TEXTO E IMAGEM NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS:
O OLHAR DO PROFESSOR NA CONTEMPORANEIDADE
Ms. Juliana Pádua Silva MEDEIROS1
Ms. Maria Laura Pozzobon SPENGLER2
RESUMO: O presente trabalho discorre sobre a literatura contemporânea para crianças e jovens, cujo veio
distancia-se das bases meramente pedagógicas de outrora. Sob a perspectiva de um complexo fenômeno de
criação humana, o texto literário é abordado no contexto escolar como produto da linguagem, evidenciando,
dessa forma, a necessidade de um letramento literário. E para tanto, faz-se necessário, que o professor que, em
sala de aula, se vê envolto nessa mudança, esteja consciente da necessidade de abordar a literatura para crianças
com novo olhar, o olhar de descoberta que enriquece a leitura e contempla o emaranhado das linguagens que
fazem parte das obras literárias como um todo. Este trabalho objetiva mostrar possibilidades de leituras de alguns
livros que engendram a linguagem verbal e imagética como ponto de partida para construção desse novo olhar.
PALAVRAS-CHAVE: literatura infantil e juvenil; letramento literário; olhar de descoberta
Introdução
Enquanto um texto didático procura uma convergência, todos os leitores chegando a
uma mesma resposta, apontando para um único ponto, o texto literário procura a
divergência. Quanto mais diversificadas as considerações, quanto mais individuais
as emoções, mais rico se torna o texto. Digo sempre que o livro é um objeto, e o
leitor um sujeito. Numa relação entre objeto e sujeito, é o leitor que deve tomar da
palavra. E a metáfora da voz ao leitor. Não há que se perguntar qual a mensagem do
livro, mas o que o sujeito pensa sobre o que foi lido por ele. Deixo as “mensagens”
para os livros de autoajuda e não para os literários. Há livros que “ensina”, ou
melhor, determina a sina do sujeito. Há livros que concorre para o sujeito inventar o
seu destino.
Bartolomeu Campos de Queirós
Na atual sociedade, aliadas a uma base que ambiciona romper paradigmas e
hegemonias, as produções literárias para infância e juventude, cada vez mais, se distanciam de
padrões didático-moralizantes, cujos esteios visam somente à formação meramente instrutiva.
Entretanto, convém destacar que, apesar dessa atmosfera de constantes mudanças,
verifica-se que o adjetivo INFANTIL ainda sugere, para alguns, uma categoria secundária,
pueril, submissa à função utilitário-pedagógica, desconsiderando assim seu estatuto de arte e
sua força vital no enriquecimento da própria experiência humana. Góes (1984) chama atenção
para o fato de que o termo especificador não deve filtrar um grupo e nem segregá-lo. A
autora, retomando Ezra Pound, argumenta que literatura, dirigida ou não às crianças, trata-se
de uma linguagem carregada de significados até o máximo grau possível.
Nessa esteira,
1
Membro do Grupo de Pesquisa em Produções Literárias e Culturais para Crianças e Jovens. Da
Universidade de São Paulo.
2
Doutoranda em Educação pela UFSC e Membro do Grupo de Pesquisa em Produções Literárias e
Culturais para Crianças e Jovens. Da Universidade de São Paulo
1
A partir de que ponto uma obra literária deixa de se constituir em alimento para o
espírito da criança ou jovem e se dirige ao espírito adulto? Qual o bom livro de
viagens ou aventuras destinado a adultos, em linguagem simples e isento de matéria
de escândalo, que não agrade à criança? (ANDRADE, 1994, p. 220)
Frente aos questionamentos drummonianos, nota-se que estão em pauta assuntos
muito recorrentes no universo acadêmico: a categorização dos livros por idade - estabelecida
pelo mercado editorial - e a natureza da literatura para infância e juventude.
