Apelação Cível n. 2011.034517-3, de Lages
Relator: Des. Subst. Jorge Luis Costa Beber
PATERNIDADE E MATERNIDADE SOCIOAFETIVA.
AUTORA QUE, COM O ÓBITO DA MÃE BIOLÓGICA,
CONTANDO COM APENAS QUATRO ANOS DE IDADE,
FICOU SOB A GUARDA DE CASAL QUE POR MAIS DE
DUAS DÉCADAS DISPENSOU A ELA O MESMO
TRATAMENTO CONCEDIDO AOS FILHOS GENÉTICOS,
SEM QUAISQUER DISTINÇÕES.
PROVA ELOQUENTE DEMONSTRANDO QUE A
DEMANDANTE ERA TRATADA COMO FILHA, TANTO
QUE O NOME DOS PAIS AFETIVOS, CONTRA OS QUAIS
É DIRECIONADA A AÇÃO, ENCONTRAM-SE TIMBRADOS
NOS CONVITES DE DEBUTANTE, FORMATURA E
CASAMENTO DA ACIONANTE.
A
GUARDA
JUDICIAL
REGULARMENTE
OUTORGADA NÃO É ÓBICE QUE IMPEÇA A
DECLARAÇÃO
DA
FILIAÇÃO
SOCIOAFETIVA,
SOBRETUDO
QUANDO,
MUITO
ALÉM
DAS
OBRIGAÇÕES DERIVADAS DA GUARDA, A RELAÇÃO
HAVIDA ENTRE OS LITIGANTES EVIDENCIA INEGÁVEL
POSSE DE ESTADO DE FILHO.
AÇÃO QUE ADEQUADAMENTE CONTOU COM A
CITAÇÃO DO PAI BIOLÓGICO, JUSTO QUE A SUA
CONDIÇÃO DE GENITOR GENÉTICO NÃO PODERIA SER
AFRONTADA SEM A PARTICIPAÇÃO NA DEMANDA QUE
REFLEXAMENTE IMPORTARÁ NA PERDA DAQUELA
CONDIÇÃO OU NO ACRÉSCIMO DA PATERNIDADE
SOCIOAFETIVA NO ASSENTO DE NASCIMENTO.
RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
O estabelecimento da igualdade entre os filhos
adotivos e os biológicos, calcada justamente na afeição
que orienta as noções mais comezinhas de dignidade
humana, soterrou definitivamente a ideia da filiação
genética como modelo único que ainda insistia em
repulsar a paternidade ou maternidade originadas
unicamente do sentimento de amor sincero nutrido por
alguém que chama outrem de filho e ao mesmo tempo
aceita ser chamado de pai ou de mãe.
Uma relação afetiva íntima e duradoura, remarcada
pela ostensiva demonstração pública da relação
paterno-materna-filial, merece a respectiva proteção
legal, resguardando direitos que não podem ser
afrontados por conta da cupidez oriunda de disputa
hereditária.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n.
2011.034517-3, da comarca de Lages (Vara da Família), em que são apelantes
L. L. S. e outros, e apelada A. A. da S. O.:
A Quarta Câmara de Direito Civil decidiu, por votação unânime,
conhecer do recurso e negar-lhe provimento. Custas legais.
O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Exmo. Des.
Victor Ferreira, com voto, e dele participou o Exmo. Des. Luiz Fernando Boller.
Florianópolis, 18 de outubro de 2012.
Jorge Luis Costa Beber
RELATOR
Gabinete Des. Subst. «Relator atual do processo sem tratamento»
RELATÓRIO
L. L. S. e outros interpuseram recurso de apelação contra a decisão
que julgou procedente a "ação declaratória de estado familiar" movida por A. A.
da S. O., declarando-a filha socioafetiva de L. L. S. e V. P. L., com os direitos e
deveres daí decorrentes.
Alegaram, em compendiado, a impossibilidade jurídica do pedido
porque inexiste no direito pátrio a adoção póstuma ou a possibilidade daquele
que não é adotado formular pedido de herança.
