INTERCOM 96
GT - HUMOR E QUADRINHOS
WATCHMEN: O Caos nos Quadrinhos
por
Ivan Carlo A. Oliveira
Mestrando do Instituto Metodista Superior
de São Bernardo do Campo
RESUMO:
As histórias em quadrinhos estão assimilando uma linguagem caótica. Watchmen,
uma das principais obras de HQ da década passada, tornou-se exemplo dessa nova
linguagem, Alan Moore o autor, defende a transposição da teoria do caos para as ciências
humanas. Para ele, a própria vida é caótica.
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WATCHMEN: O Caos nos Quadrinhos
Essa busca da significação no aparentemente incompreensível representa,
poderíamos dizer, o outro aspecto do trabalho de Jung no hospital
psiquiátrico: a atividade “subjetiva”, em contraste com a atividade “obejtiva”
de administrar testes de associação verbal, medir tempos de reação, etc”.
(STORR, Anthony. As Idéias de Jung. São Paulo, Cultrix, 1988)
As origens da teoria do caos estão no pensamento especulativo de alguns cientistas
que não se contentavam com a explicação clássica da realidade. O marco zero da teoria é
reconhecido por muitos como o matemático francês Henry Poincaré, cujas teorias tiveram
de esperar o surgimento dos computadores para serem levadas a sério. Mas a atitude
científica de Poincaré era compartilhada por vários outros sábios. Tais como o psicólogo
suísso Carl Gustav Jung. Ele demonstrou que as manifestações verbais e crenças
incompreensíveis dos esquizofrênicos podiam ser compreendidos.
Na década de 70, com a criação do Coletivo de Sistemas Dinâmicos, surgiu a
nomeclatura teoria do caos, ou ciência do caos. Da mesma forma que Poincaré, os
chamados investigadores do caos interessavam-se por encontrar explicações para o
imponderável. Procuravam, em essência, ordem no caos.
O principal postulado do Coletivo era a existência de padrões nos chamados
fenômenos caóticos. Caos passou a ser definido pela sua complexidade e imprevisibilidade.
Nas palavras de Neil Gaiman, roteirista de quadrinhos, não existe caos, mas padrões de
diferentes níveis de complexidade.
Em termos de comunicação, caos pode ser definido como informação em excesso,
com pouca redundância. Roberto Elísio dos Santos usa o termo caos semiótico para se
referir aos quadrinhos que utilizam uma linguagem diferente da convencional: “Com tantos
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narradores, a narrativa se fragmenta (um fato é mostrado de formas diferentes ou muitos
fatos são mostrados ao mesmo tempo, com ação alternada) - o que causa o ‘caos
semiótico’”( SANTOS, Roberto Elísio dos. O Caos Semiótico nos Quadrinhos: Um Estudo
das Graphic Novels. Revista Comunicação e Sociedade, 18, São Bernardo do Campo, IMS,
dezembro de 1991).
Na verdade, o mundo segue a tendência de se tornar mais e mais caótico. A
informação é mais do que nunca necessária. Um reflexo disso pode ser encontrado nas
obras dos meios de comunicação de massa. Entre as características das obras caóticas
podemos citar: padrões de construção formal complexos; quantidade elevada de informação
transmitida; utilização de recursos multi-mídia; simultaneidade de ação e imprevisibilidade.
Evidentemente, nem todos os trabalhos que podem ser chamados de caóticos
apresentam todas essas características. Por outro lado, a grande quantidade de informação
transmitida já está contida, implicitamente, nos outros tópicos. Justamente por isso, o
excesso de informação pode ser considerado como característica principal do caos
semiótico.
Várias mídias já fizeram uso dessa linguagem caótica. No cinema um exemplo é o
filme Drácula, de Francis Ford Copolla. A película usa e abusa de cortes rápidos e
inusitados, da simultaneidade de ação e de informação (vide, por exemplo, a cena em que a
sombra do vampiro toma vida própria, revelando as verdadeiras intenções do personagem).
Um exemplo televisivo é O Mundo de Beakman. O programa passa ao expectador
uma grande quantidade de informações de maneira fragmentada e inusitada, com um
mínimo de redundância.