Segundo Palo e Oliveira (2006), a segmentação do público leitor é insustentável, pois
não se trata de endereçar uma obra a esta ou àquela faixa etária, mas de ofertar determinadas
estruturas de pensamento, comuns a todo ser humano. Além do mais:
[...] o pensamento infantil está apto para responder à motivação do signo artístico, e
uma literatura que se esteie sobre esse modo de ver a criança torna-a indivíduo com
desejos e pensamentos próprios, agente de seu próprio aprendizado. A criança, sob
esse ponto de vista, não é nem um ser dependente, nem um “adulto em miniatura”,
mas é o que é, na especificidade de sua linguagem que privilegia o lado espontâneo,
intuitivo, analógico e concreto da natureza humana. (PALO & OLIVEIRA, 2006, p.
8)
Peter Hunt, em entrevista à Revista Língua Portuguesa3, afirma que o maior problema
da literatura para crianças e jovens está centrado na indústria livresca, uma vez que os
publishers (inglês, «editores») determinam o que deve ser lido e por quem, através de
catálogos, legitimando a classificação dos exemplares por idade em prol de uma lista de
vantagens pedagógicas.
Face ao exposto, se por um lado, a literatura para infância e juventude ainda seja
nivelada como algo pueril e meramente utilitário na contemporaneidade, por outro, evidenciase o seu caráter artístico em um rico acervo que se desvencilha do simples didatismo4 e
amplia a concepção de textos que buscam a literariedade: “[...] o estatuto de arte, não de obra
paradidática, [...] um espaço textual plurissignificativo do ser humano diante do mundo.”
(CECCANTINI, 2004, p. 38).
Nessa senda, a literatura destinada a crianças e jovens, cada vez mais, encarna o seu
potencial como objeto estético, ao mesmo tempo em que mantém o seu lastro social5, pois,
nas relações entre o texto literário e a sociedade, incorpora temas caros para reflexões críticas.
Portanto, como ressalta Cunha (2009, p. 53), essa literatura não deve assumir uma utilidade
iminente no âmbito escolar “[...] a não ser a que ela própria se coloca. Assim, estariam
trocados os papéis: o de supor que é preciso ensinar o que parece ser útil e, ao fim e ao cabo,
demonstra não ser, para aquilo que parece inútil, mas é essencial.”.
Essa nova configuração de veio artístico mencionada alcança contornos bastante
expressivos já a partir do final do século XX, quando há uma explosão de criatividade nas
produções literárias, privilegiando o experimentalismo com a linguagem, a estrutura narrativa
e o aspecto visual do texto. A literatura para infância e juventude torna-se, então, mais
3
Disponível em: http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12191. Acesso em: 10 dez. 2011.
À guisa das obras paradidáticas, o livro de feitio utilitarista desemboca em um padrão comportamental que se
deseja instituir, valorizando temáticas específicas, enredos lineares, desfechos muitas vezes previsíveis e uma
linguagem carregada de ideologia, pois o objetivo principal é difundir ensinamentos. Nessa ordem de ideias,
faz-se imprescindível reconhecer a distinção entre o artefato livro (objeto) para crianças e jovens e obra
literária (natureza) direcionada a infância e juventude.
5
Soriano (1975) afirma que a literatura para criança, mesmo quando não objetiva ensinar, carrega uma vocação
pedagógica, pois como é direcionados à infância, período de rica aprendizagem, o mais gratuito e
simplificado dos livros torna-se uma experiência de vida.
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questionadora, estimulando a consciência crítica e a incorporação dos valores reformulados
em meio aos fios plurais que tecem a caótica sociedade contemporânea.
Dessa forma, a fusão entre realidade e ficção, a dissolução entre as fronteiras culturais,
a busca pela identidade, a recontextualização do tradicional, o hibridismo de códigos, o jogo6
lúdico entre verbal e visual, a fragmentaridade, a estrutura alinear, o registro coloquial, a
metalinguagem, a polissemia, os diálogos intertextuais, a participação do leitor na coprodução
dos sentidos, o uso dos recursos linguístico-expressivos, como a metáfora, são alguns dos
traços relevantes dessa nova literatura.
