CENTRO UNIVERSITÁRIO FUNDAÇÃO SANTO ANDRÉ
Heloísa Helena Dall‟Antonia Ferreira
MASHUPS, A CRIAÇÃO DE UM NOVO GÊNERO LITERÁRIO
Santo André
2012
Heloísa Helena Dall‟Antonia Ferreira
MASHUPS, A CRIAÇÃO DE UM NOVO GÊNERO LITERÁRIO
Monografia apresentada como exigência
parcial para obtenção do título de especialista
em Estudos Linguísticos e Literários, ao Centro
de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão do
Centro Universitário Fundação Santo André.
Orientação de
Prof.ª Me. Márcia Tomsic
Santo André
2012
Candidato (a): Heloísa Helena Dall‟Antonia Ferreira
Título: Mashups, a criação de um novo gênero literário
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para obtenção
do título de especialista, à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Centro
Universitário Fundação Santo André, Curso de Estudos Linguísticos e Literários.
Data: 21/03/2012
Prof(a). Dr(a). _______________________________________
_____________
Instituição: _________________________________
(assinatura)
Prof(a). Dr(a). _______________________________________
_____________
Instituição: _________________________________
(assinatura)
Prof(a). Dr(a). _______________________________________
_____________
Instituição: _________________________________
(assinatura)
“Todos nós nascemos originais e morremos cópias.”
Carl Jung
RESUMO
Mesmo ainda sendo vistos com alguma desconfiança por críticos, títulos que
misturam clássicos da literatura com personagens fantásticos têm se tornado cada
vez mais frequentes. A utilização recorrente deste estilo propicia terreno para
considerar-se a criação de um novo gênero literário: o mashup. Independentemente
do juízo de valor que se faça sobre as obras em questão, é necessário reconhecer a
existência e importância da novidade na entrada de novos leitores no mercado
literário.
Palavras-chave: Mashup. Gênero literário. Literatura.
ABSTRACT
Even they are still seen with some doubts by the critics, books that mash literature
classics with fantastic characters have been become usual. The use of this style
propitiates the idea of the born of a new literary genre: the mashup. Independently of
the worthwhile sense of this kind of books, it‟s necessary to recognize its existence
and importance in the entry of new readers in the literary market.
Keywords: Mashup. Literary genre. Literature
SUMÁRIO
Introdução
7
Dom Casmurro e os Discos Voadores
9
O nascimento dos mashups
14
Gêneros textuais e literários
17
Uma brincadeira sem compromisso?
20
Mashups não são adaptações
23
Conceitos da literatura fantástica
26
A construção de conteúdos pela internet
30
A visão conservadora e as críticas
32
Considerações finais
34
Bibliografia
36
7
Introdução
Um título despretensioso da pequena editora norte-americana Quirk Books
chegou ao mercado em abril de 2009. Baseado em uma obra de 1813 da autora
inglesa Jane Austen, o então novo Orgulho, Preconceito e Zumbis, de Seth
Grahame-Smith, adicionava ao romance das moças da família Bennet um elemento
diferente e fantástico: mortos-vivos. Tido pela crítica, de início, como um livro de
humor, a obra de Smith, porém, deu origem a uma série de outras publicações que
seguiam a fórmula de introduzir elementos fantásticos em clássicos da literatura.
Nascia assim o termo „mashup‟, significando essa peculiar combinação.
Orgulho, Preconceito e Zumbis se mostra um sucesso editorial, com mais de
um milhão de cópias vendidas e tradução em 20 idiomas. Outros autores passam a
se dedicar ao estilo, expandindo a ideia e criando novos pontos de partida para as
tramas – não mais apenas livros reconhecidamente importantes servem de cenários
para monstros, mas figuras da história tornam-se protagonistas de tramas
fantásticas.
Não demora para que a ideia chegue ao Brasil, e em 2010 a editora LeYa
propõe que quatro escritores também revisitem grandes títulos da literatura nacional
a fim de criar mashups. Este trabalho se ocupa de uma dessas produções, Dom
Casmurro e os Discos Voadores, de Lúcio Manfredi.
Uma análise rápida das obras criadas dentro do gênero pode dar a entender
que elas subvertem publicações clássicas, o que acaba por insuflar manifestações
contrárias acaloradas, inclusive da mídia especializada1. Essa reação pode ser
1
Crítica de Luís Antônio Giron, na edição de 05 de outubro de 2010 na revista semanal Época,
chama os mashups de “praga de letras”. Coluna disponível em
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,ERT177254-15230-177254-3934,00.html, acessado
em 17 de fevereiro de 2012.
8
melhor compreendida nas palavras do jurista Demócrito Reinaldo Filho2 : “O homem
sempre demonstrou uma tendência a reagir contra o novo, o revolucionário, enfim
contra tudo que, num primeiro momento, não esteja submetido ao seu domínio. É
quase como um mecanismo de defesa, que dispara automaticamente quando
alguma coisa parece ameaçar sua segurança”. Também se poderia creditar essa
atitude à percepção de ter sido invadido o sagrado território dos modelos perfeitos
da literatura.
Embora para uma parcela da sociedade, a rejeição a essas obras vá
certamente continuar, os mashups, mais do que um fenômeno passageiro, vêm
ganhando cada vez mais espaço e se consolidando como um novo gênero literário.
“Dom Casmurro e os Discos Voadores” faz um resumo da trama do livro,
necessário para a comprovação dos argumentos dados a seguir. Na sequência, “O
nascimento dos mashups” procura traçar as origens do gênero, ao par que os
subsequentes, “Gêneros textuais e literários”, “Uma brincadeira sem compromisso”,
“Mashups não são adaptações” e “Conceitos da literatura fantástica” procuram
distanciar o tema deste trabalho de definições já existentes. “A construção de
conteúdos pela internet“ tenta situar a novidade dentro da realidade atual da world
wide web. “A visão conservadora e as críticas” traça um paralelo entre como outras
formas de arte foram vistas pela crítica ao surgirem e como os mashups são vistos
hoje.
2
Disponível em http://www.ibdi.org.br/site/artigos.php?id=187 , acesso em 14 de março de 2012. O
artigo, “Tecnologias da Informação: Novas Linguagens do Conhecimento” trata dos vários avanços
recentes da tecnologia e a reação recebida por eles da sociedade.
9
Dom Casmurro e os Discos Voadores
Lançado em 2010, Dom Casmurro e os Discos Voadores foi encomendado
pela editora LeYa a Lúcio Manfredi. A obra faria parte da coleção Clássicos
Fantásticos, dedicada a representar como seriam alguns títulos emblemáticos da
literatura nacional se escritos nos dias atuais. Entre os outros livros do selo estão O
Alienista Caçador de Mutantes; Senhora, a Bruxa e A Escrava Isaura e o Vampiro.
A escolha pelo nome de Manfredi, assim como a dos demais autores
convidados para a tarefa, foi baseada na carreira do escritor, que já é um veterano
nos roteiros para televisão. Suas demais incursões na literatura fantástica o
tornaram um dos nomes óbvios para a tarefa.
Como ainda é pouco provável que o leitor em geral conheça a obra,
apresenta-se uma síntese da mesma, de modo a facilitar a análise que constitui o
trabalho.
Dom Casmurro e os Discos Voadores é narrado em primeira pessoa por
Bentinho Santiago, um garoto de classe média alta do Rio de Janeiro de meados do
século XIX, que mora com a mãe, viúva (Dona Glória), o tio (o aposentado Cosme),
uma prima da mãe, também viúva (Justina) e um agregado da família (José Dias). O
protagonista conta a história de sua vida a partir do momento em que, ouvindo sem
querer uma conversa entre sua mãe e Dias, se dá conta de que sente mais do que
amizade por sua vizinha, a menina Capitu. Bentinho, devido a uma promessa da
mãe, deve se tornar padre, e seguirá, dentro de algum tempo, ao seminário. A
descoberta do primeiro amor, porém, o assola, e a partir dela fará o que for preciso
para se desvencilhar do futuro traçado por sua progenitora.
