Paris – biografia de uma cidade
1
Paris-Lutécia
dos primórdios até C. 1000
“Cara Lutetia...” – “Minha querida Lutécia” – escreveu o imperador romano
Juliano sobre suas estadias na cidade em 358 e depois no inverno de 360-361,
é a capital do povo dos parísios. É uma pequena ilha que repousa no rio; uma
muralha a circunda completamente, e pontes de madeira dos dois lados nos
conduzem a ela. O nível do rio raramente sobe ou desce; em geral é tão profundo no inverno como no verão; sua água é límpida para olhar e muito agradável
para beber. Pois os residentes, por morarem numa ilha, precisam obter sua água
principalmente do rio. Lá o inverno é bastante ameno, talvez pelo calor do oceano, a não mais do que novecentos estádios* dali; é possível que uma leve brisa
marinha sopre e percorra toda essa distância. (...) Uma boa variedade de videira
é plantada nas imediações do lugar. Certas pessoas conseguem até cultivar figueiras, cobrindo-as durante o inverno (...) para protegê-las do vento frio.1
Essa é a primeira descrição de qualquer tamanho que temos da cidade
que seria conhecida como Paris. É escrita com um sentimento que se tornaria
comum em escritos sobre Paris: o afeto. Seu autor era um homem poderoso.
Nesse momento de sua história, Paris era Lutécia. Júlio César, que no
primeiro século antes de Cristo conquistou grande parte da atual área da França e a colocou sob domínio romano, foi o primeiro a usar o nome “Lutetia”
(outros diziam “Lucotecia”) para designar a “cidade da tribo dos parísios”.2
Cronistas da cidade desde a Idade Média até o nosso tempo gastaram muita
tinta na tentativa de determinar a origem do termo. De maneira imaginosa,
alguns o associaram ao termo grego leucos, “branco” – “devido à alvura dos
rostos dos habitantes ou porque suas casas eram feitas de argamassa branca”, como explicou de modo pedante o antiquário do século XVII Antoine de
Mont-Royal, ou ainda, como pensava com irreverência Rabelais, em homenagem às “coxas brancas das mulheres daquela cidade”.3 Outros sugeriram
uma alusão a Leucotéia, deusa dos marinheiros e dos caminhos das águas,
* Medida grega e depois romana que equivale a cerca de 180 metros. (N. T.)
26
Paris-Lutécia
mencionada por Homero e supostamente cultuada no local. De modo menos
sublime, estudiosos relacionam o nome com luco- ou lugo-, a palavra celta
para terras pantanosas, e a lutum, lama em latim. Provavelmente, é melhor
ficarmos com a lama.
A etimologia lamacenta da Lutécia destaca uma característica marcante
que desde o começo distinguiu a topografia de Paris. Apesar da descrição arcádica de Juliano, o rio Sena desempenhou papel muito significativo no aspecto
do local. Hoje, a largura máxima do rio é de cerca de duzentos metros; naquela
época, podia chegar a meio quilômetro em certos pontos. Condições de inverno adversas – pois o clima não era tão ameno quanto sugeria a descrição de
Juliano – com freqüência resultavam num rio congelado que ameaçava tanto
as pontes de destruição quanto a população de fome, por colapso no fornecimento de comida. O rio também era menos profundo, e uma ampla várzea de
terra lamacenta e pantanosa se estendia nas duas margens. Na margem esquerda, um afluente chamado Bièvre desaguava no Sena, provavelmente próximo
à atual estação ferroviária de Austerlitz (5o). No passado distante, uma faixa de
terras baixas na margem direita conduzia as águas do rio em um arco na direção norte até o sopé dos montes em Ménilmontant, Belleville, Montmartre
e Chaillot. Esse arco secou por volta de 30000 a.C. e foi substituído pelo novo
curso do Sena. Mas a área entre o rio e esses limites elevados ficou permanentemente sujeita à inundação. Nas melhores situações, essa área pantanosa na
margem direita serviu de defesa à cidade. Nas piores, chuvas fortes transformaram o curso extinto do rio numa torrente furiosa: o cronista Gregory de
Tours registrou um naufrágio ocorrido durante as enchentes de 582 nas proximidades da igreja de Saint-Laurent (10o). De modo semelhante, há relativo
pouco tempo, nas grandes enchentes de 1910, o rio voltou a correr no velho
curso – ocasião em que os amantes de música puderam ir à Ópera a remo.
