1
2
SUMÁRIO
Editorial ......................................................................................... 5
RODRIGO AUGUSTO RODRIGUES
Aviação comercial no Brasil: a necessidade de um
novo marco regulatório. .................................................................. 9
CRISTIANO AGUIAR
A criação da Agência Nacional do Cinema e
do Audiovisual – uma análise .........................................................37
RICARDO VIDAL DE ABREU
RODRIGO PUCCI DE SÁ E BENEVIDES
Financiamento da saúde pública no Brasil: a situação
atual e o impacto da vinculação constitucional de
recursos (EC 29/2000) ............................................................... 59
WILLBER DA ROCHA SEVERO
A participação dos beneficiários em estratégias de
redução da pobreza: uma análise de suas contribuições. ...... 86
ERICK BRIGANTE DEL PORTO
Fome Zero e Controle Social: a experiência dos
Comitês Gestores do Programa Cartão Alimentação ............ 117
SYLVIO KELSEN COELHO
O desafio de pensar o futuro: métodos de apoio
à reflexão ................................................................................... 142
RES PVBLICA
Revista de gestão governamental e políticas públicas ................. 166
3
4
Editorial
O
desgaste das experiências excessivamente estatizantes
ou liberalizantes do século passado mantém ainda
atual a questão dos limites do Estado frente ao desafio
do desenvolvimento. As definições das funções e formas de atuação
governamental, e de seus mecanismos de controle social,
permanecem como variáveis ordenadoras das opções políticas,
principalmente nas sociedades menos desenvolvidas.
As visões redutoras das grandes ideologias, contudo,
perderam muito de sua força legitimadora. Na definição de rumos,
ganham espaço as avaliações sistemáticas de processos concretos
de atuação do Estado nos diversos setores da sociedade, com suas
especificidades e complexidades. Este número da Res Pvblica traz
algumas contribuições nesse sentido.
Rodrigo Augusto Rodrigues abre a edição com uma análise
dos modelos regulatórios intervencionistas e liberalizantes praticados
no setor da aviação civil brasileira. Faz um rico relato do
desenvolvimento do setor desde sua fase inicial, na década de 20
do século passado, até o momento atual, com destaque para o
significado da intervenção do Estado em cada conjuntura. Apresenta
um diagnóstico do setor, apontando as fragilidades e demonstrando
a necessidade de um novo marco regulatório.
Também discutindo a atuação do Estado em setores
específicos, Cristiano Aguiar analisa a proposta de criação de
uma agência destinada à regulação dos setores de cinema e
audiovisual. Apesar de concordar com a necessidade da regulação
para enfrentar problemas como o oligopólio, o autor aponta falhas
5
na proposta e na forma como vem sendo conduzida. Critica, assim,
a fragilidade do mecanismo de consulta pública, que se mostrou
insuficiente para a participação efetiva, e alerta para o problema de
se tratar separadamente a regulação das redes físicas e das
plataformas tecnológicas e a regulação da produção e difusão do
conteúdo audiovisual. Alerta, ainda, para os problemas que deverão
surgir nas disputas de atribuições entre agências.
Ricardo Vidal de Abreu e Rodrigo Pucci de Sá e
Benevides discutem o papel do Estado na área da saúde. Analisam
o setor e a difícil equação entre a universalização instituída pela
Constituição de 1988 e a necessidade de financiamento dos
serviços. Avaliam o impacto da vinculação orçamentária decorrente
da Emenda Constitucional nº 29, de 2000, e os efeitos da
descentralização da saúde, promovidas pelas Normas Operacionais,
na estrutura do financiamento da saúde das três esferas da
federação.
Willber da Rocha Severo faz uma abordagem extensa da
questão da participação, explorando várias experiências presentes
na literatura especializada, buscando avaliar em que medida a
participação dos beneficiários em estratégias de redução da pobreza
pode interferir positivamente nos resultados de programas e projetos.
A questão da participação também é o tema de Erick Brigant
Del Porto, que faz um relato da experiência do programa Fome
Zero. A partir do detalhamento do funcionamento da experiência
dos Comitês Gestores do Programa Cartão Alimentação, destaca
a importância da forma de participação que o programa suscitou,
apontando as potencialidades envolvidas em termos de estímulo à
mobilização da sociedade.
6
Completa a edição a cuidadosa contribuição de Sylvio
Kelsen Coelho que nos convida ao debate sobre as reflexões sobre
o futuro, a partir da análise das principais metodologias disponíveis
para o auxílio na decisão estratégica.
São contribuições importantes que, temos certeza, vêm
prestigiar os leitores da Res Pvblica. Agradecemos a todos que
contribuíram para mais este número, em especial aos articulistas,
aos membros da Comissão Editorial e ao Editor.
E boa leitura!
A Diretoria.
7
8
Rodrigo Augusto Rodrigues
Aviação comercial no Brasil: a necessidade de
um novo marco regulatório.
1- INTRODUÇÃO
N
os últimos anos, tem sido amplamente divulgada pela
mídia e relatada em trabalhos de especialistas e
acadêmicos a crise por que passa a aviação civil no
Brasil e, em particular, as empresas aéreas brasileiras. As
responsabilidades por essa crise são atribuídas tanto à regulação
do setor, quanto às características do mercado de aviação civil,
sensivelmente afetado pelas oscilações dos ciclos dos negócios e,
desde 2001, pelos efeitos decorrentes dos atentados terroristas aos
EUA, e aos problemas de governança corporativa das empresas
aéreas brasileiras.
Este trabalho desenvolve uma breve análise da evolução da
regulação da aviação comercial no Brasil. Indispensável para a
adequada compreensão da regulação da aviação comercial é o
conhecimento das características desse mercado em termos da sua
estrutura, das barreiras à entrada, da lucratividade e das
características da demanda por serviços aéreos, particularmente o
transporte de passageiros.
Analisando a evolução da regulação da aviação comercial
em nosso País, desde os primórdios do setor até os dias de
hoje, constatamos que já convivemos há muito tempo com
marcos regulatórios extremamente diferenciados. A aviação
9
incipiente foi amplamente subsidiada e protegida. Na primeira
fase de grande expansão da aviação civil, no período pós-II
Guerra Mundial, experimentamos uma abertura de mercado e
redução do controle do Estado sobre aspectos econômicos das
empresas de aviação, o que ensejou a expansão da oferta dos
serviços e a competição.
Em resposta à crise de excesso de oferta gerada por essa
fase, tivemos um marco regulatório que induziu à concentração e
ao rígido controle da oferta, da entrada no mercado e dos preços
das passagens. Esse período coincide com a introdução das
aeronaves a jato, no início dos anos 60, e perdura até o final dos
anos 80, quando novamente se inicia uma fase tendente à
liberalização, a qual ficou conhecida como a desregulação.
Por fim, relacionando a evolução da regulação da aviação
comercial no Brasil com as características desse mercado, refletimos
sobre algumas propostas que deveriam orientar a reformulação do
marco regulatório, objetivando o saneamento do mercado de
aviação comercial no Brasil.
2. A EVOLUÇÃO DA REGULAÇÃO DA AVIAÇÃO
COMERCIAL NO BRASIL
A fase pioneira da aviação comercial, no Brasil e no mundo,
compreende o período em que a tecnologia da aviação supera a
fase de testes e são constituídas as primeiras empresas de
transporte aéreo, em meados da década de 1920, até o término
da II Guerra Mundial, fase em que o transporte aéreo, com os
excedentes de aeronaves para transporte de tropas, adaptadas,
permitem a consolidação do modal aéreo como uma alternativa
10
de transporte para médias e longas distâncias, competitivo com
os demais modais de transporte.
Nessa fase pioneira, o Brasil, como os demais países, adota
uma regulação excessivamente intervencionista e protecionista, com
mecanismos de estímulo à aviação, como subvenções e subsídios,
objetivando viabilizar uma alternativa estratégica de transporte,
principalmente para aqueles países de dimensões continentais, como
o nosso, carentes de infra-estruturas que permitam a integração de
uma população dispersa no espaço geográfico do território nacional.
O nosso primeiro regulamento geral sobre navegação aérea, o
Decreto nº 16.893, foi editado em 1925 e incorpora os princípios
acordados na Convenção de Paris sobre navegação aérea, de
1919, e nos trabalhos da Comissão Ibero-Americana de Navegação
Aérea.
A Varig nasce nesse contexto, em 1927. Neste ano, também
foi fundado o Sindicato Condor Ltda, que originou os Serviços
Aéreos Cruzeiro do Sul Ltda., denominação adotada a partir de
1943, incorporada pela Varig em 1975. Em 1929, a Pan American
Airways foi autorizada a operar vôos internacionais de e para o
Brasil, constituindo uma subsidiária brasileira – a Panair do Brasil,
autorizada a operar vôos domésticos em 1933, ano em que foi
fundada a Aerolloyd Iguassu, controlada pela firma Chá Matte Leão,
operando ligações entre Curitiba e São Paulo (posteriormente
adquirida pela Vasp). Em 1933 foi constituída a Vasp, transformada
em sociedade de capital misto em 1935, quando passou a ser
controlada pelo Governo do Estado de São Paulo, e privatizada
em 1990. Na década de 1940 surgem o Lloyd Aéreo (adquirido
pela Vasp em 1962) e a Redes Estaduais Aéreas Ltda – Real
(adquirida pela Varig em 1961). Em 1955 o grupo Sadia Concórdia
criou a Sadia Transportes Aéreos que trocou o nome para Transbrasil
11
S.A. Linhas Aéreas, em 1972. A TAM surge em 1961, como Táxi
Aéreo Marília, e a Gol mais recentemente, em 2001, ano de
interrupção das atividades da Transbrasil.1
A grande oferta de aeronaves excedentes no pós-II Guerra
Mundial, tanto de aviões como de peças de reposição a baixo custo,
aliada à política brasileira de livre concorrência, favoreceram o
surgimento de dezenas de empresas autorizadas a explorar serviços
aéreos. Entre 1945 e 1954, foram outorgadas, pelo DAC
(Departamento de Aviação Civil ), 62 concessões para a exploração
de serviços aéreos. Em 1948, eram 148 as localidades servidas
pelo transporte aéreo doméstico, tendo atingido 346 cidades
atendidas em 1954. Em 1950, havia 22 companhias aéreas no Brasil,
mas em 1955 este número tinha caído para 14 e, em 1960, para 10
(segundo dados do DAC). Esse excesso de oferta pelas companhias
aéreas tornou economicamente inviáveis muitas das rotas operadas.
O excesso de concorrência levou à concentração das
atividades no litoral, baixo índice de aproveitamento das aeronaves,
guerra tarifária e baixa qualidade dos serviços prestados. A demanda
da época, ainda de dimensões reduzidas, não foi suficiente para
viabilizar o funcionamento de um grande número de empresas e
todas se enfraqueceram, muitas faliram e outras foram absorvidas
ou se fundiram. A conseqüência foi a redução nos níveis de segurança
e de regularidade no serviço de transporte aéreo.
No início da década de 1960, a aviação comercial brasileira
passava por uma grave crise econômica, causada por diversos
1
Dados mais detalhados sobre a criação das empresas aéreas e o histórico
da aviação comercial no Brasil podem ser obtidos no site do DAC
(www.dac.gov.br) em CASTRO e LAMY (1993) e em RODRIGUES (2003).
12
fatores: baixa rentabilidade provocada pela concorrência excessiva;
necessidade de novos investimentos para a renovação da frota de
aeronaves do pós-guerra, cuja manutenção tornou-se difícil com a
escassez de peças de reposição, o que prejudicava a regularidade
dos vôos oferecidos; e alterações na política econômica do país,
que retirou das empresas aéreas o benefício do uso do dólar
preferencial para as importações, entre outros fatores. As
companhias aéreas nacionais de grande porte foram reduzidas para
apenas quatro, incluídos os seus consórcios.
Objetivando superar a crise, governo e companhias aéreas
reuniram esforços para estudar uma mudança na política vigente
para o setor, buscando a continuidade dos serviços de transporte
aéreo, mesmo que o número de empresas tivesse que ser reduzido
e o governo tivesse que exercer um controle mais rígido sobre elas.
Nessa época, final da década de 50 e início da década de
60, no âmago da crise, com apelos sentimentalistas à origem da
aviação com Santos Dumont, unindo simpatizantes dos sindicatos
de aeronautas e aeroviários, militares, políticos e empresários, chegou
a ser proposta a constituição de uma sociedade de economia mista,
com participação majoritária da União – a Aerobrás, uma estatal
para explorar os serviços aéreos. As discussões em torno da
proposta, a descrição da crise da época e os interesses envolvidos
são relatados no livro “Aviação comercial brasileira: asas cortadas”
(PEREIRA, 1966), cuja releitura impressiona pela semelhança com
a situação atual da aviação brasileira, pelos apelos, envolvimentos
e reivindicações dos grupos de interesse envolvidos.
Esses esforços conjuntos entre governo e companhias aéreas
resultaram em três encontros, denominados de Conferências Nacionais
de Aviação Comercial – CONAC, realizadas a 1ª em 1961, a 2ª em
13
1963 e a 3ª em 1968. As deliberações, conclusões e recomendações
conduziram a uma política de estímulo à fusão e associação de empresas,
objetivando reduzir o seu número a um máximo de duas na exploração
do transporte internacional e três no transporte doméstico. Iniciava-se
o regime de competição controlada, com medidas contra a competição
ruinosa, e repúdio ao monopólio estatal ou privado. O governo passou
a intervir pesadamente nas decisões administrativas das empresas, seja
na escolha das linhas, no reequipamento da frota e no estabelecimento
do valor das passagens. Também integravam a política o resguardo
dos interesses econômicos dos transportadores, a adoção de medidas
para assegurar capacidade de competição às empresas nacionais no
mercado internacional e a regulamentação das concessões para os
serviços públicos de transporte aéreo regular, com definição de direitos,
obrigações e prazos de validade das concessões. Essas orientações
resultaram na instituição de um novo Código Brasileiro doAr – Decretolei nº 32, de 18 de novembro de 1966, alterado pelo Decreto-lei nº
234, de 28 de janeiro de 1967. Essa política perdurou até o final da
década de 1980.
Em 1963, o governo federal criou um sistema de subsídio
concedido às companhias aéreas operando linhas antieconômicas da
Rede de Integração Nacional - RIN, a qual visava desenvolver um
sistema nacional de linhas aéreas alimentadoras das principais rotas.
À regulação branda das décadas anteriores, sucedeu-se uma
regulação rígida, com estímulo à diminuição do número de empresas,
na competição controlada, na defesa dos interesses econômicos
dos transportadores e desestímulo à “guerra de preços”, através da
“política de realidade tarifária”, cujo fundamento básico era a idéia
de que o usuário deveria pagar o justo valor pelos serviços aéreos
que utilizasse, cabendo ao Poder concedente fixar tarifas adequadas
aos custos operacionais relacionados aos serviços, incluída a
14
remuneração do capital. Essa política não levava em consideração
qualquer preocupação com os usuários dos serviços aéreos.
Tinha início um período de três décadas de uma política
regulatória controladora, que fez prevalecer, no mercado doméstico
nacional, um oligopólio formado por três empresas. A Varig, grande
beneficiária dessa política, se consolida como a maior empresa
nacional. No início da década de 60, com a política induzida de
fusões, incorpora a Real (então a maior companhia aérea nacional)
e assume suas rotas internacionais. Com a falência da Panair,
decretada pela União em meados da década de 60, a Varig assumiu
as suas rotas internacionais. Em meados da década de 70, incorpora
a Cruzeiro, assumindo suas rotas internacionais. Desde meados dos
anos 70, até meados da década de 90, quando a TAM passou a
operar rotas nacionais, Varig, Vasp e Transbrasil atendiam o
denominado mercado doméstico nacional, e a Varig se tornou a
única empresa explorando o mercado internacional, até o início dos
anos 90, quando as demais companhias nacionais foram autorizadas
a operar vôos internacionais.
Com a introdução de aeronaves mais modernas e de maior
porte, as empresas viram-se forçadas a modificar a sua rede de
linhas, optando por servir apenas cidades de maior expressão
econômica ou mais densamente povoadas, cujo mercado viabilizasse
a prestação do serviço com o uso de aeronaves desse tipo. As
pequenas cidades do interior, dotadas de aeroportos precariamente
equipados, cuja pista, em geral, não era pavimentada, e que no
passado foram servidas por aeronaves de pequeno porte, deixaram
de ser atendidas pelas grandes companhias aéreas. De um total de
335 cidades servidas por linhas aéreas em 1958, somente 92
continuavam a dispor do serviço em 1975 (DAC, www.dac.gov.br:
Institucional: Evolução do Transporte Aéreo).
15
Objetivando prover de serviços aéreos às cidades de menor
porte do interior e as localidades remotas do País, o então Ministério
da Aeronáutica decidiu criar uma nova modalidade de empresa
aérea, a empresa regional, para atender essas cidades, instituindo
os Sistemas Integrados de Transporte Aéreo Regional – SITAR,
pelo Decreto nº 76.590, de 11 de novembro de 1975. Cada sistema
era constituído de linhas e serviços aéreos de uma região, para atender
a localidades de médio e baixo potencial de tráfego. As empresas
concessionárias de serviços aéreos regionais não podiam
transformar-se em empresas de transporte aéreo regular de âmbito
nacional. Entretanto, as empresas nacionais poderiam participar do
capital das empresas regionais. O Decreto nº 76.590 também instituiu
um adicional de até 3% que incidia sobre as tarifas das passagens
aéreas das ligações domésticas, para crédito do Fundo Aeroviário,
com destinação específica para o SITAR, para a suplementação
tarifária de suas linhas.
Assim, foram criadas cinco regiões que dividiam o território
nacional entre as empresas nelas autorizadas a operar, com
exclusividade: i)a região Nordeste-Leste, servida pela Nordeste
Linhas Aéreas, empresa fundada por vários acionistas, entre os quais
a Transbrasil e o Estado da Bahia, o qual aumentou sua participação
para reter a companhia em Salvador (posteriormente, foi adquirida
pelo Grupo Varig); ii)a região Sul, servida pela Rio-Sul Serviços
Aéreos Regionais S.A., fundada e controlada pelo Grupo Varig,
com participação minoritária das companhias de seguros Atlântico
Boa Vista e Sul América e do Bradesco; iii)a região Norte-Oeste,
servida pela TABA – Transportes Aéreos da Bacia Amazônica,
empresa independente das companhias aéreas nacionais, tendo sido
originada da Táxi Aéreo Sagres; iv)a região Centro-Oeste, servida
pela TAM – Transportes Aéreos Regionais S.A., que nasceu da
TAM – Táxi Aéreo Marília, mais uma participação de 1/3 da Vasp,
16
a qual repassou à nova companhia as linhas regionais interiores de
São Paulo que ela servia e que teriam que ser abandonadas pela
Vasp, segundo a regulamentação do SITAR; v) e a região CentroNorte, servida pela Viação Brasil Central, inicialmente Votec –
Serviços Aéreos Regionais S.A., posteriormente adquirida pela
TAM.
Em janeiro de 1986, foram inaugurados os Vôos Diretos ao
Centro – VDC, com vôos ligando os aeroportos Santos Dumont,
no Rio de Janeiro, e Pampulha, em Belo Horizonte, operados com
exclusividade pelas companhias regionais. No início da década de
1990, a TAM e a BR-Central transportavam cerca de 60% do
tráfego regional. O SITAR foi fundamental para o crescimento da
TAM, hoje, a maior companhia aérea nacional.
Em 19 de dezembro de 1986, foi sancionada a Lei nº 7.565
– o Código Brasileiro de Aeronáutica, vigente até hoje, dispondo
sobre a regulação básica do setor de aviação comercial. O DAC
continuava exercendo estrito controle sobre o mercado de aviação
comercial, com competência para determinar a entrada e saída de
empresas no mercado, estabelecer a capacidade das rotas,
freqüências, horários e a estrutura tarifária nas rotas domésticas.
A regulação tarifária e a conjugação dos planos econômicos
que objetivaram derrubar a inflação, levaram as empresas aéreas a
demandarem ações perante o Poder Judiciário, contra a União,
objetivando o ressarcimento de perdas atribuídas à alegada quebra
do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão. A
Transbrasil obteve ganho de causa, em 1998, com uma indenização
estimada em R$ 725 milhões, com a qual foi feito um encontro de
contas, vez que a empresa também devia à União. A Transbrasil
alegava, também, danos causados pela intervenção praticada pela
17
União em 1986, que objetivou o seu saneamento econômicofinanceiro. Tramitam no Judiciário ações da Vasp, cuja indenização
é estimada em R$ 900 milhões, Varig, com R$ 1,8 bilhão, Rio-Sul
com R$ 400 milhões e TAM com R$ 500 milhões (valores originais
das ações que, corrigidos, totalizam um montante estimado em R$
10 bilhões).
Outro “esqueleto” para a União, resultado de anos de
complacência do Poder Público com os trabalhadores do setor,
refere-se à alegada “terceira fonte” de custeio do fundo de
previdência complementar dos aeronautas – o Instituto Aerus de
Seguridade Social. A aposentadoria dos aeronautas foi inicialmente
regulamentada pela Lei nº 3.501, de 1958. Esta lei estabelecia
diversos encargos a serem suportados pela Caixa de Aposentadorias
e Pensões, para o que previa, além do pagamento de contribuição
pelo aeronauta e seu empregador, o recolhimento de uma taxa
especial de 2% incidente sobre as tarifas aéreas, denominada “seguro
especial do aeronauta”. Essa lei previa o pagamento de proventos
com limite mínimo equivalente ao do salário mínimo regional e
máximo equivalente a dez vezes o maior salário mínimo vigente no
país. Legislação posterior – Lei nº 4.262, de 1963, elevou esse
valor máximo para dezessete salários mínimos. O Decreto-lei nº
158, de 1967, revogou as citadas leis e restabeleceu o teto máximo
dos aeronautas em dez salários mínimos, suprimindo a taxa especial
do seguro do aeronauta.
Quando da criação do Instituto Nacional de Previdência
Social (INPS), que unificou o sistema previdenciário do país, os
aeronautas experimentaram um sensível decréscimo em suas
aposentadorias, o que produziu generalizada insatisfação para a
categoria. Iniciou-se um movimento da categoria para que as
autoridades reconhecessem a “circunstância excepcional de sua
18
situação profissional” e se motivassem a conceder-lhes a
recomposição das vantagens previdenciárias anteriormente
desfrutadas. Vários grupos de trabalho foram constituídos, formados
de representantes da categoria e de representantes dos Ministérios
da Aeronáutica, da Previdência Social e do DAC.
Dessas reivindicações surgiu o Instituto Aerus de Seguridade
Social, instituído em 1982, criado com base em três fontes: a)
contribuição dos participantes; b) contribuição das patrocinadoras
e c) verba arrecadada do público usuário do transporte aéreo, no
montante de 3% sobre as tarifas domésticas. A contribuição de 3%
foi objeto de acordo promovido pelo DAC com as empresas aéreas
concessionárias de serviços de transporte doméstico de âmbito
nacional, celebrado em 01/09/1982, pelo qual as empresas se
comprometiam a cobrar dos passageiros e a repassar mensalmente
o valor equivalente a 3% do total da receita doméstica voada de
passagens, durante os trinta anos seguintes. Essa arrecadação tinha
como objetivo determinar padrões mínimos adequados de segurança
econômico-financeira para preservação da liquidez e solvência dos
planos de benefícios, isoladamente, e da entidade de previdência
privada em seu conjunto. Esta é a origem da alegada “terceira fonte”.
Convém observar que a Vasp não aderiu ao referindo fundo,
constituindo um fundo específico para seus trabalhadores,
conhecido como Aeros, que se encontra em situação semelhante
de inadimplência da patrocinadora.
O compromisso foi honrado de 1982 até 25 de fevereiro de
1991, quando o então Diretor-Geral do DAC, considerando que o
repasse dos 3% já havia produzido o resultado desejado, tornandose dispensável a sua manutenção, suspendeu a cobrança.
Esta é a origem do “rombo” atualmente existente no Aerus.
19
Seus dirigentes argumentam que o fundo foi inviabilizado com a
manutenção apenas das contribuições de empregados e empresas
patrocinadoras. As empresas reconhecem parte da dívida, porém
outra parte, estimada em R$ 1,1 bilhão, é considerado compromisso
do Governo Federal por conta do não recolhimento da “terceira
fonte” desde 1991. Essa alegada “dívida” também é objeto de ação
contra a União, movida pelo Aerus.
No início da década de 90, as novas práticas comerciais, o
crescimento da TAM, e a evolução tecnológica (programas de
reservas por computador, capazes de traçar as preferências dos
usuários com base nos destinos, freqüências e horários de vôo
escolhidos) levaram as empresas aéreas, envolvidas numa
competição pela qualidade dos serviços, a reivindicar flexibilização
nas regras do mercado, relativas a tarifas e ampliação da oferta.
As companhias aéreas nacionais são autorizadas a operar
nos aeroportos centrais (Congonhas e Santos Dumont), antes
restritos aos vôos das companhias regionais. São introduzidos os
programas de fidelidade ou milhagem, concomitantemente com a
autorização para a flexibilização das tarifas, com a autorização para
a prática de descontos por época do ano, horários e compra
antecipada e a política de bandas tarifárias (limites máximo a mínimo
autorizados pelo órgão regulador). Essas medidas permitiam a prática
comercial denominada de yield management, pela qual as
companhias aéreas, ao diferenciar o preço da passagem de acordo
com o perfil dos consumidores, procuravam extrair o máximo lucro,
se apropriando do excedente do consumidor.
As companhias aéreas também passam a reivindicar a
entrada em novos mercados e o aumento da oferta. Vasp e
Transbrasil, e posteriormente a TAM, são autorizadas a operar
20
vôos internacionais, além da Varig. A TAM, grande beneficiária
do SITAR, reivindica e obtém autorização para operar rotas
nacionais, seguida da Rio-Sul. As regras normativas para a entrada
no mercado são arrefecidas. Vôos não-regulares (ou charters)
são autorizados com maior freqüência. Na segunda metade da
década de 90, tem início uma intensa competição com a concessão
de tarifas promocionais, objetivando o aproveitamento máximo
da capacidade ofertada.
Desde 1998, Varig, Vasp, Transbrasil, TAM e Rio-Sul
passaram a questionar em juízo a cobrança da suplementação tarifária
instituída pelo SITAR para subsidiar as linhas aéreas que atendem
localidades remotas e com baixa densidade de tráfego, obtendo
liminares dispensando o recolhimento da Suplementação.
Beneficiárias da suplementação enquanto empresas regionais,
quando passaram a operar vôos nacionais, e a ter que recolher a
suplementação, passaram a questioná-la. A GOL não teve a mesma
sorte e, conjuntamente com algumas empresas menores, são as
únicas empresas que continuam recolhendo a suplementação. A
argumentação das empresas aéreas é de que a suplementação,
estabelecida por Decreto, não teria validade legal para tornar-se
compulsória.
A política de liberalização ou desregulação iniciada nos anos
90 culmina com a adoção da liberdade tarifária e a entrada da Gol
no mercado, em 2001, período em que já se manifestavam os
problemas econômico-financeiros das empresas de aviação
tradicionais.
A intensa competição, a desvalorização cambial de 1999, a
elevação do preço do querosene de aviação, a tributação incidente
sobre o setor, a desregulação, a entrada da Gol no mercado e os
21
atentados terroristas aos EUA em 2001 são alegados, pelas
companhias aéreas deficitárias, como as causas da crise por que
passam.
Entretanto, observamos que os débitos das companhias
“tradicionais” (Varig, Vasp e Transbrasil) com o Fisco, com o INSS
e com os fundos de pensão montam a períodos anteriores ao início
da década de 90, quando teve início a desregulação. Décadas de
relação incestuosa entre o poder público e as companhias aéreas,
em que subsídios, subvenções, benefícios fiscais e alocação
coordenada da capacidade ofertada (funcionamento da Comissão
de Linhas Aéreas – CLA, no âmbito do DAC, constituída dos
representantes das companhias aéreas e do órgão regulador, onde
era decidido quem voa para onde, em quais horários e freqüências),
conjugado com o argumento de que a aviação comercial é um modal
de transporte estratégico, promotor da integração nacional e questão
de soberania nacional, induziram à contumaz inadimplência das
empresas com o Erário, considerado o poder público um “sócio”
natural do setor.
A Vasp, desde a era estatal e após a privatização, sempre
foi uma empresa deficitária e inadimplente com os cofres
públicos. A Transbrasil, mesmo no período da regulação
protecionista, beirou a falência, ensejando a intervenção da União
em 1986. Ainda assim após uma década e meia, não escapou
da falência. A Varig, com um modelo de gerência corporativa
irresponsável, a co-gestão dos empregados na Fundação Rubem
Berta, a inadimplência desta com o fundo de pensão Aerus, a
prática de salários e benefícios generosos, acima da média
praticada pelo mercado, e a sobreposição de níveis de gerência
na estrutura organizacional da empresa, levaram inevitavelmente
às atuais dificuldades.
22
As concessões para a operação de linhas aéreas é ato
discricionário da Autoridade Aeronáutica. Não seguem qualquer
processo licitatório. Um verdadeiro imbróglio legal e normativo disciplina
a matéria. As concessões não obedecem a Lei Geral das Concessões
– Lei 8.987, de 1995. A Lei de licitações – Lei 8.666, de 1993,
estabelece, em seu artigo 122, que nas concessões de linhas aéreas,
observar-se-á procedimento licitatório específico, a ser estabelecido
no Código Brasileiro de Aeronáutica - CBA. O CBA, Lei nº 7.565, de
1986, é omisso quanto a qualquer procedimento licitatório. Linhas e
rotas, ou seja, a capacidade ofertada, é acertada e distribuída no contexto
de comissões estabelecidas pelo Departamento deAviação Civil- DAC,
das quais participam os representantes das empresas aéreas.
A discricionariedade da Autoridade Aeronáutica na concessão
de linhas e a atuação cartelizada das companhias aéreas, temerosas
da entrada de novos concorrentes no mercado, estabeleceram uma
relação incestuosa e perniciosa entre o poder público e as empresas
aéreas. Não existem regras explícitas, tampouco transparência na
regulação. O espaço ocioso nas aeronaves, que representa um custo
marginal próximo a zero para as empresas aéreas, é utilizado com
freqüência como moeda de troca na relação entre as companhias
aéreas e autoridades públicas, na forma de passagens gratuitas. Não
é de estranhar que nesse setor, um ex-Ministro da Aeronáutica tenha
se tornado Diretor Presidente de companhia aérea regional e
Presidente do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias SNEA, presidindo-o de 1997 a 2000.
O Comando da Aeronáutica editou a Portaria n° 731/GC5,
de 31 de julho de 2003, que altera dispositivos da Política para os
Serviços de Transporte Aéreo Comercial do Brasil, relativos às
diretrizes para o transporte aéreo nacional. As novas diretrizes para
o transporte aéreo nacional têm a finalidade de “adequar a oferta
23
de transporte aéreo, feita pelas empresas aéreas, à evolução da
demanda”, determinando ao Departamento de Aviação Civil – DAC
“considerar, quando da análise para criação de novas empresas, o
comportamento e a especificidade do mercado foco de atuação e a
situação econômica das empresas existentes, principalmente quanto
a compromissos assumidos.” A Autoridade Aeronáutica,
considerando que “o excesso de oferta tem, normalmente, um
impacto sério sobre a viabilidade econômica das operações’’,
determina que “será evitada a superposição de linhas com
proximidade de horários, resguardando-se o interesse do usuário,
caso seja necessária a concessão de um novo horário próximo a
outro, o novo horário deverá ser posterior ao já autorizado.”.
Concluindo, as novas diretrizes determinam que “deve ser mantido
um acompanhamento contínuo da evolução da estrutura de custos
operacionais do setor, para, em estreita ligação com os órgãos
governamentais das áreas de economia e justiça, coibir os abusos,
a cartelização e o dumping.”
A Portaria n° 731/GC5, do Comando da Aeronáutica,
complementa outra Portaria, a de n° 243/GC5, de 13 de março de
2003, que “dispõe sobre as medidas destinadas a promover a
adequação da indústria de transporte aéreo à realidade do mercado”
e determina que “as empresas aéreas serão concitadas a desenvolver
planos de racionalização de suas linhas, a serem elaboradas em
coordenação e com a colaboração do DAC”. Também determina
que “a autorização para a importação de aeronaves comerciais,
emitida pelo DAC, deverá sujeitar-se à comprovação de real
necessidade pelo requerente, com base nas autorizações concedidas
para a exploração de transporte aéreo”
Conforme exposto, no Brasil, já convivemos com dois
modelos de regulação: o modelo intervencionista e o liberalizante.
24
Em ambos, as empresas aéreas passaram por dificuldades
econômicas e financeiras. Portanto, é possível sugerir que algo mais
que o modelo regulador se apresenta como causa das dificuldades
das empresas operantes no mercado de transporte aéreo.