Apesar dos nomes dos personagens e do fio condutor da trama até aqui
parecer ser exatamente o mesmo do clássico de Machado de Assis, as
semelhanças vão se tornando cada vez mais escassas no decorrer da história.
10
Decidido a não seguir para o seminário, Bentinho visualiza no metódico e
aparentemente sem emoções José Dias sua melhor possibilidade de convencer a
mãe a não cumprir sua promessa. Assim, segue o agregado em uma noite qualquer,
quando este simplesmente some num descampado. O ocorrido chama a atenção do
garoto, ainda mais quando somado à repulsa e desconfiança que Dias mostra ter –
aparentemente sem o menor motivo - pelo pai de Capitu.
Dias depois, já ciente de ser correspondido em seu amor pela vizinha,
Bentinho descobre inadvertidamente, que Capitu tem cicatrizes curiosas em seus
ombros, que abrem e fecham como guelras. Acreditando tratar-se apenas de um
traço físico qualquer, o fato só vai voltar à berlinda muitos anos mais tarde.
O plano de que Dias o ajude a livrar-se do seminário não funciona, e Bentinho
segue para cumprir sua sina – não sem antes ser alvo de uma situação estranha,
quando, ao usar uma medalhinha dada por padre Cabral (que além de professor de
latim é uma das maiores influências de dona Glória), sente perder o controle de suas
ações. É Capitu quem o tranquiliza, não apenas removendo o nanoprogramador
instalado no artefato religioso – ação e vocabulário que não fazem o menor sentido
para o protagonista – assim como garantindo que ficarão juntos.
No seminário, além de presenciar em uma noite de convalescença o encontro
dos reitores com criaturas que pareciam lagartos falantes, Bentinho faz muita
amizade com Escobar, outro garoto sem vocação para o sacerdócio. Apesar de ser
muito tímido (nunca sequer tira a camisa na presença do personagem principal) e de
por vezes dizer coisas incompreensíveis para o protagonista, Escobar não tem
receio de ser ríspido com a chefia do colégio religioso.
Uma doença inesperada e a iminência da morte faz dona Glória desistir da
promessa de que Bentinho deve se tornar padre (um órfão passa a ter os estudos
custeados pela viúva a fim de se tornar ele sim um sacerdote). Cuidada por Capitu,
a mãe do garoto passa a fazer gosto da união dos dois jovens, o que deve acontecer
assim que o protagonista, já senhor de seu próprio destino, termine de cursar a
faculdade de Direito.
11
Na mesma época em que cuida de dona Glória, Capitu também serve de
enfermeira para uma amiga, Sancha, que padece de uma doença misteriosa que
médico algum consegue definir. „Envenenamento por radiação‟, determina Capitu,
enquanto trata da colega. Bentinho saberá depois que Sancha, assim como
Manduca (conhecido de infância do protagonista), estava próxima à igreja de padre
Cabral quando uma espécie de estrela achatada vinda do céu soltou um raio em
cima da construção, a destruindo.
Bentinho e Capitu se casam, assim como Escobar (que também largou a
escola de sacerdotes na mesma época do protagonista e formou-se em medicina) e
Sancha, e os dois casais se tornam muito próximos.
Alguns anos se passam até que o casal principal consiga ter um bebê
(Bentinho tem a impressão de ter sonhado com uma espécie de exame conduzido
por Escobar e Capitu, no qual o médico „descobre‟ que uma substância presente em
um vinho ofertado por José Dias continha „nanossupressores de fertilidade‟). O
pequeno Ezequiel nasce saudável, mas com as mesmas marcas nas costas da mãe.
Num passeio à praia com o casal de amigos e a filhinha deles, o protagonista
percebe que Escobar também possui as cicatrizes de Capitu, e que fica
extremamente constrangido ao notar que o amigo as viu.
O tempo passa (a trama indica tratar-se de 1870), e Bentinho começa a
desconfiar de que Capitu e Escobar são mais do que amigos. A cisma cresce
quando Sancha lhe conta que também tem suas suspeitas, mas de outra espécie.
Para ela, Escobar tem algum tipo de ligação com um ser marinho que vira quando,
seguindo o marido para tentar lhe dar um flagra com uma possível amante, o
descobre na praia, comunicando-se com uma criatura que aparece do meio do mar.
Numa tentativa de não magoar a amiga, Bentinho diz que acredita, mas na
verdade, duvida da sanidade de Sancha. Assim, a fim de talvez dissuadi-la de vez
da ideia, vai a seu encontro quando ela lhe manda um bilhete dizendo para
12
encontrá-la na praia, à noite. Ao chegar, porém, Bentinho encontra apenas seu
cadáver.
Ainda atônito, Bentinho vê José Dias no local, a quem passa a acusar da
morte da amiga, mas fica perplexo ao avistar Capitu que, de costas, parece voar
dentro de um feixe de luz projetado na praia por uma espécie de disco que plana.
É dentro desse „disco‟ que Bentinho descobre que a esposa e Escobar são
aquepalos, extraterrestres com características de peixes, descendentes do povo que
habitava uma lua de Sirion. Nascidos na Terra, ambos fazem parte da vigésima
geração de híbridos entre as duas espécies. Nosso planeta, porém, foi descoberto (e
toda a vida nele „gerada‟) pelos anunaques, outra espécie extraterrestre que lembra
a forma de lagartos. Os anunaques, por sua vez, se alimentam de energia gerada
por emoções negativas e, por isso, fixaram no código genético da humanidade a
predisposição eterna para o conflito. Ajudando os anunaques a „controlar‟ a Terra e
seus habitantes estão andróides, como o próprio José Dias.
A civilização mais antiga e respeitada do universo, conhecida como
Legislatura, decidiu que a Terra poderia ser habitada por anunaques, aquepalos e
humanos desde que os dois primeiros nunca declarassem guerra sobre a superfície
do planeta ou expusessem suas existências.
Um ataque à nave dos aquepalos tem início, Escobar é atingido por José Dias
e, quando parece certo que o andróide vai matar Capitu, um membro da Legislatura
surge, dizendo que os dois povos quebraram as determinações e que, por isso,
nenhum deles vai tutelar os humanos. Poderão, no máximo, observar a evolução da
raça humana por 142 anos, para que ao fim desse período, a trégua termine e a
Legislatura decida o que fazer. A emblemática figura da Legislatura é ninguém
menos que tia Justina.
Ainda que não esteja bem certo sobre o ocorrido, Bentinho, ao mesmo tempo
em que se emociona com a certeza de que Ezequiel é mesmo seu filho, fica
desolado ao entender que foi manipulado desde seu nascimento para que se
13
sentisse atraído por Capitu, assim como ela por ele. Afinal, os aquepalos,
silenciosamente, „escolhiam‟ os „melhores‟ humanos para com eles se reproduzirem.
Capitu deseja boa-sorte a Bentinho e depois de um lapso de tempo o
protagonista se vê novamente na praia. De volta à sua casa, descobre que Capitu e
Ezequiel foram embora, assim como Sancha, Escobar e a filha deles.
Muitos anos se passam até que Ezequiel bata a porta do pai. Ele diz estar de
partida para o planeta Abzu, a terra natal dos aquepalos, onde já está Capitu, e
convida Bentinho a juntar-se a eles. O protagonista recusa e dias depois recebe um
postal do filho pedindo para que ele sempre se lembre deles ao olhar para o céu.
Bentinho guarda o postal dentro da Bíblia e vê sua „casmurrice‟ crescer.
Neste ponto da trama, porém, Bentinho, que sempre „conversa‟ com seu
leitor, sente saudades de seu passado e decide reler o postal. Porém, não encontra
sua Bíblia, mas, no lugar dela, um tratado de psiquiatria do Dr. Emil Kraepelin, que
sugere estudos sobre esquizofrenia. Dentro do livro não há um postal, mas um
bilhete assinado por „E.‟ que sugere que o pai busque ajuda antes que seja tarde
demais.
