ORGANIZAÇÃO SETE DE SETEMBRO DE CULTURA E ENSINO LTDA FACULDADE SETE DE SETEMBRO – FASETE CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO ADRIELE GOMES VELOSO ROCHA ANÁLISE DAS INCONSTITUCIONALIDADES DA USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA POR ABANDONO DO LAR CONJUGAL PAULO AFONSO / BA 2013 ADRIELE GOMES VELOSO ROCHA ANÁLISE DAS INCONSTITUCIONALIDADES DA USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA POR ABANDONO DO LAR CONJUGAL Monografia apresentada ao corpo docente do curso de Bacharelado em Direito, da Faculdade Sete de Setembro – FASETE, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Mestrando Amin Seba Taissun. PAULO AFONSO / BA 2013 ADRIELE GOMES VELOSO ROCHA ANÁLISE DAS INCONSTITUCIONALIDADES DA USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA POR ABANDONO DO LAR CONJUGAL Monografia apresentada ao corpo docente do curso de Bacharelado em Direito, da Faculdade Sete de Setembro – FASETE, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Bacharel em Direito. Aprovada por: __________________________________________ Prof. Amin Seba Taissun, Mestrando (Orientador) __________________________________________ Prof João Batista Santos Filho, Especialista. __________________________________________ Profa. Mariana Wanderlei Buarque, Especialista. PAULO AFONSO / BA 2013 Dedico este trabalho a Deus, sem o qual eu nada seria. A Ele seja dado todo o Louvor! Dedico também à minha família pelo amor e apoio incondicionais sempre demonstrados, bem como aos meus amigos e irmãos na fé por terem me compreendido nas horas de ausência e intercedido em meu favor. Em especial, dedico ainda ao meu querido primo demonstração Márcio de fé, Alexandre força, pela coragem sua e perseverança, mesmo em meio às adversidades da vida. AGRADECIMENTOS “Bendize, ó minha alma, ao SENHOR, e tudo o que há em mim bendiga o seu santo nome. Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e não te esqueças de nenhum de seus benefícios”. (Salmo 103:1-2) Eu simplesmente não tenho palavras para agradecer a Deus por tudo que Ele é e tem feito em minha vida. Sem Ele, eu jamais teria conseguido chegar até aqui, por isso, quero lhe render toda honra e todo louvor! Em diversos momentos, a caminhada se tornou extremamente difícil, fazendo com que às vezes eu pensasse que não seria possível chegar até o fim. Entretanto, a cada manhã as misericórdias de Deus se renovavam sobre a minha vida, fazendo renascer a minha fé e as minhas forças. E com a certeza de que Deus estava ao meu lado, eu pude vencer. Agradeço ainda aos meus queridos pais, Domingos e Andralice, por serem verdadeiros presentes de Deus e referencial em minha vida. Sou grata pelo apoio e compreensão sempre demonstrados, pelas lições de fé, perseverança e determinação nas horas difíceis, e também pelo amor incondicional, que os levou a fazer inúmeros sacrifícios durante todos estes anos, muitas vezes renunciando aos seus próprios sonhos para me ajudar a realizar os meus. Agradeço até mesmo pelos momentos de repreensão, pois eles me ajudaram a enxergar os meus erros e a buscar corrigi-los. Se eu pude chegar até aqui, foi por ter a certeza de poder contar com vocês. Amo vocês!!! Jamais poderia deixar de agradecer aos meus irmãos e melhores amigos que alguém poderia ter: Adelmo e André. Muito obrigada por permanecerem sempre perto de mim, ainda que separados fisicamente por milhares de quilômetros, e por estarem sempre dispostos a me ouvir, aconselhar, apoiar e ajudar. Sou fã nº 1 de vocês e peço sempre a Deus que me dê a oportunidade de retribuir tudo aquilo que vocês têm feito por mim. Às minhas cunhadas Ana Paula e Roseanny, agradeço pelo amor, amizade e compreensão, bem como pelas orações e palavras de incentivo. Que Deus continue a abençoá-las e a realizar os sonhos de vocês!! Gostaria de agradecer também a Gilberto Lisboa por ter estado ao meu lado durante a quase totalidade desta graduação e por ter me incentivado, apoiado, compreendido e ajudado. Reconheço que nem sempre foi fácil, mas me sinto extremamente feliz por ter tido a certeza de poder contar com você nas horas boas e nas difíceis também. Agradeço a Deus pela sua vida e peço a Ele que te abençoe a cada dia mais. À minha família, agradeço pelo amor, confiança, orações, pelas palavras carinhosas e pela torcida, ainda que muitas vezes silenciosa, para que tudo desse certo. Agradeço ainda em especial a minha avó Otília (Vó Tila), por ser nossa fã de carteirinha, por sonhar junto conosco, por ter sempre uma palavra de incentivo e por nos oferecer o seu colo nos momentos de desânimo e a sua cama quentinha nas horas em que o cansaço falava mais alto. Agradeço ainda aos meus amigos mais chegados que um irmão Verônica, Tamires, Juliana, Joiliane, Jadson, Elisama, Thalita, Jesanias, Elisabete, Valdinha, Sara, Diego, Jeferson, Lucas, irmã Raimunda, Ana Paula, Kelly, aos meus primos Leila, Clarinha, Adriano, Janaína, e aos companheiros de curso Wagner, Gislene, Ana Paula, Naylla, Gideoni, Tamyres, Ivelton, Milena, Olívia, Bárbara, Denisiane, Lívia, Simone e tantas outras pessoas que me auxiliaram durante a confecção deste trabalho e que souberam compreender a minha ausência nos últimos tempos, orando por mim e pedindo a Deus que renovasse as minhas forças para seguir em frente. Vocês tornaram essa caminhada mais leve e prazerosa. Ao meu amigo Rubelvan, agradeço especialmente pela atenção, pelo carinho e por ter dedicado uma parte do seu tempo para me auxiliar na confecção deste trabalho com suas valiosas dicas. Muito obrigada mesmo! Você é uma benção de Deus em minha vida!! Aos meus companheiros da Justiça Federal e do Ministério Público Federal, quero agradecer pelo profissionalismo, pelo carinho e companheirismo demonstrados durante o meu período de estágio. Com vocês aprendi a ser uma profissional melhor e mais dedicada. Mais do que servidores, vocês se tornaram meus amigos. Agradeço ainda em especial a Janieli, Priscila, Dona Maria, Michele, Valmir, Lucileide, Carlos e Márcia pela torcida sempre fiel e ao meu atual supervisor de estágio Alexandre Brito pela paciência e por ter dedicado parte do seu precioso tempo para me orientar e contribuir de forma extremamente enriquecedora com a presente pesquisa. A vocês o meu muito obrigada! Que Deus continue a abençoálos!! Sou ainda grata a Deus porque mesmo em meio a um ambiente por vezes excessivamente competitivo, tive a oportunidade de conhecer verdadeiros amigos na faculdade, com os quais pude contar nas horas difíceis e celebrar em momentos de vitória. Muito obrigada Alícia, Valdenize, Janiere e Márcio Alexandre por terem permanecido ao meu lado, auxiliado nas atividades acadêmicas e por terem me oferecido uma amizade sincera e dedicada. Passe o tempo que passar, jamais me esquecerei da companhia e compreensão de vocês, das risadas, da correria e das noites em claro preparando os seminários. Mais do que ter adquirido conhecimento, esta graduação se tornou especial para mim por ter conhecido vocês. Peço a Deus que os abençoe sempre e que os capacite cada vez mais para lutar pelos seus sonhos. Vocês são a família que Deus me permitiu escolher. Amo vocês!! Agradeço ainda aos funcionários da FASETE pelo profissionalismo demonstrado e aos Mestres Risete Reis (Mãezete, pessoa superespecial, carismática e altamente comprometida com a docência), Amin, Rafael, Doralúcia, Jadson, José Élio, Fabiene, Pedro Camilo, Eça, Gisele, Rodrigo e todos os demais que nos transmitiram os seus conhecimentos ao longo desta jornada, sendo que alguns destes se tornaram para nós verdadeiros amigos. Agradeço ainda ao meu orientador, o professor mestrando Amin Seba Taissun, por ter me auxiliado na confecção desta pesquisa não apenas com os seus conhecimentos, mas por ter depositado a sua confiança em mim e me encorajado a seguir em frente, mesmo naqueles momentos em que nem eu mesma parecia acreditar que iria dar certo. Foi uma verdadeira honra para mim ter sido a sua orientada. Por isso, desejo que Deus continue a abençoá-lo! Por fim, agradeço a todos aqueles que apesar de não terem sido mencionados anteriormente, direta ou indiretamente contribuíram para que este sonho se tornasse realidade. Esta conquista não é só minha. Sintam-se felizes e realizados juntamente comigo!! "Hoje cabe a mim, cientista do Direito, despojar-me da antiga visão de mundo para dar espaço ao olhar crítico e sistemático que transcende a norma escrita e até mesmo os valores humanos considerados absolutos. Perseguir a Justiça é a missão a que me entrego." (MÁRCIO ALEXANDRE) ROCHA, Adriele Gomes Veloso. ANÁLISE DAS INCONSTITUCIONALIDADES DA USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA POR ABANDONO DO LAR CONJUGAL. 89 pg. Monografia (Bacharelado em Direito). Faculdade Sete de Setembro – FASETE. Paulo Afonso/BA. RESUMO A presente pesquisa visou analisar à luz da Constituição Federal de 1988 a recente modificação legislativa que, por meio da Lei 12.424/2011, inseriu o artigo 1.240-A no Código Civil, instituindo a chamada “usucapião especial urbana por abandono do lar conjugal”. Para tanto, foram utilizados os métodos histórico, dedutivo e comparativo, buscando auxílio na legislação pátria, bem como na doutrina e jurisprudência, a fim de melhor verificar, ainda que de forma breve, o instituto desde a sua origem no direito romano, passando pela análise do seu conceito, requisitos e espécies, dentre outras peculiaridades, até se chegar ao estudo da recente usucapião familiar – como também é conhecida – e, por fim, verificar a ocorrência de afrontas materiais e formais à Constituição presentes em seu texto. Após o estudo, concluiu-se que esta recente e polêmica modalidade acabou por ressuscitar a discussão da culpa pelo fim do relacionamento, à medida em que elencou o abandono do lar como um dos seus requisitos, atribuindo o efeito da perda patrimonial a um ilícito de direito civil. Além disso, por não ter obedecido aos requisitos necessários à conversão em lei da Medida Provisória nº 514/2010, nem ao disposto na Lei Complementar nº 95/98 que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, bem como pela violação ao princípio constitucional da isonomia, padece a referida lei de inconstitucionalidades formais e materiais, e, portanto, após o devido controle de constitucionalidade, deve ser retirada do ordenamento jurídico, a fim de preservar a Supremacia Constitucional. Palavras Chave: artigo 1240-A (CC); usucapião; abandono do lar; propriedade; inconstitucionalidade; ROCHA, Adriele Gomes Veloso. ANÁLISE DAS INCONSTITUCIONALIDADES DA USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA POR ABANDONO DO LAR CONJUGAL. 89 pg. Monografia (Bacharelado em Direito). Faculdade Sete de Setembro – FASETE. Paulo Afonso/BA. ABSTRACT The present research aimed to analyze under the light of the Constitution of 1988 the recent legislative change, that by Law 12.424/2011, has inserted the article 1.240-A of the Civil Code - which has introduced the called "adverse possession by urban abandonment of the marital home." Therefore, it was used historical, deductive and comparative methods, seeking aid from the legislation homeland as well as in doctrine and jurisprudence in order to better check , even briefly, the institute since its origins in Roman law , through analysis of its concept , requirements and species , among other peculiarities , to get to the study of recent usurpation Family (verificar a nomenclatura em inglês) - as it is also known - and, finally , to verify the occurrence of material and formal affronts to the Constitution in its present text. After the study, it was concluded that this recent and controversial modality eventually resurrect the discussion of blame for the end of the relationship , to the extent that the abandonment has listed the home as one of their requirements , giving the effect of a loss of assets of illicit civil law. Also, by not having obeyed requirements for conversion into law of Provisional Measure Nº. 514/2010, nor the provisions of the Supplementary Law Nº. 95/98 which provides for the development, drafting, amendment and consolidation of laws, as determined the sole paragraph of art. 59 of the Federal Constitution, as well as the violation of the constitutional principle of equality, suffers such a law unconstitutional formal and material, and therefore, after due judicial review, should be removed from the legal system in order to preserve the Constitutional Supremacy. Key words: article 1240-A (CC); adverse possession; abandonment of the home; propriety; unconstitutionality SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 12 1 ESCORÇO HISTÓRICO .................................................................................... 14 2 DA USUCAPIÃO ................................................................................................ 18 2.1 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA............................................................. 18 2.2 MODO DE AQUISIÇÃO. ................................................................................. 19 2.3 REQUISITOS .................................................................................................. 24 2.3.1 Requisitos pessoais ...................................................................................... 25 2.3 2 Requisitos reais............................................................................................. 26 2.3 3 Requisitos formais......................................................................................... 29 2.4 ESPÉCIES DE USUCAPIÃO........................................................................... 35 2.4.1 Usucapião extraordinária............................................................................... 35 2.4.2 Usucapião ordinária....................................................................................... 38 2.4.3 Usucapião especial....................................................................................... 40 2.4.3.1. Usucapião especial rural........................................................................... 41 2.4.3.2 Usucapião especial urbana........................................................................ 42 3 USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA POR ABANDONO DO LAR CONJUGAL 51 3.1 REQUISITOS................................................................................................... 54 3.1.1 Imóvel de propriedade comum do casal........................................................ 54 3.1.2 Lapso temporal de dois anos........................................................................ 56 3.1.3. Abandono do lar........................................................................................... 58 4 ANÁLISE DAS INCONSTITUCIONALIDADES DA USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA POR ABANDONO DO LAR CONJUGAL ............................................ 63 4.1 DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ............................................ 66 4.2 DOS ASPECTOS INCONSTITUCIONAIS DA USUCAPIÃO FAMILIAR ......... 71 4.2.1 Da ocorrência de inconstitucionalidade formal ............................................. 71 4.2.1.1 Dos requisitos de relevância e urgência da Medida Provisória nº 514/2010................................................................................................................ 73 4.2.2 Da ocorrência de inconstitucionalidade material........................................... 77 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 83 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 85 12 INTRODUÇÃO Como todas as normas que integram o ordenamento jurídico devem obedecer à supremacia constitucional, esta pesquisa objetivou analisar à luz da Carta Republicana de 1988 a recente modalidade de usucapião especial urbana por abandono do lar conjugal (ou usucapião familiar) instituída por meio da Lei 12.424/2011, que inseriu o art. 1.240-A no Código Civil de 2002. A presente pesquisa se justifica por ser o referido instituto bastante recente e não haver ainda ampla discussão doutrinária a seu respeito, apesar dos diversos reflexos que causará nas relações familiares, jurídicas e patrimoniais. Além disso, o seu texto demonstra sinais de violação à Constituição Federal. Como objetivo geral deste trabalho, está a análise da constitucionalidade do artigo 1.240-A do Código Civil. Para atingir este objetivo, estudou-se o instituto e analisou-se se foram observados os requisitos necessários à conversão em lei da Medida Provisória nº 514/2010, além de buscar entender o porquê de os imóveis rurais não terem sido contemplados quando da edição da norma e por qual motivo a lei teria estabelecido distinção entre o separado de fato e os solteiros e os que ainda vivem na constância da sociedade conjugal, que não podem ser beneficiados pela usucapião familiar, cujo prazo imposto é mais exíguo. Para tanto, foi utilizado o método dedutivo, buscando auxílio na legislação pátria, bem como na doutrina e jurisprudência, a fim de traçar um panorama comparativo dos institutos. No capítulo inicial do trabalho, dedicou-se ao estudo do desenvolvimento histórico da usucapião, desde a sua origem no direito romano até a recente modificação trazida com a inclusão no ordenamento jurídico brasileiro da usucapião especial urbana por abandono do lar conjugal. No segundo capítulo, foi abordado o instituto da usucapião, ainda que de forma breve, de forma a analisar o seu conceito, natureza jurídica, modo de aquisição, requisitos e espécies. 13 No terceiro capítulo, analisou-se especificamente a usucapião familiar em seus aspectos mais relevantes, estudando os seus requisitos e buscando entender o motivo de o instituto ter ingressado no ordenamento jurídico de forma tão prematura e deficiente, o que culminou numa série de equívocos por parte do legislador, como o reingresso da discussão da culpa nas relações familiares após o término do vínculo afetivo. Por fim, no quarto capítulo, discorreu-se brevemente sobre o controle de constitucionalidade aplicado no Brasil, para então ser analisado o texto da usucapião especial urbana por abandono do lar conjugal, com vistas a identificar possíveis afrontas à Constituição Federal de 1988. 