verve
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Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP
4
2003
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº4 (outubro 2003 - ). - São Paulo: o Programa, 2003Semestral
1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais.
ISSN 1676-9090
VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordenadoras: Teresinha Bernardo e Silvana Tótora.
Editoria
Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.
Nu-Sol
Acácio Augusto S. Jr., Andre R. Degenszajn, Edson Lopes Jr., Edson Passetti
(coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Francisco E. de Freitas, Guilherme C. Corrêa, Heleusa F. Câmara, José Eduardo Azevedo, Lúcia Soares da
Silva, Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Rogério H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago Souza Santos.
Conselho Editorial
Adelaide Gonçalves (UFCE), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick
(UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Guilherme Castelo Branco (UFRJ),
Margareth Rago (Unicamp), Rogério H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora
(PUC-SP).
Conselho Consultivo
Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Peres – CELIP/RJ),
Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti
(PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara
(UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Maria
Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam,
Paulo-Edgard de Almeida Resende (PUC-SP), Plínio A. Coelho (Editora Imaginário), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep), Vera Malaguti Batista (Instituto
Carioca de Criminologia).
ISSN 1676-9090
verve
revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é uma labareda que lambe corpos,
gestos, movimentos e fluxos, como ardentia.
ela agita liberações. atiça-me!
verve é uma revista semestral do nu-sol que
estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
SU M Á R I O
O indivíduo, a sociedade mercantilista,
bélica e o anarquista
Edgar Rodrigues
11
John Cage, anarquista fichado no Brasil
Pietro Ferrua
20
Vivendo e revirando-se:
heterotopias libertárias na sociedade de controle
Edson Passetti
32
Desvio e diferença no pensamento de Foucault:
uma transgressão libertária
Carlos José Martins
56
Arte e religião
Max Stirner
67
A caminho do século XXI —
abolição um sonho impossível?
Thomas Mathiesen
80
Clevelândia (Oiapoque).
Colônia penal ou campo de concentração?
Carlo Romani
112
Medida e desmesura
Marianne Enckell
132
Economia e política, problematizações libertárias
Natalia Montebello
145
Infiltrações burguesas na doutrina socialista
Errico Malatesta
163
Em memória de Errico Malatesta
Max Nettlau
170
Malatesta e a violência
Luce Fabbri
186
Malatesta e sua concepção
voluntarista de anarquismo
Maurício Tragtenberg
195
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
Nildo Avelino
228
As idéias-força do anarquismo
Jaime Cubero
265
RESENHAS
Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras
Paulo-Edgar Almeida Resende
279
Existência anarquista
Acácio Augusto
296
As drogas à luz do dia:
o controle social e o uso político dos psicoativos
Henrique Soares Carneiro
300
Alfabetizar todos?
Francisco E. de Freitas
304
Uma história de amor e prisão
Salete Oliveira
311
***
espaçobrilha (para h. de campos)
Thiago Rodrigues
315
195
228
265
279
296
300
304
311
315
anarquismo é diferença, memória e atualidade. a
anarquia inventa a vida com liberdade, sem fronteiras,
hierarquias e desigualdades sociais. os anarquistas
evitam melancolias, não crêem no futuro reluzente,
atuam no presente.
verve trata de atualidades libertárias sem perder a
memória. a contundência dos opúsculos redigidos por
edgar rodrigues e jaime cubero, dois anarquistas
marcantes que atravessaram o século 20, ladeiam percursos: a anarquia como invenção da vida, arte de existir problematizando o presente está acompanhada de
leituras com errico malatesta, o contundente anarquista
europeu na américa do sul.
a prisão (que é a imagem do terror), a colônia penal,
o campo de concentração e de extermínio (clevelândia),
a prisão domiciliar (como mussolini impôs a malatesta),
o banimento, são maneiras variadas de tentar manter
a ordem política e econômica da continuidade das desigualdades: todo prisioneiro é um preso político.
a prisão está também no cotidiano que uniformiza,
impedindo que se ouça outra música (john cage, fichado no brasil), que cada um se reinvente, faça do desvio a
transgressão prazerosa, dispense a arte do aprisionamento no objeto, cometa desmesuras.
os libertários apreciam os revolucionários da linguagem. verve 4 caminha com haroldo de campos, morto
em agosto de 2003 e lhe dedica uma peça de thiago r.
verve é uma revista libertária, semestral e autogestionária, realizada pelo nu-sol.
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o bicho-homem
dorme:
no seu sonho
uma florada verdeclaro
(primavera!)
primaverdece
Haroldo de Campos
10
verve
O indivíduo, a sociedade mercantilista, bélica e o anarquista
o indivíduo, a sociedade mercantilista,
bélica e o anarquista
edgar rodrigues
Apresentação
Edgar Rodrigues é um dos mais importantes pesquisadores da história do anarquismo no Brasil e em Portugal. Chega ao Brasil em 1951, fugindo da ditadura de
Salazar. No Rio de Janeiro, cidade onde se instala, publica dois livros que já havia escrito: um sobre a ditadura em Portugal (Na Inquisição de Salazar,1957) e outro
sobre a situação social desse país (Fome em Portugal,
1958).
Seu interesse pelas práticas anarquistas surge por
influência de seu pai que atuava no movimento em Portugal, pela leitura de manifestos, jornais e, em especial, da obra de Kropotkin. No Brasil toma contato com
diversos anarquistas e torna-se amigo de José Oiticica
e Edgard Leuenroth, passando a colaborar na imprensa
libertária. Autodidata, empenha-se na pesquisa de te-
verve, 4: 11-18, 2003
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2003
mas ligados à história do movimento anarco-sindicalista, da ditadura em Portugal e das associações libertárias.
Realiza entrevistas com militantes, compila documentos, recupera e organiza arquivos, trabalho que resulta
na publicação de mais de quarenta livros e mais de mil
artigos.
As publicações de Edgar Rodrigues são de extrema
importância, pois trazem à tona documentos que poderiam se perder não fosse seu interesse em divulgar e
pesquisar as práticas anarquistas.
O artigo publicado neste número é um inédito enviado por um anarquista que afirma ser salutar pesquisar
e divulgar anarquismos.
Acácio Augusto
O ser nasce herdeiro de atavismos seculares, num
universo em competição bélica, religiosa, política, comercial, profissional, intelectual, e científica.
Entra na vida recebendo “injeções” de cosméticos,
propaganda fantasiosa, mercantilista, educação, instrução e formação direcionadas para a obediência, aceitação do que já encontrou e, para ser um servidor do sistema.
Neste mundo de cada um por si, disputa notas altas
na escola, um diploma na faculdade, cargos bem remunerados, a fim de garantir o seu espaço vital, ter uma
vida folgada.
Quando conhece idéias políticas e/ou sociais, e opta
por uma corrente ideológica, já é habitante numa sociedade de competições, está subjetivamente condicionado
para disputar sua sobrevivência no meio de adversários, visíveis e invisíveis, revelando ambições, vontades
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O indivíduo, a sociedade mercantilista, bélica e o anarquista
de sobressair social, profissional, intelectual e politicamente: pensa imediatamente em assegurar seu futuro
e da sua prole...
Está diante de uma bifurcação, política social: escolhe o caminho que lhe parece levar aos seus objetivos
mais rapidamente.
A maioria prefere subir na vida ainda que seja explorando terceiros para ser chefe, comerciante ou industrial bem sucedido. Outros escolhem ser políticos, policiais, militares, donos de igrejas, todos com o mesmo
propósito: ter assegurado uma vida confortável quase
sem nenhum esforço.
Os que optam pela via libertária, têm pela frente todas as adversidades: “incompatibilizam-se” com a família, os vizinhos, os colegas de serviço, com religiosos,
autoridades, com a sociedade onde vivem! A única coisa de que se podem “orgulhar”, é de poder dizer: sou anarquista!, se no país onde vivem não predominar o
autoritarismo, a ditadura.
Pela via marxista ainda pode chegar a chefe, punir
os que lhe são subordinados, hierarquicamente. Só não
pode contestar os comandantes. Pela via anarquista precisa ser “vacinado” contra a empáfia, ter coerência, ser
persistente, corajoso, ter espírito de renúncia, ser ateu,
solidário, humanista e advogar a igualdade social de todos, de cada um.
O anarquismo, só oferece sacrifícios...
A curto prazo, os “marxistas” e outras correntes chamadas esquerdas juntaram uma multidão de revoltados
furiosos, os agitaram, discursavam às massas e tudo
parecia resolvido: meio mundo “era comunista”, mas esqueceram que faltava maturidade à maioria, e aos chefes capacidade administrativa (o ser humano consome
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todos os dias antes de produzir). “Esqueceram” também
da instrução, do ensino, da educação racional e perderam sua sustentação. Surgiram divergências, cisões,
disputas pelo mando, atentados, fuzilamento de “traidores” e o Estado “comunista” virou um monstro sem cérebro e suas bases ruíram até pela corrupção...
Os libertários e anarco-sindicalistas também cresceram bastante nas primeiras décadas do século XX,
sem bases sólidas, conscientes, maturidade interior (ao
menos a maioria) e começaram a gritar: Façamos a Revolução Social! Morte à burguesia!
Esmaguemos a reação! Derrubemos o Estado! E foram tantos os gritos dos trabalhadores libertários, sem
base de sustentação, assustando e unindo as forças reacionárias, que estas fortaleceram o Estado e deram
“motivo a ditaduras da direita”.
Um pouco por medo dos gritos de Revolução já, e outro tanto para se impor às manifestações do proletariado, as greves, contra insurreições populares e comícios
de rua e praças, o patronato associou-se, formou poderosos organismos comerciais, industriais, recebeu ajuda das leis do Estado, e em troca financiou eleições de
gente de sua confiança, investiu no Estado, dos séculos
XIX, XX e XXI.
Cercado de polícias e militares treinados para matar; de técnicos e cientistas para aperfeiçoar material
bélico, (sempre com as bênçãos da igreja) e jurisprudência, ficaram em condições, inclusive de vender armas e condenar os discordantes.
Por sua vez o capitalista tornou-se dono das minas,
dos pólos de produção, dos bancos, e apóia o Estado para
declarar guerra em nome da pátria.
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O indivíduo, a sociedade mercantilista, bélica e o anarquista
E os governantes ainda viraram sócios de grandes e
pequenas empresas, cobram-lhes dividendos (parte nos
lucros) mesmo quando os empresários e comerciantes
têm prejuízos. E faz a cobrança antecipada em forma de
impostos: é um sócio sem empate de capital, que ganha
até nas falências e em casos de mortes (inventários).
Dispondo de tão ágeis servidores e de maquinismos
tão eficientes, o Estado é cada vez mais poderoso independente de quem é o chefe de governo: seus “ganhos”
dão-lhes poder incalculável.
Pelas mãos e os cérebros de seus economistas, o Estado administra e raciona alimentos, instrução, saúde,
saneamento, controla a produção e faz a fome virar
endêmica em muitas regiões do planeta.
Contrata intelectuais, psicólogos, economistas e
mestres da linguagem. Elabora programas para a imprensa escrita e falada divulgar noite e dia, repetidamente, até saturar o poder de raciocínio, de avaliação e
decisão.
Invade palácios e pocilgas, robotizando jovens, velhos,
mulheres e crianças, fazendo-os acreditar na “cosmetização” da suas mentes, mascarando suas aparências,
suas formas físicas, e terão consumidores de seus produtos de “beleza”, ficarão ricos com ajuda de intelectuais e comerciantes da enganação! E assim despersonalizam, reduzem milhões de seres humanos a indivíduos
sem discernimento, emoções, reações sem raciocínio,
para obedecer e pensar na aparência e no pão nosso de
cada dia, se Deus quiser...
Um povo mal alimentado, enganado, deformado em
sua mente não desenvolve todas as suas capacidades e
potencialidades cerebrais. Atrofiado ganha forma de
adulto com uma cabeça incapaz de entender a origem
da sua desgraça... É um corpo para trabalhar e aceitar
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sua pobreza, dizer sim senhor, não doutor, aplaudir os
que lhe falam de pátria, de cidadania, sem saber o que
significa e/ou quem inventou esses palavrões..., e obter mão de obra quase de graça.
Esmirrando pela destruição, ignora as origens de sua
pobreza e ainda acha que assim é porque Deus quer.
Por sua vez, os assalariados que não foram explorados e confundidos pelos mesmos métodos, também não
são capazes de se solidarizar com os excluídos e iniciar
(associados) a reversão dos sistemas políticos que se fortalecem e se perpetuam sobre o medo de uns e o comodismo de outros.
O anarquista brasileiro, Orlando Corrêa Lopes, mantinha como subtítulo de seu jornal Na Barricada (19131914): “Para fazer a revolução é preciso levar uma espingarda na mão e uma idéia no cérebro”. E nós acrescentamos: precisa também de maturidade revolucionária, coerência, saber como lidar com seres humanos
em rebelião, e se vitoriosos, suprir as suas necessidades e as dos outros no dia seguinte...
O anarquista não pode modificar em pouco tempo, o
pensar dos cérebros humanos que a Burguesia, a Igreja
e o Estado gastaram séculos anestesiando por gerações
e gerações. Primeiro intimidaram o homem! Depois fizeram dele um bruto capaz de matar seus irmãos para
garantir a desigualdade, para “defender à pátria”! E para
melhorar de vida passam por cima dos mais frágeis como
tratores.
Na escola ensinam-lhe cidadania, patriotismo... e
como eleger chefes!
Os anarquistas opõem-se a todos os tipos de crendices, condicionamentos, deformações!!!
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O indivíduo, a sociedade mercantilista, bélica e o anarquista
O anarquista quer o ser humano altivo, independente, capaz de se autogovernar sem muletas divinas ou
estatais! Vê no indivíduo a figura mais importante a desenvolver-se, preservar, elevando-o como ser humano
até onde a inteligência, o raciocínio e a razão o possam
conduzir. Para o anarquista um ser humano é igual a
outro independente do sexo, da cor, dos diplomas e outras “medalhinhas”, do país de origem: sua proposta de
igualdade não é uma fantasia nem é metafísica.
Tem consciência das muitas peculiaridades humanas em nosso universo, que precisarão viver suas realidades associadas em coletividades.
Muitos consideram isto uma UTOPIA na Terra... Mas
seria o caso de perguntar: Existe coisa mais utópica do
que acreditar nos religiosos de que após a morte, “os
bem mandados” viverão uma “Vida Nova” no Céu? Ou
que os políticos governantes vão promover a felicidade
de todos?
No dia em que os seres humanos não alimentarem
nenhum tipo de Utopia (esperança) certamente suicidar-se-ão!
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RESUMO
O indivíduo nasce em uma sociedade de competição, na qual o
Estado controla, deforma e submete sua vida e sua consciência.
Na escolha do caminho mais difícil os anarquistas confrontam e
escapam aos moldes do Estado.
Palavras-chave: anarquismo, Estado, capitalismo.
ABSTRACT
The individual is born in a society of competition, in which the
state controls, deforms and submits his life and conscience.
Choosing the most difficult way, anarchists confront and escape
from the models of state.
Keywords: anarchism, state, capitalism.
Recebido para publicação em 15 de agosto de 2003
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verve
acupunturas com raios cósmicos
realismo: a poesia como ela é
inscrições rupestres na ponta da língua
poesia à beira-fôlego: no último fole do pulmão
como ela é (a poesia)
fogo (é)
fogo
(a poesia)
fogo
Haroldo de Campos
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john cage: anarquista fichado no brasil¹
pietro ferrua*
Ainda que possa parecer incrível que um “inocente”
compositor de música pudesse ter problemas com a Justiça, isso paradoxalmente ocorreu. E aconteceu no Brasil. Quando, em outubro de 1969, dezesseis anarquistas
foram presos com o intervalo de algumas horas ou dias
no Rio de Janeiro, faltaram três pessoas da lista dos
indiciados: Edgar Rodrigues2, Carlos M. Rama3 e John
Cage. Sobre essas prisões e o processo que se encadeou
podemos consultar o recente livro4 de Edgar Rodrigues
que registrou estes eventos, à exceção de alguns episódios deliciosos, que talvez ele não tenha tido conhecimento, como este que eu vou contar.
O serviço secreto vinha observando o movimento
anarquista, e eles já desconfiavam disso. Uma das muitas atividades que alguns deles haviam elaborado era
justamente um curso sobre anarquismo, apresentado
em um teatro local, bem central e muito conhecido, que
foi alugado para este evento. Nós também tínhamos conProfessor emérito do Lewis Clark College, Portland, fundador do CIRA
(Centre International de Recherche sur Anarchisme), viveu no Brasil de 1963
a 1969.
*
verve, 4: 20-31, 2003
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verve
John Cage, anarquista fichado no Brasil
seguido o direito de usar o interior de faculdades e os
outdoors mais bem localizados da cidade, os quais foram
cobertos por anúncios e cartazes5 apresentando uma
série de conferências sobre a presença dos anarquistas
em revoluções passadas, como a Comuna de Paris, a
Revolução Mexicana, a Revolução Russa, a Revolução
Espanhola e os acontecimentos de Maio de 1968. Algumas precauções foram adotadas para evitar uma repressão imediata e a estratégia funcionou, pois o curso pôde
ser concluído e as prisões só aconteceram um ano mais
tarde. Para comprometer o menor número de pessoas
foi estabelecida a fórmula de apenas um palestrante e
foi decidido não transformar o ato em um comício político, apresentando-o como um curso pago6; o que permitiu a realização do projeto. Os policiais designados para
supervisionar o evento também tiveram que se inscrever como todos os outros, e criou-se uma brincadeira
para identificá-los (os papéis tinham sido invertidos):
eles só poderiam ser pessoas desconhecidas pelos camaradas. Os policias acabaram confusos — o que pôde
ser percebido em seus relatórios durante os interrogatórios e o processo — pois eles tinham dificuldade em
compreender a posição desses “fanfarrões” que eram
contra os capitalistas, os fascistas e os bolchevistas, algumas vezes até os colocando no mesmo saco. Podemos
então imaginar suas caras quando ouviram este americano (sim, um verdadeiro americano!) que substituía
o palestrante habitual e que foi apresentado ao público
como o célebre compositor John Cage. Este corrigiu rapidamente o anfitrião dizendo que não gostava muito do
título de músico e preferia o de “micólogo”. Fez questão
de afirmar que de fato não era o estudo de cogumelos
que o interessava, mas a colheita, ou melhor, a “caça”
de diversas variedades, segundo a estação e as latitudes. Ele nos confessou, em seguida, que gostava principalmente de os cozinhar para depois comê-los... Nesse
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ponto, começou a divagar sobre cogumelos fritos ou recheados, na omelete ou preparados de outra forma. O
assunto poderia ter continuado se ele não tivesse sido
interrompido — por um provocador — e lembrado que
era uma receita para uma Revolução que esperavam
dele, não uma para cozinhar cogumelos. Foi nesse momento que John Cage exclamou: “como vocês querem
fazer uma revolução se os telefones não funcionam?”. O
que podia parecer uma piada, era para ele uma experiência e uma convicção. A experiência, da qual fui responsável, o tinha marcado a tal ponto que é praticamente
a única lembrança escrita que ele deixou (que eu saiba) de nossa aventura juntos. De fato, no seu M:
Writings’67-72, ele escreve: “eu espero no hotel do Rio
de Janeiro, para saber se devo ou não me encontrar com
pessoas que estão estudando o anarquismo (eles haviam estudado até Thoreau e como descobriram que eu
gostava do Journal de Thoreau, pediram que eu dividisse minhas impressões com eles): o telefone não tocou”7.