No Epílogo, nos dias atuais, o texto acompanha um médico (Simão
Bacamarte) visitando os quartos de um hospital psiquiátrico num dia chuvoso. A
proximidade com o Natal é conhecida por gerar reações imprevisíveis em seus
pacientes, entre os quais está um conhecido crítico literário especialista na obra de
Machado de Assis, de nome Felipe Cadique. Exaltado ao extremo, o homem grita ao
médico que trata-se do final da trégua e que alguém deve avisar a Legislatura para
interceder, pois da última vez que „eles‟ agiram, destruíram sua vida. O médico
prepara a sedação do paciente enquanto pensa no diagnóstico de Cadique, traído
pela esposa com seu melhor amigo e que justamente pela proximidade com a trama
do clássico „Dom Casmurro‟ acabou por se identificar com Bentinho, acreditando
porém que alienígenas faziam parte da história.
14
Com o paciente já medicado, Bacamarte faz anotações no prontuário (trata-se
de 21/12/2012) e reflete sobre como não gosta de dias chuvosos, pois as guelras em
seus ombros latejam quando o clima está assim.
Apesar de contar, ao menos como plano de fundo, a mesma história do
clássico Dom Casmurro, as adições feitas na trama fazem de Dom Casmurro e os
Discos Voadores uma história bastante diferente da de origem. Além da óbvia
influência da ficção científica e dos caminhos da literatura fantástica, a
intertextualidade com a cultura pop e mesmo com outros títulos ajudam a dar à
história uma proposta completamente diferente.
Entre algumas citações que remetem a elementos da cultura pop estão frases
como “o que era tecnologia, e não magia”, refletindo um trecho de pensamento do
protagonista sobre algumas palavras ditas por Capitu (e que, na vida real, remetem
ao slogan de um aparelho de ginástica passiva) e “a verdade está lá fora”, também
como um diálogo concebido por Bentinho e Escobar (conhecida na cultura pop como
a epígrafe do seriado televisivo Arquivo X). Há ainda um capítulo de nome “Vida
longa e próspera”, frase essa característica do personagem Sr. Spock, de Jornada
nas Estrelas.
Outro trecho da trama traz uma afirmação jocosa de que o narrador do livro
está vivo, “porque como se sabe, mortos ainda não podem escrever memórias”,
brincando exatamente com outro clássico machadiano, Memórias Póstumas de Brás
Cubas. Há também a citação nítida a outra trama do autor, com o personagem
Simão Bacamarte, o médico do hospício que se apresenta no final da trama.
O nascimento dos mashups
Apesar de a ideia não ser exatamente nova – o mundo da música, do cinema
e da arte já tiveram movimentos semelhantes – a junção de dois universos
diferentes dentro de um mesmo „produto‟ ficou ao alcance do público com a
15
popularização da internet. Atualmente, é extremamente comum encontrar vídeos em
que duas histórias diferentes se unem a fim de mostrar uma nova, ou mesmo reedições de materiais que já existem capazes de mudar completamente o rumo de
uma trama.
Foi uma pequena editora da Filadélfia, nos Estados Unidos, a Quirk Books, a
primeira a apostar na publicação de um mashup, em abril de 2009. A ideia nasceu
de uma brincadeira – „e se a obra de Jane Austen encontrasse zumbis?‟.
A
sugestão porém, deu certo e hoje o livro, além de números expressivos de vendas
(mais de um milhão de cópias vendidas e tradução para 20 idiomas), tornou-se
roteiro para um filme norte-americano, Pride and Prejudice and Zombies, que está
em fase de desenvolvimento e deve ser lançado em 2013.
A concepção dos mashups (que não foi visualizada de início, mas sim depois,
quando os livros do gênero passaram a se multiplicar) foi a de trazer a novos leitores
a possibilidade de conhecerem clássicos da literatura, ou personagens importantes
da história, com uma linguagem mais nova, compatível com a realidade do mundo
atual, que tem na internet uma de suas principais ferramentas de comunicação.
Tratava-se de uma opção para apresentar importantes trabalhos sob um prisma
menos sisudo, de certa forma trazendo leitores que normalmente não teriam a
„coragem‟ de se aventurar em textos consagrados para o âmago das histórias
contadas em outros tempos. Ben H. Winters, autor de Razão, Sensibilidade e
Monstros Marinhos, define a elaboração de seu próprio projeto como “transformar
uma coisa antiga em nova”3.
O „fenômeno‟ chegou ao Brasil por intermédio da Editora LeYa, por seu selo
Lua de Papel. Em nosso país, porém, os títulos foram, de certa forma,
“encomendados”. “Quando anunciaram Orgulho e Preconceito e Zumbis no Estados
Unidos, percebi que poderia adaptar a ideia para os nossos clássicos” conta Pedro
3
A entrevista completa do autor está disponível em http://thetyee.ca/News/2010/02/19/MashUp/.
Acesso em 02 de janeiro de 2012.
16
Almeida, editor da Lua de Papel. ”Revisitando-os, poderia fazer muita gente que os
leu por pressão escolar saborear as histórias, agora sem a linguagem da época”4.
O termo mashup ainda é bastante raro de figurar em dicionários em língua
inglesa e portuguesa, mas aparece no Dictionary Reference5 como um substantivo
com duas definições:
1. Music, Slang . a recording that combines vocal and instrumental
tracks from two or more recordings.
2. Slang . a creative combination or mixing of content from different
sources: movie mashups; a Web mash-up that overlays digital maps with
crime statistics.
Por definição, portanto, o termo em inglês, usado da mesma forma no Brasil,
remete a combinações criativas com conteúdos de diversas fontes.
A fim de concretizar a ideia, a editora LeYa convidou jovens autores para
misturar romances com personagens fantásticos, incrementando também as tramas
com humor. Assim nasceram os títulos da coleção Clássicos Fantásticos.
Atualmente, podem se considerar frutos desse novo gênero os livros
Abraham Lincoln: Vampire Hunter; Sense and Sensibility and Sea Monsters (ambos
traduzidos para o português pela editora Intrínseca); Memórias Desmortas de Brás
Cubas; Jane Slayre: The Literary Classic with a Blood-Sucking Twist; Mr. Darcy,
Vampyre; Android Karenina; Little Women and Werewolfes; Queen Victoria: Demon
Hunter; Romeo & Juliet & Vampires; The War of the Worlds: H.G. Well‟s Classic Plus
Blood, Guts and Zombies; Wuthering Bites; The Meowmorphosis e Mansfield Park
and Mummies: Monster Mayhem, Matrimony, Ancient Curses, True Love and Other
Dire Delights, entre outros.
4
A entrevista completa do editor da empresa está disponível em
http://luadepapel.leya.com.br/?cat=140. Acesso em 26 de dezembro de 2011.
5
Baseado no Random House Dictionary, © Random House, Inc. 2012.
17
Gêneros textuais e literários
Luiz Antônio Marcuschi dedica seu trabalho “Gêneros textuais: definição e
funcionalidade”6 à compreensão da ideia dos gêneros textuais, ferramentas essas
que “contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia”.
Maleáveis, esses eventos textuais são os meios que usamos, já inconscientemente,
para diferenciar o tipo de comunicação expresso nos mais diferentes momentos da
vida.
Canal, estilo, conteúdo, composição e função são os itens determinantes da
escolha de um gênero, seja ele um telefonema, uma oração religiosa, um cardápio,
uma resenha ou um trabalho de conclusão de curso, entre diversos outros. Os
romances impressos, portanto, compõem um dos diversos gêneros textuais
possíveis dentro da dinâmica da comunicação cultural.
Entendido o romance como uma possibilidade de gênero textual, cabe
observar a qual “categoria” de texto sua trama faz parte.
