KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso:
entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.
Linguagem, sociedade e cognição
Capítulo 1
Eduardo Kenedy
Universidade Federal Fluminense
A linguagem humana
Caro aluno, a linguagem humana é um fenômeno impressionante. Ela se
faz presente em quase todos os momentos da vida de uma pessoa, desde o seu
nascimento, quando recebe um nome e é inserido numa comunidade de fala,
até a maturidade, quando transita diariamente pelos complexos sistemas de
comunicação e interação social modernos. Concretizada numa das milhares de
línguas hoje existentes no mundo, a linguagem humana nos impressiona
porque ela é capaz de fazer muito a partir de pouco. É com base em apenas
três ou quatro dúzias de sons que nós, falantes de uma língua natural
qualquer, como, por exemplo, o português, conseguimos dominar dezenas de
milhares de palavras, as quais, quando combinadas entre si de maneira
ordenada, nos permitem a produção e a compreensão de um número
potencialmente infinito de frases e textos. A posse da linguagem, com seu
ilimitado poder expressivo, faculta aos humanos a organização e a veiculação
de pensamentos, ideias, conceitos, valores e, dessa forma, insere cada
indivíduo que domina (pelo menos) uma língua no dinâmico e intenso fluxo
comunicativo das sociedades contemporâneas. Com efeito, os poucos sons da
linguagem oral podem ser substituídos por algumas letras num sistema de
escrita ou por centenas de sinais numa língua de surdos sem que, com isso, o
poder mobilizador da linguagem seja significativamente alterado. Seja na
fala, na escrita ou na sinalização, a experiência humana se faz rica e ilimitada
com a linguagem e pela linguagem.
Para que você tome consciência da complexidade social e cognitiva
subjacente a um simples ato da linguagem humana, pense no seguinte
exemplo.
Imagine
um
homem
que
caminha
distraído
pela
cidade,
aproveitando os momentos que ainda lhe sobram de seu horário de almoço.
Subitamente, ele se dá conta de que pode estar atrasado para o retorno ao
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trabalho e diz para si mesmo, com aquela voz interna e silenciosa que muitas
vezes ordena os nossos pensamentos: “Devo estar atrasado!”. Com essa
impressão, o homem se dirige a um transeunte e pergunta: “Com licença. O
senhor pode me informar as horas?”. O transeunte, por sua vez, compreende o
estado mental de seu interlocutor – sua intenção de ser informado a respeito
do horário – e busca o comportamento adequado para a situação: olha para o
relógio de pulso e dele retira a informação necessária, que é codificada na
frase-resposta “São doze e trinta”. A aparente banalidade de um evento como
esse esconde sob si um fenômeno extraordinário: a interação entre a mente
humana e a realidade sociocultural na tarefa de produzir e compreender
estruturas e significados linguísticos. Podemos não nos dar conta, mas, na
comunicação
humana,
o
indivíduo
que
fala
executa
um
trabalho
sociocognitivo muito complexo. Ele deve codificar os seus pensamentos e
ideias em palavras, que, por sua vez, devem ser combinadas entre si em
frases, as quais, por fim, são pronunciadas para um interlocutor num dado
contexto discursivo. Da mesma forma, a tarefa do indivíduo que compreende
é também engenhosa: ele deve decodificar os sons da fala que lhe são
dirigidos no ato do discurso, de modo a identificar palavras e frases para,
assim, conseguir interpretar os pensamentos e as ideias de seu colocutor. Ora,
podemos perguntar: como os humanos fazem isso? De que maneira essa
sequência de codificação e decodificação de formas e significados linguísticos
ocorre?
Pense bem, pois as respostas para essas perguntas não são nada fáceis
ou simples. Lembre-se de que as estruturas das frases e dos textos nas línguas
naturais são geralmente muito complexas. Mesmo se analisássemos uma frase
simples como “O senhor pode me informar as horas?”, encontraríamos nela
regras de ordenação de palavras, concordância, regência, seleção de
pronomes... enfim, verificaríamos a existência de uma suntuosa maquinaria
gramatical a serviço da comunicação e da interação social. Entretanto, a
despeito de toda essa complexidade, nós humanos somos capazes de produzir
e compreender frases e textos com extrema facilidade. Numa conversa
qualquer, produzimos e compreendemos dezenas, centenas, milhares de
enunciados, um após o outro, numa velocidade incrivelmente rápida, muitas
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vezes medida em milésimos de segundo. Em circunstâncias normais, fazemos
isso de maneira inconsciente e sem esforço cognitivo aparente. Ora, como
somos capazes disso? De que maneira nossas mentes se tornam aptas a
estruturar nossos pensamentos em frases e textos codificados em sons
socialmente compartilhados?
Ao formularmos essas perguntas, acreditamos ter despertado em você a
consciência do complexo mundo sociocognitivo que se esconde sob cada uso
cotidiano que fazemos da linguagem. De fato, esperamos ter também aguçado
o seu interesse pelos estudos linguísticos. Você deve saber que encontrar
respostas para tais perguntas é tarefa das ciências da linguagem. Essas
ciências vêm alcançando um extraordinário desenvolvimento ao longo das
últimas décadas e, assim, muitos segredos a respeito da estrutura e do
funcionamento das línguas naturais estão sendo rapidamente revelados.
Algumas dessas descobertas serão apresentadas a você neste livro. Nas
próximas páginas, gostaríamos de ter você como nosso convidado durante uma
breve incursão pelo fantástico universo sociocognitivo que pertence a mim e a
você: a linguagem humana.
Neste capítulo inicial, vamos aprender alguns conceitos fundamentais e
indispensáveis ao estudo da linguagem. Começaremos pelas noções de
linguagem e língua. Os termos parecem se referir a conceitos aproximados,
mas teremos uma seção inteira para entendermos que se trata, na verdade,
de duas realidades diferentes. Com base no que estudaremos sobre a noção
de língua, seguiremos para a seção em que diferenciaremos a dimensão
cognitiva da dimensão sociocultural da linguagem. Aprenderemos que uma
língua sempre existe simultaneamente no interior do indivíduo que a fala e no
seio da sociedade em que esse indivíduo se encontra inserido, sendo, por isso,
um fenômeno sociocognitivo (ou cognitivossocial). Logo em seguida,
trataremos do fantástico fenômeno da aquisição da linguagem. Vamos analisar
alguns aspectos da árdua tarefa das crianças, que, de maneira inconsciente e
compulsória, devem criar em suas mentes uma versão do sistema linguístico
que a elas se revela indiretamente na fala das pessoas que a circundam.
Também teremos, neste capítulo, uma seção dedicada às diferenças entre as
formas e as funções linguísticas. Estudaremos para que serve a linguagem
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humana e como ela dá conta de seus diversos ofícios. Por fim, apresentaremos
os principais fatos imbricados no uso da linguagem pelos indivíduos adultos,
que em tempo real precisam produzir e compreender frases e textos,
codificando e decodificando mentalmente informações nas diversas formas de
comunicação e expressão que se tornam possíveis pela língua. Esperamos que
você tenha apreciado esse roteiro, pois nossa viagem pelo mundo da
linguagem está apenas começando!
Linguagem e língua
Ferdinand de Saussure (1857/1913) foi um importante linguista francosuíço que ainda hoje é considerado o pai das modernas ciências da linguagem.
Foi Saussure quem formulou, explicitamente e com grande clareza, uma
importante distinção entre aquilo que compreendemos por linguagem e por
língua. Vamos entender do que se trata.