Cage ainda não sabia que nós tínhamos tentado em
vão conseguir uma linha de telefone num restaurante
ao lado, o que, no Brasil dos anos 1960, significava ficar
meia hora na fila, esperar o sinal de linha livre, achar o
número do hotel, ceder o aparelho para a pessoa de trás,
retomar a fila e assim em diante, às vezes podendo chegar a mais de duas horas de espera8.
Mas chegou o momento de voltarmos no tempo para
explicar como conheci o compositor e como o embarquei nessa aventura. Alguns dias antes tinha recebido
um extraordinário convite para jantar na casa de Jocy
de Oliveira9, a mais “anarquista” das musicistas brasileiras (o que ela confirmou alguns anos mais tarde10). O
objetivo era entreter, durante e depois do banquete,
John Cage, o pianista David Tudor, o coreógrafo Merce
Cunningham e todo seu grupo. Arnaldo Sant’Anna de
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John Cage, anarquista fichado no Brasil
Moura e eu tivemos o privilégio de nos ocupar de Cage
durante um momento desta magnífica noite. Após uma
longa discussão musical sobre “l’intonarumori” (o “acorde-bruto”) futurístico de Russolo e Pratella (ele nunca
tinha visto um e se interessava muito) e sobre o teremin
(sintetizador pioneiro do qual meu sogro foi um dos raros especialistas) começamos a falar sobre o C.I.R.A.
(Centre International de Recherches sur l’Anarchisme),
e ele conheceu nossas atividades e ficou surpreso em
saber que anarquistas se reuniam à luz do dia em plena ditadura. Como ele se declarou abertamente anarquista, eu lhe pedi se poderia nos visitar oficialmente,
o que nos proporcionaria uma boa propaganda em alguns meios. Ele aceitou com prazer e foi decidido que
iria apresentar o anarquismo de Thoreau, porque ele
não acreditava muito em revoluções violentas e não
conhecia suficientemente os assuntos do curso para
apresentar um. A confirmação de sua presença dependia do telefonema que não conseguimos dar. Felizmente, também tínhamos tomado a precaução de enviar alguém para buscá-lo no hotel, com dois carros (se me
lembro bem, dois carros idênticos indo em direções opostas eram utilizados nessas ocasiões). Não me lembro
quem foi encontrá-lo no hotel, mas ele chegou ao teatro
carioca e nos entreteve durante boas duas horas com
piadas recheadas de sérias considerações sobre o
anarquismo tecnológico. Deixando Thoreau um pouco
de lado, cujo papel na cultura americana nós já conhecíamos, ele apresentou idéias de Suzuki, de
Buckminster Fuller e de Paul Goodman, que nós ignorávamos ou não tínhamos o hábito de associá-los ao
anarquismo. Cage manteve a tese da libertação da sociedade por uma revolução não-violenta e isso graças
às novas tecnologias (com as quais se irritavam os
anarco-sindicalistas). A visita de John Cage aos anarquistas foi ignorada pela imprensa, mas contribuiu ain-
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da assim para fazer conhecer as atividades anarquistas
nos meios artísticos e intelectuais e para consolidar sua
posição. Comparecemos em grupo, nos dias seguintes,
a todos os seus espetáculos e o reencontramos; no entanto, sua estadia chegou ao fim e foi com tristeza que
dele nos separamos. Um ano depois começaram as prisões e alguém lhe deu a notícia nos Estados Unidos. Não
creio que ele tenha se abalado pelo fato da ditadura ter
citado seu nome. Apesar disso, a fantasia do serviço
secreto brasileiro fez John Cage entrar para a história
do anarquismo do Rio de Janeiro. Fica também sua
mensagem: “conselho aos anarquistas brasileiros: melhorem seu sistema telefônico. Sem telefone será totalmente impossível começar uma revolução”11.
Além deste episódio de participação ativa, John Cage
sempre apoiou o anarquismo em seus escritos. Folheando sua obra podemos reconstituir sua trajetória, que
vai de Lao Tsé a Paul Goodman, passando por Thoreau.
Sua prosa era tão assistemática quanto sua música, e
é preciso reconstruir pacientemente o quebra-cabeça
de seu pensamento: “Sem políticos, sem polícia”12; “Não
ao governo, apenas educação”13; “A anarquia é pratica”14;
“Nós devemos realizar o impossível, nos desfazer do
mundo das Nações, introduzindo o jogo da inteligência
anárquica no mundo”15; “Nós sabemos que o melhor governo é não existir governo”16.
Ele mesmo definirá seu anarquismo como um tecnoanarquismo à la Kostelanetz17. Mas seu anarquismo
também tem outras fontes. Para Max Blechman18, sem
dúvida o último a entrevistá-lo sobre a data de sua adesão às idéias anarquistas, Cage respondera: “eu comecei a me interessar pelo anarquismo mais ou menos
nos anos 1940... Vera e Paul Williams me ‘converteram’.
Mas principalmente James J. Martin”. Ele conhecia a
obra de Emma Goldman, e também estava a par dos acon-
24
verve
John Cage, anarquista fichado no Brasil
tecimentos espanhóis, sempre pregando um anarquismo
cotidiano, imediato. De fato, ele considera: “eu dou um
exemplo de como isso funciona agora” e revela que o
anarquismo para ele é uma segunda natureza: “eu sou
anarquista da mesma maneira que telefonamos, que
apagamos a luz, que bebemos água”19.
Além do mais, ele não se limitou a viver ou a mencionar suas idéias revolucionárias; ele as adaptou às suas
modalidades de expressão. Suas composições literárias e musicais são anarquistas tanto pelo conteúdo quanto pela forma. Sua escrita não é convencional e se exprime de uma maneira totalmente original. Seus mesósticos parecem um jogo de palavras cruzadas que lhe
permitem condensar seu pensamento (máximas horizontais) e defini-lo (fórmulas verticais). Poderíamos observar que os futuristas e os poetas concretos o antecederam e que ele tomou-lhes emprestado algumas descobertas. Porém, seus antecessores frearam diante de
alguns caminhos não os explorando às últimas conseqüências, enquanto ele os sistematiza, fazendo livros
inteiros e composições musicais (de vez em quando os
gêneros acabam se confundindo). Às vezes, ele constrói
estruturas rígidas (como Arnold Schoenberg, do qual ele
foi discípulo) acabando por violá-las deliberadamente no
decorrer da construção. Seus livros são feitos na forma
de estruturas circulares e não têm nem um verdadeiro
começo, nem um verdadeiro fim. Tanto a indeterminação quanto a incoerência são evidentes, o todo pendendo para a disciplina e tendo como resultado uma estrutura variável.
O mesmo acontece com sua música na qual o elemento anárquico se situa em todos os níveis: o abandono dos cânones tradicionais, a mistura de gêneros, a
supressão do maestro, a introdução da noção de silêncio, o uso de sons naturais (barulhos também), mecâni-
25
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2003
cos, elétricos, eletrônicos, etc... Sua gama de sons e suas
experiências são tão numerosas quanto suas obras. Ele
dizia: “ficando aberto ao imprevisto espero com alegria
o que vai acontecer”20.
Em Atlas Eclipticalis (1932) ouvimos 25.000 sons em
liberdade durante 160 minutos; em Bacchanale (1936)
ele altera os sons do piano colocando entre as cordas
papel, porcas, cinzeiros (inventando assim o “piano preparado”); em Construction in metal (1937) utiliza gamelans
indonésios junto com chapas metálicas e peças de freios de carros; em Empty Words (1973-78) usa um jogo de
vozes, o grito e vocalizes misturando sílabas e letras de
um texto de Thoreau; em Europeras (1987-91) mescla
gravações em fita magnética com fragmentos de discos,
pianistas, cantoras de ópera e muitos projetores; em 59
¼’ for a String Player (1953), os instrumentos de corda
são tocados com ou sem palheta e as caixas de ressonância são batidas como se fossem instrumentos de
percussão; em 4 minutos e 33 segundos (1942) o pianista
fica sentado diante de seu instrumento sem emitir nenhum som (John Cage gostava de dizer: “eu penso que a
melhor composição, pelo menos a que eu prefiro, é a
silenciosa (4’33’’). Ela é feita em três movimentos e não
tem som. Eu queria que minha música fosse livre dos
sentimentos e idéias do compositor. Eu senti e espero
ter levado as pessoas a sentir que os sons dos seus ambientes constituem uma música que é muito mais interessante que a música que eles escutariam se estivessem dentro de uma sala de concerto”)21; HPSCHD
(1968) foi concebida como uma peça para cravo e aparelhos eletrônicos; Imaginary Landscape n. 5 (1952) é uma
composição para 42 gravações fonográficas enquanto que
Imaginary Landscape n. 4 (do ano anterior) propunha um
som produzido pela emissão de doze rádios; Muoyce [Música + Joyce] (1983) foi formada com sons emprestados
26
verve
John Cage, anarquista fichado no Brasil
de Finnegan’s Wake e cantado sobre diversos ritmos
descontínuos, sem melodia mas com o acompanhamento
de sirenes; Variations II (1961) é uma peça indeterminada
para um número variável de músicos produzindo qualquer som; Variations V (1965) é composta de três elementos: barulhos amplificados, dança e uma montagem
de filmes; Winter Music (1957) pode ser tocada por um
número indeterminado de pianistas (de 1 a 20). E assim
por diante.
Arnold Schoenberg, que foi seu mestre durante algum tempo, ousou dizer de John Cage: “naturalmente,
ele não é um compositor, mas um inventor genial”, enquanto que Bruno Maderna disse: “nós somos todos
cageanos”22. Já, para Peter Yates: “o compositor de sua
geração que teve mais influência, no plano mundial”.
Não importa a área em que se envolvia (música, literatura, balé, etc...) Cage sempre se distinguia por este
lema: “a revolução não pode nunca parar”23. Sob todos os
aspectos e especificamente sobre as idéias anarquistas, ele dirá a Max Blechman, apenas algumas semanas antes de morrer: “tenho uma amiga que está voltando da Espanha onde conhece um escultor que lhe
disse: ‘de erro em erro chegaremos a vitória final’. Ela
acredita — como ele, como eu, e como cada vez mais
pessoas — que o futuro político da humanidade será
anarquista. Nós só podemos ter uma humanidade universal e anarquista ... mas é preciso um anarquismo
pacífico... ou haverá muito do que poderíamos chamar
de dor”24.
Os camaradas marselheses que fundaram o
“Grupo anarquista John Cage” foram bem inspirados.
27
4
2003
Je te salue, camarade
je n’ai pas Oublié tes blagues
même cHez les dictateurs
elles nous oNt faire rire.
Certains ont su en tirer
la subst Antifique moëlle
et s’en sont Guerris pour
les tânchEs immenses qui les attendaient.
Aujourd’hui nous te
regrettoNs, mais tu nous ses
d’A guillon pour les luttes
en faveuR de l’anarchie
que tu as preChée et que nous,
avec ou sans cHampignons
dans l’ I ndetermination
avec les Sons de tes jeux de mots
compTons construire
au jour lE jour.
Já te saúdo, camarada
eu não Olvidei tuas troças
mesmo na cHoça dos ditadores
elas Nos fizeram rir.
Conseguiram alguns reter
o âmAgo-medular
sendo enerGizado pelas
marcas imEnsas que os esperavam
Agora sua falta
se Ntimos, mas você serve
de inspirAção para as lutas
em favoR da anarquia
que você Quer e que nós
com ou sem cog Umelos
na Indeterminação
com os Sons de tuas palavras em dança
consTruiremos
dia-A -dia.
28
verve
John Cage, anarquista fichado no Brasil
Notas
1
Traduzido por Carolina Besse e Thiago Rodrigues.
Este camarada foi o único a não ser preso, entre os oficialmente indiciados no
momento da acariação sobre o estatuto do Centro de Estudos Professor José
Oiticica. Ele figurava como bibliotecário da instituição, mas ninguém conhecia
– ou fingia não conhecer – o verdadeiro nome que se escondia por trás deste
pseudônimo.
2
Carlos M. Rama vinha periodicamente ao Brasil visitar uma de suas filhas que
veio morar no país depois de se casar com um brasileiro. Uma de suas viagens
coincidiu com nosso curso e ele teve a bondade de me substituir para falar
sobre os anarquistas na Revolução espanhola de 1936-39, assim como havia
feito Ideal Peres na semana anterior para nos mostrar a Revolução russa. Carlos
Rama, no dia de sua conferência, foi até entrevistado pela imprensa local. Mais
tarde eu mesmo o avisei, estando em Montevidéu, das prisões ocorridas. Ele
evitou as tempestades da ditadura brasileira, mas entrou em conflito com o
governo uruguaio, refugiou-se no Chile de Allende e em seguida teve que se
exilar na Espanha, onde morreu muito jovem.
3
O processo dos anarquistas, assim como os acontecimentos que se desencadearam foram relatados por Edgar Rodrigues em seu livro O anarquismo no banco
dos réus (1969-1972) (Rio de Janeiro, VJR, 1993). Eu mesmo forneci ao autor
uma parte da documentação, mas ele também utilizou documentos oficiais. Na
época das prisões o camarada Rodrigues foi preservado das perseguições durante algum tempo, o que lhe permitiu manter contato com os camaradas que
estavam livres, ajudar as famílias daqueles que estavam presos, encontrar advogados para a defesa e se tornar útil sob diversos planos.
4
Diego Abad de Santillán, que eu encontrava de vez em quando em Buenos
Aires, com quem me correspondia regularmente e que me havia fornecido
material para o curso, se espantou ao receber uma cópia do anúncio de nossas
conferências, assim como a possibilidade de distribuir este tipo de material
durante uma ditadura militar. Eu lhe respondi que não era mais permitido no
Brasil do que na Argentina, mas que o fazíamos assim mesmo.
5
A taxa a pagar era modesta. Nenhum pro labore era destinado aos palestrantes
e o dinheiro recebido contribuía para pagar o aluguel da sala e a impressão dos
cartazes.
6
John Cage. M: Writings ’67-72. Middletown, Wesleyan University Press, 1974,
p. 59.
7
Eu tinha me inscrito para a compra de um telefone, para o qual pagava
mensalidades regularmente, mas após seis anos ele ainda não tinha sido instalado. Eu me tornei proprietário de um apenas quando estava no exílio.
8
29
4
2003
9
Em seu apartamento no bairro do Leblon, onde na ocasião ela morava com
seu marido, o diretor de orquestra Eleazar de Carvalho.
10
O First International Symposium on Anarchism deu-se em Portland entre os dias
17 e 24 de fevereiro de 1980. Foram oito dias de conversas, conferências,
discussões, transmissões, projeções, espetáculos, recitais, concertos, etc. A parte mais bem sucedida foi aquela consagrada às expressões artísticas: dança,
música, cinema. Nesta ocasião nos deleitamos escutando Jocy de Oliveira,
tanto quanto pianista e animadora ao interpretar “Descrições automáticas.
Embriões desidratados. Velhos sequins e velhas armaduras” de Erik Satie,
como quando ela nos ofereceu a apresentação de um extraordinário e inesquecível espetáculo “Probabilistic Theater n. 1” sua composição para músicos,
atores e dançarinos, que foi muitíssimo aplaudida.
11
John Cage. M: Writings ’67-72, op. cit., p. 60.
12
John Cage. Composition in retrospect. p. 43.
13
Idem, p. 126.
14
Ibidem, p. 93.
15
Ibidem, p. 34.
16
John Cage. M: Writings ’67-72, op. cit., p. 101.
Ele tinha tanta confiança em Kostelanetz que permitiu que ele palpitasse
sobre seus escritos e que fizesse uma montagem, para um artigo que apareceu
na revista Social Anarquism (nº 14 de 1989. pp. 13-29) com suas idéias sobre
educação. John Cage se limitou a adicionar algumas palavras, aqui e ali, entre
parênteses.
17
18
Citação: “Last Words on Anarchy. An Interview with John Cage by Max
Bletchman” in Drunken Boat, n° 2, pp. 221-225. A revista apareceu em setembro de 1994 mas a entrevista aconteceu em 24 de julho de 1992, menos de um
mês antes da morte do compositor.
19
John Cage. A Year from Monday, p. 53.
20
John Cage. Composition in retrospect, op. cit., p. 32.
John Cage. “Interview with Jeff Goldberg” in The transatlantic Review, nº 5556 de maio de 1976.
21
22
Citado por Piero Santi em “Método e caso in Cage” in Spirali nº 42 de junho
de 1982, pp. 43-45.
23
Idem, p. 33.
24
Ibidem, p. 33.
PS: John Cage tinha sido convidado para participar do programa musical do
Primeiro Simpósio Internacional sobre o Anarquismo de Portland, mas não pôde
comparecer devido a contratos assinados anteriormente com o coreógrafo
30
verve
John Cage, anarquista fichado no Brasil
Merce Cunningham, mas ele nos permitiu colocar no programa seu Imaginary
Landscape n. 4, incrivelmente interpretado pelo Lewis Clark Chamber Choir
dirigido por Gilbert Seeley.
RESUMO
O autor relata a impressionante história da passagem de John
Cage pelo Brasil, no final dos anos 1960. Ferrua nos conta como
a presença e a personalidade de Cage trouxeram ao grupo anarquista do Rio de Janeiro um modo diferente de perceber as transformações sociais e a liberdade. Além disso, ele estuda alguns
aspectos dos trabalhos musicais e poéticos de John Cage, notando a relação entre arte e política em sua obra. Relação esta que foi
uma forte e original expressão de vida.
Palavras-chave: John Cage, anarquismo, Brasil.
ABSTRACT
The author relates the impressive story of John Cage’s stay in
Brazil in the late 1960’s. Ferrua reports how Cage’s character
and personality brought to the anarchist groups in Rio de Janeiro
a different way to see social changes and freedom. He also studies
some aspects of the musical and poetical works by John Cage,
noting the relationship between art and politics in his ouvre. This
connection was a strong and original expression of life.
Keywords: John Cage, anarchism, Brazil.
Recebido para publicação em 6 de março de 2003
31
4
2003
vivendo e revirando-se: heterotopias
libertárias na sociedade de controle
edson passetti*
Conexões libertárias são provocadas por encontros
intensos que promovem reviravoltas. Dissociam obra e
autoria, abolindo a relação direta, imediata, indissolúvel,
a totalidade explicativa e definitivamente verdadeira, a
crença em que cada palavra deve convencer que está
confessando a vida, expressando a verdade verdadeira.
Opor a autoria à vida, isentando a literatura do autor ou
do seu ponto de vista, como se dois mundos autônomos
existissem, compostos por real e ficção, tampouco nos
leva a experimentar libertarismos provocados pelas escolhas dos escritores ou de quem escreve para o público.