No Brasil, explorando o dialogismo7, a intertextualidade, a metalinguagem, o apelo à
visualidade, as diferentes experimentações nos meandros da língua e da organização textual,
fulguram-se obras de Ana Maria Machado, Angela Lago, Bartolomeu Campo de Queirós,
Ciça Fittipaldi, Elias José, José Paulo Paes, Lúcia Pimentel Góes, Lygia Bojunga, Marina
Colasanti, Sérgio Capparelli, Roseana Murray, Ricardo Azevedo, Ruth Rocha, Tatiana
Belinky, Ziraldo, entre outros.
Frente a esse cenário atual, o presente trabalho objetiva discorrer acerca do letramento
literário, isto é, a formação de um leitor que saiba:
usar estratégias de leitura adequadas aos textos literários, aceitando o pacto ficcional
proposto, com reconhecimento de marcas linguísticas de subjetividade,
intertextualidade, interdiscursividade, recuperando a criação de linguagem realizada,
em aspectos fonológicos, sintáticos, semânticos e situando adequadamente o texto
em seu momento histórico de produção. (PAULINO, 2004, p.56)
Literatura escolar ou literatura na escola?
Chegamos ao ponto em que temos de educar as pessoas naquilo que ninguém sabia
ontem, e prepará-las para aquilo que ninguém sabe ainda, mas que alguns terão que
saber amanhã.
Margaret Mead
O ensino da leitura cabe à escola e a essa instituição compete oferecer ao aluno a
possibilidade de acessar uma multiplicidade de códigos, linguagens e suportes, possibilitando
ao mesmo o reconhecimento das funções dos mais vastos gêneros discursivos.
Nessa ordem de ideias, é papel do sistema escolar, por excelência, a formação também
do leitor literário: sujeito apto a. ler as nuance de um texto estético, de modo a depreender os
fios simbólicos, culturais, ideológicos, sociais urdidos em sua tessitura.
No entanto, observa-se que boa parte das práticas de leitura adotadas no ensino regular
se limita a uma mesma dinâmica para lidar com os diferentes gêneros, não propiciando, assim,
o desenvolvimento de habilidades que tornem o leitor apto a interagir com as mais variadas
arquiteturas textuais.
Tal metodologia empregada pode ser entendida como reflexo de uma postura docente
que considera a literatura para crianças e jovens um simulacro do livro didático, isto é, ignora
as especificidades do signo estético, negando o status de arte, de modo a reduzir a leitura da
literatura ao ensino da língua.
Vale pontuar a lição de Candido (2004), para quem a literatura deve ser ensinada
porque atua como organizadora da mente e refinadora da sensibilidade, como oferta de
valores em um mundo onde eles se apresentam flutuantes.
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A ideia de jogo sustenta-se no modo imprevisível e não programado de que o objeto é abordado.
O dialogismo, no sentido amplo, refere-se à construção caleidoscópica, na qual o texto, urdido por complexos
fios que se convergem, “[...] escuta as ‘vozes’ da história e não mais as representa como uma unidade.”
(CARVALHAL, 1992, p. 48).
3
Se, como já sinalizado, a gênese da literatura para infância e juventude confunde-se
com a escola, surgindo como um gênero menor, atrelada à função utilitário-pedagógica,
pertencente mais ao campo da educação do que da arte, é imperioso que os professores
reconheçam que ela apresenta, hoje, uma gama de produções que abarca o trânsito de várias
linguagens e códigos, portanto, cuja significação não se confina ao aspecto verbal do livro,
privilegiando também a dimensão visual e grafotipográfica, as quais, por meio da complexa
articulação de elementos artísticos e tecnológicos, extrapolam o invólucro físico tradicional
dos exemplares literários, como Um garoto chamado Rorbeto, de Gabriel, o Pensador. De
acordo com Góes (2003), essa materialidade heterogênea reclama por um olhar multissensível
capaz de descortinar novos horizontes.
