína, mas, também, ao cultivo de ópio e a comercialização da heroína.
As máfias italianas e ítalo-americanas atuam no tráfico de drogas, armas e
contrabando dos mais variados produtos. Os grupos japoneses, além de comércio de
entorpecentes, têm forte atuação no mercado acionário e na exploração de atividades ligadas à
pornografia.
A Máfia russa explora o tráfico de componentes nucleares, armas, entorpecentes e de
mulheres. Já os grupos brasileiros também diversificaram suas atividades criminosas,
dedicando-se a roubo a bancos, extorsão mediante seqüestros, resgate de presos, tráfico de
armas e entorpecentes com conotações internacionais (MAIEROVICH, 1995, p. 70-76). Essa
fórmula torna-se essencial para o sucesso das atividades criminosas, principalmente
considerando a necessidade da organização de lavar o dinheiro sujo. De acordo com Silva
(2003, p. 30-31), dentre as várias técnicas utilizadas, uma das mais usuais é a mistura de
recursos de origem lícita – da atividade lícita com os recursos das atividades ilícitas,
denominada ―mescla‖. Exemplos bem claros estão situados na órbita da aquisição de negócios
81
lícitos que disfarçam outras criminosas: bares/tráfico de entorpecentes; loja de carros/roubo
e/ou recepção de carros; escritório de administração de negócios empresas/usura;
loja/contrabando; etc.
Alguns negócios servem exclusivamente ao recebimento do dinheiro de origem
criminosa e, assim subsistem, mesmo dando prejuízo, porque contam com aquelas quantias
sujas. Todo esse processo é chamado de lavagem de dinheiro. Lavar etimologicamente vem
do latim lavare, isto é; ‗tornar puro‘, enquanto dinheiro vem do latim vulgar denarius, ou
cada dez, que correspondia a uma moeda romana e, hoje, significa ―moeda corrente‖. Pela
definição mais comum, a ―lavagem de dinheiro‖ constitui um conjunto de operações
comerciais ou financeiras que buscam a incorporação na economia de cada país dos recursos,
bens e serviços que se originam ou estão ligados a atos ilícitos.
Em termos mais gerais, lavar recursos é fazer com que produtos de crime pareçam ter
sido adquiridos legalmente (LUNDE, 2004, p. 44). O binômio ―lavagem de dinheiro‖ é,
portanto, a denominação utilizada para o conjunto de operações mediante as quais os bens ou
dinheiro, nascidos de atividades delitivas, o chamado ―dinheiro sujo‖, sejam ocultados e
integrados ao sistema econômico ou financeiro, transformando-se em ―dinheiro limpo ou
legítimo‖.
Na verdade, a origem da expressão ―lavagem de dinheiro‖ remonta às organizações
mafiosas norte-americanas, que, na década de 1920, aplicavam em lavanderias e lava-rápidos
o capital obtido com atividades criminosas. Esses negócios movimentavam dinheiro
rapidamente, o que facilitava a mistura do capital legalmente ganho com o advindo de
atividades ilícitas, promovendo a desvinculação dos recursos provenientes das atividades
criminosas (LUNDE, 2004, p. 46-51).
Concluímos que, nas suas atuais dimensões econômicas e sociais, o crime organizado
no mundo, deve ser analisado, levando-se em consideração as grandes tendências do mercado
global, da evolução tecnológica e dos efeitos da globalização, tornando possível a
consolidação desses grupos na cultura mundial. Na realidade, um dos pontos fundamentais do
sucesso e expansão do crime organizado é a flexão e versatilidade de sua organização. Por
meio de redes locais e, respeitando a especificação de cada lugar, essas organizações
desenvolvem poder de alcance global, permitindo alianças estratégicas cada vez mais
sofisticadas. Longe de ser um fenômeno atual, o crime organizado possui raízes seculares.
82
3.3 A evolução do Crime Organizado
Seguramente, o crime organizado não é uma invenção recente. Estudos históricos
parecem sugerir que seus rudimentos podem ser buscados nos bandos criados à mil anos atrás,
que proliferaram pela Europa central, Itália e Espanha desde a Idade Média, afirma Adorno
(1996, p.27). Para Lunde (2003, p. 14-15) a pirataria dos séculos XVII e XVIII, pode ser
considerada o modelo de organizações criminosas modernas. Isto se deve às características
apresentadas por esses grupos como: organograma (estrutura rudimentar comandada por um
capitão), divisão de tarefas, venda de mercadorias roubadas, corrupção de oficiais, formação
de regras de comportamento, etc. Precisamente no século XVIII, os piratas operavam em
águas internacionais. Homens como Edward Teach e Henry Morgan, conhecidos capitães
piratas, agiam nos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico. As raízes dessa prática criminosa
podem ser percebidas nos dias de hoje, conforme destaca o autor, pois nos nove primeiros
meses de 2003, aconteceram 344 ataques piratas registrados no mundo. É importante destacar
que a pirataria sempre atuou em rotas comerciais, limitando suas ações na pilhagem e
negociação de produtos roubados.
Em contrapartida o fenômeno urbano de crime, nascido nas áreas rurais- as Máfias
transformaram-se nos precursores do que conhecemos como organizações criminosas hoje em
dia. Sua versão moderna está profundamente marcada pelas organizações da Itália meridional,
em particular a ―Cosa Nostra‖, pelas organizações do sul da França (Marselha e Córsega), em
fins do século XIX e início do XX, e, sobretudo pelas organizações americanas sediadas em
Chicago e New York entre as décadas de 1910 e fins da década de 1930. Segundo Adorno
(1996, p. 27), muitas das características que hoje se observam no crime organizado já estavam
de fato presentes naquelas formas anteriores de organização delinqüente. Por exemplo,
características como: recrutamento preferencial de jovens; valor atribuído à posse da arma de
fogo donde decorre uma disposição gratuita para matar; monopólio altamente concentrado das
atividades criminais; estruturas de mando rigidamente hierarquizadas e personalizadas,
reatualizadas por rituais precisos e codificados segundo normas particulares e regidas pelo
segredo; manutenção de milícias particulares em moldes militarizados; fixação de uma rede
de informantes e espias. Nesse conjunto de práticas, lugar estratégico é conferido à corrupção.
De acordo com Adorno (1996, p. 28), sem a cumplicidade dos agentes públicos, sem o
estabelecimento de conluios entre o crime organizado e segmentos da burocracia estatal,
certamente as atividades não teriam se expandido como de fato se expandiram, ainda que em
ondas não sucessivas.
83
Desde o esclarecedor estudo de Hobsbawn (1970), sabe-se que o florescimento das
máfias é fenômeno social recente, datando do século XIX. Compreendem distintas formas de
ação e de comportamento social, entre as quais se destacam três: primeiro, uma atitude geral
em relação ao Estado de Direito. As contendas entre grupos rivais não se resolvem mediante
apelo a códigos universais ou a tribunais de justiça pública. O único código reconhecido é a
omertà (virilidade), cujo princípio fundamental interdita a prestação de informações a
autoridades públicas. Esse tipo de comportamento social desenvolve-se em,
[...] sociedades que não gozam de ordem pública efetiva ou em sociedades cujos
cidadãos encaram, hostilmente, parte ou a totalidade das autoridades (como, por
exemplo, nas cadeias públicas ou no submundo fora delas) ou com menosprezo em
relação a coisas realmente importantes (por exemplo, escolas) ou combinando
ambas as coisas (HOBSBAWN, 1970, p. 49).
Em segundo lugar, diz respeito ao patronato como forma de organização dominante.
Onde quer que tenham se instalado, as máfias tiveram por eixo um chefe, todo poderoso, em
torno do qual gravitava todo um corpo de dependentes e colaboradores, constituindo fina e
complexa ―rede de influência‖ capaz de oferecer e vender proteção.
Na Sicília, o estabelecimento do patronato inviabilizou qualquer outra forma
alternativa de poder contínuo. Terceiro, refere-se ao controle virtual e total da vida em uma
comunidade qualquer por um secreto sistema de gangs. Neste particular, ressalta Hobsbawn,
as máfias eram senão uma rede de gangs locais, controlando territórios determinados, via de
regra uma comuna ou um latifundium, relacionadas entre si tão-somente por intermédio das
migrações de trabalhadores para colheitas, através das ligações entre proprietários, seus
advogados e as cidades, bem como por meio das inúmeras feiras disseminadas pelo país. Suas
características essenciais: violência desmedida, virilidade profissional e banimento, tudo
controlado por rituais de iniciação e senhas meticulosamente padronizadas.
Assim, complementa Hobsbawn, (1970, p. 52-53)
[...] a máfia (nos três sentidos da palavra) forneceu uma máquina paralela de direito
e de poder organizados; [...] Em uma sociedade como a siciliana em que o Governo
oficial não podia ou não exercia um controle efetivo, o aparecimento de tal sistema
era tão inevitável quanto a presença de um poder de gang, ou a sua alternativa,
bandos privados e vigilantes em certas partes da América do laissez-faire. O que
distingue a Sicília é a extensão e a coesão desse sistema privado e paralelo de poder.
[...] Não era, contudo, universal, porque nem todas as camadas da sociedade
siciliana precisavam igualmente dele.
84
Na verdade, as máfias desenvolveram-se nas áreas cujas atividades econômicas como
pastos, pomares, minas, se revelavam carentes de proteção vital diante dos freqüentes furtos e
assaltos de que eram alvo. Durante o século XIX, as máfias possuíam bases populares,
representavam um mecanismo de proteção social.
Na realidade, devemos supor que a Máfia começou, verdadeiramente, a aumentar de
poder (e abuso) quando se tornou um movimento regional siciliano de revolta contra
os insucessos da unificação da Itália, na década de 1860, e quando se tornou um
movimento mais eficiente do que a guerra de guerrilha dos bandidos, paralela e
contemporânea, na Itália continental e meridional (Hobsbawn, 1970, p. 60).
Seu crescimento, expansão, auge e transformação foram impulsionados por três
circunstâncias: primeiro, o surgimento de relações capitalistas no interior da sociedade
italiana promoveu a politização dos operários fabris e dos camponeses que, com suas práticas
políticas, vieram progressivamente substituir as velhas táticas de ódio incontido e conspirador
presentes nos massacres que caracterizavam os levantes locais. Com a emergência dos novos
atores sociais e políticos, a vocação revolucionária das máfias, seu espectro de movimento
social de massas, declina acentuadamente, permanecendo restritos às áreas mais pobres e
atrasadas da parte oriental da Sicília.
Em segundo lugar, o próprio modo como o capitalismo se desenvolveu contribuiu para
acomodar interesses entre o Norte e o Sul. Nesta região, a nova classe de proprietários rurais os gabellotti - e seus correspondentes urbanos não se confrontaram com os capitalistas do
Norte. Antes, estabeleceu-se uma sorte de divisão social do trabalho. Como os proprietários
do Sul não estavam àquela época interessados no desenvolvimento das manufaturas, se
confortaram com a condição de fornecedores de produtos hortifrutigranjeiros para o Norte.
Converteram-se em espécie de colônia agrária, dependente do vigor e do dinamismo
econômicos das manufaturas setentrionais. Por fim, uma das virtudes da política liberal veio
alimentar o poder das máfias. Com o poder do Norte, veio também a modernidade política, ou
seja, a extensão do direito de voto. Para os poderosos do Norte interessava contar com o apoio
e mesmo a subserviência política do Sul, mesmo que para tanto fosse necessário subornar
governos ou fazer concessões aos chefes locais. Se concessões e subornos pouco
representavam, do ponto de vista financeiro, para o rico Norte, para o Sul representaram uma
diferença ímpar, até há pouco inteiramente desconhecida: a possibilidade dos chefes locais
penetrarem no universo dos interesses político-partidiários. Os chefes mafiosos converteramse em chefes políticos locais.
85
A organização política siciliana, i.e., a Máfia, passou então a fazer parte do sistema
governamental de patronato e a barganhar sempre mais efetivamente porque os
seguidores incultos e longínquos levaram certo tempo para compreender que não
estavam mais votando para a causa da rebelião. (...) O verdadeiro ―reino da Máfia‖
já se estabelecera. Agora, era uma grande força. Seus membros sentavam-se como
deputados em Roma e enfiavam colheres na parte mais espessa do caldo do
Governo: grandes bancos, escândalos nacionais (Hobasbawn, 1970, p. 63).
Não tardou para que os conflitos de interesse surgissem no âmbito mafioso. Tratavamse de dissensões entre as velhas e novas gerações em regiões onde os lucros eram escassos e
não havia - ou ao menos não se vislumbravam - alternativas ao desemprego. De um lado, as
velhas gerações constituídas de gabellotti cuja mentalidade paroquial pouco as diferenciava
dos camponeses. De outro lado, as gerações mais jovens, constituídas dos próprios filhos e
filhas dos gabellotti, melhor preparados do ponto de vista educacional do que seus genitores e
gozando, por conseguinte, de status social mais elevado. O agravamento das tensões
geracionais verificou-se justamente no contexto do estreitamento das oportunidades de
sobrevivência autônoma, o que condicionou muitos a derivarem para o crime. Esse é inclusive
o período de intensa migração para os Estados Unidos. Terceiro, o advento do fascismo foi
fatal para as máfias. Os fascistas não apenas desencadearam campanhas contra os mafiosos
como a suspensão das eleições privou-lhes de persistirem se apropriando do aparelho estatal
como instrumento de liquidação de grupos rivais bem como moeda corrente nas negociações
ilícitas em Roma. Assim, durante o interlúdio entre as duas guerras mundiais, as organizações
mafiosas tenderam ao desaparecimento, quando menos ao retrocesso. Renasceram em 1943,
às vésperas do fim da II Grande Guerra. Se, ao renascer, não reconquistaram sua antiga
influência política e sua posição chave nos conchavos político-partidários, ―modernizaram‖
seus negócios em torno de atividades econômicas ilegais altamente rendosas como o câmbio
negro, o contrabando e possivelmente o tráfico internacional de drogas.
De toda essa longa história, reproduzida a partir do estudo de Hobsbawn, interessa
ressaltar alguns aspectos. O nascimento, expansão e declínio das organizações mafiosas
acompanharam passo a passo as vicissitudes da vida econômica e política italiana. Nascido de
um movimento social revolucionário, de fortes bases e tradições populares, contra os
usurpadores estrangeiros, transitou para uma forma de organização política paralela ao poder
de Estado. Combinando patronato político-social, regulado por rituais de referência e
reafirmação do poder arbitrário do mais forte, justamente aquele que dispõe da capacidade de
mando e obediência irrestritos, com formas modernas de representação política, as
organizações mafiosas traduziram, em determinado momento da história social e política
italianas, uma alternativa de participação no modelo de poder concêntrico instituído pelos
86
potentados do Norte, modelo alimentado pelo liberalismo político em voga àquela época,
último quartel do século passado. Tratou-se de uma cunha nesse modelo ainda que essa
alternativa tenha sido nada democrática porque pouco sensível aos interesses e necessidades
das classes populares. Na verdade, tudo sugere o quanto os processos de acumulação de
riqueza e de acumulação e concentração de poder tangiversaram as possibilidades de
existência das organizações mafiosas, determinando-lhes inclusive sua deriva para o mundo
da delinqüência, seja na própria Itália, seja nos Estados Unidos. Vale notar, contudo, que as
organizações mafiosas jamais se colocaram como uma necessidade intrínseca da própria
economia ou mesmo do desenvolvimento político.
Nessa medida, não se constituíram em peça essencial do poder político ou elemento
indispensável ao funcionamento legal do aparelho de Estado. Disto resulta também que não
lograram expansão para além de suas bases locais, às quais permaneceram via de regra
aprisionadas. De fato, quando os lucros possíveis e o poder disponível estimularam as tensões
entre as velhas e novas gerações de mafiosos, a alternativa foi emigrar e não a descoberta de
outros territórios que pudessem servir de ampliação das redes e de acomodação dos interesses.
Ao que tudo parece indicar, na contemporaneidade o crime organizado reaparece,
agregando novas práticas às tradicionais. O tráfico internacional de drogas, uma de suas
modalidades atuais mais significativas, padece de problema semelhante. O narcotráfico
compreende um conjunto diversificado de atividades e operações, o qual articula, em nível
internacional, a produção (com todo o seu processo artesanal, semiartesanal e industrial), a
circulação, a distribuição e o consumo. Por intercambiar uma mercadoria proibida na maior
parte das sociedades, o narcotráfico mobiliza toda uma ―economia subterrânea‖: distintos
mecanismos de acumulação (que compreendem uma combinação de formas de
assalariamento, semi-assalariamento, pagamento em espécie) geram uma renda da qual parte
substantiva é apropriada na remuneração de atividades de suporte ou subsidiárias como o
abastecimento de armas, a manutenção de milícias locais particulares, o treinamento e
formação de pistoleiros profissionais e sobretudo à manutenção de uma rede de
colaboradores, destinada a facilitar o transporte da droga, pelos mais variados meios, através
das fronteiras entre países. Daí a necessidade de consumir vultosos capitais para garantir
postos privilegiados de circulação, entre os quais campos particulares de pouso. Daí também a
funcionalidade da corrupção em toda essa ―economia subterrânea‖, sediada inclusive em
aeroportos, portos e zonas aduaneiras e alfandegárias (LABROUSSE, 1994).
Além do mais, essa modalidade de ―economia subterrânea‖ é altamente verticalizada e
verticalizadora. Ela tende a colonizar outras modalidades delituosas, submetendo-as a seu
87
domínio. Atividades anteriormente realizadas por soturnos e individualizados delinqüentes ou
por bandos isolados, como roubos, seqüestros, contrabandos acabam articuladas ao
narcotráfico. O caso do contrabando de armas é exemplar. Ele presta-se não somente a
modernizar e nutrir o arsenal bélico sofisticado à disposição dos traficantes, como também a
proporcionar fonte de renda adicional. A propósito, convém relembrar que a circulação
monetária é fundamental nessa economia subterrânea, daí porque a ―lavagem‖ de dinheiro,
através de operações financeiras complexas e sofisticadas, porém dotadas de alguma
segurança, é tão vital para a sobrevivência do narcotráfico. Daí também o papel estratégico
desempenhado pelas instituições bancárias cuja cumplicidade é raramente colocada sob
suspeição (ARLACCHI, 1992; LEWIS, 1992).
Não bastassem essas conexões que o narcotráfico estabelece com o mercado e o
Estado, ele também encadeia e introduz microscópicos desarranjos no tecido social. No
passado, a organização delinqüente tinha claras as diferenças entre o mundo da ordem e da
legalidade e o mundo dos ilegalismos. Havia nítida distinção entre trabalho e delinqüência. O
narcotráfico rompeu com essa tradicional distinção. Muitos dos jovens recrutados em massa
para a organização o são na condição de trabalhadores assalariados, não importando o posto
que venham inicialmente a ocupar. Tal não significa, contudo, a introjeção de uma ética
vocacional do trabalho ou a criação de uma solidariedade ombro a ombro. Ao contrário,
institui-se uma competitividade tal, movida por um individualismo exacerbado e por uma
desconfiança extremada em qualquer um. Radicalizada até as últimas conseqüências, essa
competitividade é a causa da guerra entre quadrilhas. Por isso, esses jovens, desde cedo
socializados para o ingresso na guerra, o são também para lidar com a morte e sua iminência.
Aqui se revela um dos mais agudos paradoxos da contemporaneidade: no ápice do processo
civilizatório, os avanços tecnológicos estão colocando em evidência a fragilidade da vida, os
inúmeros perigos e riscos que a cercam. Sob essa ótica, talvez o crime organizado constitua de
fato o cerne do problema contemporâneo, menos pelos seus efeitos sobre a ordem e a
legalidade e muito mais pelas incertezas que ele institui (ARIETA, 1991).
3.4 Crime Organizado no Mundo Contemporâneo
Falar sobre o crime organizado é se enveredar por caminhos pouco conhecidos, pois a
essência desta atividade está escamoteada em uma complexa rede social alicerçada pelo que
chamamos de capitalismo. Este sistema econômico, não só revolucionou o processo de
sustentabilidade mundial, como também impulsionou as práticas ilícitas de comércio. O ritmo
88
veloz do mercado mundial e a combinação infinita de possibilidades para fornecimento,
armazenamento, transporte, investimentos bancários, transferência eletrônica, provedores de
telefonia celular, endereços eletrônicos, softwares de criptografia, documentos e marketing de
empresas-fantasmas para consumidores em todo o mundo; expandem as possibilidades do que
hoje se constitui como crime organizado.
O modelo antigo das máfias tradicionais, pautados em hierarquias rígidas de poder
centralizado, não consegue sobreviver a um mercado global extremamente rápido, em que as
oportunidades e os riscos mudam sem cessar. Quanto mais os grupos de crime organizado se
parecem com empresas, mais suas hierarquias e rotinas impedem que otimizem suas
atividades. Conscientemente ou não, criminosos do mundo inteiro tomaram como parâmetro
de atuação as máfias americanas e sicilianas, onde o modelo corporativo era estruturado,
disciplinador e hierarquizado.
Segundo Naím (2006, p. 11), os cartéis da Colômbia, as tongs chinesas, as tríades de
Hong Kong, a yakusa japonesa, e finalmente, após 1989, a máfia russa foram, todas abordadas
da mesma forma: primeiramente como organizações criminosas e somente depois como
empresas. O novo ambiente oferece vantagem às novas oportunidades e permite que mudem
constantemente de localização, táticas, meios e mecanismos para ganhar o máximo de
dinheiro possível. Conseqüentemente, o próprio ―crime organizado‖ está se transformando,
tornando-se menos organizado em um sentido tradicional de comando e estruturas de controle
e, mais descentralizado.
A dramática expansão do comércio mundial ao longo das últimas décadas, com
aumento em média acima de 6% de 1990 a 2000 complementa Naím (2006, p. 23), criou
igualmente um amplo espaço para o comércio ilícito, uma vez que permaneceram muitas
regras para a legitimação do comércio que deveriam ser obedecidas, enquanto o apetite de
mercados e consumidores por produtos aos quais os países impunham restrições continuava a
crescer. Logo ficou claro que as facilidades adotadas pelos países para encorajar o sucesso do
comércio legal também beneficiavam as atividades dos comerciantes ilícitos. Segundo Naím
(2006, p. 23), um desses benefícios foi a redução de controles nas fronteiras, tanto em número
quanto em rigor; em alguns lugares, como no chamado grupo Schegen, que reúne países da
União Européia, os controles de fronteira foram virtualmente abolidos, e os que persistiram
tendem a ser absorvidos pelo fluxo abrupto de bens. Naím (2006, p. 23) afirma que mesmo
depois do 11 de setembro e do subseqüente recrudescimento das fronteiras norte-americanas,
os principais postos de controle no limite entre México e os Estados Unidos podem
inspecionar apenas uma pequena parcela de caminhões, e no máximo por alguns minutos,
89
devido ao receio de formar longos congestionamentos. A situação nos portos de carga do
mundo é ainda mais problemática. E em toda parte o aumento do tráfico, os esquemas rápidos
para se livrar dos impostos, a expansão dos portos livres e zonas de processamento de
exportação, a onipresença do transporte aéreo e a impossibilidade de checar os pacotes FedEx
ou DHL, tudo isso oferece aos contrabandistas novos caminhos para a travessia de fronteiras.
Essa pratica é possível graças às tecnologias de comunicação, que permitem tarefas
como gerenciamento de depósitos e rastreamento de cargas à distância, onde o comerciante e
os produtos, jamais precisam estar concomitantemente no mesmo local. Para Naím (2006,
p.24), essa flexibilidade é uma vantagem fundamental que o comércio ilícito tem sobre os
governos, e é um aspecto desafiador desse problema, pois dá aos traficantes um incentivo para
se organizarem de uma forma que maximize a confusão jurisdicional.
Novas tecnologias também desempenharam importante papel em outros setores,
complementa o autor: navios cargueiros mais eficientes, novos métodos de carga e descarga,
melhor gerenciamento portuário, desenvolvimento logístico, avanços em refrigeração,
navegação e rastreamento por satélite, e muito mais. A isso, independente da forma de
comércio, legalizado ou não, os traficantes acrescentaram doses próprias de criatividade, ou
seja, a agressiva e inventiva adoção de novas tecnologias ajudou os traficantes a diminuir os
riscos, aumentar a produtividade e simplificar seus negócios. Segundo Naím (2006, p. 25), o
cartel de Cali já empregava sofisticadas técnicas de criptografia no início dos anos 90.
A origem deste cenário, no entanto, ocorre com o acelerado processo de
transformações econômicas, políticas e culturais da sociedade do pós-guerra; de tal forma que
se traduziram na fragmentação social e na importância crescente às atividades ligadas ao lazer
e consumo como meios de definir novas identidades sociais. Tais mudanças indicaram que as
restrições morais convencionais, enfraqueceram e, em termos de controle social, as funções
policiais partiram pelo viés da vigilância e aplicação da lei.
Em referência a esse contexto, existem muitos países que sequer dispõe de leis ou
punições para alguns dos mais recorrentes tipos de crime. Naím afirma que, (2006, p. 174),
―as leis são sempre uma obra aberta, desafiadas não apenas pelo crime organizado, mas
também por debates políticos, manipulações de especialistas em jogar com o sistema e,
freqüentemente, pela rapidez das inovações e circunstâncias‖. De toda forma, criminosos
tendem a operar sem levar em conta considerações morais. Para eles, leis constantemente
mutáveis podem significar uma oportunidade, o lucro.
Diante disso, com o final da Guerra Fria, os países anteriormente mantidos fora do
sistema de comércio mundial começaram a reingressar. A queda do bloco oriental e de seus
90
aliados estrangeiros lançou no mercado uma série completamente nova de produtos que
interessavam aos comerciantes ilícitos, alguns dos quais a preços muito baixos. Segundo
Naím, (2006, p. 30), eles incluíram armas e equipamentos militares dos exércitos
excessivamente inchados do Pacto de Varsóvia e, de fábricas estatais construídas para
abastecê-los; materiais e tecnologias nucleares, disponíveis com o rápido e desordenado fim
da União Soviética; aeronaves e veículos civis e militares; amplos recursos naturais, de níquel
e cobre a urânio e diamantes; mas também mão-de-obra imigrante; bebês para adoção;
mulheres para prostituição; e até mesmo corpos humanos, vivos ou mortos, para venda de
órgãos.
Não foi à toa as ponderações de Ziegler (2003, p. 91), ―nenhuma formação criminosa
no mundo assemelha-se as bandos mafiosos surgidos dos escombros da antiga União
Soviética‖. A ocorrência desse fenômeno surgiu principalmente pela prática institucionalizada
do crime como meio de sobrevivência. Sob o comunismo, o contrabando, por exemplo, não
era uma transação ilegal internacional operada por alguns poucos criminosos, mas uma
estratégia de sobrevivência generalizada. A prosperidade, em termos relativos, dependia de se
encontrar um meio nunca legal de fornecer aos administradores das fábricas as matériasprimas de que necessitavam para atingir as cotas de produção, ou para ―desviar‖ (roubar)
produtos do governo e vendê-los para o mercado negro. Isso também significava obter acesso
a estoques de jeans estrangeiros que poderiam ser discretamente vendidos aos jovens e à
vodka a que os mais velhos se agarravam como uma tábua de salvação, reafirma Naím, (2006,
p. 32).
Para ele (NAÍM, 2006, p. 34),
Por mais de seis décadas, esses eram os incentivos que o governo proporcionava e,
portanto, espíritos empreendedores não tinham outra saída senão encontrar meios de
burlar a lei. Inevitavelmente, os esquemas requeriam a ajuda e a colaboração de
alguém no governo. Quando parcerias diferentes ou a corrupção não funcionavam, o
uso de violência, ameaça ou chantagem nunca estava além dos meios empregados
para obter cooperação. Décadas desse ambiente produziram um amplo estoque de
organizações experientes e hábeis, quadrilhas cruéis, trabalhadores talentosos e
capangas sem escrúpulos.
Nesse contexto, ocorreu a proliferação ao redor do mundo o que Naím (2006, p.29)
chama de ―Estados fracos e falidos‖, prontos para serem colonizados por traficantes dos mais
diferentes gêneros. Durante a Guerra Fria, esses Estados residiam na ―esfera de influência‖ de
uma das superpotências, em troca de proteção militar e auxílio econômico. Naím, (2006, p.30)
diz que quando essa proteção entrou em colapso, o mesmo aconteceu com a rede de segurança
91
que os prevenia. Isso aconteceu em Estados com governos frágeis ou inaptos de perderem o
controle sobre seus territórios ou recursos. Vislumbrando esse cenário, desde os anos 60,
cientistas políticos usam o termo ―Estados fortes‖ e ―Estados fracos‖ para descreverem as
diferenças na capacidade do governo desempenhar funções básicas. Nos anos 90, porém,
cunhou-se um novo termo – ―Estado falido‖, ou seja, um governo titular e um esqueleto de
algumas instituições, com muito pouco controle ou efeito legítimo sobre a economia e a
realidade do país. Os Estados fracos, em geral, espalharam-se desde 1990, afirma Naím,
(2006, p. 31).
As tendências do enraizamento do crime organizado são mais explícitas em países
falidos; no entanto, qualquer Estado fraco é inerentemente vulnerável aos seus tentáculos.
Geralmente, países com fronteiras difíceis de ser patrulhadas, são alvo dessas organizações.
Nesse sentido, por exemplo, Naím (2006, p. 32) diz que, a Nigéria tornou-se um grande
centro comercial de heroína vinda do Oriente Médio a caminho da Europa e da América do
Norte. O Haiti e outras nações caribenhas como alternativa, tornaram-se portos de passagem
para os carregamentos de drogas para os Estados Unidos, quando outras rotas ficaram muito
visadas. Podemos observar esse contexto nos escritos de Glenny (2008, p. 150) ao referir-se
sobre o relatório do DEA (Drug Enforcement administration – Agência Anti Drogas dos
Estados Unidos) sobre Israel.
Em 2003, o departamento de Estado divulgou um relatório alegando que Israel era o
centro do tráfico global de ecstasy, tendo se ramificado da Europa para os Estados
Unidos. ―As organizações israelenses de tráfico de drogas são as principais fontes de
distribuição de narcóticos a grupos dos EUA, utilizando serviços de remessa
expressa, vôos de carreira e, recentemente, utilizando também vôos de carga‖,
afirma o relatório. Sendo um país tão dependente de ajuda financeira, política e
militar americana, o relatório foi tremendamente embaraçoso para Israel.
No texto acima, além do enraizamento de práticas ilícitas em países considerados
―fora de suspeita‖, identificamos um dos maiores aliados do crime organizado globalizado, as
fronteiras. ―As fronteiras nacionais são uma dádiva para os criminosos e um obstáculo para as
agências da lei‖, afirma Naím (2006, p. 14). As fronteiras criam oportunidades de lucro para
as redes de contrabando e enfraquecem os Estados ao limitar sua capacidade de reprimir as
investidas das redes globais que agridem suas economias, corrompem seus políticos e minam
suas instituições. Segundo Naím (2006, p. 18) ―nunca os contrabandistas foram tão
internacionais, ricos e politicamente influentes como nos anos 90‖. Durante esta década,
Dubai nos Emirados Árabes, transformou-se na Meca desses criminosos, além de atrair
celebridades e milionários do mundo todo encantados com o glamour e sofisticação de suas
92
novas construções. O crime global não só se expandiu como, graças à sua capacidade de
acumular lucros colossais, tornou-se também uma poderosa força política.
O sucesso das redes criminosas baseia-se na mobilidade internacional, como em suas
habilidades de se beneficiar das oportunidades advindas da separação dos mercados e que
desaguaram dentro das fronteiras dos Estados soberanos. Para os criminosos, as fronteiras
criam oportunidades de negócios e escudos convenientes; no entanto, para os funcionários do
governo que os caçam, as fronteiras são freqüentemente obstáculos intransponíveis. Os
privilégios da soberania nacional transformam-se em fardos e limitações para os governos.
Devido a essa assimetria, no confronto global entre governos e criminosos, os governos
sistematicamente saem perdendo.
Nesse sentido, os crimes globais estão transformando o sistema internacional, afirma
Naím (2006, p. 11), ―modificando suas regras, introduzindo novos atores e reconfigurando o
poder na política e na economia mundiais‖. Não obstante a essa realidade, o desenvolvimento
de tecnologia contribuiu para a expansão desse mercado, não apenas geograficamente ao
minimizar os custos de transporte, mas também ao tornar possível o comércio de uma vasta
gama de produtos que não existiam anteriormente, como softwares piratas ou maconha
transgênica (NAÍM, 2006, p. 11). Segundo o autor, as novas tecnologias também tornaram
possível comercializar internacionalmente produtos que, no passado, não podiam ser
transportados ou listados em ―inventários‖ – rins humanos, por exemplo. Os mercados,
obviamente, também se ampliaram quando os governos desregulamentaram as economias
anteriormente fechadas ou fortemente controladas e permitiram aos estrangeiros visitar,
comercializar e investir mais livremente. A maciça transferência de bens e equipamentos,
antes sob o controle exclusivo dos exércitos nacionais, para as mãos da iniciativa privada fez
surgir uma série de produtos no mercado, de lançadores de foguetes e mísseis Scud a projetos
e equipamentos nucleares. Além disso, os governos também favoreceram o comércio ilícito
ao criminalizar novas atividades. A troca de arquivos na Internet, por exemplo, é uma
atividade ilegal que recentemente adicionou milhões às fileiras de comerciantes ilícitos. A
exemplo disso, Glenny (2008, p. 46) diz que
Ainda mais chocante, porém, era o fato de que os mesmos homens que alimentavam
a guerra entre seus povos estavam, em particular, colaborando entre si, como bons
amigos e parceiros de negócios. Os homens do dinheiro e os gângsteres croatas,
bósnios, albaneses, macedônios e sérvios eram como unha e carne. Compravam,
vendiam e trocavam todo o tipo de mercadoria, sabendo que os laços de confiança
entre eles eram muito mais forte do que os vínculos transitórios do nacionalismo
histérico.
93
É notório que a ideologia do consumo supere qualquer outra, principalmente por meio
do apelo no ―ter‖. O que está por trás dos grandes conflitos existentes hoje no mundo, são
redes, cada vez mais complexas, de criminosos comerciantes, que lucram através de um
mercado ―negro‖. O lucro, no crime organizado afirma o autor (NAÍM, 2006, p. 11), ―é uma
motivação tão poderosa quanto Deus‖. Prova disso são as redes de comerciantes de bens
ilícitos sem pátria, que estão mudando o mundo, tanto quanto os terroristas. O mundo, tal qual
muitos Estados, são obcecado pelo terrorismo e, ainda não se deram conta da dominação do
crime organizado. Isso ocorre por motivo simples, o terrorismo possui sentido ideológico e
agride a cidadania de uma população, já o crime organizado trabalha em ―favor‖ da
população, ao comercializar aquilo que é difícil de encontrar. Além disso, muitos países,
inclusive o Brasil, acreditam na ilusão de que o comércio ilícito é um fenômeno
―subterrâneo‖, de pouca expressão.
Um ponto latente desta realidade é a escravidão global de seres humanos através das
fronteiras, ―que afeta ao menos quatro milhões de pessoas todos os anos, a maioria composta
de mulheres e crianças, e movimenta cerca de sete a 10 bilhões de dólares‖, afirma Naím
(2006, p. 19). Neste mercado as mulheres têm papel fundamental. Segundo Glenny (2008,
p.37),
Mulheres são mercadoria atraentes para quem quer entrar no mundo do crime.
Podem cruzar fronteiras legalmente e não atraem a atenção de cães farejadores. O
investimento inicial representa apenas uma fração da soma exigida para entrar no
ramo do roubo de carros, os custos operacionais são mínimos, e, como prestadora de
serviço, a mercadoria (uma mulher escravizada) gera lucros repentinamente. Uma
única mulher pode render entre 5 mil e 10 mil dólares por mês para seu traficante.
Esses cálculos não levam em conta a terrível realidade das violações múltiplas e da
exploração inominável. Mas nem o fornecedor (o gângster) nem o consumidor
(prósperos europeus ocidentais) compreendem essa relação em termos que não os
econômicos. O fornecedor vive num ambiente quase desprovido de policiamento ou
regulação, se ele não vender aquela mulher, outro sujeito o fará.
Foram necessários 400 anos para que o mercado transatlântico importasse 12 milhões
de escravos africanos para o Novo Mundo, reafirma Naím (2006, p. 85). Se a cifra já era
expressiva, estima-se hoje que 30 milhões de mulheres e crianças foram vítimas do tráfico no
Sudeste Asiático – nos últimos 10 anos. O tráfico humano ainda não é o comércio ilícito mais
rentável – essa honra cabe às drogas, mas é muito provavelmente o que mais rapidamente
cresceu. O tráfico através de fronteiras, que é apenas uma parte de todo esse quadro,
transporta aproximadamente de 700 mil a dois milhões de pessoas por ano.
Para Naím (2006, p. 85) o ritmo impetuoso desse crescimento também não tem
precedentes. Segundo as Nações Unidas, quando o tráfico e o contrabando de seres humanos
94
aparecem combinados, delineia-se um quadro ainda mais amplo, no qual o ―comércio de
pessoas‖ afeta ao menos quatro milhões de indivíduos todos os anos, movimentando de até a
10 bilhões de dólares. Provavelmente as cifras são maiores, uma vez que o contrabando
humano somente para fora da China foi estimado entre um e três milhões de dólares por ano,
e o FBI reconhece que esse tipo de comércio, no México, dá às redes de seis a nove bilhões de
dólares por ano. Segundo o autor os termos ―contrabando humano‖ e ―tráfico humano‖
designam em princípio, duas atividades diferentes. No contrabando humano, o imigrante paga
ao contrabandista pela travessia. No caso do tráfico, o traficante decide, coage o imigrante e o
vende como mão-de-obra. Mas, na realidade, a distinção não é tão clara. Muitos imigrantes
voluntariamente contrabandeados contraem dívidas exorbitantes e arbitrárias que os levam a
aceitar trabalhos aviltantes e condições de trabalho indignos, convenientemente ―arranjados‖
pelos contrabandistas. A exemplo disso na China, Glenny (2008, p. 381) diz que,
São os cabeças-de-serpente, ou traficantes de pessoas, os responsáveis por isso.
Esses homens e mulheres bombeiam gente incessantemente para o interior dos
barcos, aviões e trens, abastecendo o que hoje é a maior rede de contrabando de
trabalho migrante do mundo. Os cabeças-de-serpente contam com o apoio tácito das
autoridades [...]. As autoridades locais apóiam descaradamente a emigração, e
alguns se consideram parte de uma ―nova zona chinesa ultramar‖. Chegam mesmo a
organizar sala de aula para instruir os candidatos a migrantes em ―conhecimento
gerais sobre países estrangeiros (questões legais, alfândega, condições locais),
costura, cozinha e comércio‖, como observou Frank Pieke.
Nenhum país tem apenas um mercado de trabalho, mas na realidade dois, um é legal e
tolerado; outro, clandestino e desregulamentado, algum tipo de trabalho, como confecção de
roupas, trabalho doméstico e sexo, continuarão a produzir lucros fabulosos para
contrabandistas e traficantes. Os economistas e sociólogos concluíram que o que move o
imigrante não é a carência ou a pobreza absoluta, mas a carência relativa – o sentimento de
que se viveria melhor em outro lugar. Tragicamente, o tráfico internacional de pessoas se
confunde com o tráfico internacional de órgãos humanos. A combinação de imigrantes
miseráveis, ilegais, assustados, famintos e sem qualquer proteção legal é um terreno fértil para
as redes internacionais que precisam atender a uma demanda quase infinita de órgãos.
O comércio de órgãos é resultado das inovações científicas e da ampla disseminação
de novos equipamentos, drogas e procedimentos cirúrgicos que objetivam prolongar a vida
humana. Segundo Naím (2006, p. 151), os centros de transplantes ilícitos de doadores vivos
estão localizados em países que combinam excelente infra-estrutura hospitalar com
fiscalização frouxa e corruptível. Alguns como, Índia, China e Brasil, são grandes
fornecedores de órgãos. Os rins são a força motriz desse tipo de tráfico.
95
De qualquer forma, o comércio de seres humanos e de órgãos representa apenas mais
uma das opções de mercadorias oferecidas pelas organizações criminosas. Os mais populares
produtos comercializados pelo crime organizado são conhecidos como falsificação, réplicas,
adulterações, cópias ou simplesmente imitações, correspondem aos produtos falsificados que
estão em toda parte. Armas e perfumes, carros, motocicletas e tênis de corrida, medicamentos
e máquinas industriais; relógios, raquetes de tênis, tacos de golfe, videogames, softwares,
músicas e filmes; nada está a salvo. Os habituais compradores de produtos falsificados
geralmente correm poucos riscos. O fluxo de cópias piratas no mercado atende a forças
poderosas: o intenso apetite dos consumidores por produtos de marca e uma irresistível
tentação pela barganha. Naím (2006, p. 106) diz que na China, descobriu-se que os governos
de província e o Exército de Libertação Popular (ELP) – as forças armadas chinesas, investem
na produção de inúmeras imitações, para a qual, se sabe, no entanto, cópias ilegais de
produtos de marca podem ser feitas nas mais modernas fábricas e empregando a melhor mãode-obra disponível.
Desde o início dos anos 90, de acordo com a Interpol (apud NAÍM, 2006, p. 107),
O comércio de produtos falsificados cresceu oito vezes mais que o comércio legal.
Vinte anos atrás, as perdas comerciais em todo o mundo, devido a pirataria, eram
estimadas em cinco bilhões de dólares, hoje estão em torno de 500 bilhões. Isso faz
com que o custo das falsificações corresponda de cinco a 10% do valor de todo o
comércio mundial.
Uma razão para essa expansão é o crescente alcance dos produtos de marca
falsificados no mercado. Em razão disso, afirma o autor, a Organização Mundial da Saúde
acredita que 8% do suprimento mundial de remédios são falsificados, gerando uma receita em
torno de 32 bilhões de dólares. De acordo com estudo, praticamente metade das imitações
disponíveis no mercado não dispões do princípio ativo ou contém um errado, incluindo os
10% que apresentavam contaminação. O resto pode não ser legal, mas pelo menos é remédio,
talvez com datas de validade vencidas e com rótulos adulterados; talvez corretamente
manipulados, mas distribuídos com embalagens e rótulos falsos ou enganadores. Qualquer
tipo de produto popular é vulnerável a falsificação. Para Naím (2006, p. 107), existe uma
ampla evidência de que as células terroristas descentralizadas, nos moldes da AL-Qaeda,
usaram o comércio de falsificados para financiar suas operações. Os perpetradores do
primeiro atentado a bomba ao World Trade Center em 1993 mantinham-se em parte com a
venda de camisetas falsificadas em loja na Broadway.
96
Outro exemplo, completa Naím (2006, p. 53), aconteceu em uma batida policial, no
ano de 2002 na cidade de São Paulo, onde foi fechada uma oficina tecnicamente avançada,
que produzia cerca de 50 submetralhadoras falsificadas por mês. Para o autor, em curto prazo,
a volumosa infiltração do excedente de armas baratas de segunda mão produzidas por
organizações criminosas, estará exaurindo os mecanismos de controle dos Estados em uma
cadeia de abastecimento global, flexível e empreendedora.
Nota-se, diante disso, que um tipo de sociedade armada avança para ocupar o espaço
vazio deixado pelo controle estatal, a fim de fazer frente aos grupos insurgentes, empresas
privadas, quadrilhas e até agentes independentes; todos com acesso a armas e com total
liberdade de ação. A sociedade civil, portanto armada, não se move por ideais ou pela
religião, mas pelo medo e pela ilusão de proteção suscitados pela posse de uma arma.
Segundo Naím (2006, p. 61), ―esses instintos, medos e ilusões criam uma demanda crescente
por armas que os corretores do poder, do lucro e da cobiça ficam felizes em abastecer e
satisfazer‖.
Outro aspecto do crime organizado foi o investimento maciço no mercado de ações,
uma marca da globalização. Na década de 1990, os países precisavam do dinheiro, da
tecnologia e do marketing de exportação cada vez mais ousado das corporações
multinacionais e, assim, estimularam o investimento estrangeiro, ao invés de inibi-lo. Sendo
assim, o pensamento econômico predominante confirmava que um país estaria melhor com
mais investimento estrangeiro do que com menos, especialmente se os investidores pudessem
ser persuadidos a ficar por um longo período. Para Naím (2006, p. 26), abrir o mercado de
ações local ao dinheiro estrangeiro fez com que se expandisse, e registrar companhias locais
nas bolsas de valores estrangeiras, como em Nova York ou Londres, tornou-se um símbolo de
sucesso.
Uma vez que as transações com moeda estrangeira foram oficialmente autorizadas,
redes bancárias globais computadorizadas permitiram que estas ocorressem à
velocidade da luz, e de qualquer lugar para qualquer lugar. O cartão, por exemplo, é
uma das ferramentas mais essenciais e naturais da vida cotidiana, inclusive para os
traficantes. A ascensão do dinheiro eletrônico e virtual – como cartões inteligentes
que armazenam valores em um chip – oferece tanto conveniência quanto anonimato.
Ainda sim, outra linha da integração financeira mundial útil aos comerciantes ilícitos
é a expansão da indústria de transferência eletrônica (NAÍM, 2006, p. 26-27).
Diante disso, a internet tornou-se de grande valor para as transações do crime
organizado. Aqueles que se envolvem em transações ilícitas comunicam-se uns com os
outros, fazendo uso da privacidade e do ao anonimato de contas de e-mail, alteradas com
97
freqüência e acessadas de cybercafés e outros lugares impenetráveis. Segundo Naím (2006, p.
227), eles monitoram cargas por meio de serviços de rastreamento que a FedEx e outras
empresas oferecem. Algumas organizações criminosas mais ousadas põem seus produtos à
venda em vitrines on-line. O moderno leilão de escravas é eletrônico, nos quais cafetões
locais podem examinar e adquirir, via email, mulheres e garotas de atacadistas de outros
países, e consumidores varejistas podem requisitar a prostituta de sua escolha. A internet
recruta mercenários, anuncia empresas de transportes inescrupulosas, hospeda sites com
aparência profissional que funcionam como fachadas eletrônicas para negócios escusos. A
utilização da internet como ferramenta de crimes, demonstra uma ―criminalidade da
inteligência‖, oposta à ―criminalidade do muque‖, ou seja, da violência complementa Monet
(2006, p. 190). Para o autor a criminalidade informática se desenvolveu eu um ritmo
galopante, estimado no custo de 3 bilhões de dólares por ano nos Estados Unidos. Segundo o
autor os processos empregados pelos fraudadores são diversos, mais em dois terços dos casos,
repousam em manipulação de dados: criação de clientes fictícios, edição de notas fiscais
falsas, ordens de pagamento sobre contas de clientes, transferência de fundos fraudulentos,
etc. Monet (2006, p. 193) conta que,
Um caso, célebre nos Estados Unidos, é o do funcionário de banco que conseguiu
desviar 11 milhões de dólares, simplesmente escamoteando das operações bancárias
de que cuidava todos os restos das frações inferiores a um cent, pois os cálculos
bancários eram sempre arredondados por aproximação. Ele foi descoberto graças à
meticulosidade de um cliente que se surpreendeu com o fato de sua conta bancária
ter variado de 0,71 dólares para 0,70dólares!
Independente de seus efeitos, os problemas colocados pela criminalidade informática
continuam a ser pouco conhecidos pelo grande público, pois é uma criminalidade de pouca
visibilidade política e midiática. Dá-se o contrário na economia da droga
Segundo Monet (2006, p.193), o uso de entorpecentes, na ocorrência das drogas leves,
apareceu, nos anos 70, como a expressão de uma filosofia ―liberada‖ ou do desenvolvimento
de uma contracultura que procurava resistir à implacável racionalização das atividades
humanas sob a pressão das lógicas econômicas. O uso da heroína, depois da
cocaína,substituiu o da maconha e do LSD. O autor traça um comparativo de
desenvolvimento ao trabalho de formiga dos ―hippies mochileiros‖, que levavam de
Katmandu algumas gramas de ervas parcimoniosamente adquiridos, com a expedição de
contêineres da América do Sul ou da Ásia para a Europa nos dias de hoje.
98
Dentro deste processo, Naím afirma que (2006, p. 70) os Estados Unidos são os
maiores consumidores de drogas do mundo, além de representar a maior força motriz de
reação global a serviço de sua estratégia de repressão às drogas, geralmente com o emprego
de forças políticas e militares, fora de suas fronteiras. Em outro extremo, Colômbia e
Afeganistão são os maiores produtores de drogas desde os anos 90. A tradição desses dois
países constitui um marco no tráfico de drogas mundial, principalmente na Colômbia, onde os
cartéis da droga ganharam notoriedade internacional.
De qualquer forma, há muito tempo o comércio de drogas era personificado por
figuras lendárias como Pablo Escobar Gaviria, cujas histórias renovaram a imagem popular do
chefão das drogas e em torno das quais se formaram verdadeiros cultos de adoração. Embora
fosse apenas mais um dos empreendedores que transformaram a Colômbia, um coadjuvante
no final da década, Escobar, lidere do Cartel de Medelín, logo se destacou. Para Naím (2006,
p. 73) a sagacidade de Escobar não tinha limites; ―certa vez ocultou uma pista de pouso
embaixo de casas móveis. Seu gosto pela violência amedrontava até mesmo traficantes
durões‖. Segundo o autor, o traficante chegou a organizar uma equipe de assassinos e
desenvolveu novas técnicas de assalto, como posicionar um assassino na garupa de uma
motocicleta, método bastante apropriado ao trânsito caótico de Bogotá. A lenda de Escobar
ofereceu uma face à emergente guerra contra as drogas, chamando a atenção da opinião
pública para um inimigo visível e bem determinado. No ano de 1993, com a morte de
Escobar, o equilíbrio do poder modificou-se, pois os movimentos militares assumiram o
comando. Nesta década, o comércio de drogas sofreu grandes transformações.