Há escritas que inventam preciosas reviravoltas em
seus redatores. Elas vão de anotações em pequenos papéis, a deliberados diários, a arquivo bloqueado por senha no computador, sem a preocupação com a expressão literária. Entretanto, de qualquer maneira, por um
instante, qualquer pessoa é ou já foi um escritor, mesCoordenador do Nu-Sol, Professor no Departamento de Política e no PEPGCiências Sociais, PUC-SP.
*
verve, 4: 32-55, 2003
32
verve
Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade...
mo que isso tenha se passado somente na memória de
cada uma como pequenas ou intermináveis matérias
imateriais, escritas no pensamento durante o trajeto
de ônibus ou trem, envolvendo pessoas próximas, mortos que adquirem vida ou apenas personagem que aparece para desaparecer em seguida, ou nos acompanhar
como lembrança de uma pessoa inexistente. As conexões libertárias fazem mais do que isso. Estabelecem
exterioridades, mostram múltiplas subjetividades, fogem
dos conceitos, escapam de ser apanhadas pelas formalidades para nos pegar a contrapelo. O libertarismo evita
a identidade e a classificação, para festejar coexistências. A obra, a existência da pessoa, um fragmento capaz de gerar transgressões, acontecimentos assim,
acompanham os libertários em suas experimentações.
O libertário é um viajante, evita itinerários, é um anarquista insatisfeito que se problematiza e que não admite ser confundido com o liberal.
Um escritor que se declara liberal, que atua na política como tal, muitas vezes dá, aos seus livros, intensidades libertárias radicais. Talvez isso ocorra pela proximidade entre anarquistas e liberais acerca da redução
dos exercícios de autoridade e da importância da liberdade; da liberdade como tema e vivência preciosa; e da
instável condição de existência, um escritor, cidadão
liberal produzindo literatura, passa a ser apenas uma
pessoa libertária, capaz de abolir as hierarquias, de perseguir vidas intensas de pessoas conhecidas ou escancarados personagens como ficções verdadeiras que estabelecem uma nova política da verdade para dissolver
a biografia, o depoimento verossímel ou a documentação arquivada. O escritor mostra, com essa atitude, que
a invenção provoca reviravoltas e se opõe ao acabado
poder da criação; e trata de reais e inventados percursos da vida das personagens, depoimentos ou arquivos,
33
4
2003
incluindo a sua própria experimentação de vida
revisitada, pelo ponto de vista de sua existência atual.
Um jovem artista, do qual nada sei sobre o que pensava a respeito de política, com suas peças artísticas,
provoca sensações, conexões e atitudes libertárias; e
isso importa. Um leitor mais apressado poderia dizer que
toda arte busca a liberdade, a perfeição, o equilíbrio ou o
transtorno. Eu, um anotador de casos, apenas estou interessado no que é realizado e no que faz com que as
peças produzidas pelo artista não adquiram vida independente, nem aura (a não ser para o colecionador, o
marchand, as regras do mercado ou os ditados dos críticos). Lá com estas obras está a vida do autor, impregnando cada objeto de subjetividades, também parte da
longa vida vivida de cada um, um dar de costas à Vida,
esta coisa transcendental que se quer modernamente
finita em cada humano e infinita enquanto utopia e
construção ininterrupta de um modelo.
Um escritor fala de um ponto de vista. Se isso é literatura, se tem durabilidade e é preciosa, vai depender
das condições de acesso a estes escritos literários. Não
havendo acesso livre, apreciações à parte sobre a autoria se desvanecem. O autor, essa criação individual da
modernidade, o realizador de uma capacidade superior
e particular da cultura ocidental, domina palavras, técnicas, regras e contra-regras, para perpetuar uma maneira de registrar o mundo. Outras maneiras, de outros
pontos de vista, de outras regiões, de estados do ser, como
disse Antonin Artaud, ou de expressões destes estados
do ser facilitadas pela escultura, a pintura ou os bichos
fez das atividades de Nise da Silveira uma facilitadora
de experimentações para os loucos internados depois reconhecidos artistas (que o mercado, os críticos ou os
marchands saudaram mais tarde). De certa maneira, é
em busca de sua liberdade que se escreve, pinta, cons-
34
verve
Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade...
trói, redige, ou continua produzindo nas memórias, intermináveis romances, construções impossíveis, preciosas situações poéticas.
Além do livro ou de autoria pessoal e de uma coletânia
está a revista. Nela é possível experimentar novos espaços, diagramações, a tiragem de um número único,
as mudanças que mostram como seus inventores tratam os temas, os assuntos. Revistas de muitos números, industrializadas, reiteram os modelos e projetamse como eternidade do máximo extrair do modelo até o
esgotamento da forma para ceder lugar a uma outra
versão do mesmo modelo. Elas veiculam semelhanças.
Nas bancas de jornais podem ser econtradas para consumo da multidão de alfabetizados. Não falo dessas revistas, nem de projetos de vanguarda aguardando serem saudados como exemplares. Falo de experimentações disponíveis a convulsionar um leitor, menos por
obrigação profissional, surpreendendo pelo acaso que a
revista lhe mostra: o que ele pensa e inventa também
existe na vida de outras pessoas; é possível escapar do
modelo tanto quanto se aproximar de diferentes coexistindo. Revistas desta forma não são perfeitas e equilibradas, ainda que possa nelas se constatar cada projeto
em curso. A forma da revista está disponibilizada à convulsão provocada pela escrita dos autores. Eles falam de
um ponto de vista e reparam em barulhos que a escuta
não apreende e em flashes que a visão não capta. A revista, assim, provoca liberações.
Falar de liberdade já é em si estabelecer uma conexão libertária voltada para abalar linguagens, obra e
autoria, realidade e ficção, escolas e vanguardas. Exercitar liberdade é uma preciosa atividade subversiva.
Diante do direito o único, do cidadão a pessoa, do castigo
a abolição da pena, da hieraquia as parcerias, da sociedade a associação, do Estado a associação também, da
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2003
filantropia a generosidade, da propriedade privada a
multidão de mim, do macro o micro sem pretensão à
maioridade, um nomadismo contra territorialidades,
heterotopias diante das utopias.
Um escritor, um artista, uma revista
Pessoas rigorosas indicam as razões de suas escolhas para demonstrar a exposição de seus argumentos.
Elas perseguem um percurso em busca de atingir uma
finalidade. Mas, ao contrário, ao se considerar a importância dos acasos, a escrita escapa do objetivo perseguido para se apresentar como momento de um acontecimento. Por diversas razões que nenhuma Razão consegue explicar, e pelo itinerário irregular da nossa
existência, certas leituras e apreciações nos atingem
disponíveis, por instantes livres ou deliberadamente
resistentes, diante das obrigatoriedades do trabalho capitalista eletrônico, veloz, extenso, devorador de energias intelectuais. De repente um livro, uma exposição e
uma revista provocam conexões libertárias, reviram o
estado do ser e se transformam em escrito para uma
revista libertária.
Uma socialista procurando realizar sua utopia, andando pela França, divulgando suas idéias a partir de
seu opúsculo A União Operária: Flora Tristán. Um artista que abandona uma vida burguesa promissora para ir
em busca de um paraíso terrestre, na Polinéisa: Paul
Gaugin. Avó e neto compõem o duplo que forma o livro O
paraíso na outra esquina. Do presente ao passado destas
existências, Mario Vargas Llosa (Mario Vargas Llosa, O
paraíso na outra esquina, São Paulo, Editora Arx, 2203,
493 pp.) traça mais que um painel sócio-histórico do século XIX, na Europa, França-Inglaterra, de suas bolsas
de valores, cleros, rodas de vanguardistas, burgueses,
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verve
Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade...
revolucionários e colônias, na América do Sul (Peru) ou
na Polinésia (lá onde os franceses irão testar suas bombas atômicas, na segunda metade do século XX).
Dois livros em um formam um único duplo indissociável. O autor recorre mais uma vez à alternância para
apresentar as ambigüidades das pessoas, dos eventos,
dos amores, das paixões, das liberdades. Não há um sentido obrigatório para as pessoas, para a história, para as
idéias e atitudes. A experimentação da liberdade mostra como é intensa e difícil vivenciá-la. Não cabe ao
narrador nos dar um resultado, mas apresentar equações, e assim Llosa apresenta as vidas de liberdade
econtradas por Flora Tristán e Paul Gaugin.
Não basta se rebelar contra a condição de objeto de
um macho para se fazer uma feminista revolucionária.
É preciso arriscar naquele instante que se imaginou
encontrar a solução para a vida tranqüila. Flora, filha
natural de um homem de família rica de Arequipa, vivendo em Paris, foi para o Peru em busca de reconhecimento. Lá encontrou escravos, um clero rígido, militares patriotas, mulher marechal e solitária noviça — que
foge do convento para permanecer presa numa casa da
vizinhança —, miseráveis, pobres e humilhações. Reviravoltas de múltiplas intensidades fazem emergir uma
revolucionária de inspiração saint-simoniana que pretende criar o novo mundo. Nada mais impedirá a vida
revolucionária nem mesmo surpreenderá esta pequena andaluza, como chamavam os franceses as mulheres de vasta cabelereira negra. Toda fronteira pode ser
transposta, incluindo o amor por outra mulher: Olympia.
Depois de ver Olympia de Manet, definitivamente
Gaugin soube que desejava ser pintor. Livre da família,
dos filhos, do emprego, do que pudesse prendê-lo, mesmo que fosse à utópica Casa Amarela imaginada por Van
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4
2003
Gogh para desencadear uma associação libertária de
artistas. A arte não estava restrita ao impressionismo
francês do ácrata Camille Pisarro ao estonteante holandês. Para Paul Gaugin era mais do que isso. Era preciso encontrar o paraíso, ir habitá-lo, conhecer o mundo
dos instintos, o primitivo capaz de abalar a civilização.
Polinésia, uma, duas, três mudanças e permanências,
com breve regresso a Paris. Nos Mares do Sul, um paraíso, depois de sair do continente para a ilha, Inglaterra.
Como a avó lá foi, ficou, descobriu, contestou e se retirou.
Os percursos destes dois foram paralelos. O dela acontece no final da primeira metade do século XIX; o dele
no final do XIX e início do XX. Ambos querem o paraíso,
parecem buscar uma finalidade da qual desistem para
experimentarem trajetos inventados. A vida está em fazer acontecer no instante e não na utopia — precisam
menos da utopia, da transcendentalidade cristã —,
reinventada em heterotopia dos percursos. Revirar os
instintos ou a sociedade encontrando outros lugares
(Polinésia para ele, as peregrinações pelas cidades para
ela) é a condição de cada existência. Saem de Paris,
Europa, para outros lugares. Mas é fora dela que as inquietações ganham força: o Peru faz explodir a utópica
revolucionária que agita cada cidade francesa, cada revolucionário socialista que encontra, cada trabalhador
que comparece às sessões de debate promovidas por ela
expondo as condições de exploração e morte anunciada,
modificando-se, tornando evidente não haver receituário para a revolução social. Com Flora Tristán convivese com diferentes maneiras de atuar para a nova sociedade, evitando modelos, determinismo e leis para se
rever princípios e inventar novas possibilidades. O percurso de Gaugin também pode mudar a qualquer momento. Apenas o pônei que puxa sua pequena carroça,
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verve
Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade...
nas Ilhas Marquesas, no final da vida, é que tem o caminho de cor. Gaugin vai à Martinica, à Polinésia, chega
até a pensar que o verdeiro paraíso estivesse na Ilha do
Diabo, a prisão nas Guianas, e delira encomendando-se
ao Japão, depois de mais uma aplicação de morfina, à
beira da morte, para conter as dores deixadas pela doença impronunciável. Com Gaugin convive-se com diversos
amigos em todos os lugares, fortes relacionamentos que
lhe dão forças para continuar sua luta anticlerical, sustentar os desacatos às autoridades, e mesmo diante de
surpreendentes reviravoltas, como escrever idiotices para
um jornal religioso para matar a fome, ainda ser respeitado. Loucos agitadores, neto e avó, homem e mulher,
artista e revolucionário se complementam.
Flora aprende sobre a revolução escrevendo sobre o
mundo que ela vive, fora do pedantismo universitário.
Paul pinta o mundo a partir de pessoas livres e abomina
a escola obrigatória. Para Flora Tristán, tudo pode ocorrer: bons encontros pessoais com Charles Fourrier e
Robert Owen; forte lembrança do irlandês parlamentar
Daniel O’Connell, ou mesmo um bem-humorado diálogo com um Marx resmungão numa gráfica. Paul Gaugin
gostava de mulheres e de garotas e nadou com Jotefa,
um mabu, maneira comum de ser homem-mulher entre os maóri. Pinta com suas cores vibrantes, inverte e
encontra outra transcendência, arriscando-se, ultrapassando fronteiras, até inventar sua Casa dos Prazeres,
já no final da vida, sem nunca deixar de educar a todos à
sua volta com as cartas pornográficas, com sua coleção
de cartões reproduzindo obras de arte, suas esculturas
e bastões. Flora era avessa ao sexo até conhecer o prazer, única vez, com Olympia. Ele foi um apreciador
prazeroso do sexo compartilhado, sabendo conviver com
as idas e vindas das companheiras maóri e não suportando as regras pudicas da dinamarquesa com quem
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casara e tivera filhos. Flora não suportou o sexo com
um homem comum europeu que sobre ela se atirava
babando; Gaugin queria mais da mulher que o oferecido
pelo limite de uma camisola de esposa. Flora Tristán
preferiu seguir a tarefa de revolucionária a manter os
encontros regulares com a bem colocada companheira,
casada com um patriota polonês. Paul Gaugin se deixou levar pelas garotas e mulheres polinésias.
O paraíso na outra esquina, parte de uma referência
à brincadeira infantil de se tocar com olhos fechados
em busca do paraíso. Traça possíveis percursos de realizações heterotópicas — lugares em que acontecem as
utopias. Mostra como ocorre uma heterotopia de percursos, sem começo nem fim; como a de Flora Tristán,
no qual se encontram todos os socialismos da época em
que os trabalhadores sabiam, com Proudhon, que a propriedade é um roubo, e se experimentam as diversas
possibilidades de coexistência revolucionária e sexual;
uma heterotopia de percursos, como a de Paul Gaugin,
que encontra as diversas coexistências artísticas, mas
também a liberdade de não assumir contrato com ninguém, mas fazer viver arte e sexo, deslizes, voltas e revoltas, com coragem para seguir convulsionando. A sociedade européia melhor e mais justa foi o sonho de
Flora Tristán; uma Polinésia que não se livrou mais dos
efeitos da colônia francesa e suas instituições racionais e clericais, a de Paul Gaugin, registrada em telas
e textos, segundo a imaginação, como história efetiva.
De ambas as formas se vive liberdade pela horizontalidade das relações, evitando dogmatismos e certezas. Só
há liberdade onde há vida precária.
Com Flora Tristán e Paul Gaugin o libertarismo permanece vivo na literatura de Llosa, de maneira análoga à que nos tinha levado em Os cadernos de Dom
Rigoberto, na companhia de outro pintor, Egon Schiele.
40
verve
Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade...
Sexo e arte não dão sossego à política. Ao tentar matar
Flora Tristán, como o fêz o escroto marido abandonado,
não se matam escritos, nem tampouco os valorizam
mais; por serem libertários eles permanecerão atuais,
e isso gera o desespero e a violência dos autoritários;
pode-se não morrer mais de sífilis, mas se morre de aids;
morre-se de sexo para regozijo dos conservadores. Resta a obra. No passado a de Gaugin, agora a de Leonilson
(Leonilson, São Paulo, Pinacoteca e Galeria Luisa Strina,
julho de 2003), por exemplo. Você leu, viu ou tocou em
alguma delas? Um pouco está nos livros de Mario Vargas
Llosa. Dez anos após a morte de Leonilson suas invençõs
estão por aí, dizendo fique firme, seja forte: um
heterotópico a espera de um autor.
Você prefere ler alguma coisa rápida e contundente?
Psiu, pegue PS:SP, (Revista PS:SP, São Paulo, Ateliê Editorial, 2003, 104 pp.) leia o conto de André Sant’Anna,
Rush (que também está em Geração 90: os transgressores,
São Paulo, Boitempo, 2003, com outro conto arrasador,
Deus é bom nº. 6) e conheça muito do que foi a ditadura
militar, o fascistinha que vive em cada itinerário recomendado a ser percorrido, até dar de encontro com os
conformismos alarmantes descritos por Ivana Arruda
Leite (que no op.cit., p. 213, crava: “todo elemento
diferenciador configura-se, a princípio, como anomia.
Entretanto, se surge uma nova anomia, o que era considerado anômico é imediatamente incorporado ao tipo
padrão”), e os desconcertantes diversos contos de autores de São Paulo, do início do século XXI, quando não se
fala mais de revolução, mas de reformas, de ajustes, de
equilíbrio nas finanças para se chegar à metade do século sem risco de falir o sistema previdenciário como
planeja o Estado francês na atualidade, de vanguardas e
de literatura como isso ou aquilo.
41
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2003
A liberdade não anda com identidade no bolso, não
pode e nem se deixa apanhar por conceitos. Ela está na
invenção da vida libertária, despreendida de preconceitos, dos sonambolismos das sentinelas que guardam as
escrituras sagradas dos apóstolos das utopias. Não se
aprende somente entre os iguais, mas entre os diferentes libertários, fazendo acontecer. Vivemos uma era em
que falar é fácil e ser libertário é quase um desempenho teatral. Engana-se aqui e acolá para convencer o
idiota a acreditar no que ouve da boca escovada e esconder o que eles fazem ali e aí.
Os que se pretendem mais verdadeiros, autênticos,
certos, primorosos, históricos, clássicos ou eternos se
livram destas baboseiras ao encontrar Flora Tristán,
Paul Gaugin (o insosso antropólogo Buell Quain, que também passou pela Polinésia e se instalou como pesquisador no Brasil do Xingu, pode ser visto como seu oposto,
um suicida — o homicida covarde, discordando ligeiramente do contundente poeta Sérgio Cohn que diz ser o
suicida um homicida tímido — como mostra Bernardo
de Carvalho em Nove noites, São Paulo, Companhia das
Letras, 2002), Leonilson e psiu PS:SP. Eles desalojam
os bonzinhos e os revolucionários de plantão. Estamos
numa época em que a política se higienizou e se transformou em propaganda clean. O tráfego permanece congestionado de reformistas e revolucionários envelhecidos. Não se dê sossego!
Outro livro
Cosmópolis é um livro de Dom Delillo (São Paulo, Companhia das Letras, 2003) que trata de um dia na vida de
um homem bem sucedido, poderoso, que do interior de
sua limusine comanda, sai para dar ordens e trepar com
mulheres, receber seus asseclas e atuar segundo as
42
verve
Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade...
coisas cotidianas que cercam a vida de um poderoso contemporâneo. De repente, num abril de 2000, durante
um dia de trânsito congestionado em Manhattan, tudo
está para acontecer, ali onde “as pessoas nas sociedades livres não precisam temer a patologia do Estado”,
porque somos nós mesmos que “criamos a nossa histeria”. Aqui, um autor liberal permanece liberal. A literatura a serviço de uma admirável neutralidade na exposição.
