Correspondência
de António Sardinha
para Ana Júlia Nunes da Silva
(1910-1912)
Organização, introdução e notas de
Ana Isabel Sardinha Desvignes
Prefácio de
Rui Ramos
U n i v e r s i d a d e C at ó l i c a E d i to r a
L i s boa 2008
Agradecimentos
Este livro, ou melhor, esta edição da Correspondência de António Sardinha para
Ana Júlia Nunes da Silva tem uma história antiga que de algum modo se evoca no estudo
introdutório que adiante apresento. Não cabe pois repeti-la aqui. Mas este é, entretanto,
o lugar certo para lembrar aqueles que mais directa e decisivamente participaram nessa
história, contribuindo para que esta obra se concretizasse. Assim, aqui ficam os meus
mais sinceros agradecimentos a:
Prof. Doutor José Miguel Sardica, pelo apoio, pelos conselhos, pela confiança,
Prof. Doutor Rui Ramos, que aceitou generosamente prefaciar a Correspondência,
Prof. Doutor António Costa Pinto, que há muito tempo acreditou na importância
destes textos e me encorajou a prosseguir o seu estudo,
Prof. Doutor António Manuel Hespanha, que em Macau, no início dos anos 90, me
convenceu da absoluta necessidade de publicar estas cartas.
O meu reconhecimento vai também, e como não podia deixar de ser, para a
Universidade Católica Portuguesa, nas pessoas do Senhor Reitor, Prof. Doutor Manuel
Braga da Cruz, e da Senhora Vice-Reitora, Prof. Doutora Maria Luísa Leal de Faria,
que aceitaram com entusiasmo a publicação desta Correspondência. A minha gratidão,
também, para a Universidade Católica Editora e, em especial, para a Dra. Anabela Antunes
e aArq. Margarida Appleton, a quem se deve a excelência desta edição.
Por último, um agradecimento muito especial à minha amiga Manuela Mogo Demaret,
pelo seu precioso contributo para a revisão do texto das cartas, pela disponibilidade de
sempre.
Prefácio
Rui Ramos
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
O primeiro escritor a entrar no século XX
A correspondência aqui reunida por Ana Isabel Sardinha Desvignes,
no seguimento do seu estudo biográfico sobre António Sardinha1, permite seguir de um novo ponto de vista o que foi uma das maiores revoluções intelectuais em Portugal nos últimos cem anos: aquela que, por
volta da I Guerra Mundial (1914-1918), separou uma grande parte da
juventude literária e erudita portuguesa em relação ao regime republicano
instalado em 1910. António Sardinha (1887-1925) foi um dos grandes
animadores dessa ruptura, através da qual tantos jovens de vinte anos
sentiram estar finalmente a entrar numa nova idade, libertos das ideias
feitas e dos preconceitos dos seus pais e avós. O facto de defenderem
a monarquia e o catolicismo não nos deve fazer esquecer que Sardinha
e os seus companheiros se sentiam fundamentalmente revolucionários
e radicalmente modernos. Tal como o facto de terem surgido publicamente com um jeito firme e agressivo não nos deve distrair do doloroso
processo de conversão ideológica e espiritual que está por detrás das
suas novas convicções – porque, no caso de Sardinha e de outros dos
seus companheiros, foi de uma “conversão”2 que se tratou.
Nas suas cartas a Ana Júlia Nunes da Silva, sua noiva e futura mulher,
entre 1910 e 1912, o leitor tem o registo intimista, misturando certezas
e dúvidas, do começo dessa evolução intelectual. É uma documentação
fascinante e não menos interessante e importante por constituir uma
1
2
Ana Isabel Sardinha Desvignes, António Sardinha (1887-1925). Um Intelectual no
Século, Lisboa, ICS, 2006. Inclui uma bibliografia desenvolvida de e sobre António
Sardinha.
Manuel Braga da Cruz, Monárquicos e Republicanos no Estado Novo, Lisboa,
D. Quixote, 1986, p. 14.
11
espécie de “reportagem” pessoal dos primeiros anos do domínio do
Partido Republicano em Portugal, a seguir a 1910. Existirão, a esse respeito, poucos testemunhos tão reveladores sobre este momento da história portuguesa no século XX. Ao leitor familiarizado com a época, talvez ocorra, como termo de comparação, a correspondência de António
Sérgio para Raul Proença.3 Nota-se aí o mesmo esforço de compreender, para além de todo o sectarismo. Mas as cartas de Sardinha à noiva
têm outra qualidade: não sofrem do aspecto estático e hierático, próprio
das posições definitivamente definidas. Há aqui o drama de alguém que
procura, com uma grande disponibilidade para encontrar coisas novas.
