Alétheia: Revista de estudos sobre Antigüidade e Medievo, Volume 1, Janeiro a Julho de 2010. ISSN: 1983 - 2087
A REPRESENTAÇÃO DE UMA HISTÓRIA: CRONISTAS PENINSULARES
DA BAIXA IDADE MÉDIA
Rodrigo Barbosa Schiavinato1
Resumo: O seguinte trabalho pretende analisar, na baixa idade média, as crônicas dos
ibéricos Pero Lopez de Ayala e Fernão Lopes para verificar as categorias da História
escrita que empreenderam, apontando particularidades em seus respectivos escritos que
indiquem o que era a História ou crônica para estes escritores, mas sem deixar de
analisar a tradição cultural do meio cortês. Na Península Ibérica as crônicas produzidas
visavam registrar através da escrita os grandes feitos e os grandes exemplos.
Particularmente nas obras dos cronistas aqui analisados, estas atuaram a serviço da
dinastia a qual estavam os escritores inseridos, pois mesmo estes “homens de saber”, ao
estabelecerem compromissos com a “verdade”, empreenderam uma construção histórica
em que as categorias de análise obedeciam ao padrão cultural vigente.
Palavras-chave: crônicas medievais; baixa idade-média; Península Ibérica medieval;
historiografia medieval.
O período analisado neste artigo compreende os séculos XIV e XV na Península
Ibérica, especificamente nos reinos de Portugal e Castela, espaço em que floresceu uma
tradição cronística peculiar, uma maneira particular na escrita da História, concretizada
nos escritos de Pero Lopez de Ayala em Castela no século XIV e Fernão Lopes em
Portugal no século XV. Nossa problemática abarcará os escritos destes cronistas, que
constituem uma fonte narrativa, e a concepção empreendida por ambos acerca da
História escrita que fizeram, analisando como, porque e para quem suas obras foram
produzidas, assim como o circulo cultural e político em que estes historiógrafos estavam
inseridos. Nosso objetivo neste artigo consistirá na análise do modo como Lopes, assim
como Ayala, articularam suas Histórias, a concepção que ambos os cronistas possuíam
daquilo que escreveram. Ou seja, o que era a História para estes escritores que seguiram
uma mesma tradição de um gênero que assumiu feições particulares nos reinos de
Portugal e Castela.
Segundo José Mattoso, o primeiro preceito para se analisar uma fonte narrativa
está no diálogo e na ultrapassagem entre as particularidades históricas dos personagens
abarcados e os conceitos gerais utilizados nas obras. Uma fonte narrativa consistirá
1
Mestrando em História pela UFPR, na linha de pesquisa “Cultura e Poder”, integrante do grupo de
pesquisa NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos); Orientando da Professora Doutora Marcella
Lopes Guimarães; Bolsista da Capes.
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sempre em uma construção. Portanto, analisar princípios universais pode ajudar na
compreensão do autor e do grupo social e cultural a que pertence. Mattoso enuncia que
para se analisar as condições de produção destes documentos, é preciso estabelecer a
finalidade que levou o autor a escrever e as idéias e os processos mentais que o mesmo
utilizou para alcançar seus objetivos. Dentre estas idéias, necessário se faz procurar
diferenciar aquelas pertencentes ao meio cultural do autor, ao qual estará representado o
público a quem a obra é destinada, e aquelas pertencentes ao seu próprio pensamento.2
Para João Gouveia Monteiro, a fonte narrativa deve ser abarcada primeiramente
pelas análises do contexto político, incluindo as relações de poder e a tradição cultural
em que o escritor está inserido.3 O caminho seguinte consiste em construir uma
biografia do autor analisado que contenha dados de sua vida e da evolução de sua
carreira, assim como problematizar sua formação cultural e intelectual, analisar a
composição e estruturação da obra e tentar verificar seus processos de trabalho e de
produção. No tocante ao contexto do autor, Gouveia Monteiro ressalta que caso o
trabalho de análise de seu meio cultural esteja impossibilitado devido à escassez
documental, resta procurar na própria obra indícios que possam ajudar a caracterizar a
mesma.4
Para entender a obra de um historiógrafo medieval, na colocação de Bernard
Guenée, é preciso primeiro situá-la em uma cultura, definir o seu público e o patrono
que financiou ou coagiu os escritos. Analisar uma fonte narrativa exige a síntese entre
um meio cultural, o autor, seu patrão e seu público. Guenée ainda aponta de maneira
geral quais eram os métodos dos escritores de História no medievo e suas fontes. Os
prólogos das obras indicavam geralmente o caminho que seria seguido. Em relação aos
conteúdos, apenas eram retratados os fatos dignos de memória (os prodígios, as guerras
e os feitos de príncipes e santos), a História era um instrumento de memória. Outra
preocupação da História escrita desta época estava relacionada aos exemplos, de modo
que um dos objetivos do historiador era resgatar do esquecimento os “heróis”, cujo
modelo deveria ser seguido, e os “vilões”, sinônimos de anti-modelo.5
2
MATTOSO, José. A Escrita da História: Teoria e Métodos. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 115120.