O roteirista inglês Grant Morrison usou diversas vezes os conceitos da teoria do
caos para construir suas histórias em quadrinhos. Mais notadamente em uma história do
Homem Animal , na qual um artista thanagariano pretende explodir uma bomba caótica e
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em Asilo Arkhan (no qual uma psicóloga tenta explicar a personalidade do Coringa baseada
na teoria do caos).
No entanto, no presente trabalho nos limitaremos a analisar a mini-série Watchmen,
publicada em seis partes pela editora Abril entre 1988 e 1989.
WATCHMEN
Watchmen surgiu de um que pedido que Dick Giordano, então editor da D.C.
Comics, fez a Alan Moore. A D.C havia adquirido os direitos sobre os heróis da extinta
Charlton Comics e a idéia era fazer uma mini-série em 12 partes com eles. Moore preferiu
não usar os heróis da Charlton, e sim criar outros heróis baseados neles.
O enfoque básico de Watchmen partia de uma idéia que ele já havia experimentado
em Miracleman: o que aconteceria se os super-heróis existissem de verdade?
Moore conta que a questão veio-lhe à mente na infância, quando lia as paródias de
Harvey Kurtzman, na revista Mad: “That was a old idea that I had since I was about 11. I
has just bought the Harvey Kurtzman Mad paperback for the first time (...) I wanted to do
similar thing to the parody that Harvey had done of Superman” (THE UNEXPLORED
Medium. Wizard, 27. Nova York, Wizard Press, novembro de 1993, p. 43).
No entanto, enquanto Kurtzman usava o recurso de deslocar os super-heróis das
histórias em quadrinhos para a realidade visando um efeito cômico, Moore pretendia fazêlo afim de conseguir um efeito dramático: “Kurtzman did it for humurous effect, but the
possibility struck me that by turning the screw the other way, it could have all sort of
effects. I thought, ‘Wouldn’t it be nice to take some charming old superhero and apply the
real world to him?’”( TALES from the Cript. Wizard 52. New York, Wizard Press, p. 72).
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Para mostrar o que de fato aconteceria se os super-heróis realmente existissem, Alan
Moore lançou mão de um dos conceitos da teoria do caos: o efeito borboleta. Esse conceito
foi elaborado a partir da grande dependência das condições iniciais apresentadas pelos
fractais. A mudança de um único número pode transformar completamente o formato de um
desenho fractal. A mesma regra vale para certos eventos ou experiências. Assim, o bater de
asas de uma borboleta em Pequin pode modificar o sistema de chuvas em Nova York.
Moore transpôs o conceito para os quadrinhos: se o bater de asas de uma borboleta
pode ter consequências tão imprevistas, imagine-se o surgimento dos super-heróis... Para
Moore, o mundo jamais seria o mesmo. A primeira diferença entre o nosso mundo e aquele
habitado por super-seres seria política. Em Watchmen os EUA ganharam a guerra do
Vietnã graça à intervenção do Doutor Manhathan e do Comediante. Como em um desenho
fractal, uma modificação dá origem a outra, modificando por completo o conjunto. Graças
ao prestígio adquirido com a vitória, Nixon consegue se manter no poder, apesar do
escândalo Watergate:
Com a derrota vietnamita o mundo transformou-se. O fracasso do movimento
hippie e das revoluções estudantis de 1968 tornam a Terra um lugar violento e
dominado por punks (...) O mundo ainda se mantém sob o estígma da Guerra
Fria, ameaçado por uma guerra atômica” (LEROSI, Paulo. História
Revolucionária. Folha da Tarde, São Paulo, 9 de outubro de 1990, p. 20).