14 1. ESCORÇO HISTÓRICO Antes de adentrar no mérito da questão sobre a análise das inconstitucionalidades da usucapião familiar, é de fundamental importância que se analise, ainda que brevemente, o instituto desde a sua gênese. Acerca das raízes históricas da usucapião, por mais que alguns autores acreditem que o instituto surgiu na Grécia, Fabio Caldas de Araújo afirma que “não há dúvida de que o Direito Romano consiste em sua fonte primordial”. (ARAÚJO, 2013, p. 59). Nelson Luiz Pinto, apud Roberta Toledo (2006, p. 144-145), afirma que a usucapião surgiu “no Direito romano, com fito de proteger a posse do adquirente imperfeito, que recebera a coisa sem as solenidades necessárias, de acordo com a legislação vigente àquela época”. Tratava-se, então, de revestir de juridicidade uma situação já existente no mundo fático. A sua origem remonta à época da Lei das XII Tábuas, em que era previsto o lapso temporal de dois anos para a usucapião de bens imóveis e de um ano para os móveis. Segundo Maria Helena Diniz (2010, p. 153), aplicava-se ainda o prazo de um ano às mulheres, “pois o usus também foi uma das formas de matrimônio na antiga Roma”. [Grifos no original]. Os prazos eram extremamente pequenos, pois levavam em consideração a dimensão territorial romana à época. Não eram exigidos outros requisitos para a consolidação da usucapião, com as seguintes exceções: “proibição da prescrição aquisitiva sobre objetos furtados, sendo discutível a existência de boa-fé e causa justa para a consumação da usucapião nesta primeira fase de maturação do instituto”. (ARAÚJO, 2013, p. 60). E o autor observa ainda o seguinte: A posse não poderia ser obtida mediante atos de violência, pois tal fato contrariava a natureza do instituto. A finalidade da usucapio era a de eliminar uma incerteza quanto ao titular do domínio, acarretando a perda da posse do bem para o proprietário inerte. No caso dos 15 bens móveis tal comprovação se faria pela posse de objeto não furtado. (ARAÚJO, 2013, p. 61). [Grifos no original]. Outro fato importante é que os estrangeiros não poderiam ser beneficiados pela usucapião, pois ela tinha como objeto apenas a propriedade quiritária, que só poderia pertencer aos cidadãos romanos. Estes últimos poderiam reivindicar a posse de sua propriedade, caso algum estrangeiro a tivesse em suas mãos. A coisa passível de ser usucapida deveria ter valor econômico. Posteriormente, com a expansão territorial romana, “devido a inúmeras invasões fora da Itália, os terrenos provinciais começaram a ser ocupados, tanto pelo povo do Lácio como por estrangeiros” (TOLEDO, 2006, p. 145). Consequentemente, as relações sociais passaram a se tornar mais complicadas, exigindo que o sistema jurídico se aperfeiçoasse. Surgiu, então, uma nova forma de usucapião, conhecida como longi temporis praescriptio ou longi temporis exceptio. No dizer de Araújo (2013, p. 62), “Trata-se de criação pretoriana (ius honorarium), onde o possuidor de boa-fé, com justo título e que estivesse sobre o imóvel por certo tempo, poderia opor em juízo a exceptio”. Convém ressaltar que a exceptio não era forma de aquisição da propriedade, mas sim uma forma de defesa da posse prolongada contra o proprietário. O prazo também era diferente do previsto para a usucapião: 10 anos entre presentes e 20 entre ausentes. Para utilizá-la, além do prazo, deveria ser demonstrado o preenchimento dos requisitos de justo título e boa-fé. Araújo (2013, p. 64) explica ainda que no período clássico as características da usucapião permaneceram as mesmas, enriquecendo-se no que diz respeito à boa-fé e ao justo título, que passaram a ser requisitos obrigatórios. No período pós-clássico, ocorreram diversas modificações nos institutos da usucapio e da praescriptio. Araújo (2013, p. 67) leciona que numa reforma iniciada pelo Imperador Constantino e terminada por Teodósio, foi extinto o direito de vindicar do proprietário inerte. Apesar de não perder a sua propriedade, ele não poderia reivindicar “caso permanecesse silente por 40 anos – prazo, este, reduzido, posteriormente, para 30 anos”. Era a chamada praescriptio longissimi temporis. 16 Inicialmente, Justiniano fundiu os institutos da usucapio e da praescriptio longi temporis. Em seguida, “determinou que a usucapio apenas persistiria como meio de aquisição da propriedade de bens móveis , com os mesmos requisitos e prazo de 3 anos”.(Araújo, 2013, p. 67-68). A praescriptio, por sua vez, tornou-se modo de aquisição da propriedade para aquele que possuiu o imóvel por trinta anos, ainda que sem justo título, mas com boa-fé. Trata-se, segundo o autor, do surgimento da usucapião extraordinária. Na Idade Média, vigorou o feudalismo, caracterizado pela concentração da propriedade nas mãos dos senhores feudais. Os moradores dos feudos recebiam a detenção precária das terras para cultivá-las, mas em troca deveriam cumprir uma série de obrigações. Nessa época, ensina Araújo (2013, p. 70) que a matéria da prescrição era regulada pelas Ordenações Afonsinas, Filipinas e Manuelinas. Não havia uma distinção entre a prescrição aquisitiva e a extintiva, nem tampouco da usucapião de maneira isolada. No texto das Ordenações Manuelinas, existia uma prescrição ordinária pelo prazo de dez ou vinte anos, desde que preenchidos os requisitos de posse, justo título e boafé. Já a extraordinária não exigia o justo título, mas em compensação se consumava em apenas trinta anos. Havia ainda a prescrição imemorial, que ocorria no prazo de vinte anos entre presentes e quarenta entre os ausentes, sem exigência de boa fé. O autor (2013, p. 72) afirma ainda que em 1534, sob forte influência do Direito Canônico, D. João III proibiu que a prescrição aquisitiva fosse concedida ao possuidor imbuído de má-fé. Dessa forma, foi modificado o texto das Ordenações Filipinas, que passou a “exigir a boa-fé em relação a todas as espécies de prescrição aquisitiva”. O primeiro Código Civil brasileiro (de autoria de Clóvis Beviláqua) só foi aprovado em 1916, após quase cem anos de proclamação da Independência. Com suas disposições, no dizer de Araújo (2013, p. 76), ele aboliu a prescrição imemorial, pondo em seu lugar a extraordinária. Os prazos eram de dez anos para os bens 17 móveis e de trinta para os imóveis. Foram mantidos os prazos da prescrição ordinária de três, dez ou vinte anos (entre presentes e ausentes, respectivamente). Foi com a promulgação da Constituição de 1988 e com a entrada em vigor do Código Civil que foram instituídas novas modalidades de usucapião e encurtados os prazos vigentes até então. Observa-se atualmente a valorização da posse-trabalho e da moradia nos imóveis passíveis de serem usucapidos. Extinguiu-se a distinção entre presentes e ausentes e agora a usucapião extraordinária se consuma em quinze anos, podendo ser reduzido o prazo para dez anos se a posse for qualificada. Na modalidade ordinária, em que é exigida a boa-fé, o prazo inicial é de dez anos, que pode vir a ser de cinco, caso se demonstrem os requisitos de aquisição onerosa do imóvel, registro do título em cartório, posterior cancelamento do registro, estabelecimento da moradia no bem, ou realização de investimentos de interesse social e econômico. Foram criadas ainda as modalidades especial rural e urbana, esta última se dividindo em individual e coletiva, além de ter sido recentemente criada a modalidade de usucapião especial urbana por abandono do lar conjugal, como mais adiante se verá. Tecido este breve panorama histórico, passar-se-á ao estudo da usucapião. 18 2. DA USUCAPIÃO 2.1 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA A usucapião está prevista nos arts. 1.238 a 1.244 do Código Civil pátrio como uma das formas de aquisição da propriedade imóvel, aplicando-se também às coisas móveis nos arts. 1.260 a 1.262. Usucapião vem do termo usucapio, que por sua vez, é resultado da junção dos vocábulos capere (tomar) e usus (uso), significando, então, tomar pelo uso (VENOSA, 2010, p. 207). Com fulcro na histórica definição de Modestino no Digesto, assim Caio Mário da Silva Pereira conceitua o instituto: “Usucapião é a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos definidos em lei”. (PEREIRA, 2010, p. 117). Sílvio de Salvo Venosa denomina usucapião “o modo de aquisição da propriedade mediante a posse suficientemente prolongada sob determinadas condições”. (VENOSA, 2010, p. 207). Maria Helena Diniz, por sua vez, conceitua o instituto como sendo “um modo de aquisição da propriedade e de outros direitos reais (usufruto, uso, habitação, enfiteuse, servidões prediais) pela posse prolongada da coisa com a observância dos requisitos legais”. (DINIZ, 2010, p. 155). Pode também ser conceituado como “uma aquisição de domínio pela posse prolongada”, como o fez Clóvis Beviláqua (BEVILÁQUA, apud DINIZ, 2010, p. 155). No Dicionário Jurídico Acquaviva, encontra-se a seguinte definição: “A usucapião é modo originário de aquisição da propriedade, autorizada pela posse mansa e pacífica de um bem no período fixado por lei”. (ACQUAVIVA, 2009, p. 857). Já para Carlos Roberto Gonçalves, a usucapião é “modo originário de aquisição da propriedade e de outros direitos reais suscetíveis de exercício continuado (entre eles as servidões e o usufruto) pela posse prolongada no tempo, acompanhada de certos requisitos exigidos pela lei”. (GONÇALVES, 2006, p. 124). Grifos no original. 19 Por mais que as definições dadas pelos autores sejam divergentes em um ou outro aspecto, o conceito que se extrai é que a usucapião é uma forma de aquisição originária da propriedade (móvel e imóvel) e de alguns direitos reais em decorrência do exercício da posse mansa, pacífica e sem oposição do bem pelo lapso de tempo e demais requisitos exigidos pela lei. Há dissenso doutrinário do ponto de vista gramatical, uma vez que o vocábulo pode ser utilizado tanto no gênero masculino, quanto no feminino. Venosa o utiliza em sua forma masculina, mas esclarece que aqueles que se referem ao instituto como “a usucapião” levam em conta a origem latina da palavra (VENOSA, 2010, p. 207). O Código Civil de 1916 utilizou o termo no masculino, mas tendo em vista que o de 2002 preferiu optar pelo feminino, esta será a postura adotada no decorrer do presente trabalho. 2.2 MODO DE AQUISIÇÃO É inegável que a usucapião evoluiu muito desde o seu surgimento no cenário jurídico até os dias atuais. Entretanto, até agora os doutrinadores ainda não chegaram a um consenso acerca de ser a usucapião um modo de aquisição originário ou derivado. A maior parte dos doutrinadores, porém, classificam-na como forma originária de aquisição da propriedade. Pontes de Miranda (1983, Tomo XI, p. 106) adverte que os conceitos de originariedade e derivatividade são relativos, dependendo da forma que se observa a aquisição da propriedade, o que, no seu entendimento, pode ser feito tanto do ponto de vista da história da coisa imóvel, como da história do titular da propriedade imóvel: Na história da coisa imóvel, a aquisição da propriedade imóvel é originária se nunca (memorialmente) foi a coisa objeto de tal propriedade: ao adquiri-la alguém, não há lembrança (jurídica) de que outrem tenha sido, em algum tempo, titular de relação jurídica de domínio em que essa coisa fôsse objeto. Se alguém, algum dia, o foi, 20 a aquisição é posterior. Na história dos titulares do direito de propriedade, atende-se ao momento da aquisição, e só a êle: é ao título que se há de chamar de originário, ou derivado. Por isso mesmo, não se indaga se a coisa teve dono, em momento que não foi o imediato anterior ao em que se adquire. Se herdei, adquiri a título derivado: o que era sujeito da relação jurídica de domínio, deixando de o ser, permitiu que eu lhe sucedesse, e o meu título tem autor. [...] Autor neste sentido se diz aquêle de quem o réu recebeu causa, isto é, de que houve a coisa que possui, e em cujos direitos sucedeu, ou por título universal, como o de herdeiro, ou por título particular, como o de donatário, comprador, ou outro semelhante. Se o meu título não tem autor, o meu título é originário. (MIRANDA, 1983, Tomo XI, p. 106). [sic]. Grifos no original. Para ele, dentre as formas de aquisição da propriedade imobiliária, tanto a acessão como a usucapião tratam-se de formas originárias, uma vez que “o que acede objetivamente se integra, sem que se suceda, tal como se usucape sem que se suceda a outrem [...]”. (MIRANDA, 1983, Tomo XI, p. 115). O autor defende o seu posicionamento: Na usucapião, o fato principal é a posse, suficiente para originariamente se adquirir; não, para se adquirir de alguém. É bem possível que o nôvo direito se tenha começado a formar, antes que o velho se extinguisse. Chega momento em que êsse não mais pode subsistir, suplantado por aquêle. Dá-se, então, impossibilidade de coexistência, e não sucessão, ou nascer um do outro. Nenhum ponto entre os dois marca a continuidade. Nenhuma relação, tão-pouco, entre o perdente do direito de propriedade e o usucapiente. [sic]. Grifos no original. O doutrinador De Ruggiero, apud Diniz (2010, p. 156), defende que a usucapião deve situar-se em um plano intermediário entre as aquisições originárias e derivadas. Para ele, “a usucapião não apaga os ônus que podem recair sobre a coisa usucapida”. É certo que na aquisição da propriedade por usucapião não há a transmissão voluntária da propriedade entre o antigo possuidor e o usucapiente. Segundo Diniz (2010, p. 156), “O usucapiente torna-se proprietário não por alienação do proprietário precedente, mas em razão da posse exercida. Uma propriedade desaparece e outra surge, porém isso não significa que a propriedade se transmite”. 21 Ela segue afirmando: A usucapião é um direito novo, autônomo, independente de qualquer ato negocial provindo de um possível proprietário, tanto assim que o transmitente da coisa objeto da usucapião não é o antecessor, o primitivo proprietário, mas a autoridade judiciária que reconhece e declara por sentença a aquisição por usucapião. (2010, p. 156). A esse respeito, tal é o posicionamento adotado por Sílvio de Salvo Venosa: O usucapião deve ser considerado modalidade originária de aquisição, porque o usucapiente constitui direito à parte, independentemente de qualquer relação jurídica com anterior proprietário. Irrelevante ademais houvesse ou não existido anteriormente um proprietário. (VENOSA, 2010, p. 209) Apesar de a maior parte da doutrina defender a usucapião como sendo forma originária de aquisição da propriedade, Caio Mário da Silva Pereira, em sentido contrário, assevera: Considera-se originária a aquisição, quando o indivíduo, num dado momento, torna-se dono de uma coisa que jamais esteve sob o senhorio de outrem. Assim entendendo, não se pode atribuir ao usucapião esta qualificação, porque é modalidade aquisitiva que pressupõe a perda do domínio por outrem, em benefício do usucapiente. Levando, pois, em conta a circunstância de ser a aquisição por usucapião relacionada com outra pessoa que já era proprietária da mesma coisa, e que perde a titularidade da relação jurídica dominial em proveito do adquirente, conclui-se ser ele uma forma de aquisição derivada. Mas não se pode deixar de salientar que lhe falta, sem a menor dúvida, a circunstância da transmissão voluntária, ordinariamente presente na aquisição derivada. (PEREIRA, 2010, p. 118) César Fiuza acredita ser o entendimento esposado por Caio Mário o mais acertado, levando em conta que a divisão entre os modos originários e derivados de aquisição advém do Direito Romano, que possuía um ponto de vista puramente objetivo. O autor assim se manifesta: 22 Não obstante, mesmo se partirmos da premissa moderna de que as relações jurídicas reais se estabelecem não entre titular e coisa, mas entre titular e não-titulares, a conclusão de que o usucapião é modo derivado de aquisição se confirma. Ora, ainda quando o ocupante da coisa a possua à revelia do dono, haverá entre eles relação jurídica. Este como titular, aquele como não-titular. E não é senão por força desta relação, que o dono poderá reivindicar a coisa do possuidor. É por força desta relação que o usucapião se concretiza. Se a coisa não tivesse um dono antigo, não se poderia falar em usucapião. Por outras palavras, se não houvesse relação alguma entre o possuidor (não-titular da propriedade) e o dono (titular da propriedade), não haveria qualquer usucapião. Assim, se a aquisição por usucapião pressupõe relação jurídica preexistente, será forma derivada, e não originária. (FIUZA, 2012, p. 876). Convém ressaltar que a questão quanto ao modo de aquisição por usucapião ser originário ou derivado não se trata de mera discussão doutrinária em busca de qual seria a melhor classificação, mas sim de uma preocupação altamente relevante, uma vez que a opção entre um ou outro posicionamento pode resultar em importantes consequências práticas quanto às características originais da propriedade que serão transmitidas ou não ao futuro proprietário. A esse respeito, Pontes de Miranda (1983, Tomo XI, p. 106) afirma que na aquisição originária, o domínio é adquirido tal como o adquirente o atrai, e não “tal como a vontade do adquirente o criou”, ou “tal como a vontade do adquirente a constitui”, como, segundo ele, afirmaram Lafaiete Rodrigues Pereira, Lacerda de Almeida e C. Mayns. Se, no entanto, a aquisição for derivada, a propriedade será transferida da mesma forma como se achava com o sucedido ou transferente. Isto porque “a tradição não deve nem pode transferir mais ao que recebe do que há no que transmite”. No dizer de Carlos Roberto Gonçalves: Se o modo é originário, a propriedade passa ao patrimônio do adquirente escoimada de quaisquer limitações ou vícios que porventura a maculavam. Se é derivado, a transmissão é feita com os mesmos atributos e eventuais limitações que anteriormente recaíam sobre a propriedade, porque ninguém pode transferir mais direitos do que tem. (GONÇALVES, 2006, p. 122-123) 23 Por isso, além de defender ser a usucapião uma forma originária de aquisição da propriedade, assim se posiciona o doutrinador Fabio Caldas de Araújo: Infundado o argumento que pretende visualizar nessa nova relação jurídica qualquer transmissão de direitos. A maior prova da inexistência de nexo causal junto à pretensa transmissão de direitos está no efeito liberatório da usucapião (usucapio libertatis). Em termos práticos esta conclusão é importantíssima, pois com o nascimento do direito de propriedade para o possuidor prescribente desaparece todo o histórico da matrícula, pela constituição de uma nova. Os eventuais gravames e direitos reais menores inscritos, como o usufruto ou direito de superfície, desaparecem pela aquisição ex novo. A conclusão oposta é infundada e não encontra respaldo sequer na natureza jurídica da ação de usucapião, que é declaratória. Se a usucapião revelasse modo derivado de transmissão do domínio, obviamente transferiria todos os direitos ligados ao ato de possessão. Assim, ocorreria verdadeira subrogação, onde todos os gravames seriam transmitidos ao novo proprietário. Esta posição não se coaduna com a melhor doutrina, e hoje está superada pelo posicionamento histórico do STF quanto à matéria. É evidente que o novo proprietário não assume os encargos que porventura recaíam sobre o imóvel. (CALDAS, 2013, P. 104105). Grifos no original. Além disso, outro tema bastante relevante diz respeito à incidência ou não do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), uma vez que se a usucapião for considerada forma de aquisição derivada, dará ensejo à cobrança do tributo, pois terá havido transmissão de propriedade. Do contrário, encarando-se como modo originário de aquisição, não haverá que se falar em transmissão de propriedade, e muito menos em incidência do ITBI. Para melhor esclarecimento, convém colacionar o seguinte aresto, tido por Fabio Caldas de Araújo como o posicionamento histórico do Supremo Tribunal Federal: Tributário – Imposto de Transmissão. A ocupação qualificada e continuada, que gera o usucapião, não importa em transmissão de propriedade, pois dele decorre modo originário de adquirir. A aquisição decorre do fato da posse, sem vinculação com o anterior proprietário – Imposto de transmissão indevido, em decorrência do usucapião” (STF, 2ª Turma, RE 103.434, Rel. Min. Aldir Passarinho, 24 j. 24.10.1985, DJU 14.2.1986, p. 1.209, Ement. VOL.01407-02 PP00216). Assim, diante dos conceitos explicitados, percebe-se que inobstante o imóvel usucapido tenha anteriormente pertencido a alguém, tendo em vista que este último não transmitiu voluntariamente a propriedade, não há que se falar em qualquer relação entre o antigo e o atual proprietário, pelo que a aquisição do domínio ocorre de forma originária. Consequentemente, todos os vícios que outrora viessem a existir sobre o imóvel não mais serão levados em conta, bem como não haverá incidência de ITBI, já que não houve transmissão da propriedade de um titular a outro. Todavia, para que isso ocorra, deve a usucapião preencher alguns requisitos mínimos, os quais passarão a ser analisados. 