3
MONTEIRO, João Gouveia. Fernão Lopes: texto e contexto. Coimbra: Editora Minerva-história, 1988,
p. 23.
4
Idem. p. 71-74.
5
GUENÉE, Bernard. História. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático
do Ocidente Medieval: Volume 1. Trad: Lênia Márcia Mongelli. São Paulo: Edusc, 2002, p. 526-527.
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O contexto político tardo-medieval da cristandade caracterizou-se por princípios
conjunturais comuns, como o caminho da centralização política com o nascimento das
monarquias e a afirmação do dinheiro enquanto nova linguagem de poder. Segundo
Gouveia Monteiro, de 1300 a 1450, a cristandade passou por “convulsões”, como alta
de preços, diminuição da produção, fome e desemprego. Boa parte destes flagelos
obteve na Peste um fator de influência direta. No campo da diplomacia (ou da
insuficiência dela), a Guerra dos Cem Anos6 dividiu politicamente a região em dois
blocos, estes encabeçados pelos reinos da Inglaterra e da França. O conflito foi somado
ao agravo da imprecisão de linhas de fronteira e das dificuldades de comunicação
próprias da época. O período também se caracterizou pela substituição da suserania pela
soberania e da mudança de pagamento das tradicionais corvéias para os contratos de
arrendamentos. No campo institucional, o século XIV assistiu a embates entre modelos
de supremacia régia e papal provocados pelo aumento de poder dos reis, estes que não
mais tolerariam a influência eclesiástica em assuntos temporais. Foi período das igrejas
“nacionais” e do Grande Cisma do Ocidente,7 divisão da Igreja que durou de 1378 a
1417.8
Os reinos peninsulares de Portugal, Castela, Aragão e Navarra estavam
introduzidos a um contexto mais amplo de Guerra dos Cem Anos, conflito
contemporâneo aos cronistas Pero Lopez de Ayala e Fernão Lopes e que influenciou
consideravelmente seus escritos. O reino de Castela entrou no conflito em 1353, após o
casamento do rei Pedro I, o Cruel (1350 – 1369),9 com Branca de Bourbon, em tomada
de posição a favor do “partido” francês. Segundo Cristina Pimenta, este laço
matrimonial foi o ponto de partida dos conflitos entre Castela e o reino vizinho de
Aragão, governado pelo rei D. Pedro IV, o Cerimonioso (1336 – 1387). Internamente,
Castela viveu os conflitos entre Pedro I e Henrique Trastâmara (apoiado pela França)
6
FERNANDES, Fátima Regina. Considerações sobre o poder régio e a nobreza na Baixa Idade Média
portuguesa. Curitiba: Revista da SBPH, nº 23, 2002, p. 20. “[...] a Guerra dos Cem Anos [...] divide a
Europa Ocidental em dois grandes blocos, franco-castelhano e inglês”. - GRZYBOWSKI, Lukas
Gabriel. A imagem do rei nas crônicas de Fernão Lopes. Assis: Anais do XVIII Encontro Regional de
História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP, 2006, p. 04. “[...] No espaço ibérico as
conseqüências do conflito se mostram através das guerras em Castela e, mais adiante, as guerras lusocastelhanas, três ocorridas durante o reinado de D. Fernando. Essas guerras tiveram origem a partir da
morte de Pedro, o Cruel, assassinado, por Henrique Trastâmara, um bastardo que ascende ao trono.”