Segundo a análise do próprio Moore, o surgimento do Doutor Manhathan
desiquilibra o já precário quadro da política mundial. Até então os EUA e a URSS
mantinham-se em paz graças ao equilíbrio atômico. O poderio presentado pelo herói
subverte a balança em favor dos americanos, fazendo com que a URSS se torne mais
agressiva na sua política internacional:
O Dr. Manhathan não pode impedir que todos os mísseis soviéticos alcancem
o solo americano (mesmo uma porcentagem reduzida deles seria suficiente
para acabar com toda a vida orgânica no hemisfério norte). O argumento de
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que um ser super-humano está contribuindo para a paz mundial é refutada por
causa de um aumento substancial no estoque de armas nucleares. Destruição
infinita dividida por dois, dez ou vinte ainda é destruição infinita. Se forem
seriamente
ameaçados,
os
soviéticos
escolherão
o
caminho
inquestionavelmente suicida? Analisando sua história e sua visão do mundo,
eu acredito que eles farão a opção final. (Moore, op. cit., 2, p.32)
Como se vê, o surgimento do Dr. Manhathan, graças a um acidente num laboratório
de experiências físicas, provoca alterações a nível mundial. Esse não é o único efeito
borboleta encontrado na HQ. Na verdade, a história começa com um efeito borboleta (e
termina com um, como perceberão os mais perspicazes).
FRACTAIS
A trama de Watchmen começa com o assassinato do diplomata Edward Blake que,
descobre-se depois, era a identidade civil do Comediante.
Quem costura a história é o herói (ou anti-herói) Rorschach. O personagem é
paranóico e psicótico. Ao investigar a morte de Blake, ele se convence da existência de um
“matador de mascarados”. É a partir dessa hipótese equivocada que a trama vai se
desfazendo e revelando complexidades inesperadas, como num fractal.
Sob uma trama aparentemente juvenil
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revelam-se detalhes, ramificações e
implicações que passam longe, muito longe do que é feito normalmente com super-heróis.
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Histórias envolvendo vilões que pretendem destruir super-heróis são um autêntico chavão dentro do gênero.
Os motivos para tanto vão desde vingança até planos megalomaníacos para dominar o mundo. O primeiro
momento para esse plano seria, evidentemente, retirar do caminho os obstáculos mais óbvios para a realização
do mesmo - no caso os super-heróis. Esse motivo é levado ao extremo por alguns vilões, que estão tão
preocupados em destruir os heróis que se esquecem de engendrar qualquer plano posterior a essa primeira
fase. Outro chavão trabalhado por Moore é o do romance policial “noir”, no qual um detetive durão costuma
usar até mesmo de meios ilícitos para descobrir o autor de um crime.
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Outra caraterística dos fractais é a auto-semelhança: “A auto-semelhança é a
simetria através de escalas. Significa recorrência, um padrão dentro de outro padrão”
(GLEICK, James. Caos: O Surgimento de Uma Nova Ciência. Rio de Janeiro de Janeiro,
Berkeley, 1993). Exemplos de fractais podem ser encontrados na própria natureza, como na
samambaia:
Observando uma folha de samambaia, verificamos que ela se repete dentro de
si própria, ou seja, é como se uma folha fosse composta por grande número de
folhas estatisticamente semelhantes e menores. Seguindo o mesmo raciocínio,
podemos dizer que a rugozidade de uma cordilheira está estatisticamente
reproduzida num simples pedaço de rocha. (CARVALHO, Maria Cecília
Costa e Silva et alii. Fractais, Uma Breve Introdução / s.d.b./ p.10)
A auto-semelhança também pode ser encontrada em Watchmen. O que mais salta
aos olhos é auto-semelhança em termos iconográficos. O botton do comediante
representando uma figura sorridente e extremamente simplificada (uma curva e dois
pontos), pode ser visto em várias escalas durante a história. Numa das sequências, por
exemplo, uma cratera em Marte apresenta o mesmo rosto sorridente.
A auto-semelhança pode ser encontrada também na própria história. A partir de
certo momento, a narrativa é entremeada de trechos de uma HQ de piratas que um garoto lê
ao lado de uma banca de revistas.
O gibi conta a macabra história de um homem que, após, ter seu navio atacado por
piratas, vai parar numa ilha. Temendo que o navio se dirija à cidade onde estão sua esposa e
filhos, ele lança mão de um recurso no mínimo escatológico: constrói uma jangada, usando
como boias os corpos de seus amigos assassinados.