De acordo com Saussure, “a língua não se confunde com a linguagem,
pois é somente uma parte determinada e essencial dela” (1916: p. 17). O que
o mestre genebrino nos ensina nesta passagem é que a linguagem é um
fenômeno muito mais geral e abrangente do que uma língua. Comparada com
a linguagem, diz-nos Saussure, uma língua possui um caráter muito mais
específico. Para entender melhor isso, pensemos no seguinte. Você acha que
animais não humanos, como cachorros, gatos, macacos, pássaros etc.,
possuem algum tipo de linguagem? A resposta é um tanto óbvia: é claro que
sim. A maior parte dos animais possui algum sistema de comunicação que
permite a expressão de seus estados internos e a interação com o seu
ambiente. Por exemplo, se você possui um cão ou gatinho, certamente é
capaz de perceber o tipo de latido (ou miado) que ele produz quando está
com fome, com dor, quando se sente em perigo ou alegre. Embora as
mensagens
que
cães
e
gatos
possam
transmitir
com
seus
ruídos
característicos, com a posição do corpo, do rabo e com a emissão de certos
odores sejam um tanto limitadas, não há dúvidas de que se trata de um tipo
de linguagem que permite a comunicação tanto entre os membros daquelas
espécies animais, quanto entre eles e os seres humanos. Na verdade, alguns
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animais chegam a possuir sistemas de linguagem impressionantemente
complexos, como é o caso das abelhas. As abelhas possuem um complicado
sistema de dança em ziguezagueado que permite a indicação da direção e da
distância em que se encontra uma fonte de néctar que tenha sido descoberta
por alguma delas. As abelhas que, durante alguns minutos, observam a
abelhinha que localizou o néctar dançar para lá e para cá, chacoalhando o seu
corpo de maneira frenética, são capazes de “entender” a informação que está
sendo transmita e, logo ao fim da dança, rumam para a fonte do néctar com
bastante precisão. Ora, esse exemplo ilustra claramente a existência de uma
“linguagem dos animais”, ou, mais precisamente, a linguagem específica de
cada espécie animal em particular.
Você já deve ter entendido que a linguagem é um conceito bastante
abrangente, que se refere a todo e qualquer sistema de comunicação e
expressão. É por isso que podemos falar em “linguagem dos animais”,
“linguagem das cores”, “linguagem dos cheiros”, “linguagem corporal”,
“linguagem da arte” incluindo a “linguagem da dança”, “linguagem da moda”
etc. Pois bem, se linguagem é qualquer sistema de comunicação e expressão,
então o que é uma língua? Com efeito, língua é um tipo específico de
linguagem, como o próprio Saussure já havida dito. Afinal, uma língua
também é um sistema de comunicação e expressão e, assim, é uma forma de
linguagem. Acontece que a língua é uma forma singular de linguagem, com
características próprias que a distinguem de todas as demais linguagens
animais ou humanas não-verbais. Que características são essas, você deve
estar se perguntando? Trata-se de dois fatores sociocognitivos muito
importantes. Vejamos cada um deles a seguir.
O primeiro fator que distingue uma língua humana qualquer, como o
português, o inglês ou o xavante, dos demais sistemas de linguagem é a
existência de um léxico. O léxico pode ser compreendido como o conjunto de
palavras e expressões que são socialmente compartilhadas pelos falantes de
uma dada língua. No léxico, encontramos uma coleção de formas
(significantes) que são associadas sistematicamente a certos conteúdos
(significados). Assim, por exemplo, em português possuímos o significante
[kaza] (representado na escrita pela grafia “casa”) que será sempre associado
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ao significado [tipo de moradia] todas as vezes que usarmos essa palavra.
Também temos no léxico de nossa língua o significante [a], sufixo presente ao
fim da forma [menina], ao qual está associado o significado [pessoa do sexo
feminino]. Da mesma maneira, temos o significante da expressão [dar uma
mãozinha] que se associa, em língua portuguesa, ao significado [oferecer
ajuda]. O número total de palavras e expressões existentes num léxico é
bastante variável de língua para língua. A título de ilustração, saiba que um
falante escolarizado do português do Brasil domina pelo menos 50.000 itens,
sem contar as formas flexionadas das palavras (como as diversas expressões
do verbo “estudar”: estudo, estuda, estudamos, estudava, estudarei,
estudaria etc.), mas os dicionários da língua portuguesa chegam a registrar de
200.000 a 400.000 palavras. Trata-se de números bem impressionantes, não?
Pois bem, nos sistemas gerais de linguagem não existe nada parecido com o
léxico das línguas humanas. Afinal, quantos tipos de latido, miado ou cantar
podem ser discriminados pelos cães, pelos gatos ou pelos pássaros? Quantas
“palavras” poderíamos transmitir com a linguagem corporal, com a linguagem
dos cheiros ou pela dança? Ainda que consigamos catalogar um grande número
delas, não encontraríamos algo tão organizado, sistemático e vasto como o
léxico de uma língua.
O segundo fator que distingue uma língua dos demais tipos de
linguagem é o mais importante: as línguas humanas possuem um sistema
combinatório, que chamamos de gramática. Esse sistema é capaz de combinar
entre si, de maneira ordenada e controlada por regras, as unidades do léxico,
de modo a construir expressões compostas como as frases e os textos. Por
exemplo, o léxico do português possui unidades como “casa”, “bonita”,
“comprar”, “você”, “mais”, porém é a gramática dessa língua que permitirá a
criação de expressões complexas como “que casa mais bonita você
comprou!”. O interessante é que, se o número de itens existentes num léxico
qualquer já é consideravelmente grande, ele não é quase nada quando
pensamos no número de expressões que o sistema combinatório de uma língua
pode gerar utilizando suas regras computacionais. De fato, o número de frases
e textos que podemos construir numa língua ao combinarmos léxico e
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gramática é ilimitado. Quando falamos uma língua, somos capazes de produzir
e compreender um número infinito de frases e textos.
Se compararmos as línguas humanas com os sistemas mais gerais de
linguagem (humanos ou animais), poderemos deduzir que a principal
diferença entre eles é a recursividade – também denominada infinitude,
criatividade ou produtividade –, que existe somente nas línguas. A
recursividade é justamente a capacidade de criar um número infinito de
frases e textos com base no número finito de palavras existentes no léxico. A
recursividade emerge, portanto, da combinação entre os dois componentes
fundamentais de uma língua: o léxico e o sistema combinatório (gramática).
Neste momento, você talvez tenha curiosidade de saber se existe algum tipo
animal não humano que possua língua (e não apenas linguagem). Muito bem,
os cientistas ainda não conseguiram registrar nenhuma espécie de vida, além
dos humanos, que use algum sistema de comunicação remotamente parecido
com uma língua natural. Por tudo o que até hoje sabemos, somente nós
humanos conseguimos usar um sistema de linguagem com recursividade. É por
isso que as línguas parecem ser um verdadeiro patrimônio da humanidade,
algo que nos distingue claramente de todas as formas de vida conhecidas pela
ciência. A posse da linguagem, na forma de uma língua, é de fato uma das
características mais distintivas e mais importantes do homo sapiens. Não
obstante, existem muitos cientistas que vêm tentando ensinar uma língua
humana a animais inteligentes, como os chimpanzés e algumas espécies de
papagaios e de golfinhos. Nos links a seguir, você poderá encontrar alguns
documentários que registram essas tentativas de ensino de línguas entre
espécies.
Washoe - chimpanzé fêmea que aprendeu a dominar diversas formas da língua
norte-americana de sinais.
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=UAJAV0PJmsw
Alex – papagaio cinza africano que conseguia comunicar-se usando várias
palavras do inglês.
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=VZ2j1jOwAYU
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Você provavelmente ficará encantado com as proezas linguísticas
desses animais raríssimos e geniais. Mas acreditamos que não ficará
convencido de que eles de fato “aprenderam” a usar uma língua e
demonstram domínio de um léxico e de um sistema combinatório. O máximo
que podemos dizer é que esses adoráveis bichinhos são capazes de aprender,
após intensos anos de treinamento, um sistema de linguagem bastante
complexo e avançado, inspirado no léxico das línguas humanas – algo
fantástico que, por si só, já é merecedor de destaque científico. No entanto,
usar essas pesquisas para alegar que macacos ou papagaios são realmente
capazes de aprender e usar uma língua humana é um flagrante e descomunal
exagero, o qual se motiva muito mais por questões ideológicas (por exemplo,
conferir maior importância ao aprendizado sociocultural em oposição à
natureza biológica humana na aquisição de conhecimento) do que linguísticas.