7
GRZYBOWSKI, Lukas Gabriel. Op. Cit. p. 04. “O cisma do ocidente, período em que a Sé se dividia
entre dois partidos, um situado em Roma e apoiado pelos ingleses e um situado em Avinhão, apoiado
pelos franceses, ocorre durante a guerra dos Cem Anos, iniciando-se no ano de 1378 e durando até
1417”.
8
MONTEIRO, João Gouveia. Op. Cit. p. 23-28.
9
As datas entre parênteses significam o tempo de reinado.
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pelo poder. Em 1363, os reinos de Castela e Aragão estabeleceram um acordo de paz
em Murviedro selado por laços matrimoniais. Nesta configuração, Castela atendia aos
interesses ingleses enquanto que Aragão aos interesses franceses. Quanto ao reino de
Portugal, do rei D. Pedro I, o Cru (1357 – 1367), o direcionamento político era de não
envolvimento, de neutralidade em relação a estes conflitos, pois inevitavelmente uma
tomada de posição colocaria Portugal na Guerra dos Cem Anos. O apoio francês à
Aragão e a Henrique Trastâmara pôs fim ao conflito do reino vizinho a Portugal e
destituiu10 Pedro I de Castela do poder em 1369, ano em que D. Fernando (1367 –
1383) estava à frente do trono português, reino que a esta altura havia entrado no
conflito, apoiado pelos ingleses e a favor de Pedro I de Castela, em clara intenção de
barrar a influência do reino da França na região.11 Conforme a conjuntura da Guerra dos
Cem Anos, Portugal ora se aliava ao bloco Inglaterra/Roma, ora ao bloco
Castela/França. No reinado de D. Fernando, Portugal se envolveu em três guerras contra
o reino de Castela ocorridos nos anos de 1369/1370, 1372/1373 e 1381/1382. Pero
Lopez de Ayala foi contemporâneo a estes conflitos entre Portugal e Castela durante a
regência de D. Fernando. Enquanto o cronista castelhano viveu estas guerras, Fernão
Lopes apenas as sentiu pela documentação guardada nos arquivos.
No campo cultural, o baixo medievo caracterizou-se pela formação de uma
audiência letrada que freqüentava a corte. “Bem nascidos” que constituiriam o principal
público das crônicas. O público cortesão estava voltado para uma literatura aventureira
e romanesca que exprimia ideais de conduta e valorizava a moral cavaleiresca. Segundo
Bernard Guenée, a História praticada nas cortes oscilava entre a poesia e a verdade,
enquanto que os relatos sobre “o que realmente aconteceu” estavam mais próximos da
literatura do que da erudição. A autoridade de autores antigos contava muito, assim
como textos oficializados por reis ou príncipes também possuíam certo grau de
legitimidade, pois a aprovação de uma autoridade reconhecida delegava certo caráter de
autenticidade ao texto. A verdade histórica estava relacionada à autoridade. Para
Bernard Guenée, o passado se reuniu a um só modelo, que se chamou História ou
crônica, gênero este que nasceu da particularidade medieval de ligação entre História e
10
GOMES, Rita Costa. D. Fernando. Editora: Temas e Debates, 2009, p. 85-87. “[...] em Março de 1369
o último acto da vida de Pedro de Castela. O rei foi assassinado pela própria mão do odiado irmão e
rival, Henrique. [...] da guerra civil castelhana, não havia propriamente uma divisão geográfica clara
[...] entre regiões dominadas por petristas e trastamaristas. Mesmo dentro das comunidades urbanas se
degladiavam facções opostas, num conflito que se declinava também à escala local”.
11
PIMENTA, Cristina. D. Pedro I. Editora: Temas e Debates, 2007, p. 203-209.