2.3 REQUISITOS Para que ocorra a usucapião, é necessário o concurso de requisitos pessoais, reais e formais. Em relação aos requisitos pessoais, Diniz (2010, p.158) afirma que “consistem nas exigências em relação ao possuidor que pretende adquirir o bem e ao proprietário que, consequentemente, o perde”. Os requisitos reais, como o próprio nome sugere, estão relacionados aos bens e direitos que podem ser usucapidos. Os formais, por sua vez, são os elementos que caracterizam a usucapião e podem tanto ser comuns a todas as espécies (posse, tempo e sentença judicial), como especiais (justo título e boa fé). As situações aptas a suspender, impedir ou interromper o prazo prescricional estão previstas nos arts. 197 a 204 do Código Civil, assim elencados por Diniz (2010, p. 158): a) entre cônjuges na constância da sociedade conjugal; b) entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar; 25 c) entre tutelados e curatelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela ou curatela; d) em favor do credor solidário nos casos dos arts. 201 e 204, § 1º, do Código Civil, ou do herdeiro do devedor solidário, na hipótese do art. 204, § 2º, também do Código Civil. e) contra os absolutamente incapazes de que trata o art. 3º (do Código Civil: menores de dezesseis anos; os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática destes atos; os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade); f) contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados e dos Municípios; g) contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra; h) pendendo condição suspensiva; i) não estando vencido o prazo; j) pendendo ação de evicção; k) antes da sentença que julgará fato que deva ser apurado em juízo criminal; l) havendo despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação feita ao devedor; m) havendo protesto, inclusive cambial; n) se houver apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores; o) se houver ato judicial que constitua em mora o devedor; p) havendo qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do direito do devedor, alcançando, inclusive, o fiador (CC, art. 204,§ 3º). [Grifos acrescidos]. Além dos requisitos acima, são exigidos outros, de natureza pessoal, real e formal. Passa-se agora a uma breve análise de cada um deles. 2.3.1 Requisitos Pessoais Como visto alhures, a usucapião também é conhecida como prescrição aquisitiva. Assim, de acordo com o entendimento esposado pelo art. 1.244 do Código Civil, 26 aplica-se à usucapião o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição. A lei elegeu algumas situações específicas para lhes atribuir o poder de impedir, suspender ou interromper o curso da prescrição, seja por conta das pessoas envolvidas (como, por exemplo, no caso de cônjuges na constância da sociedade conjugal, ascendentes e descendentes durante o poder familiar, absolutamente incapazes) ou por considerarem a especificidade de alguns casos (como na pendência de condição suspensiva ou de ação de evicção, por exemplo). Nestas hipóteses, Diniz acentua: [...] não obstante tratar-se de imóvel suscetível de ser usucapido, devido a situação especial existente, seja em face da pessoa do possuidor, como no caso dos incapazes, por exemplo, seja ante a especial relação que há entre o possuidor e o titular da propriedade (p. ex., entre marido e mulher, entre ascendente e descendente), a lei considera obstado o nascimento da usucapião e, se a posse já se iniciou, sua marcha se interrompe enquanto durar a causa obstativa. (DINIZ, 2010, p. 159). Diniz (2010, p. 158) esclarece ainda que “Há proprietários que não podem perder a propriedade por usucapião, como ocorre com as pessoas jurídicas de direito público, cujos bens são imprescritíveis”. O adquirente da usucapião deve estar civilmente apto para adquirir o domínio dessa forma. Já em relação ao sujeito passivo na ação de usucapião, não há exigência quanto à sua capacidade, bastando tão somente que seja proprietário do imóvel. Isso porque caberá ao seu representante legal tomar as medidas necessárias para evitar que contra o representado corram os efeitos da usucapião em favor de uma terceira pessoa. Há ainda outros requisitos, a exemplo dos reais, que passam a ser vistos agora. 2.3.2 Requisitos Reais 27 Os requisitos reais dizem respeito às coisas e direitos que podem ser usucapidos, já que nem todos eles podem ser objeto da prescrição aquisitiva. Assim, não estão sujeitos à aquisição por usucapião os bens que por sua própria natureza estão fora do comércio, já que são insuscetíveis de apropriação pelo homem, como o ar, a luz solar etc. A esse respeito, tal é o entendimento de Carlos Roberto Gonçalves: Consideram-se fora do comércio os bens naturalmente indisponíveis (insuscetíveis de apropriação pelo homem, como o ar atmosférico, a água do mar), os legalmente indisponíveis (bens de uso comum, de uso especial e de incapazes, os direitos da personalidade e os órgãos do corpo humano) e os indisponíveis pela vontade humana (deixados em testamento ou doados, com cláusula de inalienabilidade). São assim, insuscetíveis de apropriação pelo homem os bens que se acham em abundância no universo e escapam de seu poder físico, como a luz, o ar atmosférico, o mar alto etc. Bens legalmente inalienáveis são os que, por lei, não podem ser transferidos a outrem, não se incluindo nesse conceito os que se tornaram inalienáveis pela vontade do testador ou doador. A inalienabilidade decorrente de ato jurídico não tem força de subtrair o bem gravado da prescrição aquisitiva, não o colocando fora do comércio. (GONÇALVES, 2006, P. 128). Grifos no original. Maria Helena Diniz elenca, ainda, como insuscetíveis de serem usucapidos, “os bens que, por razões subjetivas, apesar de se encontrarem in commercio, dele são excluídos, necessitando que o portador invertesse o seu título possessório”. (DINIZ, 2010, p. 159). Grifos no original. É, segundo ela, o que ocorre, por exemplo: [...] no caso do condômino em face dos demais comunheiros, se estiver de posse de uma área de terra excedente à correspondente ao seu quinhão ou à sua quota. Entendem a doutrina e a jurisprudência que é impossível a aquisição por usucapião contra os outros condôminos, enquanto subsistir o estado de indivisão, pois não pode haver usucapião de área incerta. Para que se torne possível a um condômino usucapir contra os demais, necessário seria de sua parte um comportamento de proprietário exclusivo, ou a inversão de sua posse, abrangendo o todo e não apenas uma parte, ou seja, o condômino para pretender usucapião deverá ter sobre o 28 todo posse exclusiva, cessando o estado de comunhão. (DINIZ, 2010, P. 159-161). Acerca da usucapião das terras devolutas, assim se manifesta Roberta Cristina Paganini Toledo: ... há quem sustente que no nosso ordenamento jurídico há a usucapião de terras devolutas, ante o disposto no art. 188, da Constituição Federal, que prescreve que a destinação das terras devolutas deve compatibilizar-se com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária, uma vez que aquelas terras constituem bens patrimoniais estatais afetados por uma destinação social sui generis. Logo, para esses juristas, possível será ao particular usucapi-las, para atender ao interesse social de continuidade da exploração econômica da terra. (TOLEDO, 2006, p. 161) Entretanto, por determinação legal, os bens públicos também não podem ser usucapidos. O art. 2º do Decreto n. 22.785/33 dispunha que “Os bens públicos, seja qual for a sua natureza, não são sujeitos a prescrição”. Essa orientação foi seguida pelo Decreto-Lei n. 9.760/1946, que dispunha em seu artigo 200: “Os bens imóveis da União, seja qual for a sua natureza, não são sujeitos a usucapião”. Posteriormente, a Suprema Corte pacificou o entendimento neste sentido, como se vê da Súmula 340: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”. Ressalte-se que o Código Civil aqui referenciado é o de 1916. Atualmente, a usucapião é vedada tanto constitucionalmente, como por meio do Código Civil (arts. 183, § 3º, CR/88 e 102, Código Civil), verbis: CR/88, Art. 183 – Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (omissis) 29 § 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. [Grifou-se] Código Civil, art. 102 - Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião. Dessa forma, afirma Fabio Caldas de Araújo (2013, p. 215) que “a usucapião sobre terra devoluta é pedido juridicamente impossível, devendo o magistrado julgar inepta a petição inicial que contiver tal pretensão”. Quanto aos direitos, esclarece Diniz (2010, p. 161) que “somente os reais que recaírem sobre bens prescritíveis podem ser adquiridos por usucapião”. Dentre eles, estão a propriedade, as servidões, a enfiteuse, o usufruto, o uso e a habitação. Afirma a autora que a exceção são as servidões não aparentes, que, pelos arts. 1.378 e 1.379 do Código Civil, só podem ser estabelecidas por meio de registro no Cartório de Registro de Imóveis. Superada a análise dos requisitos reais, passa-se, por fim, ao breve estudo dos requisitos formais. 2.3.3 Requisitos Formais Os requisitos formais, por fim, compreendem tanto os elementos comuns e necessários do instituto (posse, decurso do tempo e sentença judicial), como os especiais (justo título e boa fé). Até mesmo por razões lógicas, não há que se falar em usucapião sem posse, uma vez que o instituto é a aquisição do domínio pela posse prolongada, ou, como preferiu dizer Roberto Senise Lisboa, apud Roberta Toledo (2006, p. 162): “não há usucapião sem posse, que é detenção física de uma coisa corpórea durante determinado período de tempo, com ânimo de tê-la para si, como se proprietário fosse”. 30 Em torno da posse, há duas consagradas teorias: objetiva e subjetiva. Em sua formulação, ambas levam em consideração os conceitos de animus e corpus. Corpus, segundo Venosa (2011, p. 1183), “é a relação material do homem com a coisa, ou a exterioridade da propriedade. [...] Nessa ligação material, sobreleva-se a função econômica da coisa para servir à pessoa”. O animus, por sua vez, “é o elemento subjetivo, a intenção de proceder com a coisa, como faz normalmente o proprietário”. A teoria subjetiva foi desenvolvida por Savigny e pressupõe a existência do corpus e do animus para poder ser caracterizada a posse. Para ele, (2011, p. 1183), leciona Venosa, “é o elemento físico, sem o qual não existe posse. Em sua forma mais típica, compreende a possibilidade de ter contato direto e físico com a coisa”. Não basta, entretanto, apenas o corpus. É necessária a presença do animus, o elemento subjetivo que caracteriza a intenção de possuir a coisa. Acerca dessa teoria, assim se manifesta Venosa (2011, p. 1183): “[...] é o animus que distingue o possuidor do simples detentor. O elemento exterior, o corpus, não permite essa distinção, pois aos olhos de terceiros tanto o possuidor como o detentor, têm relação aparentemente idêntica com a coisa”. Esta teoria apresenta falhas, pois não consegue explicar as posses anômalas, como a do credor pignoratício e do usufrutuário e do enfiteuta, por exemplo. Criticando o subjetivismo de Savigny, surge a teoria objetiva de Ihering, que no dizer de Diniz (2011, p. 319), “propugna que para constituir a posse basta o corpus, dispensando assim o animus [...] o que importa é o uso econômico ou destinação socioeconômica do bem”. Assim, para a definição objetiva, continua a autora, “a posse é a exteriorização ou visibilidade da propriedade, ou seja, a relação exterior intencional, existente normalmente entre o proprietário e sua coisa”. Convém ressaltar que o Código Civil de 2002, adotou a teoria objetiva da posse, como se vê em seu art. 1.196 (Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade). Vistas as duas correntes de pensamento sobre a posse, é necessário perceber que não é qualquer espécie de posse que pode conduzir à usucapião. “A posse ad usucapioenem deverá ser exercida, com animus domini, mansa e pacificamente, 31 contínua e publicamente, durante o lapso prescricional estabelecido em lei”. (DINIZ, 2010, p. 162). Grifos no original. A respeito da possessio ad usucapionem, assim se manifesta Fabio Caldas de Araújo: Ela se diferencia claramente da posse que permite a defesa pelos interditos possessórios (possessio ad interdicta). O possuidor injusto poderá pleitear a defesa possessória contra alguém que esbulhe ou turbe a área que invadiu, mas não terá direito a formar prazo hábil para a usucapião, pelo menos até a cessação do vício que macula a sua posse. [...] O elemento diferenciador para configurar a possessio ad usucapionem será a causa possessionis, uma vez que a mesma externará a qualidade da posse exercida, pouco importando o elemento volitivo, que diz respeito ao foro interno do sujeito. [...] Em suma, será a causa possessionis que determinará a que título o sujeito detém o bem, e não a vontade, a qual é imprestável para a averiguação do animus domini no caso concreto. (ARAÚJO, 2013, p. 180-181). Grifos no original. Como visto, animus domini ou animus rem sibi habendi é a intenção de dono. Exigem os arts. 1.238 a 1.242 do Código Civil que o usucapiente possua o imóvel como se fosse seu. É por esta razão que, no dizer de Gonçalves (2006, p. 129), “Não tem ânimo de dono o locatário, o comodatário e todos aqueles que exercem posse direta sobre a coisa, sabendo que não lhe pertence e com reconhecimento do direito dominial de outrem, obrigando-se a devolvê-la”. Para Maria Helena, o animus domini é um “requisito psíquico, que se integra à posse, para afastar a possibilidade de usucapião dos fâmulos da posse”. (DINIZ, 2010, p. 162). Fâmulo da posse, segundo a autora, é [...] aquele que, em virtude de sua situação de dependência econômica ou de um vínculo de subordinação em relação a uma outra pessoa (possuidor direto ou indireto), exerce sobre o bem, não uma posse própria, mas a posse desta última e em nome desta, em obediência a uma ordem ou instrução. Aquele que assim se comportar em relação à coisa e à outra pessoa, presumir-se-á detentor, até prova em contrário (CC, art.1.198, parágrafo único). 32 Tem apenas posse natural, que se baseia na mera detenção, não lhe assistindo o direito de invocar a proteção possessória. É o que ocorre com empregados, caseiros, administradores etc., que por presunção juris tantum, são considerados detentores de bens sobre os quais não exercem posse própria. (DINIZ, 2011, P. 319-320). Grifos no original. Da mesma forma, não induzem a usucapião, segundo o art. 1.208 do Código Civil, os atos de mera permissão ou tolerância. Como visto anteriormente, a teoria adotada pelo Código Civil foi a objetiva. Entretanto, percebe-se que no tocante aos requisitos formais da usucapião, foi exigida a posse com animus domini (elemento característico do modo de pensar subjetivista), o qual se verifica a partir do momento em que a usucapião necessita ser declarada mediante provocação do interessado, não se admitindo a aquisição ad usucapionem ex officio. Teria, porventura, o legislador excepcionado o objetivismo de Ihering, ou apenas trazido o animus como um elemento facilitador, mas não determinante da prescrição? Determina ainda o legislador que além de ser exercida com animus domini, a posse que dará ensejo à usucapião deve ser justa, que de acordo com o art. 1.200 do Código Civil, é aquela “[...] que não for violenta, clandestina ou precária”. Para Diniz (2010, p. 163), “se a situação de fato for adquirida por meio de atos violentos ou clandestinos ela não induzirá posse enquanto não cessar a violência ou clandestinidade, e se for adquirida a título precário, tal situação não se convalescerá jamais”. Araújo esclarece ainda: A posse viciosa não se confunde com a posse de má-fé. O possuidor ad usucapionem pode estar de má-fé, porque tem conhecimento de que a área não lhe pertence, mas a inércia do proprietário acaba por permitir que a usucapião se consume. Ele pode ter ocupado a área de forma pacífica, pública e sem qualquer abuso de confiança, por inexistir relação jurídica prévia com as partes. (ARAÚJO, 2013, p. 182). 33 Outra exigência é que a posse seja mansa e pacífica, ou seja, exercida sem oposição, e não pode se fundar em atos violentos, como agressão física ou moral, nem tampouco, perturbar a paz social. No dizer de Araújo (2013, p. 186), “A violência é vício passível de convalidação; portanto, um vício relativo”. Diniz (2010, p. 162) afirma que “Se a posse for perturbada pelo proprietário, que se mantém solerte na defesa do seu domínio, falta um requisito para a usucapião”. Segundo ela, será necessário um comportamento ativo por parte do possuidor, aliado à passividade do proprietário. Acerca do proprietário, bem complementa Carlos Roberto Gonçalves: Todavia, se este tomou alguma providência na área judicial, visando a quebrar a continuidade da posse, descaracterizada fica a ad usucapionem. Providências extrajudiciais não significam, verdadeiramente, oposição. Se o possuidor defendeu a sua posse em juízo contra invectivas de terceiros e evidenciou o seu ânimo de dono, não se pode falar em oposição capaz de retirar da posse a sua característica de mansa e pacífica. (GONÇALVES, 2006, p. 130). Grifos no original. Deve ainda a posse ad usucapionem, além de pública, ser contínua, ou seja, sem intervalos nem interrupções, para que se atinja o tempo necessário para a aquisição por usucapião. Araújo (2013, p. 187) defende a seguinte ideia: ... a posse pode ser contínua sem ser constante, não sendo necessário que o possuidor esteja em contato físico com a res. Basta que o possuidor exerça os atos de disposição e gozo sobre o bem, de forma regular, como se proprietário fosse. Deste modo, a continuidade não é absoluta, pois admite, conforme já exposto, que a posse seja exercida com a prática de atos materiais em intervalos, desde que regulares. Importante salientar que apesar de a lei exigir a continuidade da posse, permite a acessão da posse, mediante o disposto no art.1.243 do Código Civil: “O possuidor 34 pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé”. Caio Mário (2010, p. 120) esclarece que “... a posse do antecessor não acede à do usucapiente se era de má-fé; nem ocorre a accessio temporis se o atual possuidor não é sucessor do antigo”. Para que a usucapião se consume, deve ser obedecido ao lapso temporal estabelecido pela lei, que irá variar conforme a modalidade de usucapião. Para Caio Mário (2010, p. 120), a questão em torno do tempo necessário para usucapir “É um problema de política legislativa, que se resolve diferentemente nos diversos sistemas jurídicos, e até mesmo num mesmo sistema jurídico varia com o tempo”. Gonçalves (2006, p. 131) esclarece que se contam os anos pelos dias, e não pelas horas, excluindo-se o primeiro dia e incluindo o último. Convém lembrar que conforme o art. 1.210 do Código Civil, o possuidor poderá lançar mão dos interditos possessórios contra os indivíduos que desejarem turbar ou perturbar a sua posse, ainda que não tenha transcorrido o tempo necessário para usucapir o imóvel. Uma vez transcorrido o lapso temporal necessário e adquirido o domínio do bem pela usucapião, determina ainda o art. 1.241: “Poderá o possuidor requerer ao juiz seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade imóvel”. Tal declaração, de acordo com o parágrafo único do artigo, constituirá título hábil para o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Diniz (2010, p. 164) afirma que a sentença e o registro a que fazem alusão o art. 1.241 e seu parágrafo único, respectivamente: ... não têm valor constitutivo e sim meramente probante, como um elemento indispensável para introduzir o imóvel usucapido no registro imobiliário, para que ele possa daí por diante, com esta forma originária, seguir o curso normal de todos os bens imóveis, quer em sua utilização, quer na criação de seus direitos reais de fruição ou de disposição, antes do que não seria possível criá-los. 35 Em sentido contrário, Silvio Rodrigues, apud Diniz (2010, p. 164), ”entende que essa sentença tem caráter constitutivo, porque antes dela o possuidor reúne em mãos todos os requisitos para adquirir o domínio, mas, até que a sentença proclame tal aquisição, o usucapiente tem apenas expectativa de direito”. Além dos requisitos básicos (posse, tempo e sentença), a modalidade ordinária exige ainda a presença do justo título – que no dizer de Gonçalves (2006, p. 23), é aquele “que seria hábil para transmitir o domínio e a posse se não contivesse nenhum vício impeditivo dessa transmissão. Por exemplo, uma escritura de compra e venda, devidamente registrada, é um título hábil para a transmissão de imóvel” – e da boa fé, que segundo Fiuza (2012, p.869), “é a crença do possuidor de que legitimamente lhe pertence a coisa de que tem posse. Essa crença é sempre resultado de erro de fato. O erro que procede da ignorância do vício ou do obstáculo que impede a transferência do domínio”. Superada a análise destes requisitos, ressalta-se que a usucapião especial também exigirá alguns requisitos especiais, os quais serão analisados adequadamente no próximo tópico, juntamente com as demais modalidades. 