Terra, água e lama, portanto, tiveram relação mais dramática com a
história da cidade do que em períodos recentes. O provérbio dos geógrafos,
“Paris é uma dádiva do Sena”, pode ter sua dose de verdade, mas o rio era
capaz de criar tanto problemas como oportunidades. Precisou ser controlado
e subjugado. Isso ficou evidente, por exemplo, no que se refere à Île de la Cité.
Essa era a principal ilha do Sena, identificada por César como a principal habitação da tribo local. A seu redor se desenvolveriam a topografia e a história
parisienses. A ilha ficava cerca de seis metros abaixo do nível atual e por isso
era sujeita a enchentes. Na verdade, era a ilha mais importante de um pequeno arquipélago nesse trecho do rio; cobria apenas sete ou oito hectares, ao
contrário dos dezessete hectares de hoje. A oeste, existiam três ilhotas, pouco
adiante da Pont Neuf atual: os canais que as separavam foram aterrados para
formar a ponta da ilha durante a Idade Média. A leste, existiam quatro ilhotas.
27
Paris – biografia de uma cidade
28
Paris-Lutécia
29
Paris – biografia de uma cidade
Uma seria agregada à Île de la Cité, duas seriam remanejadas para formar a Île
Saint-Louis no século XVII, enquanto a Île Louviers, mais a leste, só em 1843
seria conectada à margem direita para formar o Boulevard Morland (4o). Essas
complexidades topográficas devem ter tornado a navegação difícil e exigido o
uso de embarcações de pequeno calado.
As características gerais da bacia de Paris – o espraiado relevo natural
onde Paris se localizava – formaram-se na última era glacial, quando rinocerontes perambulavam no terreno da Place de l’Hôtel-de-Ville e mamutes
peludos pastavam desde os grandes magazines até o alto de Belleville. Uma
característica particular dessa ampla região era o acúmulo de bom número de
cursos d’água, próximos entre si, de águas mansas e, portanto, normalmente
navegáveis (Marne, Essonne, Loing, Yonne, Aube). Esses rios desembocavam
no Sena, que, por sua vez, desaguava no mar bem a oeste, além da atual Rouen.
Essa rede fluvial permitia comunicação com o Canal da Mancha a oeste, a caminho da Alsácia, Alemanha e Suíça, e também com grande parte do Norte, Leste
e Centro da França.
A presença humana mais antiga na vasta região em que se encontra Paris remonta a setecentos mil anos atrás, mas o conjunto mais impressionante
de artefatos humanos antigos encontrados na área – resultante das escavações
de 1991-1992 em Bercy (12o), dois quilômetros rio acima da Île de la Cité –
dá testemunho eloqüente do papel desempenhado pela água na história do
local. De modo acidental mas revelador, os artefatos descobertos haviam sido
preservados ao longo de milênios pela lama de Paris. A escavação em Bercy
revelou evidência não apenas de ocupação contínua a partir de cerca de 5000
a.C., no final da Idade da Pedra, mas também da importância do rio nas vidas
daquela sociedade primitiva e das outras que se seguiram. Entre os destaques
desses achados arqueológicos estão várias canoas escavadas em troncos de
mais de cinco metros de comprimento, datadas de cerca de 4500 a.C. As descobertas indicam que essas sociedades primigênias dedicavam-se à caça e à coleta e alimentavam-se de animais terrestres (veados, javalis, auroques, ursos)
e aquáticos (peixes, castores, aves, cágados). Mesmo após a adoção de estilos
de vida mais sedentários, esses habitantes primitivos mantiveram práticas predatórias. Preferiam o pastoreio à agricultura; integravam a produção de grãos
à criação de bovinos e suínos, além de buscarem constantemente carne de
caça selvagem. Mesmo no período da chegada de Júlio César, muitos agrupamentos da região ainda praticavam o desmatamento e as queimadas, abrindo
clareira após clareira adentro de uma área coberta de floresta cerrada.