Impossível ao liberalismo puritano estadunidense
imaginar outra coisa: “havia pessoas se aproximando
do carro. Quem seriam? Eram manifestantes, anarquistas, fossem o que fossem, uma espécie de teatro de rua,
ou adeptos do quebra-quebra geral”(p.89). É show ou
ameaça como show. “Um espectro ronda o mundo,
gritavam”(p.90). Bem, e agora, qualquer pessoa minimamente informada sabe que não se está entre anarquistas, mas entre marxistas, menos Don Delillo. Ele
cria um pastiche misturando a abertura adaptada do
Manifesto Comunista com atitudes anarquistas para
endereçar ao leitor a constatação que a “cultura do mercado é total” (p.91). Vija Kinski, que neste momento
acompanha o milionário Eric Packer no interior da
limusine, explica, que os anarquistas protestam contra
o cibercapital “que vai mandar gente para a sarjeta, pra
estrebuchar e morrer” (p. 91), como se não houvesse
passado semelhante, continuidade nas dominações,
como se o passado fosse menos cruel. Por fim, antes que
a frase o espectro ronda o mundo – o espectro do capitalismo apareça num gigantesco painel eletrônico, ficamos
com o seguinte diálogo: “Você sabe em que os anarquistas acreditam./ Sei./ Me diga, disse ela. / A vontade de destruir é um impulso criativo. / Esse é também o
princípio básico do pensamento capitalista. Destruição
imposta. Velhas indústrias têm de ser impiedosamente
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eliminadas. Novos mercados devem ser disputados à força. Velhos mercados devem ser reexplorados. Destruir
o passado, criar o futuro” (p.93). Dessa maneira responde e conclui o que registrava na página anterior afirmando que os anarquistas querem deter o futuro, normalizar o futuro, impedir que ele domine o presente.
Não estamos mais no campo do escrito de outro liberal Vargas Llosa (tido como inimigo pela esquerda) que
faz da literatura uma experiência de liberdade. Com
Delillo, em Cosmópolis, estamos diante de um liberal
assustado com as perdas humanistas do passado consagradas pelo mercado, numa época de idealização, apogeu e imaterialidade na sociedade de fluxos econômicos eletrônicos programados. Delillo nos quer fazer crer
que haverá purificação, processo análogo a de seu personagem que, auto-centrado, é punido pelo autor com o
suicídio involuntário. As mortes por excesso de vida, em
O paraíso é ali na esquina, são agora substituídas por um
niilismo de butique. Quem ganha muito e perde em demasia não merece respeito. Esta parece ser a moral da
fábula em Cosmópolis. Isso não é novo, veio junto com o
capitalismo e se consagra na reparação por meio da caridade, levando ao redimensionado apogeu da compaixão. Falta piedade a Eric Packer. É isso que reclama Don
Delillo. Não há compaixão em Flora Tristán ou em Paul
Gaugin, externa Vargas Llosa; são apenas duas vidas
em expansão. A autoria se recusa a pacificar, para tornar incontrolável o que a razão pretende domesticar.
Em Vargas Llosa o anarquismo é uma utopia que gera
vidas livres; em Don Delillo, com sua autoria para o
mercado literário, é mais um caricato exercício de
baderna. Delillo com seu puritanismo é desonesto: confunde, propositalmente, marxismo com anarquismo. É
um neoliberal.
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verve
Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade...
Estamos diante de um itinerário previsível, de um
trajeto linear da história em aperfeiçoamento, no qual
os ricos devem tirar lições, e nós, urgentemente,
despertá-los para a caridade, restaurando na atualidade as virtualidades capitalistas. Na escritura de Don
Delillo não há heterotopias, apenas a utopia no futuro,
rumo à cidade celestial e para lá se chegar é necessário que se faça uma viagem aos infernos. Literatura de
itinerário, previsível e fabuladora, condena o leitor a ser
seu refém.
Diante de autores liberais emergem invenções e conservações da vida, desestabilidades, heterotopias, liberdades contrastadas pela busca de restabelecimentos,
utopias e culpas a serem purgadas. Onde sexo era experimentação e revolta contra a ordem, como em Vargas
Llosa, agora é pecado, infidelidade e abuso de poder
aguardando pelos certeiros castigos. O que foi percurso
para Flora Tristán e Paul Gaugin é apenas correção de
itinerário para os Eric Packer da Manhattan. Se Delillo
pretendia com o episódio dos anarquistas escrever a
posteriori sobre a antevisão ao 11 de setembro, isso era
uma parte da conta de seu agente literário. Nem um
leitor idiota será apanhado por essa liquidação de mercado. Se Delillo é um grande autor ou não isso pouco
importa. Deixemo-lo para o juízo da crítica. Delillo foi
desonesto com o anarquismo e a desonestidade é uma
prática abominada pelo puritanismo. Quem sabe ele não
está andando por Times Square em busca de uma nova
e boa história que entusiasme seu agente!
Em tempo, seu livro é dedicado a Paul Auster. Auster
é autor, entre outros livros, de Leviatã (São Paulo, Best
Seller, 1993), livro dedicado a Don Delillo. Nele se reconstrói a vida de Benjamim Sachs, um anarquista que
teria praticado ou não um ato terrorista. Auster trata da
trajetória de Sachs por meio da reconstrução de sua exis-
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tência pelo amigo Peter Aaron. Entre outros temas, trata
de escritos de Henry David Thoreau — que inspirou a
ecologia de resistência — libertário pacifista
estadunidenses que procurou realizar sua heterotopia de
percurso. Ao leitor é suficiente, para conhecê-la, recorrer a Walden ou mesmo ao contundente Desobediência
civil, escrito em 1849, por Thoreau, na cadeia, depois de
se recusar a pagar impostos a um Estado cuja meta é
guerrear e destruir outras culturas. Thoreau dizia que o
melhor governo é o que governa menos e que há liberdade onde não há governo. Herdeiro do puritanismo
transcendental de Emerson, ele inventou heterotopia de
percursos ao se instalar em Walden, vivendo em equilíbrio com o que estava ali disposto junto à natureza. Fez
da amizade com Ellery Channing uma relação imediata,
livre de transcendentalidade, um abrigo precário. Queiram ou não, nem todo puritano é conservador. Thoreau
aguarda por um libertário romancista.
Heterotopias de percurso
Michel Foucault afirmou em seu pequeno artigo “Outros espaços”1, escrito na Tunísia, em 1967, que as
heterotopias são encontradas em todas as culturas, apesar de não haver uma heterotopia universal. É o avesso
da utopia ocidental que pretende a universalidade, um
posicionamento sem lugar real. As heterotopias são
contraposicionamentos, lugar real de realização de uma
utopia. Em poucas palavras Foucault recupera os princípios que podem ser extraídos das emergenciais
heterotopias que nos remetem a lugares da crise (momentos ritualísticos vividos por adolescentes, mulheres e velhos nas sociedades primitivas, mas também
que atravessam nossa cultura, como na vida temporária nos colégios, no serviço militar e até nas viagens de
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verve
Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade...
núpcias das virgens) e na nossa sociedade como
heterotopias de desvios como as casas de repouso, clínicas psiquiátricas. De maneira clara e incisiva, como
era de praxe, Foucault alerta, desde este primeiro princípio, para o fato das heterotopias não serem passíveis
de julgamentos que consagrem o que é bem e mal. São
caracterizações de espaços reais que realizam uma utopia.
Da perspectiva anarquista o estudo de heterotopias
mostram as utopias no presente como sendo o atual
dessacralizado que pode ocorrer num local ou num percurso. As heterotopias, dizia Foucault, respondem, no
século XX, aos espaços de justaposição, simultaneidade, que conjungam o próximo e o longínqüo, e também o
disperso. Há uma tendência, alertava, à dessacralização
do espaço privado e público, cultural e útil, familiar e
social, de lazer e de trabalho. Foucault aproximando-se
dos estudos da sociedade disciplinar, que realizou nos
anos setenta, pressente, naquele momento, a transformação da sociedade disciplinar, dos lugares, em sociedade de controle, dos fluxos. A noção de heterotopia ganha, então, dimensão outra a ser ampliada expandindo
os seis princípios apontados por ele2.
O barco foi, desde a modernidade, quem melhor traduziu as heterotopias, deslocando-se pelos mares até
continentes, arquipélagos, ilhas, realizando os sonhos
de civilizados. O barco levava para outros espaços, esse
contínuo percurso de lugar em lugar, deslizava. São com
barcos que Flora Tristán e Paul Gaugin puderam ir a
outros espaços redimensionar suas próprias existências (ela foi ao Peru para voltar tornando-se uma socialista incansável; ele seguiu para a Polinésia, voltando a
Paris e regressando em definitivo para as Ilhas Marquesas). As heterocronias vividas por Gaugin, não se
resumem ao que se tornou, século depois, visitar a
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Polinésia, sob um turismo que oferece “três pequenas
semanas de nudez primitiva e eterna aos habitantes
das cidades”3. Não era turismo, mas atitude de andarilho,
sem lugares pré-determinados para visitar, sem hora
marcada para o retorno. Da mesma maneira, Flora
Tristán, em Arequipa, viu a tentativa de um belo e sorrateiro golpe na herança familiar se modificar em transformação da pessoa e de seus atos. Ir a determinados
lugares, como andarilhos4, é experiência heterotópica,
quase um sétimo princípio relativo à época de
dessacralização do espaço: não é aqui ou ali que a
heterotopia se realiza, mas no percurso levado por barcos no passado ou por astronaves no presente.
Packer, em Cosmópolis, fez da limusine seu barco
no século XXI de onde comanda atravessando um itinerário conhecido, demarcado por mapas de ruas, avenidas e estreitos becos; fez sua heterotopia de tempo, sua
heterocronia, acumulando histórias nos arquivos
computacionais aos quais está ligado em rede pelo escritório central e nos fluxos pela dinâmica da economia
computacional. Packer expressa também a desacralização do público e do privado, cultural e útil, familiar e
social, lazer e trabalho. Do interior da limusine percorre o mundo, os fluxos monetários, o sexo, o casamento,
os golpes, a segurança: assiste-se o planeta e se assiste
ao planeta. Do exterior emergem atentados ao presidente, revoluções instantâneas de anarquistas, justaposição de espaços que o levam a atuar como figurante numa
produção cinematográfica onde reencontra a outrora
milionária esposa, agora, em apenas algumas horas,
reduzida a uma pobretona pelo próprio marido, que atuando como sabotador, invadiu sua conta e transferiu,
num átimo de segundo, com os dedos no teclado, todo o
seu dinheiro para uma de suas contas bancárias. O li-
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verve
Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade...
vro de Delillo nos remete à atualidade das heterotopias
pelo reverso dos anarquismos5.
A dessacralização do espaço ocorre na sociedade de
controle de maneira veloz, segundo os fluxos, levando o
trabalhador intelectual a atuar despreendido dos lugares fixos. Navega-se no espaço sideral por meio de fluxos computacionais. Não é mais um barco que nos leva
a surpreendentes e até exóticos pontos. As aventuras
voltam a ocorrer dando fim à espionagem (ultrapassagem da guerra-fria, o paradigma da espionagem contemporânea). Os novos corsários, como sabotadores nas redes e fluxos, emparedam a polícia e provocam os múltiplos dispositivos de segurança, nomeados segundo os
sonhos de proteção divina como os programas anjos da
guarda ou localizadores de invasores, e podem num segundo se tranformar em agentes de segurança. Se o
anarquismo foi para a sociedade disciplinar uma
heterotopia, o que será para a sociedade de controle?
Os anarquismos foram inventores de heterotopias
intensas, o lado de fora da sociedade disciplinar e
inspiradores nas revoltas de 1968. Dali se anunciou um
deslocamento dos posicionamentos para os percursos.
O que estava esboçado na sociedade disciplinar por artistas e socialistas libertários ganhará agora outra dimensão, a da intensidade diante da velocidade.
A sociedade de controle6, gera velocidade, atravessa
territórios, fronteiras e faz seus fluxos se perderem no
espaço sideral. Na história do espaço, dizia Foucault,
passamos pelos conjuntos hierarquizados de lugares (as
localizações que nos foram legadas da Idade Média), a
extensão infinitamente aberta (do Renascimento) e os
posicionamentos dispostos segundo séries, organogramas e grades (da sociedade disciplinar). Agora, os fluxos se fazem e refazem segundo velocidades, programas,
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interfaces, protocolos, acrescentados a hierarquias, extensões, posicionamentos. A velocidade nos leva por
transportes materiais (barco, automóvel, avião, foguetes) e imateriais (os programas) a espaços, culturas,
lazeres, famílias, sociedades; nos leva à exclusiva sociedade da comunicação, da participação constante: todos
pela sociedade democrática que nos convoca a atuar na
política aperfeiçoando a democracia, o mais precioso
valor universal, um investimento em programas que vão
da contenção à anulação das resistências. Mais do que
um risco para a democracia, como sublinhou Alexis de
Tocqueville, a opinião sobre todas as coisas e a participação ativa por meio de atuação na economia e na política, fazem a vida do rebanho contemporâneo, como
alertaram Stirner e Nietzsche, chamando atenção para
as religiões da razão.
Os anarquismos entram para as redes e seus fluxos
eletrônicos como sabotadores de programas e inventores de vida. Os anarquismos vivem na sociedade de controle não mais pelos lugares em que criavam heterotopias, mas por percursos em que inventam experimentos. Eles, enfim, não possuem lugares fixos, contantes e
imutáveis, como constataram Proudhon e Bakunin a
respeito da existência anarquista.
Na sociedade de controle o trabalho intelectual comanda. Não são mais os operários que geram confrontos. Por seus sindicatos e organizações atuam, há muito tempo, desde a sociedade disciplinar, sob a forma de
adesão, com sua consciência social-democrata, ajustando-se às negociações com empresários e burocracia estatal. Nas sociedades de controle, quando o trabalho intelectual toma a dianteira diante do chamado trabalho
objetivo, exigem-se outras maneiras de atuação nesta
cosmópolis. O anarquismo como prática social se desloca para o trabalho intelectual (segundo Max Stirner prá-
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verve
Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade...
ticas libertárias não distinguem, em nenhuma época,
operários, camponeses e intelectuais) reaparecendo,
desde 1968, nas universidades e associações culturais,
inventando práticas sem pretender ocupar o lugar da
resistência (estratégia própria dos adeptos do socialismo
autoritário que precisam saber e ter um lugar para comandar as massas). Contesta globalizações, revisita-se
e problematiza sua história, a doutrina e seus supostos
sentinelas, espectros que no presente pretendem manter intocáveis os fundamentos do Anarquismo.
Os anarquismos vivem agora mais uma metamorfose, ao lado daquela em que a biologia saltou para a biologia molecular, reunindo em um código genético o que
estava disperso. Foi preciso, salienta Deleuze, “que o
trabalho dispersado se reunisse nas máquinas de terceira geração, cibernéticas ou informáticas. Quais seriam as forças em jogo, com as quais as forças do homem estariam então em relação? Não seria mais a elevação ao infinito, nem a finitude, mas um finitoilimitado, se dermos esse nome a toda situação de força
em que um número finito de componentes produz uma
diversidade praticamente ilimitada de combinações”7.
1968 não foi acaso, nem determinação material, apenas a expressão da falência dos domínios e saberes disciplinares apanhados pelas irreverências das revoltas
juvenis, na luta contra o assujeitamento.
Os anarquismos passam a ser problematizados num
percurso que vai de Max Stirner aos sabotadores anônimos da Internet; não têm sossego, como nunca deram
ou tiveram. Apenas os percursos se desdobraram. Os
heterotópicos são ainda crianças revolucionando as certezas adultas, o proselitismo radical, o transvestismo do
revolucionário em jovem reacionário vomitando, do seu
púlpito portátil, programas radicais. Os anarquistas vivem e sobrevivem para burlar o apriorístico e detonar o
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consagrado. Permanecem libertários evitando hierarquias e um saber que faça superior uma de suas práticas. Nas suas diferenças fortalecem federações ou associações autogestionárias, propiciando caducidades aos
mercados. Os anarquismos não são alternativas ao mercado, nem se ajustam a programas mais ou menos verdadeiros. Não dependem de consciência superior e de
teorias. Diversificam suas decisões depois de ouvir a
muitos. Como dissera Bakunin, o justo, e para um anarquista ainda restará a utopia do justo, só se pode tomar
uma decisão, depois de ouvir mais de um. Com essa
sugestão livrava a prática libertária dos agenciadores e
dos condutores das massas, mas não livrava o anarquista
do julgamento por meio de um valor superior determinado antecipadamente.
Os anarquistas não estão diponíveis aos programas,
às centralidades, às consciências superiores. Daqui
decorrem as resistências libertárias na sociedade de
controle, em que intensidades se interpõem a velocidades.
Os anarquistas foram e são nômades. Antes de qualquer coisa lutam contra o Estado e os estados de autoridade. Os anarquismos não fundam na sociedade espaços de ilusão ou de compensação, mas numa época de
comunicação e controle, em que não se carece de pastores para conformar os iracundos, não faltam, também,
os pregadores, os herdeiros do Anarquismo, seus sacerdotes da verdade infinita. Ninguém é inocente, mesmo!
O libertário contemporâneo vive em percurso. Está
na universidade, na associação cultural, nos institutos, nas casas, nas relações amorosas, entre amigos,
nas redes de Internet, nos sites, nas ruas, entre empregados e desempregados, ocupados e anarco-punks. De
fato, não é mais surpreendente que entre os jovens
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verve
Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade...
libertários sobressaiam os anarco-punks, vindos das
periferias das cosmópolis, do desemprego, da lumpenização, do no future, aqueles em que Proudhon e
Bakunin encontraram potencial revolucionário e que
os liberais e os socialistas autoritários estigmatizaram
como massa de manobra. Não causa espanto, também,
que entre os universitários os anarquismos venham se
disseminando e evitando ser apanhados pelo academicismo, consagrador de modelos, cópias e semelhanças.
Na universidade também os anarquismos surpreendem.
Mas tanto quanto incomodam, ajustam-se também ao
bom e velho academicismo domesticando os anarquismos
e os jovens contestadores em acomodados bolsões do Verdadeiro, que cedo ou tarde lhes darão mais do que um
título honorífico.
Um terceiro outro espanto, mas não derradeiro, é
aquele gerado pelo academicismo ao dissociar o
anarquismo em teoria (na universidade, na academia)
e prática (nas periferias, em qualquer movimento social). Esse sobressalto é fácil de espantar. Apesar de proclamarem-se anarquistas, seus adeptos ao cindirem
teoria e prática, pensam prática sem discurso e
anarquismo como teoria — o agente soberano do pensamento, o cetro da verdade, o ilumindor de consciência,
o organizador do carnaval, enfim, outra vez, mais uma
versão do intérprete das forças inconscientes proclamado
por Hegel, o lugar do imperador, do tirano, da vanguarda, do corportivismo, do mesmo dominador, da uniformidade. Isso é anarquismo acadêmico, titulado e
honorífico! Isso é nivelar o anarquismo ao marxismo, e
este não precisa do anarquista; dele se livrou pela teoria e pela prática dos campos de extermínio.