Segundo Angélica Soares em Gêneros Literários, a classificação de textos de
literatura conforme seu estilo – tanto no que se refere a como narrar assim como o
tipo de história contada – remonta, ao menos no Ocidente, a Platão, Aristóteles e
outros nomes da Antiguidade.
A autora acredita que o entendimento do termo fica mais claro quando se
disseca a palavra. “... gênero (do latim genus-eris) significa tempo de nascimento,
origem, classe, espécie, geração.” Nota-se assim que o processo natural sempre foi
o de “filiar cada obra literária a uma classe ou espécie; ou ainda mostrar como certo
tempo de nascimento e certa origem geram uma nova modalidade literária”.
Essa caracterização foi se alterando conforme a passagem do tempo. “Em
defesa de uma universalidade da literatura, muitos teóricos chegam mesmo a
6
In: DIONÍSIO, A. P, MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. Gêneros textuais & Ensino. Rio de Janeiro,
RJ: Lucerna, 2002.
18
considerar o gênero como categoria imutável e a valorizar a obra pela sua
obediência a leis fixas de estruturação, pela sua „pureza‟. Enquanto outros, em nome
da liberdade criadora de que deve resultar o trabalho artístico, defendem a mistura
dos gêneros, procurando mostrar que cada obra apresenta diferentes combinações
de características dos diversos gêneros.”
A fim de situar o termo na história da literatura, Soares traça no mesmo título
um breve resumo sobre como o termo foi sendo visto através dos tempos e dos
pensadores, aqui ainda mais condensado.
A primeira referência ocidental à classificação literária vem de Platão, no livro
III da República (394 a.C.). Para ele, a comédia e a tragédia se constroem
inteiramente por imitação, os ditirambos apenas pela exposição do poeta e a
epopeia pela combinação desses dois processos. Já Aristóteles apresenta na
Poética uma nova percepção da mímesis artística (algo como a representação da
natureza), em que a diferenciação formal dos gêneros está intimamente ligada à
preocupação com o seu conteúdo.
Em Epistulae ad Pisones, Horácio ressalta a questão da adequação entre o
assunto escolhido pelo poeta e o ritmo. Pela unidade de tom não era admissível que
se exprimisse, por exemplo, um tema cômico no metro próprio da tragédia. Até
então, podemos deduzir, não havia a mais remota possibilidade de existir um gênero
híbrido, que misturasse duas classificações já existentes.
Dante Alighieri, em sua famosa carta a Cangrande Della Scala, um mecenas
de quem foi um dos protegidos, teria classificado os estilos em nobre (epopeia e
tragédia), médio (comédia) e humilde (elegia). De forma geral, o conceito é
reafirmado por Nicolas Boileau-Despréaux em sua Arte Poética.
O século XVI toma os gregos antigos como modelos ideais, em todas as
instâncias. Nasce assim uma concepção imutável dos gêneros. No século seguinte,
registra-se a „Querela dos antigos e modernos‟, em que os chamados modernos
posicionam-se a favor das formas literárias inovadoras, que melhor representariam
19
as mudanças de cada época, em contraste com os chamados antigos, que
continuavam a defender as regras greco-romanas.
É apenas na segunda metade do século XVIII - com a ideia de que as
mudanças no mundo podem ser vistas por seu reflexo nas artes - que a sugestão da
existência da variabilidade dos gêneros ganha força maior, principalmente devido ao
movimento pré-romântico alemão „Sturm und Drang‟. A partir daí, admite-se a
individualidade do poeta e sua autonomia de criar uma obra própria e individual, o
que inviabiliza por si só qualquer tipo de classificação. O “respeito” à essa liberdade
de criação permanece nos românticos, que aceitam a existência dos gêneros e cujas
teorias insurgem-se contra as regras clássicas e contra a redução do conceito de
mímesis à mera imitação de modelos defendida pelos clássicos.
Uma das propostas interessante da época foi a do prefácio de Cromwell
(1827), de Victor Hugo, em que se vê a defesa do hibridismo de gêneros, com base
na observação óbvia (mas ainda inexistente no pensamento corrente) de que na
vida se misturam o belo e o feio, o riso e a dor, o grotesco e o sublime, sendo no
mínimo artificial separar-se a tragédia da comédia.
Na segunda metade do século XX, o crítico e professor universitário francês
Brunetière traz a ciência para a discussão e defende a ideia de que a diferenciação
e a evolução dos gêneros literários se dão historicamente, como nas espécies
naturais, determinadas por fatores como herança, condições sociais, etc. Segundo
seu raciocínio, a tragédia clássica teria desaparecido ante o drama romântico, mais
forte. Como as substâncias vivas, o gênero nasceria, cresceria, alcançaria sua
perfeição e declinaria, para, em seguida, morrer. Uma de suas posições
interessantes dava conta de que os gêneros existiam independentemente de
criações literárias. Brunetière foi bastante contestado por Benedetto Croce, filósofo e
esteta italiano.
Na mesma época, Tyniavov apoia a ideia de gênero como um fenômeno
dinâmico, em incessante mudança, pois a literatura está em constante função
histórica. Tomachevski ressalta que é impossível estabelecer uma classificação
20
lógica ou fechada de gêneros, porque sua dimensão possibilita que os mesmos
procedimentos levem a diferentes resultados em diferentes épocas.
Em A questão dos gêneros7, Luiz Costa Lima (1983) menciona o observação
de Bakhtin sobre o fato de que tanto a expectativa quanto a reação do leitor à
informação quanto o próprio recorte da realidade feito pela obra funcionariam como
“filtros”, os quais determinariam as variações de gênero. Lima, ainda traduzindo o
pensamento de Bakhtin, afirma que os gêneros apresentariam mudanças, em
sintonia com o sistema de literatura, conjuntura social e os valores de cada cultura.
Essa união proposta entre a caracterização formal e social corrobora a ideia
de que o gênero de uma obra literária não pode ser definido apenas pelas
semelhanças linguísticas com obras já existentes.
Uma brincadeira sem compromisso?
Já que os estudiosos também parecem ter compreendido que os gêneros
podem se “misturar”, acabou-se a dúvida: títulos que colocam elementos fantásticos
em histórias já conhecidas são paródias, apropriações, brincadeiras sem
compromisso com a obra, feitas apenas para entreter o leitor, certo? Na verdade,
não. Apesar de em alguns aspectos os conceitos fazerem coro, chamar os mashups
de paródias ou apropriações não lhes dá o devido crédito por sua originalidade.
Para Sant‟Anna (2007), a paródia é um efeito de linguagem que vem se
tornando cada vez mais presente nas obras contemporâneas, principalmente por
seus aspectos de “modernidade”. O autor, porém, aproxima tanto o conceito de
“paródia” quanto o de “apropriação” à decadência. Para ele, desde os movimentos
renovadores da arte ocidental, como o Futurismo (1906) e o Dadaísmo (1916), notase que a paródia é um efeito sintomático, sendo que “sua frequência testemunha
7
LIMA, Luiz Costa, apud SOARES, Angélica. A questão dos gêneros. In: Teoria da Literatura
em suas fontes. 2.ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983. P. 237-74
21
que a arte contemporânea se compraz num exercício de linguagem onde a
linguagem se dobra sobre si mesma num jogo de espelhos”. 8 Surgida no século
XVII, paródia significa uma ode que desvirtua o sentido de outra ode. Originalmente
o termo, grego, significava uma canção que deveria ser cantada ao lado de outra,
como um contracanto9.