A partir da Idade do Bronze (c.1800-c.750 a.C.), Paris tornou-se o eixo
central de complexa rede de trilhas e o principal ponto de convergência de
importante sistema fluvial. Naquela época, o Sena era mais largo; isso tornava
30
Paris-Lutécia
o rio uma barreira considerável. Por isso, a presença do pequeno arquipélago
ao redor da Île de la Cité conferia ao local um valor logístico e estratégico para
o comércio de longa distância, pois ali era mais fácil atravessar o rio do que em
outros pontos descendo ao mar. É bom não ceder à tentação do determinismo
geográfico: na verdade, mercadores terrestres da região do Canal da Mancha,
de Flandres e da Bélgica podiam, caso quisessem, tangenciar o norte de Paris e
atravessar o Marne a montante para alcançar o oeste da Alemanha e a Itália. A
presença de uma trilha norte–sul no traçado da Rue Saint-Jacques (5o-14o) na
margem esquerda e da Rue Saint-Martin (3o-4o) na margem direita dava testemunho da posição estratégica de Paris nessas redes de comércio e transporte
a longa distância, particularmente no que diz respeito ao sul e ao sudoeste.
Bastante significativo foi o próspero comércio que trazia da Grã-Bretanha (em
especial da Cornualha) o estanho, ingrediente essencial no fabrico do bronze,
aos depósitos de cobre e às sociedades que habitavam o sul e o leste na Idade
do Bronze. Assim, a situação privilegiada do local e a variadade dos padrões
de troca que ocorriam à sua volta estimulavam a passagem rotineira de indivíduos das mais diversas procedências pela região. O fenômeno produziu uma
mistura étnica e cultural que constitui característica há muito presente na história da cidade. Já no período pré-romano Paris era um cadinho de culturas.
Em determinado momento da Idade do Ferro, logo após a Idade do
Bronze, grande número de novos povos parece ter se estabelecido na região,
chegados ali graças a movimentos populacionais desorganizados e de amplo
espectro ocorridos por toda a Europa Central e Oriental. Esses grupos eram os
antepassados dos celtas ou gauleses, a quem Júlio César derrotaria e subjugaria.
Um ramo de um desses grupos tribais – os quarísios ou parísios – chegou a
espalhar-se até a altura de Yorkshire antes de fixar moradia, mas a maioria veio
a se instalar na região ao redor de Paris e em direção ao ponto onde o Sena e o
Marne se encontram. Os armamentos de ferro dos celtas sugerem tratar-se de
povo guerreiro. Muitas vezes construíam as moradias protegidas por fortalezas
defensáveis (oppida), que aproveitavam o potencial defensivo de rios e outros
obstáculos naturais. O oppidum de Saint-Maur-des-Fossés (Val-de-Marne),
por exemplo, fica perfeitamente abrigado por uma curva do rio Marne. A Île de
la Cité era, pelo que sabemos, o oppidum dos parísios descrito por César.4
O interesse de César pela região ia além da topografia. A República romana estava em fase de expansão; por isso, todo o território atual da França
ficou sob a autoridade de Roma. A faixa de terra meridional e mediterrânea
da França – conquistada por Roma em 121 a.C. – ligava a península da Itália à
península Ibérica e era chamada de Gália Narbonense. As Guerras Gálicas de
César no período entre 58 e 51 a.C. tiveram o objetivo de garantir a influência
romana nessa província meridional e estender o imperium romano, de modo
31
Paris – biografia de uma cidade
a conter os gauleses celtas e seus turbulentos vizinhos germânicos. A região
apelidada por César de “Gália Cabeluda” (Gallia Comata) ia desde a Bélgica,
Holanda e oeste da Alemanha até o oceano Atlântico. César fazia distinção entre esse território e a presumivelmente mais tranqüila, civilizada e romanizada
Gália Narbonense.