Vemos assim, com o passar dos dias, o comentador ir mudando e vendo
o mundo com novos olhos. O livro lê-se como o romance epistolar de
uma transformação íntima e intelectual.
Talvez valha a pena aqui lembrar brevemente o resto do percurso.4
A história geral da época interessa-se por António Sardinha depois da
última data desta correspondência, com o lançamento do Integralismo
Lusitano em 1914. Mas tal como a transformação intelectual de Sardinha
é anterior, também a percepção de que algo ia acontecer precedeu a
emergência do Integralismo. Foi logo na Primavera de 1913, passadas a
incursão “monárquica” de Paiva Couceiro e as greves anarquistas do ano
anterior, que o correspondente do jornal A Capital em Paris, Aquilino
Ribeiro, alertou os republicanos portugueses contra o que lhe pareceu
mais uma ameaça ao seu domínio em Portugal: as novas modas intelectuais em Paris. Segundo Aquilino, a França racionalista, anticlerical e
pacifista, que servira de referência aos republicanos portugueses, já não
existia. Em Paris, o «director espiritual» da geração nova, o filósofo Henri
Bergson, contestando a ciência em nome da intuição, abrira a muitos
o caminho para o regresso ao catolicismo. Os estudantes da Sorbonne,
antes do ténis, iam à missa, comungavam e interessavam-se pela Action
Française, o movimento monárquico fundado em 1899. Ora, como «Portugal é uma colónia intelectual da França», era inevitável que toda essa
maré contrária à república laicista acabasse por vir inundar o país.5
Aquilino acertou. Um ano depois, em Abril de 1914, António Sardinha e alguns amigos (Alberto Monsaraz, Hipólito Raposo, Luís de
Almeida Braga) faziam sair em Coimbra o primeiro número da revista
Nação Portuguesa, órgão do movimento a que chamaram “Integralismo
Lusitano”, e que lembrou a muitos uma Action Française à portuguesa.
A expansão do Integralismo foi notável. Três anos depois, em 1917, Sar-
dinha e os seus amigos dispunham de um diário em Lisboa, A Monarquia, e desmultiplicavam-se em artigos jornalísticos, folhetos, conferências e banquetes, todos muito concorridos. Era óbvio que uma sociedade dividida e atormentada pelo poder intolerante do Partido Republicano (desde 1910) e pela polémica intervenção na I Guerra Mundial
(1914-1918), estava preparada para acolher os Integralistas. Em 1918,
a lista de notabilidades e promessas da literatura, do jornalismo, das forças armadas, da indústria, das profissões liberais, da lavoura e até dos
sindicatos operários que tinham aderido ao Integralismo era já muito
longa.6 Três anos depois, em 1921, Raul Proença, na Seara Nova, reconhecia que uma “grande parte das modernas gerações” estava conquistada pelo Integralismo. Era, segundo Proença, a “expressão eloquente do
vácuo mental” da república.7 Mas não era só isso, nem apenas a força da
importação francesa (que Sardinha e os integralistas sempre negaram).8
Para os seus jovens campeões, a ascensão do Integralismo foi também
o resultado de uma luta contra as gerações mais velhas, instaladas em
posições de autoridade, e contra tudo aquilo que lhes tinham tentado
ensinar na universidade.
António Sardinha explicou que, mais do que uma corrente política
monárquica, o Integralismo Lusitano constituía um movimento de «renovação intelectual». O próprio Sardinha era um exemplo dessa renovação.
Em 1907, na Universidade de Coimbra, tinha sido um dos «intransigentes» da greve académica. Em 1910, a revolução republicana dera-lhe um
emprego de oficial do registo civil, mas também um grande desencanto.
Três meses depois do 5 de Outubro, já concluíra que a República nunca
conseguiria transformar os Portugueses. Afinal, aquilo que combatera na
monarquia «não era um defeito de regime, é um defeito de raça». Foi
esta decepção que o Integralismo o ajudou a ultrapassar.