Independentemente de como o conceito tenha surgido ou como desde então
tenha sido considerado pelos estudiosos, é coerente afirmar que uma paródia só
existe a partir da bagagem cultural trazida pelo leitor quando defronte a ela. “Se o
leitor não tem informação a respeito do texto de Gonçalves Dias “A canção do
exílio”, achará no texto de Oswald de Andrade “Canto de regresso à pátria” apenas
uma série de disparates.”10
Dom Casmurro e os Discos Voadores – assim como outros títulos do novo
gênero -, porém, não utiliza a história original de Machado de Assis como terreno
para fazer troça de seu estilo ou incluir ali conteúdo mais “atual”. Conforme o
descritivo da trama mostrado anteriormente, o livro oferece uma experiência de
leitura que vai muito além de uma paródia, com toda uma nova trama e
intertextualidade com conceitos populares dos dias correntes que transcende o
aspecto de “contracanto” e brincadeira.
O termo “apropriação” teve entrada recente na crítica literária. A técnica
chegou à literatura através das artes plásticas, principalmente pelas experiências
dadaístas, a partir de 1916. É como uma “colagem”: materiais diversos do cotidiano
são colocados juntos e, de alguma forma, apresentados como um objeto artístico
(como o urinol de louça de Marcel Duchamp que foi exposto como obra de arte em
1917). Esse “deslocamento” de um item de seu ambiente natural causa um
estranhamento proposital, que dá origem à representação da arte.11
8
9
SANT‟ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & cia. São Paulo, Editora Ática, 2007, p. 7
A origem “musical” do termo é registrada por Joseph T. Shipley em Dictionary of World Literature,
de 1972.
10
Idem, p. 26
11
Ibidem, p. 43
22
Novamente, apesar de encontrar ecos de sua caracterização no termo em
questão, não se pode dizer que Dom Casmurro e os Discos Voadores, assim como
as demais publicações, trate apenas de “colagem” de diversos temas dentro de um
cenário pré-concebido, que, por acaso, é um clássico da literatura. Por mais que a
história possa causar um estranhamento, não é apenas esse deslocamento de
personagem-cenário-história que compõe a trama. Apesar de insólito, o texto tem a
coerência de uma história com início, meio e fim, e não meramente junta universos
distintos aleatoriamente.
Explorando a realidade atual, Sant‟Anna (2007, p. 47) afirma que:
Com efeito, existe uma relação entre o surgimento da técnica de apropriação e aquilo
que Walter Benjamin chamou de “declínio da aura” na obra de arte. Ou seja, desde que
nossa sociedade entrou na era industrial e que se tornou fácil reproduzir um original através
de foto, disco, cinema, xerox, pôsteres, etc, houve uma alteração no conceito da própria obra
de arte que deixou de ser aquele objeto único e insubstituível. Num universo onde as coisas
podem ser reproduzidas e podem estar ao alcance de todos, a relação mítica com a obra se
modifica. Haveria, pode-se dizer, uma relação entre a apropriação e a sociedade de
consumo. Nesta sociedade, os objetos assumiram o lugar dos sujeitos. O sujeito não é mais
o centro. Indivíduos e objetos são descartáveis.
Um exemplo tirado do mundo da moda por Sant‟Anna pode elucidar ainda
mais a ideia: nos anos 1960, quando os hippies tiraram dos baús de seus avós os
casacos, saias, calças e chapéus para usá-los no cotidiano, estavam praticando um
gesto de apropriação, assim como se apropriaram das vestimentas de indígenas,
hindus e negros. Misturavam-se todos os estilos e épocas num tipo de moda solta e
criativa. Cada indivíduo decretava seu próprio modo de se vestir, fazendo as
combinações mais insólitas. Depois de algum tempo, chegou-se a uma média que
caracterizou o estilo hippie. Nesse momento, o que era uma invenção parodística
pessoal converteu-se em paráfrase, com a produção industrial do que anteriormente
era artesanal.
Como conclui Sant‟Anna, cada época ou manifestação acaba por redefinir o
estético e incorpora novas maneiras de se ler o mundo. Na medida em que a teoria
23
e a prática da escrita evoluem, evolui também o conceito público do que seja
literatura. Ainda nesses termos, o autor lembra que por muito tempo o estudo da
literatura comparada foi, sobretudo, um estudo de identidades e semelhanças.
Procurava-se aproximar um autor de outro que teria sido a sua origem. Criava-se
assim uma hegemonia de uma obra sobre outra, sugerindo uma constante
dependência que ignorava as diferenças entre os títulos e empobrecia o valor da
criatividade dos escritores, sobretudo os contemporâneos, por simplesmente terem
concluído suas obras anos depois de suas ditas fontes de inspiração.
Mashups não são adaptações
Outra definição que a primeira vista pode parecer ser a coerente com os
mashups é a de tratar-se de uma adaptação. Novamente, apesar de ter algumas
características semelhantes a esse conceito, ele não pode ser considerado, sozinho,
como significado exato do termo.
No prefácio de Tradução e adaptação, de Lauro Maia Amorim, a professora
Cristina Carneiro Rodrigues reitera a ideia de que traduções e adaptações envolvem
transformação e são construídas de acordo com certas convenções (e restrições)
que dependem do tempo e do lugar em que são realizadas, assim como do público a
quem se destinam.
“No passado, assim como no presente, aqueles que produziam reescrituras
criaram imagens de um escritor, de uma obra, de um período, de um gênero, e,
algumas vezes, de toda uma literatura. Tais imagens existiriam ao lado das
realidades com as quais competiam; no entanto, as imagens sempre tenderam a
atingir mais pessoas do que as realidades correspondentes e, seguramente,
continuam a fazê-lo.”12 Assim, o termo imagem seria resultado de um processo de
12
LEFEVERE A., apud AMORIM, Lauro Maia. 2005, p. 23
24
simbolização que não se reduz, simplesmente, a uma “cópia” dos objetos que
representa.13
Como aponta Lefevere 14 , os profissionais que produzem reescrituras “são
responsáveis pela recepção geral e pela sobrevivência de obras literárias entre os
leitores não profissionais, que constituem a maioria dos leitores em nossa cultura
global”.
A caracterização de uma adaptação remete novamente à conceituação de
apropriação, uma vez que não há como impedir que aquilo que o autor do textofonte tenha produzido seja, de alguma forma, “tomado para si” pelos leitores, pela
simples e inerente interpretação de seus conteúdos.
As “histórias recontadas” contam com uma dose extra de legitimidade dada
por leitores e críticos. O termo “adaptação”, quando explícito em uma obra, cria a
ideia de que o que se tem em mãos é uma leitura da obra original, orientada para
um determinado público, sugerindo com honestidade que o conteúdo ali presente foi
alterado explicitamente para se atender a um objetivo. 15
Para Johnson, em Translation and Adaptation, a adaptação permite, inclusive,
uma atualização do texto de um passado remoto para leitores contemporâneos,
sendo, assim, mais flexível com modificações, acréscimos e subtrações ditados pelo
formato-alvo. 16
Johnson considera como “processos criativos” a condensação das passagens
mais relevantes da narrativa, a expansão ou focalização de aspectos específicos, a
rejeição ou edição de redundâncias, entre outros. Nota-se assim que, para o autor,
13
AMORIM, Lauro Maia. Tradução e Adaptação: Encruzilhadas da textualidade em Alice no País das
Maravilhas, de Lewis Carrol, e Kim, de Rudyard Kipling. São Paulo, Editora Unesp, 2005, p. 24
14
LEFEVERE A., apud AMORIM, Lauro Maia. 2005, p. 27
15
Ibidem, p. 41
16
JOHNSON, M. A.. apud AMORIM, Lauro Maia. 2005, p. 78
25
“condensação ou rejeição não são procedimentos „negativos‟, sendo, ao contrário,
constitutivos do processo „criativo‟”.17
Gambier, no texto “Adaptation: une ambiguité à interroguer”, amplia o
assunto, sugerindo que são os receptores visados (sejam eles os espectadores,
leitores ou consumidores) os verdadeiros motivadores dos “ajustes” promovidos nas
adaptações. Segundo ele, haveria três tipos de adaptação, sendo uma delas – a que
nos interessa para o desenrolar da ideia - a adaptação como o ato de “fazer uma
obra original a partir de uma outra, produzida ou não no mesmo sistema de signos”,
chamada de “tradução intersemiótica” de Jakobson”, como um poema transformado
em música, um romance adaptado para o cinema, a transposição de Charles
Dickens ou do Corão para as histórias em quadrinhos. 18
Gambier considera que essas diferentes reescrituras permitiriam analisar o
quanto a “imitação pretendida é enriquecimento, invenção, modificação, forçandonos, assim, a nos interrogarmos sobre as interferências entre plágio, pasticho,
paródia e adaptação”. 19
Essa última afirmação é fundamental na constituição da ideia de que os
mashups são um novo gênero literário. Se a adaptação parte de um texto préconcebido para um novo, visando apenas alterações que o deixem adequado para
seu meio ou público-final, não se pode classificar livros como o que serve de base
para este trabalho como uma adaptação, a partir do momento em que se entende
que a mudança completa do teor da trama aproveita-se muito pouco do texto original
(Dom Casmurro). As omissões, adições e alterações citadas como coerentes no
processo adaptativo são manifestadas na obra exemplificada (seja em seu título, em
seu fio condutor inicial e mesmo na personalidade de seus personagens), mas
terminam em si próprias, uma vez que as questões levantadas na trama de
Machado de Assis ganham um contorno completamente novo com a adição dos
17
18
19
JOHNSON, M. A. apud AMORIM, Lauro Maia. 2005, p. 78
GAMBIER, Y. apud AMORIM, Lauro Maia. 2005, p. 98-101
GAMBIER, Y. apud AMORIM, Lauro Maia. 2005, p. 98-101
26
elementos de literatura fantástica, transformando por completo a história, ao mesmo
tempo em que há a presença de paródia e intertextualidade com cultura pop atual.