Quando a Colômbia descentralizou o poder afirma Naím (2006, p. 74), ―dando mais
autonomia aos governos locais no início da década de 1990, foi uma bênção para as redes de
tráfico, que podiam então simplesmente indicar seus próprios prefeitos, governadores e
juízes‖. No Afeganistão, outro exemplo, com a expansão do cultivo da papoula os militares
locais foram os grandes beneficiados, e, no México as redes de tráfico se apoderaram de
algumas das cidades e regiões mais violentas. O ―Triângulo do Ouro‖, que reúne Tailândia,
Myanmar e Laos, e a região entre Paquistão e o Afeganistão, são exemplos notórios de
regiões fronteiriças onde o comércio ilícito prospera. Rebeldes se transformaram em
comerciantes: por exemplo, os guerrilheiros das Farcs (Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia) e das Aucs (Autodefesa Unidas da Colômbia) não mais simplesmente vendem
proteção para o comércio de drogas, como se transformaram, eles mesmos, em corretores de
cocaína, negociando com fazendeiros, laboratórios, transportadoras e atacadistas no México e
nos Estados Unidos.
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Hoje, o cartel da droga colombiano conclui Naím (2006, p. 75),
Possui centros de distribuição de cocaína em Londres e Amsterdã. Os circuitos de
encaminhamento são embaralhados, mergulhados nos entrançados das atividades de
multinacionais que têm casa própria e cuja sede social se encontra, em geral, em
alguns minúsculos ―paraíso fiscal‖ do Caribe, da América Central ou como o Estado
de Nauru, cujos 7 mil habitantes têm um nível de vida mais elevado que o dos
americanos do Pacífico.
A exemplo disso, o poder econômico dos traficantes de droga está em condições de
subverter totalmente um Estado: o caso extremo do Panamá o provou: com a cumplicidade
benévola e interessada de seu chefe de Estado, o general Noriega, serviu de contraforte a uma
boa parte dos ganhos angariados pelos ―barões da droga‖. Do mesmo modo, vários ministros
do Suriname ou das ilhas TURKs e Caicos foram condenados por tribunais americanos por
seu comprometimento com os negócios da droga.
É de se destacar, que muito do sucesso do tráfico de drogas seja efeito das diversas
redes étnicas estabelecidas pela busca de eficiência e fidelidade neste tipo de comércio ilegal.
Contrastando com o modelo mafioso, no qual todas as transações se dão entre os membros de
uma ―família‖ criminosa, o comércio das drogas faz emergir especialistas que tiveram
vantagem dos lugares, da língua, do conhecimento local ou da habilidade para desaparecer na
multidão. Algumas transações de drogas se baseiam na confiança e no reconhecimento mútuo,
associados a uma origem étnica comum; outras são impostas pela ameaça de violência. Mas,
em um mundo que as fontes de abastecimento e os destinos dos produtos se multiplicam,
muitas transações são simplesmente isso, transações.
Independente das transações realizadas, como em qualquer outro negócio, as pressões
da concorrência levam os maiores negociantes de drogas, que dominam o negócio, a investir
em outros produtos secundários e novas linhas de ação. Somam-se a isso novos tipos de
drogas, principalmente as sintéticas, o tráfico de animais, de arte, de lixo, de pedras preciosas
entre outros, ou seja, tudo que é lucrativo.
Portanto, enquanto o número de negociantes aumentou, suas atividades se
descentralizaram, e eles se tornaram mais sagazes e financeiramente mais experientes. A
mudança é oportuna, pois abre as portas para os benefícios oferecidos pela globalização, e
necessária para que os antigos traficantes se mantenham vivos em face dos desafios dos
órgãos de repressão e dos novos concorrentes. É perceptível que ao longo desse processo, o
poder e o enorme potencial de lucros, deslocou-se do meio da cadeia de distribuição, para os
pontos onde se encontravam as grandes oportunidades de transações ao longo das fronteiras,
100
por meio da diversificação, parcerias e sinergias estratégicas. Com base neste cenário,
podemos observar e comparar em que estágio o crime organizado no Brasil se encontra.
3.5 Crime Organizado no Brasil: O mito PCC – Primeiro Comando da Capital
Durante o processo histórico de formação e desenvolvimento do Brasil, alguns
elementos como a violência privada, desigualdade social (econômica e jurídica), constituem
uma das marcas mais importantes dessa sociedade e, que persistem, até hoje. A impunidade,
por exemplo, tem uma longa história no país. Para Zaluar (2007, p. 37), desde a época do
Império, no século XIX, os senhores de engenho e grandes proprietários rurais, chamados de
―Coronéis‖, utilizavam ―jagunços‖ (homens armados sob seu comando) para impor seu poder.
Segundo a autora, os policiais também foram formados para satisfazer os proprietários de
terra e a eles submeteram-se, reprimindo somente os pobres, os negros e os indígenas. A partir
desse contexto, Silva (2003, p. 25) alega que é possível identificar como antecedentes da
criminalidade organizada, o movimento chamado cangaço, que atuou no sertão nordestino
entre o final do século XIX e começo do século XX, tendo como origem as condutas dos
jagunços e capangas dos grandes fazendeiros, bem como a atuação do coronelismo, resultante
da própria colonização da região pelos portugueses. Personificados na lendária figura de
Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião (1897-1938), os cangaceiros tinham organização
hierárquica e com o tempo passaram a atuar em várias frentes ao mesmo tempo, dedicando-se
a saquear vilas, fazendas e pequenas cidades, extorquir dinheiro mediante ameaça de ataque e
pilhagem, ou seqüestrar pessoas importantes e influentes para depois exigir resgate. Para
tanto, relacionavam-se com fazendeiros e chefes políticos influentes e contavam com a
colaboração de policiais corruptos, que lhes forneciam armas e munições.
Em conseqüência a esse fenômeno como o do cangaço no Nordeste brasileiro e
bandos de homens armados em outras regiões do país se explicam pala insatisfação
moral com o funcionamento injusto das instituições brasileiras de então e os códigos
de honra das sociedades segmentadas em grupos de parentesco. Esses bandos de
homens armados acompanharam, de modo destacado e independente, as lutas de
família resultantes da briga pelo poder local, ou seja, pelo controle das terras, das
riquezas e das instituições (ZALUAR, 2007, p. 37).
Neste ínterim, após a deteriorização do poder pessoal do coronel, observamos novas
modalidades de crimes e de criminosos. A invenção do denominado ―jogo do bicho‖ (sorteio
de prêmios a apostadores, mediante recolhimento de apostas) foi uma delas. Iniciada no início
do século XX é identificada como a primeira infração penal organizada no Brasil, como
101
afirma Silva (2003, p. 25). A origem dessa contravenção penal é atribuída ao Barão Drumond,
que teria criado o inocente jogo de azar para arrecadar dinheiro com a finalidade de salvar
animais do Jardim Zoológico do Estado do Rio de Janeiro. Segundo Mingardi (1998, p. 95), a
idéia foi posteriormente popularizada e patrocinada por grupos organizados, que passaram a
monopolizar o jogo, mediante a corrupção de policiais e políticos. Na década de 80, os
praticantes dessa contravenção movimentaram cerca de 500.000 por dia com apostas, sendo
4% a 10% desse montante destinado aos banqueiros, complementa Silva (2003, p. 25).
Diante disso, para entender como a criminalidade organizada emergiu a cena pública
cotidiana, é necessário analisar os anos de 1960 e 1970. Desde essas décadas, a sociedade
brasileira vem experimentando o progressivo crescimento do crime urbano violento, além de
outras manifestações de violência nas relações sociais e interpessoais. Nos anos 70, o
processo de migração do campo em direção às cidades, produziu o que chamamos de
―inchaço metropolitano‖, pois segundo Charão, Indriúnas e Castro (2006), nesta época, 56%
da população brasileira vivia em regiões urbanas. Dez anos depois, esse índice passou para
67,6% e, em 1996, já era de quase 80%. É importante destacar que nos anos 80, a situação
havia mudado para esses migrantes, principalmente pelo enfraquecimento econômico,
resultante de poucas oportunidades de trabalho e moradia.
A única alternativa para muitas dessas pessoas, era ingressar na economia ilegal. As
periferias, bem como as favelas, cresceram em ritmo exponencial com a chegada dos
migrantes à cidade. A falta de estrutura para comportar tamanha demanda, além da omissão
estatal, transformaram esses lugares propícios para atividades criminosas. Até então, ―o crime
ainda mantinha um pouco daquela aura da malandragem, de saber se virar pela cidade. O que
mudaria tudo, e em pouco tempo, era o surgimento de novas oportunidades de negócios
ilegais e o volume de riqueza que passariam a movimentar‖, complementam Charão,
Indriúnas e Castro (2006).
Até os anos 80, as estruturas criminosas limitavam-se ainda a quadrilhas de ação
localizada. E ao jogo do bicho. Até ser proibido na década de 1890, era um jogo
aristocrático, com os resultados dos sorteios publicados nos jornais. Desde então,
mantém a popularidade entre as classes mais baixas graças, em parte, à facilidade na
aposta, uma vez que se pode jogar qualquer quantia. Além disso, é até hoje
considerado contravenção e não crime, o que ajuda os bicheiros a formar quadrilhas
poderosas. Não à toa, muitos especialistas consideram que ainda hoje eles são o
grupo mais representativo do crime organizado no Brasil (CHARÃO, INDRIÚNAS
e CASTRO, 2006).
De qualquer forma, foi durante o regime militar que se propagaram muitas das contravenções
criminais existentes nos dias de hoje. Segundo Zaluar (2007, p. 39), por ter empregado a
102
tortura, as prisões ilegais e a censura, o regime militar abriu caminho para a disseminação do
crime organizado em vários setores. Alguns oficiais, que haviam aderido a essas práticas
subterrâneas, tornaram-se membros de grupos de extermínio ou de extorsão, ou ainda se
associaram aos ―bicheiros‖, assim como aos traficantes de drogas (GASPARI, 2002). Foi
durante o regime militar, afirma Zaluar, que os bicheiros passaram a participar e controlar as
escolas de samba e seu desfile, transformando-as em empresas lucrativas.
Os militares que se envolveram com o crime organizado do jogo proibido e do
tráfico foram protegidos pela ―Lei de Segurança Nacional‖, que só foi suprimido em
1988, assim como pela ―Lei de Anistia‖, de 1979. Como a lei proibiu processos de
acusação, esses personagens que espalharam as práticas do crime organizado
permaneceram impunes (ZALUAR, 2007, p. 40).
Tal impunidade só foi descoberta com a abertura do regime, onde teve início um
crescimento surpreendente dos crimes violentos, sobretudo de seqüestros, roubos e
homicídios que utilizam armas de fogo. Para Zaluar (2007, p. 43), tais crimes cresceram
muito rapidamente nas capitais e regiões metropolitanas, além de algumas cidades do interior
de certos Estados brasileiros, tais como Pernambuco, Espírito Santo, São Paulo, Rio de
Janeiro e Paraná. A partir de 1988, afirmam Adorno e Salla (2007, p. 12) até recentemente, os
crimes de roubo, tráfico de drogas e extorsão mediante seqüestro ao lado dos homicídios
foram aqueles que acusaram as maiores taxas de crescimento.
Segundo Adorno e Salla (2007, p. 13),
Não havia, até fins da década de 1990, estatísticas oficias de criminalidade para o
país em seu conjunto, lacuna que começou a ser suprida senão recentemente. Os
dados disponíveis, para os anos de 1990 a 2001, divulgados pela Secretaria Nacional
de Segurança Pública (Senasp), órgão do Ministério da Justiça, indicam que,
relativamente ao país como um todo, as taxas de crimes violentos por cem mil
habitantes: homicídio, roubo, roubo seguido de morte, extorsão mediante seqüestro,
tráfico de droga, estupro; são, ―grosso modo‖, superiores a de outros países com
características de organização social comparáveis às do Brasil. A taxa de homicídios
para o Brasil (28,46 homicídios por cem mil habitantes, ano de 2002) foi um pouco
menor do que a média esperada para países com renda baixa e média (=32,1
homicídios por cem mil habitantes). Considerando o período de 1991 a 2000, essa
taxa cresceu, para o país como um todo, 72, 58%.
Nesse sentido, o grande responsável pelo aumento dessas taxas e, conseqüentemente
do crime, foi o tráfico de drogas. Com isso, as organizações criminosas tornaram-se mais
organizadas e violentas, muito se deve pela responsabilidade na distribuição e venda de
entorpecentes, principalmente de cocaína. ―Essas organizações passaram a operar neste
mercado como empresas‖, afirmam Adorno e Salla (2007, p. 13), pois foram utilizadas
103
estratégias para criar e manter pontos-de-venda, conceitos de logística para distribuição, entre
outros. Para tanto, é fundamental um mercado consumidor que sustente essa estrutura,
dispondo de meios suficientes para aquisição regular de drogas. O funcionamento desse
sistema organizado reduz a inclusão de cidadãos empobrecidos, com pouca perspectiva de
trabalho e futuro promissor, induzindo-os a serem trabalhadores assalariados do crime. Sua
função é ―exercer controle da distribuição de drogas, do ponto-de-venda, da circulação de
dinheiro, das dívidas contraídas quer por consumidores que por pequenos vendedores‖
(ADORNO e SALLA, 2007, p. 13). Assim, se constituí uma complexa rede de criminosos
ávidos a matar ou morrer, sempre obedientes aos seus comandantes.
Diante disso, a violência ganha estatus junto às organizações do crime, sendo usada
como o principal meio de controle e imposição de poder. Surge, portanto, novas organizações
criminosas, diversificada e muito bem armada, onde os conflitos são resolvidos com armas de
fogo. Segundo Zaluar (2007, p. 45), isso criou as condições que atraíam muitos jovens pobres
a se envolver nessa guerra mortal entre traficantes, mas que permaneceu restrita a algumas
áreas da cidade. Contrariamente às máfias ítalo-americanas, compara a autora, essas
organizações a exemplo no Rio de Janeiro, jamais contaram com os laços estáveis de lealdade
que existem entre pessoas relacionadas por parentesco ritual ou de sangue. Para eles, os
conflitos são comuns para acertar as contas e distribuir a riqueza e o poder. ―O orgulho de ser
homem não se origina na gentileza e outras disposições civilizadas, mas da capacidade e
disposição de destruir o adversário‖ (ZALUAR, 2007, p. 46). De modo geral, o tráfico de
drogas transformou o convívio social, principalmente nas grandes metrópoles, em um grande
barril de pólvora. É importante salientar que traficar drogas exige o emprego de mão-de-obra
maior do que as atividades criminosas comuns. Dessa forma, com o aumento de pessoas no
crime, existe um aumentou também, no número de prisões relacionadas ao tráfico. Avaliar
esse processo nas últimas décadas é constatar que a população carcerária explodiu, ou seja, o
número de presídios e cadeias não comporta a super população de criminosos. As
conseqüências dessa realidade serão determinantes para a compreensão do que chamamos de
crime organizado brasileiro.
Para tanto, Adorno e Salla (2007, p. 14) constatam que a peculiaridade da
criminalidade organizada no Brasil advém de seu enraizamento nas prisões, comprovando
aspectos que a distinguem de outras modalidades existentes no mundo. No Brasil, a
proximidade entre os grupos criminosos está antes no próprio conteúdo da ação criminosa, na
condição de criminoso encarcerado, e na filiação social a que pertence à esmagadora maioria
dos seus participantes, ou seja, aos estratos socieconômicos onde vivem nas fronteiras entre
104
legalidade e ilegalismos, constituem sua identidade. Segundo Amorim (2006, p. 22), As
lideranças do crime organizado, intimamente relacionadas com populações carentes, foram
encarceradas, mortas e substituídas por uma nova geração de traficantes. Estes acreditam mais
no terror puro e simples do que na cooperação com o meio em que vivem.
Nesse sentido, ressalta-se que a massa carcerária no Brasil é, em sua grande maioria,
―composta por presos pobres, com poucos recursos pessoais, suscetíveis às influências do
momento e vulneráveis às ações arbitrárias e violentas de quem quer que seja‖ (ADORNO e
SALLA, 2007, p. 16). Muitos dos presos acabam sendo cooptados pelas lideranças da
criminalidade organizada. Segundo Paixão (1987, p. 80), três parecem ser os elementos que
explicam a sujeição dos presos a essas lideranças emergentes: o medo, o cálculo e a
resignação. O medo está associado com a permanente ameaça de violência física.
Independente de sua origem, a violência constitui um código normativo de comportamento.
Diante disso, Adorno e Salla (2007, p. 16) exemplificam esse contexto por meio dos
[...] confrontos entre quadrilhas; suspeita de delação; envolvimento no tráfico de
drogas, na exploração de atividades internas, no tráfico de influências sobre os
―poderosos‖, sejam aqueles procedentes da massa carcerária ou da equipe dirigente;
posse de objetos pessoais; obtenção de favores sexuais, o que compromete não
apenas os presos, em particular os mais jovens e primários, muitas vezes
comercializados no interior da população, mas também suas esposas, suas
companheiras e suas filhas; manutenção de privilégios conquistados ou cedidos;
disputa de postos de trabalho. Não raro, verificam-se homicídios praticados com
requintes de barbaridade, veiculados boca a boca como sinais de virilidade e
coragem.
Além desses aspectos da violência criminosa, é importante contabilizar os estupros, as
agressões de uns contra outros, os acertos de contas verificados notadamente durante as
rebeliões e motins, os ―pactos de morte‖ e a confrontação, por vezes dramática, entre presos
organizados no interior das prisões e as autoridades constituídas (ADORNO, 1991, p.15).
Nesse ínterim, nascem alguns grupos e facções com o intuito de minimizar o abandono do
governo junto à massa carcerária. Essa lacuna deixada pelo Estado rendeu frutos, pois a
superlotação dos presídios, morosidade da justiça nos julgamentos, falta de infra-estrutura
para condições básicas de higiene, métodos cada vez mais punitivos aos presos, além da
exposição de presos condenados de alta periculosidade com presos comuns; tornaram as
prisões em ambiente propício para a formação de criminosos, longe de qualquer intenção
corretiva.
O crime, como entidade, estruturou-se dentro das prisões, complementa Souza (2006,
p. 21), até então o último dos lugares para se pensar numa formatação criminal, porque as
105
pessoas, em tese, estão privadas da liberdade, isoladas da sociedade, imobilizada pelas celas e
pulverizada psicologicamente pelas grades. Ironicamente, foi exatamente nesse espaço, da
quebra dos movimentos e dos contatos, que nasceu o crime em forma oficial de empresa, com
voz própria de comando, chamada de torre nos códigos, com ordens regularmente emitidas
(os salves) chegando às faculdades (incorporando ironicamente o conceito, fora das muralhas,
que chama os presídios de escolas do crime).
O primeiro grupo criminoso a sair dos presídios brasileiros e ganhar notoriedade
internacional, foi o Comando Vermelho - CV, na década de 1970. É comum creditar a esse
grupo, o modelo seguido por todas as demais facções criminosas. Segundo Charão, Indriúnas
e Castro (2006), a criação do Comando Vermelho foi ocasionada pelo convívio de seus
primeiros líderes, com grupos guerrilheiros de esquerda. Isso aconteceu no presídio Cândido
Mendes, em Ilha Grande, Rio de Janeiro. Para Amorim (2003, p. 58) ―O encontro dos
integrantes das organizações revolucionárias com o criminoso comum rendeu um fruto
perigoso: o Comando Vermelho‖. Mesmo com o fim da ditadura e a libertação desses
revolucionários, afirma o autor que os presos políticos deixaram muitas marcas no presídio da
Ilha Grande, proporcionando uma experiência educadora. ―A influência dos prisioneiros
políticos se dava basicamente pela força do exemplo, pelo idealismo e altruísmo, pelo fato de
que, mesmo encarcerados, continuávamos mantendo a organização e a disciplina
revolucionárias‖ (AMORIM, 2003, p. 64). Com tempo de sobra para pensar nos problemas e
soluções vigentes, a facção Comando Vermelho foi tomando corpo, seduzindo e cooptando
cada vez mais presos. Além de proteger seus integrantes, a facção criou normas de conduta
entre os presos, eliminou sistematicamente seus rivais e trouxe certa ―paz‖ nos presídios onde
atuava. O Comando Vermelho aprendeu rápido que para crescer, deveria fazer exigências que
beneficiassem todos no presídio.
Segundo Porto (2007, p. 87), a facção está ligada ao tráfico de entorpecentes em larga
escala, além de atuar em ações seletivas: tráfico de entorpecentes, contrabando de armas e
seqüestro. As demais atividades são uma forma de fazer dinheiro para financiar a compra de
entorpecentes. Para Charão, Indriúnas e Castro (2006),
A princípio, eram apenas quadrilhas de ladrões tentando criar uma unidade para
facilitar seu trabalho. Com a chegada das drogas, tornou-se um grupo voltado para o
tráfico. A primeira conseqüência foi exacerbar dois componentes que já existiam no
bicho: o terror aplicado àqueles que se voltassem contra a facção e o
assistencialismo à comunidade. Houve até uma época em que o Comando Vermelho
especializou-se em uma tática Robin Hood: assaltar caminhões com mercadorias e
distribuir para os moradores das favelas.
106
Essa estratégia de crescimento foi à mesma utilizada pelos cartéis colombianos, de
aplicar parte da renda da venda da droga em melhorias para a comunidade, como construção
de redes de esgotos e segurança. A partir dessas práticas, o Comando Vermelho transformouse, até poucos anos atrás, na maior e mais respeitada organização criminosa do país. São
fundadores do Comando Vermelho os detentos: José Carlos dos Reis Encina, o ―Escadinha‖,
Francisco Viriato de Oliveira, o ―Japonês‖, José Carlos Gregório, o ―Gordo‖ e William de
Silva Lima, o ―Professor‖.
No Rio de Janeiro, outras organizações surgiram posteriores ao Comando Vermelho.
A primeira foi o Terceiro Comando – TC, fundada nos anos 80 como dissidência do Comando
Vermelho, tornou-se sua maior rival envolvendo o comando do ponto de tráfico de drogas em
mais de 600 favelas cariocas, como aponta Porto (2006, p.92). Outra facção criminosa é a
Amigos dos Amigos – ADA, fundada no ano de 1998, em razão da não submissão aos
traficantes mais antigos que comandam o comércio de drogas do interior dos presídios,
conforme relatado em matéria publicada na Folha Online. Dissidentes da ADA formaram
uma nova facção, denominada Inimigos dos inimigos – IDI.
No Estado de São Paulo, a primeira facção criminosa a ser reconhecida pelo governo
foi a Serpentes Negras. Segundo Porto (2007, p. 85), essa organização foi criada em 1984 na
Casa de Detenção de São Paulo, ―a partir de uma comissão de presos constituída para
apresentar ao então Secretário de Justiça José Carlos Dias, um perfil do preso brasileiro, bem
como reivindicar melhoras no sistema penitenciário‖. Hoje, essa organização se encontra
extinta. Outras organizações como: Seita Satânica – SS (criada em 1994), Comissão
Democrática de Liberdade – CDL (criada em 1996), Comando Revolucionário Brasileiro da
Criminalidade – CRBC (criada em 1999) e Terceiro Comando da Capital – TCC (criada em
2002), compõe o cenário criminal paulista, mas nenhuma dessas organizações se compara à
facção Primeiro Comando da Capital, vulgo PCC.
Criada em 1993 na Casa de Custódia e Tratamento ―Dr. Arnaldo Amado Ferreira‖ de
Taubaté. O PCC construiu seu poder dentro dos presídios paulistas num tempo relativamente
curto: menos de dez anos. Originalmente, O primeiro Comando da Capital era o nome de um
time de futebol que disputava o campeonato interno do presídio de Taubaté, na época
apelidado pelos detentos como ―piranhão‖ ou ―masmorra‖, por ser considerado o mais severo
do sistema. Segundo Porto (2007, p. 73), ao chegar ao final do campeonato, o time do
Primeiro Comando da Capital, integrado pelos presos denominados fundadores José Márcio
Felicio, o ―Geleião‖, Cezar Augusto Roriz, o ―Cezinha‖, José Eduardo Moura da Silva, o
―Bandejão‖, Idemir Carlos Ambrosio, o ―Sombra‖, dentre outros; resolveram que em vez de
107
jogar futebol, iriam acertar as contas com dois integrantes do time adversário, resultando na
morte desses dois presos. Deste ato, que tomou contornos de reivindicação contra as precárias
condições do sistema prisional, se originou a facção criminosa.
O modelo seguido, pelo menos inicialmente, foi o mesmo já trilhado pelo Comando
Vermelho (CV). Para Souza (2006, p. 21), a organização montou uma hierarquia com postos
propositadamente chamados de ―soldados‖ e ―generais‖. Origem paulista, era esse o Primeiro
Comando da Capital, o PCC, a frente do crime formada por prisioneiros. No começo, tinha
um código, o número 1533, porque 15 corresponde à décima quinta letra do alfabeto, P,
seguida duas vezes pela terceira letra, C.
Como afirma Mingardi (2007, p. 59),
[...] ao contrário de outras organizações de presos existentes naquele momento nas
cadeias paulistas, eles adquiriram cada vez mais adeptos usando o discurso sindical,
de que todos eram iguais, que precisavam se unir, que um companheiro não deveria
ser inimigo de outro e que o inimigo comum era a administração carcerária. Com
esse discurso, aliado à defesa dos presos mais fracos contra a exploração das
inúmeras quadrilhas que infestavam o sistema, as lideranças iniciais foram ganhando
simpatizantes entre os mais fracos, sem poder ou influência dentro do sistema. Em
meados da década de 1990, praticamente todas as lideranças de então estavam no
Carandiru, onde ganharam a confiança da massa carcerária e passaram a controlar o
presídio. E essa ascensão trouxe, indubitavelmente, benefícios aos detidos.
Segundo o autor (MINGARDI, 2007, p. 60) ao relatar os comentários de advogados,
membros da pastoral carcerária e mesmo guardas penitenciários; quando o PCC assumiu o
controle o número de mortes diminuiu, assim como o número de presos vítimas de qualquer
tipo de atentado, incluindo sexuais. A força crescente do PCC passou a representar um grande
problema para a administração do complexo do Carandiru, como afirma o autor. Em medida
impensada, o governo junto com a administração do presídio, resolveu-se dispersar as
lideranças para tentar diminuir seu poder. ―Na realidade, ocorreu o contrário. As sementes do
contágio foram espalhadas por todo o sistema. O discurso corporativo foi levado para outros
presídios e o poder da organização aumentou‖ (MINGARDI, 2007, p. 60).
Não foi à toa que o governo de São Paulo demorou reconhecer a existência da facção
PCC. Segundo Amorim (2006, p. 388), o PCC ficou conhecido em 1993, quando pessoas
ligadas ao sistema penal paulista escreveram relatórios informando sobre a existência e o
crescimento do grupo. Em 1995, a repórter Fátima Souza cita a existência do ―partido do
crime‖, pela primeira vez, na televisão. Souza (2008, p. 10) relata que quando a reportagem
foi ao ar, às autoridades ficaram extremamente irritadas e trataram logo em desmentir. Em
1996, a autora diz ter recebido de um agente penitenciário, o primeiro indício da facção, um
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pedaço de papel com ameaça de morte a um preso, assinado pelo PCC. Pouco depois, recebeu
uma correspondência com o estatuto do PCC escrito à mão. Segundo Jozino, (2004, p. 32-38)
o estatuto foi redigido à caneta, por um dos detentos fundadores: o Mizael. O autor publicou o
documento na íntegra, em matéria no dia 25 de maio de 1997, no Jornal Diário Popular:
1 - Lealdade, respeito e solidariedade acima de tudo ao “Partido”.
2 - A luta pela liberdade, justiça e paz.
3 - A união contra as injustiças e a opressão dentro da prisão.
4 - Contribuição daqueles que estão em liberdade, com os irmãos dentro da prisão,
através de advogados, dinheiro, ajuda aos familiares e ação de resgate.
5 - O respeito e a solidariedade a todos os membros do “Partido”, para que não haja
conflitos internos, porque aquele que causar conflito interno dentro do “Partido”,
tentando dividir a irmandade, será excluído e repudiado do “Partido”.
6 - Jamais usar o “Partido” para resolver problemas pessoais contra pessoas de fora
porque o ideal do Partido está acima de conflitos pessoais. Mas o “Partido” estará
sempre leal e solidário a todos os seus integrantes para que não venham a sofrer
nenhuma desigualdade ou injustiça em conflitos externos.
7 - Aquele que estiver em liberdade, “bem estruturado”, mas esquecer de contribuir
com os irmãos que estão na cadeia, será condenado à morte, sem perdão.
8 - Os integrantes do “Partido” têm que dar bom exemplo a ser seguido e, por isso, o
Partido não admite que haja: assalto, estupro e extorsão dentro do sistema.
9 - O “Partido” não admite mentiras, traição, inveja, cobiça, calúnia, egoísmo,
interesse pessoal, mas sim, a verdade, a fidelidade, a hombridade, solidariedade ao
interesse comum ao bem de todos, porque somos um por todos e todos por um.
10 - Todo integrante terá que respeitar a ordem e a disciplina do “Partido”. Cada um
vai receber de acordo com aquilo que fez por merecer. A opinião de todos será
ouvida e respeitada, mas a decisão final será dos fundadores do “Partido”.
11 - O Primeiro Comando da Capital - P.C.C., fundado no ano de 1993, numa luta
descomunal e incansável contra a opressão e as injustiças do Campo de
Concentração anexo da Casa de Custódia de Taubaté, tem como lema absoluto "A
Liberdade, a Justiça e a Paz".
12 - O partido não admite rivalidades internas, disputa do poder na liderança do
comando, pois cada integrante do Comando sabe a função que lhe compete, de
acordo com sua capacidade para exercê-la.
109
13 - Temos que permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra
novamente um massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção, em 2
de outubro de 1992, quando 111 presos foram covardemente assassinados, massacre
esse que jamais será esquecido na consciência da sociedade brasileira. Porque nós do
Comando vamos sacudir o sistema e fazer essas autoridades mudarem a prática
carcerária desumana, cheia de injustiça, opressão, torturas, massacres nas prisões.
14 - A prioridade do Comando no momento é pressionar o Governo do Estado a
desativar aquele Campo de Concentração “anexo” à Casa de Custódia de
Tratamento de Taubaté de onde surgiram a semente e as raízes do Comando, no meio
de tantas lutas inglórias e tantos sofrimentos atrozes.
15 - Partindo do Comando Central da Capital, o QG do Estado, as diretrizes de ações
organizadas e simultâneas em todos os estabelecimentos penais do Estado numa
guerra sem tréguas, sem fronteiras, até a vitória final.
16 - O importante de tudo é que ninguém nos deterá nessa luta porque a semente do
Comando se espalhou em todo o Sistema Penitenciário do Estado e conseguimos nos
estruturar também do lado de fora, com muitos sacrifícios e perdas, mas nos
consolidando, a nível estadual e a longo prazo, nos consolidaremos também a nível
nacional. Conhecemos nossa força e a força de nossos inimigos poderosos, mas
estamos preparados, unidos, e um povo unido jamais será vencido.
LIBERDADE! JUSTIÇA! PAZ!
PCC
“UNIDOS VENCEREMOS”
Conforme avalia Amorim (2006, p.390), o que impressiona nas regras de conduta do
PCC é a semelhança com o pensamento dos homens que fundaram o Comando Vermelho,
vinte anos antes. O estatuto do PCC invoca como ideal a lealdade entre os membros da
organização, além da solidariedade e união na luta contra as dificuldades apresentadas pelo
sistema prisional. Essa problemática transformou-se no argumento mais forte na atração de
outros membros. No entanto, o que chama a atenção é a tríade retórica da facção: ―liberdade,
justiça e paz‖, expressão comumente usada para exaltar e ratificar seus mandos. O contrasenso desse discurso se encontra, justamente, na articulação dos opostos, no enfrentamento de
leis e regras sociais, na hipocrisia ideológica, como principalmente na violência empregue por
aqueles que conclamam esses direitos.
110
Neste sentido, Adorno e Salla (2007, p. 17) analisam que
Em seu item 4, o estatuto prega a contribuição daqueles que estejam em liberdade
com os irmãos que estão dentro da prisão, por intermédio de advogados, dinheiro,
ajuda aos familiares e ação de resgate. Ao mesmo tempo, ameaça com a condenação
à morte sem perdão, aqueles que se encontram em liberdade ―bem estruturados‖ e se
esqueceram de contribuir com seus irmãos presos. Trata-se de uma organização
impregnada de rígidos valores. Ao mesmo tempo em que prega solidariedade e
proclama luta contra as injustiças, prevê aplicação de pena de morte sem apelação
ou julgamento. Como que traduzindo traços da cultura política brasileira, estabelece
uma sorte de sincretismo moral entre tradição (autoproteção pessoal) e modernidade
(apelo à justiça e ao direito).
Em síntese, o PCC condena a morte qualquer um que se oponha ou não queira
participar de suas regras. Dessa forma como afirmam Adorno e Salla (2007, p. 18), ―a facção
contribuiu para firmar a malha de solidariedade entre os presos, pela imposição da violência e
do medo, mas também pela construção de uma percepção de pertencimento, revelada na
expressão própria aos membros do grupo como ‗irmãos‘‖.
Conforme apontado no item 7, o código de comportamento não se restringia apenas
aos presos, mas também aqueles que estão em liberdade. Assim, à medida que seus
integrantes cumpriam suas penas, eram libertados e traziam, para além das grades, as idéias e
ideais da facção. Concomitante a isso, é importa salientar que antes de receber o estatuto e,
―oficialmente‖ pertencer à facção, o candidato passa por um ―batismo‖. Segundo Souza em
artigo publicado em 2007,
Quem quiser entrar no PCC precisa ser ―apresentado‖ por alguém. Não basta chegar
e ir entrando. Tem que ter alguém que o apresente e garanta aos demais que ele é
―gente boa‖, é ―firmeza‖. Tem que ter um ―padrinho‖. Devidamente garantido em
seu ―caráter‖ o postulante a integrante da facção passa por um ―batismo‖. Em um
copo (que pode até ser de água, mas preferencialmente com pinga) padrinho e
―afilhado‖ jogam uma gota de sangue de cada um, conseguida através de um furinho
no dedo indicador. Então, cada um bebe a metade. O ―afilhado‖ promete que nunca
irá desapontar o padrinho e jura fidelidade ao PCC para sempre. Recebe uma cópia
do estatuto da facção e é o mais novo integrante do partido do crime. Se o padrinho
estiver na cadeia e o afilhado fora – ou vice-versa – a cerimônia do sangue na pinga
é dispensada, restando só o juramento e o recebimento do estatuto que o afilhado
jura respeitar e seguir a risca. Ele é alertado que a pena é a de morte para quem
desrespeitar o estatuto. A cerimônia é realizada tanto por homens quanto por
mulheres, já que o número de mulheres filiadas ao PCC cresce a cada ano. Todas as
cadeias femininas de São Paulo são dominadas pelo PCC. É o PCC de Saias, como
são chamadas. Também nos presídios femininos existem as figuras dos Torres e
Pilotos. São subordinadas a chefia geral, ao comando, liderados por homens.
O ritual que se passa com o ―batismo‖, demonstra a organização da facção enquanto
estrutura. Porto (2007, p. 74) afirma que o Primeiro Comando da Capital, manteve-se ao
111
longo dos anos com a mesma estrutura hierárquica, seguindo o modelo piramidal. No topo da
hierarquia do PCC, são alocados os chamados ―Fundadores‖, ou aqueles que, em virtude de
seu status criminoso, alcançaram uma posição de prestígio dentro da facção, quer por
matarem outros presos, quer por executarem ações cujo retorno fosse especialmente
proveitoso para a organização. O atual líder da facção Marcos Willians Herbas Camacho, o
―Marcola‖, passou a compor o núcleo dos ―Fundadores‖, por meio de status adquirido como
ladrão de transportadora de valores. Esta estrutura piramidal foi alterada ao longo dos anos,
principalmente em virtude dos lucros provenientes de suas ações. Hoje, o PCC é dividido em
células, de modo a permitir a continuidade das atividades criminosas mesmo com o
isolamento dos líderes.
Para Souza (2006, p. 105 apud Denúncia do Ministério Público),
Em decorrência das sucessivas investigações policiais e ações penais desfechadas,
apurou-se que o ―Primeiro Comando da Capital‖ estabeleceu uma nova estrutura
para sua atuação criminosa, desmobilizando parcialmente o molde piramidal já
descrito. Fora ele descentralizado em anéis ou células, cada qual com autonomia e
discricionariedade dentro de sua área ou ramo de atividade, ligando-se os ―pilotos‖
com outros da mesma denominação (―pilotos‖), mas responsáveis por pequenas
divisões dentro do mesmo espaço geográfico ou função, vascularizando a ação
criminosa. Novas figuras foram acrescidas à estrutura que se diversificou
horizontalmente: aos ―pilotos‖ foram acrescidos os ―torres‖, peças chave na
estrutura. Os ―torres‖ são lideranças decisórias que formam uma espécie de ―última
instância‖ antes da liderança geral. Foram criados ainda, os ―sintonias‖, cuja função
é a manutenção de contato entre os anéis ou células, daí resultando que a expressão
―estar na sintonia‖ significa ficar a par de tudo o que ocorre com a atividade
criminosa, garantindo a comunicação entre todos os integrantes da organização.
Com a expansão da organização, a ordem hierárquica desenvolveu uma ordenação
escalonada mais complexa conforme descrito acima, que culminou com a criação dos
chamados ―Pilotos‖ e ―Torres‖, presidiários que detêm poder de comando dentro de
determinado presídio ou pavilhão, como representante dos ―Fundadores‖ ou em situação
semelhante a estes, como reafirma Porto (2007, p. 74). O pavilhão ou presídio sob a influência
de cada ―Piloto‖ é conhecido como ―raio‖, dentro do qual nova escala hierárquica se
estabelece, igualmente de natureza piramidal. Assim define-se hoje a escala orgânica da
organização criminosa que, por sinal, compartimenta informações de comando de modo que
seus integrantes não disponham, todos, das mesmas informações, complementa Souza (2006,
p.206).
Além das funções já citadas, criou-se também a figura do ―disciplina‖, a quem
compete uma espécie de controle ou corregedoria interna no âmbito da facção. Sua
incumbência é cobrar dos demais criminosos que lhes fora destinada. Também se criou a
112
figura do ―bicho papão‖, cuja responsabilidade é a arrecadação do lucro inerente ao tráfico de
entorpecentes, tanto dentro como fora do sistema prisional. O objetivo de tais divisões foi
aperfeiçoar a atuação criminosa.
O PCC também conta com a ajuda de pessoas e grupos vinculados à facção, são eles
Contadores (O PCC tinha um único contador até 2005, ano em que ele foi preso, hoje a
administração dos R$ 700 mil arrecadados por mês passou para cerca de 6 contadores, que
usam até registros em livros-caixas); Advogados (A polícia estima que o grupo tenha cerca de
18 advogados trabalhando a seu favor, eles também usam artifícios ilegais, como a compra da
gravação dos depoimentos sigilosos da CPI do Tráfico de Armas); Criminosos (O PCC ajuda
seus filiados a realizar crimes como assaltos à mão armada e seqüestros. Também garante
proteção aos vendedores das bocas-de-fumo, que pagam ao grupo uma porcentagem dos seus
lucros), Comunidade (Além dos criminosos, a comunidade do PCC conta com simpatizantes,
como cantores de funk que os homenageiam. O grupo também financia estudos para quem
quer ser um advogado do crime organizado) e Políticos (Com pouca penetração no Estado, o
PCC começa a articular possíveis candidatos para as próximas eleições, usando como moeda
de troca os votos de seus milhares de filiados).
Assim como o Comando Vermelho, o Primeiro Comando da Capital deixou claro em
seu estatuto que aquele que não colaborar com a facção será condenado à morte. Segundo
Porto (2007, p. 79), essa colaboração é prestada de duas formas: pagamento de
―mensalidades‖ ao Partido (R$500,00 para aqueles que estão em liberdade; R$250,00 para
aqueles que cumprem pena no regime semi-aberto; R$50,00 para aqueles que cumprem pena
em regime fechado), ou a prestação de serviços, como a colocação de bombas em prédios
públicos, atentados à Policia Militar ou, mesmo, a execução de pessoas. Essas pessoas são
chamadas de ―Bin Ladens‖ pela facção.
É importante ressaltar que além das mensalidades pagas pelos integrantes do PCC,
existem outras fontes de lucro como: aluguel de armas e de cativeiros para seqüestro, tráfico
de entorpecentes, parte do lucro em assaltos, roubos e etc. Umas das fontes mais inusitadas
são a loteria do crime e o empréstimo. Segundo Souza (2007),
A loteria do crime é vendida nas cadeias, num sistema de rodízio (a cada mês 10
cadeias fazem a loteria). Cada número custa R$ 15 e cada detento ligado ao PCC
tem que comprar pelo menos três bilhetes. Familiares também compram e, em
alguns casos, revendem aqui fora. O resultado é o que der no concurso oficial da
Loteria da Caixa Econômica Federal. Quem ganhar o primeiro prêmio leva um
apartamento no valor médio de R$ 70 mil. O segundo prêmio é uma TV Plasma. O
PCC também faz ―empréstimos‖ aos detentos. Quem for filiado e estiver precisando
113
de grana é só pedir que o dinheiro está na mão sem necessidade de avalista. Mas tem
que pagar se não, morre.
Toda a arrecadação do dinheiro proveniente das ações descritas foram encontradas
pela polícia em livros-caixa. A ―contabilidade‖ do PCC, como descreve Souza (2007), possui
uma série de investimentos, dentre eles a compra de armas para abastecer as quadrilhas que
agem dentro e fora do sistema prisional e compra de mais drogas. Outra parte do dinheiro é
usado para pagar o salário dos ―Torres‖ e ―Pilotos‖, que varia em torno de R$3.000,00 à
R$10.000,00, dependendo do faturamento mensal das regiões onde atuam. Além disso, o PCC
possui vários programas de ajuda social, conforme descreve Souza (2007)
Parte do dinheiro do PCC é aplicado em ―funções sociais‖, como a compra de
cestas-básicas para familiares de presos que estão passando necessidade e o
pagamento dos ônibus que são fretados para levar familiares de detentos as prisões
nos finais de semana para a visita. Uma outra parte da grana é usada numa espécie
de ―programa assistencial‖ criado em favelas de São Paulo, onde a facção tem
pontos de vendas de drogas. Batizado de ―Ajuda da Correria para o Social‖, o
―programa‖ distribui leite, gás e cestas básicas a famílias que moram nestas favelas.
Uma espécie de ―troca‖: a gente vende a droga, vocês ficam quietinhos (não
denunciam a polícia) e nós damos o ―troco‖. As famílias interessadas em receber a
―ajuda‖ são cadastradas pelos soldados da facção. Também faz parte do ―pacote
social‖ a compra de remédios e enxovais para bebês. Outra forma de arrecadação de
dinheiro é a rifa do PCC, que corre todos os meses. Aliás o PCC também paga
velórios e enterros de seus integrantes mortos dentro ou fora dos presídios.
Dependendo da ―importância‖ do indivíduo e de sua ―contribuição‖ criminosa a
facção quando vivo, o valor gasto com o caixão, velas, coroas e faixas pode chegar a
R$ 5 mil.
Esse tipo de ajuda acaba por fortalecer ainda mais a organização, uma vez que os
assistidos criam relações laços de amizade e gratidão. Isso, posteriormente, é revertido em
ajuda das mais variadas: não delação de crimes ou de criminosos foragidos, utilização das
residências para esconder armas e drogas, transformação dessas pessoas em ―laranjas‖ para
movimentação financeira, cooptação de novos integrantes, entre outros. O que impressiona,
além disso, é a mitificação da facção bem como a de seus líderes, junto às comunidades.
Pertencer ou ajudar o PCC trás status. Ao que tudo indica, a comunicação possui papel
essencial neste desenvolvimento, proporcionando a ligação entre a massa carcerária com seus
parentes, subordinados e todos os envolvidos indiretamente com facção.
A agilidade e eficiência da comunicação decorem, principalmente, da evolução
tecnológica dos meios de comunicação, especialmente da telefonia móvel celular.
Hoje se faz possível a realização de teleconferências, com várias pessoas se valendo
de uma linha principal de telefone celular e não mais uma linha fixa como
anteriormente se exigia, fator que trouxe enorme flexibilidade e mobilidade ao
sistema, permitindo o controle das atividades criminosas minuto a minuto.
(Denúncia do Ministério Público, apud SOUZA, 2006, p. 106)
114
Na realidade, a arma que mais preocupa a polícia não é letal e se chama celular. ―O
celular dentro da cadeia é mais perigoso do que dez fuzis na rua‖, comenta o delegado
Bittencourt (SOUZA, 2006, p. 42). Segundo Porto (2007, p. 75), as lideranças e os membros
da organização conseguem obter ilicitamente aparelhos de telefone celulares, normalmente
pré-pagos, os quais são introduzidos nos presídios com os quais ligam para as ―centrais‖, as
quais, automaticamente ou com a interferência de operadores (geralmente mulheres),
transferem as chamadas para o destino final. Assim, as ligações são feitas na maioria das
vezes ―a cobrar‖ e as linhas fixas permanecem programadas até que sejam desligadas por falta
de pagamento, quando, então, são substituídas por outras. Em virtude do temor das
interceptações telefônicas, foi criada uma rede de comunicação alternativa por meio de
aparelhos de rádio ―Nextel‖. O rádio serve-se de sistema de satélites e que a interceptação é
impossível.
Segundo Jozino (2004, p. 128), o ex-militante do Movimento da Esquerda
Revolucionária (MIR) do Chile, o canadense David Spencer, arquitetou em setembro de 1998,
um sistema de informatização e comunicação para o PCC que perdura até hoje. Spancer e seu
grupo, presos pelo seqüestro do dono do grupo Pão de Açúcar, foram grandes incentivadores
da facção. A base do sistema de comunicação proposta pelo grupo, foi fundamental para o
crescimento, fortalecimento e sucesso do PCC. O canadense elaborou um organograma do
sistema de comunicação (lia-se: operações de sistemas piratas, conexão de vírus em sistemas
de redes telefônicas, computadores, estúdios radiofônicos, televisivos, radares e controle de
PX, HT e Cobra), desenhou os equipamentos necessários à sua implantação e lhes explicou o
funcionamento de cada um.
A utilização de tecnologias de comunicação não foi à única alternativa para o PCC
manter-se conectado ao mundo. Segundo Souza (2007, p. 111), a facção criou uma nova
linguagem, ―como se fosse um dialeto circunscrito a um grupo cada vez maior de militantes,
substituindo a semiótica restrita aos habitantes do cárcere, usar sinais e não a voz, que ainda
predomina nas prisões‖. A nova modalidade de comunicação, usada pelo PCC para casos de
recados, que deveriam ser passados com maiores cuidados de segurança, foi chamado de
pombo-correio. No caso, advogadas recebiam bilhetes guardados sobre os seios, ou escritos
sobre a própria pele. O destinatário somente lia a mensagem quando a advogada, sem sutiã,
abria a blusa. Homens advogados também desempenhavam esse papel, levando mensagens
escritas no ombro, à altura do pescoço. Fingem que estão se coçando para o interlocutor poder
ler, conclui Porto (2007, p. 75).
115
A partir do exposto, é possível esclarecer o funcionamento da sigilosa comunicação do
PCC. Primeiro, detalhando os esquemas que permitiam relacionamentos de dentro para fora e
de fora para dentro dos presídios, em caráter permanente, muitos deles em regime de
aparelhos ligados 24 horas. Depois, a identificação dos principais interlocutores, com a
elaboração de um cronograma e a revelação de algumas conversas. Em todas as novas etapas
que passou a adotar na organização cada vez maior, o PCC passou a identificar cada tipo de
atividade com um nome próprio, incompreensível para leigos ou qualquer um que não tivesse
um mínimo de conhecimento sobre a nova linguagem do cárcere.
Segundo Porto (2007, p. 76), estima-se que hoje o Primeiro Comando da Capital seja
formado por quinze mil integrantes, só no Estado de São Paulo, espalhados em 117 unidades
prisionais. Todavia, esta facção criminosa não se encontra delimitada em território paulista. A
transferência de lideranças do PCC para outros Estados permitiu uma expansão e, sobretudo,
uma consolidação de alianças que resultam em uma estrutura hoje nacional. Mas não somente
a parte material e operacional foi desenvolvida; também a parte ideológica sofreu grandes
alterações.
Portanto, o PCC, com estatuto, batismo, rituais de entrada, pagamento de mensalidade,
com garantias de apoio para quem estivesse fora ou dentro dos cárceres, investimento, compra
de pessoas que atuam profissionalmente em vários níveis, inclusive o jurídico,
providenciando a graduação daqueles que seriam os ―doutores do crime‖. Criou-se, aos
poucos, uma organização que domina 90% dos presídios e a maioria dos criminosos soltos,
concluem Charão, Indriúnas e Castro (2006).