Houve um tempo em que não havia anarco-punks e
que se estudava o anarquismo na universidade como
identidade, para condená-lo à infância da luta operária,
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2003
coisa ultrapassada. Ainda criança, a anarquia desrespeita os verdadeiros sábios que pretendem consolar a
vida dizendo, como uma cartomante, isso é verdadeiro,
esse é o futuro!
Não há futuro, só presente, com heterotopias que
reviram pelo avesso os consolos utópicos dos lugares irreais, para acontecer nestes e naqueles lugares na atualidade, e por este percurso, caminho do andarilho, surpreender os itinerários dos viajantes.
Notas
Michel Foucault. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Manoel B. da Motta
(org.), Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001, Ditos e Escritos vol. 3.
1
Os seis princípios, brevemente apresentados, são: 1. toda cultura constitui
heterotopias e não há uma heterotopia universal; 2. cada heterotopia que não
deixou de ocorrer tem funcionamento preciso e determinado no interior de
uma sociedade (cemitério); 3. as heterotopias podem justapor espaços incompatíveis como o teatro e o cinema; 4. heterotopias estão ligadas a recortes de
tempo, por exemplo: museus e bibliotecas no século XIX, ou com o que há de
mais fútil no tempo, as heterotopias crônicas (feiras, cidades de veraneios...); 5.
as heterotopias supõem sistemas de aberturas e fechamentos que as isolam e
tornam impermeáveis (caserna e prisão) ou que parecem simples aberturas mas
escondem reclusões (os quartos de hóspedes das fazendas brasileiras no século
XIX ou os motéis norte-americanos no século XX); 6. heterotopias têm funções de espaço de ilusão (os bordéis) ou de compensação (as colônias dos
descobrimentos ou a perfectibilidade dos jesuítas).
2
3
Michel Foucault, op.cit., p. 419.
Friedrich Nietzsche, em Humano demasiado humano, São Paulo, Companhia das
Letras, 2000, [638], distinguia o viajante do andarilho enquanto maneira de se
atingir ou não a meta final.
4
No volume 2 de Verve procurei deter-me nas heterotopias anarquistas, ainda
consideradas segundo os lugares. Edson Passetti, “Heterotopias anarquistas” in
Verve, São Paulo, Nu-Sol, 2002, vol. 2, pp. 141-172.
5
Para uma noção da sociedade de controle, ver Gilles Deleuze. Conversações.
Rio de Janeiro, 34 Letras, 1991.
6
7
Gilles Deleuze. Foucault. São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 141.
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verve
Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade...
RESUMO
O livro Paraíso na outra esquina, de Mario Vargas Llosa, instiga a
uma viagem sem itinerário que problematiza os anarquismos e a
noção de utopia. Ensaio acerca do fazer-pensar heterotopias de
percursos que nos mostram a dessacralização dos espaços na
sociedade de controle e a atualidade dos anarquismos, entre trabalhadores intelectuais e anarco-punks.
Palavras-chave: heterotopia, anarquismos,
sociedade de controle.
ABSTRACT
The book The Way to Paradise, by Mario Vargas Llosa, instigates
to a trip without itinerary that discusses anarchisms and the
concept of utopia. It is an essay on doing-thinking heterotopias of
course that shows the desacralization of spaces in the society of
control and the contemporariness of anarchism, among intellectual
workers and anarcho-punks.
Keywords: heterotopia, anarchisms, society of control.
Recebido para publicação em 4 de agosto de 2003
55
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2003
desvio e diferença no pensamento de
foucault: uma transgressão libertária
carlos josé martins*
A edição comemorativa dos 50 anos da revista Critique foi concebida com o objetivo de festejar este meio
século de sua existência através de textos que, dos anos
cinqüenta aos oitenta, marcaram época. Mas não pretendendo ser apenas um número antológico, fez acompanhar cada um dos artigos republicados de um inédito
escrito em eco. Associando passado e presente em um
jogo de vozes em que se misturavam as gerações e no
qual se quis colocar este aniversário sob o signo do movimento e do futuro1. A questão que quero colocar é: o
texto de Judith Revel “Foucault lecteur de Deleuze: De
l’ecart à la différence” que se justapõe a “Theatrum
Philosoficum”2 de Michel Foucault se presta aos propósitos anunciados por esta edição comemorativa?
A tese da autora tem por objetivo demonstrar que o
artigo de Foucault, sobre a obra de um outro (Deleuze)
singularmente próximo, como um duplo deslocado de seu
Mestre em Filosofia pela Unicamp, doutorando em Filosofia na UFRJ e
Professor na UNESP-Rio Claro.
*
verve, 4: 56-66, 2003
56
verve
Desvio e diferença no pensamento de Foucault
próprio percurso, marca uma mudança essencial de seu
pensamento, quando é pela primeira vez explícita, a
problematização da noção de diferença, cujas formulações sucessivas permitem dar conta da evolução do pensamento do filósofo desde o começo dos anos sessenta
até os últimos tomos da História da sexualidade3.
A autora se permite tomar o texto de 1970 como sendo um divisor de águas na obra de Foucault, que se bifurcaria em duas formulações com relação à pesquisa
da diferença: uma, que seria puramente reativa, não
conceitual. Para caracterizá-la Revel lança mão de um
trecho de uma longa entrevista de Foucault com D.
Trombadori realizada em Paris em 19784, na qual este
fala sobre os autores que o haviam permitido se liberar
em relação ao que dominava sua formação filosófica universitária no começo dos anos cinquenta: Hegel e a
fenomenologia. E estes autores são Nietzsche, Blanchot
e Bataille.
O procedimento mais adequado nos parece ser, não o
de recortar nesta entrevista só aquilo que diz respeito à
recusa do hegelianismo e da fenomenologia, a sua dimensão negativa, reativa, como quer a autora. Mas também e sobretudo o que permitiu a Foucault construir
uma saída e que ele reitera inúmeras vezes, fazendo
assim ressaltar a importância da sua dimensão positiva, afirmativa.
Depois construindo um ligeiro panorama sobre os
primeiros livros da obra, sempre a luz do “Theatrum
philosophicum”, a autora caracteriza o que no texto de
1970 seria a primeira figura do assujeitamento da diferença — a diferença como especificação — como sendo
o resumo programático de As palavras e as coisas, para
logo em seguida acrescentar generalizando para todo o
período arqueológico da obra: “o que é então uma arque-
57
4
2003
ologia, senão a tentativa de reencontrar o sistema de
distribuição de semelhanças e diferenças no interior
de um campo histórico e epistêmico dado”? Para mais a
frente pontificar: “pois de fato, toda a aposta de A História da loucura, de As Palavras e as Coisas ou de A Arqueologia do Saber parece precisamente ter este projeto de
encontrar o sistema de distribuições categoriais que
reparte no interior do mundo pensável as similitudes e
as diferenças, os espaços e os gêneros, as identidades e
seus contrários”. Desembocando por fim na noção de
norma como o grande reino do mensurável, que segundo
Revel, significa a prevalência não da possibilidade da
diferença, mas da figura do desvio na obra5.
Como que recuando em relação ao quadro
interpretativo descrito até então, a autora se pergunta:
“seria necessário considerar o texto de 1970 como uma
exceção no interior de um pensamento a quem teria
faltado a diferença e que teria sempre permanecido no
interior das ínfimas variações do desvio”? Então, mais
uma vez partindo de um certo número de indícios que
aparecem no interior do artigo de 1970, parece indicar
o contrário. “Esses indícios seriam nomes com os quais
Foucault semeia seu artigo sem que eles pertençam ao
texto comentado: figuras explícitas às vezes —
Klossowski, sob o signo do qual se abre e se conclui o
artigo, Sade, Bataille, Artaud —; às vezes dissimuladas
atrás de alusões veladas — Mallarmé, Brisset, Nerval,
Blanchot, Roussel etc., a quem Foucault consagra uma
reflexão que parece completamente independente do
resto de seu trabalho. Pois é precisamente nesses textos (...) que podemos ler a tentativa de pensar a diferença contra o desvio, quer dizer a possibilidade de uma saída
do conceito e da dialética, e o esboço de um pensamento
não categorial.6
58
verve
Desvio e diferença no pensamento de Foucault
Judith Revel menciona o texto sobre Klossowski7 de
1964 como sendo o primeiro marco de uma pesquisa
explícita de um pensamento liberado do conceito: “trata-se, com efeito, de uma linguagem para nós tão essencial quanto aquela de Blanchot e de Bataille, pois
que a seu modo ele nos ensina, como o mais grave do
pensamento deve encontrar fora da dialética sua leveza
iluminada”8. Mas logo em seguida, no entanto, comete
a nosso ver um equívoco de interpretação se referindo
ao texto de Foucault sobre o pensamento de Bataille
quanto à noção de transgressão9, que ela reputa como
ainda restando “fechada no círculo — círculo virtuoso
da ‘moral arcaica’ — que reconduz a anarquia da diferença a uma relação de determinação invertida, através das três mediações da matriz identitária: contradição, não ser, negativo”10. Mas isto é diametralmente
oposto ao que Foucault encontra em Bataille: “a transgressão se abre sobre um mundo cintilante e sempre
afirmado, não opõe nada a nada, ela não comporta nada
de negativo. Ela toma no coração do limite, a medida
desmesurada da distância que se abre nela mesma e
desenha o traço fulgurante que a faz ser. Ela afirma o
ser limitado que nós somos e o ilimitado no qual ela
salta ao abri-lo pela primeira vez à existência”11.
Na verdade é em “Préface a la transgression” texto
de 1963, que Foucault coloca o primeiro marco de um
pensamento não dialético, não categorial e portanto, não
do desvio e sim da diferença: “encore foudrait-il alléger
ce mot de tout se qui peut rappeler le geste de la coupure,
ou l’établissiment d’une séparation ou la mesure d’un
écart, et lui laisser seulement ce que en lui peut
désigner l’être de la différence”12.
Pois então vejamos o que diz Foucault sobre a obra de
Bataille em 1970 — mesmo ano de publicação de seu
“Theatrum Philosophicum” — na apresentação de suas
59
4
2003
Oeuvres complétes: “Bataille é um dos escritores mais
importantes de seu século: Histoire del’oeil (história do
olho), Madame Edwarda romperam o fio das narrativas
para contar o que nunca havia sido contado; a Somme
atheológica (Suma ateológica) introduziu o pensamento
no jogo — no jogo arriscado — do limite e da transgressão. L’érotisme (O erotismo) aproximou Sade de nós e o
tornou mais difícil. Devemos a Bataille grande parte do
momento em que estamos; mas o que falta fazer, pensar e dizer sem dúvida se deve a ele e se deverá por
muito tempo”13.
A entrevista com Trombadori é toda ela marcada pela
presença de Bataille, que Foucault faz pairar sobre toda a
sua obra, de maneira mais, ou menos, direta, ora formando uma trindade junto com Nietzsche e Blanchot que possibilitou a liberação em relação à dialética e à fenomenologia, ora através da noção de experiência-limite, explícitamente retomada de Bataille: “eu me esforcei, em particular, em compreender como o homem transformou
em objetos de conhecimento certas experiências limites:
a loucura, a morte, o crime. É aí onde encontramos os
temas de Georges Bataille, mas retomados em uma história coletiva que é aquela do ocidente e de seu saber.
Trata-se sempre de experiência limite e de história da
verdade”14.
Desta maneira pode-se ver como o próprio Foucault
estabelece a relação entre sua obra publicada em livro
e os seus artigos e entrevistas. O que Deleuze reafirma
de maneira brilhante: “na maior parte de seus livros,
ele assegura um arquivo bem delimitado, com meios
históricos extremamente novos, sobre o hospital geral
no século XVII, sobre a clínica no século XVIII, sobre a
prisão no século XIX, sobre a subjetividade na grécia
antiga, depois do cristianismo. Mas é a metade da sua
tarefa. Já que, por preocupação de rigor, por vontade de
60
verve
Desvio e diferença no pensamento de Foucault
não misturar tudo, por confiança no leitor, ele não formula a outra metade. Ele a formula só explicitamente,
nas entrevistas contemporâneas a cada um de seus livros”15.
Nos parece que para estar a altura da proposta desta
edição especial comemorativa dos 50 anos desta importante revista, é necessário fazer ecoar a singularidade
dos pensamentos de Foucault e de Deleuze. Para tanto
é preciso dar ao pensamento de George Bataille, um dos
fundadores de Critique, o devido papel que este tem junto a obra de Foucault e de toda uma geração de intelectuais franceses. Colocar então, o texto que se comenta
sob o signo do movimento e do futuro não pode implicar
em imobilizar a pesquisa da diferença na obra de
Foucault a uma dependência, ou, a uma dívida com a
obra de Deleuze, pois esta já teria se formulado explicitamente pela primeira vez no artigo consagrado a
Bataille em edição especial que o homenageava na
mesma revista em 1963.
Este texto, tão belo quanto denso, já traz inúmeros
temas que serão desdobrados e extensamente elaborados posteriormente na obra de Foucault, o que não significa dizer que toda sua obra já estivesse contida nele
de forma latente. Parece-nos, porém, que este texto, se
nos fosse permitido fazê-lo, aproxima-se muito mais daquilo que Judith Revel denominou como “resumo
programático” de sua obra, dando conta da evolução de
seu pensamento desde o começo dos anos sessenta até
a História da Sexualidade.
O texto se abre sob o tema da sexualidade, já enunciado nos termos da crítica da vontade de saber que está
por trás de nossa crença na hipótese repressiva, que só
aparecerá em 1976 no volume I da História da sexualidade: “cremos de boa vontade que, na experiência con-
61
4
2003
temporânea, a sexualidade encontrou uma verdade de
natureza que teria por longo tempo esperado na sombra, e sob diversos disfarces, que só nossa perspicácia
positiva nos permite hoje decifrar, antes de ter o direito
de aceder enfim à plena luz da linguagem.
Nós não liberamos a sexualidade, mas nós a temos,
exatamente, levado ao limite: limite de nossa consciência, por que ela dita finalmente a única leitura possível, para nossa consciência, de nosso inconsciente; limite da lei, por que ela aparece como o único conteúdo
absolutamente universal do interdito ; limite de nossa
linguagem(...) Não é então por ela que nós comunicamos com o mundo ordenado e felizmente profano dos
animais; ela é sobretudo cisura: não em torno de nós
para nos isolar ou nos designar, mas para traçar o limite em nós e nos desenhar a nós mesmos como limite”16.
Foucault faz relação da sexualidade com uma mutação radical em nossa cultura, marcada pela figura
emblemática da “morte de Deus” cuja obra de Sade é o
soberano testemunho: “o que a partir da sexualidade pode
dizer uma linguagem se ela é rigorosa, não é o segredo
natural do homem, não é sua calma verdade antropológica, é que ele está sem Deus; a palavra que nós demos
à sexualidade é contemporânea em tempo e estrutura
àquela pela qual nós anunciamos a nós mesmos que
Deus estava morto. A linguagem da sexualidade, na qual
Sade, desde que ele pronunciou as primeiras palavras,
fez percorrer em um só discurso todo o espaço no qual
ele se tornara subitamente o soberano, nos levou até
uma noite onde Deus está ausente e onde todos nossos
gestos se endereçam a esta ausência em uma profanação que de uma só vez a designa, a conjura, se esgota
nela, e se encontra reconduzida por ela a sua pureza
vazia de transgressão”17.
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verve
Desvio e diferença no pensamento de Foucault
Aqui também as referências à “morte de Deus”, a
Sade, a Kant e à crítica da antropologia e da dialética,
vão ecoar com a sua presença em As Palavras e as Coisas, com a problematização dos limites da linguagem e
as conseqüências colocadas pela emergência da questão do ser da linguagem: “este pensamento o qual tudo
até o presente nos desviou, mas como para nos conduzir até o seu retorno, de qual possibilidade nos vem ele,
de qual impossibilidade tem ele para nós sua insistência? Podemos dizer sem dúvida que ele nos vem da abertura praticada por Kant na filosofia ocidental, o dia onde
ele articulou, sobre um modo ainda bem enigmático, o
discurso metafísico e a reflexão sobre os limites de nossa razão. Uma tal abertura, Kant acabou ele mesmo por
tornar a fechar dentro da questão antropológica à qual
ele tem, no fim das contas, referido toda a interrogação
crítica; e sem dúvida a tem por consequência estendido
como esfera indefinidamente concedida à metafísica,
por que a dialética substituiu à colocação em questão
do ser e do limite o jogo da contradição e da totalidade”18.
“A possibilidade de um tal pensamento não nos vem,
com efeito, em uma linguagem que justamente nos oculta a esta como pensamento e a reconduz até a impossibilidade mesma da linguagem? Até a este limite onde
vem em questão o ser da linguagem?”19
E mais uma vez, será evocada a figura de Nietzsche
para conjurar nosso sono dogmático: “para nos despertar do sono misturado da dialética e da antropologia foi
necessário as figuras nietzschianas do trágico e de
Dionisio, da morte de Deus, do martelo do filósofo, do
super homem que aproxima a passo de pomba, e do Retorno”20.
O que se verifica, portanto, é que este texto transgride em muito os limites de seu tempo, lançando setas
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agudas que viriam ferir o cerne de futuras obras de
Foucault, o que só confirma o caráter sagital,
extemporâneo e libertário de seu pensamento.
Notas
1
Critique cinquante ans 1946-1996, n° 591-592, Août-Septembre 1996.
Michel Foucault. “Theatrum Philosophicum” in Critique, nº 282, novembre
1970.
2
3
Judith Revel. “Foucault lecteur de Deleuze: de l’ecart à la différence” in
Critique, nº 591-592, Août-Septembre, 1996, pp. 727-735.
4
Michel Foucault. “Colloqui con Foucault”, entretien avec D. Trombadori,
Paris, fin 1978, Il Contributo, 4º anné, nº 1, janviers-mars 1980, pp. 23-84; trad.
fr. Dits et écrits, sous la direccion de F. Ewald et D. Defert, Paris, Gallimard,
1994, vol. 4, texto nº 281.
5
J. Revel, op. cit., pp. 729-730.
6
Idem, p. 731.
Michel Foucault. “La prose d’actéon”, dans La nouvelle revue française, nº 135,
mars 1964, repris dans Dits et écrits, op. cit., vol. I, texte nº 21.
7
8
J. Revel, op. cit., p. 731.
Michel Foucault. “Préface à la transgression”, Critique “Hommage à Georges
Bataille”, nº 195-196, Août-Septembre 1963, in Dits et écrits vol. I, pp. 233250.
9
10
J. Revel, op. cit., pp. 731-2.
11
Michel Foucault. “Préface à la transgression”, op. cit., p. 238.
Idem. [Nota dos Editores: “Seria também necessário aliviar essa palavra de
tudo o que pode lembrar o gesto do corte, ou o estabelecimento de uma
separação ou a medida de um afastamento, e lhe deixar apenas o que nela pode
designar o ser da diferença”. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa in
Michel Foucault. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Manoel Barros da
Motta (org.), Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001, Ditos e escritos vol. III,
p. 33.]
12
Michel Foucault. “Présentation” a George Bataille, Oeuvres complétes 1970,
Dits et écrits vol. II, pp. 25-26.
13
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Desvio e diferença no pensamento de Foucault
14
Michel Foucault, Dits et écrits vol. IV, op. cit., p. 57.