3. AS CARACTERÍSTICAS DO MERCADO DE
AVIAÇÃO COMERCIAL
O mercado de aviação, historicamente, é caracterizado por
uma grande sensibilidade em relação ao ciclo dos negócios: a
demanda é elástica em relação à renda, ou seja, quando o PIB e
renda per capita crescem, a demanda por transporte aéreo aumenta,
e quando o PIB cai, a demanda é contraída. O setor também é
caracterizado por um elevado grau de competição, acarretando
baixas taxas de lucratividade e rentabilidade (que oscilam, na média,
entre 1% a 9% de retorno sobre o capital investido).
Existem barreiras econômicas e físicas para a entrada no
mercado. A disponibilidade de espaços para operar em aeroportos,
como acesso a gates (portões para embarque e desembarque de
passageiros) e slots (horário para pouso e decolagem) constituem
barreiras físicas para a entrada de novas empresas. A detenção de
uma marca reconhecida, os programas de fidelidade, sistemas de
reservas por computador e a conexão destes com as agências de
viagens representam barreiras econômicas.
A demanda por transporte aéreo é caracteristicamente
segmentada. Cerca de 70% da demanda é representada por clientes
corporativos (pessoa jurídica), cujos representantes ou funcionários
viajam a serviço. Neste segmento, o poder público pode ser
considerado como o maior cliente das empresas aéreas. Este
25
segmento é tipicamente preço inelástico, ou seja, não é sensível a
preço e altamente sensível a horários dos vôos, qualidade dos
serviços e freqüências. Cerca de 25% da demanda é constituída
dos turistas, que apresentam uma procura sazonal e altamente sensível
a preço e menos sensível a horários dos vôos. Uma demanda
residual é exercida por passageiros que viajam por motivos
particulares.
A conjugação das características da demanda e as barreiras
existentes para entrar no mercado de transporte aéreo de passageiros
determinam um padrão de competição extremamente acirrado e
com peculiaridades específicas. Como a demanda oscila e a
capacidade para operar nos aeroportos é uma barreira à entrada,
as empresas relutam em abandonar rotas e freqüências quando a
demanda está retraída, com receio de que a capacidade abandonada
seja preenchida por um concorrente, limitando o acesso ou retorno
quando a demanda voltar a aquecer. Isto leva as empresas a
manterem uma certa capacidade ociosa em sua malha de operações.
A manutenção de capacidade ociosa enseja a disputa por
passageiros, e, em conseqüência, a guerra tarifária, com a
segmentação dos assentos disponíveis em uma aeronave, objetivando
extrair o máximo em termos de excedente do consumidor. Se oferta
e tarifas são controlados pelo regulador, a competição exacerbada
se dá via qualidade dos serviços ofertados (serviços de bordo, salas
vips de espera, “tapetes vermelhos”, ampliação da rede de parceiros
dos programas de fidelidade, etc) e ampliação da malha de
localidades atendidas (prestação de serviços a localidades com baixa
densidade de tráfego) na disputa por passageiros, o que eleva os
custos das empresas.
Num setor regulado em que a Autoridade Aeronáutica
possui total discricionariedade para determinar quem entra no
26
mercado, a alocação da capacidade ofertada, a alocação de
linhas, freqüências, horários, é natural que as empresas tendam
a manter um excesso de capacidade, com receio de perda
irrecuperável de linhas e autorizações de horários para pouso e
decolagem em aeroportos, bem como para utilização de áreas
aeroportuárias, temendo que essa capacidade seja alocada aos
concorrentes. Num setor em que o poder concedente exerce
total controle, sem prestar contas à sociedade e aos usuários
dos serviços, é natural que o mesmo seja facilmente
responsabilizado por qualquer problema que afete o equilíbrio
econômico-financeiro dos serviços prestados. Dadas essas
características institucionais, é natural que a prática da captura
seja estimulada.
Como a rentabilidade é baixa e a competição é acirrada, para
sobreviver no mercado de aviação comercial é indispensável uma
administração zelosa dos custos operacionais e financeiros, fator
crucial para o êxito do negócio. Também deste fato é possível
deduzir o argumento corriqueiramente utilizado pelos grupos de
pressão interessados (empresários e trabalhadores aeronautas e
aeroviários), que vinculam a aviação comercial a interesses
estratégicos do país, como recurso recorrente ao poder público na
resolução dos problemas do setor.
A história da aviação comercial, nacional e internacional, está
repleta de êxitos e fracassos, o que ilustra as peculiaridades do
mercado. Experiência e tradição não são condições para a
sobrevivência no mercado. Grandes e tradicionais empresas de
aviação faliram ou foram incorporadas por concorrentes. No
mercado norte-americano, o mais pujante da aviação comercial,
empresas como Eastern Airlines, Midway, Pan Am e TWA foram
liquidadas. Suas linhas, gates e slots foram absorvidos pelos
27
concorrentes. No Brasil, a ascensão da Varig, como já apontamos,
se deu incorporando outras empresas ou assumindo as rotas da
falida Panair.
Outra diferenciação fundamental diz respeito às peculiaridades
dos mercados doméstico e internacional. O mercado internacional
é caracterizado pelo estabelecimento de rígidas regras no contexto
de acordos bilaterais, ao amparo da Convenção de Chicago, de
1944. Em 1944, o Brasil aderiu à Convenção de Aviação Civil
Internacional, conhecida como Convenção de Chicago, e tornouse membro do Conselho da Organização de Aviação Civil
Internacional – OACI, com assento no primeiro Grupo desta
Organização, constituído dos países com maior contribuição para
o desenvolvimento da aviação mundial. Desde então, a aviação civil
brasileira tem adotado os padrões técnicos da OACI, também
aplicados na aviação doméstica. As rotas internacionais, suas
freqüências e tarifas são estabelecidas em acordos bilaterais entre
dois países, vetando o transporte de cabotagem. Cada país designa
unilateralmente a quantidade de empresas nacionais que irão atender
as rotas e freqüências negociadas, podendo exercer ou não o direito
de utilizar a totalidade ou parte das freqüências negociadas.
Países de dimensões continentais, com população dispersa,
como os EUA, o Brasil, o Canadá, a Rússia, a Austrália, a China
e a Índia, ensejam a potencialidade de um mercado doméstico de
aviação competitivo. Em países de pequena dimensão territorial,
o modal aéreo compete estritamente com os demais modais de
transporte (ferroviário, aquaviário, rodoviário), enfraquecendo a
potencialidade de um mercado doméstico de aviação. Nesses
países, uma única empresa aérea, atuante principalmente no
mercado internacional, é fundamental, como é o exemplo dos
países europeus.
28
Assim, configura-se manifestamente enganosa a comparação
entre as práticas e os relacionamentos de governos e empresas
aéreas européias, que têm no mercado internacional a principal
inserção de suas empresas, com as do mercado doméstico de
aviação brasileiro.
A inserção do Brasil no mercado internacional de aviação
precisa estar respaldada em uma política específica, distinta do
mercado doméstico de aviação. Enquanto uma política que induza
à inserção de apenas uma companhia de bandeira brasileira no
mercado internacional parece apropriada, o mesmo não se aplica
ao mercado doméstico brasileiro, que comporta um maior número
de empresas operantes e regras regulatórias mais flexíveis. Dados
do DAC referentes ao resultado operacional das empresas aéreas
brasileiras atuantes no mercado internacional, para o período de
1997 a 2001, apontam que o déficit operacional registrado no
mercado internacional foi compensado pelo superávit no mercado
doméstico, do que se pode inferir que o mercado doméstico
brasileiro comporta uma estrutura de mercado competitiva.
4. RECENTES MEDIDAS GOVERNAMENTAIS DE
APOIO À AVIAÇÃO COMERCIAL
Nos últimos anos, o Governo brasileiro muito tem auxiliado
as empresas aéreas. Em decorrência dos atentados terroristas aos
EUA, em 2001, e do conseqüente encarecimento do custo do seguro
para a cobertura de riscos, o Governo brasileiro resolveu assumir a
responsabilidade civil perante terceiros (limitado a US$ 1,0 bilhão
o montante de despesas que a União fica autorizada a assumir), no
caso de atentados terroristas ou atos de guerra contra aeronaves
de matrícula brasileira operados por empresas brasileiras de
29
transporte aéreo público, excluídas as empresas de táxi aéreo. Essa
assunção inicialmente foi temporária, mas, com a indefinição de uma
solução conjunta, no âmbito da OACI, foi prorrogada
indefinidamente por meio da Lei nº 10.744, de 2003. Esta
providência desonerou as empresas aéreas da contratação dessa
modalidade de cobertura de risco.
O Governo Federal, por meio do Decreto n° 3.975, de 18
de outubro de 2001, estabeleceu alíquota zero para a incidência de
IPI sobre peças e aeronaves de médio porte, quando adquiridos
por empresas concessionárias de transporte aéreo e facilitou o regime
especial de entreposto aduaneiro para a importação de peças e
componentes aeronáuticos. A Lei n ° 10.560, de 13 de novembro
de 2002 (conversão da MP 67, de 2002), dispõe sobre tratamento
tributário dispensado às empresas de transporte aéreo, suspendendo
a cobrança do imposto de renda incidente sobre o pagamento de
contraprestação de arrendamento mercantil de bens de capital
arrendados por empresa de transporte aéreo; concedendo remissão
dos débitos de responsabilidade das empresas nacionais de
transporte aéreo correspondentes à contribuição para o PIS/Pasep,
à Confins e ao Finsocial incidentes sobre a receita bruta decorrente
do transporte internacional de cargas ou passageiros; e
estabelecendo a isonomia tributária entre as companhias aéreas
nacionais e internacionais, quanto à incidência de tributos federais
sobre o querosene de aviação, quando adquirido em território
nacional.
As empresas aéreas reivindicam a redução da carga tributária
incidente sobre o setor, que, segundo elas, representa 35% do preço
final das passagens aéreas no Brasil. Entretanto, analisando os itens
classificados como tributos pelo estudo do SNEA, verificamos que
estão incluídas as tarifas pagas pela prestação de serviços
30
aeroportuários e de auxílio à navegação. Esses são serviços
prestados, e não tributos. Se excluídas do cálculo as tarifas pelos
serviços prestados, verificamos que a carga tributária que
efetivamente grava o setor é da ordem de 15%.
A Infraero instituiu plano de securitização de dívidas das
empresas aéreas relativas ao pagamento de tarifas aeroportuárias,
permitindo o alongamento e modificação do perfil dessas dívidas.
As tarifas aeroportuárias não são reajustadas desde 1997.
Em outubro de 2003, venciam as concessões de Vasp e Varig,
as quais foram prorrogadas pelo Decreto nº 4.856, de 9 de outubro
de 2003, tendo sido concedido um prazo de 180 dias para as
empresas comprovarem a sua regularização fiscal, tributária,
previdenciária, bem como a regularidade jurídica, técnica e
econômico-financeira. Essas empresas não conseguiram a
comprovação em tempo hábil e o Decreto nº 5.034, de 5 de abril
de 2004 prorrogou até 10 de outubro de 2004 o prazo para a
referida comprovação de regularidade. O novo prazo concedido
não foi suficiente para habilitar as empresas a comprovarem a
regularidade requerida. Os Decreto n° 5.218, de 29 de setembro
de 2004, e n° 5.236, de 7 de outubro de 2004, concederam novo
prazo, até 10 de abril de 2005, à Varig e Vasp, respectivamente,
comprovarem a regularidade fiscal e previdenciária.
Diante do exposto, fica evidente que o setor de transporte
aéreo é um dos mais beneficiados pelo Poder Público em nosso
País. Por mais estratégico que o transporte aéreo possa ser
caracterizado, como fator de promoção da integração nacional e
da segurança nacional, as benesses usufruídas pelo setor não são
comparáveis a nenhum outro ramo de atividade econômica.
Trabalhadores das indústrias de telecomunicações, petróleo, energia
31
e transporte rodoviário, também estratégicos e de fundamental
importância para o País, jamais contaram com fonte de custeio da
previdência complementar bancada pelos usuários desses serviços.
Também muitos setores produtivos têm parte considerável de seus
custos de produção atrelados às oscilações cambiais e dos preços
dos derivados de petróleo, sem que, por isso, tenham mergulhado
em profundas crises. Assim, é inevitavelmente forçoso concluir que
existem graves problemas de governança corporativa nas empresas
aéreas.
5. CONCLUSÃO
Concluindo, em relação a um novo marco regulatório,
considerando a evolução da regulação do transporte aéreo no Brasil,
entendemos ser urgente e necessária a instituição de regras
transparentes, perenes e critérios objetivos para a entrada e saída
do mercado. A concessão provisória da prorrogação das concessões
da Varig e Vasp, outorgadas mediante Decretos, cuja prorrogação
definitiva encontra-se pendente da comprovação da regularidade
fiscal, tributária e previdenciária das inadimplentes Varig e Vasp,
comparadas com a concessão outorgada mediante ato normativo
do Comando da Aeronáutica à Gol e à TAM, caracterizam o grau
de confusão vigentes no mercado de aviação. As regras são alteradas
de maneira arbitrária por ato administrativo do atual órgão regulador,
ao amparo do já defasado Código Brasileiro de Aeronáutica. Para
o setor, cujo mercado requer regulação, como todos reconhecem,
urge a instituição de uma agência reguladora, capaz de regular e
fiscalizar o mercado de aviação comercial, com transparência,
autonomia e controle social, nos moldes propostos pelo Governo
com o novo modelo para as agências reguladoras e como determina
o artigo 21 da Lei Complementar nº 97, que estabelece que Lei
32
criará a Agência Nacional de Aviação Civil, entidade responsável
pela regulação e fiscalização da aviação civil e da infra-estrutura
aeroportuária.
A instituição da concessão onerosa para a outorga de linhas e
slots permitirá a atribuição de valor aos mesmos, passando a integrar
o patrimônio das companhias aéreas, como direitos. O investimento
na viabilidade comercial de uma linha permitirá a justa compensação
patrimonial das empresas responsáveis. O poder público poderá
estabelecer leilões para a concessão de novas linhas e slots nos
aeroportos, permitindo a introdução de regras justas, transparentes e
objetivas para as concessões. As companhias aéreas poderão negociar
suas linhas e slots, transferindo-os a outras empresas, se julgado
conveniente. Empresas em dificuldades poderão vender suas
concessões e direitos de operação em aeroportos, mitigando os efeitos
provocados pelo baixo nível de imobilização do capital e, ao constituir
um ativo, alavancar empréstimos com a concessão de garantias reais.
Sem dúvida, em muito a regulação do mercado de aviação civil requer
aprimoramentos, sem desmerecer os louváveis e pioneiros esforços
dos militares da Aeronáutica, que viabilizaram a aviação civil no Brasil.
O que não deve ser feito é uma alteração regulatória casuística,
objetivando favorecer a empresa vermelha, amarela ou azul.
A inserção da aviação comercial brasileira nos mercados
internacionais deve ser tratada de forma distinta do mercado
doméstico. No transporte internacional as economias de escala são
significativas, a competição é acirrada e a presença de uma
companhia aérea brasileira atuante nas principais rotas de destino
internacionais do e para o Brasil é estratégica. Nesse mercado, o
apropriado é a existência de uma única empresa brasileira atuante,
exceção da América do Sul, que pode comportar mais de uma
empresa brasileira.
33
O setor de transporte aéreo necessita, urgentemente, de ações
firmes das autoridades visando à instituição de regras objetivas e
transparentes para a concessão dos serviços de transporte aéreo,
aplicando os dispositivos da Lei Geral de Concessões, com
licitações, para a alocação da capacidade ofertada de serviços,
seja no tocante às linhas, freqüências, utilização de áreas
aeroportuárias e horários para pouso e decolagem nos aeroportos.
A regulação eficaz e eficiente desse setor só será possível através
de uma agência reguladora, que observe os princípios de autonomia,
transparência e controle social propostos pelo Governo para as
demais agências reguladoras.
34
BIBLIOGRAFIA
CASTRO, Newton e LAMY, Philippe. Desregulamentação
do setor transporte: o subsetor transporte aéreo de passageiros.
IPEA, Texto para Discussão n° 319, outubro de 1993.
DAC. Institucional: Evolução do Transporte Aéreo:
www.dac.gov.br
____. Um breve histórico do Departamento de Aviação
Civil: www.dac.gov.br
FARINA, Elizabeth M.M.Q e SCHEMBRI, Antonina.
“Desregulamentação: a experiência norte-americana”.
Pesquisa e Planejamento Econômico, Rio de Janeiro, v.20, n.2,
p.325-352, ago.1990.
FRANCO, Francisco de Assis Leme et alii. 2002. “Recent
deregulation of the air transportation in Brazil”. Secretariat for
Economic Monitoring of the Ministry of Finance, Brasília-DF.
PEREIRA, Aldo. 1966. Aviação comercial brasileira. Rio
de Janeiro: Editora Civilização Brasileira.
RODRIGUES, Rodrigo A. 2003. O mercado de aviação
doméstica no Brasil: o processo de desregulação
comparado com a experiência norte-americana, sob o
enfoque da Teoria Política Positiva da Regulação.
Brasília:Dissertação de Mestrado em Economia da Regulação:
Universidade de Brasília.
SINDICATO NACIONAL DAS EMPRESAS
AEROVIÁRIAS. 2000. Reforma Tributária. Rio de Janeiro,
www.snea.com.br: estudos.
TAVARES, Márcia Prates. “O transporte aéreo doméstico
e a lógica da desregulamentação”. Ministério da Fazenda,
Secretaria de Acompanhamento Econômico. Documento de
Trabalho n° 04, Novembro/1999.
UNITED STATES GENERAL ACCOUNTING OFFICE.
35
Domestic Aviation: Barriers Continue to Limit Competition.
GAO/T-RCED-98-32, October 28, 1997.
_______. Aviation Competition: Proposed Domestic
Airline Alliances Raise Serious Issues. GAO/T-RCED 98-215,
June 4, 1998.
_______. Airline Deregulation: Changes in Airfaires,
Service Quality and Barriers to Entry. GAO/RCED-99-92,
March 4, 1999.
_______. Airline Competition: Issues Raised by
Consolidation Proposals. GAO-01-370T, Feb.1, 2001.
_______. Aviation Competition: Challenges in Enhancing
Competition in Dominated Markets. GAO/01-518T, March 13,
2001.
* Rodrigo Augusto Rodrigues é Especialista em Políticas Públicas e
Gestão Governamental, bacharel em Ciências Econômicas e Administração
– UFRGS e Mestre em Economia da Regulação - UnB.
36
Cristiano Aguiar
A criação da Agência Nacional do Cinema
e do Audiovisual – uma análise
1– JUSTIFICATIVAS PARA A REGULAÇÃO DO
CINEMA E DO AUDIOVISUAL
O
filme está de trás para frente... Primeiro,
apresenta-se a novidade pronta. Depois, partese para a etapa de discussões. Mas essa é a ordem
nada natural que não apenas o governo federal anterior utilizou,
mas também que o atual continua utilizando na apresentação de
suas propostas mais relevantes. Tudo leva a crer que se criou no
Brasil a “cultura da consulta pública”, instrumento apresentado
muitas vezes como o elixir para a garantia de participação social e
transparência na elaboração de políticas públicas. Mas, uma vez
elaborada a proposta, o máximo que uma consulta pública pode
fazer é alterar uma coisa aqui e outra ali, muitas vezes meros
detalhes cosméticos, visto que raramente há modificações no cerne
dos projetos apresentados e na filosofia que baseia a intervenção
estatal.
A proposta de criação da Agência Nacional do Cinema e do
Audiovisual (Ancinav) não foge a essa regra. O anteprojeto pretende
instalar uma nova agência reguladora que substituirá a Agência
Nacional de Cinema (Ancine) e terá como funções: implementar a
política de cinema e audiovisual, regular e fiscalizar o mercado desses
setores, além de arrecadar e aplicar recursos oriundos de diversas
taxas.
Uma minuta desse anteprojeto esteve em consulta publica no
37
sítio do Ministério da Cultura (MinC) entre os dias 11 de agosto e
01 de outubro de 2004. De acordo com o Secretário-Executivo
do MinC, Juca Ferreira, a proposta é fruto de 14 meses de “amplas
discussões” entre todos os setores envolvidos. Acrescentaria: no
máximo, entre quase todos, já que para a sociedade a proposta é
uma grande novidade. Ela teve a chance de conhecê-la, avalia-la e
de enviar sugestões apenas durante o exíguo tempo de vigência da
consulta pública, a partir de um documento já elaborado e quase
finalizado.
E somente agora, apresentado o anteprojeto de criação da
Ancinav, tem início a discussão que deveria ter ocorrido há muito
tempo: a regulação na área de cinema e audiovisual1 é realmente
necessária? Ou tudo isso não passa de “dirigismo”, de uma tentativa
de controlar a produção cultural e a livre disseminação de
informações?
Iniciamos respondendo a essas duas questões primordiais: a
regulação nas áreas de cinema e audiovisual é realmente necessária.
Não se trata de “dirigismo”. Pelo contrário, apenas com uma intensa
intervenção estatal será possível estabelecer um ambiente
efetivamente plural e democrático, no qual a livre disseminação de
informações e a plena liberdade de expressão são possíveis.
Tal entendimento pode ser referendado por diversas análises,
como por exemplo a apresentada no relatório do grupo de trabalho
interministerial que redundou no documento “Análise e Avaliação
1
Etimologicamente, o termo “audiovisual” abarca o termo “cinema”.
Portanto, a expressão “cinema e audiovisual” seria, em princípio, uma
redundância. Contudo, por fins meramente didáticos, adotaremos nesse
artigo a seguinte divisão: o termo “cinema” designa as produções para
exibição pública nas salas de cinema, enquanto o termo “audiovisual”
refere-se aos conteúdos para reprodução caseira (VHS e DVD), para
exibição por meio da TV ou por todos os demais meios de comunicação
audiovisuais.
38
do Papel das Agências Reguladoras no Atual Arranjo Institucional
Brasileiro”. De acordo com este documento, “a regulação
econômica refere-se àquelas intervenções cujo propósito é mitigar
imperfeições, como a existência de monopólio natural, e assim
melhorar o funcionamento do mercado”. Busca-se, desse modo, a
“maximização da eficiência em mercados caracterizados pela
concentração de poder econômico e naqueles onde as barreiras à
entrada são significativas”.
Ora, quem discorda da tese de que há concentração de
mercado e significativas barreiras à entrada de novos competidores
nos setores de cinema e de audiovisual brasileiros precisa,
urgentemente, rever seus conceitos. Na verdade, não apenas esses
setores, mas todo o mercado de comunicação, em nível global, é
marcado por uma visível oligopolização.
Esse processo de concentração, que vinha ocorrendo de
maneira lenta e gradual desde o estabelecimento da comunicação
em bases empresariais, sofreu grande aceleração em meados dos
anos 80 quando, em um período inferior a quatro anos, as 13 maiores
empresas mundiais de mídia da época realizaram nada mais nada
menos do que 77 operações de aquisição e de fusão. Esse fenômeno,
que manteve seu fôlego por toda a década de 90 e início deste
século, levou à ascensão de um reduzido número de mega-empresas
mundiais ao posto de mais importantes do mercado de comunicação.
De acordo com alguns estudiosos, o mercado global de mídia
é hoje controlado por não mais que dez conglomerados. Número
este que, segundo algumas previsões, deve cair para quatro ou cinco
nos próximos anos (LIMA 2001).
Especificamente no setor de produção cinematográfica, a
concentração de mercados e o estabelecimento de crescentes
barreiras à entrada de novos concorrentes são tão ou mais intensos
do que se observa na média dos demais setores das comunicações.
Fenômeno experimentado em escala global.
39
Essa concentração tem-se dado em toda a cadeia de
produção cinematográfica: desde a realização das obras, que ocorre
cada vez mais nos grandes estúdios dos Estados Unidos ou em
parceria com esses; até a exibição, progressivamente concentrada
em salas multiplex de propriedade de oligopólios globais; passando
pela distribuição, feita usualmente por subsidiárias ou coligadas dos
grandes estúdios (SIMIS 1998).
É verdade que, tanto no cinema quanto no audiovisual, a
concentração de mercados é condição essencial para o
estabelecimento dos ganhos de escala necessários à sobrevivência
das grandes corporações. Assim como também é verdade que
essa concentração só pode ocorrer até determinado patamar, sob
pena de inviabilizar qualquer tipo de competição no setor. Tal
preocupação existe até mesmo nos Estados Unidos – país de
tradição bastante liberal – onde a Federal Communications
Commission (FCC) estabelece diversos mecanismos de controle
de propriedade e de garantia de livre competição nas
comunicações, inclusive no que concerne aos setores de cinema e
de audiovisual.
Outra justificativa para a necessidade de se regularem
mercados é a existência de falhas relativas a externalidades e a
assimetrias significativas de informação e poder. Pois em um
mercado de comunicações concentrado, são conseqüências
imediatas a existência de um menor número de fontes de propagação
de informações, a redução da pluralidade de pensamento e, em
última instância, um decréscimo significativo da liberdade de
expressão.
Especificamente no caso brasileiro, essa concentração de
mercado nas comunicações e todas as externalidades negativas
que daí decorrem são bastante visíveis. No setor de audiovisual,
o mercado se estabeleceu ao redor das grandes redes de
televisão, marcado por um alto percentual de produção própria
40
de conteúdo2. Contam-se essas redes nos dedos de uma mão.
Logo, nessa mesma mão, contam-se os principais produtores
dos programas televisivos. No setor cinematográfico a situação
é quase idêntica, a não ser pelo fato de que, além do oligopólio,
há ainda um alto grau de desnacionalização da produção, o que
não ocorre no setor de audiovisual, somado ao fato de a maioria
das obras exibidas no Brasil ser proveniente do exterior,
especialmente dos Estados Unidos.
Para aqueles que acreditam ser a Ancinav uma tentativa de
“dirigismo” estatal, uma constatação: na verdade, o “dirigismo” já
existe de fato, mas não pelas mãos do Estado, e sim do mercado,
atual senhor quase único da produção cultural brasileira em cinema
e audiovisual.
2 – ANALISANDO O ANTEPROJETO
Para nosso grande alívio, a regulação do cinema e do
audiovisual é realmente necessária, e o anteprojeto apresentado
pelo Ministério da Cultura (MinC) não é em vão. Portanto, também
não é em vão analisar a proposta apresentada, em busca do
aperfeiçoamento do arcabouço jurídico que se pretende dar à futura
Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Tal aperfeiçoamento
é essencial, pois, como demonstraremos nas linhas a seguir, o
anteprojeto da Ancinav, nos moldes atuais, implementa um modelo
repleto de erros e incertezas.
Antes de mais nada, é preciso ressaltar que o MinC,
2
A Rede Globo de Televisão, por exemplo, produz aproximadamente 90% de
sua programação. As demais redes têm um índice de produção própria menor,
mas também alto, variando entre 50% e 80% (Fonte: “Tema Polêmico”, artigo
publicado na Revista Consultor Jurídico de 1º de julho de 2003).
41
tanto na exposição de motivos que acompanha o anteprojeto de lei
quanto nos esclarecimentos do Ministro Gilberto Gil, incorre em
um sério erro conceitual: a idéia de que é possível (necessário)
separar o tratamento legal e institucional que se dá às redes físicas e
às plataformas tecnológicas da regulação das atividades de produção
e difusão de conteúdo audiovisual. A Ancinav, portanto, seria um
ente complementar à Agência Nacional de Telecomunicações e ao
Ministério das Comunicações. Algo que o item 11 da exposição de
motivos chama de “separação do hardware do software”.
Na verdade, tais regulações são inseparáveis. Se hoje o
conteúdo (software) é produzido de maneira concentrada, isso se
dá, em grande parte, devido à regulação que se dá à infra-estrutura
(hardware). E não há como mudar aquele se não houver alteração
na regulação desta. O próprio anteprojeto de lei, de certa forma,
admite essa inseparabilidade ao estabelecer, no parágrafo 2º de seu
artigo 38, que “outras modalidades de conteúdos audiovisuais serão
definidos pela Ancinav em função de (...) (seu) meio de suporte e
de transmissão, tecnologia empregada e outros atributos”. Se a
própria definição da modalidade do conteúdo audiovisual está
atrelada à tecnologia e à infra-estrutura que o suporta, como tentar
separar as suas regulações?!
É no mesmo item 11 da exposição de motivos que se revela
a verdadeira causa da busca dessa separação – a inviabilidade
política da idéia original do ex-ministro Sérgio Motta de desenvolver
a chamada “Lei de Comunicação Eletrônica de Massa”, que deveria
redundar em uma única agência responsável pela regulação de todo
o setor de comunicações, no que concerne tanto à infra-estrutura
quanto ao conteúdo. A derrota do estabelecimento de uma legislação
única para as comunicações tornou-se fato no momento em que a
“Agência Nacional de Comunicações” pensada por Motta não
vingou, dando lugar a outra proposta, que viria a se concretizar na
Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Foi a partir das
42
discussões que precederam à reforma das telecomunicações
brasileiras que a tese da separação entre hardware e software
ganhou corpo, sendo publicamente defendida pelo sucessor de
Motta, o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros. E essa tese
da separação foi a politicamente vencedora, como comprovam todos
os fatos que se seguiram à reforma das telecomunicações.
Portanto, o que propõe o MinC não é baseado em uma teoria,
e sim em uma possibilidade política. Tendo em vista que o
estabelecimento de um arcabouço legal único e de uma única agência
reguladora para todo o setor de comunicações é algo politicamente
inviável – ainda que seja o ideal -, opta-se pela criação de uma
agência separada, que se concentrará nas questões ligadas aos
conteúdos do cinema e do audiovisual. Bem, nada mais justificável,
visto como contribuição para a vulgarização do aforismo de
Bismarck, “a política é a arte do possível”.
Mas talvez o impossível esteja em superar o conflito intraestatal que a Ancinav, como está sendo proposta, irá criar. Com a
Anatel, a confusão se dará na hora de definir quem é quem na
regulação dos serviços de comunicação eletrônica de massa por
assinatura (TV por assinatura), bem como nos demais serviços de
telecomunicações que transmitam conteúdo audiovisual, ainda que
eventualmente e apenas como serviço de valor agregado. Com o
Ministério das Comunicações, a rinha será no setor de radiodifusão
de sons e imagens (TV aberta). E com o Ministério da Justiça,
poderá haver conflito ao se definir qual será o papel de cada ente
governamental no estabelecimento de sistemas de classificação
indicativa de obras cinematográficas e de outros conteúdos
audiovisuais.
Todas essas indefinições são potencializados pela redação
vaga de alguns itens do anteprojeto de lei. Fala-se, por exemplo,
em “regular as atividades cinematográficas e audiovisuais” (Art. 20,
43
IV), em “apreciar (...) denúncia (...) contra prestadoras de serviços
de telecomunicações” (Art.20, XV), em “regular a relação de
programadoras e distribuidoras de conteúdo audiovisual” (Art.20,
XVII), dentre outras atribuições. Contudo, não se estabelece
exatamente o que é esse “regular” ou “apreciar”.
Além disso, o processo de convergência tecnológica no setor
de comunicações faz com que, a cada dia, as barreiras que definem
o que é cada um dos serviços seja cada vez mais tênue e porosa. A
atividade de regulação posta em prática pelos entes governamentais
ligados às comunicações, – citem-se Anatel, Ministério das
Comunicações e Ancine (talvez futura Ancinav) -, é metastática,
crescendo no mesmo ritmo em que cresce a oferta de serviços de
comunicações. Desse modo, a definição da responsabilidade de
cada um desses entes tende a se tornar cada vez mais problemática,
e as rusgas serão inevitáveis (como já ocorrem constantemente entre
Anatel e Ministério das Comunicações).
Além dos conflitos de competência, há ainda a possibilidade
de desentendimentos devido à possível transferência de recursos
entre agências, uma vez que 5% dos recursos do Fundo de
Fiscalização das Telecomunicações (Fistel), referentes às alíneas
“c”, “d”, “e” e “j” da Lei 5.070/66 (com redação dada pela Lei
9.472/97), serão repassados ao Fundo de Fiscalização do Cinema
e do Audiovisual, sem qualquer teto para o valor bruto a ser
repassado.
Atualmente, as verbas provenientes do Fistel são quase todas
remetidas à Anatel, cabendo à Ancine somente até 3% dos valores
referentes às alíneas da Lei 5.070/66 citadas anteriormente, até um
limite de valor bruto de R$ 30 milhões anuais. Na prática, portanto,
a Ancinav vai receber mais dinheiro e, por conta disso, a Anatel
menos.