Até o momento, com efeito, a linguagem, na forma de um sistema
combinatório que opera recursivamente sobre um léxico, é um fenômeno
identificado somente na espécie humana e ainda irreproduzível nos sistemas
de inteligência artificial desta segunda década do século XXI.
Muito bem, agora que você já sabe distinguir linguagem e língua, fique
atento às expressões “linguagem” ou “linguagem humana”. Muitas vezes,
essas expressões querem dizer “língua” (léxico e gramática) e não apenas
“linguagem” (qualquer sistema de comunicação). É bem verdade que podemos
usar esses termos de maneira um tanto livre e mais ou menos metafórica, no
dia a dia ou mesmo ao longo de um livro mais especializado – como, de fato,
já o fizemos e tornaremos a fazer aqui -, mas, sempre que necessário,
devemos distinguir tais conceitos.
Língua = fenômeno cognitivo e sociocultural
As línguas humanas são uma autêntica maravilha do mundo natural e
sociocultural. Talvez você já se tenha dado conta de que, desde que estejam
inseridos num ambiente de interação social, todos os indivíduos saudáveis, de
todos os tempos da história e de todas as culturas humanas, desenvolvem, de
maneira natural e espontânea, a habilidade de produzir e compreender
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oralmente palavras, frases e textos na língua de seu ambiente. Por exemplo,
uma criança que nasça no Brasil desenvolverá, já nos primeiros anos de vida,
a capacidade linguística de produção e compreensão de enunciados em
português, numa de suas modalidades socioculturais – se não o português,
então uma das línguas minoritárias do país (por exemplo, uma língua
indígena), que será assim a língua ambiente dessa criança. Essa capacidade
permanecerá na mente da criança no curso de sua vida saudável e será
modificada, na adolescência e na vida adulta, de acordo com suas
experiências particulares. Como maravilha do mundo natural e sociocultural,
o fenômeno das línguas humanas comporta necessariamente duas dimensões:
uma dimensão individual e mental e uma dimensão coletiva e sociocultural.
Sempre que temos o fenômeno linguagem humana, temos, de um lado, o
indivíduo particular que possui a capacidade mental de produzir e
compreender expressões linguísticas e, do outro lado, temos a sociedade em
que esse indivíduo se insere, a qual lhe forneceu não só os contextos de uso
da linguagem em interação com outros humanos, mas também os sons e as
palavras necessários à expressão verbal.
O influente linguista norte-americano Noam Chomsky (nascido em 1928
e ativo até o presente) formulou dois importantes conceitos para dar conta da
diferença entre a dimensão individual e psicológica das línguas e a sua
dimensão social e cultural. Chomsky, em seu clássico livro de 1986, propôs
que a dimensão mental e cognitiva do fenômeno da linguagem seja
sintetizada pelo conceito de Língua-i, em que “i” significa interna, individual.
Já a dimensão sociocultural das línguas é denominada por Chomsky como
Língua-e, em que “e” quer dizer externa, extensional. Vejamos melhor esses
conceitos.
A noção de Língua-e corresponde grosso modo ao que comumente se
interpreta como língua ou idioma no senso comum. Por exemplo, o português
é uma Língua-e no sentido de que é esse fenômeno sociocultural, histórico e
político que compreende um conjunto sons, palavras, regras gramaticais e um
sistema de escrita que, em conjunto, permitem a comunicação e a interação
entre os seus falantes. Trata-se de um fenômeno supra-individual, na verdade
exterior ao indivíduo. Quando dizemos que o russo é a língua da Rússia ou que
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o chinês é a língua da China, entendemos língua como esse fenômeno
desincorporado dos falantes, a Língua-e. Da mesma forma, quando dizemos
que uma criança nascida no Paraguai provavelmente aprenderá a falar
espanhol e guarani, mais uma vez nos referimos a um fenômeno cuja
existência é externa às pessoas e, nesse caso, do qual elas devem se
apropriar: as línguas do ambiente, as Línguas-e.
A noção de Língua-i, por sua vez, corresponde ao conjunto de
habilidades mentais que permitem ao indivíduo a produção e a compreensão
de um número potencialmente infinito de expressões na sua língua ambiente.
Uma Língua-i diz respeito, portanto, àquilo existente no interior da mente das
pessoas, que lhes faculta a aquisição e o uso cotidiano de uma língua natural.
Nesse sentido, se entende que uma língua seja parte do sistema cognitivo
humano. Uma Língua-i é uma faculdade psicológica ou, por assim dizer, um
órgão mental. Todo indivíduo humano sem deficiências neuropsicológicas
graves é capaz de manipular, em sua língua, diversos recursos gramaticais e
textuais que veiculam significados do indivíduo para o mundo exterior e desse
para a consciência do indivíduo. Essa competência cognitiva para a
manipulação das estruturas e dos significados da linguagem é individual e
inconsciente. É a ela que nos referimos com o conceito de Língua-i.
É muito importante que você compreenda que uma língua é ao mesmo
tempo um fenômeno cognitivo e individual (uma Língua-i) e um fenômeno
coletivo e sociocultural (uma Língua-e). Embora nem sempre usemos os
termos chomskianos, essa dualidade está lá inevitavelmente todas as vezes
em que falamos sobre as línguas. Às vezes, quando pensamos sobre a
linguagem humana, precisamos ter clareza se estamos discutindo aspectos
cognitivos ou aspectos socioculturais da língua – ou mesmo se estamos
considerando ambos os aspectos em interação. Fique, portanto, sempre
atento a esse particular.
Aquisição da linguagem
Para que você compreenda a dramática situação sociocognitiva em que
se encontra um bebê na fase de aquisição da linguagem, vamos liberar a
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imaginação com a seguinte história fantástica. Suponha que você seja
abduzido por alienígenas. Você acordaria numa galáxia distante, cercado de
criaturas diferentes, cujos comportamentos você não compreende. Apesar de
toda a estranheza inicial, não lhe seria difícil notar que tais criaturas possuem
uma espécie de orifício em sua extremidade superior (algo como uma boca),
de onde certos sons são regularmente emitidos. Com um pouco de
observação, você consegue perceber que esses estranhos seres parecem se
comportar de alguma maneira relacionada aos sons que trocam entre si. Por
exemplo, você vê um ser alto emitindo sequências de sons enquanto um
baixinho o observa. Ao final da produção de sons, o baixinho se desloca no
espaço, toma um objeto para si e o leva até o altão, como se tivesse
cumprido um pedido ou uma ordem. Para você, parecerá coerente concluir
que os sons compartilhados entre esses alienígenas sejam uma espécie de
sistema de comunicação e você, para conseguir descobrir o que aconteceu
consigo, onde você está, quem são essas criaturas etc., terá de aprender a
usar esse sistema. Tal tarefa não será nada fácil, pois você não contará com
nenhum professor de “alienígena para terráqueos”, nenhum livro ou curso
preparatório e, além disso, o aparente sistema de comunicação usado por
aquelas criaturas não é semelhante a nenhum outro que você já tenha visto
antes...
Se você conseguiu compreender o quão dramática seria essa situação,
está apto a entender que a aquisição da linguagem pelos bebês e pelas
crianças é um autêntico milagre do mundo biocultural. Note bem, os bebês
chegam a um mundo completamente desconhecido, retirados que foram do
aconchegante útero materno. Esse mundo é povoado por seres estranhos ao
bebê (os seres humanos) cujo comportamento parece estar estreitamente
relacionado aos sons que todos trocam entre si. Tais sons mais parecem ao
bebê uma grande confusão, um continuum de ruídos quase indecifráveis.
Afinal, como um bebê poderia identificar, no fluxo da fala humana, onde um
som termina e o outro começa? No entanto, já ao nascer, os bebês parecem
ser muito espertos e, para eles, não é difícil deduzir que os sons emitidos
pelas criaturas que o circundam constituem, na verdade, um sistema de
comunicação. Talvez em razão do que famoso psicólogo de Harvard, o
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canadense Steven Pinker, denominou de instinto para a linguagem, um bebê
humano rapidamente “compreende” que precisa dominar esse sistema para
descobrir o que os seres ao seu redor dizem e também para que ele próprio
possa dizer alguma coisa e comunicar-se com as outras pessoas. Mas bebês e
crianças estão, em grande parte, quase sozinhos no interior de suas mentes
durante a odisseia pela descoberta e pelo domínio da língua do seu ambiente.