Cabe aqui um pequeno comentário sobre a marginalização de qualquer
material adaptado. Frequentemente visto como pobre, feito para „não quer pensar‟
ou outros termos depreciativos, as adaptações são tema de debates acalorados
entre os profissionais que não acreditam que uma adaptação bem feita possa ser
uma boa alternativa para que o leitor se interesse pela obra que lhe deu origem.
Fazem coro às características positivas das obras adaptadas nomes como João Luís
Ceccantini e Carlos Heitor Cony20. “A cada adaptação bem realizada de um clássico
(nas várias linguagens) é grande o número de leitores que se dirige aos textos
originais”21.
Para o autor Ítalo Calvino, em Por que ler os clássicos, a impaciência e a falta
de maturidade podem fazer com que a leitura de obras renomadas torne-se algo
torturante para os mais novos 22 . O questionamento aqui é simples: qual a
insegurança em admitir que seja talvez uma adaptação a responsável por fazer com
que um jovem leitor se interesse por um clássico que só leria por obrigação da
escola? O fato de uma trama se apresentar de forma mais próxima do cotidiano e da
bagagem cultural desse leitor faz dela desprezível? Mesmo que seja ela a geradora
da curiosidade de conhecer a obra original?
Conceitos da literatura fantástica
20
Cony, que já adaptou diversas obras de consagrados autores brasileiros, fala sobre o tema no
texto “As adaptações dos clássicos e a voz do Senhor”, entrevista concedida ao caderno Ilustrada do
jornal Folha de S.Paulo em 22 de junho de 2001 p. E12.
21
CECCANTINI, João Luís Tápias. A adaptação dos clássicos. A roda da leitura. Sonia Aparecida
Lopes Benites e Rony Farto Pereira (Org.). São Paulo: Cultura Acadêmica; Assis: ANEP, 2004.
22
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras,
2001
27
Flávio García, em A banalização do insólito: questões de gênero literário em
literaturas da lusofonia – mecanismos de construção narrativa, sugere que:
“Pode-se, portanto, entender que um determinado grupo ou conjunto de narrativas
ficcionais, que têm em comum a presença de eventos insólitos, e esses eventos sejam não
ocasionais e funcionem como seu móvel, constitua um gênero”23.
Apesar de o autor usar a afirmação para corroborar sua explanação sobre o
insólito dentro da literatura, a ideia também cabe para a definição dos mashups
como um novo gênero.
Esses “eventos insólitos”, fora do padrão do esperado no ideal realista, por
sua vez, ajudaram a de certa forma delimitar outros gêneros já estudados pela teoria
literária, como o Maravilhoso - clássico ou medieval -, o Fantástico - com o
Sobrenatural e o Estranho -, o Realismo Fantástico e o Absurdo 24 . Uma breve
explanação de cada um deles se faz necessária para corroborar a ideia de que os
mashups contêm traços dessas origens, ao mesmo tempo em que não podem ser
limitado, simplesmente, a nenhuma delas.
É importante ter em mente que a percepção das ocorrências insólitas se dá
em função do momento histórico vivido por autor e público de cada obra. Um
exemplo claro disso é imaginar que quando foram escritas (a partir de meados da
década de 1860), as obras de Julio Verne podiam ser consideradas frutos totais da
imaginação inventiva do autor, ao passo que hoje é possível ver ali diversos esboços
de avanços da ciência e da tecnologia que foram surgindo com o passar dos anos e
fazem parte de nosso cotidiano no século XXI. Se naquela época imaginar uma
espécie de navio-cápsula que se movimentaria por baixo do nível do mar era uma
fantasia que sequer cabia no pensamento corrente, hoje basta o uso da palavra
“submarino” para que qualquer pessoa conceba em sua mente a mesma ideia.
23
GARCÍA, Flavio (org.) A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de
construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007, p. 18
24
Ibidem, p. 12
28
O “Maravilhoso”, de certa forma sempre presente na história da literatura, tem
seu momento-chave na época Medieval, quando o homem, ainda dominado por
perspectivas religiosas que dominavam sua vida, mostrava aceitação a todas as
ocorrências insólitas do dia-a-dia. Traduzido em texto, porém, esses “fenômenos”
eram experimentados apenas pelo leitor, mas não pelos personagens das tramas
criadas.25
O “Estranho” começa a surgir no século XVIII, quando o Iluminismo sugere a
busca de explicações racionais para todas as coisas. Nos textos, a indecisão entre
aceitação ou recusa do acontecimento insólito termina antes do fim da narrativa26.
O “Fantástico” está nos limites do “Maravilhoso” e do “Estranho” e expõe a
dualidade do pensamento humano existente entre os séculos XIV e XIX, quando o
homem se mostra ainda pouco capaz de distinguir o que pertence ao campo da
razão e ao da fé27.
O “Realismo Maravilhoso” surge no final do século XIX, à medida que o
conceito de verdade passava a ser relativizado e dá lugar às diferentes opiniões de
cada indivíduo. Nos textos, há convivência harmoniosa entre personagens e
cenários fantásticos28.
O Bentinho de Dom Casmurro e os Discos Voadores pode facilmente ser
“enquadrado” como um personagem com características do “Fantástico”, por
apresentar durante toda a trama sua dúvida sobre os acontecimentos que lhe
rodeiam. A forma como a história se desenrola, e mesmo o comportamento de
outros personagens, porém, não poderiam ser classificados da mesma forma.
Levando-se em conta o conceito de “binômio fantástico”, proposto por Gianni
Rodari (1982) em sua Gramática da Fantasia, é necessária uma certa distância
25
GARCÍA, Flavio (org.) A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de
construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007, p. 47
26
Ibidem, p. 70
27
Ibidem, p. 70
28
ibidem, p. 71
29
entre duas palavras, uma sendo suficientemente estranha à outra e sua
aproximação discretamente insólita, para que a imaginação se veja obrigada a
instituir um parentesco entre elas, para criar um conjunto em que ambas possam
conviver. Pode-se dizer que esse aspecto “nonsense” de junção de ideias seja o
esqueleto do livro que serve de base para este trabalho e também dos outros títulos
que compõem o catálogo dos mashups.