Com base na análise apresentada, certamente trata-se de um esforço incompleto que se
tornará mais frutuoso no decurso de investigações feitas no próximo capítulo. Por não possuir
uma fundamentação natural, nem transcendental ou infalível, o entendimento desse tema tão
próximo de nós, tão fugidio e desafiante requer sempre a exposição dos estudos e descobertas
que foram alcançados e postos em prática, pois se trata de um fenômeno em constante
mutação.
116
4
PENSANDO
OS
ATAQUES
DO
PCC
NA
MÍDIA
DO
ENTRETENIMENTO
Após oito anos de sua criação, foi em 2001 que o PCC ganhou destaque nos meios de
comunicação, como também o reconhecimento de sua existência, publicamente, pelo
Governo do Estado de São Paulo. O fato impulsionador desse movimento adveio quando
ocorreu a maior rebelião prisional da qual se tem notícia no mundo, afirma Porto (2007, p.
75), a chamada ―Megarrebelião‖, precisamente em 18 de fevereiro de 2001. Segundo o autor,
o governo estima em 28 mil o número de rebelados reunidos pelo Primeiro Comando da
Capital, em dezenove municípios.
Mingardi (2007, p. 63), pontuou a ação da polícia da seguinte forma:
A resposta à megarrebelião passou por duas fases: a tática, que levou a polícia a
cercar e invadir os presídios; e a estratégica, que ficou muito vinculada à mera
retórica. Muitos discursos foram feitos por policiais de alto escalão com afirmações
do tipo ―eles perderam o bonde‖, ―mostramos quem manda‖ e, pela primeira vez, ―o
PCC acabou‖.
A retórica policial era meramente especulativa, poucos sabiam sobre o que estava
acontecendo, muitas vezes informados pelos repórteres que acompanhavam o evento.
Conforme Jozino (2004, p. 79), grande parte dos repórteres dos jornais, revistas e televisão,
foram avisados do acontecimento por um preso, de nome Lucien, considerado o ―relações
públicas‖ do PCC. Por meio de um celular de dentro da cadeia, ele mantinha a imprensa
informada sobre os acontecimentos. As ações e decisões do PCC se concentraram
principalmente na Casa de Detenção, hoje desativada. Jozino (2004, p. 80) diz que a ordem
para o início das rebeliões partiu de um dos líderes da facção, o Cezinha, que estava no
presídio de Piraquara, no Paraná. ―Pelo telefone celular, ele ligou para os pilotos – chefes –
das penitenciárias onde o Partido do Crime tinha um forte reduto e deu o sinal verde para o
motim em série‖ (JOZINO, 2004, p. 80). As centrais telefônicas do PCC espalhadas pelas
cidades de Campinas, Ribeirão Preto, Baixada Santista, São Bernardo do Campo, Guarulhos
e na Capital, foram fundamentais para a disseminação das ordens dadas pelos líderes. As
operadoras dessas centrais chegaram a trabalhar 16 horas diárias.
As razões para a ―Megarrebelião‖ recaíram sobre o então secretário de segurança
pública Nagashi Furukawa, acusado de não cumprir as promessas feitas aos líderes do PCC,
em troca do fim da violência nas cadeias. Segundo Jozino (2004, p.83), a gota d‘água para o
117
advento foi a transferência dos líderes do PCC para o anexo da Casa de Custódia e
Tratamento de Taubaté, notícia amplamente explorada pelas emissoras de rádio e televisão.
O programa de tevê Domingo Legal, do apresentador Gugu Liberato, a todo
momento noticiava que a cantora e apresentadora de tevê Simony, mulher do
detento Afro X, se encontrava dentro do Carandiru. O programa ainda explorava o
fato de que Simony estava grávida de cinco meses. Ela estava na cela do marido
quando foi avisada sobre a rebelião e se recusou a sair da cadeia (JOZINO, 2004, p.
83).
Com isso tornou-se claro a intenção em se espetacularizar o evento, pouco se noticiou sobre o
real significado das ações do PCC. A ―Megarrebelião‖ teve repercussão mundial. O jornal
francês Le Monde escreveu o ―Prémier Commando de La Capital” (ou ―PCC do Carandirú‖)
comandava ―motins sem precedentes no Brasil‖. O jornal El País, da Espanha, noticiou: ―O
PCC é um bando de mafioso narcotraficantes‖. Na Inglaterra, a BBC de Londres dizia: ―A
detenção foi pintada como reinvenção do inferno‖. Em Portugal, o Correio da Manhã, de
Lisboa, dedicou sua última página ao noticiário do PCC: ―Eles esperavam por um banho de
sangue, algo pior que o massacre do Carandiru‖. Na Itália, o La Stampa classificou a Casa de
Detenção como uma ―Cadeia de Monstros‖. Nos Estados Unidos, o The New York Times e o
Woshington Post consideraram o motim em série um dos mais perigosos ocorridos na
América Latina. Ambos os jornais fizeram novas referências ao massacre de 111 presos, em
outubro de 1992, na Casa de Detenção.
O sucesso do motim em série fez com que a facção crescesse, principalmente pela
conquista da simpatia de milhares de presos. Para Jozino (2004, p. 87), só no Complexo
Carandirú, com a Casa de Detenção e a Penitenciária do Estado, o PCC arrebanhou mais de
mil adeptos dois dias após a ―Megarrebelião‖. Na Penitenciária do Estado, um pacto de
lealdade coletivo foi firmado na galeria baixa do Pavilhão 3, mais de quinhentos novos
integrantes da organização participaram do batismo. Em muitas outras penitenciárias houve
novos batismos após a rebelião. Em todas elas era muito comum os presos exibirem
camisetas com o emblema, o slogam PJL (Paz, Justiça e Liberdade) e os números 1533.
Depois da ―Megarrebelião‖, afirma Souza (2007, p. 152), o PCC mudou de tática e
determinou ações mais violentas. Até então, fugas, resgates e rebeliões eram os meios mais
utilizados pelos membros da facção para mostrar que existiam. Segundo Mingardi (2007, p.
63), os novos ataques do PCC se evidenciaram,
Em 2002/2003, houve o segundo embate, que tomou novamente um rumo
inesperado, não previsto pelo aparelho de segurança. O PCC começou atacando
bases e distritos policiais, o que provocou algumas mortes. Também ocorreram
alguns atentados à bomba. No mesmo período houve o assassinato do juiz-
118
corregedor de Presidente Prudente, Antonio José Machado Dias, aparentemente por
ordem das lideranças do ―partido‖ presas na região. Na prática, porém, a resposta
aos ataques foi pífia. Além da investigação para identificar os autores da morte do
juiz, a única resposta tática foi a proteção dos distritos e das bases policiais. Eles
foram cercados pelas polícias, que passaram a defender a si mesmas.
É perceptível como os criminosos souberam acompanhar e avaliar muito bem os
termômetros de atuação policial, desde os policiais de ronda em áreas estabelecidas até suas
chefias e comandos. Nada comparado, porém, aos ataques de 2006. Para Mingardi (2007, p.
64),
Sexta-feira, 12 de maio, a imprensa noticia vários atentados contra policiais e
guardas municipais. Com poucas horas de intervalo, tem início rebeliões em metade
dos presídios paulistas. Durante a madrugada e pelos próximos dois dias, a polícia
foca tentando se defender dos ataques e ao mesmo tempo cercar os presídios para
controlar as fugas. No terceiro dia o PCC muda sua tática e surpreende novamente.
Os criminosos passam a queimar ônibus e metralhar bancos. A situação só começa a
voltar ao normal no meio da semana, quando uma comissão de policiais é enviada
para um presídio da região de Presidente Prudente, para conversar com um detento,
Marcola, conhecido como principal líder da organização. Poucas horas depois da
reunião, as rebeliões cessam e as coisas retomam um ritmo quase que normal. Não
normalizam completamente porque as mortes continuam a ocorrer, só que dessa vez
o alvo são os agentes penitenciários. Semanas depois se percebe que a situação
continuava fora de controle, pois recomeçam os atentados à bomba. A resposta à
grande crise envolve uma sucessão de erros. Quanto a medidas práticas, de início
delimitaram o cerco aos presídios e a proteção às delegacias e bases policiais. Isso
significou que as forças móveis da segurança (tático móvel, Rota, Garra, Goe, etc.)
ficaram imobilizadas, impedindo a fuga de presos e esperando a hora de retomar o
controle. A polícia territorial (companhias de policiamento e policiais civis dos
distritos) também ficou imobilizada, protegendo-se a si própria e a suas instalações.
Essas duas atitudes, aliás, eram lógicas e possivelmente foram previstas pelos líderes
do ―partido‖.
Em decorrência aos ataques, o Estado de São Paulo literalmente parou. Na cidade de
Sã Paulo, a maioria dos habitantes ficaram trancados em suas casas, sendo que bares,
restaurantes, boates, danceterias, Universidades foram fechadas, o comércio segui o exemplo
a baixou as portas dispensando os empregados. Doze shoppings centers anunciaram no
serviço de som que os clientes deveriam sair porque iriam fechar. ―Nas ruas, os poucos
paulistanos que circulavam eram abordados pela polícia, que teve folgas e férias canceladas,
e se espalhou em vários pontos de São Paulo‖ (SOUZA, 2007, p. 284). As emissoras de TV
alteraram a programação e levaram ao ar o triste cenário de uma guerra civil: ônibus
queimados, delegacias e fóruns metralhados, policiais assassinados, bandidos mortos e etc. A
maior cidade brasileira estava acuada. O Estado de São Paulo ficou em pânico, com medo do
PCC.
Concomitantes aos ataques nos centros urbanos, nas cadeias foram orquestrados
rebeliões em 74 presídios. O resultado dessa batalha entre o PCC o governo do Estado durou
119
100 horas, com saldo de 373 ataques realizados pela facção segundo Souza (2007, p. 286).
Além disso, foram 82 ônibus queimados, 17 agências bancárias atacadas por bombas, 48
pessoas mortas entre policiais militares, carcereiros e três pessoas comuns; e mais de 50
pessoas feridas. Segundo dados oficiais a polícia matou 110 detentos em uma guerra que
durou quatro dias.
O desfecho dos ataques ocorreu de forma inusitada, segundo Mingardi (2007, p. 64),
Quando o PCC já mostrava falta de fôlego, e o aparelho de segurança começava a se
reorganizar, um delegado, um coronel e um diretor de presídio foram para o Oeste
Paulista encontrar com o líder da organização. Não bastasse isso, foram em um
avião da Polícia Militar e acompanhados de uma advogada do preso. Quando a
imprensa criticou o encontro, as autoridades afirmaram que não teria ocorrido uma
negociação, que nada foi oferecido a ele. Mesmo assim, o mal já estava feito. Para
todos no sistema, o recado é que o Estado não tinha forças para enfrentar o PCC.
Isso aumentou o prestígio do grupo, principalmente nos presídios e entre os jovens
rebeldes da periferia.
Por meio do telefone celular de um preso conhecido como LH, foi incumbido de
transmitir a ordem para o cessar fogo pelo líder do PCC Marcola, até às vinte horas daquele
dia. Assim encerrou a maior demonstração de força já vista por uma organização criminosa.
Souberam à hora de atacar como também de recuar. Nada ideológico, tudo pragmático.
Conforme conclui Souza (2007, p. 306), ―O crime organizado em São Paulo passou a ter o
PCC como sinônimo. Uma imensa rede que desafia a polícia e assusta a população‖.
A partir desta contextualização, pretendemos promover uma análise sobre a visão de
formadores de opinião, que vivenciaram os ataques do PCC em 2006 e tiveram papel
fundamental para o entendimento desse evento. Portanto, nosso objetivo é tentar integrar as
diversas categorias discursivas sobre os ataques de 2006, juntamente com as definições dos
mecanismos desta transformação e compreender o que esta dinâmica altera nos cenários
midiáticos, influenciando e redefinindo o papel dos agentes sociais no processo de
desenvolvimento das sociedades.
A partir desta perspectiva, é fundamental entendermos a comunicação como um
elemento básico de qualquer sociedade. A mídia torna essa comunicação possível, ajuda à
sociedade a compreender as idéias políticas e culturais, e contribui para formar a opinião
pública, dependendo do papel social e político do informador. (CHARAUDEAU, 2006)
Hoje a mídia registra e divulga as ações violentas, em tempo real, fornecendo ao
público todos os elementos necessários à estruturação de uma opinião. É a mídia que
possibilita e determina muitas vezes ações sociais. Ao observarmos a aplicação teórica do
modelo funcionalista proposto por LASWELL (apud BARBERO, 2003, p.143) percebemos a
120
onipotência dos meios comunicacionais recaírem sobre a ideologia, tornando-se sujeito e
objeto dos dispositivos totalizadores do discurso.
Deste modo, deve-se pensar as mídias como arma ideológica capaz de homogeneizar
a sociedade e facilitar a manipulação, ou seja, a maior ou menor efetividade dos Estados
depende das diferentes formas de relações que estabelecem com a sociedade.
Segundo BARBERO (2003, p. 155), isto resulta na ―esquizofrenia traduzida numa
concepção instrumentalista dos meios de comunicação, concepção esta que os privou de
densidade cultural e materialidade institucional, convertendo-os em meras ferramentas de
ação ideológica‖. Os ataques do PCC noticiados em maio de 2006, representam claramente o
pensamento do autor, onde foi pulverizada a ideologia do medo. A falta de percepção dos
possíveis efeitos de uma comunicação do medo gerou pânico institucionalizado.
Por um lado, é importante observarmos que parcela da mídia sedenta por informações
trágicas, mais interessadas em índices de audiência do que na compreensão dos motivos e da
busca de soluções dos problemas, difunde detalhadamente a notícia da morte, fazendo com
que esta ressoe por todos os lados. Nossa crítica recaiu sobre a cobertura da grande mídia nos
ataques do PCC no dia 15 de maio, uma vez que em nenhum momento ela se aprofunda nas
causas e nos fatores que motivaram a paralisação do Estado.
4.1 Personagens do medo
Ao buscar decifrar como a comunicação do medo se constrói e se processa atualidade
e, em particular, no período dos ataques do PCC em maio de 2006, isso nos leva a identificar
um conjunto de personagens que se envolveram com o evento. Esses personagens, atores
protagonistas e coadjuvantes do teatro real, representam a base desse estudo.
A entrevista será exposta na ordem cronológica em que se sucederam os ataques.
Serão destacados alguns pontos considerados relevantes para a reflexão da pesquisa neste
momento histórico. São fragmentos que apontam para um fenômeno singular: ―Porque o
fenômeno singular encerra em si toda a sociedade; a micrologia e a mediação constituem
contrapontos mútuos através da totalidade‖ (ADORNO, 1980, p. 237). Apoiado nessa
afirmação iniciar-se a o delineamento de um percurso, ou melhor, dos fragmentos que
indiquem a possibilidade de um trabalho de pesquisa empírica, com personagens diretamente
envolvidos no fenômeno analisado.
A proposta desta pesquisa justifica-se pelo fenômeno comunicacional que o PCC se
transformou, ao ―compreender visões do mundo diferentes da dominante, sancionada e
reforçada por todo aparelho institucional‖ (VELHO, 1981, p. 102). Pretende desnaturalizar
121
conceitos enraizados no imaginário social e que, na realidade atual, constitui um desafio
muito complexo, mas mobilizante. Nesse sentido, é extremamente importante diversificar e
aprofundar os estudos sobre o PCC e o papel dos meios de comunicação na construção da
informação, o que reforça os estigmas sobre o medo. Considerando, como afirma Goffman
(2000, p. 15), que o indivíduo estigmatizado acaba por incorporar as idéias e valores dos que
estigamatizam, adquirindo assim, modelos de identidade que outros aplicam a ele, os cuidados
devem ser redobrados.
Diante disso, a presente pesquisa permiti analisar outras visões além do que foi,
insistentemente, noticiado pelos meios de comunicação de massa, uma vez que as razões
impulsionadoras dos ataques não foi esclarecida. Procurou-se, na medida do possível,
ultrapassar os obstáculos que surgem a cada instante no caminho, e as constantes alterações
desses caminhos cheios de armadilhas e encruzilhadas. Instantes marcados por avanços e
recuos diante da realidade. Em meio a esses vários caminhos, se encaixa o pensamento de
Fefferman (2006, p. 100), ―o medo e a necessidade de não desistir são os mais presentes e o
caminho a ser trilhado surge como um labirinto‖. A preocupação maior deste trabalho é
desvendar a origem de uma parte de nossos medos.
Com a intenção em aumentar o grau de conhecimento do fenômeno estudado, a
metodologia teve como objetivo levantar a bibliografia existente, bem como aplicar uma
pesquisa qualitativa para a coleta de informações necessárias as respostas do problema
evidenciado. Considerando que, segundo Minayo (1998, p. 33), a pesquisa qualitativa lida
com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que vale a
um olhar mais complexo sobre relações e processos que não podem ser minimizados à
operacionalização de variáveis. Duarte (2005, p. 62) afirma que entre as principais vantagens
da abordagem qualitativa está na flexibilidade de permitir ao informante definir os termos da
resposta e ao entrevistador ajustar livremente as perguntas, explorando o assunto na busca de
informações, percepções e experiências de forma estruturada.
As questões até então apresentadas determinam o ponto de ligação entre a escolha do
método e a pesquisa propriamente dita. É necessário ainda que se construa o próprio
conhecimento à luz dos traços da realidade que se observa, na qual o pesquisador tem a
responsabilidade de elaborar uma soma de conceitos para explicar, compreender e dar
significado aos fenômenos estudados. Dencker & Da Via (2001, p. 13) consideram:
[...] a experiência empírica pode ser reproduzida, mas não a interpretação que a ela
atribuímos, pois a interpretação não deriva da evidência empírica e sim de idéias
subjetivas e particulares que podem ser discutidas, aceitas ou contestadas. Em última
122
instância, é a reflexão que responde pela construção dos conceitos e não a evidência
empírica em si.
Quanto aos instrumentos de pesquisa, foram constituídas duas formas que se
complementam: a pesquisa documental, e análise de dados qualitativos, a partir de entrevistas
estruturadas. Com base nesses instrumentos, a pesquisa permite entender o PCC como
organização, sua ideologia e o papel da comunicação em sua estrutura. Em seguida, foi
analisada a construção da informação pelos meios de comunicação de massa.
As Entrevistas Estruturadas foram baseadas em um roteiro de perguntas, sendo a
primeira parte referente a dados pessoais de identificação, tipo de trabalho realizado em São
Paulo e, uma segunda parte, sobre diagnóstico dos ataques do PCC no dia 15 de maio de
2006, que contou com perguntas abertas. Pretendeu-se entrevistar pessoas atuantes na
sociedade e, com papéis distintos, são elas: representantes religiosos, representantes políticos,
representantes do governo, representantes da mídia e cidadãos comuns. Os sujeitos da
pesquisa serão escolhidos intencionalmente, a partir de critérios entendidos como relevantes e
que garantam a sua representatividade. Busca-se aliar intencionalidade e representatividade de
um lado e, de outro, a possibilidade de acesso à realização das entrevistas. Para tanto, foi
necessário criar o que denominamos de rede de contatos, por meio de pessoas conhecidas, que
deram credibilidade e, sobretudo, demonstraram confiança em expor suas opiniões sobre o
assunto. Segundo Fefferman (2006, p. 104) ―O entrevistado é um protagonista que possui
identidade, dinamismo e história. Seus atos são dotados de intenções e significações na
relação dialética constante de sua realidade de vida‖. As entrevistas foram realizadas em
locais escolhidos pelos entrevistados, nos horários e dias estipulados. Ao longo do trabalho,
trataremos os nossos sujeitos como personagens, visto que cada um, a sua maneira, assume
papéis diferenciados e múltiplos na discussão da comunicação e do medo. Os personagens
entrevistadas não serão identificadas no trabalho em decorrência das informações expressas,
mesmo por se tratar de uma dissertação de mestrado, o conteúdo exige cuidado ao referenciar
o Primeiro Comando da Capital. Dessa forma as fontes serão classificadas como personagens
1, 2, 3, 4 e 5. Embora, apoiando-se em um roteiro geral, as entrevistas foram realizadas
seguindo a sua própria dinâmica. O roteiro se configurou como um elemento norteador,
considerando a temática, a situação da entrevista e a necessidade de garantir profundidade em
alguns temas centrais da pesquisa.
Para tanto, em um primeiro momento, foi utilizada a Pesquisa Documental com base
na cartilha usada pelos integrantes do PCC e, fornecida pela Pastoral Carcerária. O material
não foi anexado ao trabalho em respeito à solicitação feita por seus fornecedores. A cartilha
123
possui 21 páginas escritas à mão, divididas em 40 itens. O que chama a atenção ao ler a
cartilha é a forma como esta estruturada e a utilização, em alguns momentos, de vocabulário
rebuscado. Isso acaba por trazer o primeiro questionamento a respeito de sua confecção,
mesmo o documento estando carregado de erros gramaticais e algumas gírias, pois é notório
certo grau de profissionalismo em sua construção. Sem desmerecer a competência dos
integrantes do PCC, basta leitura atenta para perceber que a cartilha foi, provavelmente,
encomendada a um ou grupo de profissionais. Durante a entrevista o Personagem 2, foi dito o
seguinte:
―Muitas coisas que dizem que o Marcola escreve, não são dele, foi à assessoria da facção. Um fato
recente aconteceu durante a rebelião de um presídio super controlado. Dois dias depois, tive informação
que estavam reunidos 50 advogados pagos pelo crime organizado para prestarem seus serviços, à
disposição durante a tarde inteira, colaborando e discutindo. Depois é atribuído a uma pessoa o que sai
naquela reunião dos 50 advogados? Ela assina depois o que foi feito na reunião‖.
A cartilha nos parece um produto comprado pelo PCC. O conteúdo se resume a um
discurso motivador, que busca educar, não só os presos como também seus familiares, para
condutas específicas da organização. Logo no início é solicitado ao detento que converse de
alguma forma sobre o que aprendeu na cartilha, almejando em futuro próximo, até mesmo
palestrar nos dias de visita. A intenção em transformar o preso em agente disseminador da
ideologia da facção, é clara. Está na cartilha que ―a parte educativa é fundamental e em
primeiro passo, vamos explorá-la até mesmo para ter um entendimento melhor sobre nossa
luta‖ (p. 1). A luta expressa na cartilha corresponde à busca por melhores condições no
sistema carcerário, o que eles chamam de direito do preso.
Segundo a cartilha, a consciência por essa luta se inicia após 1992, com a morte de
111 presos na rebelião do Presídio do Carandiru em São Paulo. A invasão da polícia que
culminou nessas mortes é chamada de massacre, bárbara, cruel e covarde. Além disso é
descrito o ambiente das prisões antes do PCC.
―Alei do mais forte, quem pode mais chora menos: estupros, assaltos, extorções (extorsões), mortes sem
explicações, espancamentos, agressões e guerras entre quadrilhas. A maior parte destes abusos,
conflitos e covardias era gerado em conseqüência da droga (crack), mas o principal motivo mesmo era a
ignorância, a falta de conscientização da luta. Hoje, através da paz (no cárcere-crime), as facas se
transformaram em gancho para a fuga (o crack) foi expressamente proibido nas prisões, os presos
(malandrões) que cometiam os assaltos, extorsões, estupros e conflitos foram assassinados e outros
mandados para a cadeia de seguro e estão fora do crime que corre pelo certo (jurados de morte). Essa
foi uma das nossas primeiras revoluções no crime e em pró de todos (p.2 e 3)‖.
Por meio desse discurso o PCC seduz o preso. O objeto de maior impacto retórico são
as ações para o bem de todos, sem distinção. A inclusão do conceito de ―igualdade‖ foi
124
agregado ao lema da facção: P (paz), J(justiça), L(liberdade) e I (igualdade). Essa igualdade
pregada junto aos presos, segundo a cartilha se estende à família. No entanto, existem muitos
outros fatores que atraem o preso. Segundo o Personagem 2,
―No estado de São Paulo existem mais 12 facções atuando. Eu creio que se forma uma ideologia até
como uma necessidade de manter os membros, até de cultuá-los em volta de uma liderança. Por
exemplo, as organizações aqui do Estado de São Paulo criaram a partir de uma necessidade de se impor
perante o Estado. Em termos da violência sofrida, do abandono e da forma de organização entre eles.
Então, as organizações se estruturaram a partir do narcotráfico, do seqüestro, do crime; para
financeiramente se ter advogados, para se ter remédios, pra quem era doente e não tinha atendimento à
saúde, e também aos familiares, para poder acompanhar e também ter o seu ―Jumbo‖, que é aquele
alimento que a família manda para a pessoa presa. Criou-se organizações internas que evitam hoje as
briga esporádica, a morte, os abusos também. Abuso em termo sexual, que você é proibido no presídio.
Toda a droga hoje que entra nas cadeias são altamente controladas. Por exemplo, homens pertencentes à
alguma facção é proibido hoje de usar o crack, que cria um distúrbio comportamental muito forte, isso
dentro das unidades. Mas também existe a mesma ordem hoje, a mesma organização, fora dos presídios,
atuante nos bairros. Hoje, a maioria dos bairros da cidade de São Paulo, e também do interior do Estado
são determinadas pelo grupo que dá as ordens de comportamento. A questão da violência no Estado
caiu bastante, porque há um controle rigoroso do crime organizado. Eles determinam onde pode ter
briga, aonde pode ter morte, tudo por uma ordem de cima. A polícia e o Estado, de certa forma, atuam
também, mas de uma maneira diferente. Quando você chega preso hoje em qualquer unidade, é
obrigado a tomar um banho todo dia, fazer a barba, escovar os dentes. O Estado não fornece esse
material, sabonete, escova de dente, pasta de dente, papel higiênico. Você é obrigado pela lei, mas você
não tem o material. A facção sempre dá gratuitamente para você. Você tem a sua esposa lá fora, com as
crianças. Precisam de cesta básica. O Estado não vai dar. A facção vai lá e oferece. Bonifica toda a sua
família. Então, primeiro é pelas necessidades materiais que se vê obrigado a entrar na facção. Segundo,
tem também a sedução, realmente do fascismo do consumo, para ter coisas melhores. Eu digo que essa
é uma parcela muito inferior, a maioria entra pelas necessidades econômicas.
A veracidade desse contexto está presente também, na entrevista do Personagem 4,
que faz a seguinte colocação:
―No início do PCC existia a idéia de ser uma espécie de sindicato, que reunisse os presos para brigarem
pelos seus direitos. Fui convidada para acompanhar a CPI do sistema carcerário, e trabalhei durante oito
meses com os deputados da Câmara Federal, por todos os presídios do Brasil. Pude ver como o discurso
do PCC é influente dentro dessas cadeias. A ideologia do começo era aquela: ‗Vamos formar um
sindicato, que funcione, onde a gente possa reivindicar nossos direitos, onde possamos gritar pro mundo
a mentira ao afirmarem que gastam R$1600,00 com a gente por mês e não gastam. Roubam-nos, alijam,
dão banho gelado para não gastar luz, e muito mais‘. Era um discurso, que com muita facilidade,
cooptou pessoas. Isso porque ninguém ouve os presos, infelizmente. Algum tempo atrás produzi e
chamei o meu vídeo de ‗O grito das prisões‘. Para a classe média, o preso tem que sofrer, se danar
mesmo. Não precisa comer e ter atendimento médico, tem que ser maltratado. Isso é uma realidade hoje
no Brasil. O preso é tratado como bicho e as pessoas assim gostam que seja assim, então o PCC
apareceu com um discurso dizendo: ‗Olha, isso tem que acabar, só vamos nos recuperar se esse dinheiro
for realmente destinado a nós. A gente come merda, vive no meio do lixo‘. Esse discurso cooptou todo
mundo no sentido de: ‗Vamos nos unir e gritar‘. Foi muito fácil do PCC trazer muitas pessoas para o
seu lado. Não demorou muito, é lógico, para esse discurso durar uns três anos, de 93 até 96. A partir daí
o PCC percebeu a oportunidade de se transformar em uma grande organização do crime. Os líderes
viram que tinham tremenda força e passaram então a comandar o trafico de drogas. Por meio do
discurso chegaram ao poder. Esse poder foi instituído por meio de violência dentro das cadeias.
Surgiram os tribunais, as penas de morte e, principalmente, o trafico de drogas, o que representa o
grande negócio do PCC hoje‖.
125
Isso nos mostra que o PCC, como todas as facções nascidas nos presídios,
transformaram as dificuldades em oportunidades de se estruturarem. Com base nisso, a
cartilha do PCC faz jus, no combate às injustiças sofridas pelo preso, na qual a luta é baseada
naquilo que no crime é considerado certo e justo. Tratar o crime como algo que seja, ou exista
noção de certo e errado, justiça e injustiça; é criar um novo padrão moral. O que se percebe
são formas de aproximação ao preso, onde se minimiza sua pena justificando-a em um
sistema falido. ―Um exército sem cultura, e um exército ignorante, é um exército ignorante
não pode vencer o inimigo‖ (p. 7). Com isso temos uma situação de pura alienação, não
restrita apenas ao preso, mas principalmente a sua família, pois são eles o suporte de
sustentação desse indivíduo. Para a personagem 5,
―Todos os membros do PCC vêm de famílias desestruturadas. Então, normalmente não são famílias
tradicionais, do tipo que tem um pai, mãe, irmãos e uma casa por exemplo. Quando sabem quem é o
pai, em 70% dos casos ele não vive com a família ou já é falecido. Em muitos casos, eles não sabem
quem é o pai. Muitos têm na figura da mãe, a única responsável. A mãe, até por essa carga maior que a
mulher é obrigada nessa situação a suportar, acaba indo para o alcoolismo, depressão, ou para
prostituição. Muitas vezes a mulher também não convive com os filhos. Praticamente os filhos se criam
sozinhos. Nessas condições, acabam adotando como estrutura familiar o PCC‖.
Em complemento a isso, a personagem 4 diz que,
―O preso hoje, dentro da cadeia, é tratado como lixo pelo Estado. Toma banho frio para não gastar luz,
não tem sabonete, direito ao mínimo de higiene, entre outras coisas. Essa revolta também passa para a
família, porque ela acompanha essa realidade que acontece lá dentro. Uma parte da raiva que o preso
tem, passa para a mulher dele, o filho e a mãe. De ver como é que a coisa funciona, como o preso é
roubado, até comida, revolta toda a família. Se alguém não levar o cobertor, ele morre de frio. Se não
levar o colchão, ele dorme no cimento. O Estado diz que gasta R$1600,00 com o preso, que segundo
eles é muito bem tratado obrigado. Isso é uma inverdade. Você já tem essa consciência da família.
Nesse meio surge um grupo que se compromete a melhorar isso, claro que a mulher do preso vai adorar
a idéia. Existe o lado paternalista do PCC. Aquela historia de entregar cesta básica, é verdade. Alugar
ônibus para levar as mulheres na cadeia, é verdade. Quanto custa uma passagem pra 400, 600 km? A
filiação do PCC está toda no interior de São Paulo, à 300, 400, 500, 600 km daqui. São em grande
maioria pobres. As pessoas não dispõem do dinheiro pra visitar o marido todo o final de semana. O
PCC é quem fornece a passagem para poder visitar. O PCC fornece a condução. Ao sair da Barra
Funda, é o PCC quem paga. Todo esse lado do PCC favorece os familiares. Eles fornecem cesta básica,
promovem quermesse na periferia, fazem fogueirinha de São João, até festa de natal com direito a
distribuição de brinquedos. O familiar não iria buscar uma facção que promete melhorar a vida do
marido dela dentro da cadeia apenas, eles melhoram a vida dela aqui fora também. Por isso essa grande
participação das mulheres.
As famílias dos presos constituem o elemento essencial de sobrevivência do PCC. O
sofrimento compartilhando entre eles, como a renda que garante a sustentabilidade da família,
fortalece o vinculo de ajuda mútua, criando assim, um mal consentido e apoiado. Muitos
familiares, principalmente as mães de detentos, sonham com a possibilidade de seus filhos
126
saírem do crime para viver uma vida ―normal‖. Existe, na própria cartilha, um falso indicativo
para essa possibilidade que convence muitos: a saída do crime mas não da facção.
A descrição desse desejo é associado à idéia da implementação de cursos
profissionalizantes que capacitem o preso, dêem a eles uma profissão. O que existe hoje, com
base na cartilha, é uma exploração de mão-de-obra do preso. Não existe um programa de
reabilitação profissional que traga trabalho ao detento, principalmente quando este sai da
prisão. Apenas com a criação de um programa que permite essa capacitação, aliado a um
sistema carcerário ―humanizado‖ e sistema judiciário mais atuante, será possível fornecer os
subsídios básicos para que o preso saia do crime. Incoerente a esse discurso, é que em
nenhum momento se fala na autonomia do mesmo em deixar a facção. O que integrantes e
familiares não sabem, ou custam a acreditar, é que uma vez membro do PCC apenas a morte
rompe esse elo. Em relato, o Personagem 2 ratifica essa afirmação.
―Eu estive pelo mês de junho, num presídio aqui da capital, que tinham matado na noite anterior, um
grande líder do PCC. No mesmo local, havia dois membros que também iriam ser mortos e
conseguiram escapar e pedir proteção. Eu falei com os dois, eles disseram pra mim assim abertamente:
―Pra nós não tem mais vida aqui no Estado de São Paulo, quer seja dentro dos presídios em convivência
ou mesmo na rua. Só temos vida se conseguirmos sair e desaparecer pelo mundo afora‖, mas fora do
Estado. Há um discurso de que muitas pessoas já conseguiram sair, mas isso aí talvez condicionado a
algumas ações externas, pois no presídio hoje, é muito difícil alguém que conhecia uma posição clara,
grande, dizer que tem vida agora independente deles‖.
Ao contrário do sentido motivador expresso na cartilha, o medo parece ser o agente
principal de aculturamento do PCC. Neste sentido, a Personagem 1 afirma que,
―[...] a partir do momento que a pessoa entra nesse mundo, o medo tem uma conotação muito diferente
do nosso medo, é algo muito diferente, não tem comparação. Nós não temos condições nem capacidade
de pegar uma arma e andar por aí com ela. Eles, já estão desprendidos desse medo, dessa precaução‖.
A personagem 4 complementa essa idéia.
―Quando o integrante do PCC é aceito na facção, e não é só o PCC acontece em outras facções menores
em São Paulo também, ele se alia aos idéias instituídos, sabe as regra e como tudo funciona. Está no
estatuto todas as regra, trair é morrer. Fidelidade é regra fundamental, você não pode quebrar, se você
quebrar morre. Isso funciona ao contrário, pois a gente teme essa morte como o final de qualquer coisa,
para eles não, o cara sabe que vai morrer se for descoberto numa atitude que a facção considere uma
traição. Ele acha isso bacana, pois caso contrário todo mundo iria folgar, não funcionaria, na cabeça
deles é assim. Se não houvesse esse tipo de castigo, talvez não houvesse esse tipo de poder e de ideal.
Tanto que dos oito lideres fundadores do PCC, só está vivo o Geléia, os outros sete morreram de forma
violenta. Muitos mortos pelo próprio partido, que é assim que eles chamam. A morte faz parte do
negocio, do sistema, de como as coisas funcionam.‖
127
Não se pode deixar de mencionar que medo gerado internamente transcende à
organização. Isso é evidente em comunidades onde o PCC atua. Independente dos efeitos do
medo gerados pela facção é de salientar que a morte para eles possui outra conotação. A
morte para o PCC possui critérios, conforme estabelecido no estatuto. Para a Personagem 5 ―a
morte não é problema para uma organização criminosa é apenas um meio. Isso a gente vê
claramente, as pessoas são uma espécie de mercadoria‖. Neste sentido a vida pouco importa,
pois a perspectiva futura não existe. O que eles ganharem, sem antes morrer, é considerado
lucro. O risco é conhecido e assumido, portanto o medo transforma-se em arma de persuasão.
―[...] a principal ferramenta deles é realmente a cultura do medo. Eles compensam isso, de alguma
forma, com benefícios. A partir do momento que eles obrigam um cidadão a obedecer um toque de
recolher, o cidadão se recolhe, contra vontade, mas ele se recolhe. Ele sabe que não pode botar o
narizinho pra fora do lugar. Mas também sabe que se amanhã, ele precisar ir a algum lugar, ele vai pedir
ajuda, ou se o filho ficar doente no meio da noite, ele vai ligar na casa de um fulano, e o fulano vai
arrumar um carro para levar o menino para o hospital. Se a sua mãe está doente, o fulano vai arrumar
um remédio para sua mãe. O PCC exerce esse papel‖ (Personagem 5).
No âmbito do PCC, o medo é vencido pelo sacrifício. O senso de dever instituído pelo
discurso persuasivo da luta por direitos, por regras rígidas e violentas, transforma seus
integrantes em membros controlados, previsíveis e de fácil substituição, principio básico do
taylorismo. A instrução passada pela cartilha no entanto, prega um idealismo participativo
sem objetivo aparente.
―Sem nos importarmos com sacrifícios, nossa luta, infelizmente será inevitável, porque a existência da
guerra e da luta pelo(s) nossos direitos e metas também teremos percas (perdas) e baixas irreparáveis
como ocorria em combates e outras correrias dos nossos opressores, mas o sacrifício pela consciência
de nossa luta e pela causa e um sacrifício que tem um significado, o significado de tudo que tem um
significado, o significado de tudo que lutamos e acreditamos e esse significado ao sacrifício é a mais
bela prova de amor, lealdade, coragem e crença pela luta‖.
A falta de sentido pouco importa para a subliminaridade do discurso, ou seja,
acreditam no que a facção acreditar, independente dos efeitos que isso possa gerar, essa vai
ser a maior demonstração de comprometimento para conseguir status. Esse discurso se volta a
conscientização e propagação ideológica por meio do instrumento melhor administrado pelo
PCC: a comunicação. A evidencia disso se comprova pela ampla explanação apresentada na
cartilha.
―Como fazer e lutar para superarmos nossas dificuldades e conquistarmos nossos direitos de presos (?).
Usando a mesma arma que eles usam contra nós, a propaganda da divulgação a (na) mídia! Vamos
massissamente (maciçamente) nos expressar a sociedade, mostrar esse lado esquecido e cenários de
tantas injustiças e violência. A arma mais poderosa que temos é através de nossos familiares que nos
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apóiam, sempre incondicionalmente porque também, são conhecedores e vítimas de todo esse (s)
problemas. Precisamos fazer todos entender que não somos esses monstros que a mídia divulga,
urgentemente deixar todos cientes que somos usados e que, o que pretendemos conquistamos os nossos
direitos e sermos tratados como seres humanos. Por isso precisamos compreender também para (como)
essas propagandas e divulgações surgirem (surtirem) efeito temos que nos expressar corretamente para
que a, sociedade entenda nossos motivos e nos apõem cobrando das autoridades e do governo
providências e o fim desse sistema carcerário falido e opressivo. Se todos nós começarmos acompanhar
os programas de televisão educativos, informais, culturais e de debates conseguimos vários nomes e
endereços (a família pode ajudar) para que possamos enviar cartas com texto explicando nossos motivos
e o que queremos contar e consciente é só seguir esta cartilha, como base a partir disto a criatividade é
infinita, mas seguindo sempre a linha da mensagem positiva, pois o que pretendemos é nossos cartas
sejam divulgadas e vistas pela sociedade. Podemos escrever para várias personalidades, artistas e
escritores, jornalistas, jogadores, cantores, médicos, sociólogos, psicólogos, empresários, faculdades e
escola em geral órgãos internacionais, consulados e embaixadas de países democráticos. E não se
cansem de enviá-las, escrevam o máximo que puderem, todas os dias e para todos os lugares. Agora
temos também a opção da propaganda e divulgação através de informações e textos por panfletos e
faixas escritos para ser distribuídos nas cidades por todas as partes locais principalmente de grande
movimentação. Mas nunca se esqueçam que as mensagens em panfletos tem que ser educativas e
usando o que a cartilha está ensinando (neste caso) da distribuição dos panfletos tomar cuidado que
pode ser considerado crime‖.
A intenção de se utilizar da mídia como instrumento de disseminação de suas idéias
pelo PCC, não é recente. O PCC se utiliza desse meio para posteriormente legitimar suas
ações. Chamar a atenção é pouco, a facção quer ter voz, força política para efetivar seus
objetivos. A Personagem 4 confirma essa prática.
―Em 1996, consegui entrar em contato com o comando da organização: o Cesinha – César Augusto
Roris e o Geléia –José Márcio Felício. Comecei a ter contato telefônico, por carta e tal. Eles foram
abrindo o que era o PCC, mandaram um estatuto, e foi aí que fiz a primeira reportagem, contando o que
estava acontecendo por trás das grades. Eu nunca fui amiga de bandido, como muitos costumam dizer.
Eu e outros jornalistas somos muito criticados por essa relação de receber telefonema do PCC, ter
contato e conversar. Geralmente as experiências são transformadas em matéria. Certo dia me liga um
preso: ―Ó, o somos do PCC aqui de tal cadeia. O negócio é o seguinte cara, nós tamo trancado aqui
dentro. Os caras soldaram a porta e largaram a gente. Tão jogando comida pelo teto, tamo aqui no meio
da merda, da sujeira, da imundice, porque o diretor decidiu que é assim que ele vai dar castigo pra
gente‖. Óbvio, que eu estava numa emissora. Falei para o meu chefe: ―Meu, vamos pegar o helicóptero
e sobrevoar essa porra para ver se é isso mesmo.‖ Sobrevoamos e constatamos que isso realmente era
verdade. Veio gente da ONU para cá, por causa desse episódio. Dois presos morreram e os cadáveres
estavam ali apodrecendo, gente machucada. Terminou a pena de um preso que pesava cento e poucos
quilos e eles amarraram o preso e içaram lá de cima. Quer dizer, o que estava acontecendo lá era
bárbaro. O PCC denunciou, a gente foi e constatou que era verdadeiro, demos a notícia. Daí o Estado
foi lá e resolveu. Pediu desculpas para o pessoal dos Direitos Humanos e demitiu o diretor. Eu fiz a
minha função de jornalista. Recebo uma informação, chequei e mostrei o que era a realidade. Se foi o
PCC que avisou, a mulher do preso, ou o carcereiro, pra mim não faz diferença. Faz diferença que
aquilo lá era verdadeiro e bárbaro.‖
Além divulgarem os maus tratos sofridos nos presídios, a mídia também é usada para
mostrar o poder da facção. Tornar-se conhecido é um dos princípios escamoteados pelo PCC.
Por mais que o discurso seja proporcionar melhores condições aos presos, a vaidade em
aparecer, ser conhecido também é grande. Os destaques dados pela mídia em seqüestros
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roubos e assassinatos trazem status aos participantes desses crimes. Ações de alto risco
merecem prestígio dentro do PCC. Para o Personagem 2,
―A imprensa jogou o medo. Com isso, eles expõem-se a venda da droga, do comércio. E o impacto, é
um impacto na própria sociedade. A pessoa que sai na mídia, que cometeu um crime, ela é recebida com
respeito dentro do presídio, a mídia influenciou muito. Quanto mais status a mídia dá para a pessoa.
Quanto mais aparece, mais respeito ela se torna depois de preso. Se ela quisesse cometer um crime,
deveriam ignorar, e não fortalecer a pessoa. Alguns países do mundo, não permitem que se exponha,
para não fortalecer. Veja um caso que acompanhei, em visita a um presídio vi um jovem recém
chegado, em pouco tempo já era o líder da cela, o chamado ‗faxinas‘. Perguntei como é que ele chegou
tão rápido a um cargo de liderança? Ele respondeu, ‗eu assisti e me vi na televisão várias vezes, todo
mundo me viu na televisão!‘ Então já se deu conta da sua importância‖.
O Personagem 4 complementa,
―Uma coisa que aconteceu no PCC muito impressionante é como as mulheres se aliaram a causa. Antes
você tinha as mulheres de presos, que visitavam o marido, faziam sexo e iam embora. Hoje não, essas
mulheres são partidárias do PCC, trabalham para o PCC. A mulher do Marcola, do Geléia, do Césinha,
são mulheres que trabalharam pro PCC. Segundo elas: ―Eu sou a primeira dama do PCC com muito
orgulho‖, talvez mais do que a mulher do Lula. Talvez a mulher do Lula não tenha sentido tanto
orgulho em ser primeira dama de um líder, como sente a primeira dama do PCC. O respeito que ela tem
dentro dessa comunidade é uma coisa impressionante. As mulheres do PCC, também contribuíram
muito para essa comunicação de dentro para fora da cadeia, ou de uma cadeia para outra . O PCC é
atrevido, possui até página na internet, isso é fantástico. Sabe quem fez? Um preso no computador de
um diretor na cadeia. Eles sempre tiveram um atrevimento maior, uma organização maior, a ponto de
fazer uma página na internet. Conheça o PCC, saiba o que a gente pensa, veja o que foi publicado sobre
a gente. Um site como eu tenho o meu. A polícia acabou tirando do ar somente dois anos depois que ele
tava funcionando‖.
Nota-se que o PCC conhece muito bem a mídia, como no caso do jornalista da Rede
Globo de Televisão, seqüestrado no dia 12 de agosto de 2006. Segundo o site Terra Notícias,
publicado no dia 14 de agosto de 2006, o repórter permaneceu em cativeiro por cerca de 40
horas e, durante esse período, o PCC ameaçava matá-lo caso a Globo não exibisse vídeo da
facção criminosa com críticas ao sistema prisional paulista. A emissora atendeu a exigência
na madrugada de domingo e veiculou o material no Estado de São Paulo. Trechos do vídeo
também foram exibidos pelo programa Fantástico, na noite de domingo. O auxiliar técnico
Alexandre Calado, libertado no sábado dia 13, foi incumbido pelo PCC de entregar à Globo a
cópia do vídeo. O material, com 3 minutos e 26 segundos de duração, trazia um homem
encapuzado criticando o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que prevê o isolamento dos
detentos. Segundo o site, a polícia de São Paulo informou que o SBT, semanas antes, enviou
uma cópia do mesmo vídeo ao Ministério Público Estadual, depois de o ter recebido pelos
correios e se negado a divulgá-lo, como pedia uma carta anônima.
130
Diferente de organizações criminosas tradicionais que tem como premissa ficar oculta
à sociedade, o PCC trabalha ao contrário, se aproveita do sensacionalismo midiático para se
impor junto à população do Estado de São Paulo. A cartilha apenas reforça uma prática
institucionaliza desde 1996, quando efetivamente se pode comprovar a existência da
organização.
No PCC a comunicação possui estrutura muito bem consolidada, que permite a facção
além de estabelecer vínculo com presos de outros presídios, operar no controle e expansão das
atividades externas. Por mais que as autoridades tentem bloquear os canais de comunicação
do PCC, novos meios são criados. Durante as entrevistas foi perceptível que o PCC possui
uma cultura de comunicação, ou seja, tudo que envolva trocas de informações, criação de
canais, representação das lideranças – porta-vozes ou relações públicas, seja junto à mídia ou
para passar e receber informações, existe na facção. O que chamou a atenção foi a contratação
de mão-de-obra especializada para o desenvolvimento de projetos estratégicos.
―A estratégia começou com um canadense, que era engenheiro, e estava preso na Casa de Detenção. Foi
aí que o PCC, bem esperto, chegou ao cara. Foi ele o responsável pelo desenho do primeiro PABX do
PCC. Todas as instruções foi dada por ele, o que deveria ser comprado, como é que funcionava. Antes
existia uma telefonista, que recebia a ligação, transferia e organizava as conferências, hoje é bem mais
sofisticado. A polícia vive estourando centrais telefônicas do PCC, e eles abrem outra, e outra e outra.
Essas centrais de telefonia são o coração da comunicação do PCC. As telefonistas são contratadas e
ganham para isso. Em geral são mulheres de presos que recebem salário. O trabalho consiste em receber
ligações, passar de uma cadeia para outra, passar ligação do preso para o parente, do preso para outra
cadeia, entre outras. Assim a comunicação vai funcionando, de forma organizada sim. Partiu de um
desenho do canadense pra crescer, e hoje o PCC tem centrais telefônicas no Brasil inteiro‖ (Personagem
4).
Em decorrência da proliferação dessas centrais, o PCC passou a ousar cada vez mais.
O sistema de comunicação, portanto, tem como base o telefone celular, maior responsável
pela manutenção e ampliação da abrangência da facção. Segundo o Personagem 4,
―Os telefones celulares foram à base da primeira rebelião que parou 30 presídios e, dos ataques de 2006.
Hoje eles estão usando muito o aparelho nextel, porque a polícia tem mais dificuldade em fazer a
escuta. Os equipamentos de escuta que a policia possui hoje, ―o guardião‖, é usado para telefones
celulares ou fixos, não servem para comunicação de nextel. Hoje nas cadeias por meio desse aparelho,
você fala com o Rio de Janeiro, Paraná, Espírito Santo, tudo por rádio. Agora, com certeza o celular é a
maior arma do crime organizado. Seja no Comando Vermelho ou PCC, é através deles que você
consegue ordenar um crime de dentro da prisão, ordenar o tráfico de drogas, ordenarem ataques entre
outras coisas. É o principal meio de comunicação. Os advogados pagos pelo PCC também são meio de
comunicação, levam e trazem informações dos criminosos. Vários foram presos, levavam armas,
drogas, bilhetes e recados.‖ (Personagem 4).
Outro instrumento de comunicação também utilizado são os códigos lingüísticos.