Esses novos paradigmas de leitura pleiteiam, então, um leitor apto8 a percorrer a
multiplicidade de caminhos em uma urdidura, cujos fios heterogêneos conduzem o indivíduo
na grande aventura de ler e outorgar sentidos, experiência única e humanizadora.
A busca de significado é uma característica inerente ao ser humano, desde o refletir
sobre a razão da própria existência e da natureza das relações interpessoais ou da
compreensão do sentido de produtos oferecidos pelas mídias. Pela ativação do
sensível e do inteligível, é possível captar sutilezas de fenômenos da existência, ou
mesmo, tanto pela carência quanto pelo excesso de estímulos, deixar de apreendêlas. Os modos de um leitor relacionar-se com as diferentes manifestações da sua
realidade dependem, em grande parte, da capacidade de mobilizar as próprias
experiências, considerar o entorno, os elementos e as articulações ali existentes. É
um constante exercício de observar, analisar, organizar e capacitar-se a atribuir
significado, ir além da superficialidade de percepções de um contexto saturado de
informações. Esses são desafios de um saber ler, de conhecer mais e melhor. Como
uma paisagem produzida por múltiplos elementos, os textos incluem horizontes
diversos criados por várias linhas de fuga, que consolidam referências, orientam
percursos significativos. Há um horizonte que estende pontes entre o próximo e o
distante; orienta lembranças de outros cenários, pessoas e tempos diversos; leva a
criar percursos internos e pontos de ancoragem, realizando caminhos de ida e
também de volta, E, nesse movimento, ampliam-se experiências de legibilidade e de
inteligibilidade sensível e significativa. (PANOZZO, 2007, p. 50)
Nessa esteira, com o objetivo de traçar os limites entre o uso escolar da literalidade e a
formação do leitor literário, este trabalho apresenta o seguinte diagrama:
8
Um leitor hábil a imergir pela miríade de signos é aquele que possui sensibilidade perceptiva, sinestésica e uma
dinâmica mental capaz de colocá-lo em interação com os múltiplos textos que emergem na sociedade
contemporânea.
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Literatura para crianças e jovens
Literatura escolar
Literatura na escola
Temas transversais
Discurso estético
Exemplar paradidático
Exemplar artístico
Literatura e escola
O confronto entre as duas abordagens permite verificar que:
Estar sob a dominante utilitário-pedagógica
utilitário pedagógica ou poética traz, por decorrência, duas
espécies de uso da informação: do mais unificado ao mais diversificado. Se o
primeiro é possível de ser controlado pela função pedagógica, o segundo é um
primeiro
desafio a essa função, já que põe em crise qualquer previsibilidade de uso frente à
alta taxa de imprevisibilidade da mensagem. Ao uso passivo e consumista se
sobrepõe um uso que implica
implica atividade efetiva da mente receptora, sujeito das
conexões que cria, das sugestões de sentidos que capta e reconstrói em cumplicidade
com seu outro – o livro -,, também ele renascendo a cada instante em que se vê em
processo de leitura. (PALO, 2006, pp. 13
1 e 14)
ilumimador: um agente de transformação
transformaç
Professor-ilumimador:
Para que serve a escola, senão para preparar indivíduos capazes de enfrentar o
mundo futuro próximo, segundo as técnicas mais avançadas? [...] É preciso adaptar
os programas e métodos aos indivíduos,
indivíduo e não vice-versa.
versa. [...] Conhecer as imagens
que nos rodeiam significa também alargar as possibilidades de contato com a
realidade significa ver mais e perceber mais...
realidade;
Bruno Munari
Em uma sala de aula, o professor-iluminador
professor iluminador (guia) deve promover a apreensão
ap
dos
recursos da linguagem e dos contextos de produção (tempo/espaço, gênero, suporte) para que
o leitor seja capaz de construir sentidos e diálogos entre épocas, culturas, saberes e textos em
meio a uma profusão de sistemas sígnicos coexistentes em um mesmo objeto.