Afirmaram que, após a morte da mãe da apelada, que trabalhava
para o casal L. e V., obtiveram a guarda dela, assumindo todas as
responsabilidades decorrentes do aludido instituto, que não se confunde com a
adoção e tampouco confere às partes laços de parentesco.
Disseram que em momento algum tiveram a intenção de adotar a
autora, que sequer era tratada como se fosse filha adotiva, alegando, outrossim,
que a adoção não pode ser coercitiva.
Sustentaram que a demandante manteve o relacionamento com seu
pai e irmãos biológicos, e que a sucessão hereditária impede a adoção afetiva.
Arguiram a incompatibilidade legal ao direito de herança reconhecido na
sentença, embasando-se no artigo 377 do Código Civil de 1916.
O apelante L. negou tivesse a intenção de adotar a autora,
afirmando que não pode ser compelido a adotar quem não deseja.
Sustentaram que houve negativa de vigência das leis federais
citadas no corpo do apelo, e que há divergência doutrinária e jurisprudencial
sobre o tema, arrematando com pedido de provimento da insurgência.
Ofertadas as contrarrazões, ascenderam os autos a esta Corte.
Esta, a síntese do necessário.
VOTO
Gabinete Des. Subst. «Relator atual do processo sem tratamento»
Atendidos os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso.
Para bem bem encaminhar a decisão que mais adiante será
anunciada, estimo conveniente um breve escorço acerca dos fatos em torno dos
quais os litigantes se digladiam.
Com efeito, A.A.D.S.O. pretende ver reconhecida a sua filiação
socioafetiva em relação ao casal L.L.S e V.P.L., essa última já falecida, porque,
segundo menciona, sua mãe biológica, que era empregada doméstica dos
aludidos demandados, ao ser acometida de grave enfermidade, já no leito de
morte, entregou sua guarda aos mesmos, contando ela, naquela ocasião, com
apenas quatro anos de idade. Mencionou, em acréscimo, que sempre foi tratada
como filha pelo referido casal, estudando no mesmo colégio freqüentado pelos
filhos biológicos dos mesmos, figurando, também, como filha adotiva na
declaração de imposto de renda do primeiro acionado, que lhe apresentou à
sociedade como filha, o que se denota do convite para o seu baile de debutantes,
o mesmo ocorrendo no convite do seu casamento, onde figuraram os nomes de
L.L.S. e V.P.L. como seus pais. Disse, ainda, que o filho advindo das suas
núpcias sempre foi tido como neto de L. e V., asseverando, também, que foi ela,
e não os filhos genéticos, quem acudiu e hospitalizou a acionada V.P.L. quando
desencadeado o quadro clínico que culminou com o seu óbito. Referiu, por fim,
que após mais de duas décadas acolhida em verdadeira posse de estado de
filiação, com o passamento daquela que tinha como sua mãe afetiva, e após
aberta a sucessão, o amor que antes lhe era dispensado pelo primeiro réu e
pelos seus filhos biológicos, também acionados, amesquinhou-se diante da
avareza.
À luz dessas considerações, depois de citar matéria de direito e
jurisprudência pertinentes à espécie, clamou pela declaração da paternidade e
maternidade afetiva em relação aos réus L. L. S. e V. P. L, ocorrendo a citação
dos filhos do aludido casal por força do passamento da intitulada mãe afetiva.
Contestada a ação, após regular instrução processual, onde restou
Gabinete Des. Subst. «Relator atual do processo sem tratamento»
concretizada a citação pessoal do pai biológico da autora, o Magistrado Francisco
Carlos Mambrini entregou a prestação jurisdicional, reconhecendo a filiação
afetiva, resultando daí o recurso de apelação que ora cuido de deslindar.
Pois bem, a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido não
merece prosperar, estando a análise da aludida condição da ação condicionada
ao reconhecimento de que o conceito de família induvidosamente vem mudando
ao longo dos tempos, não se podendo eclipsar que o núcleo familiar
contemporâneo não se assenta nos mesmos pilares que por muitos anos
sustentaram o modelo estrutural da família tradicional, formada por um homem e
uma mulher, unidos pelo casamento, e pelos filhos advindos do aludido conúbio.