Eles não possuem um professor particular de “língua humana para bebês
recém-nascidos” e, o que é mais grave, o seu cérebro é ainda um
protocérebro, ou seja, apenas um rascunho do potente processador de
informações que é o cérebro de um indivíduo maduro. Suas capacidades
cognitivas são, portanto, enormemente inferiores às do adulto abduzido para
outra galáxia de nosso exemplo.
Usamos a palavra “milagre” para descrever a aquisição da linguagem
pelos bebês e pelas crianças porque, apesar de todas as dificuldades que
descrevemos, os pequenos humanos conseguem dominar a língua de seu
ambiente, para a compreensão e a produção da linguagem, com extrema
eficiência e num intervalo de tempo incrivelmente pequeno, que não
ultrapassa três ou quatros anos. As crianças pequenas sequer parecem fazer
esforço cognitivo para adquirir a sua língua materna. De fato, a aquisição da
linguagem é muito mais algo que simplesmente acontece com os bebês e com
as crianças – e não algo que elas façam deliberadamente com o seu pequeno
cérebro em formação.
A par de ser um fenômeno sociocognitivo extraordinário, a aquisição da
língua do ambiente (ou das línguas do ambiente, no caso das comunidades
bilíngues ou multilíngues) é um dos eventos mais importantes na vida de um
ser humano. Esse fenômeno é ao mesmo tempo a porta de entrada para as
relações sociais humanas, que são quase sempre mediadas pela linguagem, e a
janela para o aperfeiçoamento cognitivo individual, uma vez que grande parte
da cognição humana se utiliza da linguagem como instrumento de
desenvolvimento e de complexificação. Na verdade, o que chamamos de
aquisição da linguagem é um fenômeno duplo, que envolve a aquisição de dois
diferentes tipos de habilidades sociocognitivas. Vejamos isso em mais
detalhes.
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Um tipo particular de aquisição da linguagem é aquele que
denominamos de aquisição em sentido amplo, ou aquisição da linguagem lato
sensu. Em seu sentido amplo, adquirir linguagem significa apropriar-se das
habilidades de comunicação, expressão e interação social. Esse tipo de
aquisição demanda dos bebês e das crianças a absorção dos aspectos mais
gerais da linguagem, tais como a interação sociocomunicativa, a organização
de conceitos e de pensamentos e envolve, também, o desenvolvimento das
noções de autoconsciência e de individualidade nas relações humanas. Na
aquisição da linguagem lato sensu, a criança adquire, na verdade, os
fundamentos da interação entre os humanos: os valores e as ações imbricados
nos usos da linguagem, a própria noção de si, a percepção do(s) outro(s), os
modos de interagir socialmente e assim por diante.
O outro tipo de aquisição da linguagem é muito mais específico e, por
isso mesmo, denomina-se aquisição em sentido restrito ou aquisição da
linguagem stricto sensu. Em seu sentido restrito, adquirir linguagem significa
apropriar-se do léxico e do sistema combinatório existentes na língua do
ambiente. Esse tipo de aquisição demanda dos bebês e das crianças a
habilidade de discriminação perceptual e de articulação intencional de toda a
maquinaria gramatical necessária ao funcionamento da língua. Na aquisição
stricto sensu, a criança adquire, de fato, o aparato linguístico formal que
estará a serviço das interações sociais e da organização cognitiva do indivíduo
em desenvolvimento.
Se você já entendeu a diferença entre aquisição da linguagem lato
sensu e stricto senso, podemos agora falar um pouco mais sobre a aquisição
em sentido restrito. Um dos fatos mais intrigantes a respeito do processo de
aquisição do léxico e do sistema combinatório da língua do ambiente é que
ele parece ser universal. As fases pelas quais passam os bebês e as crianças
durante a aquisição stricto sensu são muito semelhantes em todas as culturas
do mundo, seja qual for a língua do ambiente e seja qual for o nível de
inteligência geral da criança. O que isso quer dizer é que todas as crianças
parecem
atravessar
as
mesmas
etapas,
nos
mesmos
estágios
de
desenvolvimento biológico, desde o nascimento até o domínio completo da
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língua, estejam onde estiverem, em qualquer classe social e sob qualquer tipo
de cultura. Vejamos alguns exemplos.
Já ao nascer, todas as crianças normais balbuciam no ritmo da sua
língua ambiente. Na verdade, algumas pesquisas recentes descobriram que o
choro de bebês recém-nascidos transcorre conforme o ritmo e a melodia da
língua que a circunda (Wermke e al., 2011). Esses fatos parecem indicar que a
aquisição da linguagem tem início ainda no útero materno, quando aspectos
sonoros da língua do ambiente (como o ritmo, a entoação e o acento) já
parecem ser discriminados pelo feto. Você pode conferir um interessante
vídeo sobre a precocidade na aquisição de sons e ritmos de uma língua no link
abaixo.
Robert Lent (UFRJ) – Os bebês choram em que língua?
http://www.youtube.com/watch?v=e1vqLu_qFv4
Não obstante, o grande salto qualitativo na produção linguística dos
bebês ocorre aos 12 meses, quando eles já são capazes de produzir suas
primeiras palavras reconhecíveis como tais. Essas são, na verdade, mais do
que simplesmente “palavras”, pois sempre assumem o valor de uma frase
completa inserida num contexto discursivo. Independente da língua do
ambiente, as primeiras palavras produzidas por uma criança são sempre
monossilábicas e seguem a estrutura [consoante + vogal]. Em pouco tempo,
essa estrutura vai tornando-se cada vez mais complexa e caminha em direção
à complexidade existente na fala adulta circundante. Por exemplo, uma
criança brasileira, pode dizer algo como “bó”, parar significar uma frase
inteira, como “olhe, a bola”, ou “onde está a bola?”, ou “ele furou a bola”,
conforme o contexto permita compreender. Pouco meses depois, “bó”
ganhará complexidade fonológica e tomará a forma convencional de “bola”. O
mesmo fenômeno pode ser observado com as centenas de outras palavras que
as crianças adquirem durante essa fase, que os linguistas nomeiam fase
holofrástica.
Com pouco menos de 24 meses, as crianças já atingem a fase de duas
palavras (também chamada de fase sintagmática). Nessa etapa de seu
desenvolvimento linguístico, frases com estruturas do tipo sujeito e predicado
KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso:
entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.
semelhantes às dos adultos começam a ser produzidas pelos bebês. São frases
como “qué papá”, “mais colinho”, “meia papai” e “banho não”. O
interessante é que os enunciados produzidos pelos bebês durante a fase
sintagmática não são apenas uma combinação entre duas palavras soltas. Pelo
contrário, tal como ocorre na fase holofrástica, essas palavras também
assumem o valor de um ato comunicativo completo, cuja interpretação é
dependente do contexto interacional e comunicativo.
Por volta dos 30 meses de vida, as crianças já conseguem criar frases
com extensão ilimitada, compostas por três, quatro, seis, nove, dez
palavras... Interessantemente, ao longo dessa fase, chamada de fase
telegráfica, artigos, preposições, conjunções e pronomes estão ainda ausentes
na fala infantil. Com efeito, até o terceiro ano de vida, as palavras que as
crianças inserem em frases e textos são sempre itens de conteúdo referencial,
como substantivos, adjetivos e verbos. As partículas gramaticais, que possuem
conteúdo puramente formal, só emergem na fala das crianças de modo
consistente a partir dos 36 meses de vida – embora haja intensas variações
individuais sem causa aparente registradas pelos cientistas. É possível dizer
que, ao mais tardar, aos quatro anos de vida, a língua que uma criança
domina para a produção e para a compreensão da linguagem é indistinguível
da de um adulto. As únicas diferenças, é claro, dizem respeito aos aspectos
linguísticos que envolvem letramento, escolarização e certas regras de
comportamento social que se desenvolvem posteriormente, na adolescência e
na vida adulta.
Infelizmente, parece existir um fim para o período da aquisição da
linguagem. Isto é, os humanos não podem adquirir a língua do ambiente tão
rapidamente e sem esforço em qualquer momento de sua vida, da infância à
velhice. O neurocientista alemão Erick Lenneber (1921-1975) denominou de
período crítico (ou idade crítica) a fase de desenvolvimento físico e cognitivo
humano no limite da qual a aquisição da linguagem deve acontecer. Há muitas
discussões sobre qual seria o fim dessa fase, mas, como existem muitas
variações individuais no desenvolvimento humano, não é possível defini-lo
com precisão. A maioria dos estudiosos aponta a puberdade, por volta dos 12
ou 13 anos, como o momento em que “a janela automática” para a aquisição
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da linguagem se fecha. A partir de então, a aquisição da linguagem não é mais
possível e tudo o que podemos fazer para dominar uma (nova) língua é
aprendê-la por meio de estudos formais, em escolas ou cursos de idioma. O
conceito de aquisição opõe-se ao de aprendizado porque a aquisição da
linguagem ocorre na infância de maneira espontânea, natural e mesmo
involuntária, enquanto o aprendizado de línguas estrangeiras demanda do
adolescente e do adulto esforço consciente e instrução mais ou menos formal.
A linha divisora entre aquisição e aprendizado é justamente a idade crítica.
Formas e funções linguísticas
Muito bem, já sabemos diferenciar linguagem e língua, compreendemos
as dimensões cognitiva e sociocultural de uma língua natural e temos noção
da pequena epopeia que cada ser humano atravessa, em tenra infância, ao
longo da aquisição da(s) língua(s) de seu ambiente. Mas e se perguntassem a
você para que serve uma língua (como o português), qual seria a sua resposta?
Muito provavelmente, você diria algo como para permitir a comunicação
entre as pessoas. Em essência, tal resposta está correta. Contudo, a pergunta
é mais complexa do que parece, de tal modo que é preciso esmiuçá-la um
pouco mais. Façamos isso.
A questão para que serve uma língua pressupõe dois conceitos
fundamentais: (1º) as línguas possuem um conjunto de formas e (2º) cada uma
dessas formas “serve” para algum fim, isto é, cada forma linguística possui
uma dada função ou um conjunto de funções. As formas existentes numa
língua podem ser também denominadas como estrutura. Trata-se da
superfície ou o meio concreto pelo qual uma língua se realiza nos atos de fala
humanos. Por exemplo, uma palavra e uma estrutura sintática são ilustrações
de formas que usamos quando produzimos e compreendemos enunciados
numa língua. Quando estudamos linguística e falamos dos aspectos formais de
uma língua, estamos fazendo referência exatamente a essa aparato estrutural
que precisamos utilizar para que a língua tome vida num ato linguístico
qualquer. Por outro lado, sabemos que as formas de uma língua não existem
por si mesmas. Com efeito, a razão de ser de cada forma linguística é
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desempenhar uma determinada
função. O escritor Graciliano Ramos
compreendeu isso perfeitamente ao afirmar que “A palavra não foi feita para
enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”. No caso, “o
dizer da palavra” é justamente a sua função. Dizendo de outra maneira, uma
forma linguística não existe senão para provocar algum efeito de significado
ou de sentido, isto é, uma forma não existe senão pela sua função.
Para que você entenda melhor a dualidade entre forma e função, pense
nos seguintes exemplos. Em português, usamos um determinado som (e não
outro) em razão de sua função distintiva, e assim conseguimos dizer, por
exemplo, [sorte] e não [forte] pela oposição entra as formas [s] e [f].
Podemos usar uma forma de entonação ascendente para caracterizar a função
de uma pergunta (ex. “João saiu?”) e uma forma descendente para a função
assertiva (ex. “João saiu.”). Podemos usar a forma de um sufixo diminutivo,
como em [casinha], para conferir uma função afetiva ou depreciativa à
palavra “casa”. Podemos usar uma frase na forma da voz ativa com a função
de destacar o agente de um determinado processo (ex. “João cometeu
erros”), ou podemos usar a forma da voz passiva para esconder o agente da
ação e destacar o objeto do verbo (ex. “Erros foram cometidos”). Em suma, o
que queremos dizer é que uma forma linguística (um som, uma entonação, um
sufixo, uma voz verbal etc.) é a maneira pela qual uma dada função se realiza
materialmente na língua.
Se você compreendeu o que são formas e funções linguísticas, talvez
possa agora repensar a sua resposta à questão para que serve uma língua
(como o português)?. Na verdade, as formas existentes numa língua se
prestam a inúmeras funções. Não é possível descrever todas elas neste
capítulo, mas podemos dizer a você que, em sua grande maioria, as funções a
que se destinam as formas linguísticas são eminentemente comunicativas. É
por isso que importantes estudiosos, como o já citado Steven Pinker,
acreditam que as línguas “servem” para a comunicação humana. Não
obstante, cientistas não menos ilustres, como o também já mencionado Noam
Chomsky, um dos linguistas mais influentes de todos os tempos, destacam
outras funções linguísticas que são tão importantes ou ainda mais vitais do
que a comunicação, tais como a organização do pensamento e a criação do
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conhecimento individual. De fato, muitas vezes nós humanos usamos a língua
internamente, em voz alta ou em silêncio, como se falássemos com o nosso
próprio eu – e isso, é claro, não pode ser considerado literalmente
comunicação. Isso quer dizer que, ainda que a comunicação possa ser a
primeira e mais fundamental função das línguas, não podemos desprezar as
outras funções, tais como a metacognitiva, isto é, a função de organização do
pensamento, e a instrumental, isto é, a função adquirir e organizar outros
tipos de cognição, como o conhecimento matemático, o conhecimento sobre a
História, o conhecimento sobre as relações sociais etc.
Atento à natureza comunicativa das línguas, o psicólogo austríaco Karl
Buhler (1879-1963) foi um dos primeiros a tentar sintetizar, de maneira
esquemática, as correlações entre linguagem e comunicação. Foi ele quem
destacou que os usos da linguagem pressupõem (1) um emissor, (2) uma
mensagem e (3) um destinatário. Esse modelo tripartido de comunicação se
tornou mais complexo na análise do linguista russo Roman Jakobson (18961982), que introduziu as noções de (4) referente, de (5) canal comunicativo e
de (6) código linguístico. É desse modelo de Buhler e Jakobson que se derivam
as famosas funções da linguagem, que são estudadas no ensino médio: (1) a
“função emotiva”, em que o emissor da mensagem se destaca; (2) a “função
poética”, em que a própria mensagem transmitida é destacada; (3) a “função
conativa”, na qual o destinatário da mensagem assume a função central; (4) a
“função referencial”, em que o referente é o foco da comunicação; (5) a
“função fática”, em que o canal comunicativo é meramente testado e (6) a
“função metalinguística”, que se estabelece quando é o próprio código
linguístico (a língua) o fator de destaque na comunicação. Na realidade, as
funções linguísticas, entendidas como as funções que determinadas formas
podem desempenhar nos usos da língua, são muito mais numerosas do que
essas seis, todavia tal modelo parece ser bom caminho para começarmos a
entender as funções comunicativas e expressivas que as formas da linguagem
humana podem desempenhar.
Se você for uma pessoa curiosa, talvez tenha pensado: será que existe
alguma relação natural entre uma determinada forma e sua respectiva
função? Ou será que formas e funções linguísticas são associadas de uma
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maneira um tanto imprevisível, que precisa ser memorizada pelos falantes de
uma determinada comunidade? Boa pergunta. Na verdade, esse é um
questionamento milenar, que remonta à antiga Grécia clássica. Os filósofos
gregos que se dedicavam ao estudo da linguagem dividiam-se, basicamente,
entre os analogistas e os anomalistas. Em termos muito simples, os
analogistas afirmavam que as formas da linguagem eram análogas às suas
funções e era somente em razão da passagem do tempo que, para as novas
gerações de falantes, a analogia entre forma e função deixava de ser
percebida. Por seu turno, os anomalistas sustentavam que as relações entre
forma e função sempre foram totalmente acidentais e improvisadas, um
verdadeiro acordo social tacitamente estabelecido entre os falantes de uma
língua humana. Contemporaneamente, a controvérsia entre analogistas e
anomalistas é reanalisada na oposição iconicidade versus arbitrariedade.
Vejamos o que é isso.
Comecemos
pela
arbitrariedade.
Dizer
que
uma
forma
está
arbitrariamente associada a uma função significa assumir que não é possível
deduzir espontaneamente a que função determinada forma se presta. Sendo
assim, torna-se preciso aprender e memorizar, caso a caso, a correspondência
entre cada forma e sua respectiva função numa dada língua, tal como
apregoavam os anomalistas. Um bom exemplo disso é a relação existente
entre o significante (forma) e o significado (conteúdo) de cada uma das
palavras do léxico do português. Só sabemos que a forma [kaza] (que
escrevemos “casa”) deve ser associada ao conteúdo [tipo de moradia] porque
aprendemos isso durante a aquisição da linguagem. Mas a relação entre forma
e conteúdo nessa palavra é totalmente arbitrária, isto é, não é natural ou
motivada por algum princípio lógico. Isso tanto é verdade que, noutras
línguas, o mesmo significado (conteúdo) pode ser codificado por outro
significante (forma), tal como o termo “house”, que em inglês é a forma
correspondente do conteúdo [tipo de moradia]. Noutras palavras, ao
afirmarmos que uma forma é arbitrária em relação à sua função, estamos
dizendo que não existem semelhanças entre o feitio de determinada forma e
o seu respectivo conteúdo. Por exemplo, a aparência física de uma “casa” não
se assemelha em nada à forma [kaza], em português, ou à forma [hauz], em
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inglês. Com efeito, a língua portuguesa, no curso de sua história, poderia ter
escolhido arbitrariamente qualquer outra forma para expressar o conceito
[tipo de moradia]. A escolha por [kaza] foi arbitrária.
Vejamos outros exemplos de arbitrariedade entre forma e função. Em
língua portuguesa, a forma de entonação ascendente ao fim da frase
desempenha a função de formular perguntas. Dizemos que a relação entre
essa forma e essa função é arbitrária porque não há nada natural entre uma
subida melódica e a “expressão de perguntas”. Trata-se de uma associação
arbitrária que todos os falantes do português precisam aprender e memorizar.
Também a sequência “sujeito > verbo > objeto” é uma forma arbitrária de
codificar, numa dada frase, a relação entre um agente, uma ação e um
paciente. Embora a nós, falantes de português, pareça razoável pensar em
codificar os participantes de uma ação na ordem “quem fez o que a quem”,
não existe nada que torne essa ordem “mais natural” do que outra: trata-se,
novamente, de uma arbitrariedade. De fato, a maioria das línguas do mundo
apresenta a ordenação “sujeito > objeto > verbo” e, assim, codifica na frase
os participantes de uma ação na sequência “quem fez a quem o quê”, noutro
tipo de seleção arbitrária.
Pelo que expusemos acima, você talvez já possa deduzir que a
iconicidade é o justo oposto da arbitrariedade. Sendo assim, uma forma é
icônica quando reflete com clareza a função a que se destina, conforme
pensavam os analogistas. Um rápido exemplo pode bem ilustrar o conceito.
Imagine que uma pessoa lhe tenha apresentado desculpas por um determinado
incômodo. Essa pessoa teria discursado por um longo tempo, mas, ao fim e ao
cabo, não teria dito nada que de fato reparasse o problema. Você poderia
descrever a tediosa conversa com essa pessoa dizendo algo como “Fulano
falou, falou, falou e não disse nada”. Ora, nessa frase a repetição do verbo
“falar” é praticamente um ícone, isto é, um representação evidente do fato
de a pessoa ter falado repetidamente. Trata-se, portanto, de uma forma (um
verbo repetido) que com clareza reflete a sua função (indicar a repetição de
um ato). Outro exemplo de iconicidade é o alongamento de vogais, que
podemos usar numa determinada palavra quando queremos enfatizar o
tamanho ou a duração de algo. Se você quer dizer que alguma coisa é
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exageradamente
grande,
pode
dizer
algo
como
“Era
muito
graaaaaaaaaaande”. Mais uma vez, a forma (alongamento da vogal) reflete
claramente sua função. Também no plano do léxico, na relação entre
significante e significado, existem casos de iconicidade. Trata-se das famosas
onomatopeias, palavras cuja forma se assemelha ao conteúdo representado.
Por exemplo, a forma “tique-taque” possui uma expressão fonética parecida
com o som das batidas de um relógio. Da mesma maneira, “miar” é um verbo
inspirado na forma acústica do miado dos gatos e “tim-tim” é um substantivo
que iconicamente representa o som produzido pelo rápido toque entre taças
quando se faz um brinde.
As relações icônicas entre forma e função são bastante regulares, tanto
que há muitos estudiosos, não por acaso denominados como funcionalistas,
que defendem a ideia segundo a qual as formas existentes nas línguas em
grande medida refletem as funções a que se destinam. A motivação funcional
para a existência de certas formas pode ser, de fato, encontrada em todos os
domínios de uma língua, tal como vemos nos seguintes exemplos do
português:

fonologia - pense na palavra “sussurrar”, que se parece com os sons
emitidos quando alguém su... ssu... rra;

morfologia - pense, por exemplo, nas palavras compostas como “sacarolha”, “guarda-roupa”, cujas funções são rapidamente dedutíveis pela
análise de suas formas constituintes;

semântica - lembre-se de expressões como “pé-da-mesa” ou “braço da
cadeira”, que transferem para objetos a estrutura do corpo humano e,
assim, iconicamente permitem a codificação formal de suas funções;

sintaxe – tal como se vê na famosa sequência atribuída ao romano Júlio
César: “Vim, vi e venci”, que reflete de forma icônica a sequência
temporal com que os atos se deram: o general primeiro veio, depois
viu, para enfim vencer.
Se você está curioso para saber quem vence a batalha entre analogistas
e anomalistas, saiba que temos aqui um empate técnico. As línguas humanas
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estão repletas de casos claros de arbitrariedade e casos evidentes de
iconicidade. Ambos os fenômenos são encontrados em todas as línguas quando
cotejamos formas e funções. Com efeito, a análise mais interessante que os
cientistas da linguagem vêm apresentando ao longo dos últimos anos é
interpretar a relação entre arbitrariedade e iconicidade numa espécie de
continuum, isto é, como uma sequência gradual de várias etapas que separam
um extremo de arbitrariedade, de um lado, e um extremo de iconicidade de
outro – mais ou menos como representamos a seguir:
[+ icônico]  [+/- icônico]  [+/- arbitrário]  [+ arbitrário].
Sendo assim, não devemos pensar que as relações entre forma e função
numa língua sejam sempre uma questão de tudo ou nada, ou temos
arbitrariedade ou temos iconicidade. A escalaridade parece ser uma boa
chave para entendermos a dualidade forma e função. Pense, por exemplo,
que no uso de uma língua como o português podemos deslizar rapidamente da
forma dos substantivos para a forma dos adjetivos, a depender da função de
um item no interior de um contexto sintático. Vemos isso acontecer na
célebre citação de Memórias Póstuma de Brás Cuba, de Machado de Assis: em
[um autor defunto], “autor” é substantivo e “defunto” é adjetivo, mas em
[um defunto autor], “defunto” é substantivo e “autor” é adjetivo. Do mesmo
modo, formas como “furado” podem ser analisadas como adjetivos ou como
verbos (na forma de particípio) a depender de sua função na frase, tal como
vemos acontecer em “isso é papo furado” versus “a roupa foi furada pelo
alfinete”, respectivamente. Na verdade, mesmo certas formas verbais, a
depender de sua função na frase, podem ser reanalisadas como substantivos,
tal como acontece na expressão “sala de jantar”.
Em suma, você deve ter em mente que a gradiência no mapeamento
entre formas e funções linguísticas ocorre de maneira generalizada tanto no
léxico quanto na gramática de uma língua.
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A linguagem humana em ação
Para finalizarmos este capítulo, passemos a descrever e analisar alguns
fenômenos sociocognitivos que ganham vida todas as vezes em que colocamos
a língua em ação nas inúmeras tarefas comunicativas e interacionais de nossa
vida cotidiana. Antes de mais nada, devemos explicitar que existem duas
modalidades fundamentais no uso da linguagem humana: a produção e a
compreensão. Além disso, não podemos nos esquecer de que, em sociedades
letradas, como é o caso da maior parte das comunidades brasileiras, a língua
pode se realizar pelo canal oral ou pelo canal escrito. Sendo assim, as quatro
habilidades sociocognitivas envolvidas no uso de uma língua natural são a
produção oral, a compreensão oral, a produção escrita e compreensão escrita.
Comecemos pela produção linguística. Essa habilidade demanda do
falante (ou do escritor) uma séria de tarefas cognitivas que se articulam
dinamicamente com o contexto social da interação linguística. Por exemplo,
para produzir a fala (ou a escrita), uma pessoa deve primeiramente selecionar
de sua memória de longo prazo os itens lexicais que expressarão os conceitos
que se deseja veicular no ato de linguagem. Essa seleção de palavras na
mente é o que os psicolinguistas chamam de planejamento de fala ou
planejamento conceitual. Durante tal planejamento, o sujeito que produz o
ato linguístico se vê motivado a dizer certas coisas a seus interlocutores e é
essa intenção de dizer que faz com que certos itens lexicais sejam
selecionados e colocados em estado de ativação em sua memória de trabalho.
Uma vez ativados e disponíveis na mente, tais itens são acessados pelo
sistema combinatório da linguagem humana e, então, são arranjados
sintaticamente entre si, de maneira ordenada e regida por regras. Dessa
combinação regrada, resultam as frases que fazem emergir o texto do falante,
o qual se realiza concretamente por meio da articulação fonética (pronúncia)
que projeta as ondas sonoras que chegarão ao sistema auditivo dos
interlocutores.
Esquematicamente,
podemos
representar
a
produção
linguística oral pela sequência ilustrada a seguir.
Plano Conceitual  Seleção Lexical  Combinação Sintática  Expressão Fonética
KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso:
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Você deve ter notado que acabamos de descrever a produção da fala
fazendo com que ela parecesse semelhante à produção da escrita. Pelo que
sugerimos, a diferença entre essas duas modalidades residiria no simples fato
de que, na escrita, usaríamos grafemas para representar a expressão fonética
do texto. No entanto, essa descrição é, na verdade, uma supersimplificação.
De fato, a produção oral é muito diferente da produção escrita. De uma
maneira bem resumida, podemos dizer que as pessoas, quando escrevem,
estão muito mais conscientes do uso que fazem da linguagem, sendo, por isso
mesmo, bem mais atentas e vigilantes tanto em relação ao que dizem, como
em relação a como dizem. Ora, essa tomada de consciência e essa vigilância
comuns na produção escrita estão em flagrante contraste com a caráter mais
espontâneo e automático da fala natural. Não é por outra razão que a escrita
fluente, típica das pessoas bem escolarizadas e treinadas nessa arte, demanda
muitos anos de aprendizado formal, desde a alfabetização até o letramento
profundo na vida adulta. Por sua vez, a produção fluente da fala emerge já
em crianças bem pequenas e se torna visível em qualquer conversa oral entre
humanos, independente da escolarização ou do letramento dos sujeitos
falantes. Portanto, atente para essa ressalva: apesar de os mecanismos
básicos envolvidos na produção oral e escrita serem semelhantes, falar e
escrever são fenômenos sociocognitivos dramaticamente diferentes.
No eixo da compreensão linguística, o ouvinte (ou leitor) deve perceber
as formas manifestadas no sinal da fala (ou da escrita) de seu interlocutor
para então acessar, em sua memória de longo prazo, os conteúdos por elas
evocados. Podemos dizer que a compreensão é o espelho invertido da
produção. Vejamos por quê. Na produção linguística, começamos com um
plano conceitual. Esse plano nos leva a dizer certas coisas por meio de dadas
palavras, as quais são inseridas nas frases que conduzem os textos. Já na
compreensão da linguagem, tudo começa pela detecção, nos textos, dos
elementos do ato linguístico, tais como frases e palavras. É com base na
identificação desses elementos que se torna possível compreender o plano
conceitual e os valores comunicativos que moveram a produção do
interlocutor. Vemos a sequência das etapas da compreensão linguística
representada no esquema seguinte.
KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso:
entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.
Percepção Fonética  Análise Sintática  Identificação Lexical  Representação Conceitual
Mais uma vez, as semelhanças entre oralidade e escrita estão aqui
exageradas. No caso, a especificidade da compreensão da escrita diria
respeito, de maneira muito simplificada, apenas à decodificação ortográfica
(leitura) que faria as vezes da percepção fonética. Na realidade, porém, a
compreensão linguística pela leitura é muito mais complexa do que o esquema
acima sugere. Infelizmente, não podemos tratar de tantos detalhes no espaço
limitado deste capítulo, mas, se você estiver interessado em compreender as
minúcias que diferenciam oralidade e escrita, sugerimos a leitura do
excelente livro “Os neurônios da leitura” (2012), do neurocientista francês
Stanislas Dehaene.1
Para sintetizar o que acabamos de dizer sobre a produção e a
compreensão linguística, a figura a seguir parece ser um bom recurso
didático. Nela, vemos representado o que se conhece como circuito da fala.
Note que as setas que correm da esquerda para a direita indicam que o “plano
conceitual” presente na mente de A é transformado na informação linguística
veiculada para B. Por sua vez, B recebe essa informação linguística e
rapidamente consegue interpretar os conceitos ali representados. A figura é
interessante também porque nela podemos perceber que a produção e a
compreensão da linguagem são automaticamente intercambiáveis no fluxo da
fala normal. Pelas setas que correm da direita para a esquerda, notamos que
agora é B quem produz a informação linguística que será veiculada para A.
Figura 1: o circuito da fala (adaptado de Saussure, 1916: p. 19)
1
No presente capítulo e também ao longo do livro de Dehaene, são deliberadamente deixadas de lado
todas as questões socioafetivas, sociointeracionais e político-ideológicas que entram em ação sempre
que usamos a linguagem, tanto para a produção, quanto para a compreensão linguística. Você terá a
oportunidade de estudar as questões sociológicas imbricadas nos usos da linguagem noutros capítulos
deste livro.
KENEDY, E. Linguagem, sociedade e cognição. In: PAES, R,. (Org.). Língua, uso e discurso:
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Na dinâmica da produção e da compreensão da linguagem, o
intercâmbio de posições entre aquele que fala e aquele ouve dá origem ao
fenômeno conhecido como enunciação. A enunciação deve ser compreendida
como o ato de criação de um enunciado linguístico. Na enunciação, a pessoa
que produz a fala (ou a escrita) é o enunciador – a primeira pessoa do
discurso. Já a pessoa que compreende a fala (ou a escrita) é o enunciatário – a
segunda pessoa do discurso, a quem a fala (ou a escrita) se destina.
Chamamos de terceira pessoa, ou de não-pessoa - num termo interessante
formulado pelo linguista francês Émile Benveniste (1902-1976) -, os objetos e
as pessoas sobre os quais falamos (ou escrevemos) durante a enunciação.
Em termos linguísticos e comunicativos, é interessante notar que a
enunciação explicita, na produção da linguagem, as chamadas pessoas do
discurso. Os pronomes pessoais, que você certamente conhece das aulas de
português na escola básica, são, justamente, categorias linguísticas que
indicam a figura da primeira pessoa (eu, nós), da segunda pessoa (você, vocês)
e da terceira pessoa (ele, ela, eles, elas e todas as expressões referenciais,
como os substantivos). É com base na existência do enunciador, do
enunciatário e dos referentes do discurso, que diversas expressões linguísticas
são colocadas sob perspectiva durante a enunciação. Por exemplo, pronomes
como [meu/minha/nosso/nossa] indicam a posse de algo em relação à
primeira pessoa do discurso, enquanto pronomes como [seu/seus/sua/suas]
indicam
a
posse
relativa
à
segunda
pessoa
e
expressões
como
[dele/deles/dela/delas] denotam a posse da terceira pessoa. Na verdade,
mesmo o espaço ocupado pelas pessoas do discurso é posto em perspectiva
durante a enunciação. Assim, termos como [aqui/este] indicam o espaço da
primeira pessoa, enquanto [aí/esse] denotam o espaço da segunda pessoa e
[lá/aquele] apontam o espaço do referente, o lugar da terceira pessoa.
De maneira muito interessante, o próprio tempo que utilizamos quando
produzimos e compreendemos a linguagem só assume alguma interpretação
coerente quando é colocado sob perspectiva durante a enunciação. Desse
modo, sabemos que [ontem] é um termo que denota um momento anterior ao
tempo da enunciação, ao passo que [hoje] indica o momento que coincide
com a criação do enunciado, enquanto [amanhã] marca um tempo futuro, que
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entremeios e fronteiras. 1ªed. Rio de Janeiro: Editora da UESA, 2013, v. 1, p. 5-34.
acontecerá depois de a enunciação ter sido concluída. Se você se lembrou da
piada do bar “Fiado só amanhã”, já poderá agora explicar por que esse dizer,
na prática, torna a venda a crédito impossível: sempre que a pessoa lê o
aviso, a enunciação desloca para o dia seguinte a possível venda. Mas, no dia
seguinte, uma nova leitura do aviso cria uma nova a enunciação e isso faz com
que o “amanhã” seja novamente deslocado para o dia posterior – e assim por
diante, ad infinitum.
Para que você tenha uma boa noção de como pessoa, espaço e tempo
são categorias linguísticas cujas referência e interpretação dependem
crucialmente da enunciação, imagine que você esteja andando pelo centro de
sua cidade quando, de repente, encontra um bilhete que flutua em sua
direção. Como pessoa curiosa, você abre o bilhete e encontra a seguinte
mensagem: “Eu estive aqui hoje.” Ora, você será capaz de compreender o
significado básico dessas expressões (afinal, é possível depreender do bilhete
que “alguém esteve em algum lugar, em algum dia”), mas não será possível
identificar o sentido do enunciado, justamente porque você não participou da
enunciação – e, portanto, não conseguirá encontrar o referente da primeira
pessoa (eu), nem poderá deduzir o lugar (aqui) que ela ocupava ao produzir o
bilhete, tampouco descobrirá qual foi o tempo presente (hoje) naquela
enunciação. Algo totalmente diferente aconteceria se o bilhete contivesse
uma frase como “A presidente Dilma esteve na Prefeitura do Rio de Janeiro
em 04 de maio”. Nesse caso, a identificação referencial da pessoa, do espaço
e do tempo do enunciado não é totalmente dependente do contexto
estabelecido na enunciação. Sabemos apenas que a produção dessa frase
ocorreu depois da visita da Presidente à Prefeitura – e deduzimos isso em
função do tempo verbal passado expresso em “esteve”.
Das pessoas do discurso que são acionadas sempre que usamos a
linguagem para a produção e a compreensão, a mais curiosa em termos
científicos é a terceira. Como dissemos, a terceira pessoa é, na verdade, a
não-pessoa, isto é, é a ausência da primeira e da segunda pessoas. Trata-se do
referente ou dos referentes discursivos de um dado uso da língua. O já citado
linguista Roman Jackobson havia destacado a existência da não-pessoa ao
batizar com o termo “referencial” a função da linguagem que privilegia a
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terceira pessoa como o referente do discurso. A função referencial é muitas
vezes considerada a mais proeminente dentre as funções da linguagem, já que
os humanos tipicamente usam a língua para falar do mundo, seus objetos,
ações e pessoas. Todavia, a proeminência da “função referencial” pode nos
passar a falsa ideia de que a linguagem humana, quando colocada em ação,
seja essencialmente referencial. É bem verdade que muitos usos linguísticos
são objetivos, isto é, focam-se no objeto (terceira pessoa) de maneira
puramente referencial, entretanto, uma grande parte da experiência
linguística humana é metafórica. Vejamos o que isso quer dizer.
Nossa tradição escolar se esforça para nos fazer crer que o uso
cotidiano e comum da linguagem seja referencial, isto é, somos ensinados
que, quando produzimos e compreendemos a fala e a escrita, fazemos
referências a coisas e pessoas de maneira mais ou menos objetiva. A
linguagem metafórica, nos ensinam, seria característica dos usos linguísticos
mais elaborados e artísticos, como a poesia e os romances. Essa ideia é
reforçada quando, na escola, estudamos as “figuras de linguagem” e ficamos
com a impressão de que elas só acontecem nos textos literários. A bem da
verdade, o uso metafórico da linguagem não é exclusividade da arte. Com
efeito, todos os seres humanos comuns, no dia a dia, também utilizam
metáforas ao produzir enunciados linguísticos. Por exemplo, quando dizemos
alguma coisa como “Decidirei se vou casar ou não só mais à frente ao longo da
minha vida” estamos fazendo referência a uma realidade temporal (a
passagem da vida) por meio de uma categoria espacial (a localização no
espaço, “à frente”). Quando produzimos frases assim, estamos na verdade
cruzando domínios de sentidos para fazer referência às coisas que queremos
dizer. No caso do exemplo, estamos transferindo propriedades do espaço para
fazer referência à noção de tempo. Ora, é precisamente esse o princípio de
toda a linguagem metafórica: a transferência de domínios de significados.
A linguagem metafórica é, na verdade, generalizada nos usos
linguísticos. Podemos dizer que ela é a regra, e não a exceção, quando
produzimos e compreendemos a linguagem humana. Um uso de linguagem
estritamente objetivo e referencial é raro. Só o encontramos em abundância
no discurso científico das áreas da natureza, como a física, a química e a
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biologia. Mesmo noutras áreas da ciência, como a economia, encontramos
fartos exemplos de linguagem metafórica em frases como “O mercado está
aquecido”, “Os preços estão nas alturas”, “Esperamos uma queda brusca na
taxa de juros” etc. Para os cidadãos comuns, em seu cotidiano linguístico, a
metáfora é muito mais do que uma mera figura de estilo: ela é um produtivo
recurso natural de pensamento e de linguagem.
Para concluir
Neste primeiro capítulo, começamos nossa pequena incursão pelo
fantástico e complexo mundo da linguagem humana. Aprendemos aqui
diversos conceitos importantes, como a diferença entre linguagem e língua, a
distinção entre Língua-i e Língua-e, as noções e as fases da aquisição da
linguagem, a oposição entre formas e funções linguísticas e os fundamentos
da linguagem em ação. Nosso objetivo ao longo do capítulo foi apresentar a
você uma visão panorâmica dos principais temas e figuras do estudo científico
da linguagem que tem em conta a interação dinâmica entre sociedade e
cognição. Você terá boas oportunidades de ampliar seus conhecimentos sobre
o assunto ao consultar os vídeos e os livros que indicamos ao longo das seções.
Nos próximos capítulos deste livro, você entrará em contato com
muitas outras facetas da linguagem humana. Com efeito, as línguas naturais
são um dos fenômenos mais complexos do mundo biocultural. Não é por outra
razão que seus fundamentos serão apresentados a você em diversos capítulos,
os quais selecionam, para o debate, diferentes dimensões do universo
linguístico humano. Desejamos a você boas leituras e bons estudos!
Referências bibliográficas
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Caminho, 1986.
DEHAENE, S. Os neurônios da leitura. PA: Pense, 2012.
PINKER, S. O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem. SP:
Martins Fontes, 2003.
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Linguagem, sociedade e cognição Capítulo 1 Eduardo Kenedy