E quem estiver na Ancinav vai ter de se especializar em
conflitos. Mas, ao contrário dos conflitos intra-estatais, que são, na
44
maior parte das vezes, dispensáveis, os conflitos com o mercado
devem ser a própria razão de existência da Ancinav – desde, é
claro, que ocorram em níveis razoáveis e com vistas à eficiente prática
regulatória. Afinal, a atividade mais nobre de uma agência reguladora
não é justamente intervir no mercado, de forma a torná-lo mais
justo, eficiente e, primordialmente, capaz de atender às necessidades
coletivas? E não há como intervir sem se criar uma boa dose de
“desentendimentos”, sem se estabelecer um embate entre governo
e agentes econômicos, de forma que esses agentes não se guiem
exclusivamente pelas leis do mercado, mas também por vontades
políticas legítimas e referendadas pela correta atuação estatal.
Contudo, não apenas os fatos recentes, mas toda a história
de audiovisual brasileiro demonstra que esse conflito deverá ser
muito mais intenso do que o que ocorreu na instalação das diversas
outras agências reguladoras hoje em funcionamento no País. Tal
fato ocorre porque o atual modelo brasileiro de regulação do
audiovisual é, em sua maior parte, estabelecido pelo carcomido
Código Brasileiro de Telecomunicações – CBT (Lei 4.117/62),
promulgado ainda durante o Governo João Goulart, e com as
posteriores alterações quase todas estabelecidas durante o regime
militar. Desde então, houve poucas mudanças. As principais foram
o estabelecimento de regras específicas para o setor de TV por
assinatura, com destaque para a lei da TV a Cabo (Lei 8.977/95) e
para a Lei Geral de Telecomunicações - LGT (Lei 9.472/97), que
trouxe apenas alterações pontuais na regulação do espectro
radioelétrico e do setor de TV por assinatura, que passaram a ser
de responsabilidade da Agência Nacional de Telecomunciações.
Essas inovações, contudo, mantiveram praticamente intacto o velho
modelo, e as mudanças ocorridas no setor de audiovisual estão
sendo ditadas por fatores basicamente de mercado (BOLAÑO
2001).
O CBT, no que concerne à radiodifusão, se mantém vigente,
45
tendo sido revogados, pela LGT, seus artigos referentes às
telecomunicações. Na prática, o Código estabelece um controle
incrivelmente burocrático, rígido e ineficiente das atividades de
radiodifusão no País, que pouco contribui para o estabelecimento
de uma comunicação plural e democrática. Os controles de
propriedade são falhos3, não existem mecanismos efetivos para o
estabelecimento de controle social sobre a radiodifusão e boa parte
dos preceitos do CBT está tecnologicamente ultrapassada,
tornando-se mera letra morta. No que concerne ao conteúdo
veiculado pelas empresas de comunicação, é como se não existisse
um efetivo controle das atividades de rádio e TV no Brasil. Hoje,
essas atividades se encontram em um patamar bastante próximo
da auto-regulamentação.
Bastou, portanto, o anúncio de uma possível ação estatal para
a regulação de conteúdos no setor de audiovisual para que a proposta
se tornasse uma “trombeta do apocalipse”, trazendo o prenúncio
de volta da censura. Trata-se de uma reação exacerbada da mídia,
que traduz não uma preocupação da sociedade, mas sim expressões
de discursos de uma classe incomodada pela possibilidade de se
estabelecerem controles à produção de conteúdos. Mais que isso:
trata-se de uma mentira cínica, já que a inexistência de censura no
Brasil é uma cláusula pétrea da Constituição Federal que, portanto,
nem mesmo uma Emenda Constitucional seria capaz de estabelecer
qualquer tipo de cerceamento à liberdade de expressão.
Não que o projeto da Ancinav não trouxesse, de fato, alguns
itens dúbios, que poderiam ser interpretados como possíveis meios
de censura. Citem-se, por exemplo, seu Art. 43, que dava à Ancinav
a competência para dispor sobre “a responsabilidade editorial e as
atividades de seleção e direção da programação” e o inciso I do
3
Os controles de propriedade foram acrescentados ao CBT pelo Decreto
Lei 236/67.
46
Art. 8o, cujo texto estabelece que “a liberdade será a regra,
constituindo exceções as proibições, restrições e interferências do
Poder Público”.
Contudo, praticamente todos esses itens foram extirpados
na primeira revisão do projeto, que precedeu ao término da consulta
pública. Até mesmo o vice-presidente das Organizações Globo,
João Roberto Marinho, um dos maiores opositores do projeto da
Ancinav, admitiu em artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo
em 02 de setembro de 2004, na seção especial “Ancinav em
Debate”, que “a ameaça de volta da censura, que era real, dissipouse com a supressão de diversos artigos”. Bem sabe Marinho que o
governo, quando quer censurar, utiliza meios bem menos explícitos.
Apela para uma “auto-censura imposta”, se é que isso pode existir.
Para tanto, usa todas as armas que estão à sua disposição para
estabelecer cerceamento de forma velada.
Ora, mas se a principal reclamação da mídia em relação ao
anteprojeto da Ancinav era o “dirigismo” que ele representava, e se
os tais itens “dirigistas” foram extirpados, restam ainda motivos para
a mídia espernear tanto? Sim, e muitos. O primeiro deles já foi
citado: a possibilidade de haver um maior controle social sobre a
programação das empresas de TV aberta e de TV a cabo. Para um
setor no qual existe uma virtual auto-regulamentação, essa
possibilidade de maior controle sobre seus conteúdos não é bem
recebida, uma vez que ameaça a liberdade praticamente plena que
as empresas de comunicação hoje têm em suas linhas editoriais. A
Ancinav representaria, pela primeira vez na história das
comunicações brasileiras, uma tentativa de se regular o conteúdo e
promover a diversidade cultural nas comunicações. Seria uma virada
na completa falta de interesse em se implementar a regulação de
conteúdos, assunto que é citado apenas timidamente na legislação
vigente (BOLAÑO 2001). Muito provavelmente seria apenas uma
tentativa frustrada, já que o projeto da Ancinav não estabelece
47
qualquer mecanismo efetivo de controle social sobre os conteúdos
audiovisuais. Mas ainda assim, lhe restaria a grandeza de haver
tentado.
Contudo, apesar da questão da liberdade de programação
ser a mais citada nas reações da mídia ao anteprojeto da Ancinav, o
ponto de divergência realmente crucial está na série de taxas a serem
cobradas das empresas dos setores de cinema e de audiovisual.
Essas taxas são batizadas, no texto do anteprojeto, de “Contribuição
para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica e Audiovisual
Brasileira” (Condecine), e vão substituir a atual “Contribuição para
o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional” (também
Condecine), regida pela Medida Provisória 2.228-1/01 e pela Lei
10.454/02. Como as siglas são idênticas, as chamaremos, no texto,
de “Condecine antiga” e “Condecine nova”.
O anteprojeto da Ancinav aumenta consideravelmente a base
de incidência da contribuição, que deverá ser a principal fonte de
renda para a formação do “Fundo Nacional para o Desenvolvimento
do Cinema e do Audiovisual Brasileiros” (Funcinav). O objetivo
primordial dessa contribuição é criar uma modalidade de subsídio
cruzado nos setores de cinema e de audiovisual, de forma a
estabelecer uma transferência de recursos das grandes produções
para a produção de obras realizadas por pequenas produtoras.
Estabelece ainda mecanismos que taxam as produções estrangeiras,
de modo a criar novas fontes de financiamento para as realizações
cinematográficas e audiovisuais brasileiras. Dessa maneira, o governo
pretende alterar a forma como se dá atualmente o financiamento da
maior parte da produção nacional, na qual o Estado investe
diretamente ou por meio de incentivos fiscais, de financiamentos
com recursos da Ancine ou de aporte de capitais de bancos públicos
e empresas estatais. Em outras palavras, “quem atualmente financia
a produção é o contribuinte” (SIMIS 1998) e é por meio de
subsídios cruzados que se tentará alterar esse quadro.
48
Para se ter uma idéia do aumento na carga fiscal que o
anteprojeto da Ancinav significará para os produtores de cinema e
de audiovisual, os valores das taxas pagas a título de “Condecine
antiga”, que atualmente variam de R$ 300,00 a R$ 84 mil, passam,
na “Condecine nova”, a variar entre R$ 300,00 a R$ 600 mil. Para
estabelecer uma comparação mais precisa: a taxa cobrada das obras
cinematográficas ou videofonográficas publicitárias estrangeiras com
pagamento simultâneo para todos os segmentos de mercado, por
exemplo, saltaria de R$ 84 mil para R$ 168 mil.
Outra novidade é a adoção de um sistema gradativo que torna
a taxação sobre as obras cinematográficas proporcional ao número
de cópias distribuídas. Assim, quanto mais salas de cinema ocupar
uma produção, maior será a taxa a ser pagar a título de Condecine.
Os fins que levam ao estabelecimento das taxações são
legítimos e, de fato, tais tributos podem, se bem aplicados, alavancar
a produção cinematográfica e audiovisual brasileira. Contudo, a
Ancinav terá de manejar com habilidade o possível encarecimento
que pode ocorrer na distribuição de produtos cinematográficos no
Brasil, até mesmo para as produções nacionais. Para evitar esse
risco, as taxações previstas no anteprojeto devem ser revistas
urgentemente. Isso porque todas as etapas da cadeia cinematográfica
serão oneradas caso o anteprojeto não sofra alterações, o que
redundará em um efeito cascata na tributação. Até mesmo a venda
de ingressos de cinema será taxada, em uma alíquota de 10%, como
prevê o inciso III do Art. 63 da proposta. O resultado deverá ser
indigesto: encarecimento dos ingressos e, consequentemente, uma
redução de público. Vale ressaltar que hoje apenas 13% dos
brasileiros têm o hábito de ir ao cinema4.
Além disso, a definição de “produção independente”
apresentada no anteprojeto – produção essa que deve ser a principal
4
Fonte: Grupo de Mídia, 2004
49
beneficiada pelos projetos patrocinados por verbas oriundas da
“Condecine nova” - é um tanto quanto desastrada. Aliás, é quase
uma cópia da que já existe atualmente no texto da Medida Provisória
2.228-1/2001, que regulamenta a Ancine. Segundo o Art. 40 da
proposta, “produção independente é aquela realizada por empresa
produtora, detentora majoritária dos direitos patrimoniais sobre a
obra, que não tenha associação ou vínculo, direto ou indireto, com
prestadora de serviços de radiodifusão de sons e imagens ou outras
prestadoras de serviços de telecomunicações exploradoras de
atividades audiovisuais”. Tal definição parte de uma constatação
acertada: a de que, atualmente, a produção comercial de filmes
está em sua maior parte sendo efetuada por empresas coligadas a
concessionárias de televisão – primordialmente de TV aberta. Citese como exemplo a Globo Filmes, subsidiária das Organizações
Globo, que atualmente é a maior produtora nacional de cinema,
dona de uma fatia superior a 20% do mercado cinematográfico
doméstico. Nesse ponto, nada a se acrescentar – de fato a
participação de concessionárias de televisão não pode ocorrer nas
produções independentes.
Contudo, nada é dito sobre composição de capital, domínio
de mercado, coligação entre produtoras, etc. Se a Columbia
Pictures, por exemplo, estabelecer subsidiária constituída sob as
leis brasileiras, com sede e administração no País e com apenas
mais que 50% do capital total e votante sob titularidade direta ou
indireta de brasileiros, e sem a co-participação de qualquer entidade
citada no Art. 40, passará a ser uma “produtora independente” de
acordo com as regras previstas pelo anteprojeto. E não é de interesse
de ninguém que tal tipo de empreendimento possa receber verbas
públicas, visto que o País não está em condições de promover atos
de caridade para um dos negócios mais lucrativos da Sony, que é
sócia majoritária da Columbia Pictures.
Outra grave possível conseqüência, essa ligada ao sistema
50
gradativo proposto para a taxação das cópias distribuídas, é uma
concentração ainda maior da exibição nos grandes centros
urbanos. Entre disponibilizar mais cópias, de forma a atender
mercados menores, ou comercializar menos cópias, com vistas a
evitar uma maior taxação na distribuição de obras
cinematográficas, os distribuidores muito provavelmente vão
escolher a segunda opção, visto que o custo marginal de exibição
crescerá consideravelmente.
A legislação, como planejada originalmente, pode intensificar
o fenômeno de cream skimming que há um bom tempo já vem
ocorrendo no setor cinematográfico. Em outras palavras, incentivará
uma maior concentração do mercado de exibição e fatalmente levará
à morte das salas de cinemas não organizados no modelo multiplex
ou instaladas em cidades de pequeno e médio porte. Algo
preocupante, levando-se em conta que, no ano de 2001, por
exemplo, apenas 8,2% dos municípios contavam com pelo menos
uma sala de cinema – e ínfimo 0,7% tinha 6 ou mais salas5.
Mas entre os diversos pontos de discórdia, o que se tem
mostrado mais intenso é a taxa de 4% a ser cobrada na “aquisição,
inclusive por permuta, de espaço publicitário para o anúncio de
obra cinematográfica ou videofonográfica publicitária nos serviços
de radiodifusão de sons e imagens e em outros serviços de
telecomunicações exploradores de atividades audiovisuais”, como
estabelece o anteprojeto em seu inciso V do Art. 64, combinado
com o Art. 70. Tanto as empresas de TV aberta quanto de TV por
assinatura, possíveis prejudicadas por essa taxação, vêm criticando
duramente essa proposta e alegam que tal aumento de carga tributária
pode inviabilizar a prestação dos seus serviços.
Tecnicamente, a crítica não teria razão de ser. A taxa de 4%
será cobrada, nos dizeres do anteprojeto, “na aquisição do espaço”,
5
Dados do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM)
51
ou seja, os anunciantes, e não as empresas de TV, seriam os
responsáveis por seu pagamento. Contudo, no mundo real, os
empresários de TV aberta e de TV por assinatura têm razão para
estarem preocupados. É praticamente certo que esse custo extra
dos anunciantes será, em sua maior parte, repassado às empresas
de TV, por meio de descontos na venda de espaço publicitário.
Esse repasse deve ocorrer porque não apenas a TV, mas todo o
setor de mídia é hoje refém de um oligopsônio, tanto em nível nacional
quanto regional. Ainda que os anunciantes sejam muitos, as agências
de publicidade, os reais consumidores de espaço publicitário, são
poucas. E por serem poucas, são elas o principal fator na definição
dos valores cobrados pela mídia na venda de espaço publicitário.
Um problema adicional relativo a esse ponto está na definição
do que será taxado: “obra cinematográfica ou videofonográfica
publicitária”. Essa definição faz com que apenas os filmes publicitários
- aqueles exibidos durante os intervalos comerciais - sejam passíveis
de taxação. Cria-se, portanto, um incentivo para a prática do
merchandising, também conhecido como merchan.6.
Trata-se de uma publicidade tosca, de pouco valor agregado,
para cuja realização são necessários apenas um ínfimo número de
redatores publicitários e, nos melhores casos, a construção de um
cenário minimamente apresentável. Incentivá-la de qualquer modo,
ainda que de maneira não intencional, como faz o anteprojeto da
Ancinav, é prestar um desserviço ao mercado publicitário.
Assim, caso o governo não queira abrir mão da verba
6
Para os que não são íntimos do linguajar publicitário, merchan é aquela
espécie de propaganda disfarçada inserida no meio da programação
normal – em exemplos: quando a protagonista da novela das 8 recomenda
o sabão X, o animador do programa de variedades interrompe a
programação para falar da ração para cães Y ou o apresentador do
programa esportivo fala que, se o Romário calçasse as chuteiras Z, jamais
teria errado aquele gol feito, temos a prática do merchan.
52
proveniente da taxação da publicidade na TV (estimada em
aproximadamente R$ 120 milhões), deverá encontrar formas
alternativas, de modo que não haja incentivo ao merchandising,
tampouco transferência da responsabilidade pelo pagamento das
taxas para as concessionárias dos serviços de televisão.
Uma possibilidade é adotar, para tanto, uma taxação similar
à utilizada no setor de telefonia, cujos produtos compõem o Fundo
de Universalização das Telecomunicações (FUST) e o Fundo para
o Desenvolvimento Tecnológico das Comunicações (FUNTTEL).
Nesses casos, o tributo é cobrado das empresas de telefonia sobre
o faturamento bruto, deduzidos os impostos, com proibição explícita
do repasse desse custo excedente aos consumidores. Previsão de
contribuição similar, baseada no total de espaço publicitário
contratado, cobrada diretamente das agências de publicidade, com
proibição de repasse às empresas de radiodifusão, pode ser uma
solução para o impasse estabelecido pelo anteprojeto da Ancinav.
Mas um modelo de taxação como esse só é possível se o órgão
regulador tiver acesso aos dados financeiros das empresas
reguladas. No caso da Ancinav, tal prerrogativa existe, conforme
previsão disposta no Art. 32 de seu anteprojeto. Contudo, ainda
que tal regra possa vir a proteger alguns dos interesses das empresas
de televisão, elas não estão nem um pouco dispostas a fornecer ao
Poder Público informações econômico-financeiras relativas aos seus
empreendimentos.
Finalmente, analisando especificamente a estrutura que se
pretende dar à futura Ancinav, poucas são as novidades. Em regra,
suas características serão basicamente as mesmas de grande parte
das agências reguladoras: entidade integrante da Administração
Federal indireta, submetida a regime autárquico especial, vinculada
a um Ministério e coordenada por um Conselho Superior integrante
da estrutura da Casa Civil da Presidência da República.
Como novidade, apenas a alteração do Ministério supervisor,
53
que passará a ser o Ministério da Cultura no lugar do Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, ao qual a Ancine
é atualmente vinculada. Em relação ao Conselho Superior do Cinema
hoje existente, esse passará a se chamar, de acordo com o
anteprojeto, Conselho Superior do Cinema e do Audiovisual. O
novo conselho não deve apresentar grandes diferenças em relação
ao que atualmente existe – exceto talvez em relação à sua
composição e presidência. Contudo, o anteprojeto não traz
alterações explícitas na composição desse órgão colegiado,
remetendo as regras sobre sua formação a regulamento que será
posteriormente elaborado, conforme estabelecido no parágrafo
primeiro do Art. 9º do anteprojeto.
Outra característica praticamente idêntica às das demais
agências será o conflito que haverá entre uma agência robusta e um
ministério esvaziado. Caso implantada como prevista, a Ancinav
deverá ter uma estrutura muito maior do que a de seu ministério
supervisor. Além disso, seu orçamento, ao que tudo indica, será
consideravelmente maior do que o do Ministério da Cultura.
Ocorrerá, desse modo, fenômeno idêntico ao que ocorreu, por
exemplo, com a Anatel: a agência é hoje muito mais forte do que o
Ministério das Comunicações e, por isso, vem canibalizando o seu
ministério supervisor e até mesmo assumindo o seu papel de
planejador de políticas públicas. E quando a mesma agência que
implementa também planeja, temos uma grave disfunção de modelo.
3 - Conclusão
A intenção é boa, mas os resultados da instalação da Ancinav,
nos moldes apresentados, são imprevisíveis. Não haverá “dirigismo”
ou censura, isso é certo. Porém, já não é tão certo que a proposta
apresentada seja capaz de trazer, de fato, mais benefícios do que
54
malefícios para o cinema e o audiovisual brasileiros. No setor
cinematográfico, ainda que a presença de produções estrangeiras
seja preponderante, há de se destacar que o cinema nacional vem
conseguindo resultados brilhantes sob as regras atuais. É preciso
lembrar que há pouco mais de uma década, mais precisamente em
1991, quando a Embrafilme foi extinta, durante o governo Collor,
chegamos a ficar um ano inteiro sem produzir qualquer filme de
longa metragem. A agonia da indústria cinematográfica brasileira
perdurou até 1995, ano em que foi lançado “Carlota Joaquina,
Princesa do Brasil”. A produção de Carla Camurati foi o divisor de
águas para o renascimento do cinema brasileiro. Em 2003, apenas
9 anos após o início do renascimento, as produções brasileiras foram
responsáveis por 20% da bilheteria de cinema do País7 – um
aumento, sem dúvida, surpreendente.
Porém, há espaço para que o cinema brasileiro conquiste
uma fatia de mercado ainda maior, inclusive no mercado internacional.
Para tanto, a ação do Estado é essencial. Contudo, o governo deve
ter a preocupação de não implodir um modelo que vem gerando
bons resultados para, em seu lugar, instituir uma nova legislação
repleta de incertezas. Mudanças na regulação do cinema brasileiro
são necessárias, mas tais alterações devem se basear nos erros e
acertos passados.
Necessitamos, portanto, em relação ao cinema, apenas de
ajustes localizados que possam aperfeiçoar a estrutura já existente,
e não instituir um modelo completamente novo, como pretendem
os criadores do anteprojeto da Ancinav. Ademais, os erros
cometidos pelo anteprojeto deverão comprometer até mesmo
instrumentos que poderiam trazer benefícios para a indústria
cinematográfica brasileira, como por exemplo os mecanismos de
subsídios cruzados a serem criados. As taxações, como previstas,
7
Fonte: Boletim Filme Brasil, 2004
55
podem redundar em empecilhos aos projetos cinematográficos
nacionais realizados em um modelo comercial. Consequentemente,
acarretaria uma crise em toda a produção brasileira, não apenas a
comercial, mas inclusive a independente.
Já o setor de audiovisual é tratado apenas de maneira reflexa
no anteprojeto - apesar de ser social e economicamente muito mais
importante do que o cinema, uma vez que a televisão é o principal
meio de comunicação e entretenimento da maior parte da população
brasileira. Temas essenciais para o setor, como a produção
independente, a regionalização de conteúdos e o combate à
concentração de propriedade são tratados apenas de maneira
genérica, apenas repetindo as disposições que hoje já integram o
capítulo destinado à Comunicação Social na Constituição Federal.
Mantém, portanto, o mero caráter programático que tais dispositivos
têm desde 1988, jamais tornados efetivamente objetos de políticas
públicas do setor de comunicações. Em relação a tais temas, o
texto do anteprojeto limita-se a estabelecer, em seu art. 93, um
“compromisso público” a ser acordado anualmente entre as
empresas de televisão e a Ancinav. Porém não ousa estabelecer
cotas para as produções regionais e/ou independentes e, o mais
grave, é omisso em relação a possíveis punições aplicadas em caso
de não cumprimento do compromisso – ou seja, tudo leva a crer
que tal acordo será tão somente uma peça de decoração.
Em resumo: o anteprojeto da Ancinav inova muito em uma
área na qual deveria interferir pouco e é bastante conservador no
setor em que deveria ser vanguardista. Outra dicotomia: implementa
divergência regulatória justamente em um setor marcado pela intensa
convergência tecnológica. Será necessária, portanto, uma ampla
revisão de todo o anteprojeto, de forma a implementar uma
regulação efetiva e realmente capaz de trazer avanços para os setores
de cinema e audiovisual brasileiros. Revisão essa que jamais será
posta em prática por meio de uma simples consulta pública.
56
BIBLIOGRAFIA
BAGDIKIAN, B.H. 1993. O Monopólio da Mídia. São
Paulo: Scritta.
BOLAÑO, C.R.S. 2001. “O Modelo Brasileiro de Regulação
do Audiovisual”, texto apresentado no 10o Encontro Anual da
Associação Nacional de Programas de Pós Graduação em
Comunicação: (Compós).
BISHOP, Matthew; KAY, John; MAYER, Colin. 1995. The
Regulatory Challenge, New York: Oxford University.
DIZARD, W. 2000. A Nova Mídia: a Comunicação de
Massa na Era da Informação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
FOLHA DE SÃO PAULO, Ancinav em debate. São Paulo,
02 de setembro de 2004.
LIMA, V. A. 2001. Mídia: Teoria e Política. São Paulo:
Editora da Fundação Perseu Abramo.
MORAES, D. (org.). 2003. Por uma outra comunicação
– mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record.
MOSCO, V., Repensando e renovando a economia
política da comunicação, Perspectivas em Ciência da Informação,
vol. 3, n. 2, 1998.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. 2003. Análise e
Avaliação do Papel das Agências Reguladoras no Atual Arranjo
Institucional Brasileiro.
RAMOS, M. C. O ambiente político-regulatório da
comunicação social eletrônica brasileira: fragmentação política
e dispersão normativa. Depoimento à Comissão de Educação do
Senado Federal proferido em 05/12/2001.
SIMIS, A. “Situación del audiovisual brasileño em la década
de los noventa”. Revista Comunicación Y Sociedad, no. 33, 1998.
57
UNESCO. , 1983. Um Mundo e Muitas Vozes –
Comunicação e Informação na Nossa Época. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas.
* Cristiano Aguiar é Jornalista, Especialista em Políticas públicas e
gestão governamental, em exercício no Ministério das Comunicações e
mestrando em Comunicação na Universidade de Brasília.
58
Ricardo Vidal de Abreu
Rodrigo Pucci de Sá e Benevides
Financiamento da saúde pública no Brasil: a
situação atual e o impacto da vinculação
constitucional de recursos (EC 29/2000)
1- INTRODUÇÃO
O
gasto com saúde (pública e privada) tem crescido
de forma contínua desde o pós-guerra,
principalmente nos países desenvolvidos. MÉDICI
(2002) identifica quatro conjuntos de fatores que estariam
determinando esse movimento: i) a extensão horizontal e vertical da
cobertura1; ii) o envelhecimento da estrutura etária da população;
iii) as transformações nas estruturas de morbi-mortalidade – com
elevação da importância das doenças crônico-degenerativas frente
às doenças infecto-contagiosas, alterando e encarecendo a estrutura
de custos do setor saúde – e iv) as mudanças tecnológicas, que, na
área da saúde, significam a incorporação de mais capital e recursos
humanos.
Esse crescimento do gasto com saúde reforça a
necessidade de maior conhecimento sobre a área de economia
da saúde, que abrange diversas questões como o nível de gasto
com saúde, o formato do financiamento da saúde, oferta,
demanda, necessidades, priorização, incorporação de novas
1
A extensão horizontal seria dada pela inclusão de novos segmentos da
população, e a vertical pela complexificação e diversificação da oferta
de serviços, conforme MÉDICI (2002: p. 54).
59
tecnologias, entre outros temas relacionados ao campo
econômico. Existem, entretanto, diversos fatores que tornam esse
setor bastante peculiar, diferenciando-o dos outros setores da
economia, principalmente pela importância crucial das chamadas
imperfeições de mercado 2. As características desse mercado
envolvem fortes incertezas sobre a demanda individual,
favorecendo o desenvolvimento de mercados de seguro (público
e privado), dada a maior previsibilidade da demanda agregada,
que pode ser inferida a partir de informações populacionais e
epidemiológicas.
A problemática do financiamento da saúde pública está
relacionada a uma série de questões que envolvem desde a estrutura
tributária dos países – que define a parcela de recursos à disposição
do Estado para a implementação das políticas públicas – até a
definição da parcela de recursos a ser aplicada no setor e o formato
de financiamento definido pelo pacto federativo e pelos arranjos
institucionais.
Uma distinção importante ocorre no setor público: suas
receitas não estão vinculadas à produção dos serviços. Ele se
financia por meio de contribuições, impostos, taxas e outras
receitas cobradas sobre produção, consumo, renda e patrimônio.
A receita do setor público não depende, portanto, de sua própria
produção e sim da capacidade de arrecadar recursos dos eventos
econômicos. Há um descasamento evidente entre produção e
receita (financiamento) e, portanto, a decisão do quanto produzir
não leva em conta o critério de maximização de resultados usual
no mercado.
2
IUNES (2002; pp. 111-112) cita uma série de particularidades da demanda
em saúde, identificadas por Kenneth Arrow, prêmio Nobel da Economia
de 1963, no artigo “Uncertainty and the Welfare Economics of Medical
Care”, que se tornaria um clássico dessa literatura.
60
A parcela de recursos investida na saúde, assim como a
relação entre o gasto público e o privado define, respectivamente,
a priorização e as necessidades de saúde das sociedades e o
modelo de atuação do Estado frente ao mercado. É resultado
também de um processo político, no qual os diferentes setores e
instâncias governamentais competem por recursos limitados. Essa
competição pelos recursos, dada a sua natureza política, acaba
gerando instabilidade no fluxo de recursos para todas as áreas.
A regulação dessa competição intragovernamental vem sendo
feita sob a forma de vinculações orçamentárias, isto é,
determina-se legalmente que um percentual da receita
governamental – ou um imposto, contribuição etc – comporá o
orçamento daquela área. A decisão de quanto gastar é definida
pela proporção de receita orçamentária dedicada ao setor.
O gasto público e o gasto privado com saúde varia bastante
entre os países (tabela 1), em função de uma série de fatores
como o grau de desenvolvimento, a concentração de renda, a
extensão do direito à saúde pública, entre outros fatores. O Brasil
apresenta um nível de gasto total em saúde como proporção do
PIB comparável ao dos países desenvolvidos; entretanto, a
parcela de gasto público situa o país entre aqueles que menos
aplicam no setor. A diferença se torna ainda maior quando se
leva em consideração que o PIB brasileiro por habitante é muitas
vezes inferior ao dos países desenvolvidos. O gasto público com
saúde do Brasil é comparável ao da África do Sul e ao do México,
sendo muito inferior ao de países como Argentina e Uruguai.
Entre os países selecionados, supera apenas o do Paraguai e o
de países como Índia e China, os quais têm uma população
superior a um bilhão de habitantes.
61
Tabela 1
Paises
Gasto
Gasto
Gasto
Público Privado
Total
% do
com
com
com
Gasto
Saúde
Saúde
Saúde
em % do em % do em % do Privado
PIB
PIB
PIB
Alemanha
10,6
8,0
2,6
França
9,5
7,2
2,3
Canadá
9,1
6,5
2,6
Austrália
8,3
6,0
2,3
Portugal
8,2
6,0
2,2
Japão
7,8
6,0
1,8
Itália
8,1
6,0
2,1
EUA
13,0
5,8
7,2
Espanha
7,7
5,4
2,3
Uruguai
10,9
5,1
5,8
Argentina
8,6
4,7
3,9
Grécia
8,3
4,6
3,7
Africa do Sul
8,8
3,7
5,1
Brasil
8,3
3,4
4,9
Paraguai
7,9
3,0
4,9
México
5,4
2,5
2,9
China
5,3
1,9
3,4
4,9
0,9
4,0
Índia
Fonte: The World Health Report 2002 e 2003 - OMS
62
24,9
24,0
28,9
27,6
26,8
23,3
26,3
55,7
30,1
53,5
45,0
44,5
57,8
59,2
61,7
53,6
63,4
82,2
1.1 - O SUS E O PROCESSO DE DESCENTRALIZAÇÃO DA ATENÇÃO
À SAÚDE
A forma de atuação do Estado brasileiro na política de
saúde pública modificou-se significativamente a partir da
Constituição Federal de 1988, que universalizou o direito à
assistência à saúde, desvinculando-o da inserção no mercado
formal de trabalho. Além da universalidade, a Carta prevê a
integralidade da assistência à saúde em todos os níveis de
complexidade, o que explicita o debate sobre a priorização do
setor frente às outras áreas de atuação do Estado, confrontando
permanentemente a garantia do direito constitucional com uma
questão econômica fundamental: a distribuição de um montante
limitado de recursos entre os diversos setores nos quais o Estado
atua.
O modelo do sistema de saúde implantado a partir da
Constituição Federal de 1988 é resultado de um processo que
se inicia no final da década de setenta, com o movimento
sanitarista, e que se consolida na segunda metade dos anos
noventa, com a intensificação do processo de descentralização
implementado pelo Ministério da Saúde através das Normas
Operacionais – NOB/91, NOB/93, NOB/96, NOAS/01 e
NOAS/02.
A responsabilidade pela promoção, prevenção e
recuperação da saúde cabe às três esferas de governo, em um
sistema organizado de forma hierarquizada e descentralizada,
no qual os recursos federais são distribuídos a partir de
critérios definidos pela política nacional de saúde, implementada
pelo Ministério da Saúde. A lógica da descentralização está
calcada em um sistema de indução, pela via do financiamento,
à implementação de programas de saúde definidos pelo gestor
federal e aprovados pela Comissão Intergestores Tripartite
63
(CIT), que agrega representações dos gestores estaduais e
municipais, de forma que as atribuições de prestação de
serviços de saúde sejam transferidas para as esferas de governo
subnacionais, de acordo com a capacidade gestão dos sistemas
de saúde locais.
Nesse quadro de descentralização, ao gestor estadual caberia
um papel de coordenação – principalmente a partir de 2001 com a
publicação da Norma Operacional de Assistência à Saúde (NOAS/
01) – e planejamento supra-municipal do sistema de referências e
contra-referências, no sentido de regular a prestação de assistência
de média e alta complexidade.