Sardinha tinha sido formado num meio cultural em que a revolução
francesa de 1789 era aceite como um ponto de não retorno e se acreditava que o indivíduo podia e devia reformular a sociedade segundo
um plano racional que garantisse a felicidade na Terra. Charles Maurras e os outros teóricos da Action Française vieram desfazer estas ilusões.9 Para eles, havia nas coisas humanas uma ordem independente dos
desejos dos indivíduos, e não seria possível atingir nenhum bem-estar
sem respeitar essa ordem. Através do estudo dos factos da etnologia,
da psicologia colectiva, da história, pensavam ter demonstrado cienti
6
3
4
5
12
António Sérgio, Correspondência para Raul Proença, org. de José Carlos González,
Lisboa, Dom Quixote, 1987.
No que se segue, retomo, abreviando em alguns pontos e expandindo-o noutros,
o que sobre o Integralismo Lusitano escrevi em A Segunda Fundação (1890-1926),
vol. VI da História de Portugal dirigida por J. Mattoso, Lisboa, Editorial Estampa,
2001.
Aquilino Ribeiro, Páginas de exílio, org. de Jorge Reis, Lisboa, Editorial Vega, 1988,
vol. 1.
7
8
9
António Sardinha, A Prol do Comum, Lisboa, 1934, p. 12.
Raul Proença, Polémicas, org. de Daniel Pires, Lisboa, Dom Quixote, 1988,
p. 356.
Os críticos do Integralismo insistiram em referir-se-lhe sempre como uma “escola
de pensamento estrangeira”. Ver e.g. Carlos Ferrão, O Integralismo e a República,
Lisboa, Inquérito, 1964, vol. II, p. 237.
Sobre Maurras e o seu enorme impacto intelectual e literário, é fundamental a
biografia de Stéphane Giocanti, Maurras. Le Chaos et l’ Ordre, Paris, Flammarion,
2006.
13
ficamente que a humanidade tinha sido feita para viver em comunidades sujeitas a costumes e leis que fossem o resultado, não dos caprichos dos indivíduos, mas da própria vida em comum através da história.
A este modo de vida chamavam o «governo dos mortos», isto é, o
governo das tradições.10
Sardinha percebeu agora que o seu desalento fora o resultado de
acreditar que se podia refazer arbitrariamente a sociedade, segundo um
plano abstracto visando a perfeição. Mas ao renegar as ilusões do progressismo republicano, Sardinha não estava a cortar com todo o seu passado. Em Elvas, muito jovem, já se dava com eruditos locais, coleccionando manuscritos e apontamentos de investigação nos arquivos. Estava
apaixonado pelas antiguidades do Alto Alentejo e pela genealogia da
sua família, a quem, apesar da falta de documentação, tentou descobrir
nobreza. Aos 14 anos, cultivava uma ortografia arcaizante e um estilo
arrevesado. A Action Française e, através dela, a cultura sociológica francesa (Tocqueville, Comte, Le Play, Taine), possibilitou a Sardinha descobrir uma nova dimensão política para estes seus fascínios juvenis.
Os integralistas mobilizaram toda a erudição positivista portuguesa no
campo da história e da filologia (Teófilo Braga, Alberto Sampaio, Martins
Sarmento, etc.) para provar o «facto científico e experimental» da pátria.
Já desde Novembro de 1913 que Sardinha anunciava ao seu amigo Luís
de Almeida Braga sentir-se detentor de uma «verdade portuguesa», que
consistia num Estado de municípios livres animados pelo messianismo
celta. Inspirado pela teoria dos mitos de Georges Sorel, Sardinha interpretou o sebastianismo como uma «religião da esperança», um mito que
podia levar os portugueses à acção, visto que a força de uma nação
dependia da crença em si própria.11 O projecto de Sardinha tem a este
respeito óbvios paralelos no que Teófilo Braga sempre propusera e no
que Teixeira de Pascoaes pretendia na Renascença Portuguesa. E por
esse lado, o Integralismo funcionou como uma das componentes da
reconstrução e socialização de uma nova identidade nacional, projecto
claramente assumido por muitos grupos intelectuais nesta época.12
No entanto, a marca de água das centenas de páginas que Sardinha
escreveu para a imprensa integralista e que em 1924 começou a recolher em livro não é a beatitude da continuidade, mas a violência iconoclástica da ruptura. Sardinha entendia a sua obra sobretudo como uma
higiénica eliminação dos clichés, preconceitos e ideias feitas acumulados
ao longo de décadas.13 Dedicou-se particularmente à reinterpretação da
história de Portugal. Apoiado em documentação, refez, por exemplo,
as reputações da rainha D. Carlota Joaquina (num sentido positivo) e
Luís de Almeida Braga, Sob o Pendão Real, Lisboa, Edições Gama, 1941, p. 13.