131
―Eles têm uma rede de comunicação eficiente, codificada e que se utiliza de elementos internos e
externos. É criado um código, por exemplo, a expressão: ―eu vou dar um salve‖. O ―salve‖ é um código,
e não uma expressão comum. Com isso eles vão criando uma linguagem própria, codificada, e essa
comunicação, é feita boca a boca entre eles e levada para fora dos presídios, tanto pelas visitas, quanto
pelos advogados. Os advogados acabam se envolvendo com o crime. Muitos deles são colocados ou
formados pelo crime. A gente observa esse fenômeno também. Eles pegam garotos que parecem ter
uma inteligência, um pouquinho superior aos outros, e falam: ―Olha, você Zezinho, você não vai ser
―aviãozinho‖não, eu vou te botar pra estudar, você vai ser doutor‖. Proporcionam estudo ao garoto,
livros, formam o garoto advogado para trabalhar pro tráfico. Ele se torna advogado do tráfico. Isso é um
fenômeno que acontece mesmo. Eles vão colocando não só advogados, mas policiais, juízes, membros
do ministério publico, por que não? A gente não está imune a esse tipo de envolvimento com o crime,
isso quer dizer, qualquer pessoa. Um simples garoto que vai lá entregar as quentinhas na hora do
almoço, pode ser um disseminador das informações aqui fora‖ (Personagem 5).
Como observa o Personagem 2, ―eles tem um grande tempo pra estudar, pra elaborar, criam
também técnicas de comunicação constantemente novas. A última que eu vi, que me
surpreendeu, é usada em países em guerra, a utilização de códigos de comunicação. Hoje
muito usada em presídios aqui em São Paulo‖. Esse constante aprimoramento não se limita
apenas aos meios, mas também as pessoas.
―Temos dentro da hierarquia, da estrutura, uma pessoa que é responsável pela comunicação. Por
exemplo, toda ordem parte dessa pessoa, para rua, ou mesmo para outros presídios. Então uma pessoa
que é responsável da comunicação possui papel essencial. Ela consulta, vamos supor, quem está a frente
do comando geral nunca fala para a rede interna nem pra rua, passa por ela. A prova disso se deu, assim,
algo bem expressivo, quando houve a negociação dos ataques de maio, no Estado de São Paulo, quando
foi um grupo da Secretaria de Segurança Pública, e o Diretor do Presídio Presidente Bernardes, falar
com o comando. Na hora o comando disse: ‗Eu não me comunico com as pessoas, eu só falo com a
minha família‘. Então, vamos chamar aqui dentro da reunião quem é responsável pela comunicação. A
pessoa veio e participou da reunião também, e pelo celular ligou para as pessoas internamente ou
externa dos presídios‖ (Personagem 2).
Nesse sentido, a Personagem 4 afirma que,
―Na primeira administração, os próprios integrantes do PCC eram seus porta-vozes. Geléia, Cesinha e
Marcola sempre falaram menos. Com a dissolução da cúpula do PCC, um integrante foi considerado o
porta-voz, que estava preso em Salvador. Era o porta-voz oficial, inclusive era o cara que conversava
com a gente, os jornalistas. Ele se chamava Silvério. Era responsável em fazer as cartas dirigidas à
autoridades e jornalistas, ele era um cara muito culto. Você observava citações de Gandhi. Nós
tínhamos paralelamente conversas com o Geléia, Cesinha e Marcola, mas quando era oficial, aviso a
imprensa, era o Silvério quem redigia. Hoje o porta-voz do PCC é o Macarrão. O Macarrão hoje tem
uma visão um pouco mais agressiva, tanto é que está havendo problemas dentro do PCC, porque ele tem
uma visão mais radical do que o Marcola. O Marcola quer que as coisas aconteçam em paz, e ele não
está gostando muito dessa paz. O PCC sempre teve contato com a imprensa, antes era o Silvério, que
morreu, e hoje o Macarrão. O Macarrão que é mais falante, mais atuante, é realmente a pessoa que hoje
filtra, passa os recados, e repassa as ordens que vem do Marcola e do Julinho Carambola‖.
A comunicação no PCC, portanto, não é tratada de forma secundária, mas como fator
primordial de existência da organização. Mesmo diante de toda essa estrutura, é de causar
perplexidade a eficácia do processo comunicativo, que muitas vezes se utilizada de meios
132
simples para a conquista de objetivos complexos. A paralisação de um presídio através de
rebelião possui certa representatividade de organização e controle, no entanto, o que
acompanhamos foi algo inédito, a realização de uma megarrebelião em 78 presídios,
simultaneamente. O sistema de comunicação foi fundamental para o sucesso dessa empreitada
orquestrada pelo PCC. A motivação dos presos, incentivada pelo forte discurso da facção,
criaram um fenômeno nunca visto antes. Dentro deste contexto, a Personagem 5 analisa o
sucesso do sistema comunicativo do PCC,
―Eu acredito que é porque eles exerçam essa comunicação de uma forma impositiva. Você é obrigado
a ouvir essas informações. Talvez pela própria estrutura emocional, ou da educação mesmo deles, em
todos os sentidos. Não é dado a ninguém o direito de duvidar daquela informação, discutir aquela
informação. A partir do momento em que um chefe diz que hoje é pra atacar o mercadinho, não tem
como você não passar essa informação para outra pessoa, nem como falar ‗Mas espera lá, porque nos
vamos atacar? Por que o mercadinho? Por quê? ‘ Não existe um porque, não é dado o direito de
perguntar. De fato, é ordem de quem tem o poder para dar essa ordem, e os outros vão simplesmente
disseminando, porque é uma das obrigações estipuladas‖.
A linguagem do poder institucionalizada pelo PCC é utilizada sempre em nome de
uma verdade superior as práticas do dia-a-dia. A violência então é reproduzida como parte
desta cultura de sobrevivência, ou melhor, de medo. Em nome desse poder constituído, os
integrantes de facção se entregam de corpo e alma, assumindo uma moral estabelecida e
regras que todos sigam. Para este poder de comando, não é admitido respostas e reações.
A violência, portanto, constitui a linguagem enquanto expressão racional, ou seja,
expressão das necessidades da facção, voltada a demarcação dos campos de poder e
dominação através de processos comunicativos de codificação própria. Nesse sentido, é
possível compreender a importância dos meios de comunicação de massa nas estratégias do
PCC. Inicialmente temos a utilização dos medias pra tirar o foco das investigações policiais e
cobrança da opinião pública. Por se tratar de uma organização criminosa, grande parte do
dinheiro arrecadado vem de fora dos presídios: tráfico de drogas, assaltos, seqüestros etc.,
esse lado pouco se conhece. Conforme relata o Personagem 2,
―Hoje a maior renda do crime organizado está fora dos presídios; está ligado a empresários e às pessoas
dos Poderes todos, pois só se pode existir um crime bem organizado em local que tem o apoio do
Judiciário, do Legislativo, pelos policiais do alto escalão, e assim por diante. Então, a investigação quer
dizer que vai até um ponto, quando chega no alto escalão, começa a ficar travada, impedida de avançar.
Um exemplo concreto: porque que no Rio foi fácil de combater o seqüestro? Havia seqüestro de
pequenas pessoas ligadas e iniciantes no crime. O seqüestrado colocava a pessoa na casa da sogra, na
casa da vizinha, logo era identificado. Então o seqüestro se reformulou, passou a ter uma estrutura
econômica e um grupo grande, ou seja, alguém que vai negociar, alguém que vai dar guarda, alguém
que vai comprar as coisas, alguém que vai fazer a comunicação e alguém que comunique os passos à
polícia‖.
133
Ao chamar a atenção da mídia para rebeliões, protestos, ataques isolados à delegacias,
prédios públicos ou postos policiais, automaticamente as notícias recaem sobre esses fatos.
Isso no jargão popular é chamado de ―boi de piranha‖. O PCC sabe que no âmbito jornalístico
os fatos do mundo competem entre si pela preferência dos editores. Como afirma Wainberg
(2005, p. 14), ―graus crescentes de violência têm-se mostrado capazes de aguçar mais
intensamente o paladar dessas corporações sempre desejosas de agregar valor dramático à
crônica diária que faz do mundo‖. Os benefícios advindos com tal prática têm contribuído
muito para o sucesso de diversas transações realizadas pela facção. A distração é uma arma
eficiente neste meio.
Outra estratégia de utilização dos meios de comunicação de massa é a de denunciar as
falhas e abusos existentes no sistema carcerário, conforme já abordado anteriormente. De
qualquer forma, o que vem intrigando toda a sociedade, são as constantes ondas de violência
sem motivos aparente, como nos ataques de maio de 2006. Durante as entrevistas muitas
opiniões se complementaram.
―O que o PCC queria era aparecer. Nada mais foi do que disse um de seus integrantes: ‗Olha, nós vamos
mostrar que o Estado está mentindo, nós vamos mostrar que não é verdade que nós acabamos, nós
vamos mostrar que nós temos poder, nós vamos mostrar que a gente pode parar não 30 presídios, mas
70. A gente vai mostrar tem kamikaze saindo de um monte de buraco em São Paulo e aparecendo para
nos servir‘. O caso da Castelinho estava entalado na garganta deles, queriam vingança, policiais mortos.
Eles consideram a morte de policiais nos ataques uma forma de vingança pelo que aconteceu na
Castelinho. O PCC tinha varias razões, primeiro um Estado que continuava negando seu poder. A
rebelião que parou 30 presídios, tão logo acabou, o Geraldo Alckmin e o então secretário de segurança
pública, deram uma entrevista dizendo que aquilo não tinha sido nada. ‗Ninguém morreu‘. Ninguém
morreu porque o PCC determinou que não era para matar. A rebelião era um aviso, que numa próxima
poderia ser pior. Aquele foi um momento que o governo continuou dizendo: ‗Olha, não existe PCC.
Existe, mas não tem esse poder que a imprensa está dizendo. A organização não é como todo mundo diz
que é. São grupos paralelos que não tem um comando central‘. Enfim, mentiras que o governo contou e
conta a respeito da organização. Naquele momento o PCC queria ser compreendido da seguinte
maneira: ‗Olha, a gente só não quer, como pode sair da cadeia, e vamos mostrar nossa força,
principalmente aí fora, perante a classe média, diante da sociedade, do governo, Estado e para o
secretário‘‖ (Personagem 4).
―Os ataques, na verdade, tiveram duas finalidades. Uma delas comprovadamente que não vou falar por
meias palavras, que é mostrar o poderio da organização criminosa e ao mesmo tempo tentar impedir que
o governo do Estado de São Paulo adotasse medidas de maior severidade na contensão dos criminosos
presos. Parece absurdo, mas é contensão de criminoso preso, porque na maior parte dos presídios, eles
são maioria, dominados pelos criminosos. A parte gerencial que nós temos, digamos assim do Estado,
cuida da porteira pra fora. Da porteira pra dentro, a organização criminosa impõe as regras e o Estado
tenta reagir a isso colocando parâmetros delimitadores vem essas reações. Agora eu não posso deixar de
assinalar episódios e fatos concomitantes que aconteceram em datas que guardavam, em certa forma,
proximidade com algum evento político ou ato político de maior repercussão. Lembro-me aqui da
grande rebelião dos presídios orquestrada em todos os presídios do Estado pelo PCC, logo na posse.
Sempre se percebe que tem uma relação de causa e efeito com alguma intenção ou evento de natureza
política. Ou seja, não escondo que existe seguimento de partidos políticos aqui no Brasil, que tentam
tirar proveito de organizações criminosas. Não vou dizer que um partido como um todo, mas
seguimentos desse partido político‖ (Personagem 3).
134
―O que nós vimos aqui, como profissionais de Direito, foi realmente uma organização de ataque em
massa. As informações que nós obtemos tanto da polícia civil, da polícia militar, quanto da polícia
federal, eram de que realmente por meio dos celulares, eles haviam se organizado pra fazer um ataque
com o intuito em demonstrar seu poder. Isso, em possível retaliação a uma transferência de presos. O
motivo aparentemente banal serviu como status para se demonstrar essa força, que em São Paulo até
então, nunca se tinha visto. Nesse dia dos ataques do PCC, houve dois aspectos que considero
componentes principais: o primeiro foi o medo da população, pois não se sabia o que estava
acontecendo e o segundo a imprensa, que teve um papel perverso. Papel importante e perverso, porque
começou a fomentar aquela cultura do pânico, aquela cultura do medo, ‗não saiam de casa‘. Isso fez
com que as empresas fechassem as portas antes que os expedientes fossem encerrados, por volta das 2
horas da tarde. O trânsito ficou um caos. As pessoas ficavam em dúvida se saiam e encaravam o trânsito
com o risco de sofrerem um ataque no trânsito. Naquela época, houve essa coisa das pessoas terem certo
receio do PCC, esse receio foi exacerbado pelos meios de comunicação‖ (Personagem 5).
―Nós tivemos uma conversa após o ataque com as lideranças. Eles esperavam uma reação da sociedade
para que isso viesse à tona, como o abandono jurídico, falta de atendimento, a super lotação, a falta de
assistência à saúde, o abandono total em que vive a população mais carente dentro dos presídios. Essa
era a grande meta. Segundo eles outras formas foram usadas como: contato com a imprensa, cartas
pedindo socorro aos órgãos de direitos humanos, a juízes entre outros. Não tiveram nenhuma resposta,
não foram atendidos em nada, então partiram para uma forma agressiva, e não conseguiram resultado,
tiveram pouco sucesso‖ (Personagem 2).
De acordo com os entrevistados, fica claro que a intenção maior do PCC com os ataques era
de se impor perante a sociedade, mostrar seu poder, sua força de ataque e de organização.
Além disso, outros fatores foram preponderantes para sua realização, o controle do sistema
penitenciário e vingança contra o governo do Estado para que suas reivindicações fossem
cumpridas, eliminação dos desafetos dentro dos presídios, apoio político, cooptação de novos
integrantes, status junto à sociedade, principalmente as comunidades onde sua atuação é
direta, e a utilização da violência para disseminar, por meio dos medias, a sensação de pânico
junto à população, como forma de pressão ao Estado. Em resumo, ao contrário do que muitos
especialistas afirmam em relacionar crime organizado somente com lucro financeiro, o PCC
buscou se impor ao Estado e sociedade pelo terror. Desejou-se por meio da violência não
vencer o inimigo, mas abalá-lo seriamente.
Neste caso os veículos de comunicação foram chamados a cumprir o papel de agentes
disseminadores do pânico, transferindo o terror aos lares e às mentes das pessoas. A
percepção dos entrevistados sobre isso foi notória:
―Enquanto a gente ouvia falar dos crimes, e das lideranças criminosas, o dono do morro, era tudo
relacionada ao Rio de Janeiro. Em São Paulo tem crime, claro, se você fizer o traçado da população,
você vai ver que é uma quantidade grande. Porém, nunca vivenciado dessa forma. Naquele momento
que aconteceram aquelas sucessões de fatos, eu me senti desprotegida, eu me senti vítima, eu me senti
entristecida ao ver a cidade de São Paulo daquela forma. Eu encerrei meu dia por volta da meia noite,
não tinha almoçado, não tinha dormido, parei, sabe, e aquela sensação eu nunca vou esquecer: O que
está acontecendo? Por quê? Qual é o foco disso? Aonde pretendem chegar?‖ (Personagem 1).
135
―O Estado de ânimo, e digamos assim, de nervos mesmo dos policiais, se exacerbou com justa razão.
Quando estive em São Paulo, no dia seguinte aos ataques, notava-se assim uma preocupação
justificável, mas fora dos parâmetros normais. Por parte dos policiais, tinham que estar dando cobertura,
fazendo policiamento de ruas e batidas. Muita gente inocente foi admoestada de forma inconveniente,
até por conta da tensão daquela circunstância. Isso influiu na sociedade como um todo. Ao mesmo
tempo sei de casos de juízes de direito, de promotores, sem contar o pessoal do presídio e da policia,
que tiveram que tomar medidas adicionais de grande monta para buscarem um tipo de proteção, que não
sei se conseguiram‖ (Personagem 2).
―Aqui no prédio da Procuradoria da República, foram adotadas medidas de segurança. Nós passamos
durante várias semanas com as portas fechadas. As portas só se abriam quando o carro entrava. Na
portaria principal foi reforçada a segurança. Uma série de medidas administrativas foram tomadas para
o prédio. Nos dois primeiros dias eu me lembro que eu fiquei muito assustada, de ver a massificação de
más notícias, absolutamente infundadas – ―ah, porque disseram que vão atacar o metrô‖, então as
pessoas não pegavam o metrô. ―Não, disseram que vão jogar uma bomba na Praça da Sé‖, então as
pessoas não passavam na Praça da Sé. Isso mostra como a mídia fizeram gato e sapato da população. A
imprensa teve um papel perverso, pois acabou dando voz a isso. Do ponto de vista da imprensa é
compreensível, porque ―não, espere lá, se eu tenho essa informação, eu não vou passar essa informação
que seria de utilidade pública?‖. Mas até que ponto se confunde a informação de utilidade pública com
a massificação da informação do medo, sempre aumentando. Isso vem sendo visto claramente, nos
últimos crimes, que têm sido divulgados. Você tem o caso ―Isabela‖, além de outros delitos. É só ligar a
televisão que nos deparamos com o caso da menina Eloá, envolvida no seqüestro em Santo André. Só se
fala nisso. As pessoas acabam inconscientemente aumentando tudo isso, porque está incutindo esse
perigo na mente de todos‖ (Personagem 5).
As pessoas se aproveitaram das imagens transmitas como atalhos mentais no
enquadramento dos fatos noticiados, poupando energia e tempo, ou seja, assumindo como
verdade. Recaímos aqui sobre as ―culpas‖, de um lado Estado e sociedade culpando os meios
de comunicação de exageros, e de outro os jornalistas clamando pela liberdade de imprensa,
confidencialidade de fonte e direito à informação. A divergência de opiniões repercutiu nas
entrevistas:
―O Fernandinho Beira-Mar , quando apareceu pela primeira vez numa reportagem, já era bandido há 12
anos e o maior traficante do país. Quando a mídia descobriu, a mídia foi e falou: ‗Olha, esse cara, ele é
maior traficante do país, ele faz trafico internacional‘. Depois escutamos das autoridades que estamos
glorificando o Fernandinho, não deveríamos contar para a população que existe o PCC. Quando
terminaram esses ataques, de novo o governo foi aos microfones e disse: ‗A imprensa exagerou, a
imprensa glamouriza‘. Parece que eles convencem a classe média disso, os estudiosos e sociólogos de
plantão disso. A inoperância do Estado, ninguém diz nada. Sempre a culpa é da imprensa. Nós criamos
o PCC, nós engordamos o PCC, nós valorizamos o PCC. Eu escrevi um livro sobre o PCC e teve gente
que disse: ―Isso é glamourizar o PCC, você não devia escrever esse livro.‖ Então a gente não deveria
escrever sobre a segunda guerra mundial, ―DOICODE‖, sobre a fome no Brasil, entre outras tantas
coisas. Vamos esconder a realidade. Assim as autoridades folgam muito em jogar a própria culpa na
imprensa. Convencem a classe média de que o bicho é pequeno e que a gente que faz ser grande. Talvez
nesse momento, o PCC tenha mostrado para essa classe media que escuta esse falso discurso do
governo, que não é bem assim. Eu costumo dizer o seguinte: ‗Eu não sou polícia, eu não sou dedo duro,
mas sou profissional responsável‘. Eu sempre tive um acordo com o PCC: ‗Se vocês me contarem o
crime que vai acontecer, eu vou dedar‘. Minha obrigação profissional é a de cidadã. Eu convenci o PCC
a deixar de fazer crimes bárbaros. Eles queriam explodir a Imigrantes. Queriam botar um caminhão que
roubaram do exército, com muita facilidade, cheio de C4, um explosivo poderosíssimo. Queriam
explodir a ponte da Imigrantes para mostrar para o governo e sociedade que existiam. Eu os convenci
com o discurso de que, da mesma forma que eles ficavam putos e não concordavam com a polícia
descontar nas mulheres e filhos deles, o que eles queriam fazer era igual. Eles não tinham que descontar
136
na sociedade, o problema deles era com a polícia e o Estado. Eu sempre tive esse acordo, se me conta eu
vou falar. Se recebo uma notícia, vou checar e dar essa notícia. De onde ela veio, que fonte? Isso eu
tenho sigilo. Terminado ou mesmo durante os ataques, é claro que eu conversei com os integrantes do
PCC. É claro que eu perguntei quando é que iria terminar. E é claro também que como cidadã, sugeri
que parassem com aquilo, disse que não era o caminho, embora eles achassem que era. Discuti com
eles. Se eu pude ajudar, com meu discurso, a salvar uma vida, vou ajudar. Você pode dizer: ‗Ah, os
presos do PCC confiam em você?‘ Confiam sim! Muitos delegados confiam em mim. Eu tenho a
confiança dos dois lados, porque sempre trabalhei numa linha, que é dar a notícia, é checar a notícia,
informar muitas vezes a polícia da notícia. Se ela não acreditou e, não foi atrás, aí já não é problema
meu. Eu não sou polícia, não é minha função prender ou não prender alguém, analisar ou não analisar a
situação. Eu como cidadã, é claro, analiso o aumento da criminalidade, a violência da criminalidade,
como a gente está exposto a ela, desde a as incompetências da polícia, as incompetências do governo,
até a organização do crime‖ (Personagem 4).
Este depoimento demonstra certo ar nostálgico do jornalismo puro, sem amarras,
intenções e comprometido com verdade, mas ao mesmo tempo demonstra apresenta a tênue
linha entre profissionalismo e criminalidade. Sem intenção de emitir qualquer juízo de valor, a
prática jornalista é controversa, como a própria personagem afirma:
―Eu não acho que a imprensa exagerou, ela errou em alguns momentos, é diferente. Nós não demos se
quer uma notícia de um ataque que não fosse verdadeira. A imprensa disse que foram 65 ônibus
queimados, é porque foram 65 ônibus queimados. Então não houve exagero. Os números dos ataques já
mostram o tamanho dos ataques. Houve erro de algumas emissoras. Acho que poucos estão preparados
para acompanhar, porque existe um problema muito grave na redação, que é o ―foca‖. A redação foi
invadida hoje pelos foca filhos da classe média. Filhos dos amigos do patrão, que infelizmente
invadiram a redação e ganham R$600,00 por mês e deixam uma C4 estacionada na porta da emissora ou
rádio. Gente que tem dinheiro e não tem compromisso, não tem uma formação que consiga ver seus
problemas e consiga separar um lado do outro. Hoje temos uma imprensa muito mancomunada,
medrosa, assustada, que tem medo do secretário de governo, medo de peitá-lo, medo de cobrar o
governador. Muitos programas policiais, onde o que interessa é o apresentador, o dono da emissora não
entra em conflito porque depende dos delegados, do governador, do policial para continuar abastecendo
o jornal. Diante disso são poucos os jornalistas preparados para lidar com o crime organizado. Olha, um
garoto de 9 anos foi baleado e morreu. Uma história muito triste, ele ia para a escola, a mãe deu um real
e ele resolveu atravessar a rua para comprar um pastel para levar de lanche. Quando ele estava
atravessando, polícia e bandidos trocavam tiros na periferia de São Paulo, uma das balas acertou a
cabeça do menino, que morreu. Sugeri que a gente fizesse a reportagem contando o desespero da mãe, e
que é o nosso dia-a-dia, desse confronto na periferia, que é diferente do Rio, a classe média que finge
que não vê, porque é longe, não é como lá asfalto e morro tão perto. Meu chefe disse; ―Ah, mas a mãe
dele faz o que‖? Eu falei:―A mãe dele é doméstica, o pai dele é pedreiro.‖ ―Não, não vamos fazer não,
vamos investir em outra história.‖ Pô eu fiquei revoltada, com muita raiva. No dia seguinte, eu chego lá,
tinham matado um rapaz de 18 anos, filho de classe média, estudante de jornalismo no farol do
Morumbi. Ele tinha acabado de ganhar do pai um carro zero bala porque fez 18 anos, o garoto que o
assaltou também fazia aniversario de 18 anos, e foi roubar o carro para poder fazer uma festa. História
triste. O filho do seu Jorge Damos inclusive. Quando cheguei na redação meu chefe estava desesperado
pra que eu fosse logo pro local fazer a matéria do rapaz que morreu com o tiro na cabeça. Eu gostaria de
ter feito esse e o garoto do pastel, mas eu não pude. Eu fiz só esse, porque era filho de rico, foi no
Morumbi. Uma história eu pude contar e a outra não. O que eu acho disso? Acho uma falta de moral. É
por isso que a coisa está tão ruim, porque a gente só fica olhando pro nosso rabo. Quando atinge o nosso
rabo é que a gente reclama, se não, a gente deixa quieto, deixa passar ou deixa como está‖.
Para melhor análise das colocações feitas pela Personagem 4, adotamos a teoria
transacional de Wolfsfeld, que procura entender os tipos de personagens políticos em
interação com quais tipos de cobertura midiática, para produzir que tipos de resultados. Neste
137
caso o desejo entre jornalista e PCC, é fazer fluir interpretações ideológicas por canais
massivos de informação, através do enquadramento de fatos e das significações das
ocorrências. Segundo Wainberg (2005, p. 19), ―esse entendimento é um dos mais freqüentes
na área do jornalismo‖. A teoria do enquadramento afirma ser esse um efeito de realce de
certos aspectos dos fatos na cobertura midiática e na interpretação resultante das audiências
sobre essas ocorrências. Conforme a fala da entrevistada, é perceptível o interesse editorial na
transformação da notícia, valendo-se sempre do termômetro da audiência. Na cobertura dos
ataques do PCC não foi diferente.
Por essa visão, jornalismo é a construção de uma imagem do mundo, e não um retrato
desinteressado e imparcial dos eventos noticiados. O enquadramento, portanto, estabelece em
seus discursos gráficos e editoriais, referências utilizadas pelo público para produzir sentido e
significação. Dessa forma, por meio dessa interação entre os meios e as audiências,
entendimentos são cristalizados. A falta de processamento das informações recebidas, gera
profunda cumplicidade de idéias montadas pelos editoriais. Soma-se a isso, o processo de
alienação pela repetição massificada de cenas violentas.
No caso da teoria transacional, o PCC sabe que necessita oferecer ―estímulos‖ à mídia
para que ela se posicione editorialmente em relação aos fatos. ―Certamente a violência é um
desses incentivos, e um dos mais utilizados por sua eficiência comprovada‖ (WEINBERG,
2005, p. 20). É certo que a eficiência comunicacional de eventos violentos tendem a decrescer
com o tempo, por isso o PCC, como produtor de acontecimentos, seja obrigado a aumentar a
dose de ataques, sempre que o desinteresse pelo ―espetáculo‖ aumenta. Trata-se aqui, no caso
dos ataques de maio de 2006, a produção máxima jornalística com o mínimo de custo.
Debaixo dos ―narizes‖ da região com maior conglomerado de meios de comunicação,
aconteceram diversos fatos noticiosos que a própria imprensa não conseguia cobrir, quem
diria o governo:
―A experiência mais interessante que vivi em termos de assessora de imprensa, foi quando esses ataques
aconteciam simultaneamente em vários lugares, os repórteres ficavam sabendo antes de nós. Por exemplo: houve
um ataque em Sorocaba, a TV, o rádio, tem a comunicação da polícia, por isso ficavam sabendo primeiro.
Enquanto a equipe ia pro local pra cobrir, a redação da TV ligava pra secretaria, pra perguntar mais detalhes. Aí
o que acontecia, eu acabei formando uma rede: ‗Ó, qualquer suspeita que vocês tiverem, mesmo antes de mandar
a equipe, me liga que aí eu peço no setor de comunicação da polícia para checar, diretamente no local‘. Então, a
informação no primeiro momento vinha ao contrário. Não era exatamente a gente que divulgava o que tinha
acontecido, era a imprensa mostrando ‗Olha, foi atacado, foram atacados tantos ônibus, foi atacado uma base‘.
Quando eles nos traziam isso, a gente checava, e aí a informação vinha: Foram tantas pessoas, ninguém foi
atingido, foi só o patrimônio que quebrou. Assim, constituiu-se uma rede de trabalho maravilhosa, e todos
comovidos com aquele momento. Foi assim, uma união, uma força de trabalho, eles trazendo pra gente e a gente
fazendo planilhas, de cada lugar, e uma equipe ia checando tal lugar, pra poder ter a informação. Não houve
distorção nesse momento dos acontecimentos. Aí depois, claro, passaram a chamar ‗especialistas‘, repetir as
imagens na TV várias vezes, e a dimensão dos fatos foram aumentando gradativamente.
138
Mesmo com a falta de estrutura do Estado em lidar com a situação e dos jornalistas em
reportarem a notícia da melhor maneira, é notório o sucesso de audiência conquistado durante
os ataques. Naquele momento, o Estado de São Paulo não se tornou o centro de atenções
apenas do Brasil, mais do mundo inteiro. Outro fato a se destacar, corresponde à realidade dos
fatos, bem como os efeitos ao combate a criminalidade organizada. O Personagem 2 diz que,
―Eu creio que a mídia muitas vezes colabora com o crime, colabora com a violência. Digo para você
fatos bem concretos. Quando a mídia escuta um celular de dentro do presídio dizendo que tal verdade é
assim, não tem nenhuma certeza e não vai checar as informações, traz para a cidade pânico, que não
pode ser real. Tenho visto várias manchetes em revistas e jornais ou mesmo na televisão, onde a pessoa
vai checar e as informações não procedem. Por outro lado, às vezes, a mídia atrapalha a própria polícia.
Por exemplo, um caso bem concreto agora, aquela questão da Eloá, aquela menina seqüestrada. O
tempo todo estavam filmando toda a ação da polícia. Dentro de casa, nos jogos, com a televisão ligada
vendo toda a ação de como entrar no prédio, quer dizer, a mídia trabalhou a favor de quem estava
dentro, seqüestrando, a mídia trabalhou o tempo todo a favor do seqüestrador e não a favor da polícia.
Muitas vezes, o que sai na imprensa não é verídico e o crime organizado trabalha com isso também. Por
exemplo, a gente checou aqui vários casos de denúncias fortíssimas, fomos checar e várias delas eram
infundadas, mas evidentemente alguém denunciou aquilo e, deve ter sido alguém do Estado de São
Paulo. Tem coisas que acontecem, mas a gente trabalha a favor do crime organizado ao dar notícias que
não condiz com a verdade. A população tem que saber quem são os verdadeiros responsáveis pela
situação, que acontece e não colocar possíveis e imaginários personagens. Muitas vezes a imprensa cria
linchamento de possíveis pessoas criminosas, e já punem abertamente, cria revolta e não tenta olhar a
justiça nesses casos. Ela não contribui, ela acaba muitas vezes fortalecendo o crime. Hoje sem dúvida
nenhuma. Garanto-te isso, os meios de comunicação hoje, favorecem muito a criminalidade no Brasil.
Você bem sabe que vivemos num mundo capitalista e a grande alma do capitalismo é o lucro, e nesta
ação os dois lucraram, a mídia e o PCC‖.
Em contraponto, a Personagem 4 afirma que,
―A gente tem uma lei de imprensa, cobrasse deles isso. Se ele repetiu a imagem que já tinha rolado, se
não esta ao vivo e esta acontecendo é passivo de processo, de perder o diploma e não exercer mais da
profissão. Vamos cobrar o cara que fez isso, o cara que inventou a notícia, o repórter que deu o toque de
recolher, a emissora que deixou dar o toque de recolher. Tem uma lei que rege, tem uma lei do bom
senso que nos rege‖.
Por mais altruísta que seja a intenção jornalística de reportar os fatos, no Brasil à linha
que separa o real do espetáculo é quase nula. Longe de afirmar única e exclusiva culpa dos
meios de comunicação, o que se percebe são intricadas redes de interesses, condicionadas ao
consumo. A edição dos telejornais durante os ataques do PCC, por exemplo, destacou-se
pelos ricos em detalhes visuais de ônibus sendo queimados com civis em seu interior,
provocou reações de inconformidade e horror público. A descrição gráfica da mortandade
realizada pelos telejornais, produziu grande comoção pública, principalmente ao propagar a
violência sem rosto e sem objetivo, ou seja, todos eram alvos. O medo instituído foi sendo
agravado por imagens de violência sucessivamente repetidas. As pessoas em pânico
139
buscavam abrigo nas suas casas, todas ao mesmo tempo, o que gerou um caos em grande
parte das grandes cidades do Estado de São Paulo.
Nesse sentido, o simulacro criado a partir da representação de alguns casos isolados,
produziram a nulificação do real e dos símbolos pelas imagens e pelos sons enviados ao
telespectador. Há de se salientar por isso o embaralhamento existente entre o que foi real e o
simulado, entre jornalismo e a ficção.
De qualquer forma, os ganhos provenientes dessa ampla exposição dos ataques pelos
meios de comunicação, tanto para o PCC quanto para os medias, foram evidentes. No caso do
PCC existem algumas vertentes conflitantes sobre o saldo conquistado. A perda de muitos
integrantes, de dinheiro, enrijecimento no tratamento dos presos pelo Estado, além do
isolamento dos líderes da facção, gerou certo descontentamento por parte de muitos membros.
Novas facções foram fundadas em oposição ao PCC. A Personagem 4 expõem um outro lado.
―Muitos especialistas tratam como prejuízo para o PCC aqueles dias de terror. O PCC, por contatos
meus com os próprios líderes, me contam o contrário. Eles acham que aquilo foi uma vitória. Eles se
vingaram das mortes na Castelinho, que é o primeiro grande trunfo desse resultado. Mostraram para
sociedade que existem e tem força. Quem foi para a rua sabia que podia matar e morrer, isso já estava
previsto. Existe grande facilidade de reposição entre os membros do PCC, não há preocupação em
relação a isso. O lema do PCC é lutar até morrer, desde o começo. ―Sabemos que vamos perder muitos,
mas o que importa é que a gente vai conquistar o que queremos‖. Eles doam suas vidas pela causa‖.
Sem dúvida o PCC obteve sucesso em alguns de seus objetivos, que em nada
representou seus ideais na luta pelo direito do preso. Em referência a mitologia grega, o PCC
se apresenta como uma Hidra, que ao perder sua cabeça outras duas aparecem em seu lugar.
Prova disso esta na entrevista da Personagem 4 em relatar o desmantelamento de um novo
ataque do PCC feito pela polícia.
―Já era para ter acontecido. Graças ao celular, a polícia fez escutas e descobriu o plano. A polícia
conseguiu com esse guardião, um bom serviço de inteligência, trabalho fantástico. Assim ela descobriu
os planos do PCC, que era para ter acontecido um ataque em setembro passado, que seria o ‗Setembro
Negro‘, como eles estavam chamando entre os presos. A primeira providência foi mandar o Juninho
Carambola para o presídio de segurança máxima. Era ele quem estava coordenando. Afastaram também
o Macarrão. Enfim, diluíram o comando impedindo as ações. Prenderam muita gente aqui fora, que
fariam os ataques. Sufocaram esse ataque, mas não a vontade deles de fazer. Eles continuam com o
plano. Existia uma dúvida se ira ser o ‗Setembro Negro‘ ou outra data mais próxima das eleições. O
PCC também aprendeu à trabalhar um pouco politicamente‖.
Com isso o PCC demonstra que os ataques de 2006 renderam benefícios, para muitos
ainda duvidosos. Diante disso, seria certo exagero usar a palavra ―manipulação‖, como ato de
manobra do PCC junto aos medias. Em nenhum momento a facção teve controle dos fatos
140
noticiados, muito menos do processo de tratamento editorial de cada matéria, como os medias
também não possuíam estrutura, pessoas, crítica e informacional para cobrir tamanho evento.
O sensacionalismo como técnica de aumento na audiência, foi amplamente utilizado.
Conforme afirma Wainberg (2005, p. 43), ―a desatenção fortuita de editores e do público é
combatida com doses crescentes de agressividade‖. Não só o PCC como também os grupos
terroristas entram pela porta dos fundos das redações utilizando-se desses artifícios. Atuam
como intérpretes de uma cena que cai ao gosto dessa corporação profissional acostumada a
moldar o mundo com pinceladas retóricas e imagens de fácil digestão pelo público.
Dessa forma, por meio da análise das entrevistas, a formatação da cultura do medo por
meio dos ataques do PCC em 2006, nos leva a duas questões centrais. A primeira delas referese a real identidade do PCC como organização criminosa, visto a difusão de seus ideais. Em
segundo, que a publicidade da notícia pelo espetáculo, faz do medo simbólico uma realidade
ficcional.
141
5 CONCLUSÃO
Vivemos em tempo controverso, onde o cotidiano tem sido alterado e
compreendido em sobressaltos. Por meio do diapasão capitalista, o consumo transformou-se
na métrica da sobrevivência. A busca em sobreviver, confunde-se com a busca constante em
consumir. A necessidade transforma-se em desejo, a violência em meio. Por isso, hoje a
repetição no cotidiano é de cenas de violência passadas não só na tela da televisão, mas no
dia-a-dia, em que indivíduos são considerados sujeitos, protagonistas das histórias
construídas, muitas não forjadas por eles mesmo, mas cujos personagens estão imbricados à
sua vida familiar, de vizinhança e trabalho. Não se trata mais de histórias que o povo conta ou
são narradas de forma distante pelos documentários e jornais televisivos sensacionalistas. Na
tela da vida, onde milhões de brasileiros despem-se da fantasia pelo real dos enredos
cotidianos, a criminalidade organizada cresce exponencialmente.
A oportunidade disso está no lucro. Tais organizações criminosas se aproveitam dos
caminhos da ilegalidade para se beneficiarem, não se importando com os altos riscos
imbuídos nessas práticas. Longe de ser algo novo, o crime organizado rompe os séculos
guiados pela ganância do alto lucro, utilizando sempre da violência como instrumento de
conquista e exemplo de poder. Para tanto, é notório observar que enquanto existir capitalismo,
ou qualquer sistema voltado ao lucro, o crime organizado se instalará. Hoje com status
transnacional, muitas organizações criminosas se engendraram nas culturas de muitos países,
quando não, em sistemas de governo ou propriamente países, como no caso da Trasnítria.
Essas organizações são conhecidas pela truculência em eliminar obstáculos, não se
importando com nada e ninguém, forte sistema estrutural, utilização de alta tecnologia,
controle do mercado ilegal e, principalmente, de seu ocultismo perante a sociedade. As
organizações criminosas vivem à sombra da sociedade, procuram não aparecer, muito menos
se expor. Quanto mais desconhecida uma organização criminosa, mais sucesso ela possui.
No Brasil existem várias organizações criminosas atuantes, mas o que nos chama a
atenção é a facção intitulada Primeiro Comando da Capital – PCC, objeto de estudo deste
trabalho. As peculiaridades do PCC nos trazem uma primeira reflexão: será esta uma
organização criminosa? Como já visto o PCC se aproxima de algumas das diversas definições
classificatórias de crime organizado, no entanto, se enquadra em outra categoria, a de
―delinqüência organizada‖. Esse nome foi dito durante a entrevista com o Personagem 2,
registrado aqui como proposta teórica: Delinqüência Organizada consiste na formação de
grupos estruturados no âmbito do sistema prisional, com mais de 100 pessoas, visando
142
primeiramente a disseminação ideológica de direitos humanos, e posteriormente, a obtenção
de lucro por meio de atividades ilícitas. A violência extrema consiste em sua característica
marcante. Geralmente o planejamento estratégico utilizado pela facção é terceirizado. Possui
níveis hierárquicos bem definidos, além de um sistema de substituição eficiente. O diferencial
da organização está no poder de seu discurso e na cooptação de pessoas fora do sistema
penitenciário, como familiares de presos. Esse tipo de organização possui duas frentes de
atuação: dentro e fora dos presídios. A comunicação é a essência dessas organizações. O
pânico gerado pelo medo institucionalizado é a sua principal arma de persuasão. Para isso se
utiliza de técnicas terroristas.
Hoje, praticamente todas as organizações criminosas do Brasil seguem essa linha. Ao
contrário das organizações criminosas tradicionais, a delinqüência organizada busca espaço
nos meios de comunicação de massa, com o objetivo de se auto-promoverem e pressionarem
o Estado. Neste ínterim, o vírus do medo se instala, não somente como simples instrumento
de força, poder, mas como entretenimento, mercadoria, modismo, notícia, comportamento
entre outras tantas configurações. Surge, portanto, a violência como amalgama de nossa
cultura contemporânea.
Desse modo é possível considerar o PCC como um fenômeno de comunicação. A
maca PCC já é conhecida mundialmente por causa dos ataques de 2006, e possui a chancela
de maior organização criminosa do Brasil. Marcola, líder da facção, é considerado ídolo em
muitas comunidades pobres de São Paulo. Comumente se flagra pessoas se intitulando
membros do PCC para ganhar ―moral‖, e não são. Tudo isso é um ―prato cheio‖ para a mídia
nacional. Na época dos ataques o grande mote era: ―O PCC desafia o Estado‖. De qualquer
forma a questão que se apresenta é a imposição da identificação criminosa ao coletivo, ou
seja, a imersão do cidadão comum ao domínio de redes de interesse, pois os imperativos dos
meios de comunicação de massa transformam a sociedade pelo medo.
Não se pretende demonizar a mídia como grande responsável por essa cultura do medo
que vivenciamos hoje, muito menos dirimir suas responsabilidades junto a informação. O que
objetivamos trazer à luz dessa reflexão, são as nuanças sofrida na construção da informação
pelos interesses do capital. O fato jornalístico é transformado em publicidade, visto que a
destruição dos acontecimentos e obras segue a lógica do consumo, da futilidade, da
banalização e do simulacro. Tudo se reduz, ao fim e ao cabo, a uma questão pessoal de
preferência, gosto, predileção, aversão e sentimentos dos telespectadores. É isso o mercado
cultural.
143
Assim, uma imagem nunca será apenas uma presença, mas também uma ausência.
Necessário rastrear sensivelmente a violência como sombra das figuras a quem
emprestamos o status e o poder de realidade. Para que elas não nos comandem,
violentamente. (BAITELLO, 1999, p. 84)
Portanto, construímos imagens simplificadas do mundo à proporção que com ele
interagimos. A medida que as nossas percepções do mundo estranho são compatíveis com as
nossas imagens já recolhidas, processadas e arquivadas, a recepção é autorizada, e a
assimilação, realizada sem resistências (WAINBERG, 2005, p. 154). Nesse sentido, a notícia
transforma-se em sinônimo de ―propagar‖, ―que significa: multiplicar uma espécie por meio
da reprodução, espalhar-se por um território, aumentar numericamente por contágio, irradiarse, difundir-se e, por extensão, divulgar‖ (CHAUÍ, 2006, p. 37). O fato noticioso é operado
por meio de: explicações simplificadas e elogios exagerados sobre acontecimentos que
possam ser facilmente memorizados; aparente informação e prestação de serviço ao cidadão;
garantia que ele será, ao mesmo tempo, igual a todo mundo e não um deslocado (pois
consumirá o que outro consomem) e será diferente de todo mundo (pois a informação lhe dará
uma individualidade especial). Em outras palavras, a notícia passou a vender imagens e signos
e não à própria informação. Segundo Freud (1974) ser infantil é não conseguir suportar a
distância temporal entre o desejo e a satisfação dele. A cultura nos satisfaz se temos paciência
para compreendê-la e decifrá-la. Exige maturidade. Os meios de comunicação nos satisfazem
porque nos pedem, senão que permaneçamos para sempre infantis. Neste sentido, a destruição
da capacidade de concentração e a infantilização dos indivíduos, conduzem estímulos ao
narcisismo, pois as imagens são produzidas e transmitidas para repetir sempre a mesma
mensagem. A disseminação do medo por meio das imagens dos ataques do PCC exemplifica
essa realidade. A televisão foi à maior responsável.
Jerry Mander (1978 apud CHAUÌ, 2006, p. 55-57), descreve as limitações
tecnológicas que determinam como e o que a TV pode transmitir. De acordo com as regras de
transmissão, a televisão obedece a um conjunto de regras que determinam o que é melhor para
a transmissão e o que deve ser evitado. Como primeiro ponto a guerra televisiona melhor do
que a paz porque contém muita ação e um sentimento poderoso, o medo. Pelo mesmo motivo,
violência televisiona melhor do que não-violência. Isso justifica o próprio PCC como
fenômeno de comunicação.
Em seguida, os fatos externos (ocorrências e acontecimentos) televisionam melhor do
que informações (idéias, opiniões, perspectivas), pois é mais forte mostrar coisas e fatos do
que acompanhar raciocínios e pensamentos. Em terceiro, afora rostos humanos, coisas
144
televisionam melhor do que seres vivos (pessoas, animais e plantas), porque as coisas são
simples, comunicam diretamente suas imagens em uma mensagem sem complicação. Essas
duas características televisivas são claramente observadas nas imagens de ―guerra urbana‖
propiciada nos ataques de 2006. O desespero das pessoas, ônibus pegando fogo, pessoas
baleadas, trouxeram o espetáculo do horror.
Outro ponto mostra que líderes religiosos e políticos carismáticos dirigem ao
pensamento e sentimento interior das pessoas, por isso televisionam bem. Em quinto é mais
fácil transmitir um só do que muitos; por isso, nos acontecimentos de massa ou de multidão,
escolhe-se uma única pessoas para opinar e falar ou uma seqüência de pessoas entrevistadas
uma a uma. Sexto ponto é melhor transmitir organizações hierárquicas do que democráticas,
pois as primeiras tem forma muito simples, qual seja, a autoridade e os subordinados ou os
seguidores. Para o PCC este tipo de abordagem é muito significativo, pois existem muitas
contradições sobre essa delinqüência organizada. Poucos líderes carismáticos têm propriedade
para falar sobre o PCC e, quando o fazem, é de maneira superficial. Geralmente as opiniões
sobre os ataques são infundadas e aterrorizantes. A imprensa é muito próxima dos integrantes
do PCC, que possui até relações públicas. Isso ajuda a facção conquistar seus objetivos.
Em seguida, assuntos curtos com começo, meio e fim são melhores do que assuntos
longos que exigem pluralidade de informações e aprofundamento de ponto de vista. No oitavo
ponto, o autor diz que sentimentos de conflito televisionam melhor do que sentimentos de
concórdia, por isso competição televisiona melhor do que cooperação. Os ataques de 2006 são
os melhores exemplos dessa prática televisiva. Diversas notícias curtas de um mesmo fato, de
pura violência, deram o tom das reportagens.
Na seqüência, ambição e consumo televisionam melhor do que espiritualidade, pois a
câmera não têm como lidar com sutileza, diversidade e ambigüidade. Décima regra diz que
quando televisionar ―povos primitivos‖, apresente música, dança, canto, caça, pesca, lutas e
evite entrevistas subjetivas nas quais se exprimem idéias, opiniões, sentimentos complexos.
Outro ponto, o bizarro e o estranho televisionam muito bem. No décimo segundo item, a
expressão facial é melhor do que o sentimento: chorar televisiona melhor do que a tristeza, rir
televisiona melhor do que a alegria. Por último, a morte televisiona melhor do que a vida: na
morte tudo está claro e decidido, na vida tudo é ambíguo, fluido, não completamente
decidido, aberto a muitas possibilidades. A partir desse pontos não se tem mais dúvidas sobre
o sucesso televisivo dos ataques do PCC. O medo da morte foi disseminado com tal força que
parou o Estado de São Paulo. Nesse sentido, comunga-se da opinião de Romano (2001 apud
CONTRERA, 2002, p. 17-18), que afirma:
145
A fascinação da violência corresponde à filosofia do êxito social a qualquer preço,
do individualismo e egoísmo primitivos frente à cooperação e a solidariedade
próprias da espécie humana. O que predomina na tela, seja nos informativos ou na
ficção, é o direito dos mais fortes, não os ideais democráticos de igualdade e
dignidade humana.
Na democracia a fonte do poder é o imaginário das pessoas, o que elas pensam e
desejam. Por isso, mesmo, suas emoções são o troféu ambicionado pelo PCC, que monta
dramas adequados ao paladar midiático. A mídia tornou-se ela própria um campo de disputa.
O PCC tornou-se público, uma fala facilmente compreensível, em especial pela comunidadealvo da agressão, que assiste com grande espanto ao enquadramento dramático que os meios
de comunicação fizeram das cenas dos ataques. O resultado prático de tal cobertura intensiva
foi a propagação de uma ampla onda de medo e pavor que paralisou a rotina de um Estado.
Aos olhos de grande parte da população, a imprensa serve aos fins da guerra
psicológica do PCC. Ao darem publicidade aos reclamos da facção, jornais ,revistas e
televisões são acusados de ajudá-los a extorquir, obter concessões e punir o inimigo. Esse
fenômeno social e político dos ataques de 2006, não ocorreria se não fosse também, e em
essência, um fenômeno comunicacional. Se o ato do PCC fosse cometido e não houvesse
alguém disponível para atentar ao fato e por ele ser de alguma forma coagido, surpreendido
ou intimidado, poder-se-ia argumentar que o medo institucionalizado não existiria ou deixaria
de existir.
Jenkins (1974 apud WAINBERG, 2005, p. 80) disse que o ―terrorismo sem palco não
existe‖. O palco televisivo internacional é o palco preferencial e caracteriza o poder de fogo
que as atrações adquirem com suas chamadas de alerta – Breaking News, cujo equivalente em
português e no Brasil é menos popular e menos freqüente, utilizado somente em raros boletins
―urgentes‖, acompanhados de trilhas musicais qu remetem a sensação de alarme. Tais
transmissões são capazes de provocar nos telespectadores de todo o mundo a sensação que
todo e qualquer produtor de cenas de horros desejaria produzir no seu público a exclamação
de que ―jamais esquecerei‖. Essa é uma virtude conquistada pelas novas tecnologias de
comunicação.