A investida militar romana nos anos 50 a.C. tivera por alvo menos os parísios do que outras tribos mais poderosas, como os arvernos (com base no Maciço Central) e os vizinhos dos próprios parísios: os carnutos (sediados na região
de Orléans) e os senões (cuja aldeia ficava em Sens). No primeiro momento, os
parísios usaram a cabeça: não entraram no conflito. Os parísios foram tão obsequiosos com os romanos que, em 53 a.C., César convocou uma assembléia de
todas as tribos da Gália na própria Lutécia. No ano seguinte, porém, os parísios
trocaram de lado. Para combatê-los, César enviou tropas sob o comando do
fiel lugar-tenente Labieno. Com toques de astúcia (inclusive o transporte noturno de tropas em canoas abandonadas), o general romano acuou os parísios
liderados pelo comandante Camulogenus no campo de batalha a oeste da Île
de la Cité, provavelmente na região de Grenelle (15o) ou em Auteuil (16o), e
aniquilou-os. Os parísios sobreviventes à carnificina fugiram ao sul e se uniram ao heterogêneo exército de resistência liderado pelo arverno Vercingetórix.
Conforme relatos de César, cerca de oito mil parísios estiveram envolvidos na
batalha de Alésia em 52, quando as tropas do comandante gaulês Vercingetórix
sofreram outra humilhante derrota e ele foi obrigado a render-se.
A Lutécia recuperou-se do ataque romano (assim como dos estragos do
incêndio da Île de la Cité ordenado por Camulogenus). Como resultado dessas
guerras, a “Gália Cabeluda” foi dividida em três províncias; Lyon (Lugdunum)
tornou-se a capital. A Lutécia, que ficava na província setentrional da Gália
Bélgica, teve o progresso atrasado pelo advento do imperium romano. Décadas antes da conquista romana, os parísios já produziam uma impressionante
cunhagem de ouro; isso sugeria a vitalidade e a prosperidade da região, com
base no comércio e no transporte de mercadorias. A conquista romana trouxe
brusca diminuição ao valor das moedas locais, sinal de pronunciada queda na
atividade econômica.
A evidência arqueológica sugere que uma verdadeira cidade nos moldes
romanos só se desenvolveu muito devagar. Provavelmente, desde o primeiro momento, os romanos impuseram à Lutécia o clássico traçado em grelha
preferido por eles. O papel de cardo – principal rua central no sentido norte–
sul das cidades romanas – coube à estrada existente no traçado da atual Rue
Saint-Jacques. Porém, a construção de prédios nessa estrutura levou bem
mais tempo para ser efetivada. Embora talvez já houvesse instalações portuárias na altura da atual Place de l’Hôtel-de-Ville (4o), eram poucas as moradias
32
Paris-Lutécia
As arenas de Lutécia
33
Paris – biografia de uma cidade
na margem direita. O principal prédio da Île de la Cité era a basílica onde o
imperador Juliano se alojava, construída somente no século IV. A margem
esquerda (em termos modernos, o 5o arrondissement) continha praticamente
toda a Lutécia romana. A área povoada se estendia da Rue Mouffetard dos dias
de hoje, a leste, até a Rue de Vaugirard (6o), a oeste, e da altura do Boulevard
Saint-Germain onde a margem pantanosa do rio terminava, até pouco adiante
do topo da Montagne Sainte-Geneviève. Nesse local, um prédio dotado de
pórtico (e próximo do atual Panthéon) combinava as funções de fórum com
as de basílica e templo. Havia dois teatros; um deles, o vasto anfiteatro das arenas, só redescoberto no fim do século XIX. Dos três banhos públicos, o mais
notável era o complexo cujas ruínas ainda são visíveis a partir do Boulevard
Saint-Michel. Na zona periférica da cidade, havia três cemitérios: um na estrada rumo a sudoeste, na parte superior do que seria hoje a Rue de Vaugirard;
outro na altura da Rue Saint-Jacques a caminho de Notre-Dame-des-Champs
(6o); e o terceiro, mais tardio, junto ao cruzamento de Les Gobelins no lado
sudeste (13o). Um impressionante aqueduto, conectando a zona de Rungis
no sul da cidade com o rio Bièvre, foi construído para fornecer água para
essas múltiplas necessidades. O sistema de abastecimento de água construído
por Napoleão III no Segundo Império (1852-1870) inteligentemente seguia o
mesmo trajeto. A água – cuja qualidade fora realçada por Juliano – era canalizada até as residências privadas que tinham hipocaustos, sistemas de aquecimento central característicos das cidades mediterrâneas.