Rodari continua o raciocínio ligando esse mesmo clima de falta de lógica à
inversão, ou a uma trama que conte o “depois” do final de uma história já
previamente conhecida. Ambas as possibilidades podem ser consideradas,
novamente, como paródias. A “fórmula” funcionaria especialmente bem com
crianças, que, pelo “erro” comparando aquilo que conhecem com o que estão lendo,
acham graça29.
Como exemplos dessas junções, o autor sugere Pinóquio na história de
Branca de Neve ou Cinderela casando com Barba Azul. “Submetidas a este
tratamento, mesmo as imagens mais comuns parecem reviver, ressurgir, oferecendo
flores e frutos inéditos. O híbrido também tem o seu fascínio.”30 Apesar de chegar
bastante perto do que se entende por mashup, Rodari não distancia seus exemplos
e convicções da comédia, ressaltando, em outro momento, que é um mecanismo
produtivo das histórias cômicas a ”inserção violenta de um personagem banal em
um contexto extraordinário”.31
Mas como definir, então, uma história que não tem apenas elementos
fantásticos em sua composição, não é simplesmente cômica, tampouco feita para
um público de pouca idade?
Ceccantini (2011), novamente, é uma das poucas vozes atuais a se
pronunciar sobre um tema em voga nos círculos de educadores há alguns anos.
29
Apesar de usar o público infantil como exemplo, a fórmula também encontra eco no
comportamento dos adultos. A maior diferença aqui, porém, seria que para o público mais velho, o
riso seria sarcástico, fruto puramente de uma dita superioridade com o tema proposto.
30
RODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. São Paulo, Summus Editorial, 1982, p. 58
31
Ibidem, p. 109
30
Citando o sucesso comercial da saga Harry Potter, comenta que isso fez com que
caíssem por terra alguns “mitos”, como o que apregoa “... que o fantástico
interessa
apenas aos leitores bem jovens, não havendo
muito espaço no mercado para
temas que não os realistas”32.
A construção de conteúdos pela internet
O mito de que apenas crianças gostem de temas fantásticos pode ser
quebrado facilmente por qualquer pesquisador com acesso a internet, em questão
de segundos. Basta procurar no Google pelo termo para encontrar uma série de
sites, blogs e fóruns dedicados a esse tipo de literatura. Não são apenas leitores
bem jovens que estão por trás desses polos de informação sobre o tema.
Adolescentes, adultos e leitores mais maduros podem ser encontrados interagindo
uns com os outros em espaços assim sem dificuldades.
O fato de nos encontrarmos hoje na chamada era da informação, uma "nova
era em que a informação flui a velocidades surpreendentes e em grandes
quantidades, transformando profundamente a sociedade e a economia"33, permite
que qualquer pessoa com acesso à internet possa encontrar outras que tenham
opiniões sobre o mesmo tema, sejam elas idênticas ou divergentes das suas
próprias, num clicar de mouse.
A gigantesca quantidade de informações que passa pela world wide web
todos os dias, sobre os mais variados temas, permite uma troca de conhecimentos
tão imensa quanto disponível a quem tiver interesse.
Para Miranda (2000), “uma das contribuições mais extraordinárias da internet
é permitir que qualquer usuário, em caráter individual ou institucional, possa vir a ser
produtor, intermediário e usuário de conteúdos. E o alcance desses materiais é
32
CECCANTINI, João Luís. Literatura Infantil – A Narrativa. Disponível em:
http://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40360/3/01d17t09.pdf
33
TAKAHASHI, T. (Org.) Sociedade da informação no Brasil: livro verde, p.3
31
universal, resguardadas as barreiras linguísticas e tecnológicas do processo de
difusão”34.
A possibilidade de criação e “colagem” de elementos já existentes em novos
conteúdos sempre existiu, mas ganha contornos muito maiores com a internet. Cada
usuário, a sua maneira, pode fazer junções e dar vida a intertextualidades que antes
não seriam tão facilmente colocadas num mesmo cenário, dando origem à materiais
inéditos, por mais que seus “pedaços”, destrinchados, sejam amplamente
conhecidos.
O até então espectador (seja ele do longa-metragem, do seriado de TV, da
peça de teatro, do livro), aproveita-se dos elementos conhecidos e, como se fosse
um novo dono dele a partir do momento em que o domina, faz alterações
impensáveis para seus reais autores, criando um material “próprio”, diferente de
qualquer coisa já vista até então.
Bons exemplos dessa apropriação e posterior criação de novidades são os
autores do site Starz Bunnies35, que ficaram conhecidos na rede em 2010 ao fazer
versões de 30 segundos de clássicos do cinema estrelados por coelhos animados.
Outro bom exemplo é um vídeo criado para ser o trailer de divulgação de um
segundo filme “Titanic”36, feito com a edição de cenas tanto do próprio filme quanto
de outros da carreira do ator Leonardo DiCaprio e que dá a real impressão de se
tratar de uma propaganda verdadeira. Novos recortes de obras conhecidas também
são comuns na internet, criando, por exemplo, convincentes versões diferentes de
filmes conhecidos, como o que transforma um trailer de “A Fantástica Fábrica de
Chocolate” em um filme de terror37.
34
MIRANDA, A. Sociedade da informação: globalização, identidade cultural e conteúdos, p. 81,
disponível em http://revista.ibict.br/index.php/ciinf/article/view/257/224, acesso em 5 de fevereiro de
2012
35
Disponível em http://www.starz.com/promotions/bunnies/, acesso em 17 de fevereiro de 2012
36
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=-IpOmsO7OaY, acessado em 17 de fevereiro de
2012
37
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=o9Cby33ZR98&feature=related, acesso em 17 de
fevereiro de 2012
32
Fãs também passaram a ser autores de materiais que, por sua qualidade,
acabam sendo posteriormente apoiados pelos reais detentores dos direitos das
obras originais. O curta-metragem Street Fighter: Legacy38, por exemplo, foi criado
por Joey Ansah, admirador da série de jogos que, cansado de ver a franquia ficar
desgastada por filmes de qualidade duvidosa bancados pela Capcom, proprietária
da marca, decidiu chamar amigos e criar a sua própria versão de uma continuação
da trama. A repercussão do resultado foi excelente e, apesar de um longa-metragem
com a trama não estar nos planos, o diretor passou a ser a escolha óbvia quando
um novo roteiro for feito.
Muitas são também as opções de vídeos e músicas semelhantes em estilo
que podem ser encontradas no Youtube, mas seria ingenuidade pensar que esse
tipo de criação se limite apenas a materiais em vídeo ou áudio.
A avaliação de material audiovisual desse tipo é quase sempre positiva,
relacionada à imaginação fértil de seus criadores, e celebrada por sua capacidade
de improvisação, assim como genialidade pela “sacada”. Curiosamente, porém, ideia
semelhante no mundo da literatura, os mashups são vistos com desdém por
pessoas que não enxergam em suas linhas simplesmente um novo gênero, mas
insistem em definir que ali não há nada novo e muito menos proveitoso.
A visão conservadora e as críticas
Em Crítica Cultural: Teoria e Prática, Marcelo Coelho relembra a controvérsia
criada quando da publicação do artigo “Paranóia ou Mistificação?”, escrito em 1917
por Monteiro Lobato. O texto, uma crítica a uma exposição de Anita Malfatti antes
ainda da Semana de Arte Moderna, entrou para os anais dos estudos de jornalismo
como um dos melhores exemplos de como o pensamento conservador quanto à
novidades pode ser prejudicial até mesmo a um dos maiores nomes da literatura
brasileira.
38
Disponível em http://www.joeyansah.com/street-fighter-legacy, acesso em 10 de março de 2012
33
Apesar de opiniões divergirem a respeito de tudo o que se refere a arte (seja
ela qual for), conceitos por trás do texto de quase 100 anos de Lobato servem ainda
hoje como ponto de partida para discussões a respeito de como encaramos novas
manifestações artísticas.