A instituição da família, por conta da modificação de conceitos
morais, associada ao declínio do patriarcalismo, à globalização e ao
reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres, com reflexos diretos no
mercado de trabalho, sofreu uma enorme transformação. Hoje, diferentemente de
ontem, não se pode imaginar a família como modelo singular, justo que o próprio
Estado legitimou outras formas de família, originadas além do matrimônio civil,
como soe acontecer com as uniões estáveis ou com as famílias monoparentais.
A família, na sua concepção atual, mais do que em qualquer tempo,
está fundada no sentimento de afeição, tal como sustentado por ORLANDO
GOMES, ao realçar que que a affectio é a ratio única do casamento (O novo
Direito de Família, Fabris, 1984, pg. 26).
A afetividade, como elemento transformador do modelo familiar
atual,
possui escora nos princípios que se encontram timbrados na Carta
Constitucional vigente, tanto que ojerizada qualquer discriminação entre os filhos,
independentemente de sua origem (art. 227, § 6º); a adoção, como escolha
afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e
6º), e, finalmente, a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade da família
constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º).
Gabinete Des. Subst. «Relator atual do processo sem tratamento»
Não é outro o entendimento de ROLF MADALENO ao professar que
"o grupo familiar é muito mais que uma união de pessoas formadas por laços de
sangue, mas sim uma relação baseada na afetividade, pois o que importa é a
felicidade das pessoas que o integram" (Rolf Madaleno. Curso de direito de
família. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 5).
Mais precisamente em relação ao binômio afetividade/filiação,
parece claro que o estabelecimento da igualdade entre os filhos adotivos e os
biológicos, calcada justamente na afeição que orienta as noções mais
comezinhas de dignidade humana, soterrou definitivamente a ideia da filiação
genética como modelo único que ainda insistia em repulsar a paternidade ou
maternidade originadas unicamente do sentimento de amor sincero nutrido por
alguém que chama outrem de filho e ao mesmo tempo aceita ser chamado de pai
ou de mãe.
Portanto, diante dos contornos até aqui delineados, ressumbra de
todo admissível a chamada declaração de filiação socioafetiva, dês que
eficazmente demonstra a existência daquilo que se intitulou denominar de posse
de estado de filiação, ou seja, uma relação afetiva íntima e duradoura,
caracterizada pela reputação perante terceiros como se filho fosse, e pelo
tratamento existente na relação paterno-filial.
O Superior Tribunal de Justiça já deixou assentado que "A filiação
socioafetiva encontra amparo na cláusula geral de tutela da personalidade
humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da
identidade e definição da personalidade da criança." (REsp 450566 / RS, relª.
Nancy Andrighi).
Logo, encontrando a pretensão esteio no art. 5º, XXXV, da
Constituição Federal, e não havendo vedação expressa no ordenamento jurídico,
não há que se falar em pedido juridicamente impossível.
É certo, como bem registrado pelo e. Des. Ricardo Moreira Lins
Pastl, no julgamento da apelação cível nº 70049187438, da Oitava Câmara Cível
Gabinete Des. Subst. «Relator atual do processo sem tratamento»
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
"(...) que o tema em discussão é palpitante, não havendo uniformidade
entre os operadores do Direito acerca do cabimento da ação declaratória (ou de
investigação) de filiação socioafetiva, pois parcela expressiva da jurisprudência
defende, com sólidos fundamentos, que a via da ação investigatória é adequada
para definir a relação jurídica de filiação a partir do liame biológico somente
(assim, v.g., RE 102.732, Relator Min. Néri da Silveira, Primeira Turma, STF, j.
em 05/08/1986, DJ 08-04-1988; AC n° 70025606666, Rel. Sérgio Fernando de
Vasconcellos Chaves, 7ª Câmara Cível, TJRS, j. em 08.07.2009; AC Nº
70046930616, 8ª Câmara Cível, TJRS, Relator Luiz Felipe Brasil Santos, j. em
15/03/2012).