2.4. ESPÉCIES DE USUCAPIÃO Em breves linhas, buscar-se-á uma visão panorâmica dos conceitos e dos principais aspectos das espécies de usucapião adotadas pelo direito brasileiro, excetuando-se a usucapião indígena, uma vez que foge ao objeto desta pesquisa, além ser tratada em legislação específica (Lei 6.001/1973, também conhecida como Estatuto do Índio). A modalidade especial familiar será tratada neste capítulo de modo bastante superficial, considerando que posteriormente ela será alvo de uma discussão mais aprofundada no corpo central deste trabalho. 2.4.1 Usucapião Extraordinária 36 Para César Fiuza (2012, p. 870), esta modalidade descende da praescriptio longissimi temporis, e Gonçalves (2006, p. 125) afirma que ela tem como precedentes históricos não só a praescriptio longissimi temporis (que, segundo ele, já chegou a ser de 40 anos), mas também a praescriptio longi temporis e a prescrição imemorial (posse de cujo começo não houvesse memória entre os vivos). O prazo previsto pelo Código Civil de 1916 para a usucapião extraordinária era de 30 anos, sendo posteriormente reduzido para 20 anos por intermédio da Lei n. 2.437, de 07 de março de 1995. A redação do art. 550 era a seguinte: Aquele que por 30 (trinta) anos, sem interrupção nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente de título e boa-fé, que, em tal caso, se presumem, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual lhe servirá de título para a transcrição no registro de imóveis. Os requisitos, então, eram os seguintes: posse de 30 anos (que depois passou a ser de 20) em imóvel suscetível de ser usucapido, e o lapso temporal exigido pela lei, não sendo necessários o justo título e a boa-fé, que eram tidos como presumidos. Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o tema passou a ser tratado no art. 1.238, que assim estabelece: Art. 1.238 - Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Fiuza (2012, p. 870) afirma que, diferentemente do Direito Justinianeu, a legislação pátria não elencou a boa-fé como um dos requisitos para esta modalidade de 37 usucapião. Assim, segundo ele, “até mesmo o posseiro, imbuído de má-fé desde o início, terá direito a requerer o usucapião extraordinário”. Importante ressaltar que além de ter reduzido o lapso temporal para 15 anos, o atual dispositivo trouxe em seu parágrafo único a possibilidade de redução do prazo para 10 anos, desde que o possuidor nele tenha estabelecido a sua moradia, ou realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Trata-se, segundo Diniz (2010, p. 166), da “usucapião extraordinária abreviada”. A respeito dessas alterações ocorridas na usucapião extraordinária, assim se posiciona Fábio Caldas de Araújo: A leitura do art. 1.238 deixa claro que a maior inovação deste dispositivo em relação ao art. 550 do antigo CC concentra-se na diminuição do lapso temporal para a configuração da prescrição aquisitiva bem como na inserção de um parágrafo único que introduz o conceito de posse-trabalho como fator de otimização do prazo para a usucapião extraordinária. Ressalte-se, ainda, a correção gramatical do texto anterior. Eliminou-se a expressão “se presume”, o que consistia em uma incoerência, uma vez que a configuração da usucapião extraordinária independe de qualquer averiguação quanto ao título ou à boa-fé. A palavra “transcrição” também foi substituída por “registro” e, além disso, modificou-se a denominação de “Registro de Imóveis” para “Cartório de Registro de Imóveis”, o que acompanha a disciplina estabelecida pela Lei 6.015/1973. (ARAÚJO, 2013, p. 303-304). No caso da usucapião extraordinária abreviada, esclarece ainda Caio Mário da Silva Pereira: Não é imprescindível que o usucapiente exerça por si mesmo e por todo o tempo de sua duração os atos possessórios, tais como cultivo do terreno, presença do imóvel, conservação da coisa, pagamento de tributos, manutenção de tapumes, defesa contra vias de fato de terceiros, e outros. Consideram-se úteis e igualmente legítimos os atos praticados por intermédio de prepostos, agregados ou empregados. (PEREIRA, 2010, p. 123). Assim, essa modalidade de usucapião exige como requisitos dois elementos fundamentais: posse ad usucapionem e lapso temporal de quinze ou dez anos, no 38 caso do parágrafo único. Segundo Fiuza (2012, p. 870), “Não se exige a convicção de dono, mas apenas a vontade de dono. Em outras palavras, o possuidor não tem que estar intimamente convencido de ser o dono. Basta que possua em nome próprio”. Para que seja encurtado o prazo, além dos requisitos básicos, o legislador exige ainda que seja comprovada a “ocupação qualificada pelo trabalho sobre o imóvel. Esta ocupação deve estar direcionada para moradia ou produção econômica para o sustento do usucapiente”. (ARAÚJO, 2013, p. 309). No dizer de Toledo: Verifica-se aqui a valorização do trabalho humano, o princípio da socialidade, quando aquele que por 10 (dez) anos possui um imóvel, como seu, praticando todos os atos necessários a sua devida manutenção, não pode ser compelido a deixá-lo para quem o abandonou sem atenção à função social da propriedade. (TOLEDO, 2006, p. 169). Na prática, não será, portanto, necessário investigar a boa-fé do possuidor. Segundo Venosa, “Em ambas as situações preponderará o aspecto objetivo do fato da posse, o corpus, ficando o aspecto subjetivo transladado da boa-fé para exclusivamente a análise da posse ad usucapionem”. (VENOSA, 2010, p. 213-214). Grifos no original. Toledo acrescenta ainda que é “Perfeitamente aceitável nessa espécie de usucapião tanto a acessio quanto a sucessio possessionis, com a presunção relativa de boa-fé e justo título”. (TOLEDO, 2006, p. 170). 2.4.2 Usucapião Ordinária Acerca desta modalidade de prescrição aquisitiva, o Código Civil anterior estabelecia o seguinte: 39 Art. 551 – Adquire também o domínio do imóvel aquele que, por 10 (dez) anos entre presentes, ou 15 (quinze) entre ausentes, o possuir como seu, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé. Parágrafo único. Reputam-se presentes os moradores do mesmo município e ausentes os que habitam em município diverso. O atual legislador optou por retirar a distinção entre presentes e ausentes, uniformizando o prazo de contagem em dez anos, independentemente de o proprietário inerte residir na mesma municipalidade, ou em local diverso. Para Fabio Caldas de Araújo, foi correta a retirada de tal distinção entre presentes e ausentes, pois, segundo ele, “os mecanismos de comunicação hodiernos não permitem a alegação do desconhecimento sobre a situação patrimonial do usucapido, pelo simples fato de o mesmo não residir no local em que se situa o imóvel”. (ARAÚJO, 2013, p. 374). A partir da vigência do Código Civil de 2002, o dispositivo passou, então, a ser assim redigido: Art. 1.242 - Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos. Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. Foram mantidos como requisitos, além da posse e do lapso temporal, o justo título e a boa-fé. Para Fiuza, esta modalidade “visa proteger aqueles que supostamente hajam adquirido o imóvel, mas possuem título aquisitivo defeituoso, não se tornando, assim, donos”. (FIUZA, 2012, p. 867). Por mais que a usucapião ordinária estabeleça no caput do art. 1.242 do Código Civil que o prazo será de dez anos, não há que se confundir com a usucapião extraordinária abreviada prevista no parágrafo único do art. 1.238 do mesmo diploma, pois esta última é modalidade que “dispensa o justo título e a boa-fé, mas 40 que exige o requisito da moradia ou realização de serviços de caráter produtivo no local”. (VENOSA, 2011, p. 1.255). Assim como ocorre com o art. 1.238, também há aqui o acréscimo de um parágrafo único, que introduz mais uma possibilidade de usucapião, conhecida como usucapião documental ou tabular. Neste caso, reduz-se para cinco anos o lapso temporal, exigindo-se, para tanto, além dos requisitos básicos da espécie (posse, tempo, justo título e boa-fé), os seguintes: aquisição onerosa do imóvel, registro do título em cartório, posterior cancelamento do registro, estabelecimento da moradia no bem, ou realização de investimentos de interesse social e econômico. No tocante à usucapião ordinária documental, tal é o entendimento esposado por Roberta Toledo: O parágrafo único do referido artigo contempla mais uma facilidade em prol da aquisição da propriedade baseada na posse qualificada pelo trabalho. O possuidor que tiver um título anterior, que por alguma razão fora cancelado, é protegido se: mantém-se no imóvel, fixou-se ali sua moradia ou realizou investimento de caráter social e econômico não só de seu interesse, mas que se projetem socialmente, como, por exemplo, o possuidor que desenvolveu atividade comercial trazendo emprego a toda uma coletividade, com a construção de industrias, escolas, hospitais particulares etc. Nesses casos, é a posse-trabalho e a posse pro habitatione reduzindo o prazo da usucapião ordinária, pois além da existência do justo título e da boa-fé, o possuidor deverá ter estabelecido a sua moradia ou realizados investimentos de interesse social e econômico. Nessa espécie, não se verifica exigência concomitante dos requisitos trabalho e moradia, bastando à existência de um ou de outro. [sic]. (TOLEDO, 2006, p. 171). No entendimento de Venosa, “A nova lei protege quem, nessa situação, mantém no imóvel a moradia ou realizou ali investimentos de interesse social e econômico. Protege-se o possuidor que atribui utilidade para a coisa, [...] em detrimento de terceiros”. (VENOSA, 2011, p. 1.255) 2.4.3 Usucapião Especial 41 Esta modalidade também é conhecida como usucapião constitucional, uma vez que está tutelada nos arts. 183 e 191 da Carta da República, correspondentes às modalidades especial urbana e rural, respectivamente, as quais serão apresentadas a seguir: 2.4.3.1 Usucapião Especial Rural Esta espécie já estava prevista no ordenamento jurídico desde a Constituição de 1934, que valorizou o caráter produtivo da propriedade. O instituto permaneceu na Constituição seguinte, e também foi regulado na Lei nº 6.969/1981, conhecida como Estatuto da Terra, que reduziu o seu prazo de dez para cinco anos. Venosa (2011, p. 1.250) ensina que esta espécie de aquisição era permitida tanto em terras particulares como em públicas. Em 1988, a matéria foi trazida no art. 191, conforme se vê: Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. No Código Civil, tratou-se do tema no art. 1.239. A Carta Magna dobrou a extensão territorial, que antes era de vinte e cinco hectares, para cinquenta. Não exige essa modalidade a presença dos requisitos de justo título e boa-fé, mas tão somente se confere a propriedade outrora abandonada àquela pessoa que dela tomou posse, estabeleceu nela a sua moradia, tornou-a produtiva e fez com que cumprisse a sua função social. No dizer de Toledo (2006, p. 192): 42 O principal efeito da usucapião é transferir ao possuidor que efetuou obras de caráter econômico e social ou que fixou ali a sua moradia, a propriedade da coisa em consonância com os ditames constitucionais vastamente expostos. É constituir título para o usucapiente, oponível erga omnes. É por este motivo que esta espécie é conhecida por usucapião pro labore, uma vez que dentre os seus fundamentos está a valorização do trabalho e a fixação da moradia familiar na propriedade rural. A Constituição previu ainda a usucapião especial urbana, que passará a ser analisada. 2.4.3.2 Usucapião Especial Urbana A usucapião especial urbana está triplamente prevista no ordenamento jurídico brasileiro, estando garantida nos arts. 183 da Constituição Federal e regulamentada pelos art. 9º da Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) e 1.240 do Código Civil de 2002. No dizer de Fabio Caldas de Araújo (2013, p.337), “Esta repetição normativa demonstra a importância do instituto como meio de cumprir a finalidade social da propriedade urbana”. A Carta da República de 1988, tendo como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), possui dentre os seus objetivos construir uma sociedade justa e solidária (art. 3º, I), erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III), além de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). Se o constituinte originário não buscasse formas de transformar essas garantias em realidade, a constituição correria o risco de se tornar uma mera “folha de papel”. Para que isso não acontecesse, foi inserida no bojo do ordenamento constitucional uma série de direitos e garantias fundamentais, dentre eles, o que garante o direito à 43 propriedade (art. 5º, caput e XXII). Como nenhum direito ou garantia fundamental é extremamente absoluto, o inciso XXIII do mesmo art. 5º estabelece: “a propriedade atenderá a sua função social”. Não há, entretanto, uma definição constitucional do que seria a função social da propriedade. A esse respeito, assim se manifesta Eduardo Cambi, apud Roberta Toledo: “[...] em relação à função social da propriedade urbana, é necessário verificar se ela atende ou não as exigências fundamentais expressas no plano diretor, podendo o Poder Público Municipal, mediante lei específica, nos termos da Lei 10.257/01, exigir o adequado aproveitamento do solo [...]”. Levando em consideração a citada função social da propriedade e a necessidade de criar mecanismos facilitadores do acesso à habitação, o legislador constitucional inseriu em seu art. 183 esta figura inovadora, também conhecida como usucapião pró-moradia, pro habitatione ou habitacional, verbis: Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. § 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. Posteriormente, em 2001, foi promulgada a Lei 10.257, também conhecida como Estatuto da Cidade, que veio regulamentar os arts. 182 e 183 da Constituição Federal e estabelecer diretrizes gerais da política urbana, dentre outras providências. Em seu art 9º, repetiu-se quase a mesma redação do art. 183 da Constituição, inserindo-se no caput a expressão “área ou edificação urbana de até 44 duzentos e cinquenta metros quadrados”. Além disso, a usucapião especial urbana foi trazida pelo referido Estatuto como um dos instrumentos da política urbana (art. 4º, V, j). E, em 2002, o instituto foi tratado no art. 1.240 do Código Civil. Barruffini, apud Toledo (2006, p. 177), defende que: [...] diante da problemática quase insolúvel da moradia nas cidades, aventou-se uma nova modalidade de usucapião, atendendo, na medida do possível, a função social da propriedade. Por alguns foi chamado de usucapião de solo urbano e por outros, usucapião pro casa, pro morare. É verdade que o escopo foi dar oportunidade de acesso à propriedade urbana e, conseqüentemente, à moradia, a uma parte da população que vive em condições subumanas, na clandestinidade, como se fossem irracionais. [sic]. [Grifos no original]. Percebe-se que esta modalidade difere das demais vistas até então, pois, como afirma Toledo (2006, p. 178), “Nessa modalidade de usucapião a posse-trabalho apresenta-se como requisito essencial e não mais como redutor de prazos. A destinação da área é elemento imprescindível a essa aquisição da propriedade”. Além disso, o lapso temporal previsto para esta usucapião é de cinco anos, e há limitação imposta na área da propriedade a ser usucapida, de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados). Em torno da área de duzentos e cinquenta metros quadrados, Farias e Rosenvald, apud Molina (2012, p. 43), assim se posicionam: O dispositivo quis se referir à área de terreno (do lote), pouco interessando a dimensão da acessão. É um sofisma concluir que apenas o miserável será beneficiado pela usucapião especial urbana. Pelo contrário, trata-se de conceder moradia a quem não tem. [...] Por isso, será praticamente impossível encontrar uma pessoa abastada em situação de receber tal benefício. Araújo (2013, p. 340) segue este raciocínio, afirmando o seguinte: 45 O limite foi fixado em função da área ocupada, e não da área construída. Indubitavelmente, a restrição deveria ter alcançado os dois parâmetros – o que não ocorreu –, podendo-se ter uma construção sobre o terreno que alcançará valores muito superiores aos da área usucapida. Em sentido contrário, Molina (2012, p. 43) argumenta: A maioria dos doutrinadores defende que não deve ser computado apenas a área do terreno e sim deve ser somado, de forma que a soma do lote com a construção não extrapole o limite constitucional, qual seja, duzentos e cinquenta metros quadrados. E o fundamento que utilizam é justamente a intenção que o legislador constituinte teve ao elaborar a norma: dar moradia ao sem teto e sua família. Entender de modo contrário seria afrontar a vontade da lei. Como se vê, não há unanimidade doutrinária para explicar se a área de 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) diz respeito tão somente ao terreno ou à soma deste com a área construída. Acerca da possibilidade ou não da acessão de posses nesta modalidade de usucapião, Venosa (2011, p. 1251/1252) afirma que houve inicialmente polêmica a esse respeito. Alguns sustentavam que somente seria beneficiado “aquele” que fosse o possuidor do imóvel. Era, entretanto, garantida a sucessão causa mortis, já que esta figura tem nítido caráter protetivo familiar. Tal discussão foi solucionada com o advento do novo Código Civil, que em seu art. 1.243 estabeleceu: “O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé”. Não há, portanto, mais espaço pra dúvida, uma vez que a acessão das posses foi legalmente permitida para todas as espécies de usucapião. Como requisitos, esta inovadora modalidade exige os seguintes: posse mansa, pacífica, ininterrupta e exercida com animus domini; prazo de cinco anos; área urbana medindo até duzentos e cinquenta metros quadrados; estabelecimento de moradia para si ou sua família no imóvel e ausência de propriedade de qualquer outro imóvel urbano ou rural. 46 Interessante se faz o posicionamento de Fabio Caldas de Araújo: A finalidade do instituto não é propiciar o estímulo de ocupações para a revenda comercial, mas estimular a fixação da família em áreas urbanas, com aproveitamento de propriedades ociosas. [...] Pela leitura do art. 183, 2º, da CF, visualiza-se que a área ocupada não poderá exceder a 250 m². O permissivo não se destina à formação de casas de luxo, mas a permitir moradia simples e digna, concebendo-se esta metragem como a necessária para a construção de um núcleo de habitação. (ARAÚJO, 2013, p. 338-340). De fato, o que se busca com esta modalidade de usucapião não é que os possuidores estabeleçam moradia no imóvel com vistas à usucapião, com o claro objetivo de revender posteriormente o bem e reiniciar o ciclo de posse. É por esse motivo que sabiamente o legislador impôs a restrição do parágrafo 2º, que estabelece que este direito não será conferido ao mesmo possuidor mais de uma vez. Podem ser beneficiados com a usucapião especial urbana, de acordo com o parágrafo primeiro, tanto o homem quanto a mulher, ou ambos, seja qual for o estado civil. Aqui está a proteção à família, tendo sido ela constituída mediante casamento ou união estável. A esse respeito assim se manifesta Araújo: Se o título dominial for concedido unicamente para um dos membros do casal, pela propositura individual da usucapião, tal fato poderia provocar situação desfavorável. Se o cônjuge abandonar o lar, como não houve pedido formulado em composse, para o cônjuge que continuou sobre a área seria essencial repetir a usucapião, mas com o transcurso do prazo de cinco anos. Para evitar essa situação, o legislador criou a modalidade especial do art. 1.240-A, que procura resolver a situação do cônjuge prejudicado pelo abandono. [...] O ideal é que na posse familiar a inicial seja formulada em litisconsórcio ativo, o que se trata de exigência legal para as situações de composse, na dicção do art. 10, § 2º, do CPC, que exige, no mínimo, o consentimento ou outorga do consorte para a regularização do polo ativo. Tal fato servirá de subsídio para eventual usucapião formulada pelo art. 1.240-A do CC. (ARAÚJO, 2013, p. 344). 