O que se segue faria gelar o sangue do mais frio dos bucaneiros: o marinheiro se
alimenta de gaivotas que se aproximam para arrancar pedaços dos corpos em
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decomposição, bebe água do mar e é atacado por um tubarão que, uma vez morto, torna-se
a nova boia da jangada.
Em seu delírio, o personagem desembarca na praia e, imaginando que os piratas já
se apoderara da vila, começa a matar seus habitantes. No final, ao perceber seu erro, ele se
dirige ao cargueiro negro, que, no caso, funciona como uma metáfora do inferno.
Resumidamente, a história de Contos do Cargueiro Negro pode ser entendida como
o esforço desesperado de um homem tentando salvar uma cidade. Nesse esforço ele não se
poupa de usar artificios pouco éticos.
A trama serve para discutir um assunto tão velho quanto Maquiavel: os fins
justificam os meios?
A mesma discussão é reproduzida (ou reproduz) no tema central de Watchmen.
Alan Moore destaca as semelhanças entre o marinheiro navegando sobre o corpo pútrido de
seus amigos e Ozimandias, que, na realização de seus planos para salvar o mundo de um
holocausto nuclear, levando a humanidade para uma era de paz e perfeição, comete
assassinatos e até mesmo destrói todo um bairro de Nova York.
Essa semalhança fica implícita na fala de Ozimandias: “Jon, sei que as pessoas me
acham insensível, mas eu sinto cada morte. Todas as noites... sonho que estou nadando em
direção a um... esqueça, isso não é significante...”. (Moore, op cit, 6, p. 27).
PADRÕES DE CONSTRUÇÃO FORMAL COMPLEXOS
Outro aspecto caótico de Watchmen diz respeito à utilização de padrões complexos
de construção formal. Essa característica pode ser encontrada em várias obras e se
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caracateriza, entre outras coisas, pela utilização de várias mídias ou técnicas. Filmes como
Darkman se apropriam da linguagem dos quadrinhos; novelas se aproximam do cinema,
afastando-se do teatro filmado que eram no início da TV. O quadrinista Dave Mckean
utiliza técnicas impressionistas, expressionistas e dadaistas na produção de seu trabalho.
Essa utilização de várias linguagens ou técnicas permite ao artista transmitir mais
informações do que seria possível normalmente.
Essa junção de técnica não pode ser encontrada nas ilustrações de Watchmen - já
que o desenho de Dave Gibbons permanece padronizado do primeiro ao último capítulo mas na forma de contar a história.
A história, fugindo da linearidade costumeira dos quadrinhos, é contada através de
flash-backs, anexos com capítulos de livros, provas de jornais, relatórios médicos, artigos
científicos e até um artigo analisando o gibi de piratas Contos do Cargueiro Negro. Como
se vê, o discurso caótico também se apropria da metalinguagem, na qual uma mídia fala de
si mesma3.
A trama, que antes se assemelhava a um fio esticado, com início, meio e fim, tornase, em Watchmen, mais parecida com um fio de lã que tivesse sido emaranhado por um
gato. Além dos flash-backs, os acontecimentos do passado são contados ora por um, ora por
outro personagem, de forma que cabe ao leitor reconstruir mentalmente a sequência
cronológica da história. Isso faz com que cada leitura de Watchmen seja uma leitura
diferente.
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O recurso foi retomado por Moore em “1963”, mini-série na qual ele usa as revistas de super-heróis de uma
hipotética editora da década de 60 para analisar as transformações pelas quais passaram os gibis e a sociedade
nesses últimos 30 anos.
