Fim.
Começo.
Para nós, o tempo começou a ter um novo sentido.
Assim que ela entrou, eu era qual um menino, tão alegre.
bilhete, eu não estaria aqui.”
“Demorei a vida toda para encontrá-lo. Se não fosse o seu
da vida que ainda me sobrava, foi:
o que ela estava dizendo. E o que ela disse e mudou o resto
frase ao contrário nessa minha vida, entendi perfeitamente
ali comigo e que eu, mesmo sem nunca ter escutado uma
tão velha quanto eu. O importante, todavia, é que ela estava
restou a menor dúvida de que era a menina Anne, agora
Assim que ela terminou a estranha língua ao contrário, não
ues etehlib, ue oãn airatse iuqa”.
“Ieromed a adiv adot arap ol-ártnocne. Es oãn essof o
Ela, então, disse:
olhos dela, cheios de lágrimas, e também chorei.
E não havia mais nada. Assim que terminei de ler, olhei para os
tragédia...
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Doce Anne, não vá à loja de relógios do seu pai, uma
palavras que mudaram a vida dela para sempre. Estava escrito:
muito tempo. Eram palavras inacabadas, segundo li, mas foram
e, junto, me mostrou um bilhete escrito por mim há muito,
entrar, ela me devolveu a fotografia que eu deixara na relojoaria
um sorriso tão maravilhoso quanto o que vi. E mais, antes de
senhora de olhos claros, no auge dos seus 67 anos, fosse abrir
qualquer um. Só não imaginava que, ao abrir a porta, uma
campainha. Na hora, achei que fosse um vizinho, o síndico,
limpava um dos relógios, que aconteceu. Alguém tocou a
extraordinária aconteça. E foi numa tarde dessas, enquanto eu
tempo quando está com 70 anos. A menos que alguma coisa
grande. Mas acho que a gente não se preocupa muito com o
por isso mesmo, o tempo que eu levava para ajeitar todos era
lugar de origem. Eu possuía um número vasto de relógios e,
pegava um a um, limpava, acertava a hora e recolocava em seu
a colecioná-los. Todos os dias, perto das cinco da tarde, eu
Desde que voltei do hospital e vi os relógios nas paredes, passei
por semana, dias alternados. Havia uma coisa nova, porém.
malfeita no bar da esquina e receber a diarista que ia uma vez
banco receber minha aposentadoria, comer alguma comida
acidente, ou seja, sozinho, eu ocupava meu tempo em ir ao
Sessenta dias depois, vivendo como vinha fazendo antes do
vida de velho, afinal, estava morta.
Eu não era casado. E a Anne que eu esperava nesta minha
evidente que estava enganado sobre a minha ingênua suposição.
perdera a minha fotografia. Não voltei. Pareceu-me, na hora,
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voltar lá, perguntar, averiguar, descobrir se, acaso, a mulher não
dez dias da visita feita à relojoaria, nada aconteceu. Pensei em
maior se manifestasse. Só que, para a minha decepção, após
Em casa, sozinho, passei dias esperando que, de fato, o sentido
Um sentido com nome, corpo e alma: Anne.
têm – mas minha vida, desde o acidente, ganhara novo rumo.
agarrar as lembranças de volta – um tesouro para quem não as
recordar coisas tristes, estava? Claro que era maravilhoso
marcou muito, eu sabia. Mas eu não estava em casa para
relógio de pulso do meu pai. Foi um dia triste, um tempo que me
envolto em tique-taques tantos, lembrei de quando peguei o
o sorriso grudado no rosto. Fechei a porta e fui me sentar. Ali,
aos montes? A gente tem cada mania! Vendo-os, continuei com
tinha a lembrança de ter tantos relógios. E por que eu os queria
nas paredes da minha sala, alguns relógios pendurados. Eu não
um sorriso. Silencioso, mas muito significativo. À minha frente,
engraçado. A primeira coisa que fiz ao abrir a porta foi soltar
Não obstante estes sentimentos, voltar para casa foi
Foi bom voltar para casa com essa nova descoberta interior.
dores, limitações e rugas continuassem idênticos, eu era outro.
Recomeça. E, embora a artrite estivesse no mesmo lugar, as
morre por um tempo e depois volta, traz enormes mudanças.
vida. Parecia-me, na verdade, um recomeço. Qualquer um que
Abrir a porta do apartamento foi como abrir-me para uma nova
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a não ser seguir o meu caminho e esperar.
E também não me restava nada mais importante para fazer,
máximo trinta minutos andando. Fui. Não tinha pressa qualquer.
longe. Devagar, a passos lentos de um velho, seriam no
Donde eu estava, o apartamento na Barata Ribeiro não ficava
Podia. Afora a boa vontade, o gesto não lhe custaria nada.
por favor?”
for a pessoa que ela esperava, entregue a foto. Pode fazer isso,
qualquer mulher, mostre a fotografia para ela. Se eu, por acaso,
“Se alguma mulher procurar por um Ataíde ou Vicente,
fotografia, anotei o endereço. Falei:
onde estava morando, mas preferi me garantir. No verso da
puxei o endereço do meu apartamento. Eu, agora, lembrava
sorriso! Pedi uma caneta para ela. Do bolso da minha calça,
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para a mulher do balcão, que me recebeu com sorriso. Quanto
foto. Emocionado, um pouquinho trêmulo, estendi a imagem
fazer exatamente o que eu iria fazer agora: entregar a minha
a certeza, lembrança viva, de já ter estado ali antes para
Cheguei. Ao entrar na relojoaria – o coração aos pulos – tive
ser a lembrança mais importante do momento.
claro que não me importei, afinal, aquela relojoaria me parecia
relojoaria e não me recordava tão claramente de outras. Mas é
Não sei ao certo por que lembrava tão claramente dessa
“Me leva na relojoaria da Barata Ribeiro.”
digitais. Agradeci. Voltei para o táxi e pedi:
bem contrastada. Resultado, sem dúvida, das novas maravilhas
Eu estava bonito na foto. Velho, mas bonito. Imagem nítida,
o táxi e qualquer outra repentina eventualidade.
carregava na carteira. Me certifiquei de deixar notas para pagar
Paguei com um pouco do dinheiro amassado e velho que eu
feias, 3x4. Valia a pena. Foto boa. Tamanho grande.
Tiravam. Paguei trinta reais por uma foto. Mas não era dessas
“Vocês tiram retratos aqui?”, perguntei.
sabe atender. Acho que pensou: o que um velho fazia ali?
Veio um atendente jovem. Me atendeu com cara de quem não
voltaria logo. A loja estava vazia. Devia ser a crise.
Pedi para o táxi esperar. Que não fosse embora, eu seria rápido,
A caminho de casa, parei numa loja de fotografias. Desci.
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Assim que ela entrou, eu era qual um menino, tão