O letramento literário exige, portanto, que o educador atente-se
atente se à escolha das obras e
às estratégias de leitura, ambicionando que a mediação dos livros no cenário escolar vise
realmente à formação de leitores aptos a interagir com a complexidade
complexidade do mundo atual.
Uma ação pedagógica que almeje vislumbrar essa rede de sentidos possibilita ao aluno
desdobrar-se
se pela vastidão do que não se sabe e não se limitar aquilo que se conhece.
Uma abordagem que não se restringe a uma leitura puramente descritiva, mas
analítica, vincula o texto às práticas sociais, engendrando saberes de outras áreas, como
história, geografia etc. Com isso, a escola promove sujeitos mais observadores e críticos, isto
é, cidadãos ativos frente ao mundo que os rodeiam.
5
Vale evidenciar que o letramento literário, muitas vezes, antecede ao domínio das
letras, pois um livro somente com imagens também propicia caminhos de entendimento da
ação por intermédio da disposição das figuras pictóricas.
Além do mais:
Recorrendo à percepção visual para chegar ao pensamento, os signos visuais, através
de suas propriedades, induzem conceitos. [...] a apreensão das formas é o meio de
percepção mais espontâneo, sobre o qual se constroem posteriormente, os conceitos,
o procedimento analítico, a reflexividade, enfim. O desenvolvimento da apreensão
visual é, portanto, uma etapa básica e importante do desenvolvimento que a leitura
requer. (CADERMATORI, 2006, p. 53)
A comunhão de palavra e imagem, transmutação das linguagens em um só texto
potencializa-se após 1970, mas segundo Paulo (2006, p. 15)
O livro infantil, desde seus primórdios, tem procurado responder à questão,
promovendo formas de diálogos entre a imagem – a ilustração – e o texto verbal.
Diálogos nem sempre dialógicos, isto é, dando lugar ao cruzamento de vozes
diversas em sintonia no espaço textual. O mais comum é o aparente diálogo que, no
fundo, esconde um tom único, monológico, privilegiando a informação construída
pelo texto verbal em detrimento daquela oriunda do visual. A imagem transforma-se
num simples apêndice ilustrativo da mensagem linguística. (PALO, 2006 p. 15)
Luís Camargo, em suas discussões teóricas, assegura que a ilustração não explica, não
ornamenta, não traduz, não busca equivalências entre texto escrito e pictórico - ela se constitui
de um discurso duplo, dialógico. Portanto, não basta apenas ver, é preciso aprender a olhar,
porque, conforme o autor, "assim como o texto verbal, o texto visual também exige uma
espécie de alfabetização ou [...] letramento"9. Todavia, isso é discussão para outro estudo.
Para explicitar esse contexto apresentado, selecionamos dois títulos de literatura
destinados a crianças e jovens brasileiras, nos quais uma análise desse casamento
letra/imagem se destaca como princípio de construção de sentidos ao leitor. Um garoto
chamado Rorberto, do cantor Gabriel, o pensador, e Lampião e Lancelote, do escritor e
ilustrador Fernando Vilela.
Fernando Vilela, em Lampião & Lancelote, retoma a antiga tradição de cordelista, que
escreve e ilustra sua própria narrativa. Então, para tal feito o autor, dedicou-se a uma pesquisa
extensa e minuciosa, destacando as fontes populares, no entanto, sem artificializá-las ou
torná-las meras notas pitorescas.
As técnicas utilizadas pelo autor, extremamente adequadas à intenção expressiva da
narrativa, são os carimbos e a xilogravura.