Afirma Coelho: “... o método de julgar uma obra nova a partir de critérios
inalteráveis, já estabelecidos, anteriores e externos à própria obra”, assim como “a
avaliação de que vivemos um período de declínio, de decadência, de degeneração,
de doença cultural”, são alguns dos aspectos que fizeram com que o importante
autor brasileiro atacasse ferozmente um novo tipo de arte que surgia na ocasião.
O comportamento de Lobato na época pode ser comparado ao de Luís
Antônio Giron, na edição de 05 de outubro de 2010 na revista semanal Época39.
Independentemente do juízo de valor que se faça das obras em questão, o
posicionamento do jornalista é categórico: “Não quero soar indulgente demais com a
novíssima geração, mas guarde bem estes nomes: Jovane Nunes, Angélica Lopes,
Lúcio Manfredi e Natalia Klein. Esses rapazes e moças com idade média de 30 anos
são responsáveis por atacar, rapinar e destruir a memória literária brasileira.”
Qual a justificativa para tamanha animosidade no que se refere aos
mashups? Como este trabalho procura comprovar, o novo gênero é fruto lógico das
mudanças tecnológicas e na forma de produzir e distribuir conteúdo com a
institucionalização da internet na vida das pessoas. Independentemente do
julgamento de valor que seja feito sobre cada título, não se pode negar que esse
movimento (de apropriação, transformação e geração de material novo) chegou
“para ficar” na literatura mundial.
As discussões sobre os reais motivos que causam essa repulsa são vários.
Seria ela fruto do preconceito com autores novos? Poderia ser uma resposta
psicológica ao fato de que para muitos críticos os clássicos da literatura compõem
um ambiente que beira o sagrado, e que por isso mesmo, não deveria jamais ser
39
Disponível também em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,ERT177254-15230177254-3934,00.html, acesso em 17 de fevereiro de 2012
34
maculado? Existiria ela em mesmo teor se as obras fossem assinadas por nomes
consagrados do campo das letras? Impossível saber.
Contudo, se as adaptações, que há tantos séculos fazem parte do cotidiano
literário do mundo, ainda geram tanta controvérsia e são vistas com tanto desdém, é
possível prever que os mashups ainda sejam desconsiderados como novo gênero
por alguns anos.
Considerações finais
Da mesma forma que qualquer teórico ou estudioso contemporâneo sabe que
é impossível pensar o mundo sem considerar a importância da internet na realidade
atual, chega o momento de passar a compreender, respeitar e, principalmente,
aceitar que algumas situações jamais serão como antes dela. O nascimento dos
mashups como gênero literário é um desses itens.
As características do estilo - que não cabem em nenhuma outra definição já
estabelecida – são os principais argumentos para defender o nascimento de um
novo gênero.
A influência dos temas insólitos em todos os títulos de mashups, mesmo que
num primeiro momento seja vista como uma característica que pode banalizar o
gênero, também é o ponto chave sem o qual não se pode distanciar as criações dos
clássicos da literatura (dos quais tomam emprestadas referências), como também
interpretá-las como algo completamente novo.
Ainda no sentido de diferenciar o produto dos mashups dos clássicos, há de
se levar em conta a estrutura de linguagem menos cuidada que os novos textos têm
em comparação com seus antecessores. Apesar de alguns estilos serem
reproduzidos – como no caso de Dom Casmurro e Os Discos Voadores o autor que
conversa com o leitor - , o linguajar utilizado pelos autores dos mashups é bastante
diverso do dos clássicos, numa postura talvez um pouco debochada da própria obra.
35
Outro ponto interessante sobre essas novas produções se dá na duplicidade
de autores. Diferentemente de qualquer outra criação a partir de materiais já
existentes, os mashups sejam talvez um dos únicos “produtos finais” feitos na era da
internet - e da frequente apropriação indevida de trabalhos alheios - que credita os
escritores de seus “trabalhos de base” escancaradamente em suas capas. Assim, o
conteúdo se coloca, de forma bastante clara, como algo feito a partir de uma ideia já
existente.
Este trabalho não pretende glorificar ou humilhar nenhum dos títulos já
lançados dentro da proposta de transformar uma trama clássica da literatura em
uma nova história, contendo seres fantásticos que povoam a cultura pop. A ideia é
de prestar um serviço a educadores, críticos e interessados no sentido de exigir
respeito quanto a um novo estilo que está completamente de acordo com todas as
mudanças tecnológicas e sociais semeadas com a institucionalização da world wide
web.
36
Bibliografia
AMORIM, Lauro Maia. Tradução e Adaptação: Encruzilhadas da textualidade em
Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, e Kim, de Rudyard Kipling. São
Paulo, Editora Unesp, 2005.
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo, Editora Moderna, 1983.
CECCANTINI, João Luís. Literatura Infantil – A Narrativa. Disponível em:
http://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40360/3/01d17t09.pdf. Acesso em
07 de janeiro de 2012.
CECCANTINI, João Luis C. T. A adaptação dos clássicos. In: PEREIRA, Rony Farto,
BENITES, Sônia Aparecida Lopes. À roda da leitura: língua e literatura no jornal
Proleitura. São Paulo: Cultura Acadêmica; Assis: Anep, 2004. p. 84-89.
COELHO, Nelly Novaes. O processo de adaptação literária como forma de produção
de literatura infantil. Jornal do Alfabetizador, Porto Alegre, ano VIII, n. 44, p. 10-11,
1996.
COELHO, Marcelo. Crítica Cultural: Teoria e Prática. São Paulo, Publifolha, 2006.
GARCÍA, Flavio (org.) A banalização do insólito: questões de gênero literário –
mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.
LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira – História &
Histórias. São Paulo, Editora Ática, 2003.
MANFREDI, Lúcio & ASSIS, Machado de. Dom Casmurro e os Discos Voadores.
São Paulo, Lua de Papel, 2010.
37
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In:
DIONÍSIO, A. P, MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. Gêneros textuais & Ensino. Rio
de Janeiro, RJ: Lucerna, 2002.
MIRANDA, A. Sociedade da informação: globalização, identidade cultural e
conteúdos. Disponível em: http://www.dgz.org.br/fev08/Art_05.htm#R2. Acesso em:
05 de fevereiro de 2012.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo, Cultrix, 1978.
MONTOVANI, Melissa. Do The Literary Monster Mashup. Disponível em:
http://www.yabookshelf.com/2010/05/do-the-literary-monster-mashup/. Acesso em:
02 de janeiro de 2012.
NEWS SENTINEL. Quirk Books launched literary „mashup' genre with best-seller
„Pride
and
Prejudice
and
Zombies'.
Disponível
em:
http://www.news-
sentinel.com/apps/pbcs.dll/article?AID=/SE/20101017/LIVING/10170304. Acesso em
15 de dezembro de 2011.
RODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. São Paulo, Summus Editorial, 1982.
SANT‟ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. São Paulo, Editora
Ática, 2007.
SOARES, Angélica. Gêneros Literários. São Paulo, Editora Ática, 1989.
TAKAHASHI, T. (Org.) Sociedade da informação no Brasil: livro verde. Disponível
em: http://www.dgz.org.br/fev08/Art_05.htm#R2. Acesso em: 05 de fevereiro de
2012.
THE GUARDIAN. Pride and Prejudice and Zombies by Jane Austen and Seth
Grahame-Smith. Disponível em: http://www.guardian.co.uk/books/2009/dec/06/prideprejudice-zombies-grahame-smith. Acesso em 15 de dezembro de 2011
38
THE
NEW
YORK
TIMES.
Monster
Mashup.
Disponível
http://www.nytimes.com/interactive/2010/03/20/books/review/20sutton.html.
em:
Acesso
em 02 de janeiro de 2012.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo, Perspectiva,
2004.
Download

CENTRO UNIVERSITÁRIO FUNDAÇÃO SANTO ANDRÉ Heloísa