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CAOS
Embora a relação de Watchmen coma teoria do caos não fosse totalmente visível,
Alan Moore tocou várias vezes no assunto. Numa das cenas, Ozimandias assiste uma
multitela. Trata-se de um aparelho composto de 36 televisores sintonizados em emissoras
de todo o mundo, com mudança aleatória de canal a cada 100 segundos . Enquanto observa
as telas4, ele grava anotações para uma futura palestra:
Observação. A vista da multitela é antecipada pela tela de Burroughs. Ele
sugeriu a reclassificação das palavras e imagens, evitando a análise racional e
permitindo uma visão subliminar do futuro... um exótico mundo visto apenas
superficialmente. Essa entrada simultânea me atrai como o equivalente
cinético de uma pintura abstrata... pontos fluorescentes... significados em um
caos semiótico. Perdidos num mar de incoerência. Transitórios e esquivos,
devem ser entendidos com rapidez. A animação por computador permeia até
mesmo os sucrilhos do café da manhã de um futuro alucinógeno. (Moore, op.
cit., 6, p. 1)
O discurso de Ozimandias apresenta algumas idéias de Alan Moore a respeito do
assunto. Entre elas o que pode ser chamado de visão - ou percepção caótica - no qual
haveria a recepção simultânea de uma grande quantidade de informações. A maior parte
dessas informações entraria como subliminar, indo direto para o insconsciente. O psicólogo
Carl Gustav Jung propôs um modelo em que a consciência seria um holofote, iluminando as
áreas de interesse. Tudo o que estivesse na penumbra de tal foco seria subliminar. Portanto,
uma vez que a consciência não pode manter o foco em mais de uma informação ao mesmo
tempo, 35 das 36 telas da multitela permaneceriam como subliminares.
4
A multitela é uma aplicação prática do caos em comunicação, já que permite a visualização de uma
quantidade extraordinária de informações ao mesmo tempo. Talvez não estivéssemos sendo excessivamente
profanos se chamassemos a multitela de “máquina caótica”
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Por essa razão a análise racional é desaconselhada. A resposta seria uma análise tão
rápida e intuitiva quanto a percepção, como faz Ozimandias em uma das sequências:
“Homens musculosos portando armas... justaposição de violência e imagens infantis... um
desejo de regressão e tendência para subtrair responsabilidades... os ítens configuram um
quadro de guerra”(Ibid, 5, p 8).
A multitela de Ozimandias seria, portanto, um equipamento caótico por apresentar
informações no seu estado mais concentrado, como diz o próprio personagem: “Este
planeta é cheio de eventos... e, numa época como esta, nenhum deles é insignificante.
Preciso de informação na sua forma mais concentrada”(Ibid, 5, p. 7).
QUEM DIRIGE O MUNDO?
Dois aspectos podem ser apontados como principais em Watchmen. O primeiro,
mais evidente, é a especulação sobre como seria o mundo se os super-heróis realmente
existissem.
No segundo, melhor percebido em releitura e bem menos aparente, Alan
Moore especula sobre as formas através das quais se dão os movimentos
sociais. O que desencadeia o medo, as guerras ou a paz? Seria possível
direcioná-las através de ações milimetricamente calculadas? Seria possível
cientificamente prever e alterar o comportamento de bilhões de pessoas, suas
posições políticas e até o tipo de perfume que desejariam comprar? (Recado,
58, São Paulo, Devir, p. 4)
A teoria do caos abriu caminho para que se percebesse padrões em eventos
aparentemente desprovidos de padrões - tais como o trânsito de uma megalopole, as
variações da bolsa de valores, ou os fenômenos metereológicos. Esses eventos, como já
dissemos, são excessivamente dependentes das condições iniciais - o que é chamado de
efeito borboleta.
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Assim, através da análise dos padrões e das variações nas condições iniciais, seria
possível prever o desenho que resultaria desses dados. Uma questão que se tem colocado é:
de posse desses dados, o que impediria os especialistas em caos de modificarem algumas
condições iniciais afim de mudar os rumos dos eventos?
Alan Moore apresenta essa mesma questão em Watchmen. Durante uma reunião que
se configura como ponto-chave de vários efeitos borboleta, Ozimandias perecebe que até
então só vinha combatendo sintomas de uma doença social:
Mas aquela comédia negra da vida foi explicada pelo próprio Comediante no
fracasso de 66. Estão lembrados? Ele discutiu a inevitabilidade de um conflito
nuclear mundial... e eu abri os olhos! Só os melhores comediantes conseguem
isso. Eu me lembro do gráfico chamuscando. Nelson dizia que alguém tinha
que salvar o mundo! Sua voz era trêmula e queixosa... então eu entendi.