Os carimbos, usados na construção de todas as personagens, são gravuras feitas em
borracha escolar comum. Os módulos (estampas) possuem elementos do universo de cada
uma: Lancelote (elmos, lanças, armaduras medievais, castelos, cavalos etc) e Lampião
(chapéus, armas, enfeites das roupas, mandacarus, bois etc).
Lampião & Lancelote, a pleno direito do status de obra de arte, é uma espécie de lenda
pós-moderna, na qual dois universos distantes no tempo e espaço são colocados frente-afrente em um suporte onde não há texto autônomo de um lado e ilustração do outro. A
narrativa leve, cheia de aventura, descontraída, sutilmente bem humorada, encanta diferentes
faixas etárias, não se enquadramento necessariamente a um catálogo de obras para crianças e
jovens.
9
Rui de Oliveira (2008) e Donis A. Dondis (2007) discutem em suas obras sobre o alfabetismo visual.
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Os protagonistas são marginais, distantes dos estereótipos planos e maniqueístas
predominantes na maioria das histórias de aventura: um é o temido Rei do cangaço, o outro o
amigo infiel do Rei Artur e tal complexidade de caráter é que aproxima o leitor do enredo.
Em uma arquitetura hipertextual, Fernando Vilela consegue fazer com que as palavras
gerem imagens e as imagens, por sua vez, produzam textos verbais, em um processo de
deslocamento e condensação, metonímias e metáforas... enfim, de experimentações verbovisuais.
Assim, o leitor é convidado a participar de um fascinante jogo, cujas estratégias e
regras cabem-lhe desvendar, imergindo pelas redes de significados múltiplos.
O resultado dessa reunião de gêneros textuais, plasticidades, técnicas e culturas é um
choque explosivo entre o cobre e o prata. Essas cores supracitadas foram escolhidas para
indicar um e outro personagem, uma vez que os tons reluzentes se estendem ao confronto
entre os heróis.
A xilogravura foi usada mais como fundo do Nordeste e em alguns momentos em
Lampião, pois sua linguagem é simples, preta, árida, o que ressalta a dureza da caatinga
nordestina.
Cinema, literatura e gravuras, no confronto de elementos díspares, fundem-se em uma
“epopeia” condensada que mistura várias linguagens, a exemplo das ilustrações que se
apropriam da pintura naiif (comum no cordel) e até aos quadrinhos.
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Em Um garoto chamado Rorbeto, também encontramos essa fusão de linguagens, que
se inicia na capa do livro. A história contada pelo cantor, tomando corpo de música
(expandindo a possibilidade para ser lida como tal), traz ao conhecimento do leitor o menino
que além de ter um nome com uma letra no lugar errado, ainda descobre que tem um dedo a
mais em uma das mãos. As primorosas ilustrações do livro, confeccionadas a partir colagens e
desenhos, de Daniel Bueno iniciam na capa e contracapa do livro, nas quais se encontram
estampadas as mãos direita e esquerda do menino que será o protagonista da história, o
preenchimento das mãos é feito por uma colagem de mapas que mais parecem o conjunto de
veias de uma mão humana, observa-se também que entre as mãos aparece um caminho
trilhado com pontilhados.
Em algumas páginas do livro a cor expressada mostra a inquietação pela qual o
personagem está envolto. A cor vermelha representa o momento de espanto e descoberta. Sem
qualquer ilustração, desenho ou imagem, a cor, encontrada no fundo fala por si só.
A cor vermelha intercala as páginas de caderno com linha, e as mãos direita e esquerda
do personagem, destacando ao fundo vermelho, a mão com mais dedos. A diagramação das
letras também participa da construção do texto, pois, como ilustrações destacam os elementos
necessários para cada uma das páginas.
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Considerações finais
Um trabalho minucioso com crianças, apontando ou levando-as a descobrir esses
elementos técnicos que fazem progredir a ação ou que explicam espaço, tempo,
características das personagens etc. aprofundará a leitura da imagem e da narrativa e
estará, ao mesmo tempo, desenvolvendo a capacidade de observação, análise,
comparação, classificação, levantamento de hipóteses, síntese e raciocínio.