Não ignoro que a impossibilidade jurídica do pedido aqui veiculado
sustenta-se na compreensão de que não é adequado impor a alguém uma
filiação não manifestada formalmente, porquanto “carinhos, cuidados e proteção
podem não ter como motivo a paternidade, podem sim ser inspirados pela
solidariedade humana, piedade cristã ou sentimento de amizade”, segundo
escólio do Pretório Excelso no precedente supracitado; nesse viés, entende-se
ainda que a socioafetividade, enquanto instituto de criação jurisprudencial e
doutrinária, destina-se apenas à proteção do filho que assim foi reconhecido de
forma voluntária e jurídica, em demandas nas quais se busca o afastamento da
posição de filho socioafetivo.
Todavia, e conquanto reconheça ser necessário ter parcimônia no trato
com o assunto, pois é inquestionável que traz reflexos no plano fático das mais
variadas nuanças, extravasando o âmbito familiar e adentrando inclusive no
campo sucessório, estou convencido da viabilidade jurídica de buscar-se em
juízo a perfilhação socioafetiva, porquanto tal providência permite atribuir um
contorno jurídico à situação fática vivenciada pelos envolvidos,
reconhecendo-se os efeitos daí decorrentes.
Sem dúvida, há que se diferenciar as situações, que até são corriqueiras,
em que pessoas, motivadas pela mais nobre intenção, destinam ajuda,
aconchego, amizade, afeto, zelo e atenções, sem que, com isso, estejam
dispostas a assumir a condição de pais. O silêncio de uma intenção não
externada específica e expressamente é de uma eloquência enorme, e deve ser
devidamente sopesado em hipóteses tais. Passar a considerar toda e qualquer
situação como indicadora de uma paternidade socioafetiva seria absolutamente
descabido, impertinente, inoportuno e até despropositado.
No entanto, não obstante isso, o ordenamento jurídico não fecha as portas
à possibilidade de buscar-se judicialmente a afirmação dessa realidade
socioafetiva, respeitosamente repriso, e o fato de ingressar o operador jurídico
em terreno no mais das vezes arenoso, não é sinônimo de inviabilidade jurídica"
(sublinhei).
Também é inquestionável o interesse de agir da parte autora, dada
a impossibilidade de obter extrajudicialmente a satisfação do direito pleiteado.
Ressalto, ainda, que o precedente citado pelos recorrentes (AC
2009.065051-0) não se aplica ao caso focalizado, pois o pedido formulado na
Gabinete Des. Subst. «Relator atual do processo sem tratamento»
inicial não é de adoção póstuma, mas sim de declaração da posse do estado de
filiação afetiva, institutos jurídicos distintos.
A tese de que o pedido seria inviável em virtude da guarda
assumida pelo apelante L. L. S. e sua falecida esposa, que não teriam a intenção
de adotar a autora, mas tão somente a de cumprir com o papel de guardiões,
também não vinga.
Sabe-se
que
das
três
modalidades
de
colocação
da
criança/adolescente em família substituta, somente na adoção há a inserção da
criança/adolescente no seio da família, tanto é que a primeira distinção entre os
institutos é a de que, ao contrário da adoção, na tutela e na guarda os vínculos
com a família biológica não são rompidos, e o menor não é acolhido na condição
de filho.
Assim, e considerando que a guarda implica no dever de prestação
de assistência material, moral e educacional, conferindo a seu detentor o direito
de se opor a terceiros, inclusive aos pais, através de uma interpretação mais
açodada dos citados dos institutos, poder-se-ia dar razão aos apelantes.
Ocorre
que
o
pedido
aviado
se
baseia
no
vínculo
da
socioafetividade, isto é, na situação familiar de fato, nascida sem formalidade
legal alguma e sempre ostentada pelos protagonistas envolvidos na presente
actio.
Propositadamente, os recorrentes invertem o sentido do vetor. Na
verdade, não se trata de uma "adoção à força", mas sim do reconhecimento
judicial de uma situação de fato que merece a tutela do direito: a relação
socioafetiva. Isto é, a relação jurídica começa na autora e termina nos réus, e não
o contrário, como as razões recursais pretendem incutir, fulcrando-se nos
vetustos conceitos que modularam o Código Civilista de 1916. Aliás, não é por
outro motivo que os insurgentes invocam com tanta ênfase a norma revogada.