Gilles Deleuze. “Qu’est qu’un dispositif (“O que é um dispositivo?”)” in
Michel Foucault philosophe: Rencontre Internationale. Paris, Seuil, 1988, p. 192.
15
16
Michel Foucault. “Preface à la transgression” in Dits et écrits vol. I, p. 233-234.
17
Idem, p. 234.
18
Ibidem, p. 239.
19
Ibidem, p. 241.
20
Ibidem, p. 239.
65
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RESUMO
Este artigo visa, a partir da edição comemorativa dos 50 anos da
revista Critique, que pretendeu colocar este número sob o signo
do movimento e do futuro, cotejar o pensamento de Michel Foucault
com relação à pesquisa da diferença em sua obra, tomando como
eixo a importância da obra de Georges Bataille, fundador da revista que deu lugar ao pensamento de toda uma geração de intelectuais franceses.
Palavras-chave: Michel Foucault, diferença, Gilles Deleuze.
ABSTRACT
This article aims, from the study of the 50th anniversary issue of
the magazine Critique, to face Michel Foucault’s thought concerning
the investigation of difference in his work, taking as reference the
importance of the work of George Bataille, founder of the magazine that gave opportunity to an entire generation of French
intelectuals.
Keywords: Michel Foucault, difference, Gilles Deleuze
Recebido para publicação em 17 de junho de 2003
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verve
Arte e religião
arte e religião
max stirner*
Hegel trata da arte antes da religião. É esse o lugar
que lhe cabe, e aliás lhe pertence mesmo de um ponto
de vista histórico. Desde o momento em que o homem
pressente que possui um além, que não tem a sua
completude no estado animal e natural, mas que deverá tornar-se outro — e para o homem atual, o outro que
ele deverá tornar-se é seguramente um ser futuro cuja
expectativa só se realizará, para além da sua situação
presente, num além; de fato, tal como a adolescência é
o futuro e o além do rapaz que nela deverá realizar-se, o
homem moral é o futuro da criança que apenas possui a
sua inocência —; desde o momento em que o homem
desperta para esse pressentimento que o leva a dividirse, a partilhar-se entre aquilo que é e o outro em que
deverá tornar-se, ele imediatamente aspira com todos
os seus desejos por esse segundo ser, esse Outro, não
descansando enquanto não vê a estatura do seu além
Século XIX, autor de um único livro e alguns escritos esparsos anarquizantes.
Textos dispersos. Lisboa, Via Editora, 1979. Publicado originalmente em 1844,
na Gazeta Mensal de Berlim, de Ludwig Buhl. Tradução para o português de J.
Bragança de Miranda.
*
verve, 4: 67-78, 2003
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configurada diante de si. Durante muito tempo permanece prisioneiro da hesitação, tendo somente o sentimento de uma forma luminosa que quer elevar-se das
trevas do seu interior, embora ainda falha de forma firme e de contornos bem definidos. Juntamente com o
povo que tateia na incerta obscuridade, também o gênio
hesita durante algum tempo em busca da forma que
configurará o seu pressentimento; mas onde ninguém
obteve êxito, ele o consegue — ele dá forma ao seu pressentimento, consegue configurá-lo, cria o ideal. Pois o
que é o homem realizado, o destino mais autêntico do
homem, cuja visão cada um tende a oferecer a si próprio, senão o homem ideal, o Ideal do homem? Finalmente o artista descobriu a verdadeira palavra, a verdadeira configuração, a visão verdadeira que melhor
convém às aspirações de cada um, e ao propô-las criou o
Ideal.
“Sim, é precisamente isso, essa é a figura da perfeição, a expressão da nossa aspiração, a boa nova (Evangelho) trazida pelos nossos batedores há muito enviados
em missão sobre as questões do nosso espírito sedento
de apaziguamento”, exclama o povo perante a criação do
gênio, caindo em adoração!
Sim, em adoração! A necessidade ardente que o homem tem de não ficar só, desdobrando-se, de não estar
satisfeito consigo, homem natural, procurando antes o
segundo homem, espiritual, é apaziguada pelo homem
de gênio que leva a divisão ao seu acabamento. Então, e
só então, aliviado, o homem respira fundo, pois finalmente foi resolvida a sua confusão interior, voltada para
o exterior. Pela configuração do pressentimento que o
atormentava. O homem enfrenta-se consigo mesmo.
Esse enfrentamento é ele e não é ele: é o além para onde
todos os seus pensamentos e todos os seus sentimentos
se escoam sem nunca o alcançarem e é o seu além en-
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verve
Arte e religião
volvido no aquém do seu presente e neste inseparavelmente entrelaçado. É o deus do seu interior, mas que se
mantém na exterioridade, não podendo nunca apreendêlo ou compreendê-lo. Cheio de desejos, estende os braços, mas o enfrentamento é inacessível; pois se fosse
acessível, como permaneceria então o que se “enfrenta”? Como se conservaria a divisão, com todas as suas
dores e delícias? Exprimindo essa divisão pelo termo que
a designa, como se manteria a religião?
A arte cria a divisão opondo o homem ao seu ideal,
mas a visão do ideal que perdura até ser reabsorvido e
reassimilado pelo olhar que mantém firmemente o seu
desejo, chama-se religião. Como esta é contemplação,
precisa portanto de uma forma ou de um objeto para se
opor, e o homem como ser religioso vai relacionar-se
com o ideal manifestado pela criação artística; ele considera como um objeto o seu segundo eu exteriorizado.
Esta é a fonte milenar de todas as torturas, de todas as
lutas, porque é medonho estar fora de si mesmo, e cada
um o está quando é para si mesmo o seu próprio objeto e
é impotente para uni-lo inteiramente em si, aniquilando-o enquanto objeto, enquanto enfrentamento que resiste. O mundo religioso vive no sofrimento e na alegria
que lhe vem desse objeto, vive na separação do homem
relativa a si mesmo e a sua existência espiritual não
está submetida à razão mas ao entendimento. A religião é uma questão de entendimento. Tal como o espírito do crente é rígido, em consonância com o objeto que
ninguém consegue fazer seu e a que é preciso mesmo
submeter-se, também a sua rigidez é friável face a esse
objeto: ele é entendimento. “Entendimento frio”? Será
que só conheceis esse frio entendimento? Não sabeis
que nada é mais ardente, mais heróico que ele? “Censeo
Carthaginem esse delendam”, dizia o entendimento de
Catão, e a ele se atinha inabalavelmente; “a terra gira
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em volta do sol, enunciava o entendimento de Galileu,
mesmo quando o débil velhote, de joelhos, abjurava a
verdade, e ao levantar-se repetia “e contudo ela gira em
volta do Sol”. Nenhuma força é suficientemente grande
para nos desviar do pensamento que dois e dois são quatro, e a imutável palavra do entendimento continua a
ser: “Esta é a minha posição, não me é possível alterála”. O assunto de um tal entendimento que só é inabalável porque o seu objeto (2 x 2 = 4, etc....) não se deixa
abalar, esse assunto deveria ser a religião? É esse precisamente o caso! A religião também tem o seu objeto
inabalável sob cujo poder ela caiu e só o artista que o
criou poderia retirar-lhe. É que em si mesma ela não
tem gênio. Não existe nenhum gênio religioso e decerto ninguém pretenderá que em religião se deva distinguir entre gênios, homens de talento e pessoas sem
talento. Nela todos têm as mesmas aptidões, que não
diferem das necessárias para a compreensão do triângulo ou do princípio de Pitágoras. Para isso basta não
confundir a religião com a teologia, pois relativamente
à segunda nem todos têm as mesmas capacidades, como
sucede com as matemáticas superiores e a astronomia
que exigem um grau de penetração invulgar. Só o fundador de religião é genial, mas ele é também criador do
ideal: esta criação impossibilita qualquer genialidade
ulterior. Quando está ligado a um objeto, quando a sua
liberdade de movimento é definida precisamente por
esse objeto (porque o crente cessaria de sê-lo, se quisesse, devido a uma dúvida decisiva sobre a existência
de Deus, ir além do seu objeto, que no fim das contas é
insuperável, um pouco à maneira daquele que, acreditando em fantasmas, deixaria de fazê-lo se viesse a duvidar de forma decisiva da sua existência, objeto da sua
crença. O crente só constrói “provas da existência de
Deus” na medida em que, no interior desta se aloja uma
possibilidade de movimento livre para o seu entendi-
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verve
Arte e religião
mento e a sua perspicácia), quando, dizia eu, o espírito
está dependente de um objeto que procura explicar, perscrutar, sentir, amar, etc..., então não é livre, nem genial, já que a liberdade é a condição da genialidade. Uma
piedade genial é tão absurda como uma tecelagem genial. A religião permanece acessível mesmo aos espíritos mais insípidos e qualquer néscio desprovido de imaginação pode ter sempre e terá sempre religião: a sua
falta de imaginação não o impedirá de viver dependente.
“Mas o amor não é a essência mais autêntica da religião? Não é uma questão de sentimento, em vez de
entendimento?” Mesmo que fosse um assunto de coração, seria menos por isso uma questão de entendimento? É um assunto de coração logo que empenha totalmente o meu coração. Isso não exclui o empenho total
do meu entendimento, sem que aliás lhe acarrete nada
de particularmente bom: o ódio e o ciúme podem igualmente relegar do coração. Na realidade, o amor não é
mais que uma questão de entendimento e isso em nada
menospreza o seu título de assunto do coração. Mas um
assunto da razão é que ele não é, pois no reino da razão
há tanto amor como esponsais haverá no céu, segundo
as palavras de Cristo. É verdade que se fala de amor
irracional. Mas, ou ele é tão irracional que não tem qualquer valor e é portanto tudo menos amor como esses
entusiasmos por belas caras a que freqüente e apressadamente se dá o nome de amor, ou então só temporariamente ele se manifesta privado de entendimento explícito, podendo contudo vir a ser uma expressão sua. É
o que sucede com o amor da criança: ao princípio só é
racional em si, sem discernimento consciente, mas não
deixa por isso, desde logo, de ser uma questão de entendimento pois está em conformidade com o da criança,
nascendo e crescendo com ela. Durante todo o tempo
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em que a criança não manifesta nenhum traço de entendimento, não manifestará igualmente nenhum traço de amor, como qualquer um poderá ter-se apercebido, por experiência própria — ela comporta-se como um
ser pura e simplesmente sensível e na realidade ainda
nada experimenta acerca do amor. É só à medida que
distingue os objetos — de que os homens fazem parte —
que ela transfere a sua afeição para uma pessoa de preferência a outra com o temor ou, se preferir assim, com
o respeito começa o seu amor. A criança ama porque
uma forma exterior ou objeto, uma presença humana,
exerce sobre ela o seu império ou o seu encanto — ela
consegue distinguir perfeitamente dos outros seres a
significação maternal da sua mãe, mesmo que não saiba exprimi-la de forma racional. Antes de a sua inteligência despertar, a criança não ama e o seu mais profundo abandono amoroso não é mais que compreensão
íntima. Qualquer um que tenha sabido observar judiciosamente o amor da criança não deixará de confirmar
esta proposição com a sua experiência. Mas qualquer
amor, e não somente o da criança, cresce ou desaparece conforme a inteligência que possui do seu objeto (é
assim que, talvez de modo desajeitado, mas significativo, se ouve freqüentemente referir os amantes). Basta
que surja um mal-entendido para que o amor perca mais
ou menos da sua força; aliás, emprega-se precisamente a palavra “mal-entendido” para significar um desacordo, designando-se assim um amor perturbado. Com
o engano acerca de um ser humano o amor perde-se
irresistivelmente e sem apelo: o mal-entendido é então
absoluto e a afeição extingue-se.
Ao amor é indispensável um objeto, algo “em frente”
e possui esta propriedade em comum com o entendimento que constitui, precisamente, a única e autêntica atividade espiritual do ser religioso. O entendimento
72
verve
Arte e religião
não pode, de fato deixar de aplicar o seu pensamento a
um objeto, permanecendo mergulhado nas suas considerações e no seu fervor. Não há pensamentos livres
sem objetos, fundamentados na razão, pensamentos
esses que aliás considera como “elucubrações filosóficas” e que como tais condena.
Mas se o entendimento precisa de um objeto, a sua
eficácia cessa imediatamente logo que sugou a sua substância ao ponto de já não achar nesta matéria para a
sua atividade, acabando com ele. Com o fim da sua atividade desaparece o seu interesse pelo assunto, porque
esta deverá continuar a ser um mistério, se quiser que
ele seja abandonado com amor e lhe consagre todas as
suas forças. Também aqui sucede o mesmo que com o
amor — o casamento somente continua assegurando
um amor durável caso os esposos apareçam um ao outro, dia a dia, sob um aspecto novo e apenas se cada um
reconhecer no outro uma fonte inesgotável de vida nova,
um mistério qualquer de coisa insondável, de
inapreensível. Desde o momento em que já não encontram nada de novo um no outro, então o amor dissolvese irresistivelmente na indiferença e no aborrecimento. Da mesma forma, o entendimento só existe enquanto continuar ativo e logo que já não possa seguir
exercendo as suas forças na compreensão de um mistério, visto a obscuridade ter desaparecido, abandona
então o objeto tornado inteligível e sem sabor. Quem
quiser ser amado por ele deve evitar, à boa maneira da
mulher sábia, ofertar-lhe de uma só vez todos os seus
atrativos. Ser diferente a cada dia e o amor durará séculos! Falando propriamente, é o mistério que faz de uma
questão do entendimento um assunto do coração — o
homem inteiro, através do seu entendimento, é o seu
assunto, é isto que faz deste último um assunto do coração.
73
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Portanto, se a arte criou o ideal e deu aos homens
um objeto com que o espírito trava um longo combate e,
através desse combate, valoriza a pura atividade do entendimento, ela é também a criadora da religião pelo
que, num sistema filosófico como é o de Hegel, não poderia ocupar um lugar depois da religião. Não somente
os poetas Hesíodo e Homero “deram aos gregos os seus
deuses”, mas houve ainda outros que fundaram religiões como artistas, mesmo que repugne dar-lhes esse
título por considerá-lo, talvez, demasiado insignificante. A arte é o começo, o Alfa da religião, e também o seu
fim, o Omega. Ela é mesmo a sua companheira. Sem a
arte e o artista, criador do ideal, a religião não poderia
nascer; ela passa através da arte devido a esta retomar
incessantemente a sua obra e é também através da arte
que ela se conserva, pelo fato desta a renovar constantemente. Quando a arte se manifesta em toda a sua
energia cria uma religião, atendo-se ao seu princípio —
mas já a filosofia nunca é criadora de religiões porque
nunca produz formas visíveis que possam servir de objetos para o entendimento; na generalidade, ela não produz nenhuma religião, e as suas idéias, a que não
corresponde nenhuma imagem, não se deixam venerar
e adorar num culto religioso. Contrariamente a isto, a
arte deixa-se arrastar permanentemente pela sua inclinação de produzir à luz do dia, e na mais abundante
profusão, enquanto forma ideal, o que de mais puro e
melhor existe no espírito, ou antes, produz mesmo o próprio espírito; ela tende a arrancá-lo da obscuridade em
que este se acha envolvido durante todo o tempo em
que dormita no coração do sujeito criador e, dando-lhe
configuração faz dele um objeto. Frente a esse objeto, a
esse Deus, encontra-se o homem e, mesmo o artista
cai de joelhos perante a criação do seu espírito. E desde
agora, devido à freqüência ao seu objeto e ao combate
por si travado, a religião segue um caminho oposto ao
74
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Arte e religião
da arte. Esse objeto que o artista, concentrando toda a
força e riqueza da sua interioridade para o fazer aceder
ao esplendor de uma figura em harmonia com a necessidade e o desejo mais autênticos de cada um, esse objeto, a religião tenta remetê-lo de novo à interioridade a
que ele pertence, tenta torná-lo novamente subjetivo.
Ela esforça-se por reconciliar o ideal, ou Deus, com o
homem, o sujeito, despojando-o da sua dura objetividade. Deus deveria fazer-se interior (não sou eu, mas Cristo
que vive em mim); a divisão tende a suprimir-se, a desmanchar-se e o homem separado do seu ideal esforçase, por seu lado, por alcançá-lo (por alcançar Deus e a
sua graça, para finalmente o identificar com o seu próprio eu) e também Deus, ainda separado do homem, procura ganhá-los para o reino dos céus: um e outro procuram-se e completam-se sem se tornarem um — aliás,
se o fizessem, a própria religião desapareceria pois subsiste somente devido a esta sua separação. Também a
esperança do crente é ver um dia Deus “frente a frente”.
A arte é também a companheira da religião pelo fato
da interioridade humana, enriquecida pelo combate com
o seu objeto, desembocar repentinamente, pela mediação de um gênio, numa nova criação que embeleza e
transfigura o objeto anterior, remodelando a sua forma.
Uma vida humana raramente decorre sem passar por
uma transfiguração semelhante, e isto é preciso
agradecê-lo à arte. Finalmente, a arte está também no
términus da religião. Com o espírito sereno, ela reafirma a sua pretensão sobre as suas criações e, proclamando-as suas, retira-lhes a sua objetividade, libertando-as do além sob cujo poder tinham caído durante o
período religioso.
É evidente que não se contenta com embelezá-las,
ela as destrói. Ao reivindicar a sua criatura, a religião,
75
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a arte aparece no seu declínio; ao representar, num tom
jocoso, como uma alegre comédia, toda a gravidade da
antiga crença por esta ter perdido a seriedade do conteúdo que agora deverá restituir ao jovial poeta, a arte
reencontra a si mesma e descobre em si uma nova força criadora. Porque — e não a censuramos pela sua crueldade — quanto mais cruelmente destruidora for na
comédia, mais inexoravelmente restaurará aquilo que
tem intenção de destruir. Ela cria um novo ideal, um
novo objeto e uma nova religião. A arte não pode evitar
refazer uma nova religião; as pinturas de Rafael transfiguraram Cristo de tal modo que se tornou o fundamento
de uma nova religião, a religião do Cristo da Bíblia “purificado de todos os dogmas humanos”. E assim, o entendimento recomeça a sua infatigável atividade reflexiva, perscrutando o seu novo objeto durante todo o tempo que, através de uma inteligência cada vez mais
profunda, dele tenha uma consciência íntima — é com
o amor mais total que mergulha no objeto, atento às
suas revelações e inspirações. Mas esse entendimento
religioso ama tão ardentemente, como odeia aqueles que
não ardem no mesmo amor: o ódio religioso é inseparável
do amor religioso. Quem não tem o mesmo objeto de crença é um herege e aquele que admite a heresia não está
verdadeiramente na plenitude da piedade. Ninguém
negaria que Felipe II da Espanha foi um espírito infinitamente mais religioso que José II da Áustria, que
Hengstenberg o era autenticamente, mas Hegel não.
Na medida em que, na nossa época, o ódio perdeu algo
da sua força, também o amor a Deus enfraqueceu, cedendo o passo a um amor humano baseado na moralidade
e não na piedade. É que este, demonstra mais solicitude pelo bem da humanidade que por Deus. O tolerante
Frederico o Grande, não pode verdadeiramente passar
por um modelo de religiosidade, mas sim, perfeitamente, por um elevado modelo de humanidade.