(Moore, op. cit., 5, p. 21).
O virtual conflito nuclear era responsável por grande parte dos problemas sociais. A
corrida armamentista tornara-se um círculo vicioso. Embora os governantes entendessem o
caráter suicida de uma guerra nuclear, não podiam parar a guerra armamentista - o que
significava menos dinheiro para velhos, doentes, desabrigados e para a educação: “Outros
fatores surgiram... despesas com armamento fomentaram elevadas taxas de juros para
empréstimos internacionais. Deste modo, países como o Brasil estão em dificuldades para
saldarem suas dívidas”. (Ibid, 5, p.22)
Ciente desses problemas, ele se decide a combater o verdadeiro mal que ameaça o
mundo: o fantasma do holocausto nuclear. Para isso, ele engendra um plano que começa
muitos anos antes daquele período em que se passa Watchmen. Primeiro, enriqueceu e
conquistou prestígio popular, o que seria essencial para a realização do plano. Então iniciou
a construção de um monstro supostamente alienígena que seria teletransportado para o
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centro de Nova York, convencendo os governos da União Soviética e dos Estados Unidos
de que o planeta estava sendo ameaçado por uma invasão extra-terrestre.
Manipulando esse e outros efeitos borboletas, Ozimandias pretende acabar com a
ameaça nuclear e unir os povos, acabando com uma era de selvageria. Fazendo isso, ele
reproduz o ato de Alexandre Magno quando este, diante do nó górdio, simplesmente o
corta, ao invés de tentar desamarrá-lo.
Embora a história toda esteja envolvida do clima pop dos super-heróis, ela serve
como modelo do que realmente pode acontecer se alguém decidir usar a dependência das
condições iniciais para alcançar certos objetivos.
POR QUE UMA MULHER CHORA ?
Provavelmente um dos momentos de Watchmen menos apreciados pelos leitores foi
a primeira parte do capítulo 5 (Capítulo IX na edição americana). Neste, o Dr. Manhathan
leva Laurie para sua fortaleza em Marte. Enquanto isso, na Terra, o planeta está prestes a
ser destruído por uma guerra nuclear.
Laurie passará toda a história tentando convencer Manhathan a voltar a se interessar
pelos seres humanos, pois só ele pode impedir a destruição da humanidade. Mas ele parece
mais fascinado com formas geométricas do planeta vermelho: “A vida pode ter florescido
aqui, mas Marte não optou por ela. Escolheu isto. Chama-se formação caótica”(Moore,
op.cit., 5, p. 14).
Para ele, a vida humana é breve e previsível, ao contrário dos pradrões fractais da
montanhas marcianas:
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Você tentou comparar a incerteza de sua existência com o caos deste mundo...
mas onde estão os pináculos para rivalizarem com o Olympus? Onde estão as
profundezas para serem comparadas àqueles... Ah, estamos nos aproximando
do vale Marineris. Veja! Ele se estende por mais de cinco mil quilômetros,
Enquanto uma parte recebe a luz do sol, na outra ainda é noite. As diferenças
de temperatura provocam ventos frios, que formam oceanos de névoa ao longo
de um desfiladeiro de mais de seis quilômetros de profundidade. O coração
humano conhece abismos tão profundos? (MOORE, op.cit., 5, p. 18-19)
A resposta, ele percebe depois, é sim. E o que o leva a mudar de opnião é a própria
Laurie. Ao longo do diálogo ela começa a se aperceber de uma revelação aterradora: seu pai
era o Comediante, e não Hooded Justice, o ex-namorado de sua mãe, como ela pensava
antes. Ainda na década de 40 o Comediante estuprara a mãe de Laurie, a primeira Silk
Spectre. Fora o bastante para engravidá-la.