1.1: As arenas de Lutécia
A arena romana ou anfiteatro de Lutécia, situada junto à Rue Monge,
no 5o arrondissement, é um local de memória que os parisienses conseguiram esquecer – por duas vezes. Quando o arqueólogo da cidade Théodore Vacquer identificou o local em 1869-1870, despertou a atenção
dos parisienses para um monumento perdido por mais de um milênio.
Construída por volta do ano 200, a arena era um dos maiores exemplos
franceses de anfiteatro romano; chegara a ter capacidade para quinze
mil espectadores – quase o dobro da população presumida da própria
cidade. Esse extraordinário monumento regional era voltado para oeste; assim, à tarde, os espectadores podiam apreciar a agradável vista do
vale do rio Bièvre enquanto se acomodavam para assistir aos espetáculos, que incluíam lutas de animais e de gladiadores assim como esportes
aquáticos. As arenas entraram em decadência com a extinção do poder
romano. No século IV, cristãos já realizavam cerimônias de enterro no
centro da arena. As pedras da edificação passaram a atrair a pilhagem
34
Paris-Lutécia
para a construção de monumentos funerários e outros usos. Um visitante inglês do século XII descreveu “um grande circo cheio de ruínas
imensas”, mas essas ruínas foram provavelmente reduzidas ainda mais
pela construção da muralha de Filipe Augusto (1190-1215). Um nome
de origem medieval – o clos des arènes – denunciava o local do anfiteatro, mas mesmo esse nome acabou esquecido. Um monte de cerca de
vinte metros de altura aos poucos formou-se sobre os vestígios.
Houve muita surpresa quando, em 1869, uma equipe de construtores encontrou as ruínas durante a criação de uma das ruas que o barão
Haussmann fez penetrar coração adentro de áreas de moradias insalubres e caindo aos pedaços das classes operárias de Paris. A reconstrução
completa de grande parte da cidade sob o Segundo Império revelara importantes achados arqueológicos: Vacquer, um dos heróis esquecidos
da conservação parisiense, localizou os vestígios de um fórum próximo
à Rue Soufflot, vários teatros e o sistema viário. Todavia, Haussmann e
seus seguidores estavam construindo a Paris do futuro, local da modernidade, e tinham pouco tempo a dedicar ao passado. Embora houvesse
iniciado um debate público sobre a restauração, um dos últimos atos de
Haussmann como chefe do departamento do Sena foi ordenar a terraplenagem do local e sua conversão em depósito multifuncional – típica
vitória haussmanniana.
Em 1883-1885, novos trabalhos de construção ao longo da Rue
Monge revelaram, sob um ex-convento, a segunda metade da arena original. O debate público dessa vez foi mais acalorado e alcançou triunfo
quando Victor Hugo escreveu uma carta aberta apoiando o monumento. “Não é possível”, fulminou esplendidamente o autor, “que Paris, a
cidade do futuro, deva renunciar à prova viva de que foi uma cidade do
passado. A arena é o marco antigo de uma grande cidade. É um monumento único. O conselho municipal que vier a destruí-la de certo modo
destrói a si mesmo. Conservem-na a qualquer preço.”
E ela foi devidamente conservada. Continuou-se a trabalhar no local,
na expectativa confiante de um resultado produtivo e inextinguível.