76
verve
Arte e religião
Quem serve Deus, deve fazê-lo completamente. Aliás, é uma exigência contraditória pedir ao cristão que
não levante obstáculos à existência judaica — mesmo o
cristão mais cheio de mansuetude nada pode contra isso
se não quiser ser indiferente à sua religião; agir de outra maneira seria da sua parte um relapso. Se refletir
como um homem de entendimento sofre as conseqüências da sua religião, ele deverá excluir os judeus do direito cristão ou, o que é o mesmo, do direito dos cristãos
e isto, sobretudo, relativamente ao Estado. Porque a religião é, para todos aqueles que não a seguem com tibieza, um estado de divisão.
É esta, portanto, a posição da arte face à religião.
Aquela cria o ideal e acha-se no princípio, a outra encontra no ideal um mistério e torna-se em cada homem
religiosidade, tanto mais profunda quanto mais firmemente ele se ligar ao seu objeto e dele dependa. Mas
logo que o mistério se esclarece, logo que a objetividade
e a estranheza são quebradas e, dessa maneira, é
destruída a essência de uma determinada religião, a
comédia deve realizar o seu dever e libertar o homem,
através da prestação da prova evidente do esvaziamento, ou melhor, do despojamento do seu objeto, da sua
antiga crença que o encadeava àquilo que agora está
devastado. Em conformidade com essa essência, a comédia apodera-se em todos os domínios daquilo que há
de mais sagrado e aproveita-se, por exemplo, do sacrossanto casamento, pois o casamento que ela leva à cena
já não é santo, tornou-se uma forma vazia a que não se
deve continuar amarrado mais tempo. Mas a própria comédia precede a religião, tal como a arte o faz no seu
conjunto: ela limita-se a esvaziar o lugar para receber o
novo cuja arte tem intenção de dar forma.
Se a arte constitui o objeto e se a religião vive somente pelo encadeamento a esse objeto, a filosofia se
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4
2003
distingue muito nitidamente tanto de uma como de outra. Esta última não se opõe a um objeto à maneira da
religião, nem constitui um, à maneira da arte. Respirando liberdade, pelo contrário, ela estende a sua mão
destruidora tanto contra a constituição do objeto, como
contra a própria objetividade. A razão, espírito da filosofia, ocupa-se somente de si e não se preocupa com nenhum objeto. Para o filósofo, Deus é tão indiferente como
uma pedra: ele é o mais decidido dos ateus. Quando se
ocupa de Deus não é para o venerar, mas inversamente
para o rejeitar — nela só habita a razão que busca a
centelha de razão que se ocultou sob essa forma. É que
a razão não faz mais do que buscar a si própria, só se
preocupa consigo mesma, apenas a si ama ou, falando
mais propriamente, não ama, pois apenas consigo se
relaciona e não com qualquer objeto. Eis a razão porque
Neander dirigiu com acertado instinto o seu “pereat” ao
Deus dos filósofos.
Acontece que não nos propusemos a falar aqui de filosofia. Ela situa-se para além do nosso tema.
Indicado para publicação em 18 de março de 2002
78
verve
já fiz de tudo com as palavras
agora eu quero fazer de nada
Haroldo de Campos
79
4
2003
a caminho do século XXI — abolição, um
sonho impossível?1
thomas mathiesen*
Sonho impossível?
Muitos anos atrás, viajei de Oslo para Estrasburgo,
via Londres, e estava envolvido com um trabalho de pesquisa. Foi nos velhos tempos, quando os aviões voavam
baixo, de modo que se podia ver alguma coisa pelo caminho. Eu vi as colinas, as planícies e os contornos das
cidades grandes — e até de algumas cidades pequenas
— da Europa. O sol estava claro e brilhante e o céu azul.
Eu me lembro ter pensado que, durante minha vida, iria
experimentar uma Europa sem prisões ou, pelo menos,
virtualmente sem prisões.
Não foi assim que ocorreu. Nas décadas de 1960 e
1970 um conjunto complexo de fatores políticos criou
Abolicionista penal, integrante e fundador da Associação Norueguesa para a
Reforma Penal (KROM) e professor de Sociologia do Direito na Universidade
de Oslo.
*
verve, 4: 80-111, 2003
80
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
um contexto favorável para uma crítica radical das prisões. A abolição das prisões — de fato, abolição do sistema de controle criminal, como conhecemos hoje — parecia ser meta possível, pelo menos para alguns de nós.
Durante a primeira parte da década de 1970, a população das prisões de vários países ocidentais diminuiu,
uma tendência que parecia comprovar nosso ponto de
vista. Mas no final da década de 1970 e na de 1980, houve uma mudança. A tendência para a diminuição da
população nas prisões ocorrida na primeira parte da década de 1970 terminou como “uma curva em forma de
U”. No final desta década, a diminuição foi revertida.
Durante a década de 1980, os números dispararam. E
continuaram na de 1990, dando ao mundo ocidental o
índice mais alto, de todos os tempos, da população
carcerária. Entre 1979 e 1993, os índices norte-americanos aumentaram de 230 para 532 por 100.000, os canadenses de 100 para 125, os britânicos de 85 para 95,
os noruegueses de 44 para 62, os holandeses de 23 para
52, e assim por diante2. Além disso, os índices têm aumentado vertiginosamente desde 1993. As duas únicas
exceções ocidentais ao padrão, que eu conheço, são a
antiga Alemanha Ocidental e a Finlândia. O que originalmente foi a Alemanha Ocidental mostrou uma diminuição substancial durante a década de 1980. Mas esta
diminuição foi substituída por um aumento igualmente
substancial no início da década de 1990. A Finlândia,
por sua vez, mostrou uma tendência para o decréscimo,
mas no princípio os índices finlandeses eram extremamente altos (106 por 100.000, em 1979) e a situação dos
finlandeses é muito especial. Em geral, as prisões estão em crescimento, um crescimento muito rápido.
Devemos, então, concluir que a abolição das prisões
é “um sonho impossível”? À primeira vista, parece que
sim. No mínimo, o presente e o futuro imediato pare-
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4
2003
cem sombrios. O clima político favorece enormemente
a prisão; realmente, o clima político aprova o ressurgimento de algo tão medieval quanto a sentença de morte. Hoje em dia, nos Estados Unidos, não existe mais o
político manifestando-se contra a sentença de morte. A
ordem do dia é: “três vaciladas e você está fora”.
Porém, creio que a conclusão do “sonho impossível” é
muito apressada. Em um trecho provocativo sobre as
vitórias abolicionistas do passado, o criminologista alemão Sebastian Scheerer lembra-nos que “nunca houve
uma transformação social significante na história que
não tenha sido considerada irreal, estúpida ou utópica
pela grande maioria dos especialistas, mesmo antes do
impensável se tornar realidade” 3. Como exemplos,
Scheerer menciona a queda do Império Romano e a abolição da escravidão moderna. Argumenta que a escravidão foi bem sucedida, aparentando ser extremamente
estável, até o dia em que entrou em colapso, e os
abolicionistas que estavam por perto eram considerados, no mínimo, pessoas suspeitas. Igualmente, para a
maioria dos observadores, o colapso total do Império Romano na sua época era impensável. Outros exemplos
na mesma escala podem ser acrescentados. O principal, talvez o exemplo político mais importante do século
XX, seja o das transformações políticas que ocorreram
na Europa central e oriental durante 1989 e 1990. Agora estamos em 1997. Volte atrás 10 ou 15 anos. Quem
ousaria prever aquelas transformações em 1987, dois a
três anos antes que acontecessem ou muito menos
1982, sete ou oito anos antes? Em 1982, o domínio soviético estava solidamente enraizado em toda a Europa
Oriental e os distúrbios na Polônia tiveram a resposta
resoluta, um ano antes, com a lei marcial. Em 1987,
com certeza, a glasnost de Gorbatchov estava caminhando, mas poderíamos prever a total dissolução da União
82
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
Soviética e o completo desmantelamento da cortina de
ferro em três anos? Pelo menos eu não, e não o fiz. E
quem, nessa questão, ousaria prever, em 1989 e 1990,
a decepção com os desfechos econômicos e políticos que
vieram logo a seguir, no início da década de 1990? Desfechos como estes são fáceis de “prever” em retrospecto,
quando conhecemos as respostas. Mas, na verdade, isso
é mais um pós-dizer que uma predição.
A história da caça às bruxas na Espanha
Tudo isso está muito bom, vocês diriam, mas tratase da queda de impérios inteiros como o Romano e o
Soviético ou de imensas instituições econômicas como
a escravidão. As experiências de tais contextos se aplicam aos sistemas penais específicos, com seus bem
pagos legisladores, juízes e inúmeros administradores
dedicados?
Vou contar-lhes uma história, um pouco longa, mas
eu espero que vocês sejam pacientes comigo. Eu não a
inventei, ela é verídica. É a história de como todo um
sistema penal, aparentemente sólido e duradouro, em
uma escala mundial, com seus legisladores, juízes e
milhares de administradores, desintegrou-se e desapareceu em um período de quatro anos.
O exemplo é histórico, voltando quase quatrocentos
anos. Portanto, eu não estou sugerindo que ele possa
ser usado por nós hoje em dia como um modelo completo. As condições atuais são diferentes, em parte muito
diferentes, porque temos de pensar, entre outras coisas, nos meios de comunicação de massa modernos e
suas influências. Voltarei a eles mais tarde. Mas o exemplo, ao menos, mostra que é possível, sob certas condições, ter um sistema penal desintegrado e de modo extremamente rápido. É importante observar isto neste
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momento de crise, no qual o desencantamento e a noção do “sonho impossível” se espalha pelo menos no que
diz respeito às prisões modernas. E é importante num
momento em que precisamos rever mais de perto as
abolições passadas para aprendermos mais sobre as condições da abolição. Nós sabemos muito mais sobre as
condições que sustentam os sistemas do que sobre aquelas que favorecem sua mudança radical.
A história é sobre a abolição da caça às bruxas na
Espanha — cem anos antes da abolição da caça em outras regiões. A caça às bruxas em todo o território espanhol terminou em 1614. Primeiro volte 150 anos antes
de 1614 e coloque-se naquele contexto. Em 1487, quem
acreditaria, quando Heinrich Institor Krämer e Jakob
Spränger publicaram sua principal obra de teologia e
dogma legal sobre bruxas Malleus Maleficarum, que a
instituição de caça às bruxas algum dia iria desaparecer, assim como, de fato, a própria Inquisição? Conhecemos a história de dois inquisidores, que apelaram à
Roma, onde o Papa Inocêncio VIII residia, para se queixarem sobre a resistência contra a perseguição às bruxas, e de como o mesmo papa, no dia 5 de dezembro de
1484, tinha emitido uma bula papal sobre as bruxas, a
Summis Desiderantes Affectibus, na qual havia sanção
decisiva da igreja à caça às bruxas. Nós sabemos o resto
da história, de como Krämer e Spränger, considerando
a bula papal uma autoridade básica, continuaram a escrever, em um período de trinta anos, Malleus Maleficarum, um trabalho que foi publicado em 14 edições, sendo que na segunda edição foi incluída a reimpressão da
bula do papa — e como aquele livro tornou-se profundamente importante como uma base legal-teológica para
a subseqüente caça às bruxas na Europa. Quem teria
pensado, naquela época, que um dia tudo isso iria definhar e desaparecer?
84
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
Como eu disse, isso aconteceu 150 anos antes que a
caça desaparecesse e entrasse nos territórios da
Espanha. Para um sistema penal, não é um período excessivamente longo, mas suficientemente longo e talvez não se possa esperar das pessoas previsões além
desse período. No final do século XV, de vários modos, as
condições eram muito diferentes daquelas do início do
XVII. Mas, em 1610, na Espanha, quem acreditaria que
a caça às bruxas, no Império Espanhol, viraria história
em quatro anos, já em 1614?
Nas primeiras décadas do século XVII, por exemplo, o
norte da Espanha viveu uma febre intensa de bruxas,
ondas frenéticas de perseguições. A alegação era de que
as bruxas francesas, em grande número, estavam cruzando as fronteiras e criando confusões nas regiões espanholas. Em 1610, um solene auto-de-fé ocorreu em
Logroño, onde onze bruxas foram queimadas — algumas
in effigi porque tinham sido torturadas até a morte — na
presença de 30.000 espectadores. Imaginem a multidão e os símbolos de poder e autoridade! Certamente, a
época estava contra as bruxas e a favor das caças. O
auto-de-fé de Logroño foi uma das maiores manifestações de caça às bruxas durante muitos anos. Para todos
os contemporâneos sensatos, a instituição da caça parecia imutável, sólida e estável.
Mas havia dúvidas bem profundas no interior da própria Inquisição, escondidas da observação pública. O que
era a Inquisição? Usando uma metáfora, era uma enorme aranha de vigilância e força policial estabelecida
primeiro no século XIII como uma força especial para
combater a heresia e organizada na Espanha no final do
século XV, com milhares de empregados e uma ampla
rede de serviços de inteligência, forças policiais secretas, autoridades que sentenciavam e prisões; no início
do século XVII, estava organizada em dezenove tribu-
85
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2003
nais de inquisição, mais tarde vinte e um, distribuídos
pelo enorme Império Espanhol.
Após o auto-de-fé, em Logroño, na província basca,
em 1610, aumentaram as dúvidas entre algumas pessoas. O historiador dinamarquês, Gustav Henningsen,
descreveu em detalhes como as dúvidas se expandiram4,
mas elas também foram descritas antes, notavelmente, pelo historiador Henry Charles Lea em seu trabalho,
em 4 volumes, de 1906, sobre a história da Inquisição
Espanhola5.
Na seqüência de eventos, havia no tribunal de
Logroño, uma figura central, o inquisidor Alonso de
Salazar Frías. Ele firmou seu nome e concordou com o
auto-de-fé, em 1610. Mas estava muito preocupado com
a prova. Quando o perdão era concedido, as denúncias e
confissões eram retiradas. Sob qual critério poderia se
dar maior legitimidade às confissões? Quando havia um
enorme falatório sobre bruxas, elas apareciam. Não poderia o falatório ser tanto causa quanto efeito do aparecimento das bruxas? E não poderiam as confissões conter ilusões? Percebam que isso poderia ir de mal a pior
para o indivíduo porque implicaria uma categorização
legal e correta — e Salazar era um excelente advogado
— seria a heresia ao invés da bruxaria, e a heresia,
não a bruxaria folclórica, era a prioridade da Inquisição.
Mas pelo menos, a pessoa não seria julgada como bruxa.
Em termos organizacionais, quando os membros do
tribunal local concordavam, la Suprema — que era a
autoridade central do Santo Ofício em Madri — raramente intervinha. Mas, quando havia desacordo, podia resultar numa intensa comunicação com a autoridade
central. E Henningsen e Lea descrevem como, de fato,
Salazar começou a discordar do seu tribunal. Naquele
86
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
tempo, a comunicação era lenta, os desacordos demoravam e as dúvidas também cresciam em outros distritos
da vasta instituição. No meu modo de dizer, uma batalha importante, do tipo normativo e cultural, tomou lugar em várias regiões da Inquisição. Finalmente, la
Suprema em Madri dividiu-se completamente. O que vem
a seguir é um ponto importante: la Suprema tinha uma
longa tradição de moderação ao sentenciar as bruxas —
como, de fato, a Inquisição italiana fez: as principais
perseguições na Europa, predominantemente, ocorriam
nas áreas fora da jurisdição da Inquisição. De fato, la
Suprema tinha a prática de perdoar freqüentemente
aqueles sentenciados à fogueira pelos tribunais locais.
As posições liberais tinham voz no tribunal de la Suprema. Em outras palavras, estavam envolvidos dois níveis:
a suprema autoridade que deu o apoio e o nível executivo que iniciou a mudança. Reconhecemos este padrão
das abolições parciais em nossa própria época, como o
famoso fechamento das escolas de treinamento, em
Massachusetts, na década de 70, por Jerome Miller. Sua
revolta teve o apoio do Governador do Estado, o qual funcionou como um escudo protetor enquanto ele prosseguia com o fechamento6.
Há também outra semelhança: em ambos os casos,
das bruxas no início do século XVII e das escolas de treinamento da década de 1970, a questão era não a reforma, mas a abolição, rápida e direta, como um golpe. Para
encurtar a história, la Suprema autorizou Salazar e seus
auxiliares a empreender o que hoje chamaríamos da
principal investigação sobre as bruxas bascas — nos
termos deles, uma visita ampla com um Edital da Indulgência para todos os membros da seita do diabo — entrevistando mais de 1.800 pessoas na região e resultando em 11.200 páginas de anotações sobre o interrogatório. Eu acredito ser o primeiro grande estudo
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empírico sobre bruxas. O achado mais importante do
estudo é que não houve qualquer prova de bruxaria.
Deixe-me ser exato: Salazar parece ter acreditado que
as bruxas existiam; o nódulo para ele era a questão intelectual, uma prova decisiva. E ele achou que a melhor
arma contra o aparecimento de um grande número de
bruxas, de fato, era o silêncio: “Eu deduzo”, ele disse, na
tradução de Lea, “que a importância do silêncio e da
reserva da experiência mostrou que não havia bruxas
nem enfeitiçados até que se começou falar e escrever
sobre eles.”7. No final, la Suprema decidiu seguir as recomendações de Salazar para suspender os casos de bruxas. Isso foi feito como os advogados fariam: la Suprema
solicitou-lhe para preparar um novo conjunto de regulamentações para lidar com as bruxas. Na prática, as novas regulamentações, se adotadas, colocariam um fim
aos casos e, de fato, elas foram adotadas, praticamente
sem mudanças, pela la Suprema, em 1614.
Um inquisidor liberal com apoio superior tornou-se
instrumento na subseqüente abolição da caça e queima das bruxas, curiosamente uma reminiscência aos
profissionais envolvidos nas reduções das prisões e nas
abolições dos tempos mais modernos. O nível superior
assim como o dos praticantes eram envolvidos. E minha interpretação é que uma mudança cultural importante aconteceu no interior da Inquisição e a atravessou. Em
primeiro lugar, houve uma certa preparação cultural,
um tipo de “moderação cultural” contra pelo menos a
maioria dos tipos de caça. Esta “moderação cultural”, eu
diria, tornou-se a definição autorizada da situação e foi
seguida pela abolição a despeito do fato de que no ambiente havia o que hoje poderíamos chamar de um pânico
moral em relação às bruxas.
88
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
A irracionalidade da prisão
Para um abolicionista, é animador mostrar que a abolição de sistemas penais inteiros, de fato, é possível. Mas,
como eu disse, hoje em dia, as condições são completamente diferentes. Se a Inquisição quisesse, ela poderia
ter se voltado completamente contra o povo. E completamente contra os meios de comunicação de massa, que
não existiam — exceto pelos livros publicados. A mudança cultural na Inquisição, vitória de uma parte de
uma cultura alternativa e a compreensão dentro do sistema, foi, portanto, uma condição suficiente para a abolição. Hoje em dia, uma mudança cultural no sistema
penal e uma mudança na direção de um senso de responsabilidade pessoal por parte daqueles que lá trabalham é muito necessária. Mas não seria uma condição
suficientemente plena porque o sistema penal atual,
elaborado por políticos, é muito mais dependente no contexto geral daquilo que chamamos de “opinião pública”
e meios de comunicação de massa.