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tempo. No final do século XIII os acontecimentos datados em relação ao nascimento de
Cristo passaram a serem sistematizados.12 O nome “crônica”, portanto, deveu-se ao fato
de os escritores ordenarem os acontecimentos cronologicamente. Porém, apesar do
apurado compromisso com a “verdade”, o critério de averiguação dos fatos, de modo
geral, eram falíveis, em vista que os critérios de uma verdade objetiva estavam na maior
parte das vezes subordinados aos meios sociais e culturais a que os cronistas
pertenciam.13
O historiador medieval não era proprietário do que escrevia. O historiógrafo, o
escritor de crônicas, o compilador, o ordenador dos fatos, estava sempre subordinado ao
senhor que encomendava e financiava a obra, este o verdadeiro proprietário dos escritos,
que na maioria das vezes queria utilizar a História para reforçar politicamente a posição
de sua casa senhorial ou de seu grupo. Independente das particularidades de cada
escritor, o proprietário das narrativas poderia substituir o cronista e mesmo assim o
sucessor continuaria a obra anterior, muitas vezes dando continuidade ao estilo do
escritor substituído. Portanto, as obras não pertenciam aos escritores, mas sim aos
senhores, fato que nos leva a desconsiderar o plágio neste período, pois era legítimo
utilizar os trabalhos realizados anteriormente.14
Os cronistas aqui analisados inseriam-se em uma tradição que remontava à corte
do rei castelhano Afonso X, o Sábio (1252 - 1284).
Ao contrário dos cronistas
franceses que ordenavam os fatos de forma cronológica escrevendo sobre temáticas
relacionadas ao meio a que pertenciam (meio palaciano na maioria das vezes), na
tradição ibérica floresceu uma escola histórica. Afonso X ordenou a produção da
“História Geral da Espanha” para obter no passado formas de tentar compreender o
presente. Segundo Antonio José Saraiva, esta escola histórica castelhana diferenciava-se
por analisar o coletivo (de Castela), ao invés dos feitos grandiosos individuais de alguns
personagens. Saraiva levantou a hipótese da influência de duas tradições na formação
desta maneira particular em se escrever História: influências da cultura visigótica, esta
influenciada por modelos greco-romanos, e da cultura árabe. Neste primeiro momento
após a publicação da “História Geral da Espanha”, a História se fazia através de uma
12
GUENÉE, Bernard. Op. Cit. p. 525-528.
SARAIVA, Antonio José. Fernão Lopes. Lisboa: Publicações Europa-América, p. 23.
14
COELHO COELHO, António Borges. A revolução de 1383. Lisboa: Editorial Caminho, 5ª Edição,
1981, p. 47-48.
13
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multiplicidade de fontes, entre os quais estavam os clássicos latinos, canções de gesta,
tradições orais e lendas de feitos antigos.15
A História escrita era um importante instrumento de Poder, pois entre as relações
políticas de reinos vizinhos, casas senhoriais e famílias pertencentes à nobreza, as
disputas aconteciam tanto no campo de batalha como no campo simbólico. Para
António José Saraiva, as crônicas eram uma maneira das grandes casas tornarem seus
feitos e serviços conhecidos,16 pois segundo Fernão Lopes, “pera ordenar a nua
verdade? [...] apegando-nos a ela firme, os claros feitos, dignos de grande
renembrança”.17 Um cronista representava a posição oficial do grupo ao qual o mesmo
estava inserido. O discurso oficial do escritor estava em consonância com a corte ou
com as instituições que financiavam a sua obra.
O cronista castelhano Pero Lopez de Ayalla, segundo Don Cayetano Rosell,
pode ser considerado historiador, filósofo, poeta e moralista. Como historiador, utilizou
como modelo o autor Tito Lívio, autor que escreveu a sua principal obra sobre Roma e
que viveu entre 59 a.C. a 17, cuja influência se refletiu na forma da escrita do cronista
castelhano, a preocupação com a oralidade18 do que estava escrito. Para os tempos de
Lopez de Ayalla, assim como na análise de qualquer outro escritor, Cayetano Rosell
ressalta a importância da contextualização da obra.19 O Cronista viveu entre 1332 e
1407 e foi funcionário de todos os reis aos quais escreveu. Produziu as crônicas dos
monarcas de Castela D. Pedro (1350 – 1369), D. Henrique II (1369 – 1379), D. Juan
(1379 – 1390) e D. Henrique III (1390 – 1406). Iniciou a produção de seus escritos na
data provável de 1378, período em que D. Henrique II estava no poder e precisava
comprovar a legitimação20 da nova dinastia iniciada com o seu reinado após o
assassinato de Pedro de Castela.