O drama de Laurie convence o Dr. Manhathan da caoticidade da vida humana. A
simples existência de uma pessoa já é uma improbabilidade matemática tão grande quanto a
torneira de Shaw5:
Milagres termodinâmicos... eventos com probabilidades astronômicas de não
ocorrer... tais como oxigênio transformar-se em ouro. Em cada acasalamento
humano, um milhão de espermatozóides procuram um único óvulo.
Multiplique
essas
probabilidades
por
incontáveis
gerações..
encontrando...gerando esse exato filho... aquela exata filha... Sua mãe amou
um homem que ela tinha todos os motivos para odiar. Dessa união, dos bilhões
de crianças competindo para a fertilização, foi você, apenas você que emergiu.
Destilar uma forma tão específica daquele caos de improbabilidades, é como
5
Uma das pesquisas do Coletivo de Sistemas Dinâmicos era justamente tentar encontrar padrão na queda de
gotas de uma torneira pingando. (Ver GLEICK, James. A Face Oculta do caos. Superinteressante, 9. São
Paulo, Abril, 1989)
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transformar ar em ouro.. isso é o máximo de inverossimilhança. O milagre
termodinâmico. (Ibid, p. 26-27).
Em outras palavras, quanto maior o grau de improbabilidade de um evento, mais
caótico ele é. No caso da geração de uma criança, milhões de espermatozóides procuram o
óvulo. Só um irá fecundá-lo. Soma-se aí os problemas da gestação, as possibilidades de
morte, tanto da mãe quanto da criança pelos mais variados motivos, e tem-se que o
nascimento de um bebê é um verdadeiro “milagre caótico”.
Com isso, Alan Moore defende que a teoria do caos não pode ficar restrita às
ciências exatas. Ao contrário, seus postulados podem ser perfeitamente aplicáveis à análise
dos indivíduo e da sociedade:
O interior de um ser humano e possivelmente o comportamento de toda a
sociedade, obedecia as regras do CAOS. Que as mesmas equações que
explicavam os fluxos caóticos de elétrons também diziam porque uma mulher
chora. Só por esse motivo ele (Dr. Manhthan) volta a se interessar pelos
mortais comuns. (RECADO, n# 58. São Paulo, Devir, p. 4)
O que Alan Moore talvez pretendesse dizer é que o caos governa nossas vidas, que a
grande preocupação do humana, desde tempos imemoriais, tem sido procurar padrões nesse
caos. Nas palavras de Jung:
Pelo que podemos perceber, o único propósito da existência humana é acender
uma luz nas trevas da mera sobrevivência. (C.G.Jung. Memórias, Sonhos e
Reflexões. citado por Moore, op. cit, n# 5, p. 28)
15
BIBLIOGRAFIA
CALAZANS, Flávio Mário de Alcântara. Propaganda Subliminar Multimídia. São Paulo,
Summus.
GLEICK, James. Caos: A Criação de Uma Nova Ciência. Rio de Janeiro, Berkeley, 1993.
--------------------. A Face Oculta do Caos. Superinteressante, 9. São Paulo, Abril, 1989.
LEROSI, Paulo. História Revolucionária. Folha da Tarde. São Paulo, 9 de outubro de 1990,
p. 20.
MORRISON, Grant et alii. Aves de Rapina. DC 2000, n# 11, São Paulo, Abril, 1991.
--------------------------------. Asilo Arkhan. São Paulo, Abril, 1991.
MOORE, Alan. Watchmen. São Paulo, Abril, 1988/1989.
OLIVEIRA, Ivan Carlo Andrade de. O Caos Nos Quadrinhos: O Caso Watchmen. Trabalho
de projeto experimental. Belém, UFPa, 1993, inédito.
RECADO, n# 58. São Paulo, Devir.
RECADO, n#
SANTOS, Roberto Elísio dos. O Caos Semiótico nos Quadrinhos: Um Estudo das Graphic
Novels. Revista Comunicação e Sociedade, n# 18. São Bernardo do Campo, IMS,
dezembro de 1991, p.71-77.
TALES from the Cript. Wizard, 52. Nova York, Wizard Press, p. 70-78.
THE UNEXPLORED Medium. Wizard, 27. Nova York, Wizard Press, novembro de 1993,
p. 42-45.
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