É bastante referida e repetida a assertiva de que a característica básica da ação do PCC
é atacar um pequeno número de pessoas, a fim de atormentar e amedrontar o máximo possível
de seres. Segundo Wainberg (2005, p. 83)
146
Quando tal violência destina-se a um certo grupo, os demais pertencentes a outras
comunidades raramente sofrem um mínimo de ansiedade. Assistem ao desenrolar
dos fatos noticiados como espetáculo. Neste caso, tragédia alheia é show. A
ansiedade predomina e toma conta exclusivamente do grupo-alvo. Estudo de Duwe
revela que há evidências empíricas que comprovam este fato: o noticiário sobre
episódios violentos, mas distantes, não provocam aumento generalizado dos
públicos. Esse nível de temor aumenta única e exclusivamente no local da
ocorrência do crime. Esse resultado foi obtido igualmente por Michelle Slone, que
constatou aumento significativo da ansiedade em pessoas reunidas em grupo
experimental submetido à transmissão de mensagens teledifundidas com ameaças
terroristas à segurança do país. A autora confirma a hipótese de que a mídia tem
poder de provocar a emoção das pessoas e pode eventualmente ter um impacto
prejudicial no bem-estar psicológico das populações vítimas potenciais.
Por isso, é preciso analisar os ataques do PCC como discurso. Para fazer ecoar sua fala
nos veículos de comunicação de massa utilizam-se da morte e da violência como atração, em
relação às quais a imprensa não se furta nunca. Assim, o PCC conquista tempo (na mídia
eletrônica) e espaço (na impressa). São as palavras que explicam, ou tentam explicar, afinal a
mortandade refletida nas imagens dos telejornais e nas fotos estampadas nos periódicos de
todo o mundo. Como afirmou Orwell (1946 apud WAINBERG, 2005, p.99), ―se o
pensamento corrompe a linguagem, a linguagem pode também corromper o pensamento‖. É
inevitável a emergência do debate sobre a postura que a imprensa deve ter diante desse
terrível dilema, onde se interpreta: a notícia deve informar ou servir para o interesse público?
Infelizmente o que se vê hoje, é o discurso do bem público, ou seja, do interesse dos públicos
com o conteúdo informativo de interesses editoriais.
Agora, após os ataques do PCC de 2006, a ação de ―guerra psicológica‖ pelo medo
assumiu renovado aspecto de gravidade. A mídia em geral, e em especial a televisão, tornouse uma ágora revigorada por um público sedento de diálogo e conforto mútuo. Assim é
possível dizer que cabe a imprensa não só monitorar o meio ambiente, como desenvolver a
sensibilidade do público sobre os riscos que o envolvem. Em outras palavras, a mídia
aproxima tais ameaças potenciais da comunidade. Elas variam no tempo, nos tipos na
intensidade e de sociedade a sociedade.
Como afirma Silvio Waisbord (2000, p. 201-219), ―entender os riscos significa
entender como as sociedades constroem percepções sobre a distribuição do risco (quem está
vulnerável e por quê)‖. Vive-se mergulhado no risco cotidiano, e falhas na prestação desse
serviço significariam para a imprensa mácula ao seu prestígio social de prestar um serviço
relevante de urgência.
Por outro lado, ao contrário do que sugere o senso comum, os jornalistas e outros
produtores de informação (cineastas, escritores, produtores culturais, editores, educadores,
147
entre outros) não têm o poder de controlar a qualidade da recepção pelos públicos e
audiências. A digestão de tal conteúdo decorrerá sempre, e em alguma medida, do paladar dos
indivíduos. O PCC também não têm controle da interpretação que os distintos públicos fazem
dos mesmos. A percepção social é uma variável significativa e referida com freqüência nos
estudos sobre interpretação de textos exatamente por esta contingência: as pessoas vêem o
mundo a partir de referências e circunstâncias distintas. Simpatia e antipatia dos ouvintes,
leitores e telespectadores decorrem de variáveis que fogem totalmente ao controle dos atores,
autores, falantes em geral, entre eles delinqüentes organizados.
Para tanto, Baudrillard (2004, p. 43-50) complementa,
Inútil acusar as potências midiáticas, as potências do dinheiro. Até mesmo a
estupidez do público para dar lugar à esperança de que haveria uma alternativa
racional a essa socialização integral, técnica e experimental, com a qual nos
comprometemos e que resulta no encadeamento automático dos indivíduos em
processos consensuais sem recurso. Chamemos isto o acontecimento integral de uma
sociedade doravante sem contrato sem regras nem sistema de valores além de uma
cumplicidade reflexa, sem regras nem lógica, senão a de um contágio imediato, uma
promiscuidade que nos mistura mutuamente num imenso ser indivisível. Nós nos
tornamos seres individuados, isto é, não divisíveis em si mesmos e não entre si. Esta
individuação de que tanto nos orgulhamos não tem nada de uma liberdade pessoal, é
ao contrário o signo de uma promiscuidade geral. A visão ―em tempo real‖ só faz
aumentar a irrealidade da coisa. Os dois paroxismos, o da violência da imagem e o
do descrédito da imagem, crescem conforme a mesma função exponencial. O que
faz com que as pessoas estejam continuamente destinadas à decepção, mas
relançadas por essa mesma decepção. Pois essa incerteza profunda está em grande
parte na demanda insaciável desse tipo de espetáculo.
Concluímos, portanto, que os ataques do PCC de 2006, corresponde a um exemplo de
fenômeno comunicacional, entre os vários existentes ao alcance desse objetivo de
aproximação, pacificação e resolução de conflitos. Consiste num exemplo dramático por sua
atualidade social e política, por sua dimensão publicitária e por expressar ambos os impasses:
a de um controverso conceito de organização criminosa entre atores dispostos em berços
simbólicos distantes, e de comunicação midiática, quando se observa o uso e mal uso das
palavras na sua descrição e análise noticiosa.
Este trabalho procurou aproximar-se desta contradição constitutiva do progresso, entre
o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa e a reprodução do medo e das
desigualdades sociais no contexto de um Estado falido. Durante os capítulos iniciais, foram
analisados os vários aportes teóricos inerentes ao tema como: medo, violência, cultura,
comunicação, poder e crime organizado, para a construção sólida de análise, para as
entrevistas realizadas. Em meio a isso, acreditamos ter alcançado os objetivos propostos e
trazido para o espaço acadêmico um tema ainda pouco explorado.
148
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APÊNDICE A
Entrevistas
Personagem I
Data: 18 de novembro de 2008
Início da Entrevista: 11h15min
Encerramento: 12h06min
Formação: Jornalista
Função que exerceu em junho de 2006: Assessora de imprensa da Secretaria de Segurança
Pública do Estado de São Paulo
O que você entende por crime organizado?
Pelo o que aprendi, o crime praticado pelo PCC não é organizado, em primeiro lugar. Embora
essas facções tenham e sigam regras, elas acabam nos levando a pensar que existe certa
organização, ou seja, uma hierarquia. Então funciona, porque senão funcionar com essa
hierarquia que existe, a pessoa é punida, severamente, muito diferente do lado de cá. Então eu
não acredito que o crime seja tão organizado. Eu acho que é uma facção que se especializa, e
por ter aquele líder, eles obedecem, e se não obedecem são punidos. Então assim, entre eles se
diz crime organizado.
Como você entende esse crime organizado, ou desorganizado, no contexto nacional, desde
a sua formação até hoje, pelo o que a gente pode acompanhar na mídia?
Na verdade, quem poderia esclarecer um pouco melhor o pensamento do criminoso, é um
criminólogo, que na verdade no Brasil nós não temos essa função. Um deles é um grande
amigo meu, que faz um estudo do crime, pra onde ele migra, qual é esse raciocínio. Dentro
desse estudo ele mostra porque que no verão as pessoas assaltam mais carros, por que do
aumento dos crimes passionais ocorrem em período de carnaval e etc. Então, assim é muito
mais fácil para um estudioso entender o que passa pela cabeça de um criminoso. Na verdade, a
minha impressão é assim: atender a imprensa nos acontecimentos realizados por esses
criminosos. Então, por que eles realizam? Coisa muito particular. Agora, o fato é que eles se
mantêm das drogas, das armas, para poder fortalecer cada vez mais, e arrebatar mais
integrantes. Fazem trabalhos sociais, do tipo, pagar a faculdade pra um menino da favela, para
ele ficar eternamente ligado e essa gratidão à eles, e ter mais gente envolvida, apoiando e
165
defendendo isso. Então, é muito pouco o meu conhecimento em relação ao pensamento, a
cabeça de um criminoso, como é que ela funciona.
Você se recorda, ao trabalhar na Secretaria de Segurança Pública, da primeira vez em
que você ouviu falar do PCC?
Na verdade a primeira vez que eu ouvi falar do PCC, foi quando eu trabalhava no SBT, e lá
houve um programa que tinham supostos integrantes do PCC, que ameaçam algumas
celebridades. Fato que levou a justiça, enfim, a um longo período de investigação. Naquela
época, surgiam às rebeliões na cadeia, apareciam o nome dos primeiros líderes dessas facções e
então, aconteceu aquilo, foi quando eu tive meu primeiro contato. Na verdade costumavam
brincar sempre que no SBT eu vivia o PCC de mentirinha e na Secretaria de Segurança Pública
o PCC verdadeiro, aquele terror que todos nós vivenciamos na cidade de São Paulo, que ficou
praticamente vazia, num momento em que a própria mídia se responsabilizou em levar para a
casa das pessoas, através do rádio, da televisão, da internet, o quão grave era aquele momento.
Exagerando, claro, em vários momentos, que depois alguns veículos tiveram até que se retratar,
porque gerou medo, pânico. Podemos dizer que as pessoas se fecharam e a cidade ficou vazia.
Você se sentiu vítima ou telespectadora desses ataques?
Vítima, muito vítima. Porque, enquanto a gente ouvia falar dos crimes, e das lideranças
criminosas, o dono do morro, era tudo relacionada ao Rio de Janeiro. Em São Paulo tem crime,
claro, se você fizer o traçado da população, você vai ver que é uma quantidade grande. Porém,
nunca vivenciado dessa forma. Naquele momento que aconteceram aquelas sucessões de fatos,
eu me senti desprotegida, eu me senti vítima, eu me senti entristecida ao ver a cidade de São
Paulo daquela forma. Eu encerrei meu dia por volta da meia noite, não tinha almoçado, não
tinha dormido, parei, sabe, e aquela sensação eu nunca vou esquecer: O que está acontecendo?
Por quê? Qual é o foco disso? Aonde pretendem chegar? Na verdade, nada mais é do que a
disputa de poder. O Estado é o grande responsável. Quando você tem todo o aparato do Estado
que te possibilita o uso da violência por meio dos defensores, os policiais, surge uma sensação
de segurança. Por isso que a gente tem a falsa idéia do crime organizado.
O que você entende por PCC?
Eu acho que essas siglas têm e vêm, a ser cada dia mais expressiva pra esses bandidos e, por
isso, eles escolhem. Eles tinham várias denominações que eu não me recordo agora. Mas o que
marcou pra gente foi o PCC. Elas surgiram de um aprendizado de muitos anos atrás, quando
166
passaram a conviver com os criminosos políticos, vamos dizer assim, que eram a verdadeira
inteligência dentro dos presídios. Tudo é uma lição. Quando o professor é bom, o aluno vira
espetacular. Então, o que eu imagino é assim, em algum momento, eles foram estudar, você vê
aí, esse Marcola, os livros que leu, então assim, foram se especializar porque em algum
momento tiveram a referência de um mestre.
Você acredita nessa intelectualidade, tanto do Marcola, quanto de outros criminosos?
Eu acredito na inteligência humana. Você deve ter um amigo da sua juventude que escolheu um
outro caminho, e não o seu. Pode ser um caminho do bem e pode ser um caminho do mal.
Aquele que escolheu do bem, ele foi se especializar. Hoje a gente esta aqui conversando porque
você trabalhou a sua inteligência, você foi evoluindo, e foi descobrindo temas que te
satisfaçam, que satisfaçam, assim você vai evoluindo, pesquisando, estudando, e isso te dá
prazer, isso te realiza e isso contribui pra sua inteligência. Porque é a partir dela que você vai
abrir esse leque de aprendizado. Tudo isso porque é um anseio do ser humano, aprender. Você
desenvolve sua inteligência ampliando seu conhecimento. O outro desenvolveu a inteligência
dele sendo um dentista, e buscando pesquisas. O outro, por fatores sociais, ele acabou
resolvendo ir para um outro lado. Formação, aí a gente pode dividir: formação familiar,
educacional, etc. O que foi mais forte pra ele? Se for a educação familiar, naturalmente ele se
dirigiu. Eu acredito muito na educação no berço, que te força, que te empurra, pra um caminho.
Quando o caminho que você encontra ao longo da vida, é um caminho que ele é mais forte do
que você aprendeu lá, a tendência é você ir pro imaginário e não pelo racional como você
aprendeu. Então, eu acho assim, que a inteligência ela é possível em todos os seres. Por que ele
pratica um crime? Por que a pessoa, dentro de um presídio, continua raciocinando como a
ampliar? Porque é da inteligência dela, porque ela acredita que ela pode. Portanto se você
acredita que você pode, você continua trabalhando, pesquisando, você acredita que pode
concluir esse trabalho. Você vai continuar pesquisando, vai continuar elaborando, então assim,
é o que eles pensam. A única diferença é que eles estão já cumprindo uma pena, por alguma
coisa que fizeram, acreditaram, mas que não era correto. Essa é a diferença.
Diante disso, você acredita que os ataques foram, e podem ser considerados, um ato de
inteligência?
Acho que quando você faz o uso da violência sem o aparato, sem ser pra sua defesa pessoal ou
da comunidade, como alguns policiais militares, que ele tem que se defender, não posso
acreditar que seja uma inteligência, é uma ―desinteligência‖.
167
O que o PCC ganhou com isso?
Eu não vi o foco até hoje, eu desconheço, onde eles queriam chegar com aquilo. Até hoje as
pessoas não sabem dizer, por quê que eles fizeram aquilo, o quê eles queriam com isso. Mostrar
poder? Força? Mas eles destruíram a própria organização deles, naquele momento. Então
quando eles tentaram usar isso, pensando que fosse o uso de inteligência, vamos dizer assim,
eles pensaram nas conseqüências também, eu acho, só que eles não imaginavam que fosse
assim, tão pesada.
Gostaria que você fizesse um paralelo entre dois momentos: O que foi o impacto do PCC
antes dos ataques para sociedade, e que eles representam hoje?
Olha, foi um momento muito triste pra nossa sociedade viu. São Paulo vivenciou nas várias
cidades, nas várias ruas, um clima de guerra. O clima de guerra existe o ataque e contra-ataque,
e todas as pessoas foram pegas de surpresa, os policiais no momento em que estavam na sua
vigilância, foram atacados. Então foi um momento muito triste que marcou a população pelo
medo, pelo pânico, e até hoje as pessoas quando se recordam ficam apavoradas. É, acho que
nessa semana, voltou a mídia alguma coisa do Marcola, não sei te dizer exatamente o que era,
porque eu pretendo me distanciar um pouco deste tema, que não tem nenhum glamour, não te
agrada. Então eu acho que pra trabalhar com essa matéria-prima, tem que ter um começo, meio
e fim, e eu finalizei isso, porque não era gratificante continuar conversando com jornalistas
com essa energia do crime. O quê que significa isso? Significa que cada vez que o jornalista
olha como é que foi um crime, você começa a falar isso com uma calma, como se fosse algo
natural. Então você começa a conversar, e aquilo vai passando a fazer parte do seu dia-a-dia, e
que não é benéfico pra sua você, pra sua saúde, então assim, você tem perder tempo
determinado pra entrar no período sabático em relação à isso. E isso marcou muito, eu acho que
não só a mim, mas a população toda. Foi uma coisa assim, horrível. E até hoje quando se ouve
falar PCC, dá aquela sensação ruim, mas graças a Deus passou e está sob controle. É essa a
sensação que eu tenho.
O Estado, ele está preparado para combater o PCC?
Eu não tenho condições de te responder essa pergunta. Porque, isso depende muito do trabalho
do dia-a-dia, das condições financeiras. Por exemplo, a verba do governo que vai para as
policias, para elas poderem fazer as escutas, para realizar seus trabalhos, da mão-de-obra
especializada. Então, eu acredito, que dá até pra se afirmar o quanto que eles tentam evoluir. Só
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que o criminoso também tenta evoluir, cada vez que se descobre uma nova tecnologia. Vamos
dar um exemplo: cada vez que se descobre um alarme, um anti-furto, o bandido já descobriu
como é que ele vai driblar isso. Assim, eu acredito no serviço de inteligência da polícia,
acredito que é possível, que ela passe na frente dos bandidos até porque, não só o preparo dela
em combater o crime, ela tem que estar especializada pra isso. Agora, como que a gente pode
afirmar se ela está preparada? Ela não estava preparada para os ataques do PCC? Foi pega de
surpresa e aconteceu tudo aquilo. Então é assim, teoricamente esta preparada sim.
Você acredita numa ideologia do PCC? - O que é ideologia do PCC? Não sei te dizer. O que
é ideologia do PCC? O que eles querem?
Seria o consumo pelo consumo?
A única coisa que a gente consegue entender é o início da carreira criminosa, quer seja na
infância, na adolescência, aqueles meninos, eles querem ter o poder. Como é que eles vão ter o
poder? Como é que eles vão ser destacados dentro da favela, ou qualquer outro lugar que eles
convivem? É, primeiro lugar, roubando as coisas que as pessoas admiram: é o tênis, é a
carteira, a mochila, etc. E a outra coisa, é através do respeito, ele consegue através desse medo
que ele provoca na equipe, e aí ele vai montar carreira ascendente, ou talvez sejam, fatores da
sociedade que influenciam a pessoa a chegar a ser o líder, de um bando criminoso.
Como você enxerga o medo no PCC e na sociedade?
O medo no PCC eu não saberia te descrever, o que me da à impressão de que a partir do
momento que a pessoa entra nesse mundo, o medo tem uma conotação muito diferente do
nosso medo, é algo muito diferente, não tem comparação. Nós não temos condições nem
capacidade de pegar uma arma e andar por aí com ela. Eles, já estão desprendidos desse medo,
dessa precaução. Eu tenho pavor de arma. Ao me aproximar de uma arma, eu já acho que
aquilo pode provocar alguma coisa desagradável, eles não. Então assim, não dá pra comparar,
porque acho que só um estudioso mesmo, poderiam entender o que passa na cabeça, porque os
medos deles, as metas, são muito diferentes das nossas. E como eu não sou uma estudiosa do
crime, na verdade, eu tive uma experiência, uma passagem de ter como matéria-prima, pra
passar pros jornalistas, o mundo do crime. Complicado. O mundo do crime, as ações da polícia,
é claro, das pólicias: da civil, militar, o instituto do médico legal, serviço de criminalística.
Então a análise que dá pra fazer, é que é um mundo muito diferente do nosso.
169
Você acredita que os jornalistas estão preparados pra noticiar esses fatos? Sejam de
organizações ditas criminosas, sejam da própria mentalidade de crimes hediondos?
Eu acho que o jornalista é um generalista. Ao mesmo tempo, quando ele começa a carreira
dele, ele vai para um salão de automóvel e não entende nada de motor, é obrigado a falar das
novidades. Então ele é pautado e vai lá e busca o que ele acha. Assessoria de imprensa é que
passa grande parte das informações e dá uma peneirada. É isso, isso e isso. Fechou a matéria e
mandou. Aí, a próxima matéria dele vai ser uma medida do governador. Então ele não tem nem
noção porque o governador está tomando aquela decisão, o quê impulsionou, que estudo foi
feito. Ele pode ter conhecimento da leitura, mas da pesquisa não. Então é muito complicado.
Ele é um generalista porque ele tem uma noção de tudo que ele vai fazer, e tudo que ele se
aproxima para o trabalho, quer seja uma cirurgia, uma tecnologia. Então, ele tem que ter noção,
mas ele nunca tem o profundo conhecimento. Aí, tem os jornalistas que são aqueles de setores.
Alguns deles pesquisam, chegam a publicar livros, porque se dedicam profundamente e, essa
dedicação de pesquisas, às vezes são publicáveis e esperam muitos anos para se transformar em
livro. Esses são os que conseguiram se dedicar e abdicar horas e horas de sono pra estudar,
esses tem muito mais embasamento. Ao contrário da maioria que vê o fato nu, da forma que
esta se enxergando, retratando, imaginando os seus medos, de um ser humano, de um cidadão,
colocando ali em cima, se exaltando com tudo aquilo, e passando pro telespectador, pro
ouvinte, pro leitor. E o outro, que já é especializado, ele vê o fato, ele busca os por quês disso,
faz as ações, faz as punições. Por que se chegou a isso? Então assim, é uma pessoa que vai
buscar mais informações. Então, poucos são preparados. Minha opinião.
Eles têm noção do medo disseminado pela população, formando uma cultura do medo?
Eu observo que os repórteres que cobrem polícia, gostam de cobrir. E eu não sei te dizer por
quê. Não sei se é pela proximidade com as autoridades, pelo número de fontes que conquistam,
e aí realizam o trabalho mais tranqüilo, pela meta do dia-a-dia de trazer um ―furo‖ pro jornal.
Então assim, eu não sei te dizer exatamente, eu me lembro do meu período de repórter de
televisão, que cada dia que vinha uma matéria de polícia eu trocava com um repórter, que era
um grande amigo que estava começando na área, e que hoje é um repórter de polícia do Jornal
Nacional. Ele seguiu essa carreira e a paixão dele era essa. Eu estou falando aqui e me
lembrando muito dele porque ele tinha um prazer. Se o mandasse fazer uma matéria sobre uma
descoberta, um prêmio Nobel, uma estréia de um grande espetáculo, João Gilberto se
apresentando; ele dizia ―Ah não, isso não é comigo não‖. Agora, uma matéria de crime, era
com ele. E você via que era a meta dele. Ele foi, estudou e se dirigiu a isso. Agora eu não sei o
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quê que move a pessoa a isso. Exatamente assim, o que leva a escolher. Assim como fica fácil
pra você definir quem escolhe cobrir o mundo da moda, o lado fashion: uma identidade. Este
repórter até hoje mora em Itaquera. Itaquera é um dos bairros mais populosos de São Paulo.
Índices de criminalidade alta. Então eu não sei se era uma forma de se proteger, de ser
respeitado, ou aquele convívio que impulsionou. Isso eu estou te contando coisas de 15 anos
atrás, sei lá, talvez até quase 20, enfim. Essas pessoas que escolhem esse mundo, ou elas
acabam sendo colocadas ali. Percebem que todo policial quer mostrar que ele trabalhou, é uma
obrigação dele proteger, é uma obrigação dele combater o crime de um assaltante, prender. Mas
ele não só esta contente com a realização do trabalho dele, ele quer que as pessoas reconheçam.
Todo mundo, não só o policial, Todo mundo quer ser reconhecido pelo trabalho que faz. Aí, a
primeira coisa que ele faz é pegar o telefone e ligar para um jornalista. Quanto mais fontes esse
jornalista tem, mais matérias também. Vai ter um leque de 10 matérias por dia pro editor dele
olhar e falar ―É, então vamos investir‖, ―Então vamos escolher essa‖, e aí vai. O policial civil é
a mesma coisa. Ele faz uma grande apreensão de drogas, e põe até o número da equipe dele e
tal, com as munições, escreve. Tem orgulho em realizar aquele trabalho, é a obrigação dele
fazer aquilo. Mas é um triunfo, que é natural para todos os seres humanos. Eles querem ser
reconhecidos pelas coisas que fazem. Médico é a mesma coisa. Cirurgião é a mesma coisa,
enfim. Um grande feito, ―eu operei‖, ou aquela plástica dentária, entendeu? Enfim, cada um
quer mostrar, o seu grande feito, e ser reconhecido, e assim é com eles também. Só que tem
uma diferença: Um médico que fez uma belíssima cirurgia de coração em um paciente, a
alegria dele é o paciente estar vivo, ser reconhecido pela família. Pela família, um grupo de
pessoas do hospital. Então você vê, é um público menor. Enquanto que, essas ações da polícia,
quando eles levam pra mídia, a gente se recorda de casa, o que aconteceu lá do outro lado, em
Fortaleza, entendeu? Por quê? Porque teve o uso da mídia pra ampliar isso. Então assim, eu
num sei se existe tanto medo do repórter de polícia quanto do cidadão comum.
Esses profissionais, eles têm dimensão do impacto das matérias publicadas?
Ah tem. Agora, você tem que avaliar duas coisas: o repórter, como o próprio nome diz, está ali
para reportar fatos. Ele acaba passando o que vê e as declarações que tem, de acordo com a
coleta desses dados. Diferente de um programa de televisão, ele veio de um carreira de
repórteres, e como é um apresentador, precisa fazer audiência. Então aí, é um outro enfoque.
Ele não tem comprometimento com o delegado, coronel, etc. Ele não está em campo. O
comprometimento dele é com a audiência, porque alguém patrocinou o programa e ele precisa
dar audiência, porque senão o dono da TV vai falar ―Olha, esse programa, vamos diminuir o
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tempo, vamos tirar do ar‖. Aí, em muitos casos, esse apresentador exagera. Isso não é um
privilégio de emissoras pequenas. Todas tem isso. De cometer deslizes, principalmente quando
está se fazendo um programa ao vivo de grandes coberturas. Então exagera. Eu me lembro da
época do PCC, quem acabou provocando o pânico maior, foi a TV Record, que depois se
desculpou. Depois foi a vez da Rede TV à noite. Então assim, cada emissora com seus
programas e apresentadores ao vivo, buscam a audiência e cometem exageros. Agora, por outro
lado, cometeram exageros sim, mas a nossa situação era muito diferente. Nos ataques do PCC
ficamos com muito medo, como era uma situação nova a gente não sabia em quem acreditar,
estou falando enquanto espectadora, não dava pra saber se o que o repórter estava falando era
verdade ou ele estava aumentando. Agora, quem estava envolvido, tendo conhecimento não do
fato em si, mas do levantamento de estatísticas dos acontecimentos exageravam na divulgação.
Diferente do que estar ouvindo ou vendo, você tem todo um campo para avaliar se realmente
aumentaram. Depois tiveram que se retratar, como aconteceu no mesmo dia. Você precisa ver o
comprometimento de cada profissional e qual é a intenção. Cada um tem sua meta a cumprir,
mas tem um peso nessa meta que se chama status.
No período em que você estava como assessora, existiu distorção nas informações
passadas aos jornalistas?
Olha, foi a experiência mais interessante em termos de divulgação de assessora de imprensa,
pois quando esses ataques aconteciam, simultaneamente em vários lugares, os repórteres
ficavam sabendo antes de nós. Por exemplo: houve um ataque em Sorocaba, a TV, o rádio, tem
a comunicação da polícia, por isso ficavam sabendo primeiro. Enquanto a equipe ia pro local
pra cobrir, a redação da TV ligava pra secretaria, pra perguntar mais detalhes. Aí o que
acontecia, eu acabei formando uma rede: ―Ó, qualquer suspeita que vocês tiverem, mesmo
antes de mandar a equipe, me liga que aí eu peço no setor de comunicação da polícia para
checar, diretamente no local‖. Então, a informação no primeiro momento vinha ao contrário.
Não era exatamente a gente que divulgava o que tinha acontecido, era a imprensa mostrando
―Olha, foi atacado, foram atacados tantos ônibus, foi atacado uma base. Quando eles nos
traziam isso, a gente checava, e aí a informação vinha: Foram tantas pessoas, ninguém foi
atingido, foi só o patrimônio que quebrou. Assim, constituiu-se uma rede de trabalho
maravilhosa, e todos comovidos com aquele momento. Foi assim, uma união, uma força de
trabalho, eles trazendo pra gente e a gente fazendo planilhas, de cada lugar, e uma equipe ia
checando tal lugar, pra poder ter a informação. Não houve distorção nesse momento dos
172
acontecimentos. Aí depois, claro, passaram a chamar ―especialistas‖, repetir as imagens na TV
várias vezes, e a dimensão dos fatos foram aumentando gradativamente.
A sociedade estava preparada para receber as informações a respeito dos ataques?
Ninguém estava preparado. Nem eu, nem você, nem ninguém. Nem o governador, nem o
secretário. Ninguém estava preparado. Nem a própria pólicia. Tanto que a polícia tem toda
estrutura, mas foi pega de surpresa. Enquanto se imaginava na hora, está todo mundo
trabalhando. Pra você ter uma idéia, eu me lembro de uma vez que um jornalista falou assim:
―Mas a polícia vai colocar policiais militares uniformizados ou à paisana dentro dos ônibus? Se
eles estavam sendo alvos de ataque‖. Na verdade eles estavam indo nos ônibus pra dar
segurança para o usuário. Todo mundo achou que se o policial vai de uniforme trabalhar, ele é
alvo de ataque. Aquelas pessoas em volta deles estão em perigo. Então, acho que ninguém
estava preparado, é uma coisa muito triste.
Você acredita que a mídia tenha manipulado o PCC, ou o PCC manipulou a mídia nos
ataques?
Acho que nem um, nem outro. Acho que houve, por parte da mídia, ao longo do tempo, um
aproveitamento da situação. Se você parar pra avaliar, esse ano a gente passou a metade do
período falando na ―Família Nardone‖. Metade do ano todo mundo comentando e você
ouvindo. Você ligava a sua televisão, seu rádio e era só isso. Que coisa mais chata do mundo,
aquela sensação, o que aquela família passou, enfim, e você ter que rebolar toda hora, pois
tinha aquele episódio: vai ser investigado isso, vai ser feito aquilo, vão pra cena do crime. E
agora no segundo semestre, é o caso da menina Eloá. Estou tentando cada dia mais me
distanciar, a menina seqüestrada pelo namorado. Eu acho assim, em alguns momentos a média
de audiência sobe porque as pessoas querem ter conhecimento, e a imprensa então atende esse
anseio, essa expectativa. É o que passa ―glamourizar‖, entre aspas, o mundo do crime. Às vezes
em algumas matérias, eles querem mostrar como foi feito. Então, não é que a mídia dá um
destaque além do que deveria, não. Ela acaba ―glamourizando‖ o assunto, que não é nem pelo
repórter, é pelo editor. A própria audiência puxa. Pra você ter uma idéia, quando a filha do
Silvio Santos foi seqüestrada, em que o seqüestrador entrou na casa dele, o governador
Alckmin foi até a casa. Aquele dia, eu olhei a audiência, a Globo nunca teve uma audiência
naquele horário, que é horário de desenho, programação infantil, antes do almoço. Eles
entraram ao vivo de lá, começaram a mostrar direto com os repórteres. Então, ela teve uma
audiência nunca vista na historia da TV transmitindo isso. Quem saiu ganhando com isso? É,
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foi uma comoção imensa. Muitas pessoas admiram o apresentador Silvio Santos, o empresário
Silvio Santos, mas assim, todo mundo acompanhou e ficou sensibilizado. Quem ganhou foi a
Globo com a audiência. Enquanto o próprio SBT se manteve. ―Não, vamos manter a
programação normal‖. Até a hora que chegaram à conclusão ―Não, agora não tem mais risco, já
está tudo certo, pode passar‖.
Nós acompanhamos a mitificação do Marcola. Hoje nos parece, que muita gente tem uma
identificação com esse tipo de pessoa. Você acredita que a comunicação e a própria mídia
ao “glamourizar” todas essas notícias têm culpa?
Não sei se é uma culpa. Eu acho que os seres humanos têm que ser admirados sim, pelos seus
feitos. Quando você faz uma coisa boa, maravilhoso! E quando você faz uma coisa que não é
boa, pra você, pra população, pra sua vizinhança, não tem porque ser admirado. Se não é bom,
por que vai ser admirado? Aí, qual é a intenção da mídia? É mostrar quem é esse cara que esta
fazendo tanto mal. Nesse percurso de mostrar quem é esse cara, começa a mostrar que ele tem
inteligência. É o que eu falei lá trás, todos nós temos inteligência. Todos nós temos. Basta você
canalizar para onde você quer isso. Mostra que o cara leu um livro qualquer quer dizer, qual a
importância? Você pode pegar matéria com moradores de rua, grandes intelectuais, que estão
ali e que já leram muita coisa. O engraçado é que ninguém tem interesse em mostrar o que esse
cara fez. Por que? Porque ele não fez, não tem um grande feito de conhecimento, nem do bem e
nem do mal. Então assim, nessa ansiedade de mostrar quem é esse cara que esta fazendo tanto
mal, acaba mostrando esse tipo de coisa. É a mesma coisa que mostrar como se faz pra roubar
um carro. ―Toma cuidado, porque eles agem assim, assim e assim‖. No momento em que você
está lá, explicando didaticamente como eles agem, você está formando mão-de-obra de
bandido. Então é assim, isso cria uma identificação. Não sei se seria a palavra correta
identificação, mas as pessoas começam a dizer:―poxa, ele lê, num país onde ninguém tem
dinheiro pra comprar livro, mas ele lê, olha o livro que ele está lendo‖. Nem sabe do que se
trata, que livro é, mas admira porque o cara lê.
O PCC é admirado e respeitado em muitas comunidades carentes, a que se deve esse
feito?
Olha, falar que o trabalho deles é bom, não dá. Que aí a gente estaria generalizando. Tomar
algumas ocorrências, por exemplo, distribuir comida na favela, cesta básica; essa é uma
obrigação do Estado, cuidar da sua população. Gerar trabalho, gerar possibilidades de
sobrevivência, gerar creche, gerar merenda; essa é uma obrigação do Estado. E aí que
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percebemos uma grande falha. O que o PCC faz é ir lá e ajudar. Agora se você analisar o que
eles ajudam, aquilo não é nada. Para quem é bom aquilo, se sair de cena isso, alguém vai
chegar ali e vai atuar, e esse alguém pode ser do bem, pode ser uma associação, uma
instituição, aquelas pessoas que entregam sopa, que entregam cesta básica, alimento não
perecível, ou seja, alguém vai olhar. Só que o que acontece, eles percebem esse buraco. É uma
forma de estar trazendo pessoas que seriam eternamente gratas a eles. Alguém é bom? Não,
eles estão usando já essas pessoas. Bons como? Essas pessoas que recebem os benefícios do
PCC devem estar envolvidas de alguma forma e tem que pagar um preço. Uma mãe que vê o
filho estudando direito! Quem não quer o filho com estudo, formado doutor, enfim. Ela deve ter
uma eterna gratidão. Agora, a que preço?
Você acredita que a família, ela tem um papel fundamental para o PCC?
Família! Eu acho que eles trabalham com as dificuldades da sociedade.
A que se deve o sucesso da comunicação dentro dessa organização?
Não sei se eles têm sucesso nessa rede de informação. Porque eles mais perdem esses
integrantes, do que eles ganham. Tanto que eles tão enfraquecidos, eles tentam formar uma
nova mão-de-obra, mas eles acabam perdendo. E eu acho que se perde exatamente pela
comunicação errada.
Se nós fossemos, até relevar o que muito da mídia disse, é possível um homem parar um
Estado com um celular?
Não acredito. Não acredito.
Como você percebe a comunicação do PCC?
Olha, como eu nunca gostei de fazer matéria de crime, eu entrei poucas vezes em presídio, mas
entrei. Entrei no antigo Carandiru. Lá dentro é um outro mundo, é um outro universo. A gente
não tem noção do que eles são capazes, a manobra entre eles e o mundo que a muralha cerca.
Então, o celular é o desastre, é o desastre. Por que é o desastre? O Estado solicita a Embratel
que intercepta o sinal naquela região. Gera um desconforto pra vizinhança, que fica sem o sinal.
A vizinhança entra com processo contra a Embratel, que quer ser ressarcida! Aí o quê que
acontece, é preciso construir presídios que se adéqüem as condições necessárias sem prejudicar
a população. O Estado tem dinheiro suficiente pra poder preparar todos os presídios assim?
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Existe a luta do Estado para colocar o preso no lugar de preso. Então assim, é que eles
conseguem ter uma comunicação.
Como você vê a morte pra um presidiário, ou mesmo pra um criminoso?
Eu acho que a morte ela é igual para todos nós. O medo é que modifica. O medo da morte para
quem quer viver aqui fora, quem quer realizar muito, pode ser grande. Agora, o criminoso que
já colocou a vida dele em risco, quer dizer, ele já teve próximo a morte no momento em que
pega uma arma e vai trocar tiro com alguém. Só que pra eles, o medo, deve ser diferente. Não é
que o medo deve ser diferente, veja bem, o ―botãozinho‖ que dispara o medo na gente, tem
mais intensidade, do que o botão que dispara o medo neles. O criminoso que esta dentro do
presídio, por exemplo, já sabe que tem que cumprir não sei quantos anos, é a pena dele. O que
ele vai perder? Ou ele tem que ser um preso com bom comportamento para cumprir uma pena
mais leve, ou seja, cumprir apenas uma parte, ganhar liberdade e começar de novo. Recuperar
preso eu acho que é uma coisa que não existe. É muito raro. Dá pra contar os casos. Eles ficam
ali, vivenciam, aprendem muitas coisas no mundo do crime. Este aprendizado faz com que eles
tenham uma nova oportunidade no mundo do crime.
As oportunidades também, nesse meio, são maiores do que a própria sociedade oferece?
Do preso? Acho que não. As oportunidades para a realização do crime é ele quem cava.
Porque, na verdade o assalto, o furto, etc.; acontecem por um único fator: a oportunidade. Então
nós damos as oportunidades para eles. As nossas oportunidades são muito maiores, em todos os
sentidos do que a nossa. Já pensou ficar 24 horas sem fazer nada. O que eles deveriam ter, na
verdade, é uma outra linha de raciocínio. Quando deixa de cumprir uma pena, que saiu de uma
prisão, eu acho que o que eles tinham que ter, ao longo deste período, um encaminhamento
para recomeçar aqui. O que não acontece. Ah, tem preso que trabalha que faz algo, que costura,
não sei o que, na oficina. Isso é um terço.
Qual a maior dificuldade do Estado para combater, não só o PCC, mas as outras
organizações criminosas?
Dificuldade! Eu acho que o Estado é preparado sim. Depende agora, de recursos para que se
trabalhe à cada dia mais. É uma busca incessante, você vê, cada governo que entre e diz ― Eu
vou dar tanto de recurso pra tal pasta, tal, tal‖. Todos querem contribuir, mas nem sempre é
possível realizar a contribuição. Então assim, acaba ficando na promessa.
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A continuidade política atrapalha esse processo?
Acho que às vezes sim, às vezes não, depende muito da vontade da política do partido.
A mídia ajuda ou atrapalha o governo no combate ao crime?
Eu acho, no geral, que ela ajuda, porque também é um agente fiscalizador do trabalho, das
realizações, se cometeram exageros, se não cometeram exageros, tanto na atitude do
governador, na briga da policia civil e militar na porta do palácio, etc. A função é ajudar. Só
que dentro deste auxilio, você tem que contar com todos os egos, que acontecem. Existem
várias coisinhas que vão compor essa área. Mas no geral, ajuda.
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Personagem II
Data: 18 de novembro de 2008
Início da Entrevista: 16h37min
Encerramento:
Formação: Padre
Função que exerceu em junho de 2006: Coordenador da Pastoral Carcerária da
Arquidiocese de São Paulo
Qual seu entendimento sobre crime organizado?
De duas formas. Primeiro, nós temos o crime organizado das grandes organizações mundiais
que mobilizam, segundo o próprio Ministério da Justiça, ou melhor, a Policia Federal, em
palestra realizada em Brasília semana passada, 25% da economia mundial está nas mãos do
crime organizado. O que nós temos aqui no Brasil, em nossas penitenciárias, chama-se a
―Delinqüência Organizada‖, que é a base, que é o soldado raso, do crime organizado.
Quando foi a primeira vez que o senhor ouviu falar sobre a facção PCC?
Olha, nos trabalhos realizados no Carandiru, em que eu já atuava também na pastoral
carcerária. Quando eu comecei a atuar, se comentava vagamente, já no ano de 98, da
organização, do pessoal se organizando. Mas antigamente, como esta facção vem posterior a
―Serpente Negra‖, que foi a primeira aqui do Estado de São Paulo, era a mais comentada,
principalmente depois que se juntou com a ―Falange Vermelha‖, do Rio de Janeiro. Depois
começou a se comentar aqui no Estado de São Paulo, a Seita Satânica, que também antecede a
estrutura do PCC.
Como funciona esta organização?
Nós podemos analisá-la primeiro na parte interna de uma prisão, depois na cidade, depois em
termos de redes. Ela funciona como estrutura hierárquica de uma empresa. Na base se
encontram os chamados ―Faxinas‖, aqueles que estão dentro dos presídios, nas alas, que tem
um contato direto com a procuração carcerária. Depois deles tem os ―Pilotos‖, o piloto, em
cada presídio, tem aquele que é o responsável pelos ―faxinas‖, ou então ele é o negociador,
como também pode ser o juiz de cada unidade, onde toda ação interna entre os presos
existentes em termos de conflito e de briga, só pode ser resolvida com a palavra final dessa
pessoa. Depois temos os ―torres‖ aqui fora. Até chegar ao alto comando desse gerenciamento,
no nosso entender hoje, são as pessoas que ocupam os cargos superiores, ou líderes. É uma
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pessoa que está a frente, além de possuir por volta de 6 pessoas ao seu lado. Para o
planejamento estratégico, existem algumas pessoas certas pra isso. Outra função é o
comunicador, que faz a parte da comunicação. O estratégico analisa, discute e compra
projetos de outra pessoa que trabalha na elaboração estratégica. São grupos de pessoas que
fazem isso para vários grupos no país, e também enquanto eles precisam. Essa estrutura é bem
definida: a posição, os cargos e a função de cada um. Um não pode invadir o espaço do outro.
Dentro dessa hierarquia, se alguém fizer alguma ação sem consultar o comando superior, é
punido normalmente com a morte.
Qual é o papel da comunicação nessa estrutura?
Temos dentro da hierarquia, da estrutura, uma pessoa que é responsável pela comunicação.
Por exemplo, toda ordem parte dessa pessoa, para rua, ou mesmo para outros presídios. Então
uma pessoa que é responsável da comunicação possui papel essencial. Ela consulta, vamos
supor, quem está a frente do comando geral nunca fala para a rede interna nem pra rua, passa
por ela. A prova disso se deu, assim, algo bem expressivo, quando houve a negociação dos
ataques de maio, no Estado de São Paulo, quando foi um grupo da Secretaria de Segurança
Pública, e o Diretor do Presídio Presidente Bernardes, falar com o comando. Na hora o
comando disse: ―Eu não me comunico com as pessoas, eu só falo com a minha família‖.
Então, vamos chamar aqui dentro da reunião quem é responsável pela comunicação. A pessoa
veio e participou da reunião também, e pelo celular ligou para as pessoas internamente ou
externa dos presídios.
Pode-se falar então Padre, que o estado de São Paulo, no mês de maio de 2006, parou
por causa do celular. Isso é uma colocação que a mídia diz, que o Marcola, na verdade,
ele parou o Estado. O senhor acredita que isso seja possível?
O celular foi um dos meios de comunicação. Não foi só o celular. Houve, como isso é
comprovado, como nós temos o material que foi produzido na época, o livro ―os Crimes de
Maio‖, lançado pela Condec, que é o melhor relato dos crimes de maio, em termos de laudo
médico e de todas as pessoas, das equipes que atuaram de forma direta, como: Ministério
Público, Defensoria, etc, uma analise mais cientifica do que aconteceu. Então o celular foi um
dos instrumentos usados.
Padre, o que está por trás dessa comunicação nos presídios?
179
Eles têm hoje várias formas de comunicação, e também códigos de comunicação. Por
exemplo, até as cartas que entram dentro das unidades. Quem olha assim, com olhar rápido,
não percebe nada de estranho. Mas ao ver as cartas, praticamente há códigos, palavras do
meio que tem outra leitura interpretativa. Temos as comunicações feitas por quem visita.
Então, existe toda uma rede aí que apóia essa comunicação. E outra coisa, eles tem um grande
tempo pra estudar, pra elaborar, criam também técnicas de comunicação constantemente
novas. A última que eu vi, que me surpreendeu, é usada em países em guerra, a utilização de
códigos de comunicação. Hoje muito usada em presídios aqui em São Paulo.
Existe ideologia no PCC?
Olha, seria bom dizer se você vai tratar só dessa facção. No estado de São Paulo existem mais
12 facções atuando. Eu creio que se forma uma ideologia até como uma necessidade de
manter os membros, até de cultuá-los em volta de uma liderança. Por exemplo, as
organizações aqui do Estado de São Paulo criaram a partir de uma necessidade de se impor
perante o Estado. Em termos da violência sofrida, do abandono e da forma de organização
entre eles. Então, as organizações se estruturaram a partir do narcotráfico, do seqüestro, do
crime; para financeiramente se ter advogados, para se ter remédios, pra quem era doente e não
tinha atendimento à saúde, e também aos familiares, para poder acompanhar e também ter o
seu ―Jumbo‖, que é aquele alimento que a família manda para a pessoa presa. Criou-se
organizações internas que evitam hoje as briga esporádica, a morte, os abusos também. Abuso
em termo sexual, que você é proibido no presídio. Toda a droga hoje que entra nas cadeias são
altamente controladas. Por exemplo, homens pertencentes à alguma facção é proibido hoje de
usar o crack, que cria um distúrbio comportamental muito forte, isso dentro das unidades.
Mas também existe a mesma ordem hoje, a mesma organização, fora dos presídios, atuante
nos bairros. Hoje, a maioria dos bairros da cidade de São Paulo, e também do interior do
Estado são determinadas pelo grupo que dá as ordens de comportamento. A questão da
violência no Estado caiu bastante, porque há um controle rigoroso do crime organizado. Eles
determinam onde pode ter briga, aonde pode ter morte, tudo por uma ordem de cima. A
polícia e o Estado, de certa forma, atuam também, mas de uma maneira diferente.
O Estado é o grande responsável por essa proliferação do crime organizado?
O Estado a que se compreende com os três poderes, não pode se atribuir à apenas um. Em
nossa leitura, hoje essa situação compreende o executivo, o judiciário e o legislativo; e
podemos somar também outros poderes aí, o econômico e a mídia. Esses são os cinco poderes
180
que atuam sobre isso. Então primeiro, pelo abandono, tem que deixar a população presa.
Nossa população, hoje no Brasil, já estão na casa dos 450.000. No Estado de São Paulo, já
está chegando a 161.000 pessoas presas. É o pobre, é o jovem e o analfabeto. Então, ficam
abandonados a mercê de todos os descasos, dos poderes todos. Então, uma forma do povo,
dos excluídos, poderem se organizar, para poder se impor. Por isso criaram a estrutura dos
crimes organizados.
Qual a influência que hoje o PCC exerce sobre a sociedade?
Ela exerce de várias formas. Primeiro nas classes pobres, dentro dos presídios e na rua, com a
ajuda material, prestando assistência onde o Estado falha. Quer seja transporte, cesta básica, a
saúde, e outros materiais. Por outro lado, também promove o medo, através das suas ações
criminosas. Então ela é bem forte, ela ajuda nas partes essenciais, e também em seus
componentes a ficarem com medo. Explora também os seus membros, exige o pagamento de
uma taxa. Quem não paga é punido por isso.
O senhor acredita que a relação de medo estabelecida pela liderança é uma forma de
controle e de gestão dessa organização?
O medo tem uma força muito grande. Pra você ter uma idéia, de como o medo é grande: o quê
o Estado está fazendo em São Paulo? Hoje, a secretaria do Estado de Segurança Pública, e os
poderes judiciários, estão fechando os presídios para a comunicação. Para ninguém mais saber
o que acontece lá e filmar. Ninguém mais pode entrar hoje nos presídios, como para filmar,
para entrevistar. Para que a população não fique apavorada em saber o que lá dentro estão
planejando fazer. Então, hoje o Estado bloqueou o sistema prisional em termos de
comunicação, para diminuir o medo da população. Isso aconteceu após o ataque de maio.
Você acredita que essa seja uma atitude acertada do Estado?
Era necessário, porque o sistema prisional, as cadeias, são do Estado, é do povo. Deveria ser
um local tão bem visitado quanto um hospital. Lógico, com toda a segurança necessária.
Concordo, necessária. Mas a pessoa devia adentrar mais. As universidades deveriam fazer
trabalhos nestes presídios, de pesquisas, de corporação, também de terapia ocupacional, para
transformar essas pessoas. Quando você faz um muro, que é imposto pelo medo, você cria
aqui dentro pessoas mais preparadas, ou melhor, articuladas, para usar do medo como uma
forma até mesmo de violência e de poder.
181
O que seduz as pessoas a entrarem na facção?
Quando você chega preso hoje em qualquer unidade, é obrigado a tomar um banho todo dia,
fazer a barba, escovar os dentes. O Estado não fornece esse material, sabonete, escova de
dente, pasta de dente, papel higiênico. Você é obrigado pela lei, mas você não tem o material.
A facção sempre dá gratuitamente para você. Você tem a sua esposa lá fora, com as crianças.
Precisam de cesta básica. O Estado não vai dar. A facção vai lá e oferece. Bonifica toda a sua
família. Então, primeiro é pelas necessidades materiais que se vê obrigado a entrar na facção.
Segundo, tem também a sedução, realmente do fascismo do consumo, para ter coisas
melhores. Eu digo que essa é uma parcela muito inferior, a maioria entra pelas necessidades
econômicas.
Qual é o papel da família para o membro do PCC?
Para você ter uma idéia, a pastoral carcerária é a única instituição que tem atuado de maneira
bem prática com a família, acompanhando, levando para os órgãos municipais, assistente
social, escolas e creches. Esse preso começa a ter uma atitude comportamental diferente no
presídio. Muda, ele fica mais tranqüilo, fica mais calmo, ele começa a pensar mais em
trabalhar, estudar. Quando a família esta lá fora, abandonada, jogada fora, a situação dele é
totalmente diferente. Aí se agarra realmente ao PCC como forma de apoio a sua família. Isso
é muito forte. Esse quadro da família para um preso é muito importante. Não se faz uma
recuperação da pessoa que está no mundo da delinqüência, tirar também da dependência
química, sem um trabalho com a família.
A família também pode atuar de outro lado, incentivando a esse preso a permanecer no
PCC, ou não?
Você encontra uma diversidade muito grande de comportamentos. Porque o crime em si
também fascina. Veja, qual é o preso no Estado de São Paulo, que mais recebeu cartas
apaixonadas de mulher? Quem mais recebeu propostas de casamento no estado de São Paulo?
Quem foi esse preso? O famoso ―maníaco do parque‖. Para se ter idéia, ele escolheu entre as
candidatas para casar, a que mais ofereceu advogados, uma empresária rica. O crime também
seduz, fascina. Tem uma coisa meio doentia, isso fascina. Esses grandes líderes do crime têm
várias esposas. Muitas meninas, muitas jovens, têm o prazer de dizer que conhece fulano de
tal. Eu sou a esposa dele, a namorada. Falam isso como se fosse de um grande valor, até
terminarem assassinadas.
182
Qual é a relação da morte com esses presos membros da facção?
Isso nos tem questionado bastante. As primeiras pessoas que eu vi e foram mortas na época
do Carandiru, eles vêem como alguém que não prestava, até alguns se afastam do corpo da
pessoa como se fossem bichos; ―isso não presta padre‖. Quando eu rezava perto do corpo, eles
diziam ―sai de perto, isso não presta, não presta!‖ As mortes dentro dos presídios infelizmente
tem acontecido freqüentemente com requintes de violência, como se estivessem aniquilando o
mal. Descarregam toda revolta e frustração que tem com a sociedade, o sistema prisional, a
sua falência moral e social. Agora, quando é um crime cometido aqui fora, contra a criança,
contra uma mãe principalmente, há uma revolta interna dos presos, eles punem normalmente,
quem agride a criança como abuso sexual. Coisa intolerável dentro dessa organização no
Estado de São Paulo.
O Senhor comunga da idéia de banalização da morte como uma imposição de poder, de
demonstração para os outros de superioridade?
A morte tem certos critérios, então é bem claro no próprio estatuto deles. No estatuto e
também nas conversas deles, se diz como determina quem quebrou a palavra e como será
punido. Então se usa a determinação com certas punições, depende da ação existe a sanção.
Para certas normas quebradas a punição é a morte, e para eles, a lei não é flexível. Quebrou as
regras é a pena aplicada, seja para quem for, a um rigorismo muito forte no que acertado entre
eles, o combinado.
Padre, voltando às questões dos ataques de maio. Muito se fala e pouco se entende, qual
sua opinião a respeito das intenções do PCC com os ataques de maio?
Nós tivemos uma conversa após o ataque com as lideranças. Eles esperavam uma reação da
sociedade para que isso viesse à tona, como o abandono jurídico, falta de atendimento, a super
lotação, a falta de assistência à saúde, o abandono total em que vive a população mais carente
dentro dos presídios. Essa era a grande meta. Segundo eles outras formas foram usadas como:
contato com a imprensa, cartas pedindo socorro aos órgãos de direitos humanos, a juízes entre
outros. Não tiveram nenhuma resposta, não foram atendidos em nada, então partiram para
uma forma agressiva, e não conseguiram resultado, tiveram pouco sucesso. Depois de
somarem os resultados, perceberam que o apoio que tinham antes, diminuiu ainda mais com
os ataques, por isso foi feito uma apostila das mudanças de ações do PCC, as novas metas de
ação, como eles iriam trabalhar, então com a apostila, com vários itens, e não mais com as
ações truculentas que usaram naquela época, que foram frustrantes na análise deles.
183
A perda foi grande da facção com os ataques?
Houve uma reação, houve uma repressão, a estrutura praticamente se manteve a mesma,
porque nessa estrutura da delinqüência organizada criminal, é uma estrutura dinâmica, se
fosse uma perda de 10, tem 100 na fila para pegar aquela posição. Se houver uma perda do
tráfico aqui fora, da chefia, nas favelas, de uma rua, existe uma ação imediata. Então não há
uma preocupação de quem está no auto-comando do crime organizado, como de quem estaria
no auto comando no meio da repressão. Mata-se 10 hoje que são chamados de ―soldados do
crime‖, amanhã tem mais 10. Então, isso não abalou a estrutura organizacional do crime.
Agora, o que se espera nos presídios, que como falavam só no PCC, outras organizações que
foram derrotadas, reapareceram.
Diante dos ataques o senhor se viu como vitima ou como telespectador desses ataques?
Nem como vitima, nem como telespectador. Nós temos que agir. A Pastoral foi solicitada em
vários presídios para negociação, tanto pelos presos quanto por funcionários. Nós temos que
administrar junto com o povo essa ação, á a única nessas horas. A única entidade que é
chamada, que entra para negociar, é a Pastoral Carcerária. E é bastante chamada em várias
partes do Estado. Mesmo quando começou a acalmar um pouco, foi a primeira entidade que
teve vários entrevistados, para verificar a situação, como podia agir, e assim por diante. Para
evitar conseqüências piores ainda. Então, entramos em cheio nos trabalhos para tentar acalmar
a situação.
Padre, como a Pastoral ganha à confiança do preso, do próprio governo, mediando essa
situação tão conflituosa?
Nós temos uma ação já histórica dentro dos presídios. Ele trabalha com o preso, e não com a
facção. A igreja, a Pastoral Carcerária da igreja católica. A nossa ação é contra toda forma de
violência, seja do cidadão, seja do Estado. Defendemos a justiça, defendemos a vida,
queremos a paz. Então, não aceitamos nada que seja contra a vida, nos posicionamos
abertamente contra. Por isso, qualquer preso sabe que vai contar com uma ajuda humanitária,
podendo recorrer a Pastoral Carcerária. Nenhuma porta se fecha pra ninguém. Por um lado
eles têm a nossa ajuda no sistema prisional, e por outro lado, a secretaria e o governo também
sabem, que a pastoral é o olhar de inspeção e fiscalização contra crueldade nos presídios.
Somos reconhecidos nacionalmente hoje. Somos chamados periodicamente em Brasília, para
avaliar, discutir e também propor. A pastoral também propõe muitos projetos de lei que
184
existem hoje, referentes ao sistema prisional. A Pastoral é chamada pra debater e discutir
também. Portanto, é um trabalho histórico e humanitário nos presídios, também de olhar
atento e crítico, e tema de sugestões que nos faça ser reconhecidos e ter esse espaço hoje já
conquistado.
Os líderes do PCC também têm esse reconhecimento com a Pastoral?
Ela trata com a pessoa e não com a liderança. Nós entramos em todos e qualquer liderança de
presídio e grupo organizado dentro de uma comunidade carcerária.
Padre, até com relação aos ataques. Você acredita que tenha existido um próprio
exagero da mídia ao noticiar todo aquele cenário que foi passado para a população?
Eu creio que a mídia muitas vezes colabora com o crime, colabora com a violência. Digo para
você fatos bem concretos. Quando a mídia escuta um celular de dentro do presídio dizendo
que tal verdade é assim, não tem nenhuma certeza e não vai checar as informações, traz para a
cidade pânico, que não pode ser real. Tenho visto várias manchetes em revistas e jornais ou
mesmo na televisão, onde a pessoa vai checar e as informações não procedem. Por outro lado,
às vezes, a mídia atrapalha a própria polícia. Por exemplo, um caso bem concreto agora,
aquela questão da Eloá, aquela menina seqüestrada. O tempo todo estavam filmando toda a
ação da polícia. Dentro de casa, nos jogos, com a televisão ligada vendo toda a ação de como
entrar no prédio, quer dizer, a mídia trabalhou a favor de quem estava dentro, seqüestrando, a
mídia trabalhou o tempo todo a favor do seqüestrador e não a favor da polícia. Muitas vezes, o
que sai na imprensa não é verídico e o crime organizado trabalha com isso também. Por
exemplo, a gente checou aqui vários casos de denúncias fortíssimas, fomos checar e várias
delas eram infundadas, mas evidentemente alguém denunciou aquilo e, deve ter sido alguém
do Estado de São Paulo. Tem coisas que acontecem, mas a gente trabalha a favor do crime
organizado ao dar notícias que não condiz com a verdade.
O Senhor acredita que os jornalistas têm preparo para fazer um acompanhamento, por
exemplo, do próprio sistema prisional, da realidade do preso e mesmo dos crimes em
geral?
Recentemente eu fiquei surpreso com uma matéria publicada, porque o jornalista foi às fontes.
Por exemplo: quem é o responsável pelo presídio? Do preso? É o Judiciário? Muitas vezes a
mídia acha que é só o administrativo e não é. Quem prende? Quem solta? É a justiça. Primeiro
o foco da responsabilidade. Por exemplo: Quem é responsável pela fiscalização mensal do
185
presídio? Existe qualquer irregularidade. Quem é responsável por isso perante a lei? É o
promotor corregedor do sistema prisional e o juiz corregedor. Quantas vezes que a mídia
pegou no pé deles, cobrou deles? Se existe qualquer irregularidade, super lotação? Assistência
à saúde que não tem! Jurídico abandonado! Quem é responsável por isso também? Não, é o
Judiciário, é o Ministério Público! Ele pegou quem é o responsável e perguntou: porque a
situação está assim? É uma matéria completa, uma matéria científica, aqui esclarece a
população. A população tem que saber quem são os verdadeiros responsáveis pela situação,
que acontece e não colocar possíveis e imaginários personagens. Muitas vezes a imprensa cria
linchamento de possíveis pessoas criminosas, e já punem abertamente, cria revolta e não tenta
olhar a justiça nesses casos. Ela não contribui, ela acaba muitas vezes fortalecendo o crime.
Hoje sem dúvida nenhuma. Garanto-te isso, os meios de comunicação hoje, favorecem muito
a criminalidade no Brasil.
Quem manipula quem? A mídia manipulou os ataques, o próprio PCC em si? Ou o PCC
de certa forma manipula a mídia diante daquilo que ele quer colocar?
Você bem sabe que vivemos num mundo capitalista e a grande alma do capitalismo é o lucro,
e nesta ação os dois lucraram, a mídia e o PCC.
O PCC de que forma tem lucrado nisso?
A imprensa jogou o medo. Com isso, eles expõem-se a venda da droga, do comércio. E o
impacto, é um impacto na própria sociedade. A pessoa que sai na mídia, que cometeu um
crime, ela é recebida com respeito dentro do presídio, a mídia influenciou muito. Quanto mais
status a mídia dá para a pessoa. Quanto mais aparece, mais respeito ela se torna depois de
preso. Se ela quisesse cometer um crime, deveriam ignorar, e não fortalecer a pessoa. Alguns
países do mundo, não permitem que se exponha, para não fortalecer. Veja um caso que
acompanhei, em visita a um presídio vi um jovem recém chegado, em pouco tempo já era o
líder da cela, o chamado ―faxinas‖. Perguntei como é que ele chegou tão rápido a um cargo de
liderança? Ele respondeu, ―eu assisti e me vi na televisão várias vezes, todo mundo me viu na
televisão!‖. Então já se deu conta da sua importância.
Nós acompanhamos, até pelos noticiários, a própria mitificação do Marcola como um
grande ícone. Como o senhor tem acompanhado, diante das próprias famílias, essa
identificação de muitos jovens da periferia e até de outras classes sociais, com essa
pessoa de inteligência acima da média, como foi pintada pela própria mídia?
186
Exatamente, disse muito bem. A mídia o pintou como uma pessoa com grande inteligência.
Muitas coisas que dizem que o Marcola escreve, não são dele, foi à assessoria da facção. Um
fato recente aconteceu durante a rebelião de um presídio super controlado. Dois dias depois,
tive informação que estavam reunidos 50 advogados pagos pelo crime organizado para
prestarem seus serviços, à disposição durante a tarde inteira, colaborando e discutindo. Depois
é atribuído a uma pessoa o que sai naquela reunião dos 50 advogados? Ela assina depois o que
foi feito na reunião.
Padre, só como curiosidade, esses estrategistas dentro do crime organizado, fazem parte
do próprio sistema prisional, do próprio crime, ou eles são terceirizados?
O mais famoso que eu conheci, é terceirizado dentro do crime. Ele não pertence a nenhum
grupo, apenas vende projetos.
Ele está solto, ou está preso?
Não, estava preso, pelo menos acho que na cidade satélite, na época.
Qual é a visão hoje, do papel da Igreja Católica que ela assume junto a essas minorias,
tanto com relação ao crime organizado e de outras facções também no presídio?
Cyro desculpe, mas antes que eu responda essa pergunta; seria bom que você gravasse um
culto do PCC, por exemplo: uma celebração, para você ver como é cultuado isso, porque tem
toda uma celebração. Tem um canto inicial, tem a leitura da Bíblia, aí tem a pregação, depois
tem um tipo de uma oração. Depois, na Bíblia, você pega sempre um texto ligado a um
profeta, assim mais do Apocalipse, aonde na hora da pregação, o líder ali, compara aquele
profeta bíblico, aquele patriarca, à liderança do crime. ―Se Davi matou 10.000 para libertar
seu povo, nosso crime mata para libertar o seu povo oprimido‖. Então se tem uma catequese
de pregação para os seus membros. Depois se tem um canto, tipo de uma ladainha, onde se
faz referência a essas lideranças, como sendo que morri nos combates, nas lutas, e também se
sintam, muitas vezes, as regiões onde dominam. Gostaria que você gravasse isso, para ver
como é muito comum isso nas regiões onde dominam o PCC. É as 10hs da manhã que eles
fazem isso. Então você vai aprender como é cultuado e venerado as lideranças. É uma
catequese já, para aqueles que não conhecem e ficam ansiosos para conhecer, ficam
encantados, porque são citadas as pregações.
187
A Igreja está preparando para o ano que vem o tema da campanha da fraternidade, pois todo
ano tem um tema, para o próximo será ―Fraternidade e Segurança Pública‖. Nessa campanha
busca-se chamar todas as pessoas a discutirem a violência próxima de si; quer seja na família,
na escola, no trabalho, na rua; porque nós também reproduzimos a violência de várias formas,
porque não existe só violência física. Existe a violência da palavra, da indiferença, do
desprezar a pessoa que necessita da sua ajuda. O tratamento desta situação é para criarmos
uma segurança baseada numa justiça social, que possa dar realmente uma cultura de paz. O
nosso trabalho nos presídios é sempre de acolher as pessoas, de resgatar a sua cidadania, para
que se torne um sujeito, que não use a máscara do crime somente, por que às vezes ela ache
que não tem mais jeito, a não ser um criminoso. Sempre dizemos: ―não, você é gente, você é
um cidadão‖. Talvez foi lhe negado, desde o princípio, todos seus direitos, como cidadão, e
por ser pobre, ser excluído, e passar necessidade e negação de toda a sua civilidade, isto é,
seus direitos civis que foram negados. Reconstituí-los, dessa forma teremos que evangelizar e
resgatar a pessoa, a auto-estima. A catequese passa para essa escuta, para esse resgate e assim
tratamos todas as pessoas. Para você ter uma noção, Cyro, onde a pastoral foi mais atuante
nos ataques de maio, ali a violência foi muito mais regressiva. As violências maiores
aconteceram onde não teve a atuação da Pastoral Carcerária. Onde a pastoral estava
organizada houve até rebeliões, mas ninguém foi ferido, ninguém foi agredido, nem
funcionários, nem presos, aonde havia essa ausência, sim aí houve violências.
O senhor acredita que a sociedade estava preparada para receber as notícias do ataque?
Essa pergunta deve levar a outra reflexão: quem está sendo privilegiado em nosso meio hoje
faz tudo para ignorar a vida do povo miserável e excluído. Você marginaliza, abandona, mas
esse povo vai reagir, pode demorar, mas vai reagir. Há quanto tempo se falava que no sistema
prisional havia as facções, o crime organizado. Primeiro o governo negava a existência deles,
totalmente, mas quem está no sistema prisional até hoje, sabe que ele existe e que é
organizado. Negá-lo é querer ignorar uma realidade que está aí. O ministério público, que
negava isso, foi altamente atingido, por querer esconder uma realidade que estava
acontecendo, como um tumor, você pode negar que ele existe, que não aparece, mas uma hora
vem à tona. Digo para você, o sistema prisional continua no abandono. Hoje temos formas de
repressão muito violenta no sistema prisional, isso não vem à tona, mas uma hora vai
explodir. Enquanto não tivermos um trabalho sistemático em termos de educação, de trabalho,
assistência jurídica para que o criminoso pague pelos seus crimes de acordo com a lei. Muitas
vezes o julgamento chega à inocentes, mas pagaram 6 meses, 8 meses, 1 ano, aguardando
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serem condenados, isso está inchando os nossos presídios. A justiça quer mostrar serviço,
joga nesse abandono, nesse descaso, essa população revoltada. Hoje estão contidos lá no
presídio, amanhã estarão contidos conosco. Esse abandono, se não houver medida do
judiciário com urgência, vai começar a estourar mais fortemente ainda.
O que leva os carcereiros e outros funcionários a serem cooptados pelo crime
organizado?
No sistema carcerário hoje, isto é uma necessidade. Temos pouquíssimos funcionários no
sistema prisional. Em uma ala existe de 100 a 200 pessoas, normalmente um agente de
segurança para cuiar desse contingente. Quando um preso fica doente, aí tem que pegar lá de
dentro e levar até a enfermaria, se ele não levar é omissão de socorro, ou seja, é crime; e se
ele levar é abandono do posto de trabalho, é crime também. Isso se passa diariamente com os
funcionários no sistema prisional. Diante disso se tem que fazer acordo com os presos, ―eu
vou levar o doente e vocês tem que segurar aqui, a situação‖. Aí começam as notícias. O
diretor de presídio, a maioria, se eles não tiverem ―acordos‖ o presídio estoura, porque não
tem condições de se manter. Não se pode dizer que não existe acordo. Para o sistema prisional
funcionar e não ter problemas, somente com ―acordos‖ entre o presos e o sistema prisional.
Como é a formação moral, tanto desses indivíduos, como dos presos de uma maneira
geral?
Bem, existe já há alguns anos, uma academia. Cada vez mais vem melhorando a formação dos
carcereiros. Existe cursos periódico de atualização, 4 meses ou 6 meses inicial. É pouco, mas
o Estado de São Paulo tem avançado muito mais do que outros na formação dos seus agentes
penitenciários. Agora, para as pessoas presas a história é outra. A nossa justiça é punitiva e
não esta preparada para propiciar o retorno do preso ao meio social. Esse compromisso da lei
com a pessoa presa de recuperá-la não existe. Por isso, quando a sociedade pede penas mais
longas, mais presídios, é uma atitude totalmente ignorante, porque quem paga o preso, a
segurança dele, somos nós. Em média é R$1600 por cada preso no país. Você sabe
perfeitamente, que quanto mais tempo preso, pior sai hoje e mais violento amanhã. O sistema
prisional hoje, não recupera e todo mundo sabe disso. Por isso a reincidência ao presídio é de
60%, não quer dizer que é a reincidência ao crime, que é bem maior. Você tem que ter uma
política voltada para a recuperação. Temos sinais positivos em presídios especiais. No Estado
de São Paulo o índice de recuperação é altíssimo, mas são pequenas unidades, temos 22
unidades e quase todas funcionam bem. Ali tem trabalho, tem estudo, terapia e
189
acompanhamento, acesso a família, parte muitas vezes, também cultural e esportiva. Temos
também os chamados Apapres – Associação de Proteção a Pessoa Presa, que vem
funcionando e sendo um exemplo, criado dentro do Estado de São Paulo e já é exportado para
a Europa e para a América. Essa entidade mostra um grande índice de recuperação, mas ainda
em relação a grande quantidade de presos, é pequena. As Apapres foram criadas pelas Igrejas,
a Igreja Católica. Uma ação da Igreja, uma nova forma de trabalhar com presídios, uma coisa
concreta, aqui está uma solução e hoje é modelo de exportação de São Paulo, para o Brasil e
para o mundo todo.
Padre o que o senhor acha da pena de morte?
É a falência do Estado, quer dizer, não temos condições nenhuma de recuperação. Aqui se
acabou toda a ciência disponível e toda condição que nós tínhamos. O Estado também tornase criminoso, pois assume a postura de vingança e de ser criminoso, porque quem matou eu
mato também, então abre-se uma cadeia indeterminada que matar todos os criminosos não vai
sobrar nenhum.
Existe vida para um ex- integrante do PCC? Ele consegue se desligar por completo da
facção e seguir uma nova vida, desde que ele queira isso?
Eu estive pelo mês de junho, num presídio aqui da capital, que tinham matado na noite
anterior, um grande líder do PCC. No mesmo local, havia dois membros que também iriam
ser mortos e conseguiram escapar e pedir proteção. Eu falei com os dois, eles disseram pra
mim assim abertamente: ―Pra nós não tem mais vida aqui no Estado de São Paulo, quer seja
dentro dos presídios em convivência ou mesmo na rua. Só temos vida se conseguirmos sair e
desaparecer pelo mundo afora‖, mas fora do Estado. Há um discurso de que muitas pessoas já
conseguiram sair, mas isso aí talvez condicionado a algumas ações externas, pois no presídio
hoje, é muito difícil alguém que conhecia uma posição clara, grande, dizer que tem vida agora
independente deles.
Padre, qual é a maior fonte de renda, hoje de sustentação do PCC?
Segundo a Polícia Federal e do Ministro da Justiça, era da rede internacional do narcotráfico.
Segundo ele, essa era a mais forte, o narcotráfico. Também as armas e depois em terceiro
caso, com o seqüestro, mas outra arma forte é a própria cobrança dos seus associados, o
mensalão.
190
O senhor tem algum relato, ou alguma experiência de como funciona o PCC externo,
fora dos presídios?
Hoje a maior renda do crime organizado está fora dos presídios; está ligado a empresários e às
pessoas dos Poderes todos, pois só se pode existir um crime bem organizado em local que tem
o apoio do Judiciário, do Legislativo, pelos policiais do alto escalão, e assim por diante.
Então, a investigação quer dizer que vai até um ponto, quando chega no alto escalão, começa
a ficar travada, impedida de avançar. Um exemplo concreto: porque que no Rio foi fácil de
combater o seqüestro? Havia seqüestro de pequenas pessoas ligadas e iniciantes no crime. O
seqüestrado colocava a pessoa na casa da sogra, na casa da vizinha, logo era identificado.
Então o seqüestro se reformulou, passou a ter uma estrutura econômica e um grupo grande, ou
seja, alguém que vai negociar, alguém que vai dar guarda, alguém que vai comprar as coisas,
alguém que vai fazer a comunicação e alguém que comunique os passos à polícia.
Padre, para encerrar eu gostaria que o Sr fizesse um apanhado geral da própria
situação hoje, social em que nos encontramos, frente a essa violência contemporânea,
tanto permeada pelo crime organizado, pelo crime banalizado, como se observa nos
noticiários, e se existe um posicionamento que a sociedade deva assumir junto a isso?
Concretamente o programa do Governo Federal, do PRONASPEC, o Programa Nacional de
Segurança Pública e Cidadania, ele contempla essas conferências do Sistema Único de
Segurança, que deve ser feita nos municípios, nos Estados e no Senado Federal. Amanhã nós
vamos ter aqui no Ministério Público uma audiência, que também é um trabalho de segurança
pública, então é uma forma concreta de ação, onde se vai avaliar e também colher da
população, sugestões de como deve ser feita a justiça e a segurança pública para o país. Você
vê, nós temos no país alguns locais, núcleos que isso deu certo. Se você pega um Jardim
Ângela, onde se tinha os maiores índices de violências do país, hoje esses índices são
baixíssimos. Estão mostrando que juntos a sociedade organizada, participando, discutindo;
pode realmente baixar a violência e criar a estabilidade social. O desafio é esse, de que a
sociedade participe e não se sinta como expectadora da violência, mas que ela vá tão somente
para o debate. O Estado então, a partir desse ano, começou essas conferências em todos os
municípios desse país, para discutir uma segurança pública de outra forma. Isso é uma forma
concreta, se a população entrar nessa discussão que já começou e existem 94 metas concretas
de ação, onde serão financiadas, teremos o início de um Brasil diferente.
Qual é o verdadeiro crime organizado hoje no mundo?
191
Segundo informação da própria Polícia Federal, são os grandes poderes econômicos que
lucram sobre isso. O narcotráfico, a venda de armas, também o cigarro, a bebida, entre outros,
são os que lucram, e mantém o mundo. Existe essa organização mundial onde estão incluídos
diversas esferas dos poderes. O que nós temos aqui no Brasil é com o delinqüente, o pobre da
periferia, o excluído, que tenta se unir como forma de sobreviver e também se impor na
sociedade.
192
Personagem III
Data: 24 de novembro de 2008
Início da Entrevista: 09h02min
Encerramento: 09h59min
Formação: Engenheiro
Função que exerceu em junho de 2006: Deputado Federal de São Paulo
Qual seu entendimento a respeito de organizações criminosas?
Entendo que o crime seja amador, como preponderou em boa parte do tempo, ao longo da
nossa história. Hoje já perdeu definitivamente o lugar para o crime organizado. Esse crime
organizado é tremendamente mais perigoso, porque não se anula simplesmente com a prisão e
a exclusão dos mesmos no contexto da sociedade. Na verdade, pelas características do sistema
prisional brasileiro, e pelas dificuldades na implantação de um regime disciplinar
diferenciado, com maior seriedade, eles mesmos das cadeias, das penitenciárias, continuam
controlando e orquestrando os crimes nas ruas. Na verdade, sob a proteção do Estado. As
cadeias acabaram por se transformar em escritórios do crime organizado.
Qual é o papel do Estado nessa disseminação do crime organizado?
A leniência da qual os governos, ao longo da história mais recente pelo menos vem
enfrentando o crime como um todo, permitiu que o crime organizado tomasse força. Por outro
lado, o regime militar quando prendeu ativistas políticos, ou até mesmo terroristas durante
esse período, os colocou em penitenciárias em contato com criminosos comuns. O convívio
propiciou aos criminosos comuns, que tinham um nível de percepção mais acentuado e
eventualmente alguma escolaridade melhor, a possibilidade de perceber as vantagens que uma
organização e hierarquização poderiam lhes trazer. Estamos pagando hoje o preço desse
descuido, desse ato impensado das autoridades.
Você se recorda quando ouviu pela primeira vez a sigla PCC?
Não me recordo exatamente, mas acredito que já seja coisa de uns 10 anos, por aí.
Você acredita numa ideologia dessa facção?
Não ideologia no sentido político. Dizer que são socialistas, sociais democratas, ou liberais,
isso não. Existe um fundo ideológico e eles absorveram com bastante facilidade, isso foi de
certa forma, incrementado por conta da ação de alguns defensores na área de Direitos
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Humanos. Não recrimino a resistência de gente que se preocupa com Direitos Humanos, mas
estou constatando um fato. Por interpretação equivocada de alguns partidos políticos, e
notadamente mais o esquerdo, eles se consideram vítimas da sociedade. A partir do instante
que esses criminosos se consideram vítimas, entendem que possuem contas a acertar e direitos
a receber. Essa é a herança herdada daqueles que contestavam o regime militar, pois quando
faziam um assalto ao banco, ou seqüestravam alguém pra obter recursos ou coisa desse tipo,
usavam o termo ―expropriação‖. Tem muito criminoso ligado a essas centrais do crime, que
usam esse termo: expropriação.
Qual a influência hoje dessas organizações na sociedade como um todo?
No submundo do crime a influência é quase que total, porque aqueles que estão na
organização estão a ela ligados por convicção, por ambição e também por medo, pois sabem o
preço que se paga por entrar em conflito ou até mesmo sair da organização. Os que não são
ligados a facção criminosa, entendem que podem conseguir algum tipo de proteção dessa
organização, e outros temerosos por suas ações se submetem a ela de todas as formas. Nós
sabemos da influência perigosíssima e nefasta, mesmo que eles exercem hoje sob o pessoal
que atua no sistema prisional, com pavor mesmo do que possa acontecer consigo ou com seus
familiares. Vejamos no exemplo do Rio de Janeiro, onde nos últimos anos, 6 ou 7 diretores de
presídio foram sumariamente executados. Aqui em São Paulo também já aconteceu fato
semelhante. Existe receio muito grande que atinge também o alistamento policial, ou seja, os
policiais também se sentem ameaçados por essas organizações criminosas.
Como o governo vem tratando essas organizações e os assuntos referentes à segurança
publica de uma maneira geral?
Os governos vêm tratando de uma forma equivocada, há muito tempo. Pode-se invocar aí
talvez, o fato de termos vivido cerca de 20 anos, sob a tutela do regime militar, e
posteriormente com a elaboração da constituição de 88, que buscou efetivamente valorizar
muito as questões das liberdades individuais e dos princípios democráticos. Por outro lado,
não se olhou com o devido cuidado a questão da segurança pública, muito pelo contrário,
houve uma confusão sobre o que tenha acontecido, mas indesculpável, entre combate ao
crime e o sistema penitenciário. A competência das policias, criação de leis mais severas,
inclusive para combater o crime; confundiu-se com a chamada repressão que havia no tempo
do regime militar. Isso são coisas bem distintas, a repressão não de natureza policial, mas de
natureza com fundo político, próprio dos regimes totalitários. Agora o Estado repressor da
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atividade criminosa, essa é uma obrigação inerente ao estado de Direito. Porque são os
cidadãos que estão sendo duramente golpeados pelo crime organizado, que estão se negando
aos direitos elementares, direitos básicos da cidadania. Veja que nós temos aí um conflito mal
resolvido, e que agora mais recentemente, tem despertado algum interesse nos meios
políticos, notadamente no congresso nacional, onde sistemas são debatidos e se começa a
fazer uma revisão no código penal, do código processual penal, para se encaminhar no sentido
de alterações de leis, mudanças e endurecimento no sistema prisional. São coisas que vão
acontecendo em uma velocidade a quem daquela que está sendo exigida pela gravidade da
situação de vida hoje.
Nós acompanhamos nos últimos tempos uma evolução não só do PCC, mas como de
todas as organizações criminosas atuantes no mundo. O senhor acredita que o Estado
consegue acompanhar esse processo evolutivo?
No Estado de São Paulo, conseguimos criar uma polícia melhor aparelhada. De certa forma,
as instituições mais consolidadas, com um Ministério Público mais atuante e autoridades do
Estado mais presente. Hoje a situação ainda é muito grave, mas acho que ela não piorou da
época dos atentados de 2006 para cá. Não se resolveu, mas também não piorou. Agora, em
outros Estados do Brasil, realmente o crime organizado, comparado com uma partida de
futebol, está ganhando de 10 a 0 dos governos aí instalados.
Deputado, nós acompanhamos diariamente a questão da violência na mídia. Como você
vê a morte, tanto para a sociedade como para o próprio preso hoje em dia?
A questão de se banalizar a morte, banalizar a violência, tem sido um reflexo da forma de
atuar dos órgãos da mídia, que fazem desses eventos, espetáculos do dia-a-dia. O caso das
meninas que foram seqüestradas, uma delas morta recentemente, e tantos outros casos, a
mídia vem banalizando os fatos, e até mesmo em alguns casos, ―glamourizando‖ esses fatos.
O que é extremamente deletério para o esforço daqueles que se empenham para combater o
crime, e ao mesmo tempo é deletério também na questão da formação da consciência coletiva
que a sociedade deve ter a respeito de como se portar perante a essas situações.
Os profissionais da mídia estão preparados para cobrir os movimentos do crime
organizado?
Acho que não! Na maior parte dos casos, nós temos percebido que a mídia busca
desesperadamente o sensacionalismo e, os pontos do ibope, que eventualmente possam ser
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conseguidos quando a cobertura de um fato grave, como esses últimos que nós temos
assistido. Existe uma falta de consciência no sentido de se entender o limite de até onde a
cobertura deve acontecer, respeitando o sagrado direito de informar, e aquilo que a partir do
instante que é informado aleatoriamente de maneira descontrolada, acaba trazendo prejuízo
para a ação policial que está combatendo aquele ato criminoso, como também na questão do
exemplo da sociedade. Veja no caso da garota que foi assassinada alguns dias atrás. Nós
tivemos naqueles dias, noticiados pela mídia, pelo menos uns 6 ou 7 casos similares. O
exemplo de São Paulo acabou irradiando pelo Brasil. Não falta quem esteja desequilibrado,
passando por dificuldades, tenha por conta desse desequilíbrio uma violência que está apenas
contida parcialmente e, que ao mesmo tempo, busque os seus 15 minutos de glória em nível
nacional, por meio de ação criminosa.
Você se recorda de como os ataques de 15 de maio de 2006 influenciaram a sua rotina?
A minha rotina eles não chegaram a influenciar. Eu nunca me considerei atemorizado ou
deixei de fazer qualquer coisa por conta daquela situação. Evidentemente houve um impacto
muito grande. O Estado de ânimo, e digamos assim, de nervos mesmo dos policiais, se
exacerbou com justa razão. Quando estive em São Paulo, no dia seguinte aos ataques, notavase assim uma preocupação justificável, mas fora dos parâmetros normais. Por parte dos
policiais, tinham que estar dando cobertura, fazendo policiamento de ruas e batidas. Muita
gente inocente foi admoestada de forma inconveniente, até por conta da tensão daquela
circunstância. Isso influiu na sociedade como um todo. Ao mesmo tempo sei de casos de
juízes de direito, de promotores, sem contar o pessoal do presídio e da policia, que tiveram
que tomar medidas adicionais de grande monta para buscarem um tipo de proteção, que não
sei se conseguiram.
O Senhor conseguiu chegar a uma conclusão, do por que desses ataques?
Os ataques, na verdade, tiveram duas finalidades. Uma delas comprovadamente que não vou
falar por meias palavras, que é mostrar o poderio da organização criminosa e ao mesmo
tempo tentar impedir que o governo do Estado de São Paulo adotasse medidas de maior
severidade na contensão dos criminosos presos. Parece absurdo, mas é contensão de
criminoso preso, porque na maior parte dos presídios, eles são maioria, dominados pelos
criminosos. A parte gerencial que nós temos, digamos assim do Estado, cuida da porteira pra
fora. Da porteira pra dentro, a organização criminosa impõe as regras e o Estado tenta reagir a
isso colocando parâmetros delimitadores, vem essas reações. Agora eu não posso deixar de
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assinalar episódios e fatos concomitantes que aconteceram em datas que guardavam, em certa
forma, proximidade com algum evento político ou ato político de maior repercussão. Lembrome aqui da grande rebelião dos presídios orquestrada em todos os presídios do Estado pelo
PCC, logo na posse. Sempre se percebe que tem uma relação de causa e efeito com alguma
intenção ou evento de natureza política. Ou seja, não escondo que existe seguimento de
partidos políticos aqui no Brasil, que tentam tirar proveito de organizações criminosas. Não
vou dizer que um partido como um todo, mas seguimentos desse partido político.
Seguindo essa linha Deputado, você acredita que esses partidos possam ter manipulado
o PCC, ou existe mesmo uma parte da mídia e, do próprio PCC, manipulando toda essa
estrutura?
A formação do PCC guardou uma relação direta com o sistema prisional, com gente que nem
era dessa facção na época. O senso de organização vem muito das lições que receberam dos
chamados presos políticos. Agora, é notório que em algumas circunstâncias o PCC tenta tirar
proveito, como tem partido político tenta tirar proveito do PCC. Não acho que aí um tenha o
total controle do outro. Se assim fosse, nós teríamos obrigação de pedir então o fechamento
do partido político que tivesse comprovadamente agindo nessa direção. Mas, tem muito
partido que tem segmentos internos com envolvimento direto.
Voltando ao ataques de maio de 2006, o Senhor se sentiu vitima ou telespectador?
Como integrante da sociedade, eu acho que a sociedade toda foi vitima, não posso ser
simplesmente um telespectador, frio. Ninguém se sentiu um telespectador, porque todo
mundo poderia estar sujeito a violência, sendo seqüestrado ou levando um tiro sem saber de
onde. De certa forma, a sociedade se sentiu refém num determinado momento. Veja o
esvaziamento de São Paulo, a noite daqueles dias subseqüentes.
A sociedade estava preparada para receber as informações dos ataques, como os órgãos
públicos em combater?
Ninguém estava preparado para tal ousadia. Sempre se soube da existência, sabia-se dos
controles que eles exercem nas prisões, mas não se imaginou que chegasse a tanto. Não se
imaginou que veríamos aqui em São Paulo, fatos que no Rio de Janeiro são banais. Por
exemplo: metralhar a prefeitura do Rio de Janeiro, as paredes, portas, janelas, já é um fato da
rotina. Bala perdida no Rio de Janeiro, atravessando a cidade de um morro para outro morro,
pra um bairro, isso também faz parte da rotina. Tanto que em alguns prédios na chamada
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―zona de tiro‖, as pessoas estão reforçando suas paredes internas com chapas de aço, para
tentar proteger seus filhos, entes e familiares que moram nessa região. Mas isso não traz
segurança, quer dizer, dá um pouco mais, mas não se garante em absolutamente nada. Se em
São Paulo a deterioração atingir um nível, ou os níveis do Rio de Janeiro, você vê que o
cidadão pode estar andando no Leblon, Copacabana ou São Conrado e pode vir a levar um
tiro como aquele que anda no Complexo do Alemão, na Rocinha ou enfim, em qualquer
favela. A situação realmente é alarmante. Como por exemplo, no estado do Rio de Janeiro,
vou dar um exemplo do Rio, mas não é o único, está totalmente fora de controle, as
autoridades policiais não tem preparo, não tem organização, não tem estrutura. Depois se
descobriu que o próprio secretário de segurança está envolvido, você vê que a situação é por
demais perigosa. Em São Paulo as coisas não chegaram a esse nível, por tudo que eu disse.
Porque a organização do Estado, que através desses órgãos que tem por competência e por
destinação combater o crime, é bem melhor do que no Rio de Janeiro. Certamente, eu diria
que quanto mais se acentua a agressividade da organização criminosa, mais temerosos ficam
os agentes da lei em agirem em conformidade com aquilo que seria efetivamente o seu dever.
A mídia espetacularizou dizendo que um único homem, através de um celular, parou o
Estado. O Senhor acredita nessa informação?
Eu não acho que isso tenha sido a ação de um único homem, seria impossível, um único
homem preso ter feito tudo isso. Certamente essa liderança precisa de uma cadeia de comando
para poder conseguir levar a cabo uma ação desse porte. As autoridades policiais, o Ministério
Público e até mesmo o poder judiciário, tem conhecimento de uma boa parte do
funcionamento dessa cadeia. O que precisa efetivamente é uma ação mais eficaz. Outra coisa,
nós precisamos por de lado definitivamente certas exigências notadamente na área processual
e penal, por exemplo, essa questão da oitiva do criminoso na cidade onde se deu o crime, o
transporte, com a escolta, o tempo que se perde nisso, o risco adicional que se coloca as
pessoas envolvidas. Não só no transporte, mas aqueles que estão, por exemplo, em um fórum,
quando um bandido de alta periculosidade tem que ser interrogado. Tudo isso é um absurdo,
nós já votamos no parlamento a questão da oitiva à distância, através do sistema de
teleconferência. Há uma reação, a meu ver, classista no sentido corporativista por parte da
OAB, que não faz sentido. Deveriam os advogados entender, não advogados no geral, mas a
OAB pelo menos, a necessidade da adoção desses métodos, e por outro lado um rigor bem
mais acentuado no que se refere ao tratamento dos presidiários. Isso não quer dizer permitir
maus tratos, permitir torturas e outras coisas mais. É um rigor semelhante aquele que nós já
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constatamos existir em prisões de países mais desenvolvidos. No caso da Inglaterra ou dos
Estados Unidos, que tem que fazer frente a uma criminalidade. Notadamente, os Estados
Unidos tem uma criminalidade muito grande, e o tratamento na cadeia é feito de forma tal que
os bandidos não têm o controle do sistema penitenciário, não tem o controle das cadeias. Uma
coisa a ser feita no Brasil era isso. Outra, era a adoção de regras muito firmes em questão do
regime disciplinar diferenciado, não impondo esses limites absurdos de no máximo 1 ano.
Existe uma razão, se ele continua constituindo o perigo, se tem uma capacidade de
organização, de contato em 5, em 6, com 10 anos de prisão, ele tem que ficar eventualmente
toda a pena dele em regime disciplinar diferenciado. Por outro lado, o controle mais rígido no
que se refere à capacidade de comunicação dentro do sistema penitenciário. Nós já aprovamos
legislação proibindo celular, mas é uma legislação incompleta. As pessoas que levam e
permitem acesso desses aparelhos de comunicação, que podem ser pages, celulares,
microcomputadores, enfim; essas pessoas praticamente não são apenadas. Para esses casos
deveria dar prisão em flagrante. Em dias de visitas, acho que vai ser difícil encontrar em um
dia pelo menos 1,2 ou 3 casos de tentativa, fora aquelas que são conseguidas com êxito e, que
a gente não fica sabendo.
A comunicação constitui um papel estratégico, tanto pra evolução das organizações
criminosas na cadeia, como também para um sistema de inteligência da própria polícia?
Sem dúvida. Existem mecanismos hoje, no ponto de vista tecnológico, que permitem a polícia
a se aparelhar muito bem, não só fazer escuta telefônica. Um aspecto muito amplo foi
demonstrada em algumas escutas ilegais, promovidas em conjunto com a polícia federal a
ABIN, que foram além do permitido. Isso poderia ter sido conseguido usando equipamento
desse tipo, com a devida autorização judicial, para cobrir toda rede ligada ao crime
organizado, e com isso o serviço de inteligência das polícias pudessem se adiantar aos fatos e
evitassem que crimes maiores ou rebeliões enfim, coisas dessa natureza, viessem a acontecer,
mas isso não é feito. Por outro lado, o tal bloqueio de celular das cadeias, não se consegue
realizar em lugar nenhum, até mesmo nos chamados presídios de segurança máxima, pelo
menos nos federais. Aqui em São Paulo, talvez ainda se consiga, mas nos federais eles estão
atuando livremente. Falando mais como engenheiro do que como deputado, eu posso garantir
a você que existem mecanismos de bloqueio eletrônico 100% eficazes, que poderiam ser
instituídos nas cadeias. Se por ventura ao fazer esse bloqueio eu levar algum tipo de prejuízo,
na capacidade de capitação por telefone de terceiros nas imediações dos presídios, se coloque
isso no rol das contingências e as pessoas que se adaptem à essa situação. O que não se pode
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permitir é colocar a sociedade de joelhos simplesmente para não prejudicar um ou dois que
eventualmente morem ou trabalhem nas imediações dos presídios. É fundamental cortar o
livre acesso que os presidiários têm com a sociedade através desses modernos meios de
eletrônica.
Existe uma corrente de pensamento que diz que a comunicação dos presos,
principalmente com o mundo fora dos muros, deve ser mantida, principalmente para
poder saber o que está acontecendo. Qual a sua opinião a respeito disso?
Isso é um equivoco por uma razão muito simples. A primeira coisa que nós devemos fazer é
eliminar totalmente o contato desses presos mais perigosos, proibindo inclusive, as chamadas
visitas ou visitas intimas. Isso que eu digo ser possível através do regime disciplinar
diferenciado, muito severo. No segundo ponto, que se use a escuta telefônica com essas
pessoas ligadas aos criminosos que estão presos. Não é possível dar liberdade ao preso para
passar informações, que parece um equivoco partir desse pressuposto.
Nós acompanhamos ultimamente uma grande transferência de presos de alta
periculosidade, tanto com o Fernandinho Beira-Mar, como também com os líderes do
PCC. Como eliminar essa transição de presos?
A primeira coisa para acabar com esse passeio de presidiário é permitir realmente as
teleconferências para todo o processo de instrução, até o dia do julgamento ou a semana final
do julgamento. Dessa forma pode ser dada ao preso a oportunidade de estar presente no
fórum. Fora isso, não há nenhuma necessidade de se fazer essas ―custosíssimas‖
transferências, deslocando agentes da polícia civil, da policia militar para ficar escoltando
preso de um lugar para o outro com todo o conforto em helicópteros, aviões especiais,
viaturas especiais. Isso realmente é um absurdo. A primeira coisa a fazer é aprovar em
definitivo a utilização dos termos de teleconferência, isso acabaria com o desperdício de
dinheiro público, e esse risco adicional que se submete a sociedade.
Muitos governadores alegam não teres estrutura para manter, ou mesmo para isolar
esses indivíduos. O senhor concorda com isso?
Não, não concordo. Como eu disse, é uma questão de ter os elementos. Os elementos que eu
falo aqui é a base legal. Se tiver condições de ter um regime disciplinar diferenciado e
evidentemente nesse sistema prisional vagas e cadeias suficientes pra prender esse pessoal, há
como fazer. Agora, nós temos que olhar uma coisa, o único Estado que efetivamente vem
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lutando para se aparelhar, para poder lutar contra o crime organizado, para poder ter um
sistema prisional compatível com as necessidades que hoje essa condição toda nos impõe, é o
estado de São Paulo. O Governo Federal que havia, no começo do primeiro governo do Lula,
aprovou a construção de 5 presídios federais, ao que parece até hoje só aprontou um ou dois, é
muito pouco. São presos que evidentemente praticaram crimes, sujeitos a órbita de
julgamentos com a justiça federal e que devem eventualmente ficar sob a custódia do governo
federal. Não vai ser em um ou dois presídios, onde já se sabe que um deles os presos já
tomaram conta do sistema interno do presídio, vai resolver a questão. Nós precisamos mudar
o sistema prisional. Uma delas é essa de não se poder ter trabalho forçado. Entendo que a
sociedade deveria ter o direito de exigir que o preso cumpra a pena trabalhando. Não esse
trabalho que normalmente existe por aí, temos visto em alguns centros de detenção provisória,
ou até mesmo em penitenciarias, como costurar bolas de futebol e coisas desse tipo. Trabalhos
pesados que possam ser estabelecidos como outros países do mundo fazem. Uma das formas
de se redimirem das suas culpas e até mesmo adquirirem uma profissão, seria fazer algo de
útil de fato a sociedade, um trabalho pesado. Ao passar por uma situação como essa, o detento
vai perceber que é melhor andar na linha do que ficar preso. Hoje eles tem 3 refeições por dia,
lazer total, televisão e visitas íntimas, se ele perceber que não teria nada disso, e que o sistema
prisional é duro, para comer e viver ele teria que trabalhar pesado, talvez queira andar na linha
e trabalhar adequadamente na vida civil aqui fora, sem criar problemas para a sociedade, para
a sua família e para si.
Qual é a sua opinião a respeito da pena de morte?
Eu não sou favorável a pena de morte. A pena de morte pode assustar no primeiro momento,
mas o criminoso que incorreu em determinado crime, cuja pena possa ser a morte, ele não tem
mais limites. O que ele venha a fazer, não vai aumentar a pena. É um absurdo é limitar o
período de reclusão aqui no Brasil à 30 anos e não ter prisão perpetua, não há por que não ter.
O preso precisa ser sempre acompanhado em seus exames psicológicos, para verificar se
realmente existem mudanças na sua mentalidade, se ele amanhã pode ser libertado ou não. Os
exemplos gritantes da falência do sistema penitenciário, da legislação penitenciaria, por conta
de algumas libertações que fomos obrigados a fazer de prisioneiros que não estavam em
condições de serem soltos, verdadeiros psicopatas que não estavam de forma alguma
preparados para viver em sociedade. Talvez o exemplo mais famoso seja o Bandido da Luz
Vermelha. Era paranóico, psicopata, ficou 30 anos na cadeia e foi liberado. Acho que não
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durou 2 ou 3 anos fora e acabou sendo assassinado, não sei se chegou a assassinar alguém
também.
O que vem a motivar esses indivíduos compor uma organização criminosa?
O Estado como um todo vem falhando ao que se refere à possibilidade de inserção total para a
juventude no mundo contemporâneo, seja nas oportunidades de trabalho, lazer e estudo. Nós
tivemos aqui no Brasil, um processo de urbanização por demais violento, rápido demais. Em
40 anos tivemos uma inversão da distribuição da população brasileira. De 20% em grandes
centros urbanos e 80% em pequenas cidades e zona rural, para exatamente o contrário. Hoje
82, 83% da população mora nos grandes centros urbanos. Esse pessoal foi levado pelas
circunstâncias de trabalho, pois não havia condições de sobrevivência no campo. Isso
desapareceu com a mecanização, com a evolução da tecnologia e com o próprio crescimento
do país urbano, da industrialização do país. Então houve esse processo de migração interna,
de uma violência fantástica, e o que é pior, o Estado do Brasil nunca se preparou pra isso,
nunca. Ao sobrevoar qualquer grande centro desse país hoje, você fica aterrorizado de ver as
cidades originais, elas têm telhado vermelho e verde em volta, por mais pobre que seja o
bairro. Quando você sai do vermelho para o cinza, ou é laje, porque a casa nunca acaba, ou é
barraco mesmo de favela, desses de pior condição possível, de ―maderite‖, papelão e outras
coisas mais. Você percebe que o círculo em volta, o núcleo que é a cidade original, é muito
maior. O momento da população dessa área foi exponencial em relação ao aumento da
população, digamos assim, da cidade tradicional, que seria o aumento natural. Se o Estado,
apesar disso, estivesse se organizado, através do sistema educacional, das áreas de promoção
social para absorver essa população, que já estavam acostumados a labuta do campo e
possuíam uma cultura da zona rural, valores tais como família, religião; conheciam os
fenômenos da natureza, enfim, sabiam enfrentar a situação sendo preparados para o trabalho
mais duro que sempre houve nos grandes centros. Essas pessoas ainda conseguem se
equilibrar. As gerações que vieram pequenas ou já nasceram nos grandes centros, que não
adquiriram essa cultura, não foi dada a elas oportunidade de se inserir na cultura de uma
região metropolitana, acabam ficando marginalizadas. De repente quem é que oferece as
primeiras oportunidades de ganhar um dinheirinho, de comprar o seu bem de consumo, que
nós somos aqui levados muito pelo consumismo, que de certa forma afeta hoje esse
comportamento na cidade contemporânea: é o crime organizado, ou até mesmo algum
criminoso que se fez no local a organizar sua turma, é quem dá conformidades. As pessoas
vão, digamos, entrando para a vida, ao invés de ser pelas mãos da sociedade civil, que vive
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dentro da lei, dos órgãos de governo, que tem a responsabilidade de governar essas coisas
todas, entram através do crime organizado. Dessa forma a dependência acaba sendo total.
Muitos se assustam com a situação, mas não saem porque tem medo, e outros empolgam-se e
querem ocupar os lugares de destaque, como Marcola, o Beira-Mar, e outros canalhas desse
meio.
Nesse sentido Deputado, e a corrupção? É algo da própria cultura, ou ela é uma
oportunidade gerada dentro desse meio?
Eu diria que há uma leniência da sociedade brasileira com relação à corrupção, notadamente
quando se trata de dinheiro público. Há uma interpretação que o que é público, não é de
ninguém, portanto, se eu puder levar vantagem naquilo, eu não estou causando um mal em si.
Essa coisa evidentemente é somada à forma de pensar no submundo do crime, acaba
encontrando um campo muito fértil pra prosperar. A corrupção é um problema no Brasil.
Deputado,
como deveria
o Estado
combater essas
organizações
criminosas,
principalmente o PCC?
Eu entendo que deve haver uma tomada de consciência geral. Não tenho a menor pretensão de
defender e revogar aqui que se coloque qualquer censura sob os meios de comunicação.
Agora, deve-se ter uma conversa de autoridades, poder judiciário, ministério público, policiais
com os órgãos da mídia de uma maneira geral; buscando uma colaboração, um entendimento,
de até onde deve ir a cobertura de um evento policial, de um evento criminoso, para que isso
não acabe incentivando e ―glamourizando‖ esses atos. É uma questão realmente de tomada de
consciência, isso é um lado. Do outro lado, é preciso que os governos, de uma maneira em
geral, se conscientizem que medidas paternalistas, assistencialistas, meramente sem nenhum
compromisso com o cidadão, devam ser revistas. Terceiro ponto, é a questão da educação. As
crianças hoje, no Estado de São Paulo, praticamente 100% estão em idade escolar, ou seja, na
escola. Agora, de nada adianta ir para a escola e ficar 3 ou 4 horase depois ir para as ruas. Até
porque o pai ou a mãe, normalmente a mãe, hoje é chefe de família em boa parte dos lares,
notadamente nas periferias das grandes cidades. Elas estão trabalhando, então as crianças
ficam nas ruas transformando-se em presas fáceis dos criminosos. É preciso que repensemos o
nosso sistema educacional, no sentido de manter a criança na escola, não sentada numa
cadeira de sala de aula, numa classe tradicional. Mas uma escola devidamente equipada, onde
ela possa desenvolver sua atividade escolar, a sua atividade de acompanhamento aos estudos,
sua atividade esportiva, cultural, de lazer por um período maior, pelo menos próximo de 7
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horas, talvez até 8 horas por dia. Com isso, os pais de família poderiam trabalhar mais
tranquilamente e as crianças estariam recebendo uma formação boa, mas isso custa muito
dinheiro e exige profissionais preparados. Não adianta também criar e entregar na mão de
profissionais despreparados. Para ter início é preciso começar, custe dinheiro ou não. Veja
que com essa crise financeira internacional, que o mundo inteiro esta passando, de repente
aparece dinheiro pra evitar que os bancos quebrem, aparece dinheiro para evitar que as
montadoras quebrem, aparece dinheiro para garantir o crédito para a indústria eletroeletrônica
se manter. Quer dizer, quando há necessidade se prioriza e os recursos acontecem. A pergunta
que eu deixo no ar é que ―Porque que a prioridade nunca é voltada para a educação das nossas
crianças?‖ Pelo menos no chamado ensino fundamental, pelo menos esse, que são as sete
primeiras séries da escolaridade de uma criança. Se nós fizéssemos algumas alterações no
estatuto da criança e do adolescente, permitindo não o trabalho de criança, mas que o menos
possa ser iniciado em uma condição de aprendiz, com algum tipo de pagamento, proteção,
sem complicação e burocracia ligada a isso. Nesse sentido, estaríamos dando uma chance a
nossa sociedade. Caso não façamos nada, iremos continuar nessa guerra entre sociedade e o
crime organizado. O que é pior, um crime organizado que começa a ter apoio de uma outra
parte da sociedade que começa a se sentir excluída.
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Personagem IV
Data: 30 de novembro de 2008
Início da Entrevista: 17h03min
Encerramento: 18h34min
Formação: Jornalista
Função que exerceu em junho de 2006: Repórter Policial
Qual é o seu entendimento sobre organizações criminosas?
O meu entendimento hoje é de grandeza, infelizmente. Faz 20 anos que trabalho como
repórter policial. Nesse período acompanhei a sofisticação do crime. O que havia dentro das
cadeias, era vários grupos, isso sempre existiu. Pequenos grupos que se ―degladiavam‖ entre
si, que brigavam pelo domínio das cadeias, pelo tráfico de drogas, pela continuidade do crime
do lado de fora. Daí a gente começa com a história do Comando Vermelho no Rio de Janeiro,
que começou a mudar essa cara do crime desorganizado para o crime efetivamente
organizado. Em São Paulo, a partir de 1993 quando o PCC surgiu, não se imaginava o poder
que podiam conquistar. Hoje mais forte do que o Comando Vermelho do Rio de Janeiro, o
PCC tem mais poder de aglutinação, influência, porque o Comando Vermelho se diluiu, ao
contrário do Primeiro Comando da Capital, que efetivamente fez esse crime virar organizado,
cooptando os presos, e se transformando em uma grife, como dizia o delegado que cito no
livro, Wagner Jutzi, da delegacia de anti-seqüestro de São Paulo. Acho que isso traduz bem o
que é o PCC, uma grife, uma empresa muito organizada com comandos, chefe, subchefe;
onde cada um tem a sua função. Entendo o PCC como sinônimo do crime organizado. Talvez,
uma das maiores organizações criminosas do mundo.
Existe uma ideologia dentro no PCC?
Existia uma ideologia, que ainda é pregada, por isso o PCC consegue arrebatar tantos
integrantes pro seu lado. No início do PCC existia a idéia de ser uma espécie de sindicato, que
reunisse os presos para brigarem pelos seus direitos. Fui convidada para acompanhar a CPI do
sistema carcerário, e trabalhei durante oito meses com os deputados da Câmara Federal, por
todos os presídios do Brasil. Pude ver como o discurso do PCC é influente dentro dessas
cadeias. A ideologia do começo era aquela: ―Vamos formar um sindicato, que funcione, onde
a gente possa reivindicar nossos direitos, onde possamos gritar pro mundo a mentira ao
afirmarem que gastam R$1600,00 com a gente por mês e não gastam. Roubam-nos, alijam,
dão banho gelado para não gastar luz, e muito mais‖. Era um discurso, que com muita
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facilidade, cooptou pessoas. Isso porque ninguém ouve os presos, infelizmente. Algum tempo
atrás produzi e chamei o meu vídeo de ―o grito das prisões‖. Para a classe média, o preso tem
que sofrer, se danar mesmo. Não precisa comer e ter atendimento médico, tem que ser
maltratado. Isso é uma realidade hoje no Brasil. O preso é tratado como bicho e as pessoas
assim gostam que seja assim, então o PCC apareceu com um discurso dizendo: ―Olha, isso
tem que acabar, só vamos nos recuperar se esse dinheiro for realmente destinado a nós. A
gente come merda, vive no meio do lixo‖. Esse discurso cooptou todo mundo no sentido de:
―Vamos nos unir e gritar‖. Foi muito fácil do PCC trazer muitas pessoas para o seu lado. Não
demorou muito, é lógico, para esse discurso durar uns três anos, de 93 até 96. A partir daí o
PCC percebeu a oportunidade de se transformar em uma grande organização do crime. Os
líderes viram que tinham tremenda força e passaram então a comandar o trafico de drogas.
Por meio do discurso chegaram ao poder. Esse poder foi instituído por meio de violência
dentro das cadeias. Surgiram os tribunais, as penas de morte e, principalmente, o trafico de
drogas, o que representa o grande negócio do PCC hoje.
A quem se deve o surgimento e desenvolvimento do PCC?
Deve-se a ineficácia, anemia e insuficiência do governo, que demorou a tomar uma atitude,
fingiu que não viu. Pensou que o que acontecia atrás das grades, ficaria atrás das grades: preso
matando preso, ―foda-se eles‖ no português claro. Enquanto eles achavam que isso iria se
limitar a cadeia, não consideraram que o PCC viria para o lado de fora, e suas ações seriam
cada vez maiores, tanto do lado de dentro das cadeias como o lado de fora. A incompetência
do governo fortaleceu a esperteza do crime organizado. O PCC teve crescimento exponencial,
saltou de 3.000 homens para 30.000 homens em poucos anos, hoje conta com cerca de
100.000 comandados. Infelizmente o discurso da polícia e dos governos ainda é ―Isso, é uma
coisa pequena, a mídia exagera, o PCC é pequeno, não tem comando‖. Mentira! O governo
hoje, conseguiu fazer com que as emissoras, as grandes pelo menos, a TV Record, TV
Bandeirantes, TV Globo, não usem mais a palavra PCC. Um acordo feito pelo então
governador Geraldo Alckmin, agora com o José Serra. A nomenclatura utilizada é quadrilha.
Você pode ver na Globo: ―Quadrilha leva R$170.000.000 do Banco do Brasil de Fortaleza‖.
Quadrilha pressupõe quatro pessoas, só que estamos falando de 100.000 pessoas ligadas ao
PCC. Acho que o PCC se aproveitou da ineficiência do Estado, desse discurso hipócrita que
permanece até hoje, é um absurdo. Você pode falar com o secretário de administração
penitenciária, ou que já foram, todos vão te dizer a mesma coisa: ―É exagero da mídia, o PCC
não tem organização, são grupos separados‖, o que é uma inverdade. Eles ajudaram o PCC a
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engordar, infelizmente. Isso colabora para que as pessoas acreditem nisso. Muitas pessoas me
perguntam ―O PCC acabou? Não escuto mais falar do PCC!‖ A mídia fez um trabalho cretino
junto com o governo do Estado, por interesses de patrões e governo, a palavra ―PCC‖ foi
abolida dos jornais, das emissoras de TV, das rádios. Apenas o Jornal da Tarde ainda mantém
o PCC como nome em suas manchetes. Os demais você vai ouvir ―uma quadrilha, grupo,
grupo de bandidos‖, como se isso fosse resolver os problemas. Enquanto isso, o PCC continua
crescendo e vai muito bem obrigado.
A negligência do Estado em relação ao PCC tem cunho político?
Acho que é de muito cunho político. Esconder uma realidade importa a quem? Essa falsa
sensação de segurança que você tem de ―Ah o PCC acabou‖, ―Ah acho que o PCC não existe
mais‖ é política. O governo quer fingir que conseguiu combater o PCC e terminar com o
crime organizado, o que não é uma realidade. Se você considerar a ―Operação Castelinho‖,
onde integrantes do PCC, alguns que nem eram, foram abatidos numa tocaia preparada pela
polícia. Você vai ver que aquilo foi planejado para favorecer a campanha do então candidato,
Geraldo Alckmin. Lembro-me que isso aconteceu de tarde, e na manhã do outro dia, a
campanha já estava pronta na TV. Faça uma pesquisa para você ver, aconteceu às 4hs da
tarde. Às 8hs da manhã do dia seguinte, já estava à campanha do Alckmin: ―Bandido morto,
ou bandido na cadeia‖, depois aparecia um carimbo com os seguintes dizeres: ―Fim do PCC,
Alckmin combate o PCC‖. Tudo foi planejado para aquelas mortes acontecerem, um
pouquinho antes das eleições, para o Alckmin usar na campanha e fingir que estava agindo e
combatendo o crime organizado, mais especificamente, o PCC. Pura mentira! Aquilo foi
armado, a polícia infelizmente compactua com o governador, montou um teatro, para que
aqueles caras fossem mortos e o Alckmin ganhasse pontos na eleição. O que mais pega a
classe média hoje, é a segurança.
Como foi seu primeiro contato com integrantes do PCC?
Foi numa rebelião no interior de São Paulo. Era uma época que a imprensa cobria rebelião,
hoje nem isso mais faz. Ficávamos em porta de cadeia durante dois a três dias, esperando
terminar. Naquela rebelião, por experiência, percebi que era bem diferente das que
normalmente aconteciam. Ela era mais organizada, tinha comando, os presos estavam muito
firmes na posição, não voltaram atrás até que o Estado se comprometesse em atender o que
eles pediam. O rapaz que comandava a rebelião era o ―Macalé‖. Passado um tempo, voltei
nessa cadeia para realizar uma matéria. Eu costumo dizer que eu não menti, eu enganei, iria
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fazer uma matéria sobre o cotidiano do preso. Ao entrevistar o ―Macalé‖ perguntei: ―Olha,
essa rebelião foi diferente, o quê está acontecendo?‖. Ele me disse que já havia um grupo de
presos que estavam organizados e completou: ―Olha, a gente é capaz de parar 30 presídios se
a gente quiser‖. Isso foi no ano de 1995, achei um exagero. Mas me deu uma curiosidade
tremenda em saber que grupo era esse. Ele não me disse na época o nome. Falou que não
estava autorizado a dizer. Eles ainda trabalhavam na clandestinidade, achavam que naquele
momento era mais interessante permanecer assim. Em 1996, a posição deles já era outra.
Consegui entrar em contato com o comando da organização: o Cesinha - César Augusto Roris
e o Geléia –José Márcio Felício. Comecei a ter contato telefônico, por carta e tal. Eles foram
abrindo o que era o PCC, mandaram um estatuto, e foi aí que fiz a primeira reportagem,
contando o que estava acontecendo por trás das grades.
Quem foi o responsável por organizar o PCC?
A primeira chefia, ma quem deu essa cara que todos conhecem foi o César Augusto Roriz,
que morreu. Dos oito fundadores, só resta agora o Geléia, o resto todos morreram. O Cesinha
era um rapaz muito inteligente, vindo da classe média. Tinha um irmão formado como os pais
também. Ele optou pelo crime por pura adrenalina, como o próprio dizia. Ele era um cara
muito inteligente, possuía um discurso fantástico. Foi fácil para ele dar uma cara pro PCC, de
transformar o PCC com o discurso de ―Vamos nos unir e gritar, porque só assim vão ouvir
nosso grito, somos quase 400.000 presos‖. O César Augusto Roris foi um dos principais
homens do PCC, não o único, de um lado existia a sua inteligência e de outro a força do
Geléia, que se impunha pela força, pelo discurso também. Essa união entre o César e Geléia,
da amizade dentro da cadeia, possibilitou isso. O Cesinha também era amigo de infância do
Marcola. Brincaram e roubaram juntos. Na adolescência passaram a roubar, a ter uma vida no
crime em conjunto, o que naquela época era uma coisa divertida. O Marcola também é um
cara muito inteligente, um autodidata. Quando ele se alia ao PCC, essa cara se reforça muito
mais, já é possível fazer um retrato falado dela. A integração do Cesinha, Geléia, Sombra, que
foi uma pessoa muito importante também por ser um preso mais velho, aquele que sempre
dava uma opinião mais sensata do que estava acontecendo, foi fundamental para o
crescimento do PCC. Esses quatro foram as pessoas que deram a cara ao PCC, ou seja, como
ele iria agir dentro e fora das cadeias.
O que é a morte para a organização?
208
Acho que a morte para a organização faz parte do negócio que eles criaram. Na Casa de
Detenção, quando ela ainda existia, já havia sido criado o júri do PCC, sempre composta por
integrantes. Eram eles que decidiam o futuro de um membro do PCC ou de qualquer preso.
Matar o inimigo, ou matar até quem faça parte da facção, era a sentença daqueles que segundo
o júri ―saiu da linha‖. Isso pode ser por motivo de algum detento ter cantado a mulher de
outro, dívida de droga, também por tentativa de enganar o PCC na venda da droga, seja
ficando com uma parte dela ou misturar a droga para ficar com parte do dinheiro. O PCC tem
um júri, onde ele determina a morte. Nos ataques a ordem era sair, tipo kamikaze, para matar
ou morrer. O que me assusta é a determinação que você tem hoje, principalmente dos jovens,
de morrer por essa causa. Isso me assusta muito, porque você transforma o jovem numa
pessoa mais violenta, onde nem o futuro importa. O que importa é o agora, nem que seja a
morte. Para ele faz parte do plano.
A que se deve a banalização da morte?
Acho que se deve um pouco ao próprio sistema penitenciário, onde essa violência é
tradicional no Brasil, na qual caso você não pode contra o inimigo, você o mata. Dentro das
cadeias brasileiras sempre foi assim. A ditadura colaborou muito com essa cultura pela
facilidade em torturar, matar e resolver qualquer problema através da violência. A polícia
também é violenta. A polícia lida com essa morte também, como resultado primeiro do
trabalho. O policial não pensa a violência como o ultimo recurso e sim o primeiro. Diferente
dos americanos, que você vê aquele monte de policial que persegue o cara, durante vários
quilômetros, joga no chão e tenta amarrar. Aqui não, aqui é resolvido na base da bala
primeiro. A cultura no país está na facilidade em se matar.
A cultura do medo instituída pelo PCC, além de educar seus integrantes pode corrompêlos?
Por incrível que pareça não. Quando o integrante do PCC é aceito na facção, e não é só o PCC
acontece em outras facções menores em São Paulo também, ele se alia aos idéias instituídos,
sabe as regra e como tudo funciona. Está no estatuto todas as regra, trair é morrer. Fidelidade
é regra fundamental, você não pode quebrar, se você quebrar morre. Isso funciona ao
contrário, pois a gente teme essa morte como o final de qualquer coisa, para eles não, o cara
sabe que vai morrer se for descoberto numa atitude que a facção considere uma traição. Ele
acha isso bacana, pois caso contrário todo mundo iria folgar, não funcionaria, na cabeça deles
é assim. Se não houvesse esse tipo de castigo, talvez não houvesse esse tipo de poder e de
209
ideal. Tanto que dos oito lideres fundadores do PCC, só está vivo o Geléia, os outros sete
morreram de forma violenta. Muitos mortos pelo próprio partido, que é assim que eles
chamam. A morte faz parte do negocio, do sistema, de como as coisas funcionam. Na
administração do Marcola, houve uma diminuição na quantidade de mortes relacionadas ao
PCC, você pode pegar os números de homicídios em São Paulo, ele vem caindo de uns 4 a 5
anos pra cá. Por incrível que pareça, isso não se deve a competência da policia, nem dos
governantes, dos secretários, isso se deve a uma ordem do Marcola, em diminuir o numero de
mortes. Diferente dos lideres anteriores, ele é a favor da morte, continua sendo um
instrumento de medo e punição, mas diminuiu o tipo de crime. A morte realmente era mais
banalizada no PCC, e há 5 anos, o Marcola deu uma ordem que para matar, só mesmo com a
decisão do júri, composta por ele, Carambola e Macarrão. Em compensação, as mortes agora
são mais violentas quando elas acontecem. Eles agora estão com costume de usar espadas
para cortar a cabeça do seu rival. O número de casos de pessoas mortas e queimadas em
carros, depois abandonadas em pontos da cidade todas são mortes do PCC. São pessoas que
nessa decisão final, mereceram essas mortes. Hoje a tolerância é maior dentro dos presídios,
se perdoa mais. Se um preso cantar a mulher do outro, era um crime punido com a morte.
Hoje o cara tem outra punição, na primeira ele não é morto. Agora ele tem uma segunda
chance, vai apanhar do marido e ficar sem as mordomias dentro do presídio, ou seja, não vai
poder ter celular além de ter uma série de castigos por um bom tempo. Depois ele é perdoado.
A não ser que o cara que traiu, faça de novo, ai é morte certa. Nas bocas de fumo, por
exemplo, o número de mortes é muito menor do que era. Tolera-se mais, se espera mais
tempo para receber do devedor e por isso, o número de mortes foi diminuindo. Só que quando
elas acontecem são bárbaras e violentas, que é para todo mundo ver. No caso desses veículos
que foram queimados, um dos casos, por exemplo, o cara fingia na comunidade que ele era
policial civil e daí tomava dinheiro do pessoal da boca do PCC. Isso aconteceu durante dois
anos, todo mundo acreditava que ele era policia. Quando descobriram que era mentira, uma
farsa, ele foi morto e queimado dentro do carro para todos verem. Em outro caso ocorreu com
um integrante do PCC que vendia drogas, e o PCC descobriu que ele estava desviando
dinheiro. A divida já estava em quase R$200.000,00. Foi dado um tempo para que ele
acertasse a dívida, ele não acertou e morreu. É assim que funciona, quando acontecem, são
mortes violentas, bárbaras para todo mundo ver. ―A gente vai botar ali, vai queimar o carro, a
imprensa vai dar a notícia e todo mundo vai saber, O PCC castiga assim. Então cuidado, a
gente está mais legalzinho, mas se você sair da linha, a sua morte vai ser violenta, desse
jeito.‖
210
Como é estruturada a comunicação do PCC?
Os telefones celulares foram à base da primeira rebelião que parou 30 presídios e, dos ataques
de 2006. Hoje eles estão usando muito o aparelho nextel, porque a polícia tem mais
dificuldade em fazer a escuta. Os equipamentos de escuta que a policia possui hoje, ―o
guardião‖, é usado para telefones celulares ou fixos, não servem para comunicação de nextel.
Hoje nas cadeias por meio desse aparelho, você fala com o Rio de Janeiro, Paraná, Espírito
Santo, tudo por rádio. Agora, com certeza o celular é a maior arma do crime organizado. Seja
no Comando Vermelho ou PCC, é através deles que você consegue ordenar um crime de
dentro da prisão, ordenar o tráfico de drogas, ordenarem ataques entre outras coisas. É o
principal meio de comunicação. Os advogados pagos pelo PCC também são meio de
comunicação, levam e trazem informações dos criminosos. Vários foram presos, levavam
armas, drogas, bilhetes e recados. Uma coisa que aconteceu no PCC muito impressionante é
como as mulheres se aliaram a causa. Antes você tinha as mulheres de presos, que visitavam o
marido, faziam sexo e iam embora. Hoje não, essas mulheres são partidárias do PCC,
trabalham para o PCC. A mulher do Marcola, do Geléia, do Césinha, são mulheres que
trabalharam pro PCC. Segundo elas: ―Eu sou a primeira dama do PCC com muito orgulho‖,
talvez mais do que a mulher do Lula. Talvez a mulher do Lula não tenha sentido tanto orgulho
em ser primeira dama de um líder, como sente a primeira dama do PCC. O respeito que ela
tem dentro dessa comunidade é uma coisa impressionante. As mulheres do PCC, também
contribuíram muito para essa comunicação de dentro para fora da cadeia, ou de uma cadeia
para outra.
Existe alguma estratégia de comunicação ou um estrategista que pense essa
comunicação do PCC?
Tem, a estratégia começou com um canadense, que era engenheiro, e estava preso na Casa de
Detenção. Foi aí que o PCC, bem esperto, chegou ao cara. Foi ele o responsável pelo desenho
do primeiro PABX do PCC. Todas as instruções foi dada por ele, o deveria ser comprado,
como é que funcionava. Antes existia uma telefonista, que recebia a ligação, transferia e
organizava as conferências, hoje é bem mais sofisticado. A polícia vive estourando centrais
telefônicas do PCC, e eles abrem outra, e outra e outra. Essas centrais de telefonia são o
coração da comunicação do PCC. As telefonistas são contratadas e ganham para isso. Em
geral são mulheres de presos que recebem salário. O trabalho consiste em receber ligações,
passar de uma cadeia para outra, passar ligação do preso para o parente, do preso para outra
211
cadeia, entre outras. Assim a comunicação vai funcionando, de forma organizada sim. Partiu
de um desenho do canadense pra crescer, e hoje o PCC tem centrais telefônicas no Brasil
inteiro.
Existe um porta-voz do PCC?
Na primeira administração, os próprios integrantes do PCC eram seus porta-vozes. Geléia,
Césinha e Marcola sempre falaram menos. Com a dissolução da cúpula do PCC, um
integrante foi considerado o porta-voz, que estava preso em Salvador. Era o porta-voz oficial,
inclusive era o cara que conversava com a gente, os jornalistas. Ele se chamava Silvério. Era
responsável em fazer as cartas dirigidas à autoridades e jornalistas, ele era um cara muito
culto. Você observava citações de Ghandi. Nós tínhamos paralelamente conversas com o
Geléia, Césinha e Marcola, mas quando era oficial, aviso a imprensa, era o Silvério quem
redigia. Hoje o porta-voz do PCC é o Macarrão. O Macarrão hoje tem uma visão um pouco
mais agressiva, tanto é que está havendo problemas dentro do PCC, porque ele tem uma visão
mais radical do que o Marcola. O Marcola quer que as coisas aconteçam em paz, e ele não
está gostando muito dessa paz. O PCC sempre teve contato com a imprensa, antes era o
Silvério, que morreu, e hoje o Macarrão. O Macarrão que é mais falante, mais atuante, é
realmente a pessoa que hoje filtra, passa os recados, e repassa as ordens que vem do Marcola
e do Julinho Carambola.
Qual o papel da família para o PCC?
O preso hoje, dentro da cadeia, é tratado como lixo pelo Estado. Toma banho frio para não
gastar luz, não tem sabonete, direito ao mínimo de higiene, entre outras coisas. Essa revolta
também passa para a família, porque ela acompanha essa realidade que acontece lá dentro.
Uma parte da raiva que o preso tem, passa para a mulher dele, o filho e a mãe. De ver como é
que a coisa funciona, como o preso é roubado, até comida, revolta toda a família. Se alguém
não levar o cobertor, ele morre de frio. Se não levar o colchão, ele dorme no cimento. O
Estado diz que gasta R$1600,00 com o preso, que segundo eles é muito bem tratado obrigado.
Isso é uma inverdade. Você já tem essa consciência da família. Nesse meio surge um grupo
que se compromete a melhorar isso, claro que a mulher do preso vai adorar a idéia. Existe o
lado paternalista do PCC. Aquela historia de entregar cesta básica, é verdade. Alugar ônibus
para levar as mulheres na cadeia, é verdade. Quanto custa uma passagem pra 400, 600 km? A
filiação do PCC está toda no interior de São Paulo, à 300, 400, 500, 600 km daqui. São em
grande maioria pobres. As pessoas não dispõem do dinheiro pra visitar o marido todo o final
212
de semana. O PCC é quem fornece a passagem para poder visitar. O PCC fornece a condução.
Ao sair da Barra Funda, é o PCC quem paga. Todo esse lado do PCC favorece os familiares.
Eles fornecem cesta básica, promovem quermesse na periferia, fazem fogueirinha de São
João, até festa de natal com direito a distribuição de brinquedos. O familiar não iria buscar
uma facção que promete melhorar a vida do marido dela dentro da cadeia apenas, eles
melhoram a vida dela aqui fora também. Por isso essa grande participação das mulheres.
Como surgiu a experiência do PCC em lidar com os seus públicos de interesse?
O PCC sempre procurou criar o que ele achasse mais interessante. É claro que algumas coisas
vieram do Comando Vermelho. Ele também compra e vende identidades, paga enterro,
velório e a certidão de nascimento. Embora o PCC tenha copiado essa forma, ele sempre
divulga de uma forma diferenciada, que não foi copiada. Funcionou no comando vermelho e
funcionou no PCC também. Depois que os dois se aliaram, no trafico de droga e de arma,
houve muita troca de idéias, principalmente com o Césinha e o Geléia, que estavam presos
com os integrantes do Comando Vermelho. Eles aprenderam algumas táticas e estratégias. O
PCC sempre foi um pouco mais ousado que o Comando Vermelho, porque é mais organizado.
O Comando Vermelho é uma organização que nem sempre tem um comando central. O PCC
continua tendo um comando central, que é a sua força. Tem um cara que comanda, que segura
as rédeas, é o ―patrão‖, por isso funciona tão bem. O PCC é atrevido, possui até página na
internet, isso é fantástico. Sabe quem fez? Um preso no computador de um diretor na cadeia.
Eles sempre tiveram um atrevimento maior, uma organização maior, a ponto de fazer uma
página na internet. Conheça o PCC, saiba o que a gente pensa, veja o que foi publicado sobre
a gente. Um site como eu tenho o meu. A polícia acabou tirando do ar somente dois anos
depois que ele tava funcionando. Nem isso a polícia teve a competência de descobrir.
O que foram os ataques de maio?
O PCC tinha caixa, ou seja, dinheiro, que é um dos grandes truques da facção. O assalto em
Fortaleza por integrantes do PCC, de R$170.000.000, rendeu grande parcela para o comando.
O PCC tem dinheiro, organização, gente, armas, coragem. O que o PCC queria era aparecer.
Nada mais foi do que disse um de seus integrantes: ‖Olha, nós vamos mostrar que o Estado
está mentindo, nós vamos mostrar que não é verdade que nós acabamos, nós vamos mostrar
que nós temos poder, nós vamos mostrar que a gente pode parar não 30 presídios, mas 70. A
gente vai mostrar tem kamikaze saindo de um monte de buraco em São Paulo e aparecendo
para nos servir‖. O caso da Castelinho estava entalado na garganta deles, queriam vingança,
213
policiais mortos. Eles consideram a morte de policiais nos ataques uma forma de vingança
pelo que aconteceu na Castelinho. O PCC tinha varias razões, primeiro um Estado que
continuava negando seu poder. A rebelião que parou 30 presídios, tão logo acabou, o Geraldo
Alckmin e o então secretário de segurança pública, deram uma entrevista dizendo que aquilo
não tinha sido nada. ―Ninguém morreu‖. Ninguém morreu porque o PCC determinou que não
era para matar. A rebelião era um aviso, que numa próxima poderia ser pior. Aquele foi um
momento que o governo continuou dizendo: ―Olha, não existe PCC. Existe, mas não tem esse
poder que a imprensa está dizendo. A organização não é como todo mundo diz que é. São
grupos paralelos que não tem um comando central‖. Enfim, mentiras que o governo contou e
conta a respeito da organização. Naquele momento o PCC queria ser compreendido da
seguinte maneira: ―Olha, a gente só não quer, como pode sair da cadeia, e vamos mostrar
nossa força, principalmente aí fora, perante a classe média, diante da sociedade, do governo,
Estado e para o secretário‖.
O PCC ganhou ou perdeu com essas ações?
No entender deles, ganhou. Muitos especialistas tratam como prejuízo para o PCC aqueles
dias de terror. O PCC, por contatos meus com os próprios líderes, me contam o contrário. Eles
acham que aquilo foi uma vitória. Eles se vingaram das mortes na Castelinho, que é o
primeiro grande trunfo desse resultado. Mostraram para sociedade que existem e tem força.
Quem foi para a rua sabia que podia matar e morrer, isso já estava previsto. Existe grande
facilidade de reposição entre os membros do PCC, não há preocupação em relação a isso. O
lema do PCC é lutar até morrer, desde o começo. ―Sabemos que vamos perder muitos, mas o
que importa é que a gente vai conquistar o que queremos‖. Eles doam suas vidas pela causa.
O PCC perdeu muito dinheiro com essas ações?
Perderam muito dinheiro, mas tinham bastante. O assalto ao banco central de Fortaleza, e
mais dois assaltos que tinham feito aqui em São Paulo em empresas de valor, da qual levaram
32 milhões e da outra mais 18 milhões, proporcionaram a eles dinheiro suficiente para bancar
os ataques. Dos 170 milhões, cerca de 25 milhões foram repassados ao caixa do PCC. Quando
eu digo que o PCC foi um pouco mais astuto e inteligente do que o Comando Vermelho, além
desses assaltos existe o ―mensalão‖ do PCC. O preso paga uma mensalidade todo o mês, que
vai de R$25 a R$500, dependendo do poder do preso. Imagina, você tem um público só em
São Paulo de 150 mil pessoas para comprar uma rifa sua garantida todo mês. É uma grana
fantástica, hoje custa 10 reais cada rifa. O ―mensalão‖ do PCC, as rifas, os assaltos e a
214
fidelidade de quem rouba, destinando de 10% a 15% para o comando, fez o PCC ter o que é
mais importante numa organização criminosa: dinheiro, ou melhor, capital de giro. De
qualquer forma perdeu dinheiro, tanto é que agora os seqüestros voltaram a aumentar na
cidade, e os assaltos a bancos também. O PCC tinha desistido de assaltar bancos, a não ser
como em Fortaleza, bem planejado. Os bancos hoje estão bem precavidos, o sistema de
segurança melhorou, além de guardarem menos dinheiro. A retirada de dinheiro dos bancos é
mais freqüente. Passou a ser um negócio que não era tão interessante. De uns tempos pra cá,
com a desistência do PCC em assaltar bancos, houve um relaxamento no investimento de
segurança, que passaram a acumular dinheiro. Tanto que o assalto em Guarulhos rendeu 100
mil reais para o PCC. Dinheiro que hoje se você entrasse no banco, tinha 5 mil ou 10 mil em
caixa. O PCC voltou a assaltar banco, a fazer seqüestro, porque precisa de dinheiro, para
fortalecer o caixa, porque tem pretensões de um novo ataque na cidade de São Paulo.
Quando isso irá acontecer?
Já era para ter acontecido. Graças ao celular, a polícia fez escutas e descobriu o plano. Usou o
guardião, que é um sistema fantástico. Você põe o seu numero do celular para grampear e
todo mundo que você ligar, ou ligar para você é grampeado também, automaticamente. A
polícia faz uma rede. Bandido liga pra bandido, que liga para outro bandido, para a mãe,
mulher, namorada, um amigo, jornalista, ou seja, forma-se uma grande rede que também não
interessa. Para rede deles interessa, porque é bandido ligando para bandido, dando ordem,
recebendo resposta. A polícia conseguiu com esse guardião, um bom serviço de inteligência,
trabalho fantástico. Assim ela descobriu os planos do PCC, que era para ter acontecido um
ataque em setembro passado, que seria o ―Setembro Negro‖, como eles estavam chamando
entre os presos. A primeira providência foi mandar o Juninho Carambola para o presídio de
segurança máxima. Era ele quem estava coordenando. Afastaram também o Macarrão. Enfim,
diluíram o comando impedindo as ações. Prenderam muita gente aqui fora, que fariam os
ataques. Sufocaram esse ataque, mas não a vontade deles de fazer. Eles continuam com o
plano. Existia uma dúvida se ira ser o ―Setembro Negro‖ ou outra data mais próxima das
eleições. O PCC também aprendeu à trabalhar um pouco politicamente.
Existe algum partido ou algumas pessoas ligadas a partidos, que procuram tirar
proveito do PCC?
Como em todo lugar. Você tem advogados por exemplo, outro problema gravíssimo são os
policiais que o PCC arranjou. O número de policiais que servem o PCC hoje é enorme, é
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inimaginável para pessoas comuns. Uma vez eu estava numa delegacia e o delegado disse:
―Eu tenho muito medo de quem trabalha comigo, porque não sei hoje quem é do PCC ou
não‖. São eles carcereiros, delegados, investigadores, diretores de presídio, tudo que o
dinheiro compra. Alguns por dinheiro ou por simpatia, por incrível que pareça. Existem
comerciantes, alguns obrigados a pagar, outros que pagam por serem simpáticos à causa,
porque não querem ter problemas. Existe uma rede muito grande de fornecimento de dinheiro,
onde aparecem políticos por de traz dos bastidores, que possuem relações com PCC, ajudam e
dão idéias políticas. Desde deputados estaduais, federais; têm muita gente simpática ao PCC
dentro do mundo político, embora o PCC procure tê-los afastados. O PCC não quer ter aquela
idéia do Comando Vermelho de começo, por causa de contatos com os presos políticos. Ele se
afasta um pouco, mas aceita ajuda, inclusive algumas idéias.
O jornalista está preparado para acompanhar essas questões do crime organizado?
Acho que poucos estão preparados para acompanhar, porque existe um problema muito grave
na redação, que é o ―foca‖. A redação foi invadida hoje pelos foca filhos da classe média.
Filhos dos amigos do patrão, que infelizmente invadiram a redação e ganham $600,00 por
mês e deixam uma C4 estacionada na porta da emissora ou rádio. Gente que tem dinheiro e
não tem compromisso, não tem uma formação que consiga ver seus problemas e consiga
separar um lado do outro. Hoje temos uma imprensa muito mancomunada, medrosa,
assustada, que tem medo do secretário de governo, medo de peitá-lo, medo de cobrar o
governador. Muitos programas policiais, onde o que interessa é o apresentador, o dono da
emissora não entra em conflito porque depende dos delegados, do governador, do policial
para continuar abastecendo o jornal. Diante disso são poucos os jornalistas preparados para
lidar com o crime organizado.
A sociedade estava preparada para receber as informações dos ataques da forma como
foi divulgada pela grande mídia?
Não estava! Eu até escrevo no meu livro que caiu a ficha na classe média naquele momento,
talvez fosse uma das coisas que o PCC pretendia, de mostrar esse poder à classe média. Mas
acho que não como o governo agiu, tentando fazer com que as pessoas achassem que o PCC
era um problema do portão e da muralha para dentro. ―Que se matem, morram, quanto mais se
matar melhor. A sociedade viu que não era verdade e que o PCC era sim, como alguns
jornalistas contavam, forte aqui do lado de fora. Daí assustou, causou revolta, protestos,
cobranças. O que me deixou perplexa, indignada, é um problema que persiste desde 1993 e de
216
repente apareceu plantonistas, analistas e sociólogos de todos os cantos palpitando sobre a
facção, análise que deveria ter sido feita e enfrentada a muito tempo. Acho que a classe média
se assustou. E antes que você me pergunte, não concordo que a imprensa exagerou. Não
concordo mesmo! Na época eu estava na Record, a gente não tinha equipe suficiente para
cobrir os ataques que estavam acontecendo, pela quantidade de ocorrências. Você não tem
noção de noticias que nem foram dadas porque não deu tempo. De quantos ataques
ocorreram, passaram de 300. Foi um momento muito forte, que a sociedade se assustou, que
as pessoas não foram dar aula, que as pessoas não foram à escola. Homens armados, saindo
nas ruas. Eu não acho que a imprensa exagerou, ela errou em alguns momentos, é diferente.
Nós não demos se quer uma notícia de um ataque que não fosse verdadeira. A imprensa disse
que foram 65 ônibus queimados, é porque foram 65 ônibus queimados. Então não houve
exagero. Os números dos ataques já mostram o tamanho dos ataques. Houve erro de algumas
emissoras. Como aconteceu, infelizmente, na própria TV Record. Mandaram uma ―foca‖ para
fazer uma cobertura ao vivo, em frente ao DENARC. Ao invés de colocar uma pessoa com
experiência para ficar no microfone, puseram uma que não tinha experiência. Dois anos de
carreira, não que isso seja pouco, mas é que a pessoa não cobre nada de polícia. Daí passou
um tira, que socorre muito, apesar de se divertirem com os porcos, e disse para ela ―Foi dado
o toque de recolher na cidade―, e ela não consultou ninguém, os mais experientes, não contou
para a redação, não confirmou com o chefe da delegacia, que era o Bittencourt, e foi na ânsia
de ser a primeira a dar a noticia. Pegou o microfone e disse: ―Foi decretado o toque de
recolher a cerca de 15 minutos em São Paulo‖. Porra, fodeu! A casa caiu! ―Porra, quem
disse?‖. ―Ah, um tira que passou aqui‖. ―Puta que pariu‖! Daí já começou a ligar governador,
secretário, policial e o diabo pra Record, falando que não foi decretado toque de recolher
coisa nenhuma. Imagina você ter que aparecer no ar e dizer assim: ―Olha, não houve toque de
recolher, a foca errou‖. Isso foi um erro gravíssimo, causado por essa falta de estrutura que
domina hoje as redações.
Você se sentiu como vítima ou telespectadora durante os ataques?
Eu me senti como os dois. Os três, aliás! Vítima, telespectadora e profissional. Eu estava
trabalhando. Vi-me como vitima, impotente diante da situação e com muita raiva de saber que
isso poderia ser evitado se tivesse sido feito um trabalho correto, desde o começo. Vi-me
como telespectadora e como profissional, infelizmente pensando: ―Poxa, eu sabia que isso ia
acontecer, eu tinha certeza que um dia chegaria a isso, eu tinha certeza que um dia o PCC iria
querer dar esse recado dessa forma violenta‖. Fariam uma passeata na Paulista, como faz a
217
burguesia, ou realizariam um ataque, como aconteceu. Durante meus 20 anos de carreira,
escuto a mesma mentira das autoridades: ―Isso é exagero, não existe, não é assim, é pequeno‖.
Lembro-me que o Godofredo Bittencourt, diretor do DENARC, quando aconteceu o primeiro
ataque; eu falei para minha redação: ‖É o PCC!‖. O Godofredo estava dizendo: ―Quem disse
que foi o PCC? Você jornalista? Você ta garantindo que é o PCC? Porque nós não sabemos
nem se um ataque tem relação com o outro, ou se é só coincidência‖. O Nelson Guimarães,
um delegado muito competente, costuma dizer o seguinte: ―Coincidência demais, não é
coincidência.‖ Quinze ataques, e o chefe do DENARC dando uma entrevista coletiva, dizendo
que não sabia ainda se era o PCC, e sequer se os ataques tinham co-relação entre si. Você é
obrigada a virar e falar: ―Desculpa delegado, mas está escrito trouxa aqui na minha testa?
Demorou, a polícia sabia que ia acontecer, tinha informações do que aconteceria. Não houve
sequer um plantão reforçado. Precisou sair correndo para tirar nego de folga em casa, chamar
policial e pegar os batalhões para enfiar todo mundo dentro dos presídios. Um sistema de
emergência, na correria, que já poderia estar pronto.. Sabemos o que vai acontecer? Vamos
nos preparar para isso. No ano de 2000, você andava no Rio de Janeiro, tinha polícia, exército,
trator e o diabo. Tomasse essa mesma decisão, porque não tomou? Porque o governo não
queria mostrar que estava fazendo isso pra se precaver, pra se prevenir, como também não
calculou o tamanho do negócio. O próprio governo achou, não calculou o quanto seria a
proporção dos ataques, com isso teve que correr atrás do prejuízo e, ja era tarde demais.
Respondeu com mortes. Gente inocente morreu, a polícia fez teatro, mataram seus próprios
desafetos. Chegou a um ponto de policial matar o outro, e jogar a culpa no PCC, porque era
desafeto. Ele queria matar o cara, aproveitou o momento, botou uma máscara ninja e matou o
companheiro dele, além da irmã que saiu na janela, temeroso de que ela reconhecesse a moto.
Aquela morte foi atribuída ao PCC, e na verdade não foi. Foi uma loucura, que ate a própria
polícia usou do momento para matar seus desafetos, seja um traficante do bairro que estava
enchendo o saco até pessoas que nada tinham. Foi uma confusão incrível que aconteceu ali.
O PCC manipulou a mídia ou a mídia manipulou o PCC nos ataques?
Eu acho que nem um, nem outro. Não houve manipulação. Isso é o discurso que o Estado usa.
Você vê o crime crescendo, o crime se organizando, o criminoso mais violento e só escuta
que: ―A culpa é da mídia, a mídia glorifica o bandido, a mídia que deu um espaço para o
PCC.‖ Não! O PCC conquistou espaço e por isso a mídia passou a mostrar isso. O
Fernandinho Beira-Mar , quando apareceu pela primeira vez numa reportagem, já era bandido
há 12 anos e o maior traficante do país. Quando a mídia descobriu, a mídia foi e falou: ―Olha,
218
esse cara, ele é maior traficante do país, ele faz trafico internacional‖. Depois escutamos das
autoridades que estamos glorificando o Fernandinho, não deveríamos contar para a população
que existe o PCC, o melhor é esconder, porque aí as pessoas não ficam com essa sensação de
insegurança. Quando terminaram esses ataques, de novo o governo foi aos microfones e disse:
―A imprensa exagerou, a imprensa glamouriza‖. Parece que eles convencem a classe média
disso, os estudiosos e sociólogos de plantão disso. Eu vivo sendo chamada pra dar entrevista,
para discutir esse assunto. A inoperância do Estado, ninguém diz nada. Sempre a culpa é da
imprensa. Nós criamos o PCC, nós engordamos o PCC, nós valorizamos o PCC. Eu escrevi
um livro sobre o PCC e teve gente que disse: ―Isso é glamourizar o PCC, você não devia
escrever esse livro.‖ Então a gente não deveria escrever sobre a segunda guerra mundial,
―DOICODE‖, sobre a fome no Brasil, entre outras tantas coisas. Vamos esconder a realidade.
Assim as autoridades folgam muito em jogar a própria culpa na imprensa. Convencem a
classe média de que o bicho é pequeno e que a gente que faz ser grande. Talvez nesse
momento, o PCC tenha mostrado para essa classe media que escuta esse falso discurso do
governo, que não é bem assim.
Qual é o limite da imprensa em atrapalhar a polícia, em glorificar o crime e ajudar a
sociedade?
Eu costumo dizer o seguinte: ―Eu não sou polícia, eu não sou dedo duro, mas sou profissional
responsável.‖ Eu sempre tive um acordo com o PCC: ―Se vocês me contarem o crime que vai
acontecer, eu vou dedar,‖. Minha obrigação profissional é a de cidadã. Eu convenci o PCC a
deixar de fazer crimes bárbaros. Eles queriam explodir a Imigrantes. Queriam botar um
caminhão que roubaram do exército, com muita facilidade, cheio de C4, um explosivo
poderosíssimo. Queriam explodir a ponte da Imigrantes para mostrar para o governo e
sociedade que existiam. Eu os convenci com o discurso de que, da mesma forma que eles
ficavam putos e não concordavam com a polícia descontar nas mulheres e filhos deles, o que
eles queriam fazer era igual. Eles não tinham que descontar na sociedade, o problema deles
era com a polícia e o Estado. Eu sempre tive esse acordo, se me conta eu vou falar. Quando a
filha do diretor da cadeia foi seqüestrada, a médica Eulália, o Césinha e o Geléia me ligaram e
falaram a seqüestraram. Eu falei: ―Então agora vocês se ferraram, porque vou contar para o
delegado, porque eu sempre falei isso pra vocês‖. ―Ah beleza, então você fala que nós
assumimos a autoria.‖ Fui até o Wagner Jutzi, lá em Taubaté, e falei: ―Wagner, posso
conversar com você um pouquinho? O Seguinte, foi o PCC.‖ Ele respondeu: ―Porra, pra você
tudo foi o PCC, não foi, nós estamos numa linha muito diferente.‖ Eu falei: ―Então, você está
219
na linha errada, porque eu sei que a mulher está até num cativeiro em Santos. Cara, se vira e
procura. Porque eles me falaram e estão assumindo a autoria.‖ ―Não, não é‖ ―Bom, então ta
legal, a minha parte eu fiz‖. Avisei os dois porque é minha obrigação profissional. Eu estava
na CPI de sistema carcerário, a gente veio em Pinheiros, e eles não queriam me deixar entrar.
Os deputados peitaram e falaram: ―Não, ela conhece a realidade do sistema, e por isso que ela
esta fazendo um vídeo para gente‖. É coisa que não me incomoda, tenho minha consciência
profissional e eu sei o que eu fiz e o que eu faço. Se recebo uma notícia, vou checar e dar essa
notícia. De onde ela veio, que fonte? Isso eu tenho sigilo. Terminado ou mesmo durante os
ataques, é claro que eu conversei com os integrantes do PCC. É claro que eu perguntei quando
é que iria terminar. E é claro também que como cidadã, sugeri que parassem com aquilo, disse
que não era o caminho, embora eles achassem que era. Discuti com eles. Tive uma discussão
com um preso certa vez: ―Olha, me esquece que eu não quero mais saber‖, ele decidiu matar a
mulher porque tinha sido traído. Uma mulher que durante anos, fez ele sobreviver dentro da
cadeia. Ai eles se separaram, ela arrumou outro cara. E o cara queria matar, pior do que isso,
queria matar o filho primeiro pra fazê-la sofrer. Então eu falei: ―Geléia, se você fizer isso,
acabou qualquer conversa entre a gente, nunca mais você ouse ligar para o meu celular.‖ Ele
desistiu, repensou depois me ligou e disse: ―Ah, você tem razão, a criança não tem nada a ver
com isso. É mesmo, quanta gente já foi chifrada.‖ E eu falei : ―Para com essa mania
machista.‖ A própria seqüestrada, não foi morta por pouco, eles fizeram um júri e resolveram
matar a Eulália, a filha do diretor. O Pedrosa várias vezes me agradeceu pela vida da filha,
porque ele soube que intercedi. Quando eles decidiram matar, eu fui pra cima e falei: ―Oh,
espera aí, é a mesma coisa que seqüestrarem o filho de vocês e matar, quem não tem nada
com isso. A Eulália se formou médica, foi pra outro caminho, não quer nem saber da carreira
do pai. Pô surtou?‖. Às vezes até penso, eu deveria ter feito isso? Acho que sim! Se eu pude
ajudar, com meu discurso, a salvar uma vida, vou ajudar. Você pode dizer: ―Ah, os presos do
PCC confiam em você?‖ Confiam sim! Muitos delegados confiam em mim. Eu tenho a
confiança dos dois lados, porque sempre trabalhei numa linha, que é dar a notícia, é checar a
notícia, informar muitas vezes a polícia da notícia. Se ela não acreditou e, não foi atrás, aí já
não é problema meu. Eu não sou polícia, não é minha função prender ou não prender alguém,
analisar ou não analisar a situação. Eu como cidadã, é claro, analiso o aumento da
criminalidade, a violência da criminalidade, como a gente está exposto a ela, desde a as
incompetências da polícia, as incompetências do governo, até a organização do crime. Eu
nunca fui amiga de bandido, como muitos costumam dizer. Eu e outros jornalistas somos
muito criticados por essa relação de receber telefonema do PCC, ter contato e conversar.
220
Geralmente as experiências são transformadas em matéria. Certo dia me liga um preso: ―Ó, o
somos do PCC aqui de tal cadeia. O negócio é o seguinte cara, nós tamo trancado aqui dentro.
Os caras soldaram a porta e largaram a gente. Tão jogando comida pelo teto, tamo aqui no
meio da merda, da sujeira, da imundice, porque o diretor decidiu que é assim que ele vai dar
castigo pra gente‖. Óbvio, que eu estava numa emissora. Falei para o meu chefe: ―Meu,
vamos pegar o helicóptero e sobrevoar essa porra para ver se é isso mesmo.‖ Sobrevoamos e
constatamos que isso realmente era verdade. Veio gente da ONU para cá, por causa desse
episódio. Dois presos morreram e os cadáveres estavam ali apodrecendo, gente machucada.
Terminou a pena de um preso que pesava cento e poucos quilos e eles amarraram o preso e
içaram lá de cima. Quer dizer, o que estava acontecendo lá era bárbaro. O PCC denunciou, a
gente foi e constatou que era verdadeiro, demos a notícia. Daí o Estado foi lá e resolveu.
Pediu desculpas para o pessoal dos Direitos Humanos e demitiu o diretor. Eu fiz a minha
função de jornalista. Recebo uma informação, chequei e mostrei o que era a realidade. Se foi
o PCC que avisou, a mulher do preso, ou o carcereiro, pra mim não faz diferença. Faz
diferença que aquilo lá era verdadeiro e bárbaro. A gente tem uma lei de imprensa, cobrasse
dele isso. Se ele repetiu a imagem que já tinha rolado, se não esta ao vivo e esta acontecendo é
passivo de processo, de perder o diploma e não exercer mais da profissão. Vamos cobrar o
cara que fez isso, o cara que inventou a notícia, o repórter que deu o toque de recolher, a
emissora que deixou dar o toque de recolher. Tem uma lei que rege, tem uma lei do bom
senso que nos rege. O Estado tem se colocado na postura dos ―três macaquinhos‖ e
simplesmente se limita a dizer que foi culpa da imprensa. Acho que o papel da comunicação
continuarmos falando, embora a gente vá continuar tomando bordoada, continuar sendo
apontado como amigos dos bandidos, ter nossos telefones grampeados, governo dizendo que a
gente faz apologia ao crime, faz o bandido ficar famoso. O papel da comunicação é continuar
chato, pentelho, ativo. Cobrar e mostrar o que esta acontecendo, se dói ou se incomoda. Se
não tem como mostrar a competência, também não tem que esconder. Sou totalmente
contraria a esconder, contrária a essas posturas que a gente que faz do bandido famoso, o PCC
existe, porque ele aconteceu, cresceu, tomou o buraco que o governo deixou, inclusive social.
Porque o PCC hoje faz, e faz o que o Comando Vermelho fazia: registro de nascimento e
morte, paga o velório, compra as flores, consola a mãe, compra cesta básica para a família.
Com isso ocuparam esse espaço que o governo deixou.
Você tem medo dessa sua relação com o PCC?
221
Tenho! Não é só o PCC, tenho muito medo da polícia. A polícia me apavora. O bandido me
apavora, mas a polícia também. É terrível chegar num ponto desses. Certa vez fiz uma
reportagem num presídio especial da polícia civil de São Paulo, que para mim não deveria se
chamar especial, pois abriga ex-policias envolvidos em crimes. Para mim quem esta lá não é
polícia, é bandido, porque lá tem traficante, assassino e ladrão. O cara ―foi‖ polícia. O cara
que com a farda pratica um crime é pior do que o outro. Porque o outro eu sei que tem uma
ficha criminal de 2 metros e fala: ―Eu sou bandido e foda-se‖. Agora o policial não, finge que
é a lei, a autoridade, portanto é mais perigoso. Desse que eu tenho medo. Quando fiz a
reportagem no presídio, mostrei que eles saiam, passeavam, tinham telefone a disposição,
faziam churrasco, tomavam cerveja. Uma tremenda mordomia. Eu fui muito ameaçada por
policiais que estavam lá dentro, e que estavam aqui fora, pois ficaram revoltados com a
matéria. Eles querem que aquela mordomia seja mantida, porque se ele virar bandido, é aquilo
que ele quer. Aqui de fora, delegado, investigador, vieram me questionar: ―Por que você
mostrou aquilo? São nossos amigos que estão lá, são nossos companheiros.‖. Eu falei: ―Não,
são bandidos que estão lá. Me desculpa delegado, se você um dia estiver lá, pra mim você vai
ser bandido‖. Eu sofri a revolta de muitos policiais daqui do lado de fora, por ter feito essas
reportagens. Foram cinco reportagens especiais no Jornal da Band, 5 minutos cada uma, mas
que causou indignação. Eu tenho mais medo da polícia do que do bandido. O bandido joga
limpo, por incrível que pareça, o policial nem sempre. Policiais que eu confiava, depois eu vi
preso, por ser integrante do PCC. Policiais com quem eu troquei idéia sobre o crime
organizado. Imagina você como profissional, se senta com o delegado, e fala: ―Ó, funciona
mais ou menos assim, pô e tal coisa‖, aí você dá umas dicas pro delegado e no dia seguinte
você o vê preso, porque é do PCC. Como é que você fica? Ele pode chegar no PCC e dizer
que você esta inventando historia. A polícia bandida é muito mais perigosa do que o bandido.
Onde fica a moral nisso tudo?
Não fica. Infelizmente hoje você tem muito mais moral entre os bandidos, porque eles
determinam uma regra e a seguem. Uma regra errada, torta, irregular, ou seja, uma regra do
bandido. Se você encarar para o lado da fidelidade, ele é fiel a regra que é determinada. O
policial não, ele foge do papel que se propôs a fazer. Eu estava na porta do DENARC,
gravando um off (quando se faz um texto e fica gravando), dentro da viatura da Band, vidro
insufilmado, com o cinegrafista gravando o texto da matéria, daí eu comecei a ouvir uma
conversa do lado. Essa conversa estava atrapalhando a minha gravação. Então eu falei paa o
cinegrafista: ―Vamos esperar o cara terminar o telefonema‖. O carro estava parado na
222
pracinha em frente à delegacia. Depois de um tempo abri o vidro por causa do calor, e fiquei
esperando o cara terminar a conversa. A conversa era o seguinte: ‖Olha o delegado quer
R$80.000,00 cara, se você não der o seu irmão vai ficar preso. Eles pegaram o seu irmão e
prenderam faz 2 horas. Eu estou lá com a equipe e eles querem essa quantia, porque são 7
tiras e um delegado, 10mil pra cada um‖. O cara do outro lado falava: ―Onde que eu vou
arrumar o dinheiro, como eu vou arrumar.‖ ―Eu não sei meu, mas se você quer o seu irmão na
rua, você traz os 80 paus aqui, senão eu não posso fazer mais nada‖. Eu não acreditava, sai do
carro e falei para o advogado: ―Eu escutei essa história, você quer botar uma câmera
escondida? A gente põe uma câmera escondida e você vai lá e negocia. A gente derruba pelo
menos esses 8 malditos policiais‖. ―Pô você é louca? Você quer que eu morra? Você sabe
quantas vezes eu já fiz isso? Não é a primeira‖! Sei que no final da historia o irmão arrumou o
dinheiro e pagou. O bandido que diz que tina uma ficha de 25 metros, saiu pela porta da frente
do DENARC, e os 8 policiais receberam os 80 mil reais. Fiquei com a frustração de só poder
contar essa história e não ter podido comprová-la. Moral? Não sei, eu acho que não tem mais.
Não tem mais moral do dono na emissora que compactua com o governo, não tem moral o
governo que tem coragem de pedir para a emissora não dizer mais o nome do PCC. Não tem
moral na sociedade, que quer que o preso se ferre mesmo atrás das grades, e só quando sai
aqui para fora incomoda, não tem moral de pensar que esse cara recuperado pode ser um
cidadão, que não cometa mais crimes. Ficou tudo simplista. Mata, morre e está tudo certo
Existe solução?
Existe, mas é muito difícil. Esse comprometimento com a policia e bandido é muito forte. Ai
você vai dizer, poxa, é só 10%. Mas é 10% que causam um estrago muito grande. Existem
policiais competentes, como esse delegado que eu te contei, que hoje tem medo do que ele
fala, porque o parceiro dele que está lá, pode ser do PCC. Veja em que ponto a gente chegou.
É muito perigoso. Assim, de cara não se resolve, porque não se quer. Não se pode ter um
delegado que tem uma casa que pegue 5 quadras no Morumbi, que tem uma fitness na
cobertura, além das 4 piscinas. Alguma coisa esta errada. Eu conheço delegado rico, porque
vem de família rica, e resolveu ser policia porque gosta, tem tesão, trabalha legal. Agora
conheço muito policial que ficou rico. A primeira coisa que precisa ser feito é: quando o cara
entrar na polícia, fazer uma declaração dos bens dele, além da existência de uma corregedoria
atuante, que sorteasse 10 por ano e fosse ver o que ele tem. Você encontra um carcereiro que
chega para trabalhar na penitenciaria com uma Kavazaki 1000, com um roléx, e uma corrente
enorme de ouro no pescoço, que eu trabalhando 20 anos como repórter, não teria dinheiro
223
para pagar. Você pensa, poxa eu tenho um carro mil e todos os tiras que eu conheço tem
carros que custam pelo menos cem mil. É muito obvio, é muito na cara, mas ninguém
denuncia, porque também vai fazer ou entrar no esquema. É preciso começar com uma
corregedoria mais atuante, com cobrança dos policiais, resolver o problema salarial da polícia,
que também parte aí. Levaria muitos anos pra uma solução. Não vejo coragem para mexer,
para todos interessa mais esconder essa realidade do que assumir a mudança.
Qual é o papel da sociedade nesse contexto?
Partiria da cobrança do que não acontece. É com todo respeito às vítimas, o que eu vou te
falar, porque para mim cada morte não deveria ter acontecido, mas eu fico indignada quando
as pessoas da classe média alta fazem camisetinhas com seu defunto desenhado nela, e fazem
uma passeata na Avenida Paulista ou em Copacabana, como se isso fosse resolver o
problema. Esquecem-se que todo dia, só em São Paulo, 20 pessoas morrem na periferia,
também de forma violenta, também de forma bárbara. A nossa sociedade é muito omissa.
Quando eu digo classe média alta, burguesia, é porque teria que partir deles essa atitude. Você
não pode cobrar das classes mais pobres. Se nós temos a possibilidade de estudar, aprender,
analisar e saber o que esta errado, ,muito mais do que quem não teve essa oportunidade, é
fundamental que se tenha atitude. Se você come mal na sua infância, você vai ser menos
inteligente do que quem comeu bem. Isso é biológico. A gente aprendeu para que? Para
defender o nosso defunto em nossas camisetas, nossa casa, nosso carrinho, nosso patrimônio
material. Quando o vizinho é assaltado, não dói como quando acontece a você. A sociedade, a
classe média e a classe alta hoje, são muito egoístas. Pouco preocupados com essa outra
classe, que é a que gera a violência. Pode-se dizer: ―Ah, então só pobre que é bandido?‖. A
maioria. Existem filhos da classe média bandidos, mas numa proporção muito menor, porque
ele não precisa ser. Ele é bem tratado, come bem, se veste bem, faz 18 anos e ganha um carro,
não passa dificuldades, a mãe dele não é prostituta, o pai não é ladrão, não passa privação, a
policia não te olha porque você é pobre, peita e já sai dando pancada. Falta moral pra
sociedade. Falta dizer assim: ‖Poxa, e aí, o que a gente vai fazer? O que a gente pode fazer? O
que a gente deve fazer? O que vamos fazer.?‖ Ao invés de ficar só circulando em Ipanema ou
na Paulista quando morre a dentista. Você já viu alguma manchete ou em algum jornal ou na
televisão: ―Morreu filho de pobre hoje de manhã?‖ Nunca? O quê que você vê? ―Morre
dentista, engenheiro é morto em farol‖. Diploma é importante para a imprensa. O defunto que
tem diploma vira noticia. Um dia cheguei na redação e falei para o meu chefe: ―Olha, um
garoto de 9 anos foi baleado e morreu. Uma história muito triste, ele ia para a escola, a mãe
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deu um real e ele resolveu atravessar a rua para comprar um pastel para levar de lanche.
Quando ele estava atravessando, polícia e bandidos trocavam tiros na periferia de São Paulo,
uma das balas acertou a cabeça do menino, que morreu. Sugeri que a gente fizesse a
reportagem contando o desespero da mãe, e que é o nosso dia-a-dia, desse confronto na
periferia, que é diferente do Rio, a classe média que finge que não vê, porque é longe, não é
como lá asfalto e morro tão perto. Meu chefe disse; ―Ah, mas a mãe dele faz o que?‖, eu falei
―A mãe dele é doméstica, o pai dele é pedreiro.‖ ―Não, não vamos fazer não, vamos investir
em outra história.‖ Pô eu fiquei revoltada, com muita raiva. No dia seguinte, eu chego lá,
tinham matado um rapaz de 18 anos, filho de classe média, estudante de jornalismo no farol
do Morumbi. Ele tinha acabado de ganhar do pai um carro zero bala porque fez 18 anos, o
garoto que o assaltou também fazia aniversario de 18 anos, e foi roubar o carro para poder
fazer uma festa. História triste. O filho do seu Jorge Damos inclusive. Quando cheguei na
redação meu chefe estava desesperado pra que eu fosse logo pro local fazer a matéria do rapaz
que morreu com o tiro na cabeça. Eu gostaria de ter feito esse e o garoto do pastel, mas eu não
pude. Eu fiz só esse, porque era filho de rico, foi no Morumbi. Uma história eu pude contar e
a outra não. O que eu acho disso? Acho uma falta de moral. É por isso que a coisa está tão
ruim, porque a gente só fica olhando pro nosso rabo. Quando atinge o nosso rabo é que a
gente reclama, se não, a gente deixa quieto, deixa passar ou deixa como está.
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Personagem V
Data: 10 de novembro de 2008
Início da Entrevista: 10h24min
Encerramento: 12h12min
Formação: Profissional do Direito
Função que exerceu em junho de 2006: Procuradora Regional da República
Qual é o seu entendimento sobre organizações criminosas?
Organização criminosa, pelo menos no Brasil, é um conceito que ainda é pouco trabalhado.
Porque a figura do código penal se prende muito ao conceito de quadrilha, ou bando. Isso
simplesmente corresponde a uma reunião de mais de 3 pessoas para cometer um crime.
Organização criminosa é algo muito mais complexo do que isso, é algo muito maior. São
muitas vezes sistemas inteiros que funciona, parte licitamente e parte ilicitamente. Muitas
vezes as pessoas sequer se conhecem. As informações são bastante compartimentadas.
Organização criminosa é algo muito maior do que isso. Hoje em dia se observa, pelo menos
em termos de quadrilhas na lavagem de dinheiro, arquivos ou no tráfico de entorpecentes; que
essas organizações criminosas estão ficando cada vez mais transnacionais. É curioso, porque
antigamente o crime era de quadrilhas de bairro, de Estado e depois do país. Esse conceito de
organização criminosa é porque ela é mais ou menos uma marca. É algo diferente do que a
gente tem por legal no código penal, de conceito de quadrilha, porque organização criminosa
é algo que não é definido em lei.
E como você trabalha dentro dessas questões legais, a identificação e mesmo o processo
junto a uma organização criminosa?
Bem, aqui os nossos processos são completos. Por se tratar de justiça federal, nós só lidamos
com crimes federais. Os crimes federais são geralmente o tráfico de entorpecentes e lavagem
de dinheiro, crimes que necessariamente tem uma concorrência nacional, ou seja, a pessoa
que vai trazer ou está trazendo drogas de fora, de outro país para cá; as transferências de
dinheiro, o ocultamento de bens, de um modo geral feitos no sistema bancário e com sistema
financeiro internacional. Com isso, basicamente, identificamos várias organizações
criminosas. Não existe assim uma espécie de crime organizado. È comum usarmos o termo
―delito universal‖, porque todo mundo está ligado a todo mundo. Você pega, por exemplo, um
sujeito que é personagem da corrupção, como Marcos Valério. Ele está ligado nesse sistema
do ―mensalão‖, tem até o ―mensalinho‖. Daniel Dantas, por exemplo, é outro personagem,
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que circunda em vários sistemas criminosos. Aqui identificamos muito facilmente esse tipo de
quadrilhas, um conceito bem diferente de organização criminosa.
Além do tráfico e lavagem de dinheiro, quais outras práticas de crime organizado
acontecem no Brasil?
Na Procuradoria da Republica nós temos vários casos de tráfico de pessoas. Inclusive a
Interpol está fazendo um trabalho muito bom a respeito de trafico de pessoas. Nós lidamos
também com crime cibernéticos e redes de pedofilia. Essas redes de pedofilias também, ao
meu entender, são organizações criminosas. Atualmente estou analisando um sujeito no Pará,
de 50 anos, que fica trocando fotos eróticas de sexo explícito com crianças pela internet. Esse
é um caso geral. Nós temos verdadeiras redes de pedofilia pela internet. Esse é outro aspecto
que a gente pode falar sobre organização criminosa. Trabalho escravo nós temos vários casos
em organizações do Pará, principalmente envolvidas com a extração ilegal de madeira, da
amêndoa, do babaçu. Colocam crianças de 8, 9 anos para quebrar o babaçu, que é muito duro.
As crianças saem da escola para trabalhar. Isso corresponde a uma série de bens jurídicos
atingidos, lesados, por essas organizações criminosas. Elas nunca cometem um delito só.
Quais são as organizações criminosas que você identifica hoje, atuantes no Brasil?
De uma maneira geral, existem as tradicionais como Yakusa, CosaNostra, Máfia Russa, etc,
ou do morro como o PCC, Comando Vermelho, a ABA entre outras. No meu trabalho
encontro também organizações criminosas estatais, ou seja, são verdadeiras organizações que
se instalam no poder público, ou a partir do poder público. Isso acontece sempre com a
concorrência, infelizmente, dos servidores públicos. Essas organizações são grupos que
atuam, permeiam a camada do serviço publico, tanto municipal quanto federal.
Você se recorda quando ouviu falar do PCC pela primeira vez?
Profissionalmente, eu ouvi falar do PCC faz uns 10 anos atrás. Era uma organização ligada
aos presídios estaduais. São presos de processos com a justiça estadual, as quais não têm
contato aqui. Por colegas do Ministério Público Estadual, nós tínhamos noticias de que havia
essa organização nos presídios, uma rede criminosa que estava se formando nos presídios.
Qual o seu entendimento sobre o funcionamento do PCC?
O PCC é uma empresa. Eu vejo o PCC muito mais como uma empresa do que uma
organização de presidiários. Uma empresa no sentido puro da palavra, não uma empresa
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legalmente constituída, com CNPJ, sede, e tal. Eles têm um tipo de cúpula executiva, além de
uma terceira diretoria: as regionais. Podemos chamar de auxiliares, as gerencias que vai
abaixando até os funcionários mais simples. Inclusive, os colegas do Ministério Público
Estadual chegaram a pegar livros contábeis, mesmo que rudimentares, mas contábeis: de
pagamentos de salário, décimo terceiro, cesta de natal, etc. O PCC funciona como uma
empresa, só que não legalmente constituída. Toda a característica, a estrutura é como uma
empresa.
Você acredita em uma ideologia no PCC?
Eu acredito em uma ideologia do poder. Na verdade as pessoas só cometem crimes por dois
motivos, a menos que sejam um crime passional envolvendo amor, sexo, aqueles elementos
todos de romance policial. Pessoas só cometem crime por dinheiro e poder. Quem tem
dinheiro tem poder e, normalmente quem tem poder, tem dinheiro. A ideologia deles é essa,
se impor como um Estado paralelo. Isso tem um complemento de responsabilidade do próprio
Estado, porque eles atuam mais fortemente nos lugares onde o Estado não está. O Estado
Brasileiro é muito fraco. Nós temos excesso de servidores públicos, uma cidade inteira
formada por eles chamada de Brasília. Diga-se um serviço público ineficiente, ineficaz,
ausente, em visão da população. Isso advém de uma série de fatores que começam lá nas
emendas, no orçamento, na liberação de verbas. Então quer dizer que aquele deputado federal,
de um estado obscuro da nação, consegue milhões de verbas para politicamente distribuir
entre seus prefeitos correligionários, só que aí ele já fica com uma parte, o prefeito também, o
que sobra ao cidadão e muito pouco. Existe dinheiro, mas a estrutura é falha e não deixa com
que o serviço do Estado chegue até a população.
Você acredita que o próprio PCC nasça de uma necessidade social, e principalmente, de
uma omissão do Estado?
Se você tem um Estado forte, tem presença. Quando eu digo um Estado forte, não é um
Estado armado, ou um Estado militar, é o Estado cidadão. Se você tem um bom saneamento
básico, moradia, emprego, as pessoas não vão precisar buscar o crime como meio de
subsistência. Hoje, por exemplo, um jovem de 17 anos, 16 anos, como menor e aprendiz,
quando muito vai ganhar R$300 à R$400 reais. Atuando como ―aviãozinho‖ do tráfico é
capaz de tirar R$10.000 por mês. É um dinheiro fácil. Nessas comunidades, exatamente até
pela falta de infra-estrutura, aquela vida vale muito pouco.
228
Você acredita que a questão do dinheiro seja a maior motivação dessas pessoas para
ingressar no PCC, mesmo dentro dos presídios, ou existe outro fator na formação
organizada?
Dinheiro talvez seja o primeiro fator, as pessoas se interessam por dinheiro. Por outro lado, a
gente tem notícias de pessoas que são praticamente coagidas a entrar no esquema. Isso a gente
vê nitidamente e, infelizmente, com as mulheres. A mulher se apaixona por um determinado
cidadão, sendo ele integrante do PCC, que acaba obrigando-a fazer determinadas ―coisas‖
ilícitas. Ela o faz por amor, para não perder seu homem. Hoje em dia, se você fizer uma
pesquisa nos presídios estaduais, onde está essa maior massa, é possível comprovar. A mulher
criminosa presa em presídio federal tem outro perfil. Na estadual são praticamente
analfabetas, possuem vários filhos, geralmente um de cada pai.. A necessidade da fêmea em
ter seu macho, o provedor ao lado, é grande. Existe uma série de fatores psicológicos,
sociológicos, e outros que levam a isso. Nos presídios, a maioria das mulheres que lá estão
por tráfico, pequenos furtos e participação em um crime, está devido ao companheiro.
A própria imagem hoje do bandido é sedutora?
Existe o componente da sedução, tanto do bandido quanto do policial. Quando digo sedução,
não é sedução só sensual, erótica, mas um poder de sedução social. O criminoso é visto como
aquela pessoa que tem um algo mais, que pode ser normalmente a arma, legalizada ou não. Eu
vejo como um glamour. Eles mesmos se autodenominam com esse nome diante da
comunidade.
Diante disso, como que você vê o papel da mulher no PCC?
O PCC é uma organização muito machista. A mulher acaba entrando nesse meio, dificilmente
como voluntaria, mas para auxiliar o seu homem. Raramente elas pegam em arma. O auxilio é
prestado por favorecimento pessoal, ou seja, abrigando pessoas em casa, tomando conta do
cativeiro, cedendo nome para fazer conta laranja, sendo sócia de empresas fantasmas. Isso
tem uma raiz sociológica. Recentemente li um estudo de uma universidade inglesa, sobre ―Por
que as mulheres se envolvem menos em um crime‖. Se você olhar o universo de
criminológico, existem de 85 a 90 caracterizações legais para todos os crimes que são
cometidos em um conjunto de tipos, lugares e etc. Esse estudo sociológico chegou à
conclusão que a mulher, em primeira instância, é criada para ser dona da casa. Aquela criação
que a gente tem em sentir-se responsável por manter uma geladeira cheia, ou fazer milagres
com o que tem para alimentar sua prole, é característica de valores da família. Esse extinto de
229
sobrevivência de não querer que seus amores sofram, principalmente os filhos, transforma a
mulher em leoa. Assim, a mulher leoa luta com unhas e dentes para manter sua cria intacta e
nisso, se inclui a família de um modo geral: os pais, os irmãos, e o seu homem. Ela tem esse
componente de valores que a espécie do sexo masculino não tem, ou tem em grau menor. Por
isso que a mulher quando se envolve no crime, normalmente como no caso do PCC, é a
serviço de um dos seus amores: filhos, marido companheiros, irmãos, ou pai.
Diante disso, você acredita que a família tem um papel decisivo na própria constituição,
e nas próprias características que o PCC tem?
Com certeza. Todos os membros do PCC vêm de famílias desestruturadas. Então,
normalmente não são famílias tradicionais, do tipo que tem um pai, mãe, irmãos e uma casa
por exemplo. Quando sabem quem é o pai, em 70% dos casos ele não vive com a família ou já
é falecido. Em muitos casos, eles não sabem quem é o pai. Muitos têm na figura da mãe, a
única responsável. A mãe, até por essa carga maior que a mulher é obrigada nessa situação a
suportar, acaba indo para o alcoolismo, depressão, ou para prostituição. Muitas vezes a
mulher também não convive com os filhos. Praticamente os filhos se criam sozinhos. Nessas
condições, acabam adotando como estrutura familiar o PCC.
Qual a influência que o PCC exerce hoje sobre a sociedade?
Se você chegar a um bairro afastado, no morro, numa comunidade ―virgem‖, distante, onde o
Estado não chega, automaticamente seu papel é substituído por uma estrutura paralela. Você
tem, por exemplo, comparando com a Oscar Freire, a tranqüilamente em se usar jóias, deixar
seu carro com a chave no contato desde que você avise um dos seguranças. Eles exercem o
papel de polícia, na qual deveria ser sempre assim, para que as pessoas andem tranqüilas em
todos os lugares. Então quer dizer, ali o PCC dificilmente faça uma invasão, arrastão ou coisa
do tipo. Para isso precisaria invadir a Oscar Freire, saquear todas as lojas, trocar tiros com os
seguranças, o que é meio utópico. Nesse meio eles não exercem tanto poder. Nas regiões onde
não existe esse aparato que valida uma sociedade de pleno direito, está entregue a buscar esse
apoio na figura do porte ali estabelecido, que até então o PCC.
O que foram os ataques do PCC do dia 15 de maio de 2006?
Ninguém entendeu até hoje, eu também não entendi. O que nós vimos aqui, como
profissionais de Direito, foi realmente uma organização de ataque em massa. As informações
que nós obtemos tanto da polícia civil, da polícia militar, quanto da polícia federal, eram de
230
que realmente por meio dos celulares, eles haviam se organizado pra fazer um ataque com o
intuito em demonstrar seu poder. Isso, em possível retaliação a uma transferência de presos. O
motivo aparentemente banal serviu como status para se demonstrar essa força, que em São
Paulo até então, nunca se tinha visto. No Rio de Janeiro, a cidade na verdade se assemelha
com a geografia do Chile. Ela está no limite, de um lado você tem o morro do outro o mar, e
no meio o cidadão comum. Nesse dia dos ataques do PCC, houve dois aspectos que considero
componentes principais: o primeiro foi o medo da população, pois não se sabia o que estava
acontecendo e o segundo a imprensa, que teve um papel perverso. Papel importante e
perverso, porque começou a fomentar aquela cultura do pânico, aquela cultura do medo, ―não
saiam de casa‖. Isso fez com que as empresas fechassem as portas antes que os expedientes
fossem encerrados, por volta das 2 horas da tarde. O trânsito ficou um caos. As pessoas
ficavam em dúvida se saiam e encaravam o trânsito com o risco de sofrerem um ataque no
trânsito. Naquela época, houve essa coisa das pessoas terem certo receio do PCC, esse receio
foi exacerbado pelos meios de comunicação.
Como os ataques afetaram seu dia-a-dia?
Afetou na medida em que você teme pela segurança da sua família. Não pela função que eu
exerço, mas sim como cidadã. Aqui no prédio da Procuradoria da República, foram adotadas
medidas de segurança. Nós passamos durante várias semanas com as portas fechadas. As
portas só se abriam quando o carro entrava. Na portaria principal foi reforçada a segurança.
Uma série de medidas administrativas foram tomadas para o prédio. Nos dois primeiros dias
eu me lembro que eu fiquei muito assustada, de ver a massificação de más notícias,
absolutamente infundadas - ―ah, porque disseram que vão atacar o metrô‖, então as pessoas
não pegavam o metrô. ―Não, disseram que vão jogar uma bomba na Praça da Sé‖, então as
pessoas não passavam na Praça da Sé. Isso mostra como a mídia fizeram gato e sapato da
população. A imprensa teve um papel perverso, pois acabou dando voz a isso. Do ponto de
vista da imprensa é compreensível, porque ―não, espere lá, se eu tenho essa informação, eu
não vou passar essa informação que seria de utilidade pública?‖. Mas até que ponto se
confunde a informação de utilidade pública com a massificação da informação do medo,
sempre aumentando. Isso vem sendo visto claramente, nos últimos crimes, que têm sido
divulgados. Você tem o caso ―Isabela‖, além de outros delitos. É só ligar a televisão que nos
deparamos com o caso da menina Eloá, envolvida no seqüestro em Santo André. Só se fala
nisso. As pessoas acabam inconscientemente aumentando tudo isso, porque está incutindo
esse perigo na mente de todos.
231
Você se sentiu como telespectadora ou vítima durante os ataques?
Eu me senti como ambos os personagens. Mas talvez mais como vítima dos ataques, na
medida em que prejudicaram o meu cotidiano.
Você acredita que a sociedade estava pronta para receber as informações, da maneira
como foram passadas?
Nem a sociedade estava pronta para receber as informações e nem os órgãos de comunicação
e as fontes para passar essas informações. Então foi tudo feito de uma maneira bem
desencontrada, por isso que deu no que deu.
Houve despreparo dos jornalistas?
Eu converso muito com jornalistas por conta do meu trabalho, e é notório a competição
existente entre eles. Por exemplo, no caso Isabella ou da Eloá, você tem até um programa
feminino, da tarde, falando sobre aquilo. Outro veículo ou emissora, não pode ter as mesmas
informações divulgadas em sua matéria. Isso faz com que mandem um repórter para cobrir
aquele fato. Isso se transforma em uma corrida pelo ―furo‖ de reportagem. As pessoas, no fim,
acabam se interessando pela desgraça noticiada. Quando faleceu, por exemplo, o cantor
Leandro, me lembro que o enterro foi transmitido ao vivo, em rede nacional. Isso quer dizer
que essa informação é importante no ponto de vista do cidadão, mas ela não podia tomar
―furo‖, porque se não iria para o SBT, Record, Redetv, Band, entre outras. A mídia faz com
que um notícia desperte interesse na população, e os outros meios são obrigados a seguir.
Segundo o Luís Naciff, isso chama-se ―efeito manada‖. Todos da mídia são obrigados a entrar
no efeito manada, porque senão você vai tomar furo. A comunicação hoje, muitas vezes, não
deixa para o cidadão uma alternativa. Por exemplo, eu não quero saber do caso Isabella, mas
sou obrigada a assistir porque todos os canais passam a mesma coisa. As pessoas que não tem
TV a cabo, ficam reféns da televisão, dos canais abertos da televisão. Você está assistindo a
um determinado programa, independe do horário, pode ser as 4 horas ou 5 horas da tarde, uma
série super light, desenho animado, teu filhinho de 5 anos está lá e, de repente, entra o plantão
falando ―Menina é jogada da janela do apartamento onde morava, pelo pai.‖ No caso da
Isabella, isso gerou um efeito negativo nas crianças. Muitas crianças perguntaram para os
pais: ―Pai, qualquer dia você me jogaria da janela?‖. As crianças vêem aquilo acontecer e
pensam: ―Se o pai jogou ela da janela, será que meu pai pode me jogar da janela também?
232
Esse tipo de reação se dá nas crianças e a mídia não pensa nisso. O importante é a informação,
não se preocupam com a qualidade, muito menos com o efeito que isso pode gerar.
O PCC tem dimensão dessa cobertura e disseminação da mídia?
Ah tem! Exatamente por isso que ele faz o que faz. Porque se ninguém desse voz à eles,
divulgação, não conseguiriam ter interesse. Como você vai ter poder se as pessoas não sabem
que você tem o poder, quem você é?
Como você enxerga as peculiaridades do PCC em comparativo com outras organizações
criminosas?
Na verdade, o PCC é nossa organização celebridade ―tupiniquim‖. Em um país onde acontece
12 milhões de telefonemas para uma emissora, pra votar em quem vai para o paredão, em um
Big Brother qualquer da vida. Em contraponto você não consegue reunir um milhão de
assinaturas para fazer um projeto de lei popular. Isso é perfeitamente incompreensível. No
caso de qualquer uma das várias máfias italianas, várias correntes: ―Cosa Nostra‖, você tem a
máfia russa, japonesa, chinesa, africanas, mexicana que é muito forte, além da boliviana; eles
se preocupam mais com a eficiência do serviço do que a publicidade. Como cidadã, eu não sei
quem é fulaninha de tal. Mas o cara no fim do mundo já fala ―Oh fulano de tal, esse é quem‖,
ou seja, sabe quem é. Eles exercem esse poder, são divulgados e conhecidos na rede do
submundo onde exercem poder. Aqui já é o contrario, é a ―glamourização‖. A pessoa que tem
meio cérebro, mas com um peito de silicone e uma bela bunda, faz mais sucesso do que uma
pessoa que tem doutorado, possui vida acadêmica. Essa ―glamourização‖ do nada: ‖Puxa,
quando eu crescer eu quero ser que nem a fulana do BBB‖, é uma inversão de valores.
Qual sua opinião a respeito da mitificação do Marcola?
É, isso se observou em alguns ponto da historia. Em um exemplo assim, meio que tupiniquim,
mas muito próximo, é o do Pablo Escobar. Ele foi assassinado na década de 70, mas era
considerado uma celebridade. Isso acontece porque as organizações precisam ter um rosto, ter
um chefe, ter um líder. Eles acabam elegendo, como no caso do Marcola, Fernandinho BeiraMar, entre outros, que acabam se tornando referência. Entre aquele grupo que exerce o poder,
ele é o ―capo―. Ele tem o poder de todos, e gosta de mostrar esse poder. Normalmente, eles
até são realmente pessoas de inteligência superior a média. No caso do Marcola, quando
acabou estourando esse fenômeno do PCC, o nome dele surgiu como o líder daquele
movimento. Foi aí que os meios de comunicação colocaram, e deram um empurrãozinho, para
233
ele ser endeusado, mais do que o necessário. Acredito que essa mitificação não dependa só
dele.
Como funciona o sistema de comunicação do PCC?
Eles têm uma rede de comunicação eficiente, codificada e que se utiliza de elementos internos
e externos. É criado um código, por exemplo, a expressão: ―eu vou dar um salve‖. O ―salve‖ é
um código, e não uma expressão comum. Com isso eles vão criando uma linguagem própria,
codificada, e essa comunicação, pelo menos até onde eu sei, é feita boca a boca entre eles e
ela é levada fora dos presídios tanto pelas visitas, quanto pelos advogados. Os advogados
acabam se envolvendo com o crime. Muitos deles são colocados ou formados pelo crime. A
gente observa esse fenômeno também. Eles pegam garotos que parecem ter uma inteligência,
um pouquinho superior aos outros, e falam: ―Olha, você Zezinho, você não vai ser
―aviãozinho‖não, eu vou te botar pra estudar, você vai ser doutor‖. Proporcionam estudo ao
garoto, livros, formam o garoto advogado para trabalhar pro tráfico. Ele se torna advogado do
tráfico. Isso é um fenômeno que acontece mesmo. Eles vão colocando não só advogados, mas
policiais, juízes, membros do ministério publico, por que não? A gente não está imune a esse
tipo de envolvimento com o crime, isso quer dizer, qualquer pessoa. Um simples garoto que
vai lá entregar as quentinhas na hora do almoço, pode ser um disseminador das informações
aqui fora.
A que se deve a esse sucesso da comunicação?
Eu acredito que é porque eles exerçam essa comunicação de uma forma impositiva. Você é
obrigado a ouvir essas informações. Talvez pela própria estrutura emocional, ou da educação
mesmo deles, em todos os sentidos. Não é dado a ninguém o direito de duvidar daquela
informação, discutir aquela informação. A partir do momento em que um chefe diz que hoje é
pra atacar o mercadinho, não tem como você não passar essa informação para outra pessoa,
nem como falar ―Mas espera lá, porque nos vamos atacar? Por que o mercadinho? Por quê?
Não existe um porque, não é dado o direito de perguntar. De fato, é ordem de quem tem o
poder para dar essa ordem, e os outros vão simplesmente disseminando, porque é uma das
obrigações estipuladas.
Você consegue enxergar alguma forma de combater esse tipo de vínculo comunicativo
que existe entre os presos?
234
O celular é um instrumento muito importante. Mas aí você fala ―Vamos bloquear o celular na
cadeia‖. Só que aí ninguém mais fala no celular, nem os funcionários, diretores, advogados,
visitas, enfim, fica todo mundo privado desse meio de comunicação. Aí você fala ―Pô mas
não adianta bloquear, privar o celular, eles vão achar um jeito e modelo que plugue aquele
bloqueador de celular, porque usa uma outra freqüência, a de radio freqüência, ou a tecnologia
do MSN, etc. Eles sempre vão achar um jeito de se comunicar. Vamos cortar a energia
elétrica, porque ai não tem onde recarregar o celular. Poxa, mas viver sem energia elétrica não
dá. O que quero dizer é mesmo que você fizesse tudo isso, ainda se conta com o alto grau de
corrupção dos funcionários dos presídios. Por exemplo, se meu celular não está funcionando,
eu jogo no lixo e falo ―Quero outro‖. Na cadeia é diferente, eles ameaçam, subornam. Eles
tem justamente nessa rede de informações, não só a corrupção, mas a ameaça. Eles falam: ―Oh, você antenou né‖, ―Eu sei do teu filho‖, ―Sua mulher trabalha não sei onde―, ―seu filho
está em tal escola‖. Eles exercem esse tipo de ameaça sobre os funcionários, que ai muitas
vezes, acabam cedendo.
Existe uma consciência moral desses funcionários corruptos?
Eu acho que sim, mas isso acaba ficando como um segundo plano. Porque é aquela mesma
conduta do sujeito que fuma. Ele sabe que aquilo faz mal, mas não pára. Talvez não tenham
idéia da dimensão do quanto o seu comportamento individual é parte do crime. As pessoas
não têm essa distinção das coisas, de como o seu comportamento pessoal, que aparentemente
é insignificante, tem importância nessa organização, ou mesmo para combater esse mal.
Nós poderíamos entender então, que essa maneira de ingerir a instituição, essa filosofia
do medo, que o PCC incorporou como uma própria cultura organizacional, é o motor da
própria organização?
É a filosofia do medo com benefícios. Acho que a principal ferramenta deles é realmente a
cultura do medo. Eles compensam isso, de alguma forma, com benefícios. A partir do
momento que eles obrigam um cidadão a obedecer um toque de recolher, o cidadão se
recolhe, contra vontade, mas ele se recolhe. Ele sabe que não pode botar o narizinho pra fora
do lugar. Mas também sabe que se amanhã, ele precisar ir a algum lugar, ele vai pedir ajuda,
ou se o filho ficar doente no meio da noite, ele vai ligar na casa de um fulano, e o fulano vai
arrumar um carro para levar o menino para o hospital. Se a sua mãe está doente, o fulano vai
arrumar um remédio para sua mãe. O PCC exerce esse papel.
235
Diante disso, como o Estado encara o PCC?
O Estado, às vezes, me parece que não tem tanta noção do tamanho do PCC, porque você não
sabe exatamente quantas pessoas compõe a facção. Nós tivemos notícia, inclusive um dado
até curioso, recentemente, em uma reunião aqui da procuradoria, nós tivemos a noticia que
eles têm por volta de 29000 membros. Você só ingressa digamos, naquela organização,
apresentado por alguém. Muitas vezes, essa pessoa que traz o novo integrante para a
organização, depois de algum tempo, ele acaba cometendo um erro, ou te trai, se vende para
outro lado, vai ser X9, informante da polícia, quem apresentou é que paga o preço pelo erro
do outro. Os chefes da organização têm registrado os membros. Vai aparecer lá: 10 de
novembro de 2008, o fulano apresentou o sicrano. Aí vai chegar em 2010, o sicrano aprontou,
e vão dizer: -―Não, o fulano é responsável, porque ele trouxe‖. Quer dizer, eles acabam agora
controlando os padrinhos. Instituíram oficialmente a quadrilha de padrinhos. Quer dizer, você
não só tem que obedecer, como você tem que cuidar para que as pessoas que você introduzir
na organização obedeça também. Porque senão, quem vai sofrer as conseqüências é você,
também. Você passa a ser co-responsável pelas pessoas que você traz para a organização.
Toda essa estrutura que têm esses detalhes. O Estado demorou pra saber, chegando sempre
atrasado. Quando chega, não chega com os mesmos meios que eles têm. Por exemplo, o
Estado poderia centrar mais esforços, poderia. Daí entra outro elemento: quantas pessoas do
Estado não estão comprometidas com aquela organização? Quantas pessoas do Estado já não
estão indiretamente ligadas a aquilo? E por outro lado, interessa para o Estado político
partidário, ter essas pessoas contra? Isso viraria a máfia napolitana de antigamente, que você
manda matar as pessoas, as autoridades locais: políticos, promotores, juízes, prefeitos etc.
Então quer dizer, é uma solução completa. Acho que o Estado não tem uma vontade política
como deveria, ou às vezes até tem a vontade política, mas não a exerce. Não vejo para que o
Estado possa agir eficientemente contra isso tudo. Não é só o policial que vai lá subir o morro
para trocar tiros, vai prender. Até prender tem a delegacia, mas na delegacia tem o promotor,
o promotor tem o juiz de primeira instância, que pode prender depois chega no supremo
federal tribunal e manda soltar. É toda uma cadeia, e as organizações não governamentais que
acabam permeando esse processo todo, além das questões sociais, de direitos humanos, que
muitas vezes o combate ao crime é feito com uma lesão aos direitos humanos. Eles
aparentemente podem até não parecer humanos, mas eles são humanos. Acontece muitas
vezes a utilização de métodos violentos, métodos que não são os adequados no combate ao
crime, pois naquele momento o policial não tem opção. E os direitos humanos do policial?
236
Essa questão sempre se coloca quando se tem troca de tiros no morro, em favela. Morre
policial de um lado e morre traficante de outro, e não se resolve nada.
Como você vê a morte para uma organização criminosa?
A morte não é problema para uma organização criminosa é apenas um meio. Isso a gente vê
claramente, as pessoas são uma espécie de mercadoria. No caso de um chefe numa boca de
fumo, que está subordinado a uma gerencia de bairro. Se o chefe de bairro tomba, a
organização já sabe no minuto seguinte quem está no lugar dele. Para eles a morte não é
problema, primeiro porque a demanda deles é grande, então a oferta de mão de obra também é
muito grande. Eles têm bastante gente para repor, até contando com isso mesmo, porque as
pessoas que trabalham nas organizações criminosas, só saem da organização no caixão ou
para a cadeia. Quando saem daquela função, passam a exercer outra, sair da organização,
certamente só no caixão. A vida para eles tem muito pouco valor, porque não tem perspectiva.
As pessoas da própria família morrem muito cedo, eles não tem aquela coisa que as pessoas
que tiveram acesso à moradia, de ter a avó com 80 anos, de ter o avô com 90 anos, o pai com
70, 60, enfim, quando isso acontece, é um caso raro. Nota-se que muitos deles são pais muito
cedo, antes dos 20 anos. Acabam sendo pais muito jovens e morrendo muito cedo também.
Para eles a família tem tempo curto de convivência, além de representar uma parte de risco no
negócio. A família sabe disso.
O PCC deu algumas demonstrações também de educar pela morte, porque algumas
mortes são simbólicas, de inimigos, de traidores. Você tem alguma consideração a fazer
à respeito?
Isso vem desde as primeiras guerras. No mundo todo já se fazia isso, aqui mesmo no Brasil,
com o próprio bando do Lampião. Aquela foto eu lembro quando era menina, da cabeça do
lampião e de todo o seu bando colocado numa espécie de escadinha. Eu fiquei muito
impressionada com aquilo, quer dizer, é algo que já se fazia, os bárbaros já faziam isso
também. Se você elimina de uma maneira bárbara, selvagem, tem um plus para mostrar que é
o mais poderoso.
237
ANEXO A
Definições sobre crime organizado
Tomemos algumas definições para exemplificar as diversas definições sobre crime
organizado (MENDRONI, 2007, p. 7-8):
Estado da Califórnia: ―Consiste em duas ou mais pessoas que com continuidade de
propósitos, engajam-se em uma ou mais das seguintes atividades‖ – características: 1.
Provimento de coisas e serviços ilegais, vícios, usura. 2. Crimes predatórios como furtos e
roubos; diversos tipos distintos de atividades criminosas se enquadram na definição de crime
organizado, que podem ser distribuídos em 5 categorias:
1) Extorsões;
2) Operadores de vícios: indivíduos que operam um negócio contínuo de coisas ou serviços
ilegais, como narcóticos, prostituição, usura e jogos de azar;
3) Furtos/roubos/receptações/estelionatos;
4) Gangues: grupos de indivíduos com interesse comum ou, segundo plano, de atuarem juntos
e se engajarem coletivamente em atividades ilegais para fazer crescer a sua identidade grupal
e influência, como gangues de jovens, clubes de motoqueiros foras-da-lei e gangues de
presidiários;
5) Terroristas: grupos de indivíduos que combinam para cometer espetaculares atos criminais,
como assassínios e seqüestros de pessoas públicas, para minar confidências públicas em
governos estáveis por razões políticas ou para se vingar de alguma ofensa.
Criminologistas: ―Crime organizado é qualquer ato cometido por pessoas ocupadas em
estabelecer em divisão de trabalho: uma posição designada por delegação para praticar crimes
que, como divisão de tarefas também inclui, em última análise, uma posição para corruptor,
uma para corrompido e uma para um mandante‖.
FBI – Federal Bureau of Investigation: ―Qualquer grupo tendo algum tipo de estrutura
formalizada, cujo objetivo primário é a obtenção de dinheiro través de atividades ilegais. Tais
238
grupos mantêm suas posições através do uso de violência, corrupção, fraude ou extorsões e,
geralmente, têm significante impacto sobre os locais e regiões do País onde atuam‖.
INTERPOL: ―Qualquer grupo que tenha uma estrutura corporativa, cujo principal objetivo
seja o ganho de dinheiro através de atividades ilegais, sempre substituído pela imposição do
temor e a prática da corrupção‖.
FNSIC – Fundo Nacional Suíço de Investigação Científica: ―Há crime organizado
(transcontinental), quando uma organização, cujo funcionamento se assemelha ao de uma
empresa internacional, pratica uma divisão de tarefas muito rigorosa, dispões de estruturas
hermeticamente separadas, concebidas de forma metódica e durável, e quando procura obter o
máximo de lucros possível, cometendo infrações e participando na economia legal. Para tal, a
organização recorre à violência, à intimidação, e procura influenciar a economia e a política.
Apresenta, geralmente, uma estrutura fortemente hierarquizada e dispõe de mecanismos
eficazes para impor as suas regras internas. Os seus protagonistas são, além do mais,
altamente intercambiáveis‖.
ONU – Organização das Nações Unidas: ―Organização de grupos visando à prática de
atividades econômicas; laços hierárquicos ou relações pessoais que permitem que certos
indivíduos dirijam o grupo, o recurso à violência, à intimidação e à corrupção, e a lavagem de
lucros ilícitos‖,
UE – União Européia: ―Associação estruturada de mais de duas pessoas estabelecida,
durante um período de tempo, e que atue de maneira concertada com o fim de cometer delitos
punidos com pena privativa de liberdade ou medida de segurança de privação de liberdade de
ao menos 4 anos, consistindo esses delitos um fim em si mesmos ou um meio de obter
benefícios patrimoniais e influir de maneira indevida no funcionamento da autoridade
pública‖.
Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado: ―Grupo criminoso organizado
– grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando,
concertadamente, com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na
presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício
econômico ou outro benefício material‖.
Download

Comunicação do Medo: Os Ataques do PCCl