FERNANDA
APARECIDA
CORRÊA,
no
artigo
"A
filiação
socioafetiva no direito brasileiro e a impossibilidade sua desconstituição
Gabinete Des. Subst. «Relator atual do processo sem tratamento»
posterior", ressalta:
"As modificações advindas com a Constituição da República de 1988, no
que tange ao princípio da igualdade entre os filhos, propiciam a valorização da
filiação socioafetiva, que, na Codificação de 1916, não tinha tanta relevância,
uma vez que o casamento era um fator predominante na constituição da
paternidade. Atualmente, o que garante o exercício das funções parentais não é
necessariamente a semelhança genética ou a origem consanguínea, mas sim a
dedicação proporcionada aos filhos. Por essa razão, o Direito de Família passou
a considerar a filiação de ordem socioafetiva tão importante quanto a biológica.
A relação paterno-filial oriunda da paternidade socioafetiva tem como
fundamento a afetividade geradora da correlata responsabilidade, que se origina
da convivência entre pais e filhos, e não do vínculo consangüíneo. Assim, ser
pai e mãe não depende exclusivamente do liame biológico existente, mas do
gesto de carinho, amor e cuidados conferidos à criança, e que servirá como
alicerce para a formação de sua personalidade. Podemos dizer que a filiação
socioafetiva também se fundamenta na solidariedade e na convivência familiar"
(Sublinhei, Revista Síntese de Direito de Família, dez./jan.2012, pgs .49-50).
Vale dizer, a temática sob estudo ultrapassa a simplicidade que os
recorrentes querem a ela emprestar, indo além da mera questão do termo de
guarda, que nem de longe pode ser confundido como espécie de álibi para
contornar os ditames constitucionais atinentes ao direito de família. Não fosse
assim, como bem ressalvado pela sentença, a sorte da lide em matéria
socioafetiva dependeria sempre da vontade de uma das partes – a chamada
situação puramente potestativa - o que não ultrapassa os filtros da razoabilidade
e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF).
Destarte, não se cuida, nesses autos, de uma imposição estatal
contra a vontade do jurisdicionado, que "não quis adotar", mas sim de uma
aplicação concreta de postulados civis-constitucionais, especialmente os da
não-discriminação e o da responsabilização familiar, não sendo demais lembrar a
advertência do jurista francês GEORGES RIPERT: "quando o direito ignora a
realidade, a realidade se vinga ignorando o direito".
No que tange ao invocado art. 377 do CC/1916, registro, sem
maiores dificuldades interpretativas, que tal dispositivo não foi recepcionado pela
ordem constitucional vigente, sobretudo pelo seu manifesto viés discriminatório.
A propósito, destaco a jurisprudência desta Corte:
Gabinete Des. Subst. «Relator atual do processo sem tratamento»
"Para que uma lei permaneça vigente após a edição de novo regulamento
constitucional, é necessário que ela tenha nascido válida. O fenômeno da
recepção da norma anterior pela nova Constituição exige não somente a
compatibilidade com esta, mas também que ela esteja de acordo com as regras
constitucionais da época de sua criação." (AC 2010.048420-7, rel. Pedro Abreu).
E nem se alegue que na época em que foi formalizada a guarda não
vigorava a Constituição Federal de 1988, pois não há dúvidas que as relações de
caráter socioafetivo ostentam natureza de trato sucessivo, ou seja, perduram no
tempo, apenas se rompendo com o fim do carinho e do afeto das relação
familiares.
Ademais, ainda que os recorrentes defendam que, como guardiões,
não tinham intenção de adotar a autora, tampouco a tratavam como se fosse
filha, a farta prova carreada aos autos revela, com uma clareza solar, que a
demandante era tida como filha do casal, recebendo as mesmas oportunidades
que foram concedidas aos filhos biológicos, consoante admitido pelo réu L. às fls.
185.
Veja-se que a autora estudou em escolas particulares, fez
faculdade, teve sua festa de quinze anos e de casamento custeadas pelo casal,
frequentava os mesmos clubes sociais que os filhos biológicos, realizou viagens
etc..., merecendo especial destaque os convites do baile de debutantes, de
formatura e de casamento da demandante, onde L. e V. figuraram como seus
pais.