15
SARAIVA, Antonio José. Op. Cit. p. 24.
Idem. p. 21.
17
LOPES, Fernão. História de uma revolução: Primeira parte da <<Crónica de El-Rei D. João I de Boa
Memória>>. Lisboa: Publicações Europa-América, 1977, p. 85.
18
SARAIVA, Antonio José. Op. Cit. p. 20. “Havia um processo de alargar um pouco o âmbito de
expansão do livro, que era a leitura em voz alta em pequenos grupos de ouvintes. Por isso os escritores
[...] falam muitas vezes como se estivessem dirigindo a auditórios”.
19
ROSELL, Don Cayetano. Cronicas de los Reyes de Castilla: Desde Don Alfonso el Sabio hasta los
catolicos Don Fernando y Dona Isabel. In: Biblioteca de Autores Españoles: Desde La formacion del
lenguaje hasta nuestros dias. Madrid: Tomo Primero, 1953, p. 08-09.
20
GOMES, Rita Costa. Op. Cit. p. 32. “[...] terrível evento de grande repercussão em toda a Europa, que
foi o assassinato de Pedro de Castela em 1369 às mãos de seu irmão bastardo Henrique, que se
reclamava rei e era aliado do monarca de França. A situação de Henrique, no entanto, não era segura.
Muitos contestavam a sua legitimidade como governante de Castela”.
16
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Ayala inicia o proêmio às crônicas dos reis de Castela legitimando a importância
em se escrever História, em deixar o passado registrado através da escrita, pois segundo
o cronista, “la memoria de los omes es muy flaca”.21 Concepção de um homem de seu
tempo, período em que a tradição oral vinha perdendo legitimidade perante o registro
escrito. O cronista castelhano, ainda no proêmio, resgata a autoridade de autores
clássicos, sem citar referências diretas, mas exalta que “los Sabios antiguos fallaron
ciertas letras é artes de escrebir, porque las sciencias é grandes fechos que acaescieron
em el mundo fuesen escriptos é guardados para los omes de lo saber, é tomar dende
buenos exemplos para facer bien”. 22 Nestes trechos transcritos, Lopez de Ayala reforça
a sua concepção de História e os modelos pelos quais ele abordará seus personagens.
Para o cronista, a arte de escrever e de fazer ciência, de preservar a memória dos bons
exemplos, deve ficar a cargo dos “homens de saber”, termo que aparece claramente na
crônica e que pode ser considerado o que melhor define os letrados oriundos do
medievo.23
Ainda no proêmio, Ayala discorre sobre seus métodos e a crítica no uso de suas
fontes. O cronista reforça o seu compromisso com a verdade tanto dos fatos que o
mesmo presenciou como dos que o cronista leu ou ouviu. Na fonte, precisamente o
autor fala da veracidade do que “viu”, o que pode ser interpretado de forma ampla, pois
Ayala escreveu sobre eventos que observou diretamente e sobre aqueles em que só
obteve acesso pela documentação ou pela oralidade. No encerramento ao proêmio,
Ayala explicou a forma com que os seus escritos foram ordenados, respeitando a
cronologia cristã, com cada capítulo representando um ano do reinado de determinado
rei.
E por ende fué despues usado é mandado por los Príncipes é Reyes que
fuesen fechos libros, que son llamados Crónicas é Estorias, dó se
escribiesen las caballerias, é otras qualesquier cosas que los Príncipes
antiguos ficieron [...] asi io mas verdaderamente que pudiere de lo que vi,
em lo qual non entiendo decir sinon verdad [...] en este libro terné esta
21
AYALA, Pero Lopez de. Crónicas de Los Reyes de Castilla: Don Pedro, Don Henrique II, Don Juan I y
Don Henrique III. In: Biblioteca de Autores Españoles: Desde La formacion del lenguaje hasta nuestros
dias. Madrid: Tomo Primero, 1953, p. 399.