47 Estas providências a que o autor se refere serão de grande valia caso seja necessário, no futuro, ingressar com uma ação de usucapião baseada no abandono do lar, também conhecida como usucapião pró-família, que será analisada no próximo capítulo. Por fim, convém ressaltar acerca desta modalidade que levando em consideração ser ela uma inovação trazida pela Constituição de 1988, a partir da promulgação desta é que se iniciou a contagem do lapso temporal de cinco anos exigido como um dos seus requisitos. Isto se deu em observância ao princípio da segurança jurídica, pois os proprietários de imóveis urbanos, ainda que estivessem inertes com relação aos seus bens, não poderiam ser pegos de surpresa de uma hora para outra com a perda das suas propriedades, pois até então, o prazo para aquisição dos imóveis nestas condições era bem maior. Em determinados casos, não era possível a aplicação desta espécie de usucapião, porque a área possuída excedia o limite imposto à dimensão territorial e era ocupada não apenas por uma família, mas por uma coletividade. Pondo solução a essa questão, o Estatuto da Cidade, em seu art. 10, trouxe em 2001 a previsão de outra modalidade de usucapião, in verbis: Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. §1° O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas. §2° A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis. §3° Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas. §4° O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no 48 mínimo, 2/3 (dois terços) dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio. §5° As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes”. Trata-se da usucapião especial urbana coletiva, por meio da qual, segundo Fabio Caldas de Araújo, [...] o legislador procurou disciplinar uma forma de regularizar áreas urbanas ocupadas por grupos de pessoas com posse já estabilizada. Nos grandes centros estas ocupações são facilmente identificáveis e necessitam de regularização, pois a realidade fática não pode mais ser desfeita, e a coletividade necessita de inserção socioeconômica. (ARAÚJO, 2013, p. 355) É inegável que se torna cada vez mais difícil e oneroso possuir uma moradia na cidade. A ocupação de imóveis urbanos subutilizados por seus proprietários na maioria das vezes se torna a única saída para aquelas pessoas que se dirigem aos grandes centros na esperança de conseguir uma melhoria de vida. Os possuidores vão chegando aos poucos e quando menos se espera, o que antes era um terreno sem utilização acaba por se transformar em um emaranhado de casas, assemelhando-se a um conjunto habitacional, não sendo possível distinguir a área ocupada por cada um dos possuidores, para que estes busquem a aquisição pela via da usucapião individual. Por mais que a lei determine que a coletividade em questão deve ser de baixa renda, não trouxe ela um conceito do que seria baixa renda. Caberá ao juiz, na prática, analisar se essa condição foi preenchida. A posse deve ser, assim como na modalidade individual, justa, mansa, pacífica e ininterrupta pelo período de cinco anos, sendo permitida a acessão de posses. São legitimados para propor a ação de usucapião especial urbana, de acordo com o art. 12 do Estatuto da Cidade o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente; os possuidores, em estado de composse; como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente 49 constituída, com personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos representados. O parágrafo primeiro estabelece ainda que na ação de usucapião especial urbana é obrigatória a intervenção do Ministério Público. Os benefícios da justiça e da assistência judiciária gratuita serão concedidos ao autor, inclusive perante o cartório de registro de imóveis. Ressalte-se ainda que esta modalidade, assim como as demais, pode ser arguida como matéria de defesa. Ao decretar a sentença, em conformidade com o art. 9, § 3º da Lei 10.257/2001, o juiz atribuirá cada possuidor fração ideal de terreno, independentemente da dimensão territorial ocupada por cada um, a menos que os condôminos tenham formulado acordo escrito, estabelecendo frações ideais diferenciadas. O condomínio especial constituído é indivisível, não podendo ser extinto, salvo por deliberação favorável tomada por pelo menos dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio. A sentença obtida servirá de título para o registro no cartório de registro de imóveis. Ibrahim Rocha, apud Roberta Toledo (2006, p. 184-185), chega à seguinte conclusão: O direito de propriedade na área urbana somente se reconhece a partir da sua função social, inserindo-se instrumentos que permitem excluir o domínio estéril do meio social, com destaque aos direitos e interesses da população de baixa renda. A propriedade sem função social não tem o status que antes lhe atribuía, criando o Estado meios de retirar-lhe do meio social quando não cumpra o seu especial caráter, destinando-a a um fim de utilidade social, criando mecanismos que permitam a reinserção da propriedade como utilidade social, dentro destes meios é que vem se colocar a ação de usucapião coletivo. Na prática, apesar de ter sido boa a intenção do legislador, deve-se tomar muito cuidado para que esta modalidade de usucapião não seja utilizada como meio de obtenção de vantagens econômicas ou políticas. Buscando acompanhar a evolução social, o legislador recentemente inseriu no ordenamento jurídico pátrio a usucapião especial urbana por abandono do lar conjugal, prevista no art. 1.240-A do Código Civil. Apesar de possuir caráter 50 nitidamente protetivo, o instituto tem sido alvo de diversas críticas, conforme se verá nos próximos capítulos. 51 3. DA USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA POR ABANDONO DO LAR CONJUGAL Não é de hoje que a legislação civil sofre constantes mudanças no anseio de acompanhar o desenvolvimento social. Em mais uma dessas atuações legislativas, a Lei 11.977/09, que normatizou o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), implementado pela União, foi modificada pela Lei 12.424, de 16 de junho de 2011, objetiva “garantir o acesso à moradia adequada, a melhoria da qualidade de vida da população de baixa renda e a manutenção do nível de atividade econômica, por meio de incentivos ao setor da construção civil”. O seu artigo 9º incluiu no ordenamento jurídico uma nova modalidade de usucapião, por meio da inserção do art. 1.240-A do Código Civil, conforme se vê: Art. 9º. A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 1.240-A: Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1 O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 2º (VETADO) Trata-se o instituto em questão da usucapião especial urbana por abandono do lar conjugal, também conhecida como usucapião familiar ou usucapião pró-família, que, conforme se depreende da leitura do artigo, guarda extrema semelhança com a usucapião especial urbana individual, pois mantém as exigências de área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados; posse contínua, mansa, pacífica e sem oposição e não ser proprietário de nenhum outro imóvel urbano ou rural, diferenciando-se apenas no que diz respeito aos requisitos de ser o imóvel de propriedade comum do casal, ter havido abandono do lar por parte de um dos ex- 52 cônjuges ou ex-companheiros, ser a posse exercida de maneira direta e o decurso do exíguo lapso temporal de apenas dois anos. Percebe-se que por meio deste instituto, ao buscar proteger aquele que após a separação permaneceu residindo no imóvel urbano de até duzentos e cinquenta metros quadrados de propriedade comum “abandonado” pelo ex-consorte, objetivou o legislador garantir o direito social constitucionalmente tutelado à moradia, fundamentando-se na dignidade da pessoa humana e resguardando-se o direito da família. Convém ressaltar que esta modalidade se aplica a todos os imóveis que preencherem tais requisitos, e não apenas aos adquiridos no Programa Minha Casa Minha Vida. Por melhor que possa ter sido a intenção do legislador ao inserir no mundo jurídico esta norma, são recorrentes as críticas doutrinárias ao seu respeito, tanto em relação aos impactos que causará no direito de família e sucessório, como por conta de questões processuais. Acerca do instituto, Neto afirma: Além de acirrar indevidamente os ânimos, já abalados com o fim do vínculo afetivo, pela primeira vez o final de um relacionamento terá repercussões patrimoniais diretas e servirá, tão somente, para dificultar e burocratizar os procedimentos de composição de conflitos familiares, que, nos últimos anos, vêm sendo cada vez mais simplificados (permitia-se a separação em cartório extrajudicial e, agora, após a EC 66, há o divórcio direto e livre de prazos, sem necessidade de imputação de culpa ou responsabilização pelo término da relação). (NETO, Arnaldo de Lima Borges. A nova usucapião e o abandono do lar. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2948, 28 jul. 2011 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/19661>. Acesso em: 30 out. 2013.) No dizer de Marcos Ehrhardt Júnior: parece não haver nenhuma preocupação quanto à simplificação dos procedimentos processuais para reconhecimento da usucapião. Todas as iniciativas recentes voltadas ao tema visam apenas à criação de novas formas para exercício de tais direitos, criando uma miríade de requisitos distintos que apenas dificulta a aplicação e conhecimento do instituto. ((Júnior. Marcos Ehrhardt. http://www.marcosehrhardt.adv.br/index.php/blog/2011/06/24/temos- 53 um-novo-tipo-de-usucapiao-criado-pela-lei-1242411-problemas-avista. Acesso em: 30 out. 2013.) Complementando este raciocínio, assim se manifesta Simão: Efetivamente, todos os problemas procedimentais da usucapião passam longe da preocupação legislativa. O excesso de burocracia e de custos inerentes à usucapião acaba afastando as partes de se valer desta forma de regularização fundiária. (SIMÃO, José Fernando Usucapião familiar: problema ou solução? Disponível em: http://www.professorsimao.com.br/artigos_simao_cf0711.html. Acesso em 30-out. 2013) De fato, por mais que a usucapião não seja novidade no direito brasileiro, acaba não sendo muito utilizada, pois apesar de objetivar conceder a propriedade àquele possuidor que preencheu todos os requisitos da espécie, possui custos elevados, e, por ser altamente burocrática, pode chegar a durar anos. Longe de solucionar os problemas já existentes, a usucapião familiar tende a burocratizar ainda mais o processo, na medida em que reduz o lapso temporal para sua consumação e adiciona o requisito de abandono do lar, trazendo consigo toda a problemática da carga emocional característica do direito de família. Atualmente, encontra-se a ação de usucapião de terras particulares regulada nos artigos 941 a 945 do Código de Processo Civil, requerendo que na petição inicial seja exposto o fundamento do pedido e juntada a planta do imóvel, devendo ser realizada a citação do proprietário do imóvel usucapiendo, bem como dos confrontantes e confinantes e, por edital, dos réus em lugar incerto e dos eventuais interessados. Além disso, os representantes da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios serão intimados por via postal, para que manifestem interesse na causa, devendo ainda o Ministério Público intervir obrigatoriamente em todos os atos do processo. Sem dúvidas, este procedimento está longe de prezar pela simplicidade e celeridade. Outro ponto interessante é que decorridos cerca de dez anos da promulgação do Estatuto da Cidade e do Código Civil de 2002, é pouco provável que o legislador não tenha testemunhado os diversos debates em torno da área de 250m² (duzentos e 54 cinquenta metros quadrados) do imóvel a ser usucapido, se é correspondente à área do terreno ou à soma desta com a área construída. Ainda assim, mais uma vez não foi dada solução para esta questão, pelo que se entende que as conclusões obtidas quando do estudo da modalidade especial urbana individual deverão ser aplicadas aqui também. 3.1 REQUISITOS Feitas essas primeiras considerações, passar-se-á a uma breve análise dos requisitos desta espécie, excetuando-se aqueles que já foram observados no tópico referente à modalidade especial urbana individual, em virtude da semelhança apresentada. 3.1.1 Imóvel de propriedade comum do casal Geralmente, o imóvel a ser usucapido pertence a um terceiro, havendo também casos em que o imóvel é comum, mas um dos condôminos exerce, de modo aparente, sobre ele domínio exclusivo, sem que os demais se oponham ou tomem qualquer atitude a esse respeito. No caso da usucapião familiar, o bem é de propriedade comum do casal. Após um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros abandonarem o lar, decorrido o prazo de dois anos, o domínio será adquirido integralmente por aquele que lá permaneceu de forma direta, exclusiva e sem oposição. Convém ressaltar que, em consonância com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal em sede da ADPF 132-RJ e ADI 4.277 - DF, que reconheceu a possibilidade de união entre pessoas do mesmo sexo, prevalece o seguinte entendimento, conforme se vê do Enunciado nº 500, aprovado na V Jornada de Direito Civil: “A modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a 55 propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas”. Acerca do imóvel, assim se manifesta Luciana Silva (2012): Dessa forma, o imóvel comum no Usucapião Pró-Família pode ser fruto do regimes [sic] de comunhão total ou parcial, regime de participação final de aquestos em havendo no pacto previsão de imóvel comum ou separação legal por força da Súmula nº 377 do STF, a qual prevê que os bens adquiridos na constância do casamento se comunicam. Quando o regime for de separação convencional de bens, a ausência de bens comuns não permite a aplicação do Usucapião Pró-Família. O usucapião entre cônjuges e companheiros pode acarretar modificação do regime de bens, o qual não pode ser alterado unilateralmente (art. 1.639 do CC). No regime de separação convencional, não há perspectiva de comunicação de patrimônio entre cônjuges e companheiros, afastando-se o Usucapião Pró-Família, sendo cabível [sic] as demais espécies de usucapião previstas no ordenamento legal com prazo mais longo. Já no entendimento de Simão: O imóvel pode pertencer ao casal em condomínio ou comunhão. Se o casal for casado pelo regime da separação total de bens e ambos adquiriram o bem, não há comunhão, mas sim condomínio e o bem poderá ser usucapido. Também, se o marido ou a mulher, companheiro ou companheira, cujo regime seja o da comunhão parcial de bens compra um imóvel após o casamento ou início da união, este bem será comum (comunhão do aquesto) e poderá ser usucapido por um deles. Ainda, se casados pelo regime da comunhão universal de bens, os bens anteriores e posteriores ao casamento, adquiridos a qualquer título, são considerados comuns e portanto, podem ser usucapidos nesta nova modalidade. Em suma: havendo comunhão ou simples condomínio entre cônjuges e companheiros a usucapião familiar pode ocorrer. (SIMÃO, José Fernando Usucapião familiar: problema ou solução? Disponível em: http://www.professorsimao.com.br/artigos_simao_cf0711.html. Acesso em 30-out. 2013) Como se vê, a questão em torno da propriedade comum do imóvel está intimamente ligada aos regimes de bens do casamento, tema regulado no Subtítulo I do Título II do Código Civil, compreendendo os arts. 1.639 a 1.688. Considerando que o instituto se refere apenas à propriedade, adverte Simão (2011, p. 1) 56 A posse comum não enseja a aplicação do dispositivo. Não se admite usucapião de imóvel que não seja de propriedade dos cônjuges ou companheiros. Assim, se um casal invadiu um bem imóvel urbano de até 250 m2 [sic], reunidos todos os requisitos para a aquisição da propriedade (seja por usucapião extraordinária, seja por usucapião constitucional), ainda que haja abandono por um deles do imóvel, por mais de 2 anos, o direito à usucapião será de ambos e não de apenas daquele que ficou com a posse direta do bem. 3.1.2 Lapso temporal de dois anos O prazo previsto para esta modalidade é o menor entre todas as espécies da legislação brasileira: apenas dois anos. Até para se usucapir bem móvel são necessários três anos, desde que presentes os requisitos de justo título e boa-fé. Caso contrário, a prescrição aquisitiva só se consuma em cinco anos. Com base nesse parâmetro, a razoabilidade de tal lapso temporal se mostra extremamente questionável. Flávio Tartuce (2011) argumenta que “[...] a tendência pós-moderna é justamente a de redução dos prazos legais, eis que o mundo contemporâneo exige e possibilita a tomada de decisões com maior rapidez”. Tal pensamento é questionado por Heidy Cristina Boaventura Siqueira (2011), que assim se manifesta: Tal argumento, todavia, não contempla o fato de que se está a lidar com sentimentos humanos, os quais, na maioria das vezes, os cônjuges ou companheiros têm dificuldade de romper definitivamente com o vínculo que os une, seja porque a união inicialmente foi projetada para ser eterna, seja porque a quebra da mesma abala profundamente a estrutura em que se baseou a vida do indivíduo. Trata-se, portanto, de difícil, demorada e dolorosa decisão, ainda que seja para pôr fim à infelicidade. (2011, p.1) Em outras situações, essa justificativa apresentada por Tartuce poderia ser altamente adequada, mas não no caso da usucapião familiar. Há que se observar que o instituto em questão lida diretamente com um conflito advindo não apenas do fim de um relacionamento conjugal, mas também de um “abandono do lar”. Por certo, o prazo de apenas dois anos é exíguo demais para que as partes esfriem os ânimos e consigam resolver serenamente as questões afetas ao fim do convívio e à propriedade do bem adquirido com o esforço comum. 57 E a opinião contrária da doutrina não para por aí. Assim se manifesta Ricardo Henriques Pereira Amorim: Há de se criticar também o prazo exíguo de dois anos para a formação da usucapião. Até pouquíssimo tempo atrás era este mesmo tempo o necessário para a realização do divórcio. Embora a lei não exija mais tal lapso de separação fática, ele continua sendo, na prática, mais ou menos respeitado pelos casais, por constituir um prazo de reflexão bastante razoável. O prazo tão curto acaba por apressar os casais a formalizarem sua separação, forçando a redução do prazo de reflexão e reestruturação de sentimentos e projetos familiares. Tal circunstância atenta contra a dignidade e liberdade dos envolvidos que poderiam, quiçá deveriam, deixar fluir mais tempo antes de decidirem-se por enveredar por procedimento de partilha de bens. (AMORIM, Ricardo Henriques Pereira. Primeiras impressões sobre a usucapião especial urbana familiar e suas implicações no Direito de Família. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2948, 28 jul. 2011 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/19659>. Acesso em: 30 out. 2013.) A impressão que a usucapião familiar causa é que o legislador, provavelmente no anseio de dar à população a sensação de que algo está sendo feito em seu favor, resolveu introduzir esta norma no ordenamento jurídico, sem, no entanto, atentar para o fato de que provavelmente ela trará muito mais conflitos do que os que se propunha a solucionar. Sobre o exíguo lapso temporal, Araújo (2013, p. 373) afirma: A fluência do prazo dependerá da inexistência de causa obstativa [...]