É certo que a prova testemunhal, colhida durante a instrução,
apresenta, de um lado, testigos afirmando que a autora era efetivamente tratada
como filha por L. e V., havendo, por outro norte, testemunhas arroladas pelos
acionados que procuraram expor que a demandante não recebia a mesma forma
de tratamento que era dispensada aos filhos biológicos do citado casal, não
sabendo, porém, explicar "no que residia a diferença de tratamento", como bem
observado pelo Magistrado a quo no termo de declarações que repousa às fls.
364.
A verdade é que a versão expendida pelas testemunhas da autora
Gabinete Des. Subst. «Relator atual do processo sem tratamento»
ostenta carga de convencimento muito maior, pois não parece minimamente
verossímil que L e V., procurando fazer distinções entre os filhos biológicos e a
filha da empregada, fossem anuir em figurar como pais no convite de casamento
da demandante, no de formatura e no de debutantes. E mais do que isso: no
clube social, onde L.L.S. figurava como contribuinte, a autora foi também
associada na condição de "filha" daquele, como, aliás, se infere do escrito que
descansa às fls. 28.
A forma de tratamento que os testigos da autora mencionaram nos
seus depoimentos está confortada pela fotocópia da petição inicial da ação de
reparação de danos aforada por L.L.S, atinentes a um acidente de trânsito, onde
expressamente a demandante é intitulada de "filha", circunstância também
admitida no depoimento prestado por L. naquela demanda, tal como se denota do
documentos que se encontra às fls. 36.
Parece óbvio que tal panorama ultrapassa em muito as obrigações
decorrentes da guarda, que estariam encerradas com o alcance da maioridade
civil. No entanto, a prova edificada nos autos também revela que mesmo após
atingida a maioridade a autora continuou inserida no seio da família, sendo
tratada como membro integrante daquele núcleo.
Como bem observa ROLF MADALENO, citando JULIE CRISTINE
DELINSKI:
"A paternidade e a maternidade têm um significado mais profundo do que
a verdade biológica, onde o zelo, o amor filial e a natural dedicação ao filho
revelam uma verdade afetiva, um vínculo de filiação construído pelo
livre-desejo de atuar em interação entre pai, mãe e filho do coração,
formando verdadeiros laços de afeto, nem sempre presentes na filiação
biológica, até porque a filiação real não é biológica, e sim cultural, fruto dos
vínculos e das relações de sentimento cultivados durante a convivência com a
criança e o adolescente" (Grifos meus, Curso de Direito de Família. 4ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2011. pg. 471).
Portanto, com a exuberância dos elementos probantes contidos no
caderno processual, não vejo como negar a caracterização da posse de estado
de filho, eis preenchidos os requisitos concernentes ao nome, ao trato e à fama,
como bem examinado na decisão singular, que transcrevo a fim de evitar
Gabinete Des. Subst. «Relator atual do processo sem tratamento»
desnecessária tautologia:
"Pelo conjunto probatório amealhado, portanto, conclui-se sem dúvida que
a autora era conhecida e reconhecida pelos familiares e pela sociedade como
se filha fosse do casal (fama – reputatio). Foi contínua e ininterruptamente
tratada como filha, chamada de filha, recebendo as mesmas oportunidades
pessoais/sociais/financeiras que foram oferecidas aos filhos biológicos do casal
(tratamento – tratactus). Por vezes, até utilizava o patronímico dos réus para o
exercício de alguns atos da vida civil (nome – nominatio), embora esta
circunstância seja irrelevante para para o sucesso da pretensão, porquanto o
uso do nome é dispensável para a caracterização da posse do estado de filho"
(fls. 453).
Gize-se, além disso, que o acervo probatório também revela que a
apelada perdeu os laços com seu genitor biológico – que sequer contestou o
pedido – certamente porque encontrou ela em seus pais socioafetivos o vínculo e
o amor paternal.