22
Idem. p. 399.
23
VERGER, Jacques. Homens e Saber na Idade Média. Trad: Carlota Boto. Bauru: Edusc, 1999, p. 199200. Enquanto homens de saber, os cronistas Pero Lopez de Ayala e Fernão Lopes se encaixariam melhor
na condição de “intelectuais intermediários”, pois não lhes é comprovado documentalmente um diploma
de doutoramento que, segundo Jacques Verger, os homens de saber de primeira grandeza, a maioria
eclesiásticos formados na Universidade, deveriam possuir.
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orden que: comenzaré el Año el Rey regnó segun el Año Del Nascimiento de
nuestro Señor Jesus-Christo, é de la Era de Cesar, que se contó em España
de grandes tiempos aça, é em cada año partiré la estoria de aquel año por
capítulos.24
Fortemente influenciado por Pero Lopez de Ayala, Fernão Lopes exerceu o
cargo de cronista oficial do reino português de 1434 a 1454. Mas foi provavelmente a
partir de 1448, ano em que terminou a regência do infante D. Pedro, que Lopes deixou
de exercer de fato esta função, pois em 1450 Zurara já assinava a 3ª parte da crônica de
D. João I.
O rei D. Duarte (1433-1438) encarregou Lopes de historiar os reis
portugueses anteriores, de escrever as crônicas contando os principais feitos dos
monarcas de Portugal. Segundo José Hermano Saraiva, Lopes foi um homem de saber
plebeu e não acadêmico em um período em que as Humanidades passavam por
refinamento erudito. O meio social ao qual Lopes veio não pode ser afirmado, pois não
há documentação para tal análise, mas o que o cronista escreveu nos dá pistas. Percebese que Fernão Lopes era um homem da cidade e não do campo, como também não era
nobre. Freqüentava a corte portuguesa, espaço em que seus escritos eram divulgados,
mesmo público a quem seus contemporâneos, o rei D. Duarte e infante D. Pedro (14391448) deixaram obras que bem representavam o próprio grupo (a nobreza, mas uma
nova nobreza representada na Dinastia de Avis).25
Fernão Lopes viveu entre 1385 (não há certezas em relação a seu ano de
nascimento) e 1460. Escreveu as crônicas de D. Pedro I (1357-1367), D. Fernando
(1367-1383) e D. João (1385- 1433). Lopes exercia funções burocráticas no reino
português, além de ter sido guarda das escrituras. Tornou-se guarda-mor da Torre do
Tombo26 em 1418 no reinado de D. João I. As funções da guarda consistiam na
conservação do material existente para utilizar a documentação guardada mediante
ordens do rei. Ao assumir o cargo de cronista, já possuía experiência ao lidar com
documentos, pois antes mesmo de assumir a função de guarda da Torre, exercia o cargo
24
AYALA, Pero Lopez de. Op. Cit. p. 399-400.
SARAIVA, José Hermano. Introdução à leitura de Fernão Lopes. In: História de uma revolução:
Primeira parte da <<Crónica de El-Rei D. João I de Boa Memória>>. Lisboa: Publicações EuropaAmérica, 1977, p. 05.