Maria Alice Faria
Em linhas gerais, “era uma vez” uma abordagem literária meramente pedagógica.
Hoje, como base nos apontamentos de Góes (2003) sobre esse olhar de descoberta capacidade associativa por analogia, integrando sensações e percepções na construção de
significados – o leitor reclama por uma atividade leitora que o permita
apreender/compreender o mundo que o cerca e assim o ad-mirar (ver mais longe), porque,
com os sentidos despertos, a memória avivada e acionada, poderá abraçar a multiplicidade de
signos, sem submeter-se às leituras-desvios.
É preciso, então, que o educador reveja sua prática, afinal o seu papel é formar mais
do que leitores literários, mas cidadãos críticos que, através do prazer da descoberta, ampliam
sua percepção acerca do universo, resistindo ao neoliberalismo e suas formas de opressão,
consumo e alienação: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social
entre pessoas, mediada por imagens.” (DEBORD, 1997, p. 14).
No mais, em tempos de gestação de uma sociedade mais humana, uma abordagem
nesse sentido reconhece as produções literárias como experimentação de um processo:
[...] que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o
exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o
afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso
da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor.
(CANDIDO, 2004, p. 180)
A nós, professores que somos, nos cabe a função de possibilitar ao nosso aluno, o
contato com as mais diversas expressões de arte, e entre elas, a literatura, que é responsável
por permitir ao leitor o contato com esse mundo que, apesar de ficcional, contempla
características para que entendamos a realidade, construindo sentidos e ampliando redes de
significação em nossa inserção ao mundo.
9
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond. Confissões de Minas. Rio de Janeiro: América Editora,
1994.
CADERMATORI, Lúcia. O que é literatura infantil. São Paulo: Brasiliense, 2006.
CAMARGO, Luís. Ilustração do livro infantil. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1995.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1992.
CECCANTINI, João Luís Cardoso Tápias (Org). Perspectivas de pesquisa em literatura
infanto-juvenil. In: Leitura e literatura infanto-juvenil: Memória de Gramado. São Paulo:
Cultura Acadêmica; Assis: Anep, 2004.
CUNHA, Maria Zilda da. Na tessitura dos signos contemporâneos: Novos olhares para a
literatura infantil e juvenil. São Paulo: Editora Humanitas; Paulinas, 2009.
DONDIS, Donis A.. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
GÓES. Lúcia Pimentel. Introdução à literatura infantil e juvenil. São Paulo: Pioneira, 1984.
______. Olhar de descoberta: Proposta analítica de livros que concentram várias linguagens.
São Paulo: Paulinas, 2003.
HUNT, Peter. A infância sem clichês [entrevista]. In: Revista Língua Portuguesa. São Paulo:
Editora Segmento. 2010 dez.; (62).
LIONNI, Leo. Pequeno vermelho e pequeno amarelo. São Paulo: Berlendes & Vertechia,
2005.
OLIVEIRA, Rui de. Pelos jardins Boboli: Reflexões sobre a arte de ilustrar livros para
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PALO, Maria José; OLIVEIRA, Maria Rosa de. Literatura infantil: Voz de criança. São
Paulo: Ática, 2006.
PANOZZO, Neiva Senaide Petry. Leitura no entrelaçamento de linguagens: Literatura
infantil, processo educativo e mediação [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio
Grande do Sul; 2007.
PAULINO, Graça. Formação de leitores: a questão dos cânones literários. In Revista
Portuguesa de Educação, vol. 17, nº 1, Braga: Universidade do Minho, 2004.
SORIANO, Marc. Guide de literature pour la jeunesse. Paris: Flammarion, 1975.
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Texto e imagem na literatura para crianças e jovens