Quanto às ações e serviços de atenção básica,
ARRETCHE (2003) afirma que os governos locais já assumiram
esse nível de atenção, em processo que teria se iniciado antes
da CF/88. Em outro artigo, “Políticas Sociais no Brasil:
descentralização em um Estado federativo” (ARRETCHE 1999),
extraído da Parte I de sua tese de doutorado(ARRETCHE
1998), que versa sobre a descentralização das políticas sociais
no Brasil, Arretche afirma que:
“(...) a flexibilidade do desenho do programa de
municipalização, que contempla distintas modalidades
de adesão — incorporando, portanto, as possíveis
resistências das administrações locais, derivadas dos
custos financeiros e políticos a serem assumidos —,
facilita a adesão ao programa, na medida em que permite
uma maior adequação entre custos prováveis da adesão
e capacidade local de assunção de atribuições.
Finalmente, a regra constitucional da universalidade do
acesso — que implica o fato de que custos políticos de
não oferecer serviços em uma dada quantidade e
qualidade também recaem sobre as administrações
municipais — representa também um poderoso incentivo
64
à municipalização. Simetricamente, os benefícios
políticos de oferecer o serviço representam um poderoso
incentivo à municipalização” (ARRETCHE 1998,pp.
121-122).
O SUS estaria fundamentado em um sistema de incentivos
que favorece a assunção das atribuições relativas às Ações e
Serviços de Saúde pelos municípios. A regionalização do sistema
de referências e contra-referências de média e alta complexidade,
entretanto, que depende da negociação entre os municípios e
desses com os estados, para definição de módulos assistenciais
de saúde, encontra-se em um estágio intermediário, com grandes
diferenças no que se relaciona à situação de cada Unidade da
Federação.
1.2 - A problemática do Financiamento da Saúde
A universalização do acesso à saúde não foi acompanhada
de mecanismos que garantissem uma fonte de recursos estável para
seu financiamento. A crise de financiamento da saúde na primeira
metade da década de 90, com seu ápice em 1993, quando o
Ministério da Saúde foi levado a tomar empréstimos junto ao Fundo
de Amparo ao Trabalhador (FAT), gerou um processo de busca de
financiamento estável e suficiente para a garantia do direito
constitucional. Esse movimento levou à criação da Contribuição
Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), parcialmente
destinada à saúde3.
A vinculação de recursos públicos à aplicação em um
determinado setor é bastante criticada, principalmente por gestores
3
Atualmente, da alíquota de 0,38%, 0,20% são destinados à saúde, 0,10%
à previdência e 0,08% ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza.
65
da área de planejamento, por enrijecer a execução dos orçamentos
públicos, mas argumenta-se necessária para garantir um aporte de
recursos mais estável para aplicação em áreas sociais prioritárias,
como saúde e educação.
A estratégia da vinculação não elimina a oscilação dos recursos
destinados às áreas, dado que as receitas governamentais são
dependentes do ciclo econômico. Por sua vez as áreas têm suas
dinâmicas de custos específicas que podem crescer mais que as
receitas vinculadas o que pode gerar necessidade de financiamento
adicional. Todavia, os defensores da vinculação sustentam que ela
minimiza bastante as variações de recursos permitindo melhor
planejamento das atividades.
O presente trabalho busca analisar o comportamento da
despesa pública com ações e serviços públicos de saúde nas três
esferas de governo e de suas fontes de receitas no período 1995
a 2002, de forma a se avaliar a estrutura do financiamento da
saúde pública no Brasil no período e o impacto da vinculação
constitucional de recursos implementada a partir de setembro de
2000, com a aprovação da Emenda Constitucional 29 (EC 29).
Buscar-se-á também estimar a receita disponível para aplicação
no SUS no período 2003-2007 a partir da efetivação da
vinculação constitucional de recursos.
Esse trabalho é dividido em 5 partes, incluindo essa
introdução: a segunda apresenta a metodologia de obtenção e de
estimação dos dados apresentados, por esfera de governo; a terceira
apresenta os dados do período pré-vinculação, de 1995 a 2000,
do período posterior à vinculação constitucional, de 2000 a 2002,
e as projeções sobre a receita disponível para aplicação em Ações
e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) nas três esferas de governo
no período 2003-2007, com três cenários possíveis de vinculação
para a União no período 2005-2007; a quarta parte apresenta as
estimativas de despesa com saúde por Unidade da Federação e
66
por esfera de governo para 2002; a quinta e última parte apresenta
as conclusões.
2- METODOLOGIA DE OBTENÇÃO E ESTIMAÇÃO DOS DADOS
Todos os valores apresentados para o período 1995-2007
foram convertidos para preços de 2003 pelo índice de variação
dos preços médios medido pelo IPCA-IBGE, método mais indicado
ao se trabalhar com valores anuais.
Os dados apresentados são comparados com a população –
divulgada (até 2002) e estimada pelo IBGE – e com o PIB divulgado
pelo IBGE (até 2002), e estimativas publicadas pelo IPEA (Boletim
de Conjuntura de setembro/2003) para os anos de 2003 e 2004.
Para o período 2005-2007, o PIB foi estimado com base nos
parâmetros de inflação – utilizada como proxy do deflator implícito
do PIB – e crescimento real utilizados no Plano Plurianual (PPA)
2004-2007, conforme apresentado.
Todas as projeções de receitas de 2003 a 2007 para as três
esferas de governo adotam a hipótese de crescimento de acordo
com a variação nominal do PIB, ou seja, de manutenção da
proporção de receita/PIB, inferindo-se que será mantido o mesmo
nível de carga tributária.
2.1 - União
Para o período 1995-2002 utilizou-se a Despesa
Empenhada com Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS)
pelo Ministério da Saúde (excluindo as despesas com Dívida,
Inativos, e aquelas financiadas pelo Fundo de Combate e
Erradicação da Pobreza). Em 2003 é apresentado o valor
67
orçado. Para 2004, o valor mínimo para cumprimento da EC
29, ou seja, o valor orçado para 2003 corrigido pela variação
nominal do PIB. Para o período 2005-2007 são apresentadas
estimativas de receitas disponíveis a partir de 3 cenários de
vinculação; i) o cenário A considera a manutenção da correção
da parcela do orçamento do Ministério da Saúde destinado às
ASPS pela variação nominal do PIB4; ii) o segundo reconsidera
a diretriz estabelecida no art. 55 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias da CF/88, que prevê a vinculação
de 30% do Orçamento da Seguridade Social; iii) o terceiro
cenário trabalha com a hipótese de aplicação de 10% das
receitas correntes, conforme a proposta de Projeto de Lei
Complementar de regulamentação da EC 29, cujo relator é o
Deputado Guilherme Menezes (PT-BA), em análise na Câmara
dos Deputados desde 30/03/04.
2.2 - ESTADOS
Os dados de receitas de impostos (RI), inclusive as
transferências constitucionais e legais, e as despesas com ASPS
dos estados para o período 1995-2000 foram coletados dos
4
A Emenda Constitucional 29/2000 estabeleceu, no artigo 7o, inciso I,
que a União deve aplicar, em 2000, pelo menos o montante empenhado em
1999 acrescido de 5%; a partir de 2001, é estabelecida a aplicação da
variação nominal do PIB sobre o montante empenhado no exercício
anterior. A variação nominal do PIB a ser considerada para verificação do
cumprimento da aplicação mínima no ano “t”, é a ocorrida entre os dois
exercícios imediatamente anteriores (PIBt-1 / PIBt-2); esse percentual é
aplicado sobre o montante empenhado no ano anterior (“t-1”). A aplicação
mínima no ano de 2003 é definida, portanto, pela aplicação da variação
nominal do PIB do ano de 2002 em relação a 2001 sobre o montante
empenhado em 2002.
68
balanços estaduais pela equipe do Sistema de Informações sobre
Orçamentos Públicos em Saúde5 – SIOPS – do Ministério da
Saúde. Para os dados de 2001 (18 estados) e 2002 (16 estados) a
fonte são as informações transmitidas pelos governos estaduais ao
SIOPS; para os estados que não forneceram informações ao SIOPS
(9 em 2001 e 11 em 2002) trabalhou-se com os dados coletados
dos balanços estaduais pela equipe do SIOPS. Para o período
2003-2007 aplicaram-se os percentuais mínimos previstos pela EC
296, mantendo-se os percentuais aplicados para os estados que,
em 2002, atingiram valores superiores ao estabelecido pela EC 29.
As RI estaduais a partir de 2003 foram estimadas através da
correção pela variação nominal do PIB sobre o valor obtido para o
ano anterior, mantendo a participação das RI estaduais no PIB em
8,72%.
2.3 - MUNICÍPIOS
Os dados de RI e as despesas com ASPS para o conjunto
5
O SIOPS coleta dados sobre receita total e despesas com ações e serviços
públicos de saúde (ASPS) das três esferas de governo. O preenchimento é
realizado pelos gestores estaduais e municipais através de um sistema de
coleta de dados disponível na internet no endereço http://siops.datasus.gov.br,
devendo ser preenchido e enviado através de transmissão pela internet, de
forma similar ao do IRPF. Desde 2002 o preenchimento do SIOPS é obrigatório,
devendo ser realizado semestralmente, de acordo com o que prevê o manual
de preenchimento do Relatório Resumido de Execução Orçamentária da Lei
de Responsabilidade Fiscal (anexo XVI).
6
A Emenda prevê, conforme definido na Resolução 322 do Conselho Nacional
de Saúde (CNS), que os estados devem aplicar, no mínimo, 7% de suas receitas
de impostos em 2000; entre 2001 e 2004, a diferença entre o percentual
aplicado em 2000 e o mínimo previsto a partir de 2004, de 12%, deve ser
reduzida à base de um quinto ao ano.
69
dos municípios no período 2000-2002 foram estimados com base
em dados do SIOPS. A RI a as despesas com ASPS informadas
pelos municípios (3.695 municípios em 2000, 4.849 em 2001 e
4.797 em 2002), foi expandida utilizando-se os valores por
habitante, separados por UF e por oito faixas populacionais7 dos
municípios que transmitiram seus dados ao SIOPS para estimar
os dados dos municípios que não haviam transmitido os dados,
através da multiplicação do valor per capita obtido, pela
população desses municípios para os quais não há informação,
adotando-se a hipótese de uniformidade dentro de cada estado,
para municípios de mesmo porte8.
A RI dos municípios para o período 1995-1999 foi estimada
por meio do seguinte método: calculou-se a proporção média entre
receitas estaduais e municipais entre 2000 e 2002 (63,4%); esse
percentual foi aplicado sobre as receitas estaduais de 1995 a 1999
para se obter a estimativa de RI municipais, adotando-se a hipótese
de que tal proporção não tenha se alterado nesse período. A
despesa com ASPS dos municípios para 1995, calculada pelo
IPEA (PIOLA & BIASOTO, 1998: p. 227) foi dividida pela RI
estimada para 1995, calculando-se, dessa forma, o percentual da
RI aplicada em saúde em 1995, de 13,3%. Para se estimar a
despesa com ASPS entre 1996 e 1999, manteve-se um
decréscimo constante do percentual, até se atingir o percentual
de 13,1%, obtido para 2000 através de dados do SIOPS. Esses
percentuais de RI estimados foram aplicados sobre as RI
7
As faixas populacionais são as seguintes: até 5 mil habitantes; de 5 a 10
mil habitantes; de 10 a 20 mil habitantes; de 20 a 50 mil habitantes; de 50
a 100 mil habitantes; de 100 a 200 mil habitantes; de 200 a 400 mil
habitantes; mais de 400 mil habitantes.
8
É importante assinalar que o painel utilizado para expansão dos dados
possui informações para quase todos os grandes municípios do país.
70
municipais estimadas para se obter a estimativa de despesa com
ASPS dos municípios entre 1996 e 1999.
A estimativa da RI no período 2003-2007, foi calculada
aplicando-se a variação nominal do PIB estimada sobre a RI do ano
anterior, o que mantém constante a participação das RI municipais no
PIB.
A projeção da despesa municipal com ASPS no período
2003-2007 foi calculada através da aplicação dos percentuais
mínimos da RI previstos pela EC 299, mantendo-se os percentuais
aplicados pelos municípios que, em 2002, atingiram valores
superiores ao estabelecido pela EC 29. As RI municipais a partir
de 2003 foram estimadas através da correção pela variação nominal
do PIB sobre o valor obtido para o ano anterior, mantendo a
participação das RI municipais no PIB em 5,56% no período.
3 - FINANCIAMENTO DO SUS ANTES (1995-2000) E
DEPOIS (2000-2002) DA VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL
DE RECURSOS E PROJEÇÕES ATÉ 2007
3.1 - União
A despesa da União cresceu 13,2% entre 1995 e 2000,
praticamente mantendo sua participação no PIB, que era de 1,89%
em 1995 e passa a 1,85% em 2000, depois de atingir o piso de
1,59% em 1996. A despesa cresceu em média 3,1% ao ano,
passando de R$ 146 por habitante em 1995 para R$ 159 em 2000,
9
A Emenda prevê, conforme definido na Resolução 322 do Conselho
Nacional de Saúde (CNS), que os municípios devem aplicar, no mínimo,
7% de suas receitas de impostos em 2000; entre 2001 e 2004, a diferença
entre o percentual aplicado em 2000 e o mínimo previsto a partir de
2004, de 15%, deve ser reduzida à base de um quinto ao ano.
71
o que representa uma taxa de crescimento da despesa per capita
de 1,7% em média ao ano (Tabela 2).
Entre 2000 e 2002 a despesa da União com ASPS mantevese em torno de 1,87% do PIB, com crescimento médio anual de
2,4%. A estimativa é de 1,78% do PIB em 2003 e 1,90% em 2004.
Essa variação decorre da regra estabelecida para a União, com
aplicação da variação nominal do PIB entre os dois exercícios
imediatamente anteriores10. A vinculação mantém o gasto da União
como proporção do PIB aproximadamente no mesmo patamar de
1995, e acima do executado entre 1996 e 1998. A participação do
gasto federal no gasto público total em saúde reduziu-se a partir de
2000, com o crescimento da despesa de estados e municípios,
derivada do impacto da vinculação constitucional.
10
Dessa forma, o valor mínimo para 2003 é resultado da aplicação da
variação nominal do PIB ocorrida entre 2001 e 2002 sobre o valor
empenhado em 2002. A variação nominal do PIB de 2003, por ter sido
maior que a do ano anterior, e maior que a prevista para o ano subseqüente
gera uma despesa como proporção do PIB maior em 2004.
72
Tabela 2
Despesa da União com Ações e Serviços Públicos de Saúde
Período: 1995-2003
Em R$ de 2003 (IPCA/IBGE)
Ano
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
Estimativa 2003
Variação %
1995-2003
Var. anual %
Variação %
1995-2000
Var. anual %
Variação %
2000-2002
Var. anual %
Variação % 2002-2003
R$
milhões
de 2003
23.271
20.425
23.809
22.745
26.113
27.051
27.960
28.377
27.782
19,4
2,2
16,2
3,1
4,9
2,4
(2,1)
% do
total
62,4
58,3
61,8
57,6
61,3
59,8
56,2
52,9
49,1
Índice
R$ por
2000 =
Hab
100
86,0
146
75,5
127
88,0
146
84,1
137
96,5
156
100,0
159
103,4
162
104,9
162
102,7
157
19,4
7,3
2,2
0,9
16,2
8,6
3,1
1,7
4,9
2,2
2,4
1,1
(2,1)
(3,3)
% do
PIB
1,89
1,59
1,78
1,67
1,88
1,85
1,87
1,87
1,78
(5,9)
(0,8)
(2,2)
(0,4)
1,3
0,6
(5,0)
Fonte: Dados em R$ correntes fornecidos pela SPO/SE/MS e deflacionados pelo autor através do
índice de preços médios do IPCA/IBGE.
Elaboração própria
As perspectivas para o período 2005-2007 variam de acordo
com o cenário adotado para a vinculação constitucional de recursos
(Tabela 3). No cenário A, onde se mantém a regra de vinculação ao
crescimento nominal do PIB, a despesa da União se situaria em um
patamar em torno de 1,9% do PIB, o que representa uma despesa por
habitante de R$ 191 em 2007. Tal regra garante a estabilidade do
financiamento, embora gere algumas oscilações de um ano para o outro11
11
Tal oscilação decorre da defasagem de um ano na correção pela variação
73
No caso de adoção da vinculação de 30% do Orçamento da
Seguridade Social, o cenário B, o orçamento federal se elevaria
para quase 4% do PIB, praticamente o dobro do atual orçamento,
com uma despesa por habitante de R$ 388 em 2007.
Tabela 3
Estimativas de Receita da União disponível para aplicação em Ações e Serviços de Saúde cf a EC 29
Três Cenários de Vinculação para o período 2005-2007
(1)
Em R$ de 2003
Cenário A - Variação Nominal do
PIB
Ano
2003
2004
2005
2006
2007
Variação 20032007
Variação média
anual (%)
R$
Índice
Milhões 2003 =
de 2003
100
27.782
100
30.694
110
32.429
117
33.889
122
35.414
127
Por
Hab
157
171
179
185
191
% do
PIB
1,78
1,90
1,93
1,93
1,93
Cenário B - 30% do Orçamento
da Seguridade Social
R$
Índice
Milhões 2003 =
de 2003
100
27.782
100
30.694
110
65.656
236
68.610
247
72.041
259
Por
Hab
% do
PIB
157
171
362
374
388
1,78
1,90
3,92
3,92
3,92
Cenário C - 10% das Receitas
Correntes
R$
Índice
Milhões 2003 =
de 2003
100
27.782
100
30.694
110
39.873
144
41.667
150
43.750
157
Por
Hab
157
171
220
227
236
% do
PIB
1,78
1,90
2,38
2,38
2,38
27,5
27,5
21,4
8,3
159,3
159,3
146,9
120,2
57,5
57,5
50,0
33,7
6,3
6,3
5,0
2,0
26,9
26,9
25,4
21,8
12,0
12,0
10,7
7,5
(1) Valor deflacionado pelo Variação dos Preços Médios do IPCA/IBGE
Elaboracao própria
No caso de adoção da regra de vinculação de 10% das
Receitas Correntes (cenário C), o orçamento federal se elevaria
para cerca de 2,4% do PIB, o que representaria uma despesa por
habitante de R$ 236 em 2007.
A Tabela 4 sintetiza os resultados obtidos a partir das
simulações em torno dos cenários de vinculação de recursos para a
União. No caso de manutenção da Desvinculação de Receitas da
União (DRU), de 20%, o orçamento estimado para os cenários B
e C se reduzem: no caso do cenário B, o resultado seria acima de
60% superior ao cenário A; no cenário C os ganhos se anulariam.
nominal do PIB, o que somente não garantiria a estabilidade do
financiamento no caso de uma brutal e constante elevação do patamar da
inflação durante mais de 2 anos.
74
Sem a DRU, o cenário B gera uma receita duas vezes superior à do
cenário A, enquanto no cenário C o incremento é de 23,5%.
Tabela 4
Em milhões de R$
Orçamento do Ministério da Saúde em 2007
Em R$ de 2003
3 Cenários
Cenário
Hipótese
Cenário A Variação Nominal do PIB
Cenário B
Cenário C
Índice
R$ de 2003 Cenário A
= 100
35.414
100,0
30% do Orç. Seguridade Social
72.041
203,4
30% do Orç. Seguridade Social
(com Desv. Rec União)
57.632
162,7
10% das Receitas Correntes
43.750
123,5
10% das Receitas Correntes
(com Desv. Rec União)
35.000
98,8
3.2) Estados e Municípios
No caso dos estados e dos municípios, a elevação do gasto
com saúde após a implementação da EC 29 foi mais significativa,
principalmente em função das grandes disparidades na aplicação
de recursos entre os entes federados.
A despesa estadual elevou-se em 40,4% em termos reais entre
2000 e 2002 (taxa média anual de 18,5%), passando o gasto estadual
75
de um patamar que se situava abaixo de 0,60% no período prévinculação para 0,78% do PIB em 2002 (Tabela 5). Em caso de
cumprimento dos limites mínimos da EC 29, a despesa estadual se
elevaria em 2003 para mais de 0,9% do PIB (com crescimento real
de 22,4%), chegando a cerca de 1,1% do PIB a partir de 2004.
Tabela 5
Despesas Estaduais com Ações e Serviços Públicos de Saúde
Período: 1995-2003
Em R$ de 2003 (IPCA/IBGE)
Despesa
Ano
Receita de Impostos inclusive Transf.
Const e Legais (R$
milhões de 2003)
Percentual da com ASPS
R$
RI aplicada
milhões
em ASPS
Índice
2000 =
100
R$ por
Hab
% do PIB
de 2003
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
Estimativa 2003
Variação %
1995-2003
Var. anual %
Variação %
1995-2000
Var. anual %
Variação %
2000-2002
Var. anual %
Variação % 2002-2003
86.050
86.038
91.176
95.912
101.263
117.375
125.091
132.163
136.201
58,3
5,9
36,4
6,4
12,6
6,1
3,1
7,8
8,6
7,8
8,6
7,3
7,1
8,2
8,9
10,6
35,5
3,9
(8,5)
(1,8)
24,7
11,7
18,8
6.725
7.432
7.110
8.281
7.348
8.392
10.266
11.784
14.424
114,5
10,0
24,8
4,5
40,4
18,5
22,4
80,1
88,6
84,7
98,7
87,6
100,0
122,3
140,4
171,9
114,5
10,0
24,8
4,5
40,4
18,5
22,4
42
46
43
50
44
49
60
67
82
92,8
8,6
16,6
3,1
36,8
17,0
20,8
0,55
0,58
0,53
0,61
0,53
0,57
0,69
0,78
0,92
69,1
6,8
5,0
1,0
35,6
16,4
18,8
Fonte: 1995 a 2000: SIOPS - Dados coletados dos Balanços Estaduais; 2001 e 2002: SIOPS; 2003: Estimativa com o cumprimento da EC
29.
Elaboração própria
A despesa municipal entre 2000 e 2002 elevou-se em 38,0%
(taxa média anual de 17,5%), passando de um patamar em torno de
0,6% do PIB para cerca de 0,9% em 2002 (Tabela 6). É importante
notar que apesar de o crescimento das despesas estaduais e municipais
entre 2000 e 2002 ter ocorrido quase na mesma proporção, o
percentual de estados que cumpre a EC 29 em 2002 é de apenas
76
37% (10 em 27 estados), enquanto o de municípios é de 73%12.
Essa maior distância da maioria dos estados, quando comparados
aos municípios, em relação ao limite mínimo constitucionalmente
exigido, revela, ao mesmo tempo, um espaço para expansão do gasto
público com saúde, e um entrave para o processo de regulamentação
da EC 29, ao criar pressões políticas no sentido do estabelecimento
de parâmetros mais flexíveis na definição do que seria considerado
como despesa com saúde para o cumprimento dos limites mínimos.
Tabela 6
Estimativas de Despesas Municipais com Ações e Serviços Públicos de Saúde
Período: 1995-2003
Em R$ de 2003 (IPCA/IBGE)
Ano
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
Estimativa 2003
Variação %
1995-2003
Var. anual %
Variação %
1995-2000
Var. anual %
Variação %
2000-2002
Var. anual %
Variação % 2002-2003
Receita de
Impostos inclusive Transf.
Const e Legais
(R$ milhões de
2003)
54.562
54.555
57.813
60.816
64.209
74.731
78.522
84.298
86.870
59,2
6,0
37,0
6,5
12,8
6,2
3,1
Percentual da
Índice
R$
R$ por
RI aplicada milhões 2000 =
Hab
de 2003
em ASPS
100
13,3
7.276
13,1
7.165
13,2
7.638
13,9
8.436
14,3
9.171
13,1
9.766
14,7 11.515
16,0 13.476
16,6 14.404
24,3
98,0
2,8
8,9
(2,0)
34,2
(0,4)
6,1
22,3
38,0
10,6
17,5
3,7
6,9
74,5
73,4
78,2
86,4
93,9
100,0
117,9
138,0
147,5
98,0
8,9
34,2
6,1
38,0
17,5
6,9
46
44
47
51
55
57
67
77
81
78,0
7,5
25,4
4,6
34,4
15,9
5,5
% do
PIB
0,59
0,56
0,57
0,62
0,66
0,67
0,77
0,89
0,92
56,1
5,7
12,9
2,5
33,2
15,4
3,7
Fonte: 2000 a 2002: SIOPS; 2003: Estimativa com o cumprimento da EC 29; 1995: Piola e Biasoto (2002); 1996 a 1999:
Estimativa a partir de dados de 1995 e 2000.
Elaboração própria
12
Conforme Notas Técnicas 50 e 51/2003 MS/SCTIE.
77
Com relação ao impacto da EC 29, a despesa por habitante
prevista para os estados em 2007 seria de R$ 107 por habitante,
com uma aplicação média de 12,4% da RI, cerca de R$ 20 bilhões
de uma RI total de cerca de R$ 160 bilhões (Tabela 7).
De acordo com as mesmas hipóteses, o conjunto de município
alcançaria uma despesa com saúde por habitante de R$ 95,
totalizando mais de R$ 17 bilhões, mais de 17% da RI prevista
(cerca de R$ 102 bilhões) (Tabela 8).
Estados e municípios aplicariam, em conjunto, cerca de 2%
do PIB, percentual cerca de 20% superior aos 1,67% aplicados
em 2002. Dessa forma, as esferas subnacionais passariam a aplicar
mais que a esfera federal, no caso de manutenção das atuais regras
de vinculação para a União.
Tabela 7
Estimativa de Receita de Impostos (RI) e Despesa com Ações e
Serviços Públicos de Saúde (ASPS) dos Estados
Em R$ milhões de 2003
Período: 2003 a 2007
Ano
2003
2004
2005
2006
2007
Variação 20032007
Variação média
anual (%)
(1)
, R$ de 2003 por habitante e % do PIB
RI
Despesa
Percentual
Estimada
Prevista
da RI
Por Hab
(R$
(R$
aplicada
(R$)
Milhões
milhões de
em ASPS
2003)
de 2003)
136.195
10,6
14.423
82
140.532
12,4
17.356
97
146.153
12,4
18.050
100
152.730
12,4
18.862
103
160.367
12,4
19.805
107
0,92
1,08
1,08
1,08
1,08
17,7
16,6
37,3
30,8
16,6
4,2
3,9
8,3
6,9
3,9
(1) Valor deflacionado pelo Variação dos Preços Médios do IPCA/IBGE
78
% do
PIB
Tabela 8
Estimativa de Receita de Impostos (RI) e Despesa com Ações e
Serviços Públicos de Saúde (ASPS) dos Municípios
Em R$ milhões de 2003 (1), R$ de 2003 por habitante e % do PIB
Período: 2003 a 2007
Ano
2003
2004
2005
2006
2007
Variação 20032007
Variação média
anual (%)
RI
Despesa
Percentual
Estimada
Prevista
da RI
Por Hab
(R$
(R$
aplicada
(R$)
Milhões
milhões de
em ASPS
2003)
de 2003)
86.870
16,6
14.404
81
89.636
17,1
15.332
86
93.222
17,2
16.021
88
97.417
17,3
16.822
92
102.288
17,3
17.664
95
% do
PIB
0,92
0,95
0,96
0,96
0,96
17,7
4,1
22,6
16,8
4,1
4,2
1,0
5,2
4,0
1,0
(1) Valor deflacionado pelo Variação dos Preços Médios do IPCA/IBGE
3.3 - A Despesa Total com Saúde
No período 1995-2000, que antecede a vinculação de
recursos da EC 29, a despesa total com saúde nas três esferas de
governo oscilou em torno de 3,0% do PIB, passando de 3,01%
em 1995 para 2,73% em 1996, e elevando-se gradualmente até
2000, quando atingiu 3,09% (Tabela 9). No período, o crescimento
médio anual da despesa foi de 3,9%, acima do crescimento
populacional de 1,4%, resultando em uma elevação da despesa
por habitante de R$ 234 para R$ 266 (13,4%, ou média anual de
2,5%).
79
Tabela 9
Estimativa de Despesa Total com Saúde nas 3 esferas de governo
Período: 1995-2003
Em R$ de 2003
Em R$
Índice
milhões de 2000 =
2003
100
1995
82,4
37.272
1996
77,5
35.022
1997
85,3
38.557
1998
87,3
39.462
1999
94,3
42.631
2000
100,0
45.208
2001
110,0
49.740
2002
118,6
53.637
Estimativa 2003
125,2
56.610
Variação %
51,9
51,9
1995-2003
Var. anual %
5,4
5,4
Variação %
21,3
21,3
1995-2000
Var. anual %
3,9
3,9
Variação %
18,6
18,6
2000-2002
Var. anual %
8,9
8,9
Variação % 2002-2003
5,5
5,5
Ano
R$ por
Hab
234
217
236
238
254
266
289
307
320
36,5
4,0
13,4
2,5
15,6
7,5
4,2
% PIB
3,03
2,73
2,88
2,89
3,08
3,09
3,33
3,54
3,62
19,7
2,3
2,0
0,4
14,6
7,0
2,4
Fonte: Ver tabelas 2, 5 e 6.
Elaboração própria
Em caso de manutenção da atual regra de vinculação para a
União, as despesas, com saúde devem se aproximar de 4% do
PIB, um aumento de cerca de um terço em relação à situação
anterior ao estabelecimento da vinculação de recursos (Tabela 10).
Esse acréscimo é decorrente da aplicação de percentuais crescentes
de receitas de estados e municípios, uma vez que a aplicação da
União, por definição, mantém sua participação no PIB em um cenário
80
macroeconômico como o atual, de relativa estabilidade de preços.
O cenário B elevaria a receita disponível ao SUS para 6,0% do
PIB, com incremento de 50%. No cenário C, as receitas do SUS
se elevariam em cerca de 10%, passando a 4,4% do PIB.
Tabela 10
Estimativas de Receita Total (3 esferas) disponível para aplicação em Ações e Serviços de Saúde
conforme a EC 29
Três Cenários de Vinculação para a União no período 2005-2007
Em R$ de 2003
Ano
2003
2004
2005
2006
2007
(1)
Cenário A - Variação Nominal
do PIB
Cenário B - 30% do Orçamento
da Seguridade Social
Cenário C - 10% das Receitas
Correntes
R$
Índice
Milhões 2003 =
de 2003
100
56.610
100
63.381
112
66.501
117
69.573
123
72.883
129
Índice
R$
Milhões 2003 =
de 2003
100
56.610
100
63.381
112
99.727
176
104.295
184
109.509
193
Índice
R$
Milhões 2003 =
de 2003
100
56.610
100
63.381
112
73.944
131
77.351
137
81.219
143
Por
Hab
320
354
367
379
392
% do
PIB
3,6
3,9
4,0
4,0
4,0
Por
Hab
% do
PIB
320
354
550
568
590
3,6
3,9
5,9
6,0
6,0
Por
Hab
% do
PIB
320
354
408
421
437
3,6
3,9
4,4
4,4
4,4
Variação
2003-2007
28,7
28,7
22,6
9,3
93,4
93,4
84,2
64,3
43,5
43,5
36,6
21,8
Variação
média
anual (%)
6,5
6,5
5,2
2,3
17,9
17,9
16,5
13,2
9,4
9,4
8,1
5,1
(1) Valor deflacionado pelo Variação dos Preços Médios do IPCA/IBGE
Elaboracao própria
4 - CONCLUSÃO
O estudo do financiamento da saúde constitui-se em um
importante instrumento para a gestão das políticas de saúde por
demonstrar a dinâmica de uma restrição orçamentária ao desenho
e implementação dessas políticas pelos gestores federais, estaduais
e municipais. O processo de descentralização leva o gestor federal
a ser cada vez menos responsável pela prestação direta dos serviços
de saúde, e mais pela definição das prioridades e dos critérios de
repasse de recursos para as esferas subnacionais. Na definição
81
desses critérios, devem ser levados em consideração os recursos
já vinculados constitucionalmente, de forma que as necessidades
da população sejam compatibilizadas com o total de recursos
disponível, resultado da adição dos recursos já constitucionalmente
vinculados aos transferidos pelo Ministério da Saúde através das
transferências regulares e automáticas definidas através das Normas
Operacionais do SUS.
A regra de transição criada para a União mantém a
participação dos gastos em saúde no PIB em torno de 1,9%. Outras
propostas, como as trabalhadas nos cenários B (30% OSS) e C
(10% das Receitas Correntes), elevariam o orçamento federal
destinado à saúde para 3,9% e 2,4% do PIB, respectivamente.
Essas propostas encontram entraves, entretanto, em função das
dificuldades que criariam em um cenário de restrições fiscais e
pressão social pela redução da carga tributária.
A EC 29 eqüaliza o nível de gasto com saúde de estados e
municípios enquanto proporção da receita, garantindo uma aplicação
mínima de recursos. Esse formato de vinculação, embora não garanta
maior equidade no financiamento, dadas as diferenças existentes na
distribuição das receitas de impostos entre os entes federados, pelo
menos contribui para a redução das necessidades não atendidas.
Em relação a estados e municípios, a EC 29 já produziu
efeitos importantes, elevando a despesa em termos reais em 40,4%
e 38,0% respectivamente em apenas 2 anos. Apesar desse
crescimento, existem grandes dificuldades, principalmente por parte
dos estados, no que diz respeito ao cumprimento dos limites mínimos.
Em 2002, apenas 10 dos 27 estados cumpriram os percentuais
mínimos; entre os municípios, 73% cumpriram os percentuais
mínimos13.
13
Conforme Notas Técnicas 051 e 052/2003/SCTIE/MS, disponíveis em
http://siops.datasus.gov.br - Notas Técnicas.
82
Dessa forma, a EC 29 e outras formas de vinculação
constituem um importante instrumento de garantia de recursos
mínimos para o financiamento da saúde pública no Brasil. Em que
pese as críticas dos planejadores do setor público, a garantia do
direito constitucional à saúde depende da existência de recursos
financeiros que, por força legal, já estejam previamente destinados
à aplicação no setor. Além disso, a vinculação orçamentária, por
conferir maior previsibilidade sobre a disponibilidade de recursos,
facilita o planejamento das ações.
É importante ressaltar que as informações tratadas referemse apenas ao montante global de receitas e despesas. Essas
informações devem ser relacionadas a indicadores de produção de
serviços e de impacto das políticas implementadas, de forma a se
medir a efetividade da aplicação dos recursos.
Outra área que demanda estudos é a de Contas Nacionais
de Saúde, que pode dar maior transparência à alocação de recursos
dentro do sistema saúde, permitindo que se conheça a participação
dos principais agentes econômicos do mercado de saúde, seus fluxos
financeiros, suas características e sua forma de funcionamento. Esse
conhecimento é essencial para que o Estado possa atuar de forma
mais justa na distribuição de recursos na saúde pública além de
gerar subsídios que permitam uma regulação mais eficiente do setor
privado.
83
BIBLIOGRAFIA
ARRETCHE, M. “Políticas Sociais no Brasil: descentralização
em um Estado federativo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais
– vol. 14 No 40, jun-99, 1999.
ARRETCHE, M. “Municipalização da Saúde no Brasil:
diferenças regionais, poder do voto e estratégias de governo”. São
Paulo: Revista Ciência e Saúde Coletiva, 7 (3): 455-479, 2002.
ARRETCHE, M. “Financiamento Federal e gestão local de
políticas sociais: o difícil equilíbrio entre regulação, responsabilidade
e autonomia”. São Paulo: Revista Ciência e Saúde Coletiva, 8
(2): 331-345, 2003.
CASTRO, J. A. et alli. 2003.”Análise da Evolução e Dinâmica
do Gasto Social Federal: 1995-2001". Brasília: IPEA (Mimeo).
FAVERET, A. C. 2002. “Federalismo Fiscal e
Descentralização no Brasil: O Financiamento da política de
Saúde na década de 90 e início dos anos 2000”. Rio de Janeiro:
Tese de Doutoramento apresentada ao Instituto de Medicina Social
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
FAVERET, A. C. et alli. 2001. “Estimativas de Impacto da
Vinculação Constitucional de Recursos para a Saúde (Emenda
Constitucional 29/2000)”. Brasília: Secretaria de Gestão de
Investimentos em Saúde – Ministério da Saúde, Cadernos de
Economia da Saúde..
IUNES, R. F. 2002. “Demanda e demanda em saúde”
(capítulo IV) in PIOLA, S. F. & VIANNA, S. M. (org.) “Economia
da Saúde: Conceito e Contribuição para a Gestão da Saúde”.
Brasília: IPEA.
MÉDICI, A. C. 2002. “Aspectos teóricos e Conceituais do
Financiamento das Políticas de Saúde” (capítulo II) in PIOLA, S.
F. & VIANNA, S. M. (org.) “Economia da Saúde: Conceito e
Contribuição para a Gestão da Saúde”. Brasília: IPEA.
84
MINISTÉRIO DA SAÚDE. 2003. “Manual de Gestão
Financeira do SUS”. Brasília, Fundo Nacional de Saúde.
PIOLA, S. F. & BIASOTO, G. 2001. “Financiamento do
SUS nos anos 90” (Parte 2, Capítulo 1) in NEGRI, B. &
GIOVANNI, G. (org.) “Brasil: Radiografia da Saúde”. Campinas:
UNICAMP-IE.
* Ricardo Vidal de Abreu é Economista e Especialista em Políticas
Públicas e Gestão Governamental.
* Rodrigo Pucci de Sá e Benevides é Economista e Especialista em
Políticas Públicas e Gestão Governamental.
85
Willber da Rocha Severo
A participação dos beneficiários em estratégias
de redução da pobreza: uma análise
de suas contribuições.
1 - INTRODUÇÃO
P
obreza é um fenômeno multidimensional e suas causas
são complexas. Ela pode ser entendida, grosso modo,
como um padrão de vida abaixo do que é socialmente
aceitável. É mais que insuficiência de renda ou consumo; inclui,
também, vulnerabilidade, insegurança, isolamento, exclusão e falta
de poder.1 No Brasil, são 53,1 milhões de pessoas abaixo da linha
de pobreza (BARROS et al. 2001).
Um importante elemento da discussão atual de como combater
a pobreza é o envolvimento dos stakeholders primários2 nas atividades
da intervenção de desenvolvimento3 (BHATNAGAR e WILLIAMS
1992; CHAMBERS 1993; KARL 2000). Acredita-se que existe uma
1
Para uma maior discussão sobre os conceitos e as causas da pobreza,
ver CHAMBERS (1983) e ALCOCK (1997).
2
Stakeholder é pessoa, grupo ou instituição que tem interesse em
determinada política ou questão. Stakeholder primário é aquele que é
diretamente, positiva ou negativamente, afetada pela política/questão. O
stakeholder primário de uma estratégia de redução da pobreza é o pobre.
Stakeholder secundário é aquele afetado indiretamente pela política/
questão ou intermediário no processo. Para informações adicionais sobre
análise de stakeholders, ver DFID (1995).
3
Estratégias de redução da pobreza são normalmente implementadas por
meio de intervenções de desenvolvimento. Programas e projetos são as
unidades básicas de planejamento e execução destas intervenções.
86
relação direta entre uma ativa participação dos beneficiários e o sucesso
do programa/projeto (OAKLEY 1991). Conseqüentemente, um
considerável número de agências de desenvolvimento está adotando
enfoques participativos em suas operações. No caso do Brasil, podemos
citar, por exemplo, os programas governamentais “Comunidade Ativa”,
“Fome Zero” e “Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar – PRONAF” que utilizam instituições locais, formadas por
membros da comunidade, para implementar as suas ações.
Dada a sua ampla utilização, a palavra “participação” tem
apresentado diversos sentidos e tem sido usado para diferentes
propósitos4. Os termos “tipos”, “dimensões”, “níveis”, “graus”, entre
outros, utilizados para classificá-la identificam basicamente: (1) em
que fase do ciclo da política/programa/projeto a participação dos
beneficiários ocorre: na formulação, na implementação, no
monitoramento ou na avaliação; (2) a qualidade, intensidade ou
extensão da participação: como um beneficiário passivo, como um
consultor, como um tomador de decisão ou controlador etc.; e (3)
a abrangência territorial da participação: local, regional ou nacional
(RUDQVIST e WOODFORD-BERGER 1996).
Independente desses diferentes entendimentos e propósitos,
existe uma grande expectativa sobre as contribuições positivas da
participação dos beneficiários na redução da pobreza5. A hipótese
assumida é que essa participação melhora a qualidade e aumenta a
efetividade, a eficiência e a sustentabilidade das intervenções
desenvolvimentistas. Ela beneficiaria o pobre, incrementando suas
capacidades e levando ao seu empoderamento. Infelizmente,
4
Para uma maior discussão sobre as diferentes interpretações do termo
“participação”, ver Oakley (1991).
5
Redução da pobreza é entendida neste estudo como o fenômeno
multidimensional que envolve mudanças positivas na qualidade de vida,
nas capacidades e nos direitos dos pobres.
87
experiências em avaliá-la são ainda limitadas (KARL 2000;
RUDQVIST e WOODFORD-BERGER 1996; OAKLEY et al.
1998), especialmente no Brasil. A atenção tem sido mais focada em
identificar os stakeholders e medir a extensão e qualidade de sua
participação do que mensurar os seus impactos (KARL 2000). Ademais,
existe uma lacuna de informações sobre em que contexto e circunstâncias
as contribuições podem materializar-se.Algumas questões permanecem
sem respostas satisfatórias. Particularmente, como e em que extensão
a participação dos beneficiários aumenta a efetividade, a eficiência e a
sustentabilidade das intervenções desenvolvimentistas? Como e em que
extensão ela empodera os stakeholders primários? Quais são os
desafios e dificuldades para implementar estratégias participativas?
Dessa forma, os objetivos deste trabalho são: (1) examinar e
sintetizar a literatura sobre participação de maneira a responder essas
questões e (2), a partir desta revisão, emitir recomendações para
serem adotadas em futuras políticas de combate à pobreza. Ele está
dividido em 4 seções. A primeira apresenta uma introdução geral
sobre o tema, destacando a importância da participação como um
componente das estratégias de redução da pobreza, seus diferentes
entendimentos e objetivos. A seção 2, a partir das evidências da
literatura especializada, analisa as contribuições da participação em
termos de empoderamento dos beneficiários e melhorias na efetividade,
eficiência e sustentabilidade das intervenções desenvolvimentistas. A
seguir, são identificados os desafios e dificuldades para garantir uma
real participação. Finalmente, a seção 4 revê as principais conclusões
do estudo e faz algumas recomendações.
2-CONTRIBUIÇÕES DA PARTICIPAÇÃO
A literatura foi consultada de maneira a permitir uma análise
das contribuições da participação para a redução da pobreza. Os
88
textos foram revistos em termos de empoderamento, efetividade,
eficiência e sustentabilidade. Esses critérios foram formulados em
consideração às questões conceituais apresentadas na seção
anterior.
2.1. Empoderamento dos beneficiários
Empoderamento, como participação, é um termo complexo
que não é facilmente definido e tem diversas interpretações6. Ele é
focado nas noções de “poder” – seu uso e distribuição – (OAKLEY
e CLAYTON 2000) e de “construção de capacidade”
(NARAYAN 1995).
Pobreza significa freqüentemente ausência de poder e
exclusão social, resultantes da discriminação, do isolamento e da
falta de direitos humanos (CHAMBERS 1983). Empoderamento
é, desta forma, crucial para sua redução. Ele permite que os pobres
influenciem nas decisões que afetam as suas vidas e tenham acesso
a recursos produtivos.
Os casos apresentados a seguir mostram como o envolvimento
dos beneficiários nas atividades das intervenções desenvolvimentistas
pode aumentar o seu senso de controle sobre suas vidas, quebrar a
sua mentalidade de dependência, construir suas capacidades e
fortalecer sua voz, entre outros efeitos positivos.
Como resultado da participação no “People’s Participation
Programme” (PPP) em Gana (BORTEI-DOKU 1991), foi
identificado que as organizações participativas locais representavam
os interesses dos pobres rurais e serviam como base para um
crescente envolvimento dos beneficiários nas atividades do
6
Sobre os diferentes conceitos de empoderamento, ver OAKLEY e CLAYTON
(2000).
89
Programa. PPP fez os serviços financeiros públicos (empréstimos e
poupança) ficarem disponíveis para pequenos agricultores, que eram
anteriormente excluídos.
Semelhantemente, HINCHLIFFE et al. (citado por KARL
2000), em um estudo sobre os impactos sociais, econômicos e
ambientais de projetos de irrigação, identificaram que os maiores
benefícios da participação dos stakeholders primários foram o
aumento da confiança e do senso de coesão das comunidades, a
redução das emigrações, uma maior atenção às necessidades dos
grupos sem-terra e o estabelecimento de uma nova relação de apoio
entre as pessoas e os profissionais das agências de desenvolvimento.
Em um estudo comparativo de três países (Bolívia, Burkina
Faso e Indonésia), GROOTAERT (2001) descobriu que bons níveis
de capital social reduzem significativamente a probabilidade de uma
pessoa ser pobre. Famílias bem dotadas deste capital eram mais
hábeis na acumulação de ativos e na obtenção crédito, o que lhes
ajudava a lidar melhor com o risco de flutuações negativas de renda.
Neste caso, a ativa participação dos membros das famílias no
processo de decisão das organizações locais contribuía para construir
capital social.
Da mesma forma, COIROLO e BARBOSA (2002),
analisando a experiência dos “Projetos de Alívio da Pobreza Rural”
(PAPR) financiados pelo Banco Mundial no Nordeste brasileiro,
encontraram que o capital social desenvolvido durante o processo
geral de participação permitiu aos beneficiários conseguirem outras
fontes de financiamento que antes eles não tinham acesso e os ajudou
a vender seus produtos para os mercados internacionais.
Esses estudos confirmam a influência positiva da participação
em promover confiança, em fortalecer a voz dos excluídos, em
melhorar a capacidade local para resolver problemas e em gerar capital
social. No entanto, a extensão em que isto ocorre depende do tipo
de participação. Com o baixo envolvimento dos stakeholders
90
primários na implementação do “Water Supply Project” (WSP) na
Tanzânia (THERKILDSEN 1991), conseguiu-se, apenas, obter
contribuições em forma de trabalho voluntário, apesar dos esforços
para mobilizar e empoderar as pessoas para que estas tivessem um
papel ativo em todas as fases do projeto. Da mesma forma, a
capacidade operacional das associações de agricultores era pequena
na primeira fase de implementação do “Self-help Support
Programme” (SSP) no Sri Lanka (SAMARANAYAKE 1998)
devido a não-participação dos beneficiários no processo de escolha
das estruturas físicas que seriam construídas.
Por outro lado, um estudo de caso do “World Bank Community
Driven Development” (The World Bank 2002b) mostra como a um
alto nível de participação empodera os beneficiários. O Programa
“Mvula Trust” provem água potável e saneamento básico em áreas
rurais da África do Sul. Os membros da comunidade são envolvidos
de diferentes formas, sendo que a operação e manutenção dos projetos
são de sua inteira responsabilidade. Como conseqüência deste enfoque
fortemente participativo, o Programa contribuiu para a auto-organização
de instituições locais e motivou o desenvolvimento de agências
governamentais mais efetivas e pró-pobres, o que influenciou a
administração sul-africana a adotar iniciativas similares em outras áreas.
Resultados semelhantes foram alcançados no âmbito dos
PAPR. A sua estratégia altamente participativa e empoderadora
permitiu que as comunidades mais pobres recebessem financiamento
para implementar, operar, administrar e manter subprojetos de
investimento da sua escolha e contratar diretamente assistência técnica.
2.2. Efetividade das estratégias
Efetividade pode ser entendida como a extensão em que uma
intervenção atinge seus objetivos. Um programa/projeto pode prover
91
um produto ou serviço, mas não necessariamente causar efeito7
sobre o seu público-alvo.
De acordo com a teoria, uma das mais importantes
contribuições da participação dos stakeholders primários é
aumentar a efetividade das intervenções desenvolvimentistas.
Acredita-se que as intervenções têm uma maior chance de atingir
seus objetivos se eles forem identificados e avaliados com a
participação das pessoas diretamente afetadas (KARL 2000).
Adicionalmente, se os beneficiários participarem ativamente na
formulação e implementação do programa/projeto, eles estarão mais
comprometidos com o seu sucesso.
As contribuições da participação para a melhoria da
efetividade das intervenções desenvolvimentistas são, provavelmente,
as mais documentadas na literatura. O estudo a seguir, dada sua
abrangência e qualidade, deixa pouca dúvida sobre o relevante papel
desempenhado pela participação dos beneficiários em potencializar
os efeitos dos programas/projetos.
NARAYAN (1995) avaliou 121 projetos de fornecimento
de água em zonas rurais implantados por diferentes agências em 49
países em desenvolvimento. Ela provou que a participação contribuiu
significativamente para a efetividade das intervenções, aumentando
o percentual da população-alvo atingida, a proporção de sistemas
de fornecimento de água em boas condições e os benefícios
econômicos e ambientais dos projetos. Adicionalmente, o
envolvimento dos beneficiários ajudou a garantir eqüidade no acesso
às facilidades instaladas. A autora destacou que somente um projeto
altamente efetivo tinha um baixo nível de participação e nenhum
daqueles altamente participativos era pouco efetivo.
As contribuições da participação para melhor focalização dos
7
Por efeito entenda-se uma mudança tangível em relação à situação/
problema inicial que pode ser atribuída à intervenção.
92
benefícios dos programas/projetos nos mais pobres e para o
aumento de sua cobertura estão, também, evidenciadas numa
avaliação do Banco Mundial. Um estudo do seu Departamento de
Avaliação de Operações (The World Bank 2002a) mostrou que
projetos gerenciados pelas comunidades locais eram sensivelmente
mais exitosos que aqueles administrados por outras instituições e
concluiu que a participação em nível local ajudou a assegurar que
os serviços básicos alcançassem os mais pobres.
O monitoramento e a avaliação dos stakeholders primários
conduzem, também, para a uma melhor focalização das intervenções
desenvolvimentistas. O uso de avaliações participativas garantiu que
somente comunidades pobres fossem apoiadas pelo “Social
Recovery Project” (SRP) em Zâmbia (The World Bank 1999).
De fato, sua estratégia de auto-focalização foi capaz de direcionar
os benefícios do projeto para os mais carentes. Adicionalmente,
processos participativos tendem a aumentar a eqüidade de gênero.
The World Bank (2002a) destaca que estudos sobre comunidades
rurais em Burkina Faso, Camarões e Quênia mostraram que
controles mais eqüitativos por homens e mulheres sobre os insumos
e sobre as rendas geradas incrementaram em um quinto a produção
agrícola.
Adotar um enfoque participativo nos programas/projetos
ajuda a prover os produtos desejados pelos beneficiários. Somente
projetos formulados localmente e que iam de encontro às
necessidades dos pobres eram elegíveis para acessar os recursos
do fundo do SRP. Participação também influenciou, no estudo de
caso de Sri Lanka (SSP), a criação de um processo de decisão no
âmbito da agência de desenvolvimento mais sensível aos interesses
e prioridades das pessoas.
Uma outra importante contribuição da participação é
permitir o uso do conhecimento local. Kottak (citado por KARL
2000) analisou 68 avaliações ex post de maneira a identificar as
93
principais lições aprendidas relacionadas as variáveis sócioculturais em projetos de desenvolvimento rural apoiados pelo
Banco Mundial. Projetos que eram baseados em um adequado
entendimento das condições sociais tiveram taxas de retorno
econômico duas vezes maiores que aqueles socialmente
incompatíveis. Isto destaca a importância do envolvimento dos
beneficiários para providenciar informações sobre a realidade
social.
Semelhantemente à contribuição de empoderamento dos
beneficiários, o nível da participação afeta diferentemente a
efetividade das intervenções desenvolvimentistas, como pode ser
visto no trabalho de Narayan anteriormente citado e no caso da
participação comunitária no “Public Works Projects” (PWP) na
África do Sul (HODDINOTT et al. 2001). Os autores mostraram
que a participação de facto - onde as pessoas tinham controle sobre
as decisões dos projetos - estava associada a melhores relações
custo/efetividade e focalização. A participação de jure – onde as
pessoas tinham autoridade formal para decidir, mas na prática não
o faziam – era, contrariamente, menos efetiva e não aumentou, por
exemplo, a quantidade de oportunidades de emprego direcionadas
às mulheres.
2.3. Eficiência das estratégias
Eficiência é a medida de produtividade do processo de
implementação: quão racionalmente uma intervenção entrega os seus
produtos e/ou serviços em termos de custo e tempo.
Participação aumenta a eficiência das estratégias de redução
da pobreza pela redução dos custos associados à resolução de
conflitos e desentendimentos. Métodos participativos bem
conduzidos podem promover concordância, cooperação e interação
94
entre os diversos stakeholders (KARL 2000), diminuindo os custos
de tempo e energia freqüentemente gastos pelos profissionais das
agências de desenvolvimento para explicar ou convencer as pessoas
envolvidas sobre os benefícios e as estratégias dos programas/
projetos.
Participação, também, otimiza a divisão do trabalho e ajuda
na formação de um “pool” de recursos locais. A mobilização de
recursos financeiros e não-financeiros (trabalho, informação,
contribuições em espécie) promovida pelo envolvimento dos
beneficiários pode reduzir os custos de implementação dos
programas/projetos (MICHENER 1998). Participação é custoeficiente porque, se pessoas da localidade atendida estão assumindo
responsabilidades nas atividades da intervenção, menos recursos
externos serão requeridos e os profissionais contratados pelas
agências de desenvolvimentos estarão menos envolvidos em questões
operacionais.
Experiências práticas têm mostrado que os retornos dos
investimentos realizados em estratégias participativas são altos.
Na Costa do Marfim, um enfoque participativo reduziu os custos
de manutenção do “National Rural Water-Supply Programme”
em 50% (BHATNAGAR e WILLIAMS 1992). Na mesma linha,
UPHOFF (1992) encontrou que a relação custo/benefício dos
componentes participativos de projetos de irrigação nas Filipinas
e no Sri Lanka tinha taxas positivas de 1,5, bem acima da média
dos demais. Além disto, uma avaliação específica dos projetos
de Sri Lanka apontou uma taxa interna de retorno de 24%.
Segundo o autor, aproximadamente metade dos benefícios dos
projetos poderiam ser atribuídos aos seus componentes
participativos, que demandavam menos que 10% dos custos
totais das intervenções. Igualmente, os projetos de infra-estrutura
dos PAPR foram 40% mais baratos quando implementados pelas
comunidades.
95
2.4. Sustentabilidade das estratégias
Sustentabilidade também é um termo de sentido amplo e
com diversas interpretações para diferentes situações. No contexto
deste estudo, está sendo utilizado o conceito de sustentabilidade de
projeto, i.e., a extensão em que os stakeholders primários de uma
intervenção desenvolvimentista continuarão a perseguir seus
objetivos após o encerramento da implementação do programa/
projeto pela agência de desenvolvimento.
A contribuição da participação para aumentar a
sustentabilidade das estratégias de redução da pobreza pode ser
indiretamente demonstrada pelo desempenho precário de programas/
projetos não-participativos. Estes tendem a ter custos mais altos.
Tais custos incluem a não-utilização da estrutura física criada e a
sua manutenção deficiente. Por exemplo, embora o “Kampung
Improvement Program” na Indonésia tenha obtido sucesso na
construção da infra-estrutura física, algumas facilidades não eram
utilizadas e outras estavam quebradas devido a sua péssima
manutenção. Estes problemas foram atribuídos, em parte, ao baixo
nível de envolvimento dos stakeholders primários na implantação
do programa, levando a inexistência de um sentimento de
“propriedade” local. (BHATNAGAR e WILLIAMS 1992)
Descobertas semelhantes foram feitas por Cernea (citado por
KARL 2000), que analisou 25 projetos financiados pelo Banco
Mundial para medir sua sustentabilidade. De acordo com o autor,
13 destes projetos foram considerados não-sustentáveis. Embora
a razão primária deste problema tenha sido insuficiência de recursos,
o não-envolvimento dos stakeholders primários na formulação e
implementação dos projetos foi identificado como um fator
importante para este insucesso.
Os casos seguintes mostram que participação pode garantir
a “propriedade” local e responsabilização pela manutenção das
96
estruturas criadas pelas intervenções desenvolvimentistas,
incrementando a durabilidade dos seus benefícios.
COIROLO E BARBOSA (2002) informam que cerca de
90% dos projetos que receberam financiamento dos PAPR de 1995
a 1997 continuam funcionando atualmente.
Um estudo de NINAN (1998) avaliou 4 projetos de irrigação
na Índia financiados por doadores europeus. Ele mostrou que a
participação comunitária, particularmente das mulheres, resultou na
formação de comitês locais que promoveram um grande senso de
envolvimento das pessoas. Todos os comitês comprometeram-se a
manter as estruturas criadas e a realizar outras atividades após o
encerramento dos projetos.
KATZ E SARA (sem data) conduziram um estudo sobre
fornecimento de água em 1.875 domicílios em áreas rurais de
comunidades carentes em 6 países. Eles descobriram que a
sustentabilidade dos projetos é maior quando os stakeholders
primários escolhem o tipo de sistema a ser construído e o nível do
serviço que eles preferem. Interessantemente, a sustentabilidade era
ainda maior quando a demanda era expressa diretamente pelos
beneficiários, ao invés de sê-la via líderes locais ou representantes.
Esta participação direta leva a um alto senso de “propriedade” local
e promove uma maior disposição para pagar pela manutenção dos
serviços.
As diferentes contribuições da participação para a
sustentabilidade, fruto dos diferentes níveis de envolvimento dos
beneficiários, são confirmadas em outros estudos. Na primeira fase
do SSP, como os agricultores não eram consultados sobre a escolha
dos locais de instalação dos tanques de água, a manutenção da
estrutura era negligenciada. Contrariamente, na segunda fase do
programa, com o aumento da participação dos agricultores, a
sustentabilidade foi incrementada, com organizações locais
estabelecendo uma ligação direta com os serviços de extensão rural
97
e de crédito agrícola, responsabilizando-se pela manutenção da infraestrutura criada.
De igual forma, o alto nível de participação dos beneficiários
aumentou o senso de “propriedade” local da infra-estrutura criada
pelo SRP. Os benefícios do projeto tornaram-se sustentáveis pela
melhoria da capacidade de gerenciamento das comunidades e pelo
treinamento dos profissionais do projeto e de membros da
comunidade.
Participação aumenta as chances dos programas/projetos
serem sustentáveis porque os beneficiários, quando envolvidos, estão
mais dispostos a manter as suas atividades, mesmo com a cessação
dos recursos externos, e são mais aptos a fazê-lo, dado que a própria
participação ajuda as pessoas a desenvolver as habilidades
necessárias (KARL 2000).
A presente seção tem tentado responder algumas questões
relacionadas à ligação entre participação e redução da pobreza. A
literatura sugere que o envolvimento dos beneficiários aumenta o
impacto das estratégias de redução da pobreza por intermédio do
empoderamento dos stakeholders primários e do aumento da
efetividade, da eficiência e da sustentabilidade das intervenções
desenvolvimentistas. Estas contribuições são inter-relacionadas e
reinforçam-se sinergeticamente.
Participação melhora a qualidade de vida dos pobres pela
promoção de sua independência e auto-confiança e pelo aumento
de suas capacidades, permitindo-lhes perseguir estratégias de
sobrevivência mais sustentáveis. Quando empoderadas, as pessoas
têm seus talentos e potenciais expandidos, sendo capazes de
entender seus problemas e tomar atitudes para resolvê-los, de
mobilizar novos recursos e de influenciar ou negociar em melhores
condições com instituições de crédito, com empregados e dirigentes
de órgãos públicos e de agências de desenvolvimento, com
98
lideranças locais, entre outros. Participação constrói, também, uma
rede de proteção social para o pobre, que amortece os efeitos de
choques adversos e impede que ele se aprofunde na miséria.
Participação ajuda a focalizar os benefícios das intervenções
desenvolvimentistas nos mais pobres. O envolvimento dos
stakeholders primários no planejamento, implementação,
monitoramento e avaliação de políticas, programas e projetos
direciona os seus produtos e serviços para os mais carentes e
vulneráveis, evitando que sejam capturados pelos não-pobres e/ou
pelas elites locais. Além disso, leva a uma mais eqüitativa distribuição
dos seus benefícios porque impõe às agências de desenvolvimento
a disponibilização de informações sobre os objetivos e recursos de
seus programas/projetos, permitindo aos stakeholders primários
controlar e supervisionar as suas atividades.
Participação racionaliza o uso dos recursos e reduz os custos
operacionais dos programas/projetos por meio das contribuições
em espécie, do trabalho e outros insumos dos stakeholders
primários, permitindo às agências de desenvolvimento aumentar a
quantidade e qualidade de suas intervenções, maximizando os
benefícios para os pobres. Ademais, a mobilização de recursos
endógenos cria um incentivo positivo para a “propriedade” local e
para a responsabilização, aumentando a sustentabilidade dos
projetos e, desta forma, fazendo com que os pobres beneficiem-se
por mais tempo das facilidades criadas.
Os estudos de caso apresentados neste trabalho permitem
ao autor afirmar, também, que diferentes níveis de participação
proporcionam diferentes contribuições para a redução da pobreza.
Baixos níveis de envolvimento dos beneficiários – como no “Water
Supply Project” na Tanzânia, na primeira fase do “Self-help
Support Programme” em Sri Lanka e na participação de jure na
África do Sul – causam menores impactos sobre os resultados dos
programas/projetos que altos níveis de participação – como no caso
99
ganense, no “Mvula Trust Programme”, nos “Projetos de Alívio
da Pobreza Rural”, na segunda fase do “Self-help Support
Programme”, no “Social Recovery Project” e na participação de
facto na África do Sul. Um enfoque participativo que promova o
envolvimento dos stakeholders primários no processo de decisão
e melhore sua capacidade de auto-mobilização tende a aumentar o
impacto das estratégias de redução da pobreza porque tornam os
pobres mais capazes, informados, confiantes e pró-ativos para tomar
iniciativas que resolvam os seus problemas.
3– DESAFIOS E DIFICULDADES PARA A PARTICIPAÇÃO
Na seção anterior, pôde ser visto que o envolvimento dos
stakeholders primários nas atividades dos programas/projetos
aumenta a probabilidade das estratégias de redução da pobreza
atingirem seus objetivos. Desta forma, se participação contribui para
a incrementar os impactos das intervenções, por que as agências
de desenvolvimento não adotam sempre processos participativos?
Porque a participação dos beneficiários é um processo
complicado e que não tem uma fórmula ideal. Ele padece de
dificuldades de ordem econômica e social e limitações de tempo e
de recursos, apresentando desafios de natureza pessoal, local,
organizacional e comportamental para ser implementado
(CHAMBERS 1993; CHAMBERS 1994; LEURS 1996).
Particularmente, uma participação “real” ou de alto nível (i.e., o
envolvimento dos stakeholders primários no processo de decisão
e a melhoria de sua capacidade de auto-mobilização) requer um
contexto socioeconômico adequado.
Além disso, direta e intensiva participação dos beneficiários
nem sempre é apropriado (The World Bank 2002a). É importante
ter clareza sobre os objetivos e valores adicionados ao processo,
100
já que os custos de oportunidade para os envolvidos podem ser
altos. Em alguns casos, a participação pode se restringir a apenas
uma consulta às pessoas sobre as suas prioridades e interesses.
Esta seção identifica os principais desafios e dificuldades para
garantir uma “real” participação e sugere as mudanças necessárias.
3.1. Empoderamento dos beneficiários
Empoderamento é agora um objetivo importante da maioria das
intervenções desenvolvimentistas. Contudo, deve ser enfatizado que
empoderamento, especialmente de pessoas pobres, permanece um ideal
mais que uma realidade nos programas e projetos (EYBEN e
LADBURY 1995). O estudo “Voices of the Poor”, conduzido em 60
países, mostra que uma característica comum da vida dos pobres é,
ainda, um sentimento de ausência de poder e de voz, apesar dos esforços
de empoderamento conduzidos nas últimas décadas pelas agências de
desenvolvimento (The World Bank 2002a). O principal desafio para
as agências é aprofundar o entendimento dos termos “participação” e
“empoderamento”, reconhecendo suas complexidades, fortalezas e
limitações (OAKLEY e CLAYTON 2000; CLEAVER 1998). Os
próximos três estudos de caso destacam esta questão.
MICHENER (1998) analisou o uso da participação em um
projeto de educação não-formal em Burkina Faso8. Ela observou
que existe freqüentemente conflito entre as noções de participação
e de empoderamento entre os diferentes stakeholders e este
problema é indicativo da dubiedade dos conceitos. Neste caso, os
profissionais de campo do projeto não estavam convencidos da
8
Embora esta não seja uma estratégia de combate à pobreza,
strictu sensu, o caso foi selecionado devido a relevância das questões
apresentadas.
101
retórica de empoderamento da “participação”. Eles não acreditavam
que as comunidades eram capazes de assumir um papel relevante
em seu próprio desenvolvimento. Para eles, “participação” era
apenas uma formalidade. As perspectivas dos beneficiários também
eram modeladas pelas suas experiências anteriores com as agências
de desenvolvimento. Para eles, participação tinha pouco a ver com
independência e empoderamento. Ao invés, era uma oportunidade
para extrair recursos das agências.
Semelhantemente, MATTHÄUS (sem data), analisando o
Projeto “Prorenda Urbano e Regional” em Pernambuco, que apóia
processos de desenvolvimento local sustentável, encontrou que, em
alguns municípios, é muito difícil mobilizar os beneficiários. Existe
um forte sentimento que cabe ao Poder Público fazer tudo e,
portanto, eles não devem se envolver.
BOTCHWAY (2001) examinou a noção de participação
como base para o empoderamento no contexto de um projeto de
desenvolvimento rural financiado pelos governos canadense e
ganense chamado “Northern Regional Rural Integrated Program”
(NORRIP). O método participativo do NORRIP não permitiu às
pessoas definirem suas necessidades prioritárias e, desta forma, elas
não foram empoderadas. De fato, as comunidades entraram em
uma nova forma de dependência, em que precisavam de forças
externas para manter o sistema de abastecimento de água9. O autor
concluiu que o discurso da participação e do empoderamento seria
uma nova ideologia em que as pessoas não decidem o que é relevante
para elas e apenas envolvem-se nas atividades dos programas/
projetos sem mudar as condições socioeconômicas sob as quais
elas têm de desenvolver-se.
9
Isto é o que Michener (1998) chama de “paradoxo do agente externo”:
dependência tem sido criada no processo de promover participação e
independência.
102
Esses estudos exemplificam a dificuldade de realizar os
objetivos de quebrar a mentalidade de dependência dos pobres e
aumentar o controle sobre suas vidas. Além disso, empoderamento
implica não somente construir novas capacidades, mas, também,
dar condições de empregar os novos conhecimentos e habilidades
de forma produtiva. O caso camaronês abaixo destaca a
necessidade de mudar as relações sociais tradicionais de maneira a
permitir o empoderamento dos beneficiários.
MAYOUX (2001) analisou a experiência de 7 programas
participativos de micro-crédito na República dos Camarões em
promover o empoderamento das mulheres. A autora identificou que
a capacidade das mulheres para usar os créditos concedidos era
seriamente limitada por relações hierárquicas no interior das famílias
e dos grupos. Ela concluiu que, ao menos que os programas movamse de uma visão complacente sobre o poder da participação, eles
podem tornar-se apenas mais uma forma cínica de auto-ajuda, onde
os custos do desenvolvimento recaem sobre as mulheres.
Diversas limitações para o empoderamento apresentam-se
quando os recursos materiais são insuficientes. Osmani (2000) sugere
que melhorar concomitantemente a situação econômica do pobre
deva ser parte integral dos esforços de empoderamento, haja visto
que um grupo de pessoas em situação de insegurança dificilmente
será exitoso numa barganha com grupos mais poderosos. Além
disto, é necessário reconhecer as dificuldades que os pobres
enfrentam para sobreviver e que a capacidade das pessoas para
auto-desenvolvimento é limitada, variável e altamente dependente
de fatores externos (CLEAVER 1998). As necessidades econômicas
dos pobres são enormes e assumir que eles poderão vencer esta
situação sozinhos é ingenuidade.
Um importante desafio organizacional para o empoderamento
dos beneficiários de estratégias de redução da pobreza é a tendência
das agências de desenvolvimento e dos doadores a limitar a
103
participação a apenas aspectos operacionais, evitando transferir
poder sobre o gerenciamento dos recursos para os stakeholders
primários. Por exemplo, Weiss (sem data), estudando a experiência
comparada com fundos socioambientais na Amazônia, no Brasil e
no Exterior, encontrou que as pressões de doadores para manter o
controle sobre os recursos limitam a capacidade da comunidade de
se ajudar e de obter financiamento para seus projetos.
3.2. Efetividade da estratégia
Direcionar os esforços desenvolvimentistas para ir de encontro
às necessidades dos mais pobres é uma das mais importantes
contribuições da participação. Contudo, há desafios práticos para
implementar enfoques participativos efetivos, como pode ser visto
no caso do “North Western Province Dry Zone Participatory
Development Project” (DZP) no Sri Lanka (KAR e BACKHAUS
1994). De acordo com os autores, o problema é que sendo baseado
num planejamento participativo, mas, por outro lado, tendo de
trabalhar com um conjunto pré-estabelecido de atividades e
objetivos, o DZP inevitavelmente caia em contradição quando as
prioridades dos membros das comunidades não coincidiam com o
catálogo de serviços disponíveis do Projeto. Assim, os esforços
para promover a participação dos beneficiários eram parcialmente
desperdiçados.
Uma outra dificuldade para a focalização dos benefícios das
intervenções desenvolvimentistas é a tendência dos métodos
participativos de misturarem os conceitos de “comunidade” e
“público-alvo”. Erroneamente assume-se que a “comunidade” ou o
“grupo” é facilmente identificado, apesar das consideráveis
evidências sobre a subjetiva e mutável natureza de sua composição
(CLEAVER 1998).
104
3.3. Eficiência das estratégias
Embora a participação dos beneficiários possa maximizar o
uso dos recursos dos programas/projetos, ela tende, em algumas
situações, a aumentar os custos operacionais e de transação das
intervenções desenvolvimentistas.
Esses custos adicionais da participação têm sido amplamente
apontados na literatura. Bhatnagar e Williams (citado por KARL
2000), em um estudo do Banco Mundial, identificaram que projetos
participativos freqüentemente requerem um maior esforço de
planejamento do que os não-participativos. Mais tempo também é
necessário para os processos de identificação e de consulta dos
grupos e organizações que devem ser envolvidas, para alcançar a
concordância dos diferentes stakeholders e para construir uma
confiança mútua.
KARL (2000), numa pesquisa do Banco Mundial, igualmente
encontrou que participação aumenta o orçamento da intervenção:
projetos participativos gastam de 10% a 15% a mais para pagar o
seu pessoal e outros envolvidos. Deste valor, 2/3 são para a inclusão
de especialistas em técnicas participativas. Adicionalmente, estes
projetos exigem uma supervisão mais intensa durante as primeiras
etapas de implementação: 27 semanas, em média, contra 17 de
projetos não-participativos.
Além de aumentar as despesas de implementação dos
programas/projetos, participação impõe custos de oportunidades
aos envolvidos. Ela demanda tempo e energia dos stakeholders.
As pessoas pobres, normalmente, não têm disponibilidade para
participar de reuniões, especialmente quando isto as obriga a afastarse da produção (KARL 2000).
Participação tem se tornado uma demanda pesada para os
stakeholders primários (MICHENER 1998). Argumentos para
justificar o custo-eficiência da participação têm se defrontado com
105
acusações que esta eficiência resulta na destinação menor de
recursos por parte das agências e dos doadores, com a transferência
dos custos operacionais para os beneficiários (OAKLEY 1991).
Um outro significativo custo da participação é a capacitação
específica que ela demanda. Processos participativos requerem que
todos os stakeholders, desde os beneficiários até os diretores das
agências de desenvolvimento, sejam devidamente treinados.
Particularmente, os profissionais das agências devem ser capacitados
em técnicas participativas e facilitadores habilitados devem ser
identificados e contratados (KARL 2000).
3.4. Sustentabilidade das estratégias
De acordo com o relatório do Banco Mundial sobre o SRP,
participação da comunidade e “propriedade” local são précondições para a manutenção da infra-estrutura física criada pelos
projetos, porém elas de per si não garantem sustentabilidade. O
documento destaca que não somente os beneficiários têm que ser
envolvidos, mas novos papéis e responsabilidades têm que ser
assumidos. Além disso, é necessário providenciar conhecimento
técnico e recursos financeiros para que a manutenção possa ser
efetuada.
Esta seção identificou os principais desafios e dificuldades
para implementar estratégias participativas. Eles foram agrupados
em termos de empoderamento, efetividade, eficiência e
sustentabilidade.
Empoderamento requer uma “real” participação dos
stakeholders primários nas decisões e atividades determinantes das
intervenções desenvolvimentistas. Contudo, os mecanismos de
empoderamento são complexos e dependentes de recursos externos.
106
Os beneficiários necessitam ganhar novas habilidades, capacidades,
direitos e responsabilidades. Isto demanda mudanças em todos os
níveis. Organizações públicas e privadas e agências de
desenvolvimento devem criar um ambiento propício e providenciar
oportunidades para a participação.
A efetividade das estratégias participativas é limitada pelo
modus operandi das agências de desenvolvimento e pelos
organismos doadores. Eles tendem a ser burocráticos, a impor
objetivos “de cima para baixo” e a definir orçamentos rígidos, o
que impede uma “real” participação. Ademais, uma visão do públicoalvo como uma comunidade homogênea e unida atrapalha uma
melhor focalização e cobertura.
Como participação demanda um maior desenvolvimento dos
recursos humanos, mais tempo e treinamento que enfoques nãoparticipativos, estes custos adicionais podem reduzir as vantagens
de custo-eficiência das intervenções participativas.
Sustentabilidade requer “propriedade” local dos programas/
projetos. Desta forma, os beneficiários são desafiados a assumir
novos papéis e responsabilidades, demandando capacitação
específica e uma problemática e, algumas vezes, conflituosa
redistribuição de poder e recursos entre os diferentes stakeholders.
Muitos desses desafios e dificuldades podem ser vencidos,
mas alguns são mais difíceis de resolver. Participação irá permanecer
limitada e insustentável se não forem criadas as oportunidades e os
mecanismos para o envolvimento dos stakeholders primários nos
processos de decisão e de alocação de recursos, especialmente
em nível local. Participação implica que a voz dos beneficiários seja
fortalecida de maneira a influenciar os contextos socioeconômicos
em que eles estão inseridos. Assim, faz-se necessário, primeiro,
estabelecer instituições locais que sejam focadas nos mais pobres,
sujeitas ao controle social, estáveis e flexíveis e, segundo, mudar as
atitudes e comportamentos dos diversos stakeholders de maneira
107
a permitir uma “real” participação. Adicionalmente, como
participação envolve custos e benefícios, ela deve ser otimizada
(i.e., um nível suficiente para atingir os resultados desejados), ao
invés de maximizada. Desta forma, métodos participativos que sejam
contexto-específicos, que tenham baixo custo operacional para as
agências e alto retorno para os pobres devem ser adotados.
4 Conclusões e recomendações
O tamanho e a complexidade do desafio de combater a
pobreza têm criado a necessidade de identificar-se novas maneiras
de atacar o problema. O envolvimento dos beneficiários nas
atividades das estratégias de redução da pobreza é parte de um
inovador e poderoso enfoque para o desenvolvimento.
O presente estudo analisou as contribuições da participação
para a redução da pobreza. Ele identificou que participação aumenta
o impacto das estratégias por meio do empoderamento dos
beneficiários e pelo incremento da efetividade, da eficiência e da
sustentabilidade das intervenções desenvolvimentistas. Desta
maneira, participação melhora a qualidade de vida dos pobres,
constrói sua rede de proteção social, ajuda a focar os benefícios
dos programas/projetos para os mais carentes e aumenta a qualidade
e quantidade das intervenções.
Evidências da literatura apontadas aqui confirmam essas
contribuições. Mais importante, os estudos de caso indicam que
uma participação “real” – aquela que envolve os stakeholders
primários no processo de decisão e aumenta sua capacidade de
auto-organização – potencializa os impactos das estratégias de
redução da pobreza.
Contudo, garantir uma “real” participação dos beneficiários
não é fácil e sem problemas. Particularmente, estratégias
108
participativas são afetadas por dificuldades sociais, econômicas,
de tempo e de recursos e existem desafios de ordem pessoal, local,
organizacional e comportamental para a sua implementação.
Considerando todos esses pontos, são apresentadas, a seguir,
recomendações para futuras políticas públicas. Estas sugestões
podem ajudar a superar os desafios e as dificuldades identificados
e a maximizar as contribuições da participação dos beneficiários
nas estratégias de redução da pobreza.
Primeiramente, dada a extensão da contribuição da participação
para a redução da pobreza, conforme visto neste trabalho, a óbvia
implicação para as políticas é que maiores investimentos devem ser
feitos em estratégias participativas. Os stakeholders primários devem
ser envolvidos em todas as fases dos programas/projetos: formulação,
implementação, monitoramento e avaliação. As contribuições da
participação não podem ser completamente realizadas quando ela
está limitada a apenas um estágio em particular. Além disso,
organizações públicas e privadas e agências de desenvolvimento
devem oferecer oportunidades para a participação efetiva dos
beneficiários nos processos de decisão e de alocação de recursos e
devem apoiá-los nas suas iniciativas de auto-organização.
Em segundo lugar, os stakeholders primários devem ser
capacitados para coletar e analisar informações, para realizar o
diagnóstico dos problemas locais e identificar soluções, para
negociar diferentes interesses e opiniões e para articular as partes
envolvidas. Ademais, tempo suficiente deve ser dado para o
treinamento em métodos participativos e para que os
comportamentos e atitudes sejam adaptados.
Terceiro, as agências de desenvolvimento devem ser flexíveis
no desenho e implementação dos programas/projetos. Elas devem
ser menos burocratizadas, adotar um enfoque de aprendizagem
organizacional, fortalecer os mecanismos de controle social e serem
orientadas por demanda.
109
Quarto, as agências de desenvolvimento devem identificar
e utilizar organizações locais que sejam mais sensíveis às demandas
e necessidades dos pobres e abertas à participação dos
beneficiários. Ao mesmo tempo, elas devem lutar contra
instituições, redes e regras existentes que produzam exclusão e
desigualdade social (MAYOUX 2001).
Quinto, as agências de desenvolvimento devem reconhecer
que o seu público-alvo é formado por grupos de indivíduos
heterogêneos, com interesses diferentes e, em alguns casos,
antagônicos. A intervenção deve ser apropriada às necessidades
dos grupos mais carentes e um enfoque negocial deve ser adotado
para solucionar os conflitos gerados (LEEUWIS 2000).
Sexto, as agências de desenvolvimento devem adotar métodos
participativos que sejam apropriados ao contexto local e aos
objetivos da intervenção, que não aumentem significativamente os
custos operacionais dos programas/projetos e os custos de
oportunidade dos envolvidos.
A adoção dessas recomendações e o desenvolvimento de
novos enfoques participativos podem melhorar a situação dos
pobres. Pobreza é um problema sério e complexo e sua redução
dependerá de um grande e persistente esforço e da utilização de
estratégias apropriadas.
110
BIBLIOGRAFIA
ALCOCK, P. 1997. Understanding Poverty. 2a. ed. Nova
Iorque: Palgrave.
BARROS, R.P., HENRIQUES, R., MENDONÇA, R. 2001.
“A Estabilidade Inaceitável: Desigualdade e Pobreza no Brasil”.
Texto para discussão nº 800. Rio de Janeiro: IPEA.
BHATNAGAR, B. e WILLIAMS, A.C. 1992. “Participatory
Development and the World Bank: Potential Directions for Change”.
World Bank Discussion Paper n. 183. Washington: The World
Bank.
BORTEI-DOKU, E. 1991. “People’s Participation Project:
Ghana”. In PETER OAKLEY (ed.) Projects With People: The
Practice of Participation in Rural Development. Geneva:
International Labour Office.
BOTCHWAY, K. “Paradox of Empowerment: Reflections
on a Case Study from Northern Ghana”. World Development,
Volume 29, n. 1, 2001: pp. 135-153.
CHAMBERS, R. 1983. Rural Development: Putting the
Last First. Londres: ITP.
CHAMBERS, R. 1993. Challenging the Professions:
Frontiers for Rural Development. Londres: ITP.
CHAMBERS, R. “Participatory Rural Appraisal (PRA):
Challenges, Potentials and Paradigm”. World Development, Volume
22, n. 10, 1994: pp. 1437-1454.
111
CLEAVER, F. 1998. Paradoxes of Participation: a Critique
of Participatory Approaches to Development. Paper apresentado
na Conferência ‘Participation – The New Tyranny?’, University of
Manchester. Material não publicado.
COIROLO, L. e BARBOSA, T. “Desenvolvimento Rural e
Alívio da Pobreza no Nordeste do Brasil”. Em Breve, n. 11, 2002.
DFID. 1995. Stakeholder Participation and Analysis.
Londres: Department for International Development.
EYBEN, R. e LADBURY, S. 1995. “Popular Participation
in Aid-Assisted Projects: Why more in Theory than Practice?” In
NELSON, N. e WRIGHT, S. (eds.) Power and Participatory
Development: Theory and Practice. London: ITP.
GROOTAERT, C. 2001. “Does Social Capital Help the
Poor? A Synthesis of Findings from the Local Level Institutions
Studies in Bolivia, Burkina Faso and Indonesia. Local Level
Institutions”. Working Paper n. 10. Washington: The World Bank.
HODDINOTT, J., ADATO, M., BESLEY, T., HADDAD,
L. 2001. “Participation and Poverty Reduction: Issues, Theory, and
New Evidence from South Africa”. FCND Discussion Paper n.
98. Washington: International Food Policy Research Institute.
KAR, K. e BACKHAUS, C. 1994. “Old Wine in New
Bottles? Experiences with the Application of PRA and Participatory
Approaches in a Large-Scale, Foreign-Funded Government
Development Programme in Sri Lanka”. Material não publicado.
KARL, M. 2000. “Monitoring and Evaluating Stakeholder
112
Participation in Agriculture and Rural Development Projects: a
Literature Review”. (http://www.fao.org/sd/Ppdirect/Ppre0074.htm)
KATZ, T. e SARA, J. “Making Rural Water Supply
Sustainable: Recommendations from a Global Study”. UNDP-World
Bank Water and Sanitation Program. (http://www.wsp.org/pdfs/
global_ruralstudy.pdf)
LEEUWIS, C. “Reconceptualizing Participation for
Sustainable Rural Development: Towards a Negotiation Approach”.
Development and Change, Volume 31, 2000: pp. 931-959.
LEURS, R. “Current Challenges Facing Participatory Rural
Appraisal”. Public Administration and Development, Volume 16,
1996: pp. 57-72.
MATTHÄUS, H. “Apoio a Processos de Desenvolvimento
Local Sustentável: o Projeto PRORENDA Urbano e Regional/
PE”.
(http://www.femica.org.gt/documentos/base_documental/
VIIRED/horst_mattaus2.htm)
MAYOUX, L. “Tackling the Down Side: Social Capital,
Women’s Empowerment and Micro-Finance in Cameroon”.
Development and Change, Volume 32, 2001: pp. 435-464.
MICHENER, V.J. “The Participatory Approach:
Contradiction and Co-option in Burkina Faso”. World
Development, Volume 26, n. 12, 1998: pp. 2105-2118.
NARAYAN, D. 1995. “The Contribution of People’s
Participation: Evidence from 121 Rural Water Supply Projects”.
113
Environmentally Sustainable Development Occasional Paper Series
n. 1. Washington: The World Bank.
NINAN, K.N. 1998. “An Assessment of European-aided
Watershed Development Projects in India from the Perspective of
Poverty Reduction and the Poor”. CDR Working Paper 98.3.
Copenhagem: CDR.
OAKLEY, P. 1991. Projects with People: the Practice of
Participation in Rural Development. Geneva: International Labour
Office.
OAKLEY, P. e CLAYTON, A. 2000. The Monitoring and
Evaluation of Empowerment: a Resource Document. Oxford:
INTRAC.
OAKLEY, P., PRATT, B., CLAYTON, A. 1998. “Outcomes
and Impact: Evaluating Change in Social Development”. INTRAC
NGO Management and Policy Series No. 6. Oxford: INTRAC.
OSMANI, S.R. 2000. “Participatory Governance, People’s
Empowerment and Poverty Reduction”. UNDP/SEPED
Conference Paper Series n. 7.
(www.undp.org/seped/publications/empower_pov_red.pdf)
RUDQVIST, A. e WOODFORD-BERGER, P. 1996.
“Evaluation and Participation: Some Lessons”. SIDA Studies in
Evaluation 96/1. Estocomo: SIDA.
SAMARANAYAKE, M. 1998. “Introducing Participatory
Learning Approaches in the Self-help Support Programme, Sri
Lanka”. In BLACKBURN, J. e HOLLAND, J. (eds.) Who
114
Changes? Institutionalizing Participation in Development.
Londres: ITP.
THERKILDSEN, O. 1991. “The Desirable and the Possible:
Participation in a Water Supply Project in the United Republic of
Tanzania”. In OAKLEY, P. (ed.) Projects With People: The
Practice of Participation in Rural Development. Geneva:
International Labour Office.
THE WORLD BANK. 1999. “Zambia: The Social Recovery
Project’s Community Initiatives Component”. Africa Region
Findings n. 137.
(http://www.worldbank.org/afr/findings/english/find137.htm)
THE WORLD BANK. 2002a. “Empowerment and
Poverty Reduction: a Sourcebook”. (http://www.worldbank.org/
poverty/empowerment/sourcebook/draft.pdf)
THE WORLD BANK. 2002b. “Community Driven
Development Case Study: Mvula Trust”. (http://
wbln0018.worldbank.org/essd/CDDWk2000.nsf/
9a0da286b06474fe852569f30061c879/
7c1e339e4f2661f685256a480065bed6?OpenDocument)
UPHOFF, N. 1992. “Monitoring and Evaluating Popular
Participation in World Bank-Assisted Projects”. In
BHATNAGAR, B. e WILLIAMS, A.C. (eds.) Participatory
Development and the World Bank: Potential Directions for
Change. World Bank Discussion Paper n. 183. Washington:
The World Bank.
WEISS, J.S. “Experiência Comparada com Fundos
115
Socioambientais na Amazônia, no Brasil e no Exterior”. (http://
www.nepam.unicamp.br/ecoeco/artigos/iv_en/plenaria/3.pdf)
* Willber da Rocha Severo é Administrador, com Mestrado em
“Desenvolvimento e Redução da Pobreza” pela Universidade de Birmingham
(Inglaterra), e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.
116
Erick Brigante Del Porto
Fome Zero e controle social: a experiência dos
Comitês Gestores do Programa Cartão
Alimentação
INTRODUÇÃO
O
objetivo deste trabalho é fazer um breve relato da
rica experiência dos Comitês Gestores do Progra
ma Cartão Alimentação do Fome Zero. Dessa forma, não se preocupa com resgatar as construções teóricas referentes à política social, ao debate focalização X universalização, ao
controle social, à transparência e à participação popular. Sem prejuízo do debate teórico sobre o tema, dar-se-á foco na experiência
vivida em 2003.
Os Comitês Gestores, criados para serem uma instância de efetivo controle social do programa, foram fundamentais para o desenvolvimento de um novo modo de fazer política social no Brasil. Talvez
tenha sido esse o grande diferencial deste programa de transferência
de renda vinculado à questão da segurança alimentar, a despeito de
diversas iniciativas existentes em governos anteriores. Por fim, faz-se
uma defesa dessa experiência, num momento de unificação dos programas de transferência de renda por meio do Programa Bolsa Família.
1. O Programa Fome Zero
Dentre as prioridades definidas pelo governo federal já na
117
sua posse, em 2003, a que mereceu mais destaque, tendo imensa
repercussão nacional e internacional, foi o combate à fome.
Partindo da constatação da existência de “9,324 milhões de
famílias (correspondendo a 44.043 milhões de pessoas) pobres em
1999, sendo que praticamente metade delas reside na região Nordeste”1, o atual Governo Lula alçou o problema da fome, reincidentemente ignorado pelas forças políticas desse país, à condição
de primeira prioridade. Tal fato, em si de grande relevância, mostra-se ainda mais emblemático quando observamos que seu grande
mentor, o Presidente da República, teve origem nas camadas mais
pobres de nossa população.
Lançado em 2001, pelo Instituto Cidadania, organizaçãonão-governamental de São Paulo, o Projeto Fome Zero ganhou, a
partir de 2003, roupagem governamental, ou seja, iniciou-se sua
transformação em política pública. Evidentemente, isso exigiu diversos passos, desde a criação do Gabinete do Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome – MESA, arranjos institucionais e orçamentários, passando pela formação de equipes e definição de prioridades. Dessa forma, o projeto foi ganhando porte de política pública.
Por tratar-se da maior prioridade do novo governo e estar
presente em todos os órgãos de mídia, por conta de uma gigantesca campanha publicitária, o Fome Zero não tardou a receber uma
saraivada de críticas e desqualificações, muitas vezes demonstrando a falta de conhecimento do que se propunha com o projeto. As
críticas centraram-se, basicamente, sobre dois pilares: o estímulo
às doações e o Programa Cartão Alimentação, o qual, como veremos mais adiante, transferia R$ 50,00 por família pobre cadastra1
TAKAGI, Maya, GRAZIANO, José, DEL GROSSI, Mauro Eduardo Pobreza
e Fome: Em busca de uma metodologia para quantificação do problema no
Brasil, Texto para Discussão, IE UNICAMP, Campinas, n° 101, julho de 2001
118
da. Como se tais ações dessem ao Fome Zero um cunho meramente assistencialista.
Antes, porém, de tratarmos dessa questão, examinemos, sumariamente, o que é o Fome Zero.
O Projeto Fome Zero, que viria se tornar Programa Fome Zero,
estabelece o combate à fome com a abertura de três frentes principais
e concomitantes de trabalho: 1. o desenvolvimento de políticas
estruturantes que possam criar as condições para o desenvolvimento
macroeconômico e a geração de empregos, para impulsionar o setor
agrícola, inclusive a agricultura familiar, e para a universalização das
políticas básicas de saúde e educação; 2. o desenvolvimento de políticas locais de incentivo à produção e comercialização de gêneros
alimentícios no local, desenvolvimento de pequenos negócios geradores de trabalho e renda, além de iniciativas de pequenas obras, principalmente no que se refere ao abastecimento de água; 3. o desenvolvimento de políticas específicas, como o incremento da merenda escolar, e de políticas e ações emergenciais, como os programas de
transferência de renda, a disponibilização emergencial de água com os
carros pipa (na região do semi-árido), e até a distribuição de cestas
básicas em situações especiais ou a grupos específicos, como indígenas, quilombolas e trabalhadores de “lixões”.
No âmbito desse último grupo de políticas, foco deste trabalho, criou-se o Programa Cartão Alimentação – PCA, que distribuía recursos financeiros, por meio de cartão magnético, às famílias
em situação de insegurança alimentar e nutricional. Vejamos como
se deu sua implementação.
2. SEGURANÇA ALIMENTAR E O PROGRAMA CARTÃO
ALIMENTAÇÃO (PCA)
De acordo com os estudiosos da segurança alimentar, dentre
119
eles alguns autores do Projeto Fome Zero, uma pessoa ou família
encontra-se em situação de insegurança alimentar quando não consegue alimentar-se de maneira digna, em quantidade e qualidade
adequadas e regulares. Para estas famílias, foi desenvolvido o PCA,
que distribuía a quantia de R$ 50,00 para a aquisição de alimentos.
O PCA foi criado no início do ano de 2003. Extraído do Projeto
Fome Zero, é um programa de transferência de renda criado para um
público em situação de insegurança alimentar e nutricional estimado em
torno de 40 milhões de pessoas, como vimos anteriormente.
A implantação do PCA coube ao MESA, órgão que deveria
implementar e coordenar as diversas ações do Fome Zero. Caberia ao
MESA, também, articular ações de outros órgãos públicos que desenvolveriam ações no âmbito do programa. Especificamente, no caso do
PCA, tratava-se de articular o Ministério da Assistência Social e Caixa
Econômica Federal, por conta do Cadastro Único, sobre o qual discorreremos mais adiante, Estados e Municípios e sociedade civil para
a mobilização necessária para a implementação do programa.
O PCA tinha como meta atingir cerca de mil municípios em
2003, prioritariamente da região do semi-árido nordestino e do norte
de Minas Gerais, e menores que 50 mil habitantes. No entanto, a
celeridade da implantação, as demandas colocadas pelos movimentos sociais e a pressão por resultados fizeram com que, em
agosto, o PCA já atingisse 1.191 municípios brasileiros do semiárido, com até 75 mil habitantes. Tornou-se possível, também, a
sua expansão para as regiões dos Consórcios de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (CONSAD)2, outra iniciativa do
2
A formação de Consórcios de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local
(CONSAD) constitui uma estratégia de para formação de uma nova
institucionalidade destinada a promover a articulação de ações e parcerias
no âmbito do território. Municípios que estivessem na região dos CONSAD
também receberiam, prioritariamente, a capacitação para o recebimento do
Cartão-Alimentação (PCA).
120
MESA. Em outubro atingiu-se a marca de 1 milhão de famílias que
receberiam o recurso do PCA e encerrou-se o ano de 2003 com
quase 2 milhões de famílias, de mais de 2 mil e 300 municípios
recebendo o PCA, como ilustram as Tabelas 1 e 2.
Tabela 1 – Evolução do número de municípios atendidos pelo Programa Cartão Alimentação do Fome Zero
Fonte: Sistema Fome Zero - MESA
121
Tabela 2 - Evolução do número de famílias pagas pelo
PCA, validadas pelos Comitês Gestores Locais
Fonte: Sistema Fome Zero - MESA
122
Além dessa evolução expressiva na transferência de renda
para famílias em situação de insegurança alimentar, outro resultado
do PCA deve ser destacado: a constituição e o trabalho dos Comitês Gestores do PCA. Estas instâncias de participação popular eram
formadas por, até, 11 membros da comunidade, que tinham como
tarefas básicas a escolha dos beneficiários do Programa Cartão
Alimentação e o acompanhamento das condicionalidades do Programa.
Poucas experiências de políticas participativas passadas, em
especial as posteriores à Constituição de 19883, avançaram tanto
na efetiva participação da comunidade na gestão de um programa.
Dessa forma, quando meramente observamos a evolução do
número de famílias pagas nos municípios atendidos, não atentamos
para o fato de que elas foram “validadas”, isto é, escolhidas por um
comitê gestor local que identificou, analisou e acompanhou a evolução dessas famílias no decorrer do programa4.
Mais que acompanhar os gastos da família5, fato tão explorado pela mídia brasileira e pelos críticos do programa, o comitê
3
A Constituição de 1988 dá destaque à participação popular e ao controle
social das políticas sociais.
4
O ritmo de implementação do Programa Cartão Alimentação foi plenamente
satisfatório, quando se compara sua evolução com a de outros programas
como o Bolsa Alimentação do Ministério da Saúde e o PETI
– Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, do então Ministério de
Assistência Social, relatado em Balsadi (2003)
5
Saliente-se ainda que, diferentemente do que foi amplamente divulgado, a
nota fiscal de venda ao consumidor não era a única forma de comprovação
dos gastos com alimentos por parte das famílias e que a iniciativa da comprovação tinha caráter educativo direcionado para uma alimentação de melhor
qualidade. Obviamente, estabelecimentos formais têm por obrigação a emissão de nota fiscal. Nunca se definiu lista de alimentos para compra; os produtos excluídos eram exclusivamente os refrigerantes, cigarros e bebid
as alcóolicas.
123
teve o papel fundamental de auxiliar na promoção da cidadania das
pessoas excluídas, por meio do mais básico dos direitos humanos:
o direito à alimentação digna, realizada com quantidade, qualidade
e regularidade adequados, ou seja, o direito à segurança alimentar.
3. O COMITÊ GESTOR
O Comitê Gestor do PCA foi criado em cada um dos municípios atendidos pelo programa. Ele foi a peça fundamental e necessária para a escolha e acompanhamento das famílias e a multiplicação dos conceitos de segurança alimentar, direitos humanos e
cidadania.
A estratégia de formação do comitê foi a seguinte: cada
município foi representado, em um treinamento promovido por
técnicos do MESA, por duas pessoas escolhidas para serem
multiplicadores, conhecidos como Agentes Locais de Segurança
Alimentar – ALSA, um representando o poder público e outro a
sociedade civil. Cada ALSA, portanto, é escolhido de uma forma: o ALSA que representa o poder público local é indicado pelo
prefeito municipal e o ALSA que representa a sociedade civil é
escolhido através de assembléia pública realizada a partir da
mobilização das entidades e movimentos sociais identificados naquela comunidade, mobilização esta promovida por parceiros do
MESA, quais sejam, técnicos do Banco do Nordeste, membros
da ONG ASA (Associação do Semi-Árido) e Talher Nacional6,
basicamente.
6
O Talher Nacional é o grupo de educadores e mobilizadores sociais
constituído para trabalhar no âmbito da sociedade civil o Programa Fome
Zero. Para maiores informações, acesse www.fomezero.gov.br
124
Tabela 3
Municípios Capacitados e Comitês Gestores Formados em 2003
Brasil, Grandes Regiões e Estados
Fonte: BALSADI, 2003
125
Os ALSA de diversos municípios do mesmo Estado eram
reunidos em um município-pólo e participavam da capacitação desenvolvida pelo Departamento de Capacitação de Agentes Sociais
do MESA, em um curso de 40 horas. Nesse curso, discutiam-se
os conceitos de fome, segurança alimentar e controle social, Projeto Fome Zero e o PCA, o Cadastro Único dos programas sociais e
o Sistema Fome Zero criado pelo Ministério da Saúde7.
Partindo da constatação de que nos pequenos municípios, essencialmente os do semi-árido nordestino, há incipientes mobilizações
da sociedade civil, optou-se por utilizar assembléias populares para a
formação dos comitês gestores. Essas assembléias populares de eleição dos comitês deveriam ser precedidas de reuniões dos setores envolvidos em sua composição. Assim, estimulava-se a mobilização das
associações religiosas, dos conselhos municipais de política social, dos
agentes comunitários de saúde, das associações comunitárias, dentre
outros. A realização da assembléia popular celebrava a mobilização
dos diversos segmentos organizados da sociedade local e a população
local, reunida numa praça, num ginásio local, mesmo nas ruas, elegia os
seus representantes. Os únicos assentos no comitê que eram definidos
por indicação eram as representações do poder público municipal, do
poder público estadual e do sindicato dos trabalhadores rurais.
7
Para conhecimento do conteúdo da capacitação dos Agentes Locais de
Segurança Alimentar ver a Cartilha de Capacitação criada pelo corpo
técnico do MESA.
126
Os Comitês Gestores criados tinham como tarefa fundamental selecionar as famílias participantes e acompanhá-las em seu processo de melhoria nutricional e comprometimento com sua emancipação. E como era feito isso?
O Comitê Gestor de um município elegia, dentre seus membros
titulares, um portador para a senha de operação e outro para a senha
de visualização, esta devendo ser partilhada entre todos. Isto significava que uma pessoa operaria no Sistema Fome Zero8 as decisões tomadas pelo colegiado do comitê, enquanto todas as outras, de uso da
senha de visualização poderiam observar se estava sendo feito o combinado. Isto permitiu que os diversos segmentos presentes no comitê
pudessem acompanhar a seleção de famílias para pagamento do PCA.
Por força de lei, as famílias potenciais beneficiárias deste programa deveriam estar cadastradas no Cadastro Único9 federal, então sob gestão do Ministério de Assistência Social e operado pela
Caixa Econômica Federal. Percebe-se, portanto, que não há e nunca
houve nenhum novo cadastramento (a não ser para o próprio Cadastro Único) para famílias carentes que poderiam receber o PCA.
O que havia, fato não esclarecido suficientemente para a população, era a validação desse cadastro por parte do Comitê Gestor.
A partir da disponibilização pela internet, no endereço acima
apontado, da lista de famílias do Cadastro Único daquele município, filtradas pelos critérios do PCA10, os comitês apontavam den8
Ver em www.saude.gov.br/fomezero
Não é objeto deste trabalho tratar da concepção e experiência do Cadastro Único do governo federal.
10
A pontuação das famílias que resultava no ranking de potenciais
beneficiários correspondia à análise das seguintes informações presentes
no Cadastro Único: renda familiar per capita até R$ 120,00; número de
idosos, deficientes ou portadores de doenças crônicas; presença de gestantes, nutrizes ou crianças menores de 6 anos; mulheres chefes de família;
relação de emprego, terra e trabalho.
9
127
tro de um teto de pagamento, quais famílias deveriam receber o
PCA. Por exemplo, o comitê acessava a base do Cadastro Único
de seu município e observava mil famílias, potenciais beneficiárias
do PCA, mas tinha de trabalhar com um teto de pagamento do
programa definido para aquele município de 700 vagas. O comitê,
portanto, tinha de escolher dentre aquelas mil famílias, as 700 que
receberiam o PCA. Para essa avaliação, o comitê deveria selecionar aquelas que considerava mais prioritárias para o recebimento
do programa, uma vez que é a sociedade local que conhece a efetiva e dinâmica situação de vida da comunidade, ainda que tivesse
de realizar aquela cruel tarefa de escolher entre os “mais pobres
dos pobres”. Houve alguns casos, no entanto, em que existia um
déficit de cadastrados, razão pela qual sobravam vagas para o programa em determinados municípios.
Desta forma, a gestão do PCA em nível municipal era co-partilhada, uma vez que o poder público cadastrava as famílias no Cadastro Único, o que já vinha fazendo desde sua criação em 2001, e o
Comitê Gestor validava e determinava quais deveriam ser as famílias
a ter prioridade no recebimento do PCA. Evidentemente, isto não foi
fácil, uma vez que as pessoas eleitas para o comitê, quando tomavam
real consciência de sua responsabilidade, muitas vezes se questionavam se isso não lhes acarretaria problemas na comunidade local.
A experiência mostrou que os comitês gestores atuaram na
verificação do cadastro excluindo, dos potenciais beneficiários do
PCA, cerca de 30% das famílias11. Todo este processo era realizado através da internet e, a despeito da precariedade, quando não
da simples ausência de computadores, fato não pouco comum, o
trabalho foi razoavelmente executado.
11
Atentar que os comitês gestores não excluíam famílias do Cadastro Único e sim da listagem filtrada deste dos potenciais beneficiários do PCA.
Dados da Secretaria Executiva do Comunidade Solidária – SEPCS/MESA
128
Estamos falando, assim, de um poderoso instrumento de democratização do acesso às informações, de efetiva participação
em uma política pública e de um processo de mobilização social
importantíssimo.
4. BREVE ANÁLISE
DA
EXPERIÊNCIA
Obviamente, houve problemas. Comitês “manipulados” pela
estrutura de poder local não são casos excepcionais, acarretando
diversos problemas, entre os quais, o desestímulo, muitas vezes,
das pessoas envolvidas. Entretanto, a forma de funcionamento do
PCA nesses municípios, por meio da estruturação do Comitê Gestor,
auxilia na exposição clara de casos como esse. E os conflitos se
evidenciam.
Há diversas considerações que podem ser feitas a partir dos
argumentos de que os comitês serão peças fáceis de manipulação
do poder local. Por um lado, por que isso não se comprova com a
experiência vivida pela equipe do Cartão Alimentação. Como disse
anteriormente, a “manipulação” por parte do poder local contribui
para outro aspecto interessante: o processo de amadurecimento
político da comunidade local. Isso se evidencia pelo elevado número de atas de formação dos comitês gestores com elevado número
de participantes, pelas fotos, vídeos e depoimentos que obtemos,
pelo grau de exposição e co-responsabilidade desse comitê, fazendo com que a comunidade local acompanhe o seu dia-a-dia. Além
disso, as “denúncias” recebidas atestam que, antes de indicar qualquer irregularidade, elas representam a indignação com a não transparência por parte dos operadores do programa na escolha e acompanhamento das famílias selecionadas.
Evidentemente, o processo de amadurecimento político daquelas pequenas comunidades obedece às circunstâncias locais e
129
caminha de maneira diferente nos diversos municípios. Os graus de
mobilização, articulação e associativismo variam de um para outro.
No entanto, a implementação do PCA permitiu a essas comunidades um avanço no sentido de construir de maneira efetiva o chamado “controle social” ao co-dividir as responsabilidades reais na
operação do programa. Uma vez que o Comitê Gestor era o responsável pela validação das famílias a serem atendidas, responsabilizando-se por conhecê-las e acompanhá-las, isso confronta a estrutura de poder local em muitos municípios. Trazer para a sociedade civil local, a responsabilidade pela “escolha” das famílias, é uma
experiência interessante, ainda mais quando a responsabilidade de
cadastrar é da prefeitura municipal. Não são raros os casos em que
as pessoas se assustam e temem por essas responsabilidades: e o
que dizer ao prefeito local e às “importantes” famílias locais?
O PCA, portanto, por meio de sua metodologia de criação
de comitês gestores locais como instrumento de controle social,
mostrou-se uma importante e relevante experiência no “despertar”
da comunidade local para a efetividade do “controle social”. Um
dos entraves, entretanto, é que não havia formas de controle público do cadastramento das famílias sob responsabilidade da prefeitura municipal. Ainda que as informações sejam declaradas ao cadastro, ou seja, são, em tese, de responsabilidade do declarante,
ocorrem problemas em que o poder público não cadastra famílias
de posições políticas “contrárias” às suas, ou ainda, que não são
cadastradas simplesmente por negligência12.
Dessa forma, famílias que não estão efetivamente cadastra12
É importante colocar que o Cadastro Único não tem “metas” ou número
mínimo ou máximo de cadastros possíveis, uma vez que estar cadastrado
significa ser “potencial” beneficiário de algum programa público, em especial os de transferência de renda. Assim, devem ser cadastradas todas as
famílias que se enquadrem em seus critérios.
130
das no Cadastro Único do governo federal ficam de fora dos programas de transferência de renda. Assim, a mobilização causada
pela implantação do PCA contribuiu por um lado para a validação
do cadastro para pagamento, pois é a comunidade local quem efetivamente conhece e acompanha as famílias que moram no local, e
por outro essa mobilização contribuiu para que o poder público
fosse acionado para que procedesse à inclusão de famílias ainda
não cadastradas no Cadastro Único.
Isto contribuiu para que ficassem evidentes as respectivas
responsabilidades: o poder público municipal cadastrava famílias no Cadastro Único e o comitê gestor local validava esta lista
para o recebimento do PCA e identificava famílias carentes fora
do cadastro. Algo recorrente era a resistência de algumas prefeituras municipais em continuarem os procedimentos de
cadastramento13. E como realizar este trabalho sem o auxílio de
comitês criados a partir da mobilização social? De que forma
seria possível exigir que estados e municípios cumprissem metas
de cadastramento, para evitar que famílias carentes fiquem de
fora? Como verificar se os dados declarados correspondem à
realidade da família? Por meio de indicadores? E, mais importante, como construir mecanismos de emancipação desses programas? Como efetivamente realizar o acompanhamento das
famílias?
Esta e outras questões devem continuar sendo discutidas,
ainda mais no âmbito da unificação dos programas com o nascimento do Programa Bolsa Família que, inicialmente, unificou os
programas Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Vale Gás e Cartão
Alimentação.
13
A manutenção do cadastro foi possível a partir de setembro de 2003 com
a versão 5.0 do Cadastro Único disponibilizada pelo então gestor nacional, o Ministério de Assistência Social.
131
4.1. Programa Bolsa Família
Criado em outubro de 2003, com o propósito de iniciar a
unificação e racionalização dos programas de transferência de renda às famílias carentes, o Programa Bolsa Família encerrou o ano
de 2003 presente em 5.447 municípios e atendendo, aproximadamente, 3,6 milhões de famílias, cerca de 10 milhões de pessoas.
Atualmente, já atende a mais de 5 milhões de famílias em 5.521
municípios14.
De acordo com a proposta do novo programa, ele é “mais
eficiente porque reúne num só programa de transferência de renda
ações que favorecem o acesso a direitos universais de educação,
saúde e alimentação, tornando mais barata e racional sua administração. Também busca corrigir distorções e injustiças dos programas sociais anteriores, que, muitas vezes, tinham os recursos drenados pela ineficiência administrativa. Assim acaba com distorções
em que uma mesma família recebia diversos benefícios enquanto as
outras não recebiam nenhum”15. Dessa forma, estima-se que o valor médio do complemento de renda para as famílias beneficiadas
passe de menos de R$ 25,00 para mais de R$ 72,0016.
Se, por um lado, busca-se maior racionalidade na base de
dados, na construção de indicadores mais consistentes e na eficiência administrativa, por outro há que se avançar também na questão
da criação de mecanismos efetivos de transparência e de controle
social.
14
Dados de setembro/2004.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO DE
GOVERNO E GESTÃO ESTRATÉGICA, BRASIL, UM PAÍS DE TODOS, ano
1, edição n° 2, dezembro de 2003.
16
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, SECRETARIA DO PROGRAMA BOLSA
FAMÍLIA, Bolsa Família. A evolução dos programas de complementação
de renda no Brasil, 2003.
15
132
4.2. Unificação dos Programas Sociais de Transferência de Renda e seus desafios
A unificação dos programas sociais de transferência de renda, assunto tão discutido nos últimos tempos, por conta da proposta do atual governo federal, tem ao meu ver dois grandes desafios:
o primeiro, dar racionalidade a um modelo ainda “pueril” de proteção social, unificando os cadastros, os mecanismos de seleção de
famílias, critérios e conceituação de quem são os “pobres”, criando
uma estrutura de trabalho permanente, com pessoal qualificado para
tal. O segundo desafio, para mim o decisivo, corresponde ao “salto
de qualidade” num também ainda pueril controle social, além da
construção de “portas de saída” que permitam a emancipação das
famílias dos programas de transferência de renda. Para esse ponto,
o controle social, é necessário utilizar-se, dentre outros, da experiência dos comitês gestores locais, como descrito sucintamente acima. E por quê?
Há claramente, neste país, a herança histórica de nossa constituição enquanto nação17, uma organização política vinculada no
poder pessoal, nas relações de poder que dificultam a plena constituição de instituições republicanas.
Obviamente, o país que existe nesta passagem de século conheceu transformações e avanços no sentido de maior participação
popular, de liberdades democráticas e de constituição de instituições públicas e organismos da sociedade civil que passam a desempenhar papel fundamental na fiscalização e, sobretudo, no
protagonismo de ações desenvolvidas essencialmente no âmbito
17
Esta constituição está exaustivamente descrita nos clássicos que tratam
da constituição do Brasil, dentre os quais destacam-se “Visão do Paraíso”
de Sérgio Buarque de Holanda, “Formação Econômica do Brasil” de Celso Furtado, “Formação do Brasil Contemporâneo” de Caio Prado Júnior
e “Os Donos do Poder” de Raymundo Faoro.
133
social. Se tudo isso está nascendo, revela-se um processo mais
presente nos grandes centros urbanos. Há experiências de conselhos municipais de políticas sociais, sindicatos, igrejas, partidos
políticos, entidades empresariais que demonstram maior compromisso na discussão do que se deseja para este país.
Se, nas grandes cidades, o nível de amadurecimento da
mobilização social apresenta sinais positivos, ele é incipiente nos
pequenos municípios e praticamente inexistente nos chamados
grotões do país. Dessa forma, ainda resistem no nosso interior fortes práticas vinculadas ao poderio político pessoal, de famílias e de
seus “coronéis”.
Neste contexto, inseriu-se um programa federal de transferência de renda (PCA) diretamente às famílias por meio de um
Cadastro Único alimentado pelo poder público municipal, mas “validado” por um comitê gestor local, formado por membros da sociedade civil e desse mesmo poder público. Será que é possível compreendermos a dimensão disso?
A experiência tem mostrado que a possibilidade de um efetivo controle, por meio da comunidade, sobre a transferência de renda
para famílias carentes, gera muitos conflitos: incita-se a mobilização
da sociedade, provoca-se o choque, muitas vezes bons e, muitas
outras, nem tanto, entre o poder público e a comunidade, e faz com
que a população se dê conta que ela é também ativa nesse processo e que isso, portanto, lhe compromete.
4.3. A Mobilização Social por meio da formação dos Comitês Gestores Locais
A metodologia do PCA que impõe a constituição de um
comitê gestor local com base na representatividade da comunidade local, tal como vimos acima, faz com que surjam impulsos
134
para a mobilização social. Diversas igrejas, associações e sindicatos retomaram suas atividades, uma vez que precisavam participar, enquanto entidades, do processo de constituição do comitê gestor local.
Aconteceram assembléias populares para divulgação do programa e eleição do Comitê Gestor Local que contaram com mil,
duas mil, até três mil pessoas. E estamos falando de municípios que
muitas vezes não possuem mais que 10 mil habitantes. As experiências de mobilização, fartamente ilustradas pelas atas das constituições dos comitês encaminhadas ao MESA, apontam que a população respondeu ao chamado para exercer participação ativa na
gestão do programa.
Estas assembléias populares aproximam-se do que
HAYES (2003a) classifica como “espaço aberto”. Segundo a
autora:
“Um evento de espaço aberto coloca a responsabilidade de uma reunião nas mãos de seus participantes visando desenvolver um senso de compromisso e
liderança compartilhada. Uma sessão de espaço
aberto envolve quatro componentes principais: preparação, processo, planejamento de ações e encerramento”.
As assembléias populares eram conduzidas pelos Agentes
Locais de Segurança Alimentar capacitados para a formação do
comitê gestor, envolvendo o processo de mobilização prévia em
reuniões dos setores participantes desse comitê e a divulgação do
conteúdo da capacitação e mobilização da população local,
convocada para a assembléia popular.
Esclareça-se, entretanto, que, muitas vezes, a mobilização
é realizada, de forma independente, tanto por incipientes movi135
mentos da sociedade civil, quanto pelo poder público local, o
que nos revela um conflito, muitas vezes não saudável, uma vez
que o processo de mobilização tinha que ser conduzido conjuntamente. Conflitos, que muitas vezes chegaram “às vias de fato”,
demonstram que a luta pela “hegemonia” sobre os programas
sociais nos pequenos municípios escancara o ainda frágil estágio em que se encontram as instituições públicas nesses pequenos municípios.
A impressionante mobilização social certamente foi motivada pela real transferência de “poder” e, obviamente, também
responsabilidade, para a sociedade civil local, uma vez que esta
iria validar o pagamento de famílias cadastradas pelo poder público local. Claramente, dividiram-se responsabilidades: a prefeitura cadastraria as famílias carentes no Cadastro Único, tal
como já fazia, e o Comitê Gestor Local validaria esta listagem,
por meio de um sistema via internet, para o pagamento das famílias.
A mobilização social, portanto, implicou que os Comitês
Gestores com o fundamental auxílio, na grande maioria dos casos,
dos Agentes Comunitários de Saúde, percorressem o seu município, identificassem as famílias carentes que seriam potenciais
beneficiárias do programa e acompanhassem a sua evolução durante o período da concessão.
Mas, evidentemente, ações complementares, ainda que fundamentais, também tiveram no Comitê Gestor um agente fundamental do processo: a identificação de famílias que não estavam
cadastradas no Cadastro Único, o levantamento de correções que
deveriam ser feitas neste mesmo cadastro, além do fato de identificar pessoas que, sem sequer o registro de nascimento, não existiam
para o país, o que dizer receberem qualquer programa de transferência de renda, visto que não podiam ser cadastradas. Elas, simplesmente, não “existiam”.
136
Percebe-se a importância do trabalho realizado no âmbito
da mobilização social? Percebe-se a imprescindível necessidade
de envolvimento efetivo da comunidade local na gestão das políticas locais?
Ainda que a discussão sobre os caminhos da unificação esteja começando, é importante denotar que a ausência de mecanismos efetivos de controle social e mobilização comunitária podem
comprometer o projeto.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a unificação dos programas de transferência de renda na
figura do Bolsa Família, em outubro de 2003, e a criação do Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS, em janeiro de
2004, em substituição ao MESA e ao Ministério da Assistência Social,
decidiu-se pela suspensão da função de “validação” por parte dos Comitês Gestores dos cadastrados aptos a receberem o Bolsa Família.
Diferentes concepções, técnicas e políticas, se colocam nessa discussão. Desde janeiro de 2004, a função foi efetivamente
suspensa e, até o momento, não houve reversão dessa decisão.18
Os delegados da IIª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, reunidos em Olinda, entre 17 e 20 de março
de 2004, aprovaram moção, a de número 2, de apoio aos comitês
e pela manutenção das funções que vinham exercendo.
Até o momento, o MDS determinou a transformação dos
Comitês Gestores Locais em Comitês Fome Zero. Resta definir seu
18
Os delegados da IIª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional, reunidos em Olinda, entre 17 e 20 de março de 2004,
aprovaram moção, a de número 2, de apoio aos comitês e pela manutenção
das funções que vinham exercendo.
137
papel e funções. O MDS disponibilizou, pela internet19, o número de
famílias e o valor dos pagamentos realizados, a todas as pessoas
interessadas, mas ainda discute os mecanismos de fiscalização e controle social e o envolvimento dos comitês nessa questão.
Este texto, que descreveu brevemente uma experiência, a meu
ver muito rica e muito ousada, é uma defesa da participação social
e comunitária, essencialmente nos pequenos municípios, na definição dos beneficiários do programa Bolsa Família. São esses comitês que, formados por representantes da sociedade civil e do poder
público, teriam legitimidade e condições de conduzir um processo
de maior transparência na destinação dos recursos públicos.
Cabe ressaltar que maior transparência no uso do dinheiro público contribui fortemente para que comecem a ser construídas as “portas
de saída” dos programas sociais emergenciais ou assistenciais. Dessa
forma, é a construção dessas condições para que os programas sejam
emancipatórios que definirá, mais à frente, o caráter do programa.
Não há como rotular o Fome Zero ou o Bolsa Família de
“assistencialistas” antes de analisarmos mais profundamente, o que
não é o caso desse texto que foca na questão dos comitês gestores,
o seu desenvolvimento enquanto proposta de forte mudança na
política social brasileira, voltada historicamente para o fisiologismo
e o clientelismo. Romper essa “história” da política social brasileira
não é tarefa fácil e creio que o atual governo federal tenta construir
as condições para tal, o que, também, não é simples.
Portanto, fugindo das análises precipitadas sobre o andamento
do programa que ignoram muitas vezes os “percalços” encontrados ao
longo do caminho, é que destaco o papel da experiência dos comitês
gestores do PCA ao longo de 2003. Discutir essa experiência no momento de reformatação do programa de transferência de renda, pois o
19
Veja www.mds.gov.br - É possível consultar a situação de uma família
com a utilização do NIS – Número de Identificação Social.
138
Bolsa Família é ainda uma construção a ser aprimorada, faz-se muito
necessário para que encontremos formas de dar ao processo transparência e possibilitar a construção das “portas de saída” dos programas.
Espero, dessa forma, prestar minha contribuição ao processo.
139
BIBLIOGRAFIA
BALSADI, Otávio Valentim. O Programa Cartão Alimentação (PCA) em números: balanço de sua implementação e contribuições para as políticas sociais, mimeo, Brasília, 2003.
BELIK, Walter e DEL GROSSI, Mauro Eduardo. O Programa Fome Zero no contexto das políticas sociais no Brasil, apresentado no painel “Políticas de Combate à Pobreza: Segurança Alimentar, Renda Mínima e Ganhos de Produtividade na Agricultura”,
XLI Congresso da SOBER, Juiz de Fora, 2003.
HAYES(2003a), Patrícia. Mecanismos de consulta. Subsidiando a formulação de políticas públicas por meio de consultas. AArte de
perguntar, ouvir e concluir o processo. Traduzido do “Informing public
policy through consultation. The art of asking, and listening and following
through. Consultation Mechanisms. Ottawa, june 2003.
HAYES(2003b), Patrícia. Amostra de plano de consulta. Subsidiando a formulação de políticas públicas por meio de consultas. A
Arte de perguntar, ouvir e concluir o processo. Traduzido do “Informing
public policy through consultation. The art of asking, and listening and
following through. Sample Consultation Pan. Ottawa, june 2003.
PELIANO, A. M. (coord.). O mapa da fome: Informações sobre a indigências nos Municípios da Federação. Rio de Janeiro, 1993.
PRADO Jr, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, 23ª
Edição, Editora Brasiliense, 2001
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, MINISTÉRIO EXTRAORDINÁRIO DE SEGURANÇA ALIMENTAR E COM140
BATE À FOME, Assessoria de Comunicação, Opinião Pública elege Fome Zero melhor programa social, InfoMESA Especial – Boletim do MESA, Brasília, 2003.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, MINISTÉRIO EXTRAORDINÁRIO DE SEGURANÇA ALIMENTAR E COMBATE À FOME, Secretaria Executiva do Programa Comunidade
Solidária, Manual de Capacitação dos Agentes Locais de Segurança Alimentar, mimeo, Brasília, 2003.
SÁ, XICO e DETTMAR, U. Nova Geografia da Fome,
Editora Tempo Imagem, 2003.
SILVA, José Graziano da; BELIK, Walter e TAKAGI, Maya
(org.). Projeto Fome Zero. São Paulo: Instituto Cidadania, 2001.
(www.icidadania.org.br)
SILVA, P; e MELO, M. O processo de implementação de
políticas públicas no Brasil: características e determinantes da avaliação de programas e projetos. Campinas: NEPP, Caderno 48, 2000.
CASO: Programa Nacional de Renda mínima – Bolsa Escola. Caso elaborado pela Enap a partir de consulta de BERNARDES,
F. Avaliação da estratégia de melhoria da freqüência escolar
do Programa Nacional de Bolsa Escola. Brasília, 2002 (trabalho
aplicado do curso de formação de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, ENAP) e CASTRO, M. H. G. As
desigualdades regionais no sistema educacional brasileiro, texto
apresentado no Seminário Desigualdade e Pobreza no Brasil, realizado pelo IPEA, de 12 a 14 de agosto, no Rio de Janeiro, 1999.
Erich Brigante Del Porto é Economista e Especialista em Políticas Públicas
e Gestão Governamental.
141
Sylvio Kelsen Coelho
O desafio de pensar o futuro:
métodos de apoio à reflexão
“
T
udo que se sabe sobre o futuro é que ele não será uma
reprodução do presente”, dizia o poeta argentino Jorge
Luis Borges. A preocupação com futuro é inerente à
natureza do ser humano que, desde sempre, especula sobre seu
destino com imaginação e razão. Este artigo é uma contribuição
para a reflexão sobre o pensamento de longo prazo, por meio da
apresentação de um relato sobre metodologias de exploração do
futuro.
1. PENSAMENTO DE LONGO PRAZO:
A AÇÃO DE HOJE PODE AJUDAR A MOLDAR O AMANHÃ
A evolução de fenômenos sociais é caracterizada pela
ocorrência de eventos que alteram substancialmente tendências
consolidadas no passado, em especial quando se considera a crescente
complexidade da sociedade humana. Esse alto nível de complexidade
é conseqüência da interação de um número grande de atores, da
amplitude e diversidade de seus interesses, ao mesmo tempo
complementares, concorrentes e antagônicos (MORIN 2003).
Trata-se de alterações de ordem qualitativa, forjando uma
realidade na qual a estabilidade, e mesmo as mudanças incrementais,
são cada vez menos o paradigma do processo de mudança. Mesmo
quando se consideram parâmetros que parecem mudar linearmente,
142
como o tamanho de uma população, seus efeitos podem não ter a
mesma natureza. Isto porque, com as tecnologias de controle e
planejamento familiar, as taxas de crescimento populacional podem
crescer ou se reduzir de maneira independente de sua evolução no
passado (DROR 1999).
Com a prevalência da não-linearidade, aumenta sensivelmente
a incerteza1. O futuro é uma função dinâmica de necessidade,
contingência, acaso e escolha. Ademais, o grau de incerteza aumenta
à medida que o perfil temporal se alonga. Para além da incerteza
está o inconcebível, quando não se consegue divisar os atributos da
situação futura, exceto por meio da imaginação2. Trata-se de uma
situação de docta ignorantia, na qual pode-se antever que haverá
alterações radicais na base de conhecimento da humanidade sem,
entretanto, conhecê-las de antemão (DROR 1999).
Pensar o longo prazo3, no contexto de alta complexidade social,
é um exercício participativo. Ainda que seja evidentemente possível
executar essa tarefa com a participação de poucos ou até mesmo ser
obra de apenas uma pessoa, o processo não pode prescindir de
ampla discussão, com o envolvimento e a consideração dos interesses
aportados pelos atores sociais. Busca-se, por meio da formação de
consenso e, quando isso não for possível, por negociação, garantir
não somente que os objetivos estratégicos reflitam os anseios e receios
dos atores sociais como também a consecução de níveis satisfatórios
1
Entenda-se por incerteza como a resultante de processos de final aberto,
para os quais haja um grande número de encaminhamentos possíveis,
nem sempre passíveis de análise quântica.
2
O conceito parece guardar proximidade com aquele de “incerteza
profunda”, de LEMPERT et al 2003. Ver nota 18.
3
Considera-se longo prazo, neste trabalho, lapsos temporais de mais de
10 anos.
143
de comprometimento deles com a implementação das estratégias,
na forma de políticas de longo prazo, resultantes do exercício4.
Para auxiliar a necessária, instigante e complexa reflexão sobre
o futuro, foi desenvolvido um conjunto de metodologias exploratórias.
A utilização dessas técnicas pode instruir o processo de tomada de
decisão sobre políticas no curto prazo, com o objetivo de influenciar
a evolução de fenômenos no longo prazo.
2. AS METODOLOGIAS DE REFLEXÃO SOBRE
O FUTURO SE SOFISTICARAM5
A arte de pensar o futuro de maneira estruturada tem uma
longa história. No decorrer do tempo, os instrumentos disponíveis
para auxiliar a reflexão sobre a evolução dos fatos têm-se sofisticado.
2.1 A técnica de narrar
Narrativas são o mais simples meio de se engajar nesse
exercício de reflexão. Com base na imaginação e em poucas
evidências, o ser humano tem-se utilizado o procedimento de se
contar estórias sobre o passado e de sua evolução até o presente.
Da mesma maneira, esse procedimento foi amplamente utilizado
4
Entenda-se por consenso a inexistência de conflito acerca da propriedade
e conveniência de uma proposta. Negociação, por sua vez, implica a
possibilidade de aceitar a não satisfação plena de interesses das partes,
para garantir melhorias de posicionamento, de uma ou de todas as partes
envolvidas, em relação à situação inicial.
5
Aceitou-se, nesta seção, a sistematização proposta por LEMPERT et al
2003.
144
como instrumento de sondagem do futuro, na expectativa de que o
levantamento das informações sobre eventos que poderiam
acontecer ajudasse a reduzir seus danos e aproveitar as eventuais
oportunidades.
Há um número considerável de registros históricos de
narrativas, na forma de ficção formal, sobre sociedades utópicas
nas quais os seres humanos viveriam sob condições relacionais
bastante diferentes daquelas que vigiam à época de seus escritores.
Platão e sua República e Utopia, de Thomas More, são exemplos
desses registros. Na mesma categoria e menos distante da atualidade,
é o trabalho de Edward Bellay’s Looking backwards, 2000-1887,
publicado em 1888, que descreve a aventura de um homem de seu
tempo na cidade de Boston, EUA, no ano 2000, quando encontra
uma sociedade socialista (Apud LEMPERT et al 2003). Distopias,
visões negativas sobre sociedades planejadas do futuro, vale
ressaltar, também foram produzidas, sendo as mais conhecidas
Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, e 1984 (1949)
de George Orwells.
A contribuição de narrativas dentro da discussão sobre a
promoção do pensamento de longo prazo é que as mesmas oferecem
imagens facilmente apropriáveis, quase caricaturas, ou situações
limites. Apenas de maneira muito incipiente narrativas podem
constituir um instrumento válido de reflexão sobre eventos ou
situações futuras e, assim, instruir o processo de tomada de decisão.
2.2 A abordagem histórica
A história também tem sido usada como fonte de informação
sobre o futuro. Com efeito, o passado pode prover uma quantidade
145
considerável de dados e informações relevantes para o processo
de reflexão sobre o futuro. Esse procedimento implica retirar do
passado “lições históricas”, cursos de ação que poderiam se repetir
ao longo do tempo, normalmente dentro de um contexto no qual o
analista faz analogias entre o curso de fenômenos no futuro e
acontecimentos passados. Muitos são os exemplos encontrados na
literatura das ciências sociais desse procedimento. Giambatista Vico,
no século XVIII, propôs uma teoria cíclica de ascensão e
decadência das sociedades. Karl Marx também ofereceu uma
previsão sobre os encaminhamentos históricos que levariam à
superação do capitalismo.
The next 200 years (1976)6, de Herman Kahn, constitui um
exemplo mais contemporâneo da abordagem histórica como meio
de refletir sobre o futuro. Nesse tratado, Kahn buscou fundamentar
suas especulações em uma cuidadosa análise quantitativa histórica
e em suas potenciais tendências no longo prazo. Foram
consideradas, para essa análise, tendências de evolução de variáveis
demográficas, econômicas, recursos naturais e meio ambiente nos
últimos 400 anos e, por meio de extrapolação, verificados potenciais
resultados no período de dois séculos (Apud LEMPERT et al 2003).
O problema é que, via de regra, a evolução de fenômenos
sociais é, como já foi evidenciado, não-linear. Mesmo assim, o
estudo da história, especialmente quando se analisam longos
períodos, pode ajudar na identificação de eventuais tendências fortes,
o que enriquece o exercício de se pensar o futuro.
6
Muitos analistas afirmam que a obra de Kahn é uma resposta clara à
visão pessimista de Donella Meadows, Dennis Meadows, Jorgen Randers
e outros no relatório Limits to growth, elaborado no início da década de
setenta para o Clube de Roma
146
2.3 Os métodos de consulta a especialistas: Delphi e
Forsight
Tradicionalmente, o trabalho de construção de narrativas é
um exercício individual ou de uma equipe com uma abordagem
comum do futuro. Para lidar com o fato de que a reflexão sobre o
futuro exige a consideração de conhecimentos profundos sobre um
conjunto bastante numeroso de assuntos, enriquecendo assim o
exercício, foram desenvolvidas metodologias que permitem a
participação de grandes grupos de especialistas, cujos
conhecimentos podem ser sistematizados na forma de narrativas
coerentes sobre o futuro. Encaixam-se nesse perfil os métodos
Delphi e Forsight.
Desenvolvido pela Rand Corporation na década de 50, a
técnica Delphi foi desenhada para ajudar no processo de agregação
de conhecimentos diversos e opiniões divergentes com o objetivo
de formar consenso. Trata-se de uma metodologia iterativa, na qual,
em rodadas sucessivas, um grupo de especialistas é chamado a
responder um rol de perguntas. Ao fim de cada rodada, os
participantes são informados sobre todas as respostas dadas e
podem mudar seu ponto de vista em razão da opinião dos outros.