António Sardinha, Da hera nas colunas, Coimbra, Atlântida Editora, 1929,
p. 264.
12
Ver Rui Ramos, A Segunda Fundação, cit., pp. 495-518.
13
António Sardinha, Ao princípio era o verbo, Porto, Edições Gama, 1940, p. 26.
10
11
14
do marechal Gomes Freire de Andrade (num sentido negativo). Fundou
assim no integralismo uma escola histórica que, baseada em métodos de
erudição documental, se dedicou a corrigir a versão liberal da história
(a mesma necessidade sentira então a Revista de História, de Anselmo
Braamcamp Freire). De Paul Bourget, Sardinha tomou o método de apontar o caminho à nova geração através da crítica e análise psicológica da
geração anterior, isto é, da geração de 1870. Escreveu longamente sobre
Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queirós, Fialho de Almeida,
explicando as supostas frustrações e paradoxos desses autores pelo facto
de não terem percebido que a única maneira de saírem da sociedade
“burguesa” não era pelo humanitarismo democrático, mas pelo regresso
à tradição ancestral. A verdadeira revolução era a revolução tradicionalista. Mas a análise de Sardinha não se ficou pela respeitabilidade da
erudição histórica e literária. Seguindo Vacher de Lapouge (La sélection
sociale), Sardinha não hesitou em adoptar um ponto de vista racista e
em escrever que a República era a «revivescência étnica dos pretos e
dos judeus, de que o Santo Ofício nos livrara inteiramente».14 Sardinha
também foi assim, e ocultá-lo seria falsificar a história.
Este estilo agreste, com arestas hoje frequentemente repugnantes,
deve ter dado a muitos jovens o sabor da insubmissão e da revolta contra a rotina intelectual do passado. Um dos amigos de Sardinha, Luís de
Almeida Braga, lembrou 30 anos depois como o Integralismo lhe deu a
impressão de uma libertação, após um curso de Direito numa Universidade de Coimbra secularmente dominada pela retórica da democracia e do progresso. Sardinha, aliás, cultivou sempre o ódio ao «espírito
universitário», às autoridades académicas. O Integralismo pôde assim
surgir, para muitos dos seus militantes, como a verdadeira continuação
da revolta juvenil de 1907: aquilo que, nesse ano, Sardinha e os seus
amigos haviam recusado sob a monarquia constitucional, era o mesmo
que iam recusar anos depois sob a república.15 Aliás, em Novembro de
1913, Sardinha explicara a Alfredo Pimenta que “mais que a ideologia
republicana, vamos demolir a mentira monárquico constitucional, de que
as direitas se nutrem ainda”.16
Os integralistas nunca aceitaram a acusação de versatilidade política.
Sardinha havia sempre de prestar homenagem ao que ele chamava o
«republicanismo nacionalista» de 1890, em que reconhecia a aspiração
de «restaurar a noção perdida do interesse e da consciência nacionais
contra o predomínio desaforado das diversas oligarquias do regime
António Sardinha, Durante a fogueira, Lisboa, Livraria Universal, 1927, p. 134.
Sobre o racismo de Sardinha, ver António José de Brito, Para a Compreensão
do Pensamento Contra-Revolucionário, Lisboa, Hugin, 1996, p. 92, onde se nota
que o anti-semitismo transparece também num pensador da esquerda republicana
como Raul Proença.
15
António Sardinha, Na feira dos mitos, Lisboa, Edições Gama, 1942, p. 79.
16
Carta transcrita em Alfredo Pimenta, A Propósito de António Sardinha, Lisboa,
Edição do Autor, 1944, p. 66.
14
15
constitucionalista».17 E ele era o primeiro a notar que a sua própria concepção da sociedade integralista era a de uma república, no sentido de
uma comunidade baseada na devoção cívica e na participação patriótica dos cidadãos na administração, apenas com um rei a dirigi-la, para
garantir a ordem tradicional contra os desvarios demagógicos. Sardinha
não detestava apenas a república parlamentar, mas também a monarquia constitucional e ainda a monarquia absoluta de Pombal, que principiara a destruir a sociedade tradicional.18 Pessoalmente, negou sempre
que se tivesse feito conservador. Era o mesmo revolucionário, místico
e violento.19
O colapso do domínio do Partido Republicano em 1917 e o governo
de Sidónio Pais deram uma breve oportunidade às gerações novas,
marginalizadas pelos partidos republicanos. Em Janeiro de 1918, Sardinha concluía que «Sidónio Pais está fazendo no País uma demonstração
interessante de integralismo». Sidónio fizera-se chefe do Estado e chefe
do Exército, consagrando, assim, o poder pessoal, que os integralistas
sempre tinham dito ser a melhor forma de governo. Anunciava-se que
ia limitar o Parlamento, criar uma câmara corporativa, colaborar com a
Igreja, organizar a economia sob a vigilância do Estado e estabelecer
a censura. Vários integralistas colaboraram com o sidonismo. Sardinha
foi eleito deputado; Hipólito Raposo, promovido a chefe de repartição
do Ministério da Instrução Pública, ajudou na elaboração da lei eleitoral
e da Constituição; José Pequito Rebelo, especialista em agricultura, foi
sondado para comissário-geral da Lavoura.20 Sardinha fez o discurso de
saudação a Sidónio Pais na Câmara Municipal de Elvas. Mas acima de
tudo, o sidonismo levou à “organização do Integralismo Lusitano como
movimento político”.21
Em Janeiro e Fevereiro de 1919, depois do assassinato de Sidónio
Pais (Dezembro de 1918), os Integralistas colaboraram na tentativa de
restaurar a monarquia – a chamada “monarquia do norte”. José Pequito
Rebelo e Alberto Monsaraz foram feridos em combate; Sardinha exilou-se em Espanha. Mas o seu caminho divergia cada vez mais do dos conservadores monárquicos. O campo monárquico era uma torre de Babel
de jornais e de grupos políticos com projectos e ideias completamente
diferentes. Aires de Ornelas, o lugar-tenente de D. Manuel queria a
restauração da Carta Constitucional, e não a implantação de um regime
novo. Aos integralistas, pelo contrário, a restauração não os interessava,
se não fosse o advento de um novo tipo de Estado. Desejavam uma
revolução, a municipalização, o corporativismo, o poder pessoal do chefe
19
20
21
17
18
16
António Sardinha, Ao princípio era o verbo, op. cit, p. 34-35.
ibid., pp. 131 e 135.
ibid., p. 194.
Teófilo Duarte, Sidónio Pais e o seu consulado, Lisboa, Portugália, 1942, p. 288.
António Costa Pinto, Os Camisas Azuis. Ideologias, Elites e Movimentos Fascistas
em Portugal, 1914-1945, Lisboa, Estampa, 1994, p. 31.
do Estado. Em 1921, Sardinha declarava publicamente que tinha sido
um bem a restauração ter falhado em 1912 ou em 1919.22 A monarquia
constitucional era para ele a «ignóbil mentira caída em 5 de Outubro».23
Entusiasmou-o mais a ditadura fascista de Mussolini em Itália, a partir de
1922, como sinal do triunfo da “reacção nacionalista” no Ocidente.24
Entre 1919 e 1922, os integralistas romperam primeiro com D. Manuel II
e depois com os miguelistas, suspendendo, finalmente, toda a actividade política. No meio de tudo isto, eles próprios se dividiram e divergiram. Em 1924, Sardinha sentia-se tão longe da monarquia como da
república. «Monarquia? República? Oh, a balbúrdia ignóbil dos mitos que
nada exprimem.».25 Nunca deixou de ser alguém à procura, deixando
aos seus companheiros sobreviventes o trabalho de debater em que
ponto estava no momento em que, imprevista e precocemente, morreu
a 10 Janeiro de 1925, aos 37 anos.26 Como teria recebido o Estado Novo
(1933-1974)? A verdade é que camaradas seus da primeira ordem combateram a ditadura de Salazar,27 e que um deles escreveu uma das mais
firmes defesas da liberdade de expressão contra a censura.28
António Sardinha, Glossário dos Tempos, Porto, Edições Gama, 1942, p. 305.
António Sardinha, Purgatório das Ideias, Lisboa, Livraria Ferin, 1929, p. 282.
24
Manuel Braga da Cruz, Monárquicos e Republicanos no Estado Novo, Lisboa,
D. Quixote, 1986, p. 27.
25
António Sardinha, A Prol do Comum, Lisboa, Livraria Ferin, 1934, p. 286.
26
Ver e.g. Luís de Almeida Braga, Posição de António Sardinha, Lisboa, Edições
Gama, 1943, pp. 68-69. O problema que para os Integralistas foi a interpretação
destes textos de Sardinha percebe-se melhor quando se tem presente que, como um
deles referiu, “o pensamento de António Sardinha era o pensamento integralista”.
Ver Leão Ramos Ascensão, O Integralismo Lusitano, Lisboa, Edições Gama, 1943,
p. 94, nota.
27
Por exemplo, em 1958, apoiando a candidatura do general Humberto Delgado,
como foi o caso de Luís de Almeida Braga e Francisco Rolão Preto.
28
Alberto de Monsaraz, Respiração Mental. O Problema da Censura, Lisboa, Edição
do Autor, 1956.
22
23
17
233.
Índice
Minha adorada noiva:
Muito de corrida, porque o tempo não me chega para nada. Vieram as
tuas coisas e a mobília de Lisbôa. Vae tudo numa poeira lá por cima!
Eu cada vez sinto mais funda e mais insanavel a enorme divida do
meu coração para contigo! Eu temo que não seja bastante longa a vida
para tam grande amor! E nem tu imaginas o que eu sofro e o que eu
vibro a dois dias da realisação do nosso sonho. Sofro, porque as consequencias da lucta sustentada começam agora a aparecer num enorme
desfalecimento que por tudo me assalta. Vibro, porque para deante de
mim eu vejo a claridade, eu vejo a ventura pela alegria do lar e pelo
triunfo das minhas legitimas aspirações. Eu te abençoo, creatura extranha que vieste a este mundo para seres ao meu lado a garantia absoluta dos meus planos de futuro!
De ontem para hoje empalideci duma maneira horrivel. É que eu nunca
supuz que a infamia fosse tanta e andasse tanto! Ante-hontem estiveram
aí umas pessôas da minha terra. Pois uns certos patricios, sobretudo um
Pe. Sáfaro, crivaram-n’as de perguntas a meu respeito. E então eu vim
a saber ao certo toda a trama porquissima em que me teem envolvido.
Cresceu, se crescer podia, o meu agradecimento, a minha gratidão para
contigo. Não pode epilogar desastradamente um amor que com tanta
nobresa se afirmou! Beijo-te as mãos por tudo e crê infinitamente no
teu e sempre teu:
Antonio
Monforte, 25-8-1912
P.S. E faqueiro? E as chaves da mala e do bahu? Diz por telegramma
o que vem lá dentro.
Antonio88
É esta a penúltima carta de António Sardinha para Ana Júlia Nunes da Silva
correspondente ao período que vai de meados de 1910 até Agosto de 1912.
A última, resume-se a algumas linhas datadas de 26 de Agosto de 1912 e que
aqui passamos a transcrever: “Querida Anninhas: Bem. E muito, mtº obrigado por
tudo! Vae o telegramma, por não poder mais. Teu, só teu: António”. O casamento
teria lugar, dois dias depois, 28 de Agosto de 1912, em Elvas. O casal instalar-se-ia
primeiro em Monforte, numa casa cedida pelo Padrinho de Sardinha, José Alfredo
Menici Sardinha. Em finais de 1914 mudam-se para Lisboa onde arrendam uma
casa na rua dos Prazeres.
88
516
9
Agradecimentos
11
Prefácio
19
O Corpus
37
Cartas de 1910
207
Cartas de 1911
445
Cartas de 1912
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Correspondência de António Sardinha - UCE