. No entanto, a causa prevista pelo art. 197, I, do CC precisa ser corretamente aplicada no caso concreto. A possibilidade de usucapião entre cônjuges não significa a revogação do art. 197, I, do CC. Na verdade, revela uma interpretação finalística na aplicação do dispositivo. A suspensão da fluência do prazo da prescrição aquisitiva ou extintiva permanece enquanto a sociedade conjugal persista. Com o rompimento fático, com animus definitivo de separação, não existe motivação plausível para não admitir a sua incidência. Muitos casais se separam e não regularizam a situação jurídica de rompimento da sociedade conjugal. [Grifos no original]. 58 Com relação ao argumento de que a usucapião familiar excetua o previsto no art. 197, I do Código Civil, lembra Luciana Silva (2012) que “O mote de não correr prescrição entre cônjuges na constância do casamento é a manutenção da harmonia familiar e ceifada esta pela separação de fato não há falar-se em impedimento de aquisição por usucapião”. No mesmo sentido, Simão (2012) se manifesta: A separação de fato, portanto, permite o início da contagem do prazo da usucapião familiar, desde que caracterizado o abandono. A separação de fato tem sido admitida como motivo para que se reconheça o fim da sociedade conjugal e do regime de bens. Neste sentido decidiu o STJ que: “1. O cônjuge que se encontra separado de fato não faz jus ao recebimento de quaisquer bens havidos pelo outro por herança transmitida após decisão liminar de separação de corpos. 2. Na data em que se concede a separação de corpos, desfazem-se os deveres conjugais, bem como o regime matrimonial de bens; e a essa data retroagem os efeitos da sentença de separação judicial ou divórcio. (REsp 1065209/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 08/06/2010, DJe 16/06/2010)” Como visto, tendo sido encerrada de fato a união, cessa a proibição à prescrição. 3.1.3 Abandono do lar Sem dúvidas, a questão em torno desse requisito é apontada pela doutrina como bastante polêmica e traz consigo uma série de questionamentos. Afinal, o que realmente se entende por abandono do lar? Teria porventura o legislador utilizado o conceito de abandono do lar que imperava na vigência do Código Civil de 1916? A quem cabe demonstrá-lo e como deve ser feita a prova de tal abandono? Teria ressurgido das cinzas o conceito de culpa já abolido anteriormente do Direito de Família? Como se vê, são muitos os questionamentos que a lei fez surgir com a previsão deste desarrazoado requisito. Convém transcrever os que foram expostos pela Vice- 59 Presidenta Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM –, Maria Berenice Dias: O que significa mesmo abandonar? Será que fugir do lar em face da prática de violência doméstica pode configurar abandono? E se um foi expulso pelo outro? Afastar-se para que o grau de animosidade não afete a prole vai acarretar a perda do domínio do bem? Ao depois, como o genitor não vai ser tachado de mau pelos filhos caso manifeste oposição a que eles continuem ocupando o imóvel? Também surgem questionamentos de natureza processual. A quem cabe alegar a causa do afastamento? A oposição há que ser manifestada de que forma? De quem é o ônus da prova? Pelo jeito a ação de usucapião terá mais um fundamento como pressuposto constitutivo do direito do autor. (DIAS, Maria Berenice. Usucapião e abandono do lar: a volta da culpa? Disponível em: <http://ibdfam.org.br/_img/artigos/Usucapi%C3%A3o%20Maria%20B erenice.pdf>) Acesso em 29 ago 2013. Dias não é a única a demonstrar descontentamento com a inovação. Assim se manifestou Vilardo (2011, p. 6): O que causa perplexidade é termos que nos socorrer de conceitos que foram construídos para justificar o então desquite litigioso. O art. 317 do Código Civil de 1916 trazia o abandono voluntário do lar conjugal durante dois anos como causa para o desquite. Naquela época era tão grave deixar o lar conjugal que os demais fundamentos que motivavam a ação de desquite, todos incluídos no mesmo artigo, eram o adultério, a tentativa de morte, sevícias, ou injúria grave. Cabia ao marido o direito de fixar o domicílio da família e à mulher competia segui-lo. O que caracterizava o abandono era a ausência com a intenção de desfazer os liames familiares. Observese que em 1916 o prazo para sua configuração era de dois anos, o mesmo hoje exigido pela lei nova. Percebe-se, portanto, que devido a essa atuação infeliz do legislador, o Código Civil acabou indo na contramão da tendência moderna, ao resgatar a patrimonialização do Direito de Família. A necessidade de separar as coisas há muito vinha sendo defendida pela melhor doutrina, a fim de evitar as características negativas que marcavam o Código Civil de 1916, como bem salientado por Dias (2010, p. 111). Apesar de um pouco extenso, vale a pena transcrever todo o trecho: 60 [...] nada justifica a inserção da culpa no âmbito das relações familiares. A ideia sacralizada da família, considerada durante muito tempo como uma instituição, sempre serviu de justificativa para buscar a identificação de um culpado pelo fim do casamento. A tentativa era desestimular a dissolução da família, intimidando os cônjuges para que não saíssem do casamento. Quando a lei permitia a inquirição de culpas ou impunha a identificação de culpados, acabava por aplicar penas, no mais das vezes, de conteúdo econômico. A família, cantada e decantada como cellula mater da sociedade, é alvo de especial proteção do Estado. O interesse em preservar o casamento fez o instituto da culpa migrar para o âmbito do direito das famílias. Com o advento da EC 66/10, que deu nova redação ao art. 226, § 6º da CF, o descumprimento dos deveres do casamento não mais acarreta a imposição de sanções. Felizmente, o princípio da culpa foi abandonado como fundamento para a dissolução coacta do casamento. Mesmo quem dá causa a dissolução da sociedade conjugal não pode ser castigado. O “culpado” não fica sujeito a perder o nome adotado quando do casamento. Somente no que diz com os alimentos persiste o instituto da culpa, pois são restritos a mantença do mínimo necessário para sobreviver, eis que não mais cabe ser questionada a responsabilidade pelo fim da união. [Negrito e grifos no original]. O que se nota é que da forma como ingressou no ordenamento jurídico, a usucapião familiar irá novamente trazer à apreciação judicial a discussão da culpa pelo fim da união, o que não mais acontecia, como se vê nos posicionamentos acima transcritos. Agora, com receio de perderem a propriedade, os ex-casais ou tomarão desde logo as providências para oficializar o fim da relação e partilhar os bens sem fazerem as devidas reflexões sobre a possibilidade de reconciliação, ou se sentirão coagidos a permanecer sob o mesmo teto, ainda que às custas da própria felicidade. Afinal de contas, aquele que abandonou o lar provavelmente tentará demonstrar que o verdadeiro “culpado” foi o outro, e que, portanto, não é justo que ainda tenha que perder a sua quota-parte sobre o imóvel. O outro, por sua vez, alegará que é “inocente”, uma vez o seu ex-cônjuge infringiu uma das obrigações do casamento, ao abdicar da vida em comum, tendo “rescindido” o contrato. Transparece aqui a velha ideia de punir o culpado pelo fim do vínculo conjugal que deveria durar “até que a morte os separasse”. Em meio a esse fogo cruzado, o magistrado deverá ouvir a exposição da intimidade e da vida privada do ex-casal e terá a ingrata missão de decidir se aquele que 61 abandonou o lar é realmente o culpado, concedendo ou não o imóvel como prêmio de consolo ao pobre cônjuge abandonado. Como se a um homem fosse dado o poder de interferir em uma relação íntima, complicada e altamente subjetiva como é a convivência marital para descobrir quem foi o réu na seara amorosa. Por via de consequência, toda a família será prejudicada, especialmente os filhos. Na tentativa de amenizar os conflitos decorrentes da inserção do elemento culpa na relação patrimonial, Molina (2012, p. 64) propõe o seguinte: O verbo abandonar deve ser entendido no contexto da inércia do cônjuge/convivente que saiu do imóvel e não praticou nenhuma medida que lhe é inerente. Pode-se dizer, então, que deixando de agir, em defesa da sua propriedade, seja por intermédio de medida judicial, seja por meios extrajudiciais, já é o suficiente para caracterizar a [sic] abandono do lar que a lei se refere na nova lei de usucapião. Essa mesma preocupação também foi demonstrada durante a V Jornada de Direito Civil, mediante a aprovação do Enunciado nº 499. Eis o seu teor: A aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de seus pressupostos anteriormente ao divórcio. O requisito “abandono do lar” deve ser interpretado de maneira cautelosa, mediante a verificação de que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais como assistência material e sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião. [Negrito acrescido]. Ainda que tenha sido exposta a necessidade de analisar com cautela o requisito do abandono do lar, não parece ser mais acertada a conclusão de que após ter sido devidamente demonstrado, o duvidoso requisito (aliado aos demais) enseje a aquisição por usucapião. Ora, é extremamente irrazoável que após “abandonar o lar” por um curto período de dois anos (que como dito anteriormente, é necessário à 62 reflexão sobre o fim do vínculo conjugal ou a tentativa de reconciliação), o exconsorte seja condenado devido à confusão entre direitos pessoais e patrimoniais à perda do seu imóvel que provavelmente foi adquirido com muito esforço, especialmente levando em conta a especulação imobiliária que impera nos dias de hoje. A fim de evitar a caracterização do nefasto abandono, aquele que após o fim do vínculo afetivo intentar deixar para trás o lar conjugal e dar prosseguimento à sua vida, deverá se resguardar. Isso poderá ser feito, por exemplo, pelo pedido de partilha do bem (o que pode nem sempre ser interessante, pois o dinheiro adquirido com a venda pode ser insuficiente para a aquisição de dois imóveis), ou através da proposição de ação para arbitramento de aluguel pelo uso exclusivo da coisa comum, ou, ainda, com o pedido de separação judicial de corpos. Será assim até que sejam reconhecidas as flagrantes inconstitucionalidades desta modalidade de usucapião, as quais serão objeto de estudo no próximo capítulo. 63 4. ANÁLISE DAS INCONSTITUCIONALIDADES DA USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA POR ABANDONO DO LAR CONJUGAL Após ter sido feito um breve discurso histórico acerca da usucapião, procedeu-se à análise dos seus requisitos e espécies, para então ser aprofundado o estudo sobre a usucapião familiar por abandono do lar. Chegou-se, agora, ao real objeto deste trabalho, que é analisar à luz da Carta da República de 1988 a recente forma de prescrição aquisitiva com o fito de verificar a possível ocorrência de afrontas ao texto constitucional. É de fácil percepção que a análise constitucional visa verificar a adequação da norma ou do ato aos ditames constitucionais. Se a lei infraconstitucional ou o ato do Poder Público estiverem em consonância com o previsto na Carta da República, dizse que a lei ou o ato são constitucionais. Do contrário, eles padecerão de inconstitucionalidade, por não se amoldarem à Constituição. Há várias definições jurídicas para “Constituição”, sendo que cada uma leva em consideração um sentido (ou concepção). Ferdinand Lassale (apud Novelino, 2012, p. 86) se valeu da concepção sociológica para distinguir a Constituição Jurídica (ou escrita) da Constituição real (ou efetiva). Em sua opinião: [...] Os fundamentos sociológicos das constituições são os fatores reais do poder, constituído pelo conjunto de forças politicamente atuantes na conservação das instituições jurídicas vigentes (monarquia, aristocracia, grande burguesia, banqueiros...). Esses fatores formam a Constituição real de um país, que é, em essência, “a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação”. A relação existente entre esta e a Constituição jurídica é a inscrição dos fatores reais do poder em uma “folha de papel”, fazendo com que adquiram uma expressão escrita. Grifos do autor. Consequentemente, a Constituição escrita só teria validade quando correspondesse à Constituição real. Caso contrário, sua sucumbência seria inevitável. 64 Já na definição de Carl Schmitt (apud José Afonso da Silva, 2007, p. 38), encontrase o sentido político. Ele a considerava como “decisão política fundamental, decisão concreta de conjunto sobre o modo e forma de existência da unidade política”. [Grifos do autor]. Schimitt (apud José Afonso da Silva, 2007, p. 38), assim distinguia a Constituição das leis constitucionais: aquela [ a Constituição] só se refere à decisão política fundamental (estrutura e órgãos do Estado, direitos individuais, vida democrática etc.); as leis constitucionais são os demais dispositivos inscritos no texto do documento constitucional, que não contenham matéria de decisão política fundamental. Hans Kelsen (apud Novelino, 2012, p. 88) representa o modo de pensar no sentido jurídico. Para ele, “o jurista não precisa se socorrer da sociologia ou da política para buscar o fundamento da Constituição, pois este se encontra no plano jurídico”. A Constituição, então, é considerada “norma pura”, puro “dever ser”. Ele considera ainda dois sentidos da Constituição: sentido lógico-jurídico e sentido jurídico-positivo. A esse respeito, assim esclarece José Afonso da Silva (2007, p. 39): [...] de acordo com o primeiro, constituição significa norma fundamental hipotética, cuja função é servir de fundamento lógico transcendental da validade da constituição jurídico-positiva que equivale à norma positiva suprema, conjunto de normas que regula a criação de outras normas, lei nacional no seu mais alto grau. Grifos do autor. Outra corrente é a liderada pelo alemão Konrad Hesse (apud Novelino, p. 88-89), caracterizada pelo pensamento no sentido normativo. Ele assim se expressa: [...] ao contrário da tese defendida por LASSALE, nem sempre os fatores reais do poder prevalecem sobre a Constituição normativa, 65 por esta não ser necessariamente a parte mais fraca da relação. Admitir que “as normas constitucionais nada mais expressam do que relações fáticas altamente mutáveis” [...] seria reconhecer que o direito constitucional tem apenas a miserável função, indigna de qualquer ciência de comentar os fatos políticos e justificar as relações de poder dominantes. [...] A Constituição configura não só uma expressão do ser, mas também do dever-ser. Mais que um simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, a Constituição possui uma força normativa capaz de imprimir ordem e conformação à realidade política e social. A Constituição real e a Constituição jurídica estão em relação de coordenação, condicionando-se mutuamente, embora não dependam, pura e simplesmente, uma da outra. (Grifos e negrito no original). Foram mencionadas diversas concepções acerca da Constituição. Isto não significa dizer que elas sejam contrárias entre si, mas sim que são complementares. Considerando isso, surge então a concepção culturalista, afirmando que a Constituição possui diversos fundamentos e é resultado de um fato cultural. Esta concepção leva à criação do conceito de Constituição Total, elaborado por J. H. Meirelles Teixeira (apud Lenza, 2009, p. 29), segundo o qual a Constituição “apresenta na sua complexidade intrínseca, aspectos econômicos, sociológicos, jurídicos e filosóficos, a fim de abranger o seu conceito em uma perspectiva unitária”. Assim, de acordo com este conceito: As Constituições positivas são um conjunto de normas fundamentais, condicionadas pela Cultura total, e ao mesmo tempo condicionantes desta, emanadas da vontade existencial da unidade política, e reguladoras da existência, estrutura e fins do Estado e do modo de exercício e limites do poder político. (TEIXEIRA, apud LENZA, 2009, p. 29) Por mais que tenham sido elencados diversos conceitos de Constituição e que eles destoem entre si em um ou outro aspecto, é possível inferir que todas as concepções trazem implícito o conceito de supremacia constitucional, seja porque a consideram como “a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação” (concepção sociológica); por ser ela a “decisão política fundamental” (concepção política); por ser a “norma fundamental hipotética” ou a “norma positiva suprema” (dois sentidos da Constituição na concepção jurídica); ou por possuir uma “força normativa capaz de imprimir ordem e conformação à realidade política e social” 66 (concepção normativa); ou por, finalmente, a definirem como “um conjunto de normas fundamentais”, sendo resultado de um fato cultural (concepção culturalista). Dentre todos estes posicionamentos apresentados, o que mais influenciou o mundo jurídico foi o de Hans Kelsen, segundo o qual se enxerga a Constituição jurídicopositiva como a norma positiva suprema, que regula a criação de outras normas. Daí surge a ideia de escalonamento de normas, assim definida por Lenza (2009, p. 27): Uma norma, de hierarquia inferior, busca o seu fundamento de validade na norma superior e esta, na seguinte, até chegar à Constituição, que é o fundamento de validade de todo o sistema infraconstitucional. A constituição, por seu turno, tem o seu fundamento de validade na norma hipotética fundamental, situado no plano lógico, e não no jurídico, caracterizando-se como fundamento de validade de todo o sistema, determinando-se a obediência a tudo o que for posto pelo Poder Constituinte Originário. Grifos do autor. Nesta verticalidade hierárquica herdada do modo de pensar kelseniano, portanto, é a Constituição que ocupa o ponto mais alto da “pirâmide”. É ela o parâmetro a ser seguido por todos os demais atos e comandos legislativos. Caso não haja essa observância pela norma inferior ao princípio da supremacia da Constituição, tem-se a ocorrência de inconstitucionalidade, o que é aferido por meio do controle de constitucionalidade, conforme se passa a analisar. 4.1 DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE Em breves linhas, deve-se ressaltar que a Constituição Federal de 1988 é a lei fundamental e suprema da República Federativa do Brasil. Consequentemente, ela é o parâmetro a ser seguido tanto pelas normas editadas pelo Poder Público, como pelos atos por ele praticados. Caso não haja conformidade entre estes e os ditames da Lei Maior, incorre-se em inconstitucionalidade, que pode ser tanto por ato comissivo, quanto omissivo. No dizer de José Afonso da Silva (2007, p. 47), a inconstitucionalidade por ação: 67 Ocorre com a produção de atos legislativos ou administrativos que contrariem normas ou princípios da constituição. O fundamento desta inconstitucionalidade está no fato de que do princípio da supremacia da constituição resulta o da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a constituição. As que não forem compatíveis com ela serão inválidas, pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam como fundamento de validade das inferiores. Grifos no original. Já a inconstitucionalidade por omissão é verificada, ainda segundo José Afonso da Silva (2007, p. 47): nos casos em que não sejam praticados atos legislativos ou administrativos requeridos para tornar plenamente aplicáveis normas constitucionais. Muitas destas, de fato, requerem uma lei ou providência administrativa ulterior para que os direitos ou situações nelas previstos se efetivem na prática. Lenza (2009,p. 160) prefere caracterizar a inconstitucionalidade por omissão como “decorrente da inércia legislativa na regulamentação de normas constitucionais de eficácia limitada”. A depender da norma constitucional atingida, Novelino (2012, p. 241) esclarece que a inconstitucionalidade pode ser formal ou material. Segundo ele, a primeira ocorre “com a violação, por parte do Poder Público, de uma norma constitucional que estabelece a forma de elaboração de um determinado ato”. Divide-se em subjetiva (caso a norma tenha sido originada de autoridade incompetente) e objetiva (quando a autoridade é competente, mas o ato é elaborado de maneira contrária às formalidades e procedimentos determinados na Constituição). A fim de defender a Constituição de possíveis afrontas aos seus preceitos, sejam estas formais ou materiais, foi criado o Controle de Constitucionalidade, que segundo Bittencourt (apud Pena, 2012?), é a “verificação da compatibilidade de uma lei ou ato normativo com a Constituição, bem como a busca pela eficácia plena aos 68 dispositivos constitucionais, tendo em vista a possibilidade de inconstitucionalidade por omissão”. O referido controle pode ser preventivo ou repressivo. Em ambos os casos, pode ser realizado por qualquer dos Três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Para ser preventivo, o controle de constitucionalidade deve se dar antes da promulgação da norma, com o fulcro de evitar que esta viole de alguma forma a Constituição. No Poder Legislativo, deve ser realizado pelas Comissões de Constituição, Justiça e Cidadania. Pelo Executivo, o controle ocorre por meio do veto jurídico, caso o Presidente considere o projeto de lei inconstitucional. Já o controle feito pelo Poder Judiciário, segundo Novelino (2012, p. 245), ocorre “apenas no caso de impetração de mandado de segurança por Parlamentar questionando a inobservância do processo legislativo constitucional”. (Negrito no original.) Caso não tenha sido efetuado o controle preventivo e a norma inconstitucional tenha adentrado no ordenamento jurídico, nada impede que seja efetuado o controle posterior ou repressivo, o qual, segundo Lenza (2009, p. 170), “será realizado sobre a lei e não mais sobre o projeto de lei, como ocorre no controle preventivo”. Conforme leciona José Afonso da Silva (2007, p. 49), há três tipos de controle de constitucionalidade: político, jurisdicional e híbrido (ou misto). O político “entrega a verificação da inconstitucionalidade a órgãos de natureza política, tais como: o próprio Poder Legislativo, solução predominante na Europa no século passado”. O jurisdicional, que é o mais comum, “é a faculdade que as constituições outorgam ao Poder Judiciário de declarar a inconstitucionalidade de lei e de outros atos do Poder Público que contrariem, formal ou materialmente, preceitos ou princípios constitucionais”. Já o misto “realiza-se quando a constituição submete certas características de leis ao controle político e outras ao controle jurisdicional”. O sistema adotado no Brasil é o jurisdicional, uma vez que o controle, em regra, é feito pelo Poder Judiciário, apesar de também poder ser realizado pelo Executivo e pelo Legislativo. Quanto à competência, o controle de constitucionalidade poderá ser difuso ou concentrado. 69 Segundo Lenza (2009, p. 176), “o sistema difuso de controle significa a possibilidade de qualquer juiz ou tribunal, observadas as regras de competência, realizar o controle de constitucionalidade”. Novelino (2012, p. 253-254) lembra que sua origem histórica reside no voto proferido pelo Chefe de Justiça da Suprema Corte norteamericana John Marshall, “na decisão mais conhecida da história constitucional: o célebre caso Marbury vs. Madison (1803)”. [Grifos do autor]. Foi ao analisar este caso que pela primeira vez a Suprema Corte “decidiu que, havendo conflito entre a aplicação de uma lei em um caso concreto e a Constituição, deve prevalecer a Constituição, por ser hierarquicamente superior“. (LENZA, 2009, p. 178). O autor chama ainda este tipo de “controle pela via de exceção ou defesa, ou controle aberto”. É realizado em um caso concreto por qualquer juízo ou tribunal (desde que obedecidas às regras de competência processual) e “a declaração de inconstitucionalidade dá-se de forma incidental (incidenter tantum), prejudicialmente ao exame do mérito”. (LENZA, 2009, p. 178). Em regra, os efeitos produzidos pela decisão judicial (assim como ocorre com as sentenças de modo geral) são válidos apenas entre as partes (inter partes), para não extrapolar os limites da demanda. A decisão que declara a inconstitucionalidade produz efeitos retroativos (ex tunc), atingindo a lei desde a sua gênese e tornando-a nula de pleno direito. Lenza (2009, p. 181) alerta que “contudo, o STF já entendeu que, mesmo no controle difuso, poder-se-á dar efeito ex nunc ou pro futuro.”. Grifos do autor. É possível, ainda, que nas hipóteses constitucionalmente previstas, a questão seja levada ao conhecimento do STF através da interposição de recurso extraordinário. Nestes casos, pontua Lenza (2009, p. 182): Declarada inconstitucional a lei pelo STF, no controle difuso, desde que tal decisão seja definitiva e deliberada pela maioria absoluta do pleno do tribunal (art. 97 da CF/88), o art. 178 do Regimento Interno do STF (RISTF) estabelece que será feita a comunicação, logo após a decisão, à autoridade ou órgão interessado, bem como, depois do trânsito em julgado, para os efeitos do art. 52, X, da CF/88. 70 Assim, em conformidade com o que determina o art. 52, X, da CF/88, o Senado Federal deverá, em obediência à sua competência privativa, suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Já o controle concentrado (ou reservado) “é exercido apenas por um determinado órgão judicial” (NOVELINO, 2012, p. 254). Trata-se, no dizer de LENZA (2009, p. 176), “de competência originária do referido órgão”. O objetivo desta forma de controle, segundo Lenza (2009, p. 191), é a “declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo impugnado. O que se busca saber, portanto, é se a lei (lato sensu) é inconstitucional ou não, manifestando-se o Judiciário de forma específica sobre o aludido objeto”. Assim, espera-se que com a declaração de inconstitucionalidade a lei ou o ato normativo maculados formal ou materialmente sejam retirados do mundo jurídico, por meio da invalidação. Segundo Lenza (2009, p. 190), o controle concentrado pode ser realizado por miio dos seguintes instrumentos: ADI (ação direta de inconstitucionalidade) genérica, prevista no art. 102, I, “a”; ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) – art. 102, § 1º; ADO (ação direta de inconstitucionalidade por omissão) – art. 103, § 2º; ADI interventiva – art. 36, III (com modificações introduzidas pela EC nº 45/2004) e pela ADC (ação declaratória de constitucionalidade) – art. 102, I, “a”, e as alterações introduzidas pelas ECs nº 3/93 e 45/2004. Quanto à perspectiva do ponto de vista forma, Lenza (2009, p. 176) afirma que o controle pode ser realizado pela via incidental (via de exceção ou de defesa, mediante a análise do caso concreto), quando será então “exercido como questão prejudicial e premissa lógica do pedido principal, ou pela via principal (abstrata ou pela “via de ação”), caso em que a “análise da constitucionalidade da lei será o objeto principal, autônomo e exclusivo da causa”. O autor acrescenta ainda que em regra, o sistema concentrado é exercido pela via principal, ao passo que o difuso o é pela via incidental. 71 Feitas essas observações acerca da Constituição, seu conceito e objeto e formas de controle de constitucionalidade, passa-se a analisar a usucapião familiar, com o fim de se apresentar as suas possíveis desconformidades com o Texto Maior, a ensejarem a ocorrência de inconstitucionalidades. 4.2 DOS ASPECTOS INCONSTITUCIONAIS DA USUCAPIÃO FAMILIAR Como anteriormente salientado, a inconstitucionalidade pode ser tanto formal quanto material. Por esse motivo, dividiu-se esta análise nas duas categorias. 4.2.1 Da ocorrência de inconstitucionalidade formal A modalidade de usucapião em estudo, como já salientado no decorrer do presente trabalho, originou-se da conversão em lei da Medida Provisória (MP) nº 514/2010, que de acordo com informações obtidas no site da Presidência, foi enviada ao Congresso Nacional em 01 de dezembro do corrente ano. O objetivo desta MP era realizar alterações na Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, as Leis nº 10.188, de 12 de fevereiro de 2001, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 6.766, de 19 de dezembro de 1979, e 4.591, de 16 de dezembro de 1964, além de dar outras providências. Quando foi apresentada, a MP possuía nove artigos e não fazia menção alguma a alterações no Código Civil de 2002. Em 02 de março de 2011, ocorreu a prorrogação da Medida Provisória por mais sessenta dias pelo Presidente da Mesa do Congresso Nacional, o Senador José Sarney. Foi durante a sua tramitação que a MP sofreu alteração parcial em seu conteúdo. No Congresso Nacional, foi relatada pelo Deputado André Vargas, que defendeu a ideia de fortalecimento das mulheres como chefes de família através do Programa Minha Casa Minha Vida. Em suas palavras: 72 O Minha Casa, Minha Vida tem como prioridade as mulheres. Vamos possibilitar a assinatura de convênio pelas mulheres, é o chamado usucapião pró-familiar, que pode ser usado quando o cônjuge não estiver mais no lar, possibilitando a resolução da posse. O projeto de conversão em lei (PLV) nº 10/2011 foi aprovado nas duas Casas e posteriormente sancionado pela Presidente. Na Câmara, a aprovação se deu no dia 27 de abril de 2011, e no Senado, em 10 de maio de 2011. A sanção presidencial ocorreu no dia 16 de junho de 2011, procedendo-se à conversão da MP na Lei nº 12.424/11, que contava então com treze artigos. Foi vetado o parágrafo segundo do art. 1.240-A, cuja redação era a seguinte: § 2º No registro do título do direito previsto no caput, sendo o autor da ação considerado hipossuficiente, sobre os emolumentos do registrador não incidirão se nem serão acrescidos a qualquer título taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência, fundo de custeio de atos gratuitos, fundos especiais do Tribunal de Justiça, bem como de associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer título ou denominação. Tal dispositivo foi vetado em razão de sua violação ao pacto federativo ao interferir na competência tributária dos Estados, extrapolando o disposto no § 2º do art. 236 da Constituição. Neste ponto, é interessante ressaltar que no momento em que haveria violação constitucional em relação a interesses financeiros, como é o caso da competência tributária dos entes federativos, houve o veto presidencial. O mesmo não se deu em relação ao caput do artigo, que inseriu no ordenamento jurídico esta nova modalidade de usucapião por meio de Medida Provisória sem serem preenchidos os requisitos de relevância e urgência característicos da espécie, conforme se passa a analisar. 73 4.2.1.1 Dos requisitos de relevância e urgência da Medida Provisória nº 514/2010 A Medida Provisória é a espécie legislativa prevista no art. 62 da Carta Magna, por meio da qual o Presidente da República, em casos de relevância e urgência, poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. Se ela não for aprovada no prazo previsto (sessenta dias prorrogáveis uma única vez por igual período), perde a sua eficácia desde a sua edição. Por ser espécie extraordinária, no dizer de Mendes; Coelho e Branco (2010, p. 1.014-1.015), “Para que se legitime a edição da medida provisória, há de estar configurada uma situação em que a demora na produção da norma possa acarretar dano de difícil ou impossível reparação para o interesse público”. Por oportuno, convém colacionar o seguinte aresto: O que justifica a edição de medidas provisórias, com força de lei, em nosso direito constitucional, é a existência de um estado de necessidade, que impõe ao Poder Público a adoção imediata de providências, de caráter legislativo, inalcançáveis segundo as regras ordinárias de legiferação, em face do próprio periculum in mora que fatalmente decorreria do atraso na concretização da prestação legislativa. (Min Celso de Mello ADI-MC 293, DJ de 16-04-1993) [Grifos no original]. Quanto à apreciação da ocorrência dos pressupostos da urgência e relevância, assim se manifestam os autores supra (2010, p. 1.015): Esses dois pressupostos estão submetidos à apreciação política do Presidente da República, que goza de larga margem de apreciação sobre a sua ocorrência. O juízo do Presidente da República, porém, está sujeito ao escrutínio do Congresso Nacional, que deve rejeitar a medida provisória se vier a entendê-la irrelevante ou não urgente. No § 5º do art. 62 da Lei Maior está estabelecido que, antes de decidir sobre o mérito da medida provisória – vale dizer, antes de o Poder 74 Legislativo anuir ou não à disciplina constante do texto da medida provisória –, o Congresso deverá analisar os seus pressupostos constitucionais, entre os quais se contam os requisitos da urgência e da relevância. Segundo o item nº 15 da Exposição de Motivos da proposta de edição de Medida Provisória, os requisitos de urgência e relevância no que tange ao PMCMV repousam na “necessidade de oferecer imediata continuidade, com os devidos aperfeiçoamentos, de Programa que já se demonstrou altamente capaz de manter o crescimento econômico, a geração de empregos e renda e a redução do déficit habitacional”. De fato, baseando-se em tal argumentação, é possível visualizar o preenchimento dos pressupostos necessários à edição da Medida Provisória pelo chefe do Poder Executivo. Entretanto, também é fácil perceber que na referida exposição de motivos não há qualquer menção à necessidade de se instituir por meio de MP uma nova modalidade de usucapião. E isto porque, como já ressaltado, a inserção do art.1.240-A não fazia parte da redação original da Medida Provisória nº 514. Interessante é a observação feita por Freitas: [...] tal artigo não fora incluso na explicação da ementa da norma, pois, como pode se vislumbrar no Projeto de Conversão de Lei nº 10/2011, a exposição de motivos constante, é a transcrição literal da mesma exposição de motivos da MP 514/2010, tanto que a expressão “medida provisória” sequer foi alterada na [sic] teor da explicação da ementa da nova lei, tampouco, houve comentário aos artigos não existentes na dita Medida Provisória, como o art. 9º, que inclui o art. 1.240-A no Código Civil. (2011, p.1) Onde repousariam, então, a urgência e a relevância da alteração do Código Civil para permitir que os ex-cônjuges ou ex-companheiros adquirissem por meio da usucapião familiar a quota-parte do imóvel pertencente ao seu ex-consorte, baseando-se tão somente no abandono do lar por este pelo prazo de dois anos? Haveria, porventura, algum dano de difícil ou impossível reparação à população se a matéria houvesse sido apresentada sob a forma de projeto de lei e 75 consequentemente submetida ao rito procedimental das leis ordinárias, propiciando assim o necessário debate acerca do tema? Por certo, não se vislumbra o preenchimento dos requisitos necessários, bem como não haveria prejuízo algum em se esperar a futura edição de lei ordinária. Em uma análise mais extremada, até se ousaria afirmar que provavelmente após uma série de debates e ouvida a opinião doutrinária, este absurdo jurídico dificilmente teria prosperado e integrado a legislação pátria, ou, se aprovado, certamente teria sanado a maior parte dos equívocos apresentados. Doutra sorte, ainda que se queira defender a presença de relevância na medida, porque se propõe a resolver questões fundiárias que em sua maioria afetam a população de baixa renda, é inegável que não há urgência alguma em torno do tema, principalmente porque há outras formas de solucionar a celeuma em torno do bem imóvel de propriedade comum do ex-casal. Como exemplo disso, cite-se a concessão do direito de uso e habitação ou até mesmo, esperar pelo lapso temporal para consumação da usucapião especial urbana individual, levando-se em consideração a limitação da dimensão territorial até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados). Outro aspecto que merece atenção é que além de não ter preenchido os requisitos de urgência e relevância da medida (ou ao menos o de urgência), é fato que a norma se torna igualmente inconstitucional pela sua afronta ao art. 59 da CF/88, in verbis: Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: I – emendas à Constituição; II – leis complementares; III – leis ordinárias; IV – leis delegadas; V – medidas provisórias; VI – decretos legislativos; VII – resoluções. 76 Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. O referido artigo foi regulamentado pela Lei Complementar (LC) nº 95/98, que “dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona”. Além das leis, as MPs também devem observância ao quanto disposto nesta norma. Para esclarecimento, convém citar o disposto no art. 7º da LC nº 95/98, que assim determina: Art. 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; (Original sem grifos). Da leitura do art. 1º da Lei 12.224/2011, pode-se visualizar o objetivo do PMCMV, que é o de “criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais)”. O referido programa possui ainda dois subprogramas: o Programa Nacional de Habitação Urbana - PNHU e o Programa Nacional de Habitação Rural – PNHR, cujos objetivos são, respectivamente, “promover a produção ou aquisição de novas unidades habitacionais ou a requalificação de imóveis urbanos” e “subsidiar a produção ou reforma de imóveis aos agricultores familiares e trabalhadores rurais, por intermédio de operações de repasse de recursos do orçamento geral da União ou de financiamento habitacional com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS”. Ora, torna-se evidente, então, que não há nenhuma pertinência temática entre os assuntos objeto da MP 514/2010 (convertida na Lei 12.224/11) e a inserção da nova 77 modalidade de usucapião por intermédio do acréscimo do art. 1.240-A ao Código Civil. Além disso, não há fundamento constitucional para se conectar relações de direito pessoal com relações de direito real e programas sociais que têm natureza híbrida. E uma vez que falta afinidade entre os temas, eles não se conectam, sob pena de incorrer em sofisma jurídico. Inegável, pois, a ocorrência de inconstitucionalidade formal objetiva pela não observância ao devido processo legislativo que rege a Medida Provisória. Mais interessante ainda é que além de ter sido realizada essa alteração na legislação da forma incorreta, não se atentou para o fato de que o referido programa contempla os imóveis situados tanto na zona urbana como na rural, ao passo que a usucapião familiar apenas alcança os imóveis urbanos. Teria, por acaso, o legislador afrontado o princípio constitucional da isonomia? É o que se passa a analisar agora. 4.2.2 Da ocorrência de inconstitucionalidade material A inovadora modalidade de usucapião inserida no art. 1.240-A do CC/2002 alcança apenas os imóveis situados em área urbana. Relembrando as palavras do Deputado André Vargas, tem-se que o objetivo do instituto era o de “fortalecimento das mulheres como chefes de família através do Programa Minha Casa Minha Vida”. Entretanto, surgem as seguintes questões: Porventura só as mulheres residentes em zona urbana ocupam a chefia do lar? Por quais motivos teria o legislador renegado ao esquecimento as moradoras da zona rural? E isto para não dizer que a argumentação do Deputado se torna novamente inválida, na medida em que o instituto não prevê a concessão da titularidade do domínio apenas às mulheres, mas sim àquele ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonar o lar, independentemente do sexo. E de modo diverso não poderia ser sob pena de afrontar o inciso I do art. 5º da Carta da República, cuja previsão expressa é no sentido de garantir o gozo de direitos e o exercício regular de obrigações indistintamente entre os sexos. Resta clara, pois, a afronta ao princípio constitucional da isonomia, previsto no art. 5º, caput, in verbis: 78 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...] Para Novelino (2012, p. 494), “[...] as ideias de liberdade e igualdade se erigem em valores jurídicos fundamentais, imprescindíveis ao pleno desenvolvimento da personalidade e à concretização do princípio da dignidade humana”. [Grifos no original]. Afirma ainda o autor (2012, p. 494) que o princípio da isonomia “tem por fim impedir distinções, discriminações e privilégios arbitrários, preconceituosos, odiosos ou injustificáveis”. Alguns doutrinadores diferenciam a “igualdade perante a lei” da “igualdade diante da lei”. A esse respeito, convém mencionar a opinião de José Afonso da Silva (2007, p. 215): No Direito Estrangeiro, faz-se distinção entre o princípio da igualdade perante a lei e o da igualdade na lei. Aquele corresponde à obrigação de aplicar as normas jurídicas gerais aos casos concretos, na conformidade com o que elas estabelecem, mesmo se delas resultar uma discriminação, o que caracteriza a isonomia puramente formal, enquanto a igualdade na lei exige que, nas normas jurídicas, não haja distinções que não sejam autorizadas pela própria constituição. Enfim, segundo essa teoria, a igualdade perante a lei seria uma exigência feita a todos aqueles que aplicam as normas jurídicas gerais aos casos concretos, ao passo que a igualdade na lei seria uma exigência dirigida tanto àqueles que criam as normas jurídicas gerais como àqueles que as aplicam aos casos concretos. Entre nós, essa distinção é desnecessária, porque a doutrina como a jurisprudência já firmaram, há muito, a orientação de que a igualdade perante a lei tem o sentido que, no exterior, se dá à expressão igualdade na lei, ou seja: o princípio tem como destinatários tanto o legislador como os aplicadores da lei. Grifos no original. Como visto, o princípio da igualdade deve ser observado tanto pelos legisladores como pelas autoridades responsáveis pela aplicação da lei ao caso concreto. 79 Entretanto, não basta que se busque a igualdade puramente formal, tratando a todos de uma só forma, pois como asseverado por Boaventura de Souza Santos (apud Novelino, 2012, p. 499), “temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. Necessária, pois, é a busca pela igualdade material, inspirada na lição de Aristóteles de “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades”. Para José Afonso da Silva (2007, p. 213), no entanto, este conceito se referia à igualdade formal, à medida que, para Aristóteles, “não seria injusto tratar diferentemente o escravo e seu proprietário; sê-lo-ia, porém, se os escravos, ou seus senhores, entre si, fossem tratados desigualmente”. Não é novidade que o Brasil é um país extremamente marcado pelas desigualdades sociais. Justamente por isso, o legislador constituinte originário elencou como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais. Parece, entretanto, que tais objetivos não foram levados em conta quando da edição da usucapião familiar, que distinguiu de maneira desarrazoada os ex-consortes simplesmente levando em consideração o local do seu domicílio, se urbano ou rural. Por esse motivo, assim se manifestam Pinheiro e Cavalheiro (2011): No requisito imóvel exclusivamente urbano, detecta-se uma ofensa ao princípio da isonomia, segundo parte da doutrina, pois a localização do domicílio da pessoa não poderia ser causa de um tratamento diferenciado, já que é nas zonas rurais que, por vezes, encontram-se os maiores índices de baixa escolaridade e baixa renda, que refletem diretamente no direito à moradia. Luciana Santos Silva (2012) igualmente demonstra a sua indignação com o instituto: A localização do domicílio de uma pessoa não é critério justificativo para tratamento diferenciado. Segundo Mello (2007:21), o fator utilizado pela lei como critério discriminatório deve guardar uma justificativa racional e jurídica ao mesmo tempo. Nesse sentido, os efeitos do abandono são os mesmos, independente da localização do imóvel em que ficou residindo o 80 abandonado. Quiçá não sejam mais gravosos na zona rural, na qual as relações sociais mais próximas favorecem que a pecha de abandonado passe a integrar de forma pejorativa a identidade social do que permaneceu no imóvel. Além disso, no Brasil, os índices de baixa escolaridade e alta pobreza são mais acentuados na zona rural, gerando entraves ao acesso à Justiça e a efetivação de direitos. Em sentido contrário, convém mencionar o pensamento de Simão: Apenas o imóvel urbano pode ser objeto da usucapião familiar. É a moradia e não o trabalho que se privilegia. Por isto o artigo 1.240-A surge em sede de regulamentação do programa do Governo Federal “Minha casa, Minha vida”. Assim, não há regra análoga ao art. 191 da Constituição com relação à usucapião de imóvel rural, qual seja, a usucapião pro labore. Não se trata de dar terra a quem não tem. (SIMÃO, José Fernando Usucapião familiar: problema ou solução? Disponível em: <http://www.professorsimao.com.br/artigos_simao_cf0711.html>. Acesso em 30-out. 2013). Não parece acertado este último posicionamento. Por mais que na usucapião especial urbana haja a valorização da posse-trabalho, - como se não houvesse a possibilidade de se identifica-la no âmbito rural! -, é certo que a propriedade rural não é apenas o local do labor cotidiano, como também serve de moradia aos possuidores. Por quais motivos, então, deveria se considerar que não há plausibilidade em igualmente conceder aos ex-consortes abandonados na zona rural a titularidade do domínio da pequena propriedade em que trabalham e vivem? Preferível é o posicionamento adotado pelas autores supra, que reconhecem a afronta infundada ao princípio da isonomia pelo simples critério da localização do imóvel. Ora, se uma pessoa está sendo abandonada por aquele que outrora foi o “grande amor da sua vida”, os reflexos psicológicos e patrimoniais de tal rejeição não levarão em conta o local, se em solo urbano ou rural. Ou, como argumenta Luciana Santos Silva, podem até ser mais gravosos na área urbana, até mesmo pelas diferenças culturais porventura existentes e pelo modo de pensamento mais tradicional que ainda impera na maior parte da zona rural do país. 81 Não se vislumbra, portanto, motivos que justifiquem o fato de o legislador não ter se preocupado, no dizer de Elpídio Donizetti: [...] com a sorte de quem foi abandonado num casebre na zona rural. Essa pessoa, abandonada pela sorte e pelo cônjuge, também o foi pelo legislador, que não se dignou em lhe conferir a prerrogativa de aquisição da pequena área de terras onde mora. Dois pesos e duas medidas. (DONIZETTI, Elpídio. Um consolo para o abandonado: usucapião do lar desfeito. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3029, 17 out. 2011 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/20227>. Acesso em: 30 out. 2013.) Como se não bastasse esse flagrante desrespeito aos moradores da zona rural, outra afronta à isonomia foi apontada por Marcos Ehrhardt Júnior, traduzida no seguinte questionamento: “O separado de fato terá mais vantagens do que aquele que ainda vive com sua família?”. Isso porque, no seu entender: [...] o solteiro ou aquele que vive com sua família (não importa se regularmente casado ou vivendo em união estável) necessita de posse por cinco anos ininterruptos e sem oposição para adquirir a propriedade de imóvel que já lhe serve de moradia. Parece que é mais interessante um dos integrantes da entidade familiar abandonar o lar, pois, neste caso, o prazo de cinco anos é reduzido para dois anos. Temos aqui um desafio para a isonomia, incluindo nessa reflexão os casais do mesmo sexo que vivem em união estável. (JÚNIOR. Marcos Ehrhardt. Temos um novo tipo de usucapião criado pela lei 12.424 – problema à vista. Disponível em <http://www.marcosehrhardt.adv.br/index.php/blog/2011/06/24/temos -um-novo-tipo-de-usucapiao-criado-pela-lei-1242411-problemas-avista>. Acesso em 30 out. 2013.) É curioso que mesmo depois de decorridos vinte e cinco anos da promulgação da Carta Magna, os legisladores ainda não conseguiram assimilar o seu conteúdo. Não raras vezes, os doutrinadores e a população de modo geral são surpreendidos com a criação e inserção no mundo jurídico de normas produzidas sem a observância dos requisitos constitucionais, seja no seu processo legislativo, ou em suas matérias. 82 Percebe-se, portanto, que o instituto ora vergastado padece de inconstitucionalidade material por fazer desarrazoada distinção entre moradores da zona urbana e da zona rural (que não foram contemplados com a possibilidade de usucapião familiar), bem como por privilegiar aquela pessoa separada de fato e “abandonada” pelo seu ex-consorte, que deverá esperar pelo exíguo lapso temporal de dois anos para fazer jus à usucapião familiar (desde que preenchidos todos os requisitos exigidos), em detrimento dos solteiros e dos que ainda vivem no seio familiar (os quais, para adquirir o imóvel de um terceiro por usucapião devem esperar o transcurso de cinco anos, desde que igualmente atendidas as exigências legais). Claramente demonstrada está a afronta ao princípio constitucionalmente tutelado da isonomia. Além disso, por ter sido indevidamente inserida a usucapião familiar na Medida Provisória nº 514/2010 durante a sua tramitação (mesmo sem o preenchimento dos requisitos específicos da MP – urgência e relevância –), igualmente não se obedeceu ao que fora disposto na Lei Complementar nº 95/98, que regulamenta o art. 59 da CF/88, determinando em seu art. 7º, I e II, que cada lei tratará de um único objeto e não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão. Inegável é que assim como anteriormente salientado, a norma padece de vício formal objetivo, pela não observância aos princípios constitucionais que regem o seu processo legislativo de elaboração. 83 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, observa-se que desde o seu surgimento até os dias atuais, a usucapião tem passado por diversas mudanças, tudo no intuito de acompanhar o desenvolvimento social do local em que é aplicada. Dentre as diversas modalidades de usucapião existentes, o que se percebe é que o objetivo delas é o de privilegiar aquela pessoa que deu destinação útil ao bem, seja por ter fixado nele a sua moradia ou de sua família, por ter tornado a propriedade produtiva, ou simplesmente porque fez com que ela obedecesse à sua função social constitucionalmente prevista. Entretanto, nem sempre a atuação do legislador produz resultados satisfatórios. Outra coisa não se pode dizer a respeito da usucapião especial urbana por abandono do lar conjugal, que apesar de ser recente, já coleciona um grande número de críticas por parte da doutrina. Esta polêmica modalidade assemelha-se à usucapião especial urbana individual, mas trouxe alguns requisitos novos. Previu que o imóvel a ser usucapido deve ser de propriedade comum do casal e que após o decurso de dois anos do abandono do lar por parte de um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros, aquele que permaneceu no imóvel adquirirá por usucapião a quota-parte pertencente ao seu ex-consorte. Como ficou demonstrado no presente trabalho, o requisito de abandono do lar trouxe consigo a discussão da culpa, que já estava sepultada desde o advento da Emenda Constitucional nº 66/2010. Consequentemente, tomou-se o rumo contrário ao que a boa doutrina vinha defendendo, restaurando a patrimonialização do direito de família. Por conta disso, mais uma vez, os cônjuges terão que expor em juízo a sua intimidade e vida privada, a fim de que o magistrado possa identificar no caso concreto quem foi o “culpado” pelo fim da relação, a fim de verificar se foi configurado ou não o nefasto abandono do lar. Além disso, comprovou-se que por não ter obedecido aos requisitos necessários à 84 conversão em lei da Medida Provisória nº 514/2010, nem ao disposto na Lei Complementar nº 95/98 que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, bem como pela violação ao princípio constitucional da isonomia, padece a referida lei de inconstitucionalidades formais e materiais. Infelizmente, o controle prévio de constitucionalidade não foi realizado pelas comissões de constituição, justiça e cidadania do Congresso Nacional, nem pela Presidência quando do veto à Lei 12.424/11 (exceto em relação ao parágrafo segundo, por considerar a existência de violação ao pacto federativo ao interferir na competência tributária dos Estados, extrapolando o disposto no § 2º do art. 236 da Constituição), nem tampouco pelo Poder Judiciário. Dessa forma, resta então aguardar que seja exercido o controle repressivo por qualquer um desses três Poderes, ou que algum particular interponha recurso extraordinário, já que qualquer pessoa, no caso concreto, que seja ré numa ação de usucapião familiar poderá arguir a inconstitucionalidade do dispositivo, levando a decisão para o Supremo Tribunal Federal, já que nenhum dos legitimados propôs ADIN. Assim, após o devido controle de constitucionalidade, espera-se que esta norma flagrantemente eivada de inconstitucionalidade formal objetiva e material seja retirada do mundo jurídico, a fim de preservar a Supremacia Constitucional. 85 REFERÊNCIAS ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário jurídico Acquaviva / Marcus Cláudio Acquaviva. – 3. ed. atual. e ampl. – São Paulo: Rideel, 2009. AMORIM, Ricardo Henriques Pereira. Primeiras impressões sobre a usucapião especial urbana familiar e suas implicações no Direito de Família. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2948, 28 jul. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/19659>. Acesso em: 30 out. 2013. ARAÚJO, Fabio Caldas de. Usucapião. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em 10 set 2013. _______, Decreto nº 22.785, de 31 de maio de 1933. Véda [sic] o resgate dos aforamentos de terrenos pertencentes no domínio da União e dá outras providências. Disponível em: <http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/116698/decreto-22785-33> Acesso em 15 set 2013. _______, Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946. Dispõe sobre [sic] os bens imóveis da União e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del9760compilado.htm> Acesso em 10 set 2013. _______, Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm> Acesso em 15 set 2013. _______, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> Acesso em 10 set 2013. _______, Lei nº 12.424, de 16 de junho de 2011. Altera a lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, as Leis nº 10.188, de 12 de fevereiro de 2001, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 4.591, de 16 de dezembro de 1964, 8.212, de 24 de julho de 1991, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil; revoga 86 dispositivos da Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Lei/L12424.htm> Acesso em 10 set 2013. _______, Lei Nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm> Acesso em 10 set 2013. _______, Projetos de leis e outras proposições. Medida Provisória nº 514, de 2010. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=48860 7 > Acesso em 03 de out 2013. _______, Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 340. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagin a=sumula_301_400> Acesso em 18 set 2013. DIAS, Maria Berenice Usucapião e abandono do lar: a volta da culpa? Disponível em: <http://ibdfam.org.br/_img/artigos/Usucapi%C3%A3o%20Maria%20Berenice.pdf> Acesso em 29 ago 2013. _____, Maria Berenice. Manual de direito das famílias / Maria Berenice Dias – 7. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2010. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: Direito das Coisas. V. 4. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. _______, Maria Helena. Manual de direito civil / Maria Helena Diniz. – São Paulo: Saraiva, 2011. DONIZETTI, Elpídio. Um consolo para o abandonado: usucapião do lar desfeito. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3029, 17 out. 2011 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/20227>. Acesso em: 30 out. 2013. FIUZA, César. Direito civil: curso completo / César Fiuza. – 15. ed. 2. Tir., revista, atualizada e ampliada. – Belo Horizonte: Del Rey, 2012, 1216 p. FREITAS, Douglas Philips. Usucapião e direito de família: comentários ao art. 1240-A do Código Civil. Disponível em: <http://www.douglasfreitas.adv.br/pg.php?p=artigos#> Acesso em 30 out 2013. 87 GONÇALVES, Carlos Roberto. 1938- Direito das coisas / Carlos Roberto Gonçalves. – 7. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2006. – Coleção Sinopses jurídicas; v. 3). Jornadas de direito civil I, III, IV e V : enunciados aprovados / coordenador científico Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior.– Brasília : Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-ev-jornada-de-direito-civil/compilacaoenunciadosaprovados1-34jornadadircivilnum.pdf> Acesso em 29 out 2013. JÚNIOR. Marcos Ehrhardt. Temos um novo tipo de usucapião criado pela lei 12.424 – problema à vista. Disponível em <http://www.marcosehrhardt.adv.br/index.php/blog/2011/06/24/temos-um-novo-tipode-usucapiao-criado-pela-lei-1242411-problemas-a-vista>. Acesso em 30 out. 2013. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado / Pedro Lenza – 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo : Saraiva, 2009. MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires & BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. - 5 ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva, 2010. MIRANDA, Pontes de. 1892-1979. Tratado de direito privado/Pontes de Miranda. – Tomo XI – Direito das Coisas: Propriedade. Aquisição da propriedade imobiliária. 4. ed. – São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1983. MOLINA, Fernanda Salem. Usucapião especial urbana por abandono do lar conjugal. 2012, 78 fl. Monografia. (Bacharelado em Direito) - Faculdades Integradas “Antônio Eufrásio de Toledo”, Presidente Prudente, São Paulo. Disponível em: <http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/Juridica/article/viewFile/3063/2825> Acesso em 19 out 2013. NETO, Arnaldo de Lima Borges. A nova usucapião e o abandono do lar. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2948, 28 jul. 2011 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/19661>. Acesso em: 30 out. 2013. 88 NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional / Marcelo Novelino. – 6ª ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2012. PENA, Stephanie Laís Santos. Aspectos inconstitucionais da usucapião familiar. Disponível em: <http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=10202> Acesso em 28 ago 2013. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2010. PINHEIRO, Rosalice Fidalgo; CAVALHEIRO, Joelma Isamáris. Entre o “nó” e o “ninho”: notas sobre a usucapião familiar em face o direito fundamental à moradia. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=ac796a52db3f16bb> Acesso em 28 ago 2013. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007. SILVA, Luciana Santos. Uma Nova Afronta à Carta Constitucional: Usucapião Pró-Família. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/_img/artigos/Usucapi%C3%A3o%20Luciana.pdf> Acesso em 10-set 2013. SIMÃO, José Fernando. Usucapião familiar: problema ou solução? Disponível em: <http://www.professorsimao.com.br/artigos_simao_cf0711.html>. Acesso em 30out. 2013 SIQUEIRA, Heidy Cristina Boaventura. Usucapião especial urbano por abandono de lar: comentários ao artigo 1.240-A do Código Civil Brasileiro. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 28 ago. 2012. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.38492>. Acesso em: 10 set. 2013. TARTUCE, Flávio. A usucapião especial urbana por abandono do lar conjugal. Disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br/index2.php?sec=artigos> Acesso em 10-set 2013. 89 TOLEDO, Roberta Cristina Paganini. A posse-trabalho. 2006, 252 fl. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade Católica. São Paulo – SP. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&c o_obra=32944> Acesso em 07 out 2013. VARGAS, André. Minha Casa, Minha Vida agora prioriza mulheres. Disponível <em: http://www.andrevargas.com.br/noticias/?id=2438> Acesso em 03 nov 2013. VENOSA, Sílvio de Salvo. Código civil interpretado / Sílvio de Salvo Venosa. – 2. ed. – São Paulo: Atlas, 2011.1 _______, Silvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 10. ed. São Paulo: Atlas. 2010. v. 5. VILARDO, Maria Aglaé Tedesco. Usucapião especial e abandono de lar – Usucapião entre ex-casal. Disponível em: <http://www.rkladvocacia.com/arquivos/artigos/art_srt_arquivo20130419164317.pdf> Acesso em 10 set 2013.