Evidentemente, as respostas são mostradas de maneira anônima,
para evitar que o status de algum participante termine por influenciar
desproporcionalmente o resultado do exercício.
O método Delphi7 carrega em sua estrutura uma pretensão
de que, por meio da associação de conhecimentos ao mesmo tempo
amplos e profundos, seria possível reduzir, se não eliminar, a incerteza
sobre a evolução dos fenômenos sociais. Ainda que constitua uma
7
Marca registrada da Rand Corporation, Santa Mônica, EUA.
147
técnica de sofisticação mediana e de relativa simplicidade de
operação, podendo engendrar resultados satisfatórios,
especialmente no que concerne ao fomento ao diálogo entre áreas
de conhecimento as mais diversas, o Delphi tem uma inconveniência
teleológica para o analista: o consenso forçado. Se o futuro é
imprevisível e se reconhece que a não-linearidade é a regra, então
ao analista importa conhecer a diversidade e trabalhar dentro desse
contexto de incerteza.
Forsight8, por sua vez, tem como foco o processo de
deliberação ou de diálogo entre os atores participantes do exercício
de reflexão sobre o futuro. O método se propõe a criar arenas nas
quais líderes do setor privado, público, científico, acadêmico e outros
possam apresentar e compartilhar suas opiniões normativas e
positivas sobre o desenvolvimento tecnológico e seus impactos na
economia e na estrutura social. A evolução da técnica de Forsight
levou à expansão do foco inicial na tecnologia para atingir outros
assuntos, de ordem social ou mesmo política. Ainda que os detalhes
de cada tipo de Forsight possam variar, todos os processos são
caracterizados por sondagens grupais acerca das tendências que
podem afetar resultados futuros e sobre eventuais ações imediatas
para ajustá-los.
Tanto quanto o método Delphi, a técnica do Forsight tem
que lidar com o problema da multiplicidade de futuros. Embora
este seja certamente um avanço em relação àquele, a experiência
mostra que falta ao Forsight mecanismos para fazer uso efetivo
dessa variedade de situações futuras geradas e, ao mesmo tempo,
oferecer recomendações operacionalizáveis sobre políticas ou
8
Não há tradução pacífica para o termo em português. O melhor sentido
para a palavra parece ser “antevisão”.
148
cursos de ação. No atual estado de sua evolução, esta técnica não
parece ter superado a tentação da predição e a falácia da
possibilidade de reduzir a incerteza que é inerente ao futuro.
2.4 Os modelos de simulação computacional
Quando são elaboradas narrativas individuais ou grupais sobre
o futuro, normalmente são utilizados dados e informações
quantitativas concernentes a algum tipo de análise de tendências.
Fazem-se extrapolações demográficas, sociais e econômicas como
se os padrões de desempenho das variáveis no passado pudessem
ser reproduzidas indefinidamente no tempo. Trata-se de uma visão
simplista da evolução do processo social, cuja superação tem sido
facilitada pelos avanços da computação.
Na atualidade, modelos de simulação computacional permitem
o levantamento metódico de como o desempenho de componenteschaves de um sistema pode mudar ao longo do tempo, à medida que
interagem entre si e, especialmente, como estas interações poderiam
eventualmente causar desvios substanciais em relação às tendências do
passado. Modelos de simulação geralmente têm base matemática e
traduzem nesta linguagem processos econômicos, ambientais e mesmo
políticos, cujas relações endógenas (entre variáveis de mesma natureza)
e exógenas (entre variáveis de natureza diferentes) possibilitam a análise
de políticas no longo prazo de maneira teoricamente elegante.
Fundamentalmente, portanto, modelos de simulação
computacional associam ou combinam tendências verificadas no
passado com assunções sobre as relações causais entre variáveis
do sistema em foco, proporcionando análises coerentes do ponto
de vista metodológico.
149
O mais conhecido modelo de simulação é o World39, que
serviu de base para a elaboração do controverso relatório Limits
to growth10 , produzido para o Clube de Roma por Donella
Meadows, Dennis Meadows, Jorgen Randers e outros, no início
da década de 70. O modelo foi usado para tratar três
argumentos: (i) as taxas de desenvolvimento do mundo de então
superaria a capacidade da Terra de sustentar sociedades
humanas em um século; (ii) as sociedades humanas poderiam
atingir um equilíbrio sustentável; e (iii) quanto mais cedo a
transição para uma situação sustentável começasse, maior seriam
as chances de sucesso da iniciativa (Apud LEMPERT et al
2003). O World3 se concentra nas interações entre variáveis e
pressupõe que alterações em uma variável têm impacto sobre
outras. Por retroalimentação, positiva ou negativa, as mudanças
nas variáveis atingidas terminam por ter efeito na variável
inicialmente modificada. A retroalimentação positiva aumenta os
efeitos, enquanto a negativa os reduz. Os resultados desse
exercício tiveram ampla repercussão, cujos método e substância
foram objeto de críticas.
Apesar de que os modelos de simulação computacional
serem uma etapa importante do processo de sofisticação dos
métodos de reflexão sobre o futuro, não há modelo finito capaz
de lidar com a complexidade da realidade. Isto porque os
resultados da aplicação do modelo são determinados pelas
assunções reguladoras estabelecidas para as relações entre as
variáveis do sistema.
9
Dentre outros modelos de simulação computacional, destacam-se o
International Futures, desenvolvido por Barry Hughes na décadad de 90
e o Globus, elaborado pelo Zukunftforschungzentrum Berlim na década
de 80, com horizontes de um século e algumas décadas, respectivamente.
10
Ver nota 5.
150
2.5 A teoria da decisão
A teoria de decisão também é um meio relativamente
conhecido de instruir o processo de reflexão sobre o futuro. Por
meio do tratamento quantitativo das opiniões de especialistas,
levantadas por pesquisas ou sondagens, os analistas constroem
diversos cenários e lidam com a incerteza por meio da alocação de
probabilidades da ocorrência de um deles. A teoria da decisão se
vale do grande poder de organizar vastas quantidades de dados
para garantir que as decisões tomadas sejam logicamente
consistentes. No entanto, em que pese o fato de que esse método
possa ser exitoso para análises de curto prazo, o mesmo não se
pode afirmar para análises com perfil temporal mais alongado.
Ademais, metodologias derivadas da teoria da decisão, ainda que
concebam a possibilidade da multiplicidade de futuros, tendem a
levar o analista a acreditar que o resultado mais provável é aquele
que efetivamente se concretizará, evidenciando a não superação
do problema da predição.
2.6 Cenários prospectivos
Em maior ou menor grau, os métodos e instrumentos
abordados anteriormente demonstram sua incapacidade para lidar
com a incerteza e multiplicidade de visões sobre o futuro. O avanço
metodológico da teoria de cenários prospectiva, entretanto, pode
ser considerado um passo importante para a superação do desafio
de pensar o futuro.
A atitude prospectiva nasceu do questionamento do
determinismo e do jogo do acaso. As bases da prospectiva estão
assentadas no fato de que o futuro é múltiplo e indeterminado. Com
151
efeito, foi Gaston Berger que iniciou a utilização da palavra
“prospectiva”, para designar, diferentemente da previsão, o exercício
de antecipação do futuro que supera as limitações da pura e simples
extrapolação de tendências e a linearidade de pensamento, com a
adoção de procedimentos qualitativos (Apud GODET 1993).
Preconizando uma visão globalizante do fenômeno estudado,
a prospectiva considera os projetos e comportamentos de atores.
Assume-se que as relações entre variáveis, entre atores, e entre
estes e aquelas são dinâmicas, formando estruturas evolutivas. A
utilização da prospectiva não significa um rompimento com o
passado. A representação dos futuros possíveis também depende
da observação do passado. Em boa medida, os acontecimentos do
futuro dependem de ações passadas, da mesma maneira que o futuro
também explica comportamentos no presente.
Nesse sentido, a prospectiva, como lembra Godet, é uma
reflexão para orientar a ação presente considerando-se os futuros
possíveis. Nas sociedades contemporâneas, a antecipação impõese em razão da conjugação da aceleração da mudança técnica,
econômica e social e da necessidade de se quebrar a inércia de
comportamentos humanos e estruturas sociais, para considerar as
eventuais dificuldades e oportunidades do futuro.
No entanto, se é certo que o contexto muda continuamente,
mais o é que nem sempre é fácil controlar o sentido dessas mudanças.
Isto porque as mudanças são portadoras de múltiplas incertezas,
sejam de ordem tecnológica, econômica e política. A prospectiva
não tem a pretensão de eliminar essas incertezas mas pode contribuir
para reduzi-las, tornando menos dificultoso o processo de tomada
de decisão que objetive a realização de futuros mais desejáveis.
Inúmeros são os métodos de construção de cenários
152
prospectivos. Os mais conhecidos e utilizados, tanto no setor privado
quanto no setor público, são aqueles de Carl Porter, de Raul
Grumbach, da Global Business Network – GBN e de Michel Godet.
Enquanto os métodos de Porter (cenários industriais) e da GBN são
procedimentos fundamentalmente qualitativos, aqueles de Godet e
de Grumbach associam procedimentos qualitativos e quantitativos.
O método de Godet é o mais robusto e, portanto, mais adequado
para a lidar com ambientes sistêmicos de alta complexidade.
Um cenário é formado pela descrição de uma situação futura
e da seqüência dos acontecimentos que permite que se passe de
uma situação de origem à futura. Fundamentalmente, distinguem-se
os cenários possíveis -todos os imagináveis-, os realizáveis –
plausíveis, sob algumas condições-, e os desejáveis –possíveis mas
nem sempre realizáveis. Do ponto de vista quântico, podem existir
cenários referenciais –muito prováveis-, ou contrastados -pouco
prováveis.
Na atualidade, parece haver consenso sobre o fato de que,
para que uma seqüência de procedimentos possa ser considerada
um método de cenários é necessário que o mesmo contemple
algumas etapas básicas, como a retrospectiva, a análise das variáveis,
a estratégia de atores, e, evidentemente, a elaboração de cenários.
A função dos cenários é orientar a ação presente, considerando os
futuros possíveis e desejáveis. Nesse contexto, os cenários somente
têm credibilidade e utilidade se forem pertinentes, coerentes,
plausíveis e transparentes.
Vários são os objetivos do método de cenários: (i) revelar
prioridades para estudo, relacionando, por meio de uma análise
explicativa global e exaustiva, as variáveis que caracterizam o sistema
em foco; (ii) determinar, a partir das variáveis-chaves, os principais
153
atores, suas estratégias, os meios de que dispõem para atingir seus
objetivos; e (iii) descrever a evolução do sistema estudado, tendo
em conta as evoluções mais prováveis das variáveis relevantes, a
partir de jogos de hipóteses sobre o comportamento dos atores
(Apud GODET 1993).
Esses objetivos, dentro do método de Godet, são atingidos
em duas etapas. A primeira é a construção de uma base
analítica do sistema constituído pelo fenômeno estudado e do
ambiente em que este está inserido. O segundo estágio é a
própria atividade de elaboração dos cenários.
A construção dessa base analítica compreende a delimitação
do fenômeno objeto do estudo, sua evolução até a situação atual, o
levantamento das varáveis intervenientes e suas inter-relações –a
análise estrutural- e a análise das estratégias dos atores. O processo
de tratamento das variáveis e das estratégias dos atores é assistido
por recursos computacionais, como os aplicativos Micmac
Prospective e Mactor11.
A análise estrutural inspirou-se nos trabalhos de simulação
de investigação operacional realizados no pós-guerra nos Estados
Unidos, especialmente na Rand Corporation. Por meio da utilização
de propriedades de matrizes, esse procedimento contribui para
evidenciar as principais variáveis, evidentes e ocultas, e sua
hierarquia. A análise estrutural tem duas outras utilizações
complementares: (i) a construção tão exaustiva quanto possível do
sistema a ser estudado e, em seguida; e (ii) a redução de sua
complexidade, pela identificação de suas variáveis essenciais.
11
Marcas registradas CNAM France
154
Com o aplicativo Micmac, evidencia-se a importância das
relações ocultas, indiretas, entre as variáveis em estudo. É possível
assim associar um indicador de motricidade e de dependência para
todo o sistema, cujas variáveis podem ser posicionadas dentro de
um plano motricidade-dependência. Uma vez identificados os
principais atores no processo de evolução do fenômeno estudado,
o método prevê a elucidação de seus objetivos, organizados de
maneira hierarquizada e de suas relações de força direta e indireta.
Para facilitar o estudo desse processo, foi desenvolvido o aplicativo
Mactor. O jogo de atores, os conflitos de seus projetos e o exame
das relações de força presentes são fundamentais para evidenciar
os desafios estratégicos do futuro de um sistema.
A partir das informações levantadas, pode-se então iniciar a
elaboração dos cenários, etapa que consiste em fazer intervir
mecanismos de evolução para o sistema, confrontando os projetos
e as estratégias dos atores. Como parece evidente, um número de
questões relevantes para determinar a evolução do sistema estarão
em aberto, o que deve ser enfrentado com a elaboração de jogos
de hipóteses. A cada jogo de hipóteses corresponde um cenário
que se pode construir e a cuja realização pode-se arbitrar uma
probabilidade.
Por meio da análise morfológica dos cenários possíveis,
operação assistida por aplicativo (Morphol12) decompõe-se o sistema
ou a função estudada em subsistemas ou componentes, como aqueles
de natureza política, demográfica, econômica ou tecnológica, com
cada um deles tendo um número de configurações possíveis. A rigor,
caso se junte um encaminhamento13 entre a situação atual e um conjunto
12
13
Marca registrada CNAM France.
Seqüência de eventos.
155
de diferentes configurações das dimensões, pode-se ter um cenário.
O espaço morfológico representa, por meio da análise combinatória,
todos os cenários possíveis.
Um sistema com três componentes, cada um com duas
configurações, resulta em 32 estados possíveis. Godet lembra que
há, por certo, o perigo de que o cenarista se renda à ilusão da
exaustividade por meio da análise combinatória. Fica ressaltada,
assim, a necessidade de se operar com um espaço morfológico
menor, limitando a exploração aos componentes-chaves identificados
dessa maneira e introduzindo condicionalismos de exclusão ou de
preferência. Com efeito, muitos dos estados possíveis não têm
sentido ou são impertinentes, devido, na maioria das vezes, a sua
incompatibilidade intrínseca.
A análise morfológica exige, portanto, uma reflexão estruturada
sobre os componentes e as configurações consideradas, permitindo
um exame sistemático do rol dos cenários possíveis. A praticidade
da análise morfológica pode ser potencializada se utilizada em
associação com métodos periciais do tipo SMIC 14 , de
probabilização das combinações de configurações, a partir das
opiniões de especialistas, levantadas com instrumentos do tipo
Delphi.
Os resultados obtidos desse exercício são então confrontados
14
Aplicativo Sistemas e Matrizes de Impactos Cruzados. O método SMIC,
por meio do aplicativo Prob-Expert, permite, a partir de probabilidades
alocadas às hipóteses, a obtenção de uma hierarquia das 2n imagens
finais possíveis, classificadas por probabilidades decrescentes. O aplicativo
também possibilita a escolha da imagem correspondente ao cenário mais
provável e das imagens finais dos cenários contrastados. O SMIC corrige
as opiniões brutas dos peritos, obtendo-se assim resultados líquidos
coerentes, que satisfazem às condições clássicas das probabilidades.
156
com as configurações identificadas inicialmente, do que se conclui
acerca: (i) por um lado, da imagem final do cenário de referência, a
mais citada pelos peritos, correspondente ao jogo de hipóteses
globalmente mais provável; e (ii) por outro, das imagens contrastadas,
julgadas pelos peritos como de menor probabilidade,
correspondendo a cenários que descrevem uma evolução do meioambiente notoriamente diferente daquele do cenário de referência,
freqüentemente imagens pessimistas ou otimistas em relação ao
cenário de maior probabilidade.
É importante que se ressalte que a correta utilização do
método de cenários não pode prescindir de uma descrição
pormenorizada do encaminhamento entre os cenários identificados
e a situação atual. Em alguns casos, pode ser conveniente a
decomposição desse encaminhamento em sub-períodos sucessivos,
que conduzem a cenários intermediários. Esse procedimento parece
ser adequado para o caso de cenarização de fenômenos cuja
evolução está sujeita a grandes ou freqüentes rupturas. Também
pode ser necessário, dentro do processo de elaboração dos
encaminhamentos, o recurso a estudos paralelos, com o objetivo
de tornar o exercício mais coerente e transparente.
O processo se inicia por meio da comparação entre a
imagem final e a situação atual, o que permite a identificação de
rupturas que devem ser justificadas e temporalmente indicadas.
É nesse contexto que se pode discorrer sobre a evolução do
fenômeno estudado e dos posicionamentos dos atores,
considerando, evidentemente, suas estratégias. À luz dos
condicionamentos impostos pela motricidade das variáveis,
procede-se então com a avaliação das conseqüências de
eventuais rupturas sobre as tendências principais, fechando o
ciclo de elaboração do cenário.
157
Com os cenários prontos, o método proposto por Godet
prevê a utilização de técnicas multicritérios, como o Multipol15, para
apoiar o processo decisório. A técnica é composta de três fases: (i)
o levantamento das ações possíveis; (ii) a definição de políticas; e
(iii) a classificação das ações. No Multipol, cada ação de uma
política é avaliada segundo critérios estipulados pelos cenaristas
por meio de uma escala simples de notação, obtida a partir de
consulta a especialistas, tendo-se por necessária a busca de
consenso. Para possibilitar aos peritos a identificação dos critérios
mais importantes na análise das ações, utiliza-se um sistema de pesos.
O Multipol então atribui um resultado médio ponderado às ações
de cada política, o que, na prática, significa alocar um resultado
também para as políticas alternativas. Isso permite a classificação
das ações em relação às políticas e, ademais, destas em relação
aos cenários, especialmente ao mais desejável. Cabe então ao
tomador de decisão optar pela melhor política tendo como base,
geralmente, o cenário mais provável.
3. FOCO NA AÇÃO: A BUSCA DE ESTRATÉGIAS ROBUSTAS16
A metodologia de cenários prospectivos tem uma grande
vantagem: enfrenta com sucesso o desafio de lidar com a
multiplicidade de futuros plausíveis. No entanto, parece não oferecer
mecanismos suficientemente desenvolvidos de encaixe entre, de um
lado, o estudo sobre os muitos futuros potenciais e, de outro, o
processo de tomada de decisão formal. Faltam, para isso,
instrumentos que permitam identificar impactos futuros de ações
15
Aplicativo Multicritérios e Política. Marca registrada CNAM France.
Diz-se robusta de uma estratégia cujo desempenho é satisfatório dentro
de qualquer cenário.
16
158
implementadas no curto prazo, o corolário do processo de análise
de políticas no longo prazo.
Com base nos conhecimentos metodológicos para a reflexão
sobre o futuro acumulados, Lempert, Popper e Bankes propõem sua
própria abordagem da análise de políticas no longo prazo, conhecida
como processo decisório robusto17. Assume-se, peremptoriamente,
a inutilidade de se tentar prever ou alocar probabilidades de ocorrência
de eventos e define-se como objetivo da análise de políticas no longo
prazo a identificação, apreciação e escolha de ações no curto prazo
que possam moldar as opções disponíveis para as gerações futuras
de analistas e tomadores de decisão.
Essa técnica está fundamentada na associação das habilidades
inatas dos seres humanos utilizadas no processo de tomada de
decisão em ambientes de profunda incerteza18, como inferir, formular
hipóteses, e intuir potenciais soluções, com a capacidade de memória
e processamento dos computadores na atualidade.
O êxito da metodologia proposta na análise de políticas no
longo prazo implica a implementação de quatro mandamentos,
quais sejam: (i) considerar grandes agregados de cenários (de
centenas até milhões, conforme o caso); (ii) buscar estratégias
17
Tradução livre de robust decisionmaking.
Lempert et al definem incerteza profunda como uma situação na qual os
analistas não sabem ou as partes envolvidas no processo de tomada de
decisão não estejam de acordo sobre (i) os modelos conceituais apropriados
para descrever as relações entre variáveis-chaves que definirão os contornos
do futuro de longo prazo; (ii) as distribuições de probabilidade utilizadas
para representar a incerteza sobre variáveis-chaves e parâmetros nas
representações matemáticas desses modelos conceituais; e/ou (iii) como
avaliar a conveniência dos resultados alternativos.
18
159
robustas, e não ótimas; (iii) atingir robustez com adaptatividade19;
e (iv) desenhar estruturas de análise para a exploração interativa
da multiplicidade de futuros plausíveis. Fundamentalmente, esses
mandamentos são implementados por meio de processo iterativo
no qual são utilizados computadores para auxiliar os analistas a
criar os agregados de cenários plausíveis. Os agregados de
cenários, ressalte-se, devem ter amplitude o suficiente para abarcar
qualquer futuro plausível ou, pelo menos, ser grande o bastante
para fundamentar o desenho de políticas robustas contra esses
futuros.Cada cenário representa uma imagem futura da realidade
analisada e uma escolha de estratégia relevante, dentre todas as
disponíveis.
Nesse contexto, estratégias robustas são necessariamente
adaptativas, evoluindo ao longo do processo em resposta a
novas informações. Com efeito, a adaptatividade é o que
permite que outras gerações de tomadores de decisão possam
rever e, eventualmente, redirecionar políticas definidas
anteriormente.
Este sistema de apoio à tomada de decisão se torna então
um instrumento para a produção interativa de visualizações dos
futuros plausíveis, por meio da utilização de tipos diferentes de
aplicativos. O primeiro é um aplicativo de modelagem exploratória20
que permite aos usuários navegar por um grande número de cenários,
operação necessária para compor um agregado deles, e para
19
Característica de um processo decisório de múltiplas etapas, no qual a
decisão seguinte considera o resultado das anteriores. Implica a
aprendizagem com experiência do passado recente, como preconiza Carlos
Matus (MATUS 1993).
20
Aplicativo Evolving Logic’s Robust Adaptative Planning –RAP, marca
registrada.
160
formular argumentos rigorosos sobre escolhas fundamentadas nessas
explorações. O segundo, por sua vez, constitui um gerador de
cenários21 que se utiliza das relações identificadas entre as variáveis
para criar o elenco completo de cenários plausíveis que perfaz um
agregado.
Na prática, o uso combinado desses aplicativos permite que
os tomadores de decisão interajam com os computadores para
descobrir e testar estratégias hipotéticas, podendo inclusive
considerar seu desempenho ante a ocorrência de eventos nãolineares, em busca de estratégias robustas. Para efeito de
comparação da robustez entre várias estratégias, Lempert, Popper
e Bankes descobrem e utilizam como benchmarks as alternativas
que produzem os melhores resultados para cada cenário do
agregado, considerando os sistemas de valores dos atores
envolvidos, e testam outras estratégias frente à totalidade de
cenários desse agregado. A alternativa mais robusta é aquela que
melhores resultados obtiver em relação a todos os benchmarks22
identificados.
A resposta, portanto, desse método ao desafio da tomada
de decisão estratégica em um contexto de incerteza profunda é,
com o suporte de recursos computacionais, ampliar
exponencialmente o universo de futuros possíveis considerados e,
por meio de operações iterativas, encontrar ações que, encadeados
em uma seqüência estratégica desde o presente, possam moldar
futuros desejáveis.
21
A proposta de Lempert, Popper e Bankes utiliza o modelo de dinâmica
sistêmica Wonderland.
22
Os autores utilizam a relação regretm(j,f)=Maxj’[Performancem(j’,f)]–
Performancem(j,f), uma evolução da regra do mini-max, de L. J. Savage,
elaborada nos anos 50.
161
4. Uma última reflexão, para concluir
Narrativas, abordagem histórica, Delphi, Forsight, modelos
de simulação computacional, abordagem da teoria da decisão,
cenários prospectivos, tomada de decisão robusta. Essas
metodologias, dentre outras, constituem iniciativas válidas de reflexão
sobre o futuro, uma atividade inata ao ser humano, decorrente de
sua natural propensão ao controle de sua vida.
Os métodos de reflexão sobre o futuro evoluíram. Na
atualidade, dispõe-se de instrumentos sofisticados de apoio à análise
de políticas no longo prazo que já superaram a ilusão e o simplismo
da predição. Mas é possível melhorar essas técnicas.
Quaisquer que sejam as direções tomadas pelos próximos
avanços, uma vez que a evolução dessas metodologias também
são processos de final aberto, é prudente que se resista à tentação
do mapeamento exaustivo de futuros plausíveis. Por maior que seja
a capacidade de memória e processamento dos computadores,
parece pouco razoável supor a construção de instrumentos que
consigam absorver a complexidade dos fenômenos sociais e mapear
todos os seus potenciais cursos de evolução futura. Destaque-se
também a necessidade de adotar procedimentos que promovam a
verossimilhança dos resultados da implementação dos métodos. Essa
é uma condição importante para reduzir a geralmente alta taxa
psicológica de desconto que é aplicada sobre o futuro, o que
compromete a percepção da importância de problemas e
oportunidades vislumbrados no longo prazo ante aqueles localizados
no âmbito mais imediato.
Fundamentalmente, metodologias de exploração do futuro
serão tão mais úteis quanto estimularem a imaginação, criarem uma
162
linguagem comum, servirem para estruturar a reflexão coletiva,
reduzirem incoerências e, especialmente, permitirem sua utilização
em processos de tomada de decisão.
O desafio de lidar estrategicamente com o longo prazo é
permanente. É com imaginação e razão, associadas em métodos,
que o ser humano pode aprofundar sua reflexão acerca do futuro e,
assim, melhorar sua capacidade efetiva de influir na construção do
mundo onde viverão as próximas gerações.
163
BIBLIOGRAFIA
DROR, Yeheskel. 1999. A capacidade para governar –
Informe ao Clube de Roma. São Paulo: Edições FUNDALC.
GODET, Michel. 1993. Manual de Prospectiva
Estratégica: da antecipação a acção. Lisboa: Dom Quixote.
GRUMBACH, Raul J. 1987. Prospectiva: a chave para o
planejamento estratégico. Rio de Janeiro: Catau,.
LEMPERT, Robert, Steven Popper e Steven Banks. 2003.
Shaping the next one hundred years – New methods for
quantitative, long term policy analysis. Santa Monica: The Rand
Pardee Center.
MATUS, Carlos. 1993. Política, Planejamento e Governo.
Brasília: IPEA.
MORIN, Edgar. 2003.O método – A natureza da natureza.
Porto Alegre: Editora Sulina, 2ª Edição.
164
*Sylvio Kelsen Coelho é graduado em relações internacionais (1987) e
mestre em ciência política (2001) pela Universidade de Brasília, tendo
atuado profissionalmente nas áreas de relações institucionais, análise de
risco e cenários políticos e negociações internacionais nos setores privado
e público. É membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e
Gestão Governamental desde 1998, atualmente em exercício na Secretaria
de Gestão - MP. Endereço eletrônico: [email protected].
Agradecimentos do autor: Meus agradecimentos a Mônica Costa e Rogério
Fernandes, cujas inúmeras sugestões de aperfeiçoamentos melhoraram
significativamente a versão preliminar deste artigo. Parte das modificações
propostas não foi incorporada, muito provavelmente em prejuízo do texto,
pelo que conto com a indulgência deles e do leitor.
165
166
RES PVBLICA
Revista de gestão governamental e políticas públicas
NORMAS DE PUBLICAÇÃO
A
RES PVBLICA é uma publicação da Associação
Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas
e Gestão Governamental, de natureza profissional e
opinativa, e tem por objetivo divulgar artigos produzidos por
membros da Carreira, colaboradores e estudiosos de assuntos
relativos a políticas públicas, gestão governamental, organização
do Estado, economia do setor público e às macroquestões políticas.
A RES PVBLICA tem periodicidade semestral.
Para selecionar os trabalhos a serem publicados, uma comissão
editorial, coordenada pelo diretor de Estudos e Pesquisas, será
constituída especificamente para cada edição. As comissões serão
formadas por dois integrantes com sólida formação, além do próprio
diretor. Caberá à comissão selecionar os trabalhos tentativamente
por consenso. As situações não consensuadas serão decididas pelo
diretor. Os critérios para seleção dos trabalhos são os seguintes:
relevância conjuntural, originalidade, consistência, coerência, clareza
e objetividade.
Solicita-se aos autores que dimensionem seus trabalhos entre
25 mil e 50 mil caracteres, incluídos os espaços. Cada trabalho deverá
vir acompanhado de resumo com aproximadamente 180 palavras.
As contribuições deverão ser enviadas para o endereço eletrônico
[email protected] sem qualquer tipo de formatação, hifenação
ou tabulação, sem palavras em negrito ou sublinhadas. Caso
necessário, poderão ser usados itálicos. As notas, inseridas no pé
167
da página, deverão ser numeradas em ordem crescente e indicadas
no corpo do texto com algarismos arábicos.
As referências bibliográficas devem ser incorporadas no
corpo do texto na seguinte seqüência: sobrenome do autor / espaço
/ ano de publicação / dois pontos / espaço / página), de acordo
com o exemplo: (Morin 1990: 52).
Para a inserção de mais de um título do mesmo autor
publicadas no mesmo ano, pede-se sejam os mesmos identificados
por uma letra depois da data, conforme os exemplos: (Lévi-Strauss
1962a) e (Lévi-Strauss 1962b).
A bibliografia citada deve ser indicada em ordem alfabética,
no final do texto, devendo-se obedecer aos formatos apresentados
nos exemplos a seguir:
Livro:
DROR, Yeheskel. 1999. A capacidade para governar –
Informe ao Clube de Roma. São Paulo: Edições FUNDALC.
Coletânea:
EASTON, David(org). 1970. Modalidades de análise
política. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
Artigo em Coletânea:
METCALF, David. 1987. “Labour market flexibility and jobs:
a survey of evidence from OECD countries with special reference
to Europe”. In LAYARD, R. e CALMFORS, L. The fight against
unemployment: macroeconomic papers from the Center of
European Studies. Cambridge: MIT Press, pp 51-76.
Artigo em Períodico:
168
GAETANI, Francisco. “Políticas de gestão pública para o
próximo governo”. Res Pvblica, nº 1 2002: pp 11-32
Monografia, Dissertação ou Tese Acadêmica:
SOUSA, Marcelo. 1999. Cidadania, Igualdade e
Solidariedade: e o Brasil com isso? Brasília: Dissertação de
Mestrado em Sociologia, SOL-UnB.
169
170
“Gestores Governamentais - uma carreira a serviço da cidadania”.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS ESPECIALISTAS EM POLÍTICAS PÚBLICAS E GESTÃO GOVERNAMENTAL - ANESP.
Endereço: SGAS 902 Lote 74 Bloco “B” Sala 229 - Ed. Athenas
CEP: 70.390-020 - Brasília/DF.
FONES: (61) 323 2397 / 321 3898 / FAX: (61) 322 4049
E-mail: [email protected] / Site: www.anesp.org.br
DIRETORIA EXECUTIVA
Amarildo Baesso
Carmem Priscila Bocchi
Carlos Frederico R. Gonçalves
Rita de Cássia V. Munck
Cristóvão de Melo
Sérgio A. Ligiero Gomes
Lamartine Vieira Braga
Ricardo Vidal de Abreu
Paulo Estevão T. Cavalcanti
Celso Augusto R. Soares
Marcos Maia Antunes
- Diretor-Executivo
- Diretora Administrativa
- Diretor Financeiro
- Diretora de Sócio-Cultural
- Diretor de Comunicação e Divulgação
- Diretor de Estudos e Pesquisas
- Diretor de Assuntos Parlamentares
- Diretor de Articulação Institucional
- Diretor de Assuntos Profissionais
-Suplente
- Suplente
CONSELHO FISCAL
Alberto Albino dos Santos
Bruno Henrique B.C. Pinto
Cleyton Domingues de Moura
171
172
EXPEDIENTE
Publicação semestral da ANESP - Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental.
Ano III - 5 - Novembro/2004 - ISSN - 1678-4057
1000 exemplares - circulação dirigida
Editor: Sérgio Augusto Ligiero Gomes
Banca Editorial: Francisco Gaetani
Leila Giandoni Ollaik
Luís Henrique da Silva de Paiva
Sérgio Augusto Ligiero Gomes
Coordenação Editorial: Maria de Fátima Melo Salvo
Capa e Diagramação: Wenderson Pereira Diniz
Produção: Fábio Oliveira dos Santos
A Res Pvblica é uma revista opinativa de caráter profissional.
A ANESP não necessariamente concorda com os
posicionamentos dos autores em seus artigos.
Rua 104, Travessa Eurípedes Barsanulfo nº 140 CEP 74080-350, Setor
Sul Fone/Fax: 281-3610, E-mail: [email protected] - Goiânia-GO.
173
174
Download

Ano: 2004 - Novembro