Retornarei a este ponto importante mais tarde. Meu
ponto de partida é esse: a prisão, sobre a qual eu restrinjo minha análise, é “um gigante sobre um solo de
barro”. A expressão é traduzida do norueguês e quer dizer um sistema aparentemente sólido com pilares deficientes, muito semelhante à escravidão, ao Império
Romano e à legislação Soviética em seus estágios finais.
O calcanhar de Aquiles, o solo de barro da prisão é
sua total irracionalidade em termos de seus próprios objetivos estabelecidos, um pouco como as caças às bruxas
sem provas. Em termos de seus próprios objetivos, a prisão não contribui em nada para nossa sociedade e nosso modo de vida. Relatórios após relatórios, estudos após
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2003
estudos, às dezenas, centenas e milhares, claramente
mostram isso.
Como vocês bem sabem, a prisão tem cinco objetivos
estabelecidos que são ou têm sido usados como argumentos para o encarceramento. Primeiro, há o argumento da reabilitação. Entretanto, nas décadas passadas a criminologia e a sociologia produziram grande
número de estudos empíricos sólidos mostrando, claramente, que o uso do aprisionamento não reabilita o infrator encarcerado. Estou pensando nos estudos experimentais e quase experimentais de uma vasta gama de
programas de reabilitação, assim como alguns estudos
sobre organização e cultura das prisões — os últimos
mostrando que, de fato, a prisão é contra-produtiva pelo
menos no que concerne à reabilitação. O tempo me
impede de detalhar esses estudos; de qualquer modo,
muitos de vocês estão familiarizados com eles. Citarei,
resumidamente, uma afirmação reveladora feita há mais
de quarenta anos por Lloyd W. McCorkle, um experiente
diretor da prisão Estadual New Jersey, em Trenton, Estados Unidos, e Richard R. Korn, diretor de educação e
aconselhamento na mesma prisão.
“De muitas formas, o sistema social de reclusão pode
ser visto como fornecedor de um modo de vida que permite ao prisioneiro evitar os efeitos psicológicos devastadores de internalizar e converter a rejeição social em
auto-rejeição. De fato, isso permite ao prisioneiro rejeitar seus rejeitadores ao invés de rejeitar a si próprio”8.
Essa colocação resume bem os resultados de milhares de estudos e centenas de meta-estudos de reabilitação que, de fato, seguiram, nas décadas de 1960, 1970 e
1980, o artigo que eles escreveram.
Segundo, há o argumento da intimidação do indivíduo — a noção de que o transgressor que é trazido para
90
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
a prisão ficará assustado e afastado do crime por ter sido
levado para lá. Aqui posso ser breve. Em um considerável grau, os mesmos argumentos e estudos vão contra a
noção da intimidação do indivíduo transgressor. O sistema social de reclusão e sua subcultura são especialmente importantes.
Terceiro, há o argumento da prevenção geral, isto é,
dos efeitos da intimidação, da educação ou formação de
hábitos na sociedade mais ampla em outros que não
foram punidos ou não estão para ser punidos no momento. Percebam que eu estou aqui falando do efeito
preventivo da prisão. A hipótese da prevenção geral é
menos sensível à pesquisa empírica, mas uma afirmação conservadora seria de que o efeito é no mínimo incerto e certamente menos significativo na determinação do desenvolvimento do crime na sociedade do que
as características da política econômica e social. Uma
afirmação um tanto arrojada — mas não muito — diria
que temos um grande número de estudos sugerindo que
o efeito preventivo da prisão é muito modesto ou mesmo mínimo em grupos populacionais nos quais poderíamos desejar que o efeito fosse forte — grupos predispostos ao crime e de constantes infratores da lei — enquanto, talvez, seja mais forte em grupos que por outras
razões são de qualquer modo obedientes à lei. Esta é uma
forma de resumir os estudos econométricos, estudos
históricos antes e após as mudanças legais, estudos longitudinais de vários sistemas legais, entrevistas e questionários dos efeitos das sanções esperadas e assim por
diante. Notavelmente, e o mais importante no que diz
respeito à utilidade da prisão, é também ser um meio
para resumir o efeito da severidade esperada em comparação com a probabilidade esperada da punição. Enquanto esta probabilidade — risco esperado de detenção
— parece mostrar um efeito muito modesto em alguns
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4
2003
contextos, a severidade esperada da punição, que é o
âmago da questão da prisão, de fato, não mostra efeito
nenhum. Esse resultado aparece em um grande número de estudos. Especificamente mencionarei um deles
— o do criminologista alemão Karl Schumann e seus
colaboradores, que realizaram um grande estudo sobre
a prevenção geral entre os jovens alemães9. Inicialmente, foi um estudo sobre a esperada severidade da punição. Foram estudados seus efeitos sobre o comportamento criminal registrado, assim como o auto-relatado. O
estudo mostrou que a esperada severidade da punição,
de fato, não surtia nenhum efeito sobre a atividade criminal da juventude, nem, aliás, com a expectativa da
prisão do jovem. O que os pesquisadores encontraram
foi um certo efeito da experiência subjetiva do risco da
detenção, mas que não incidia sobre a “performance”
de crimes sérios, nem mesmo sobre a de todos os tipos
de crimes, mas somente em alguns tipos insignificantes, como roubo de lojas, assaltos físicos triviais, uso de
metrô sem pagar e semelhantes. E mesmo aqui, o efeito medido em análise multivariada, para a Alemanha,
foi caracterizado como “rechts bescheiden”, bem modesto. Acrescentarei a isso que os jovens a serem detidos
raramente cometem estes tipos de crimes. Eles tendem
a praticar os que não apresentaram efeito preventivo10.
Vocês podem perguntar: por que esses resultados?
Deixe-me lembrar, resumidamente, que a ineficiência
preventiva da prisão se constitui em um problema de
comunicação. Nesse contexto, a punição é um modo pelo
qual o Estado tenta comunicar uma mensagem, especialmente a grupos particularmente vulneráveis na sociedade. Como um método de comunicação, é extremamente rude. A própria mensagem é difícil de ser transmitida, devido à incomensurabilidade da ação e da
reação. A mensagem é filtrada e deturpada durante o
92
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
processo e é confrontada com uma resposta cultural nos
grupos que a desconsidera, acabando por neutralizá-la.
Acrescentem a isso o profundo problema moral enraizado na punição de algumas pessoas com o objetivo de prevenir outros de agir de forma semelhante — um problema moral que não é perdido nos grupos alvo importantes — e vocês terão o quadro geral. O que é surpreendente
não é o efeito mínimo, mas a persistente crença política em tal método de comunicação primário.
Quarto, há o argumento da interdição dos transgressores. Tradicionalmente, o argumento tem adquirido
duas formas: a da interdição seletiva e a da interdição
coletiva.
A interdição coletiva implica uso da prisão contra
categorias inteiras de prováveis reincidentes. Você simplesmente os liquida trancafiando-os e jogando fora a
chave. Em grande parte, esta é a política presente nos
Estados Unidos. A questão não é reabilitar os transgressores e nem prevenir outros de cometerem atos similares, mas simplesmente tirar os transgressores do circuito social. A interdição coletiva tem sido intensamente
estudada tanto na Escandinávia quanto nos Estados
Unidos. Mesmo se aceitássemos a sua moralidade, os
resultados seriam, usando palavras amenas, muito
modestos. Mais uma vez, mencionarei um relato entre
inúmeros, o do “Painel de Pesquisa na Carreira Criminal”, patrocinado pelo Instituto Nacional de Justiça, publicado em dois volumes, em 198611. O Painel abordou,
de perto, a interdição coletiva. Entre 1973 e 1982, nos
Estados Unidos, a quantidade de prisões estaduais e federais praticamente dobrou. Durante o mesmo período,
a taxa de crime não diminuiu. Cresceu em 29%, certamente um resultado sombrio. As estimativas disponíveis no Painel mostraram que, dependendo da freqüência de transgressão do indivíduo, a taxa poderia ser ape-
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nas 10 a 20% maior se não ocorresse quase 100% de
aumento nos número de prisões. Isto poderia ser considerado um ganho modesto, mas contém três defeitos
básicos. É um ganho extremamente custoso, por muito
pouco, em vista do aumento dramático da população
carcerária. Além disso, muito rapidamente alcança-se
um ponto de retorno reduzido. Reduções futuras, eu cito
diretamente do relatório, iriam “requerer, pelo menos,
de 10 a 20% de aumento nas populações encarceradas
para 1% de redução no crime”12.
Finalmente, e mais importante, a geração atual de
delinqüentes não será a última. Novas gerações aparecerão nas ruas. Isso significa que a redução da taxa de
criminalidade, se houver, logo será apagada. Certamente, a interdição coletiva poderia ser renovada para as
novas gerações. Mas vocês nunca as alcançariam por causa
da mudança sempre presente em novas gerações. Ao
mesmo tempo, aqueles que já estão encarcerados teriam de permanecer trancafiados por longos períodos, devido a sua presumida persistência. Em suma, vocês terminariam com uma quantidade enorme de prisioneiros e com efeito negligenciável. Foi exatamente isso que
aconteceu nos Estados Unidos e em outros países, como
a Polônia, no passado recente.
Há também a interdição seletiva — a predição individual de transgressores violentos de alto risco com base
nos critérios de antecedentes específicos. Inúmeros
estudos mostraram que a predição deste tipo é extremamente difícil e que as chamadas taxas de falso-positivo e falso-negativo — isto é, os erros de predição — são
muito altas. Como alguns proponentes da interdição
seletiva — participantes em grande escala dos estudos
de Rand sobre interdição seletiva durante a década de
1980 — formularam: “apesar disso, agora não podemos
94
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
recomendar basear uma política de sentenciamento nessas conclusões”13.
Quinto, e último, acrescentem a esta justiça equilibrada — a resposta neo-clássica ao crime através da
prisão e a lista estará completa. Embora admita-se que
a prisão não previna nada, supõe-se que ela possa balancear o ato repreensível, equalizando os pesos da justiça. Mas, ela pode? Para falar resumidamente, ela não
pode balancear o ato com precisão, porque de um lado
temos a transgressão criminal e, de outro, o tempo; são,
portanto, entidades incomensuráveis e, acima de tudo,
a balança de punição não pode ser “ancorada” com segurança14. Por essas razões, a escala de punições é
construída sobre o barro e muda, rapidamente, de acordo com os ventos políticos. Hoje em dia vemos isso acontecer. Pelos mesmos motivos, a balança de punições dá
à vítima pouca satisfação. O que é decisivo, mais do que
a busca por justiça, é o vento político.
O segredo da irracionalidade da prisão
A prisão é um sistema profundamente irracional em
termos de seus próprios objetivos estabelecidos. Entretanto, a dificuldade é que este seu conhecimento, em grande parte, é secreto.
Se as pessoas realmente soubessem o quão fragilmente a prisão, assim como as outras partes do sistema de controle criminal, as protegem — de fato, se elas
soubessem como a prisão somente cria uma sociedade
mais perigosa por produzir pessoas mais perigosas —,
um clima para o desmantelamento das prisões deveria,
necessariamente, começar já. Porque as pessoas, em
contraste com as prisões, são racionais nesse assunto.
Mas a informação fria e seca não é suficiente; a falha
das prisões deveria ser “sentida” em direção a um nível
95
4
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emocional mais profundo e, assim fazer parte de nossa
definição cultural sobre a situação.
A direção desse novo clima, é com certeza, difícil de
predizer, mas provavelmente implicaria numa ênfase
renovada no apoio real às vitimas, assim como nos recursos e serviços sociais ao transgressor, uma vez que
a solução altamente repressiva falhou completamente.
Os políticos que criaram, mantiveram e, de fato, expandiram o sistema atual, teriam de adaptar-se, rapidamente, a fim de não perder os eleitores, sua principal preocupação.
Eu procuro — e isso é apenas uma lista resumida —
o apoio às vítimas de diversas formas: compensação econômica (do Estado) quando isso for pertinente, um sistema de seguro simplificado, apoio simbólico em situações de luto e pesar, abrigos para onde levar as pessoas
quando necessitarem de proteção, centros de apoio para
mulheres espancadas, solução de conflitos quando isso
for possível, e assim por diante. As vítimas não recebem
absolutamente nada do sistema atual, nem da aceleração e ampliação do sistema presente no entanto poderiam receber muito se houvesse a mudança de direção
do sistema na forma como sugeri. Uma idéia e um princípio fundamental seria guinar o sistema em 180 graus:
ao invés de aumentar a punição do transgressor de acordo com a gravidade da transgressão, o que é básico no
sistema atual, eu proporia o aumento de apoio à vítima
de acordo com a gravidade da transgressão. Em outras
palavras, não uma escala de punições para os transgressores, mas uma escala de apoio às vítimas. Certamente, esta seria uma mudança radical, mas que seria racional do ponto de vista das vítimas e, provavelmente,
também, útil para superar a resistência ao desmantelamento do sistema atual.
96
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
Eu procuro recursos para o transgressor na forma de
uma série de medidas. Em termos gerais, a guerra contra o crime deveria tornar-se uma guerra contra a pobreza. Mais uma vez, eu apenas estou lhes dando uma
pequena lista; muitos detalhes deveriam ser definidos:
moradias decentes, programas de trabalho, de educação e tratamento mas não baseados na força e — mais
importante — uma mudança em nossa política sobre
drogas. Legalizando as drogas e tornando-as, assim como
a metadona, disponíveis sob condições sanitárias e supervisionadas, neutralizaria o mercado ilegal e reduziria drasticamente a quantidade de crimes relacionados
às drogas. Por si mesma, percorreria um longo caminho
em direção ao esvaziamento de nossas prisões. Uma
mudança em nossa política sobre drogas também atingiria o centro do crime organizado da droga, que é dependente das forças do mercado. Em outras palavras,
efetivamente ameaçaria e liquidaria o poder dos figurões que hoje em dia não terminam na prisão, porque
ela está sistematicamente reservada para os pobres.
Vocês podem perguntar: Quem pagará por isso? A resposta é: as prisões. O desmantelamento das prisões daria somas vultuosas de dinheiro, bilhões e bilhões de
dólares americanos, que poderiam ser gastos, generosamente, com as vítimas e os transgressores.
Temos que admitir talvez a possibilidade de que encarcerar alguns indivíduos permaneça. A forma de se
tratar deles deveria ser completamente diferente do que
acontece hoje em nossas prisões. Uma forma disto ser
assegurado, contra o aumento de seu número devido a
uma mudança de critérios, seria estabelecer um limite
absoluto para o número de celas fechadas para tais pessoas a ser aceito em nossa sociedade.
97
4
2003
A solicitação de um limite para o espaço da prisão
também poderia ser uma arma útil em nossa luta atual
contra ela. Em um momento de aceleração dramática
deveria ser cuidadosamente considerada como uma
estratégia. Mas, excetuando-se a solicitação por um teto,
nos poucos minutos anteriores eu expressamente falei
sobre o futuro. Voltemos ao presente e para onde estamos
— na dificuldade do primeiro estágio: as pessoas não
sabem quão irracionais são nossas prisões. As pessoas
são levadas a acreditar que as prisões funcionam. A
irracionalidade verdadeira da prisão é um dos segredos
melhor guardados em nossa sociedade. Se o segredo fosse revelado, destruiria as raízes do sistema atual e implicaria o começo de sua ruína. Três “camadas” funcionam como escudos protetores para a prisão, mantendo
a irracionalidade da prisão um segredo.
A primeira camada, a mais central, consiste nos administradores, no sentido mais amplo da palavra, do sistema
de controle criminal.
Os administradores conhecem, sobejamente, o estado sombrio e a falência total das prisões, mas permanecem em silêncio. Três processos contribuem para isto.
Os administradores silenciam porque foram cooptados
pelo sistema; tornaram-se uma parte e uma parcela dele.
A cooptação ocorre através de um processo sutil no qual
a evidência contra o sistema — tão abundante no contexto carcerário — é seletivamente eliminada, relegada
a segundo plano e não levada em consideração. Quando
lembrados disso, os que representam a evidência em
vez da própria evidência se tornam alvo de ataque: são
definidos e rotulados como teóricos, sonhadores, revolucionários, enquanto a evidência em si não é focalizada, muito menos desafiada.
98
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
Em segundo lugar, os administradores silenciam em
lealdade ao sistema. Existe uma cultura de lealdade
assim como havia uma cultura de lealdade aos líderes
alemães entre a população durante a última parte da
Segunda Guerra Mundial. Além disso, o sistema é considerado legal, o que contribui para o espírito de lealdade.
Finalmente, os administradores são silenciados pela
disciplina. Os processos de disciplina social que operam
continuamente na prisão e no contexto penal, variam
de um contínuo de medidas ocultas bem sutis a medidas abertas e bruscas. As medidas ocultas e sutis, por
exemplo, incluem as várias reuniões onde os meios e
os objetivos têm a autoridade das certezas, deste modo
inculcando um pulso mais forte, insegurança e silêncio
entre aqueles que seriam oponentes. As medidas abertas e bruscas incluem reprimendas e até ameaça de
perda de emprego.
A segunda camada, ao redor da margem ou borda do
sistema carcerário, compreende os intelectuais e os pesquisadores — cientistas sociais no sentido amplo da palavra.
Eles também estão silenciosos ou, no melhor dos casos,
sussurrando seus protestos.
A posição dos inúmeros pesquisadores pode ser vista
dentro de um contexto particular. O sociólogo francês
Pierre Bourdieu usou o sufixo grego doxa para designar
o que é inquestionável e tomado por certo numa cultura. Doxa é algo que você não discute ou debate, porque é
bom por princípio e assim sendo é indiscutível. Cada
cultura tem sua doxa. Em torno dela, há duas esferas de
debate: o ortodoxo e o heterodoxo. No debate ortodoxo, os
detalhes são discutidos, mas as premissas básicas do
sistema permanecem indiscutíveis e dóxicas. No debate heterodoxo, questões fundamentais sobre as premis-
99
4
2003
sas básicas do sistema são levantadas. A doxa tenta limitar o debate heterodoxo e, se possível, silenciá-lo completamente. Se isso não é alcançado, são feitas tentativas para converter o debate heterodoxo em ortodoxo, um
debate sobre detalhes superficiais. Se os oponentes obstinadamente insistem em ser heterodoxos e se o sistema político não é democrático, eles são exterminados
como hereges. Nas sociedades democráticas eles não
são exterminados mas relegados a encontros, organizações, e jornais periféricos e outros contextos similares.
Apenas ocasionalmente são autorizados a entrar nas
reuniões e na mídia central, freqüentemente como álibis radicais do sistema.
A categoria mais ampla de intelectuais e pesquisadores, bem informados sobre os resultados terríveis das
pesquisas das prisões, hoje estão mudando da
heterodoxia para ortodoxia e mesmo para a própria doxa.
No clima da década de 1970, com a crítica radical das
instituições em geral e as prisões em particular, os pesquisadores que conduziram a pesquisa sobre a reabilitação foram muito heterodoxos: eles viram e definiram
a pesquisa e os achados como devastadores para o sistema carcerário. Hoje, por exemplo, aqueles que
pesