Editoria: Contabilidade e Auditoria
Data: 6/2014
Um novo capítulo de uma das mais relevantes e longevas disputas tributárias travadas entre o Fisco e os grandes contribuintes no
Brasil está a poucos passos de recomeçar. O alvo da contenda é a reformulação do sistema nacional de tributação de lucros no
exterior, trazida na Lei 12.973. Sancionada pela presidente Dilma Rousseff em maio, ela dedica 15 artigos à tributação de lucros
obtidos por multinacionais brasileiras a partir de controladas e coligadas fora do País. Até então, o tema era regulado pela Medida
Provisória (MP) 2.158, de 2001. Reeditada 35 vezes, a norma nunca chegou a ser votada pelo Congresso, mas manteve sua
validade até a edição da MP 627 em novembro, gênese do novo diploma.
A lei visa fechar brechas existentes na MP 2.158, principalmente em relação a abusos de estruturas societárias em paraísos fiscais
e planejamentos tributários concebidos apenas para reduzir impostos. Também pretende dar fim ao gigantesco contencioso gerado
pela norma. Essa MP foi alvo de diversos questionamentos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e na Justiça. De
acordo com ela, os lucros no exterior eram tributados em 34%, assim que fossem apurados. A medida, no entanto, não tratava de
empresas sediadas em países com os quais o Brasil mantém tratados para evitar a bitributação — esses acordos estabelecem, de
modo geral, que o lucro deve ser tributado pela alíquota do local onde foi gerado. Para escapar do Leão, as empresas brasileiras
passaram a montar holdings nos países protegidos por esses acordos, instalando suas coligadas e controladas nos territórios onde
verdadeiramente pretendiam investir. O Fisco, obviamente, reprovou a esperteza das companhias e passou a autuá-las, cobrando
o imposto sobre os lucros obtidos nos países sem tratado. O caso gerou uma bilionária disputa, até hoje não resolvida.
Com a Lei 12.973, o governo mudou as regras. Manteve a alíquota de 34% de imposto, mas definiu que sua incidência será sobre
o acréscimo do valor patrimonial das controladas ou coligadas, no balanço da controladora — que, no artigo 77 da lei, é definido
como a parcela do ajuste do valor do investimento no exterior. As companhias terão de recolher a diferença entre os 34%, e a
alíquota paga fora do País. O recolhimento ocorrerá independente de os lucros serem reinvestidos lá fora ou remetidos de volta
como dividendos aos sócios.
Assim como a MP 2.158, a Lei 12.973 não deve ser aplicada sem conflitos. Advogados, executivos e consultores de multinacionais
brasileiras são uníssonos ao afirmar que o novo sistema será questionado na Justiça. Durante o workshop “A MP 627 e a nova
tributação de lucros no exterior”, promovido pela capital aberto na sede do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS), em 7
de maio, alguns participantes chegaram a cogitar uma possível “fuga de multinacionais brasileiras”. Isso significaria a transferência
da controladora para algum país de sistema mais benéfico e a manutenção apenas de uma controlada no Brasil. “As empresas têm
hoje um incentivo para não serem brasileiras”, observa Romero Tavares, conselheiro do Grupo de Estudos Tributários Aplicados
(Getap). Diferentemente do Brasil que, com a Lei 12.973, prevê uma tributação universal de 34% sobre os lucros obtidos por
controladas e coligadas no exterior, muitas nações, a exemplo de França, Alemanha e Japão, adotam sistemas de incentivo à
internacionalização de suas empresas praticamente isentando os lucros obtidos por elas fora de suas fronteiras.
Assim como a MP 2.158, a Lei 12.973 não deve ser aplicada sem conflitos.
Há quem cogite que a nova lelislação pode acarretar uma fuga de
multinacionais brasileiras. Isso significaria a transferência da controladora
para um país de sistema mais benéfico e a manutenção apenas de uma
controlada no Brasil
Menos competitivas
Críticos afirmam que, ao tratar a exceção — a instalação de empresas no exterior para escapar da Receita Federal — como regra,
o Fisco acabou prejudicando companhias verde-amarelas com investimento produtivo fora e em pleno processo de
internacionalização. “A MP 627 é um movimento de reação à erosão de base fiscal iniciado pela Receita, mas desproporcional”,
pondera Valter Pedrosa, gerente jurídico tributário e de contencioso estratégico da Braskem.
Um exemplo de companhia proibida de se expandir em território nacional por ordem do órgão antitruste é a BRF, sétima maior
empresa de alimentos do mundo e quarta maior exportadora do Brasil, com receita líquida de R$ 30,5 bilhões em 2013. Com 61
unidades industriais, 11 delas no exterior, a BRF, resultante da fusão da Sadia com a Perdigão em 2009, almeja crescer em
mercados ainda pouco explorados pelas companhias brasileiras, como a Ásia e o Oriente Médio. “Estamos indo atrás de nossos
consumidores; não estamos fazendo planejamento fiscal”, ressalta o diretor executivo global de assuntos corporativos da BRF,
Marcos Sawaya Jank.
A BRF está próxima de inaugurar uma fábrica em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, e estuda oportunidades no Kuwait, país que
tributa os lucros a um percentual de 15%. Segundo Jank, ao exigir o recolhimento da diferença entre a alíquota do país e a
brasileira, de 34%, o Fisco diminuiu a competitividade da BRF em relação a seus concorrentes internacionais. Enquanto uma
controlada de origem francesa, por exemplo, recolheria os 15% exigidos pelo Kuwait e nada em seu país de origem, a controlada
brasileira pagaria 15% no país árabe e 19% no Brasil, somando 34%. No contexto da MP 2.158, a BRF poderia instalar uma
holding em um país com o qual o Brasil possui tratado contra a bitributação e, abaixo dela, uma controlada no Kuwait. Assim,
como em qualquer estrutura societária, a consolidação de lucros e prejuízos ocorreria na holding, que recolheria o tributo no local
onde está instalada.
Para abrandar os ânimos, o governo decidiu, durante a tramitação da MP 627 no Congresso Nacional, conceder crédito de 9% —
percentual equivalente à alíquota de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) — a empresas dos setores de alimentos,
bebidas e infraestrutura. Na prática, isso significa que os lucros dessas companhias no exterior estarão tributados a uma alíquota
de 25%. A colher de chá veio do entendimento de que, por precisarem produzir no local de venda, empresas desses segmentos
têm dificuldades de atuar como exportadoras.
O crédito, no entanto, só vale para investimentos produtivos em territórios com tributação acima de 20%. Locais com imposto
inferior a esse são considerados como sujeitos a regime de “subtributação” e, portanto, o benefício não se aplica. Jank, da BRF,
critica a limitação. Ele cita uma pesquisa da KPMG feita em 123 nações, cujo resultado mostra que 56% delas tributam os lucros
com alíquotas menores que 20%.
Preocupação internacional
A definição de uma taxa mínima para que um país seja considerado de tributação favorável é um debate mundial travado no
âmbito do G20 e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). “A crítica é a de que, mesmo com tudo
o que já foi feito, ainda falta coordenação entre as leis dos países”, diz Marcelo Natale, sócio de consultoria tributária da Deloitte e
professor de planejamento tributário. “As leis isoladas dos países não têm sido capazes de estabelecer algo para regular as
distorções. Seria necessário um movimento conjunto”, completa.
Esse movimento ocorre no âmbito do Beps, sigla para Base Erosion and Profit Shifting. Trata-se de um plano de ação da OCDE
que, até 2015, pretende encontrar soluções globais para 15 problemas que levam à erosão da base fiscal dos países, como a
atuação “virtual” de empresas de tecnologia, a existência de paraísos fiscais, operações de empréstimo entre partes relacionadas
que maquiam distribuições de dividendos e falta de transparência.
Para abrandar os ânimos, o governo decidiu, durante a tramitação da MP
627, conceder crédito de 9% — percentual equivalente à alíquota de CSLL
— a empresas dos setores de alimentos, bebidas e infraestrutura. Na prática,
isso significa que os lucros dessas companhias no exterior estarão tributados
a uma alíquota de 25%
A lista de ações do Beps inclui uma uniformização das chamadas regras CFCs (sigla para Controlled Foreign Corporations), que
servem para combater o desvio de lucro de controladoras por meio de controladas. Segundo Joel Myazaki, conselheiro e presidente
da 2a Câmara da Terceira Sessão de Julgamento do Carf, a MP 627 criou o conceito de norma CFC no Brasil, adequando o sistema
de tributação brasileiro às normas da OCDE. Além disso, ela reduz uma distorção de condições entre empresas situadas no Brasil e
no exterior, afirma. Enquanto as brasileiras sempre tinham o lucro tributado em 34%, as estrangeiras dispunham de facilidades
para escapar desse imposto. “O modelo propõe neutralidade fiscal”, esclarece Myazaki, ressaltando que o Brasil está sendo
pioneiro nesse processo. “Não se trata de esperteza do fisco, mas de uma tentativa de adequar o sistema brasileiro às normas da
OCDE”, diz.
A escolha do regime de tributação atual, segundo o fisco, é condizente com o estágio atual de desenvolvimento do Brasil. Por mais
que as companhias defendam que o País adote um sistema semelhante ao de outros países, para garantir que as brasileiras
possam competir em igualdade de condições lá fora — afinal, a sua internacionalização também gera divisas para a nação — a
Receita Federal argumenta que, como um país em desenvolvimento, o Brasil não pode abrir mão dessa receita tributária.
“Precisamos pensar se interessa ao País que o dinheiro seja reaplicado no exterior ou no Brasil”, analisa Joel Myazaki. Ele
concorda, contudo, que a MP terá um efeito ruim sobre algumas companhias, a exemplo da BRF. “A MP não é perfeita, mas é o
que foi possível fazer”, diz.
O possível, contudo, não deve ser suficiente para evitar novos conflitos. “Para as empresas que se sentirem prejudicadas, a
alternativa será partir para o contencioso”, diz Luiz Felipe Centeno Ferraz, sócio de prática tributária do Mattos Filho Advogados.
Um dos assuntos em discussão no Poder Judiciário e que, com a edição da Lei 12.973, deve continuar a gerar embates é a
tributação de empresas já localizadas em países com os quais o Brasil mantém tratados para evitar a bitributação de lucro.
Argumenta-se que o novo sistema burla os tratados. A malícia estaria no fato de a lei não falar em tributação do lucro da
controlada sediada no exterior, mas, sim, em tributação da “parcela do ajuste do valor do investimento” das controladas ou
coligadas instaladas fora, no balanço da controladora brasileira. “Há um cenário de contencioso muito forte a ser iniciado”, avalia
Pedrosa, da Braskem. A briga promete.
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