Essa vitória importante do nascente movimento pró-conservação
em Paris acabou causando efeito bem menos devastador do que o esperado. Embora o local da arena fosse muito amplo, praticamente nada
restava dos assentos ou de edifícios proeminentes. Na expectativa de
encontrar monumentos equivalentes às arenas de Nîmes e Arles, os arqueólogos descobriram essencialmente uma pilha de rochas e escombros com pouco mais de dois metros de altura. “Para podermos preservar a arena”, observou indignado um funcionário municipal, “seria
35
Paris – biografia de uma cidade
primeiro necessário provar sua existência. Tudo indica o contrário. (...)
Como monumento, ali nada mais resta.” Não se tratava do magnífico monumento da história de Paris imaginado pelas autoridades parisienses. Todo o movimento de propaganda a favor das arenas resultou
em nada. As obras de restauração arrastaram-se por muito tempo. Em
1917-1918, o arqueólogo Capitan finalmente completou o trabalho na
forma de um parque público, que inclusive recebeu o nome de praça
Capitan. A “restauração” da construção foi em grande parte uma criação nova – uma Disneylândia romana, ao estilo da Terceira República.
Hoje, as arenas seguem tranqüilas, basicamente esquecidas – pela
segunda vez em sua história – numa cidade cuja romanidade não chega
ao ponto de encorajar seu status romano de cidade gaulesa de terceira
categoria. Os turistas são poucos, a não ser quando arquibancadas especiais são erguidas para concertos de verão. Na maior parte do tempo,
as arenas são freqüentadas por pais e bebês e por garotos da vizinhança,
que jogam peladas de futebol invariavelmente disputadas ao som dos
gritos das crianças do jardim de infância ali perto. As arenas de Lutécia
foram transformadas em local de sociabilidade e mémoire de quartier.
Numa cidade cujos “locais de memória” às vezes beiram o exagero, talvez isso não seja tão ruim.
Apesar dos impressionantes (embora lentos) sinais de romanidade, a
Lutécia nunca chegou a ser mais do que uma cidade secundária durante todo
o período de dominação romana – até que Juliano rapidamente a associasse
ao governo imperial. Os romanos permitiram que a rede tribal existente subsistisse em toda a Gália. Os parísios não tinham qualquer primazia sobre os
pouco mais de sessenta grupos tribais – agora rebatizados de civitates (“cidades-estado”) – que constituíam a “Gália Cabeluda”. A Lutécia era apenas a capital de uma civitas na província mais extensa da Gália Bélgica. Pouca era sua
importância estratégica. Ficava a uma boa distância, por exemplo, do limes, a
zona de fronteira fortificada erguida para prevenir incursões de grupos tribais
germânicos do outro lado do Reno e do Danúbio e para garantir a pax romana
em todo o noroeste da Europa. Até mesmo quando, no século IV, um sistema
de unidades menores substituiu a tripartição da Gália, a Lutécia não logrou
obter promoção administrativa: a vizinha cidade de Sens tornou-se a capital
da Quarta Divisão Lionesa.
A Lutécia não desempenhou papel social, econômico ou cultural maior
do que sua importância administrativa. Chegando possivelmente a oito mil habitantes, a pequena cidade contrastava com Narbonne e Nîmes (na Gália narbonense) e também com Lyon, Autun, Reims e Trier, todas com vinte a trinta
mil habitantes (enquanto a própria Roma contava com 750 mil habitantes). Os
36
Paris-Lutécia
cerca de cinqüenta hectares de área da Lutécia mal podiam ser comparados
com os seiscentos hectares de Reims, os 285 de Trier e os duzentos de Autun –
ou mesmo com o oppidum pré-romano de Alésia, de 97 hectares. Tanto o que
acontecera com a cunhagem dos parísios quanto a lenta romanização do meio
ambiente construído sugerem que a prosperidade econômica da cidade demorou a superar o trauma da conquista. A Lutécia era uma das relativamente
poucas cidades romanas na Gália Setentrional onde as construções podiam ser
feitas de pedras extraídas na região: os depósitos de calcário (para pedras para
construção) e gesso (para argamassa e rebocos) dentro de um raio de cinco
quilômetros da Île de la Cité forneceram matéria-prima para construção até os
tempos modernos (a última pedreira de calcário fechou em 1939) e ao longo
dos séculos criaram vastos complexos de cavernas subterrâneas. A maioria dos
prédios públicos só foi erguida no século II e III. Pedra, argamassa e ladrilhos gradualmente substituíram paredes de taipa e telhados de colmo – nunca
desaparecidos por completo. Embora a cerâmica, o trabalho em metais e o
comércio associado à indústria de construção tenham prosperado de forma
considerável durante o apogeu da cidade e levado à formação de subúrbios
manufatureiros, a Lutécia não chegou realmente a transformar-se em centro
de produção; em vez disso, especializou-se em atividades comerciais de longa
distância. Também aqui a economia parisiense ressentiu-se da decisão imperial de construir a principal via de ligação entre a capital da província, Lyon, e
a Inglaterra, passando por Sens, Senlis e Beauvais, descartando Paris.