Como já anunciado, e agora por outras e melhores palavras, "A
relação jurídica de filiação é construída também a partir de laços afetivos e de
solidariedade entre pessoas geneticamente estranhas que estabelecem vínculos
que em tudo se equiparam àqueles existentes entre pais e filhos ligados por laços
de sangue (...)". (Apelação Cível Nº 70041923061, Oitava Câmara Cível, Tribunal
de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 28/07/2011).
Assim, pouco importa que não haja a "inequívoca demonstração da
vontade de adotar", necessária no instituto da adoção. Como já ressaltado em
primoroso julgado da Corte Gaúcha, "a ação declaratória de paternidade
socioafetiva se presta justamente para casos que se ressentem desta prova da
“inequívoca manifestação de vontade” de adotar, pois não há como deixar de
reconhecer que fatalmente as pessoas nem sempre são precavidas e a realidade
é mais forte que as teses, daí revelando-se imperioso percorrer o caminho, longo,
difícil e tortuoso, do rito ordinário e da ampla instrução probatória que deverá ser
profunda o suficiente para convencer o julgador da presença da posse de estado
de filho" (Extraído do corpo do acórdão da apelação cível nº 70049187438,
Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Moreira Lins
Pastl, Julgado em 06/09/2012).
Gabinete Des. Subst. «Relator atual do processo sem tratamento»
Por fim, há que ser rechaçada a aventada impossibilidade de a
autora ser herdeira nas sedes biológica e socioafetiva.
É fato incontroverso que a mãe biológica da demandante/recorrida
faleceu quando esta tinha somente quatro anos de idade.
Pelo princípio da saisine, a herança transmite-se desde a abertura
da sucessão, o que, na espécie, deu-se quando a requerente sequer tinha
capacidade civil para renunciar à herança deixada por sua mãe. É dizer, a
apelada não pôde optar em receber ou não a herança, sendo certo que ninguém
pode ser prejudicado por fato que não deu causa.
Assim, parece claro que o fato de a autora figurar como herdeira no
âmbito do parentesco, e pretender ostentar a mesma qualidade na esfera da
socioafetividade representa fato meramente circunstancial, sem que tenha o
condão de rechaçar a pretensão aviada na peça de ingresso, sobretudo porque
"a filiação socioafetiva, fundada na posse do estado de filho e consolidada no
afeto e na convivência familiar, prevalece sobre a verdade biológica". (Sublinhei,
Apelação Cível n. 2011.005050-4, de Lages, rel. Des. Fernando Carioni).
Diante deste cenário, estou em manter a bem lançada decisão de
primeiro grau.
O STJ, a propósito, já decidiu, mutatis mutandis:
"CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL.
FAMÍLIA.
RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE E MATERNIDADE SOCIOAFETIVA.
POSSIBILIDADE.DEMONSTRAÇÃO.
1. A paternidade ou maternidade socioafetiva é concepção jurisprudencial
e doutrinária recente, ainda não abraçada, expressamente, pela legislação
vigente, mas a qual se aplica, de forma analógica, no que forem pertinentes, as
regras orientadoras da filiação biológica.
2. A norma princípio estabelecida no art. 27, in fine, do ECA afasta as
restrições à busca do reconhecimento de filiação e, quando conjugada com a
possibilidade de filiação socioafetiva, acaba por reorientar, de forma ampliativa,
os restritivos comandos legais hoje existentes, para assegurar ao que procura o
reconhecimento de vínculo de filiação sociafetivo, trânsito desimpedido de sua
pretensão.
3. Nessa senda, não se pode olvidar que a construção de uma relação
socioafetiva, na qual se encontre caracterizada, de maneira indelével, a
posse do estado de filho, dá a esse o direito subjetivo de pleitear, em juízo,
Gabinete Des. Subst. «Relator atual do processo sem tratamento»
o reconhecimento desse vínculo, mesmo por meio de ação de investigação
de paternidade, a priori, restrita ao reconhecimento forçado de vínculo biológico.
4. Não demonstrada a chamada posse do estado de filho, torna-se inviável
a pretensão.
5. Recurso não provido". (Grifos meus, REsp 1189663/RS, Rel. Ministra
NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/09/2011, DJe
15/09/2011).
Meu voto, então, é pelo desprovimento do apelo.
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