26
SARAIVA, Antonio José. Op. Cit. p. 12. “[...] A Torre do Tombo era o arquivo geral do Estado,
instalado numa torre do Castelo de Lisboa”
25
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de tabelião27 do reino, profissão que o fazia lidar com cópias de documentos autênticos,
certidões e testamentos.28
A fonte relacionada a Fernão Lopes que melhor responde nossa problemática é o
prólogo da primeira parte da crônica destinada a D. João I, pois foi nesta introdução que
o autor discutiu basicamente sobre as suas finalidades metodológicas. Fernão Lopes
inicia o prólogo criticando a ordenação de Histórias feitas sob orientações de senhores e
de casas, pois segundo o cronista, tais abordagens eram favoráveis a quem mandou
escrever. Para Lopes, este desvio estava ligado à “mundanal afeição”29 que os homens
possuem em relação ao próprio meio, à própria terra, à própria História. Segundo o
cronista, “ao entendimento do homem [...] havendo de julgar alguma sua cousa, assim
em louvor como per contrario, nunca per eles é direitamente recontada”.30 Em seguida,
utiliza o filósofo romano Marco Túlio Cícero para reforçar sua tese: “E assim parece
que o sentiu Túlio, quando veio a dizer: nós não somos nados a nós próprios porque
uma parte de nós tem a terra, e outra os parentes”.31 Lopes ressalta que esta
parcialidade se deve ao “juízo do homem acerca de tal terra ou pessoas, recontando
seus feitos sempre çopega”.32
Mas esta crítica de Lopes era somente a quem falhava em seus julgamentos, a
quem deveria possuir um compromisso com a verdade e não o fazia por ter os vínculos
descritos acima. Pois, ao nível do povo,33 o que se verifica na obra de Lopes é a defesa
ao enraizamento a uma terra. Segundo António José Saraiva, Lopes escreve sobre um
povo que defende os seus bens, a sua terra e o seu trabalho contra os estrangeiros que
chegam com as guerras. A luta do povo português seria contra os castelhanos e contra
os portugueses aliados à Castela. Portanto, a voz que Fernão Lopes aufere ao povo em
seus escritos está relacionada a uma perspectiva militar e política.34
27
Idem. p. 13. “Dentro do particularismo característico da Idade Média [...] cada tabelião trabalhava
dentro de uma área determinada, geralmente um conselho; havia, porém, alguns que alcançavam o
privilégio muito rendoso de exercerem a profissão em qualquer área do País por onde quer que
passassem. A estes chamava-se <<tabeliães gerais>>. Fernão Lopes pertencia a esta categoria
privilegiada de notários.”
28
Idem. p.12.
29
LOPES, Fernão. Op. Cit. p. 84.
30
Idem. P. 84.
31
Idem. p. 84.
32
Idem. P. 84.
33
BEIRANTE, Maria Ângela. As Estruturas Sociais em Fernão Lopes. Livros Horizonte, 1984, p. 90.
“Povo, ou povos parecem ter, em grande parte dos casos, um sentido lato, correspondente a todo o
conjunto da população do reino, aos súbditos. Mas, pelo contexto, deduzimos que, em vários casos, tal
expressão tem um sentido restrito, circunscrevendo-se somente ao 3º estado, isto é, aqueles que
trabalham e pagam impostos”.
34
SARAIVA, Antonio José. Op. Cit. p. 36-37.
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Após esta introdução, criticando estes vínculos que levavam à parcialidade, o
cronista transporta estas particularidades para os conflitos envolvendo os reinos de
Portugal e Castela entre 1385 e 1388, período em que reinava em Portugal o rei D. João
I e em Castela o rei D. Juan. Os reinos ibéricos se enfrentaram na batalha de Aljubarrota
em 1385, com vitória portuguesa. Desmembramentos deste conflito se estenderam até
1388, pois Portugal procurou reconquistar as cidades e vilas que ainda obedeciam ao rei
castelhano.35 Fernão Lopes utilizou este conflito envolvendo Portugal e Castela para
reforçar a idéia de que a História subordinada a determinado “partido” estaria ao campo
da “mundanal afeição”.36
Esta mundanal afeição fez a que alguns historiadores que os feitos de
Castella com os de Portugal escreveram, posto que homens de boa
autoridade fossem, desviar da direita estrada e correr per semideiros
escusos [...] e especialmente no grande desvairo que o mui virtuoso rei de
boa memória D. João, cujo regimento e reinado se segue, houve com o
nobre e poderoso rei D. João de Castela, poendo parte de seus bons feitos
fora do louvor que mereciam e emadendo em alguns outras da guisa que
não aconteceram.37
Fernão Lopes assumiu um compromisso com a História verdadeira, embasando
os seus escritos com as autoridades que em sua época representavam a “autoridade”.