O “pilar dos barqueiros”, extraordinário achado arqueológico do começo do século II. nos arredores da catedral de Notre-Dame em 1711, sugere que,
apesar desses problemas, a recuperação econômica estava a caminho. O pilar
de pedra de cinco metros de altura (que pode ser visto no Museu Cluny de
Paris [5o], junto a vestígios das termas romanas) representa os deuses romanos (Marte, Vênus, Mercúrio, Fortuna, Castor e Pólux e Vulcano) convivendo
harmoniosamente com divindades gaulesas. Está inscrito (em latim incorreto): “Sob o reino de Tibério César Augusto, os barqueiros (nautes) erigiram
esse monumento a Júpiter Optimus Maximus (o melhor e maior de todos),
repartindo o custo coletivamente”. O pilar destaca o sincretismo da religião
galo-romana, mas também o status social e o poder econômico dos barqueiros, cuja organização anterior à chegada dos romanos parece ter alimentado a
onda de crescimento econômico do início do século II.
A produção local era transportada a longas distâncias. Adiante das três
necrópoles nos arredores da cidade, grandes fazendas baseadas no modelo romano de mão-de-obra escrava davam à Lutécia a aparência de cidade-jardim.
Por exemplo, uma grande fazenda em Chaillot e outra em Montmartre dedicavam templos a Marte e a Mercúrio. Seria necessário ir além dos limites
37
Paris – biografia de uma cidade
do boulevard périphérique que hoje contorna a cidade para encontrar locais
mais densamente habitados (Clichy, Gentilly, Bogbigny, Ivry, Saint-Denis). O
caráter rural da grande Lutécia aumentou no decorrer dos séculos III e IV, à
medida que o poder romano enfraqueceu, declinou e finalmente se extinguiu.
A partir do final do século II, incursões de pilhagem dos bárbaros do outro
lado do limes começaram a espalhar a incerteza por toda a Gália. Já em 162 e
em 174, ataques de surpresa avisavam sobre o perigo. Mas a partir do final do
século III o problema agravou-se por toda a província. Em 275, os ataques dos
alamanos e francos germânicos causaram estragos em sessenta cidades gaulesas, entre as quais a Lutécia. Isso levou, pouco depois do ano 300, à fortificação
tanto da Île de la Cité como de uma área indeterminada ao redor do fórum,
usando pedras de construções menos defensáveis. A prática crescente de indivíduos enterrarem pequenos tesouros de moedas e outros objetos de valor
demonstrava o impacto psicológico da ameaça bárbara.