Pelas palavras do cronista, “nosso desejo foi em esta obra escrever verdade sem outra
mistura”.38 Na passagem seguinte, Lopes ressalta que poderia errar, mas que o maior
erro seria afirmar ser verdadeiro aquilo que é falso. O termo que Lopes utiliza para
caracterizar a sua crônica é “certidão das histórias”,39 ficando evidente que a sua
verdadeira intenção (ao menos a intenção que deixou transparecer em seus escritos) foi
o seu compromisso com a veracidade dos fatos.
E nós, engando per ignorância de velhas escrituras e desvairados autores,
bem podíamos, ditando, errar, porque, escrevendo homem do que não é
certo, ou contará mais curto do que foi, ou falará mais largo do que deve.
Mas mentira em este volume é muito afastada da nossa vontade. [...] Mas
nós, não curando de seu juízo, leixados os compostos e afeitados
35
SOUZA, Armindo. 1325-1480. In: História de Portugal: A Monarquia Feudal. Lisboa: Editorial
Estampa, 2ª edição, 1997, p. 417.
36
LOPES, Fernão. Op. Cit. p. 84.
37
Idem. p. 84.
38
Idem. p. 85.
39
Idem. p. 85.
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razoamentos que muito deleitam aqueles que ouvem, antepoemos a simples
verdade que a afremosentada falsidade. [...] antes nos calaríamos que
escrever cousas falsas.40
O cronista, ao começar o prólogo de sua terceira obra, estava legitimando toda a
construção que havia empreendido e que iria empreender. Mesmo não sendo um homem
de “fremosura e novidade de palavras”,41 conseguiu ordenar em suas obras uma síntese
entre a documentação que obteve acesso e as lendas acerca dos personagens analisados.
O escritor, no prólogo da crônica de D. João, reafirmando a sua intenção em escrever
uma História, uma crônica, produziu uma construção dos personagens que analisou para
determinados fins políticos. Fernão Lopes foi funcionário dos reis D. Duarte, infante D.
Pedro e D. Afonso V e escreveu suas crônicas para legitimar os monarcas que estavam
ligados ou faziam parte da Dinastia de Avis. Seu modelo em relação às categorias
sociais analisadas era o régio, mas de inspiração nobiliárquica. Sua audiência estava na
corte e apreciava uma literatura que servia de espelho para seus costumes a distinguindo
em relação a outros grupos.
Para concluir, verificamos que tanto Pero Lopez de Ayala como Fernão Lopes,
como “homens de saber”, escreveram seus textos de acordo com a época em que
estavam inseridos. Período conturbado em ambos os reinos, estes inseridos em uma
conjuntura maior de Guerra dos Cem Anos e Grande Cisma do Ocidente. Ressaltamos
que a intenção dos autores aqui analisados era em escrever uma História, em ordenar os
fatos verdadeiros, de forma imparcial, seguindo uma cronologia baseada no
cristianismo. O resultado a que eles chegaram, em termos críticos, deve ser analisado
em uma conjuntura mais ampla, sem esquecer que fatores como o discurso oficial do
grupo que encomendou a obra e do grupo que recebeu a mesma influenciavam
diretamente o conteúdo e o modo a que os fatos históricos eram apresentados. O que
pretendemos neste texto foi apresentar alguns aspectos metodológicos do gênero
cronístico peninsular em um contexto político que influenciou diretamente os escritos,
mas sem, no entanto, ter a pretensão de esgotar o assunto, pois acreditamos que este
campo de pesquisa continua fecundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
40
41
Idem. p. 85.
Idem. p. 85.
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Alétheia: Revista de estudos sobre Antigüidade e Medievo, Volume 1, Janeiro a Julho de 2010. ISSN: 1983 - 2087
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2. Fontes Bibliográficas
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SARAIVA, José Hermano. Introdução à leitura de Fernão Lopes. In: História de uma
revolução: Primeira parte da <<Crónica de El-Rei D. João I de Boa Memória>>.
Lisboa: Publicações Europa-América, 1977.
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VERGER, Jacques. Homens e Saber na Idade Média. Trad: Carlota Boto. Bauru:
Edusc, 1999.
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