1.2: Uma criança parisiense
Este é o mais antigo rosto parisiense de que temos notícia (p. 40). Tem
quase dois mil anos de idade. É uma máscara funerária acidental, de
clareza e intensidade quase fotográficas, descoberta em 1878 durante
escavações na Rue Pierre-Nicole (5o). O arqueólogo Eugène Toulouzé
trabalhava na necrópole romana dessa área há algum tempo e localizou
um sarcófago grosseiramente acabado do século I ou II. Com cuidado,
abriu a tampa com uma alavanca e descobriu o cadáver de uma pequenina criança, de doze a quinze meses de idade, ao lado da qual estava
uma mamadeira de vidro ricamente trabalhada. A cabeça da criança,
observou o arqueólogo,
estava em parte coberta por uma camada de cimento bastante grossa. Após
removê-la com cuidado, qual não foi a nossa surpresa ao percebermos que
o cimento formara uma espécie de máscara funerária sobre a cabeça, assim
conservando intacto, após dezoito séculos, o rosto da criança. Quando o
caixão foi selado, talvez o cimento tenha ficado aderido à tampa e depois se
desprendido, fixando-se sobre a cabeça da criança e moldando sua forma.
A criança recebeu tratamento especial pelo menos na morte. Ela é
uma das únicas três pessoas enterradas em sarcófago nesse vasto cemitério – a maior parte dos enterros era feita diretamente na terra ou
então os corpos eram colocados em caixões de madeira. Porém, a morte
de uma criança era uma ocorrência banal não só na Lutécia romana,
mas durante a maior parte da história de Paris. Talvez não seja motivo
38
Paris-Lutécia
de surpresa que o maior cemitério de Paris a partir da Idade Média fosse dedicado aos Santos Inocentes, as crianças massacradas por ordem
de Herodes. Quando o cemitério dos Inocentes foi fechado, em 1786,
continha os restos mortais de dois milhões de parisienses; vasta proporção desses eram crianças. A evidência estatística sugere que até o final
do século XVIII e início do século XIX, uma entre cada três ou quatro
crianças parisienses morria antes do primeiro aniversário.
Esse massacre de inocentes era agravado por uma série de práticas
sociais. A partir do fim da Idade Média, a burguesia, os donos de loja e
os artesãos parisienses adquiriram o hábito de enviar os filhos para serem aleitados no campo, onde havia maior chance de perecerem do que
em casa. Além disso, Paris tornou-se verdadeiro depósito de crianças
enjeitadas tanto de fora como da própria cidade. Hospitais para crianças enjeitadas foram criados a partir do século XVI, destacando-se o
Enfants-Trouvés, fundado por São Vicente de Paulo em 1640. Infelizmente, tais instituições bem-intencionadas estimulavam o abandono.
Na época da Revolução Francesa, a cada ano, cerca de oito mil bebês
eram transportados a Paris a fim de serem abandonados; durante a viagem e nos três primeiros meses em que eram cuidadas, 90% morriam.
A taxa de mortalidade era maior entre os bebês alimentados artificialmente – como a criança parisiense encontrada por Toulouzé em suas
escavações. A situação só começou a melhorar no século XIX.
A pobreza das crianças era um problema tão grande quanto a mortalidade infantil. A criança mendiga tornou-se alvo freqüente de preocupação a partir do século XVI. Histórias terríveis de abuso infantil não
faltavam. Uma mãe foi executada em 1445 por ter vazado os olhos da
filha ainda bebê, para a menina inspirar mais pena ao pedir esmolas nas
ruas. Relatos de pernas quebradas e outras mutilações provocadas eram
comuns na literatura picaresca de vagabundagem. As crianças tinham o
talento de despertar esses rumores e lendas urbanas. Em várias ocasiões,
a partir do século XVI – em 1529, 1663, 1675, 1720, 1741 e 1750 –, os
parisienses foram tomados de pânico, pois suas crianças estariam sendo
vítimas de seqüestro. Em 1750, corria o boato de que as crianças estavam sendo exterminadas para que seu sangue pudesse ser usado para
banhar as feridas leprosas do devasso Luís XV.
Do final de século XVIII em diante, a criança mendiga parece
ter se metamorfoseado no garoto de rua – o gamin de Paris –, objeto tanto de inquietação quanto da preocupação caridosa das elites
parisienses. Uma gangue de crianças mutilara e castrara o cadáver do
almirante Coligny no massacre da noite de São Bartolomeu de 1572.
39
Paris – biografia de uma cidade
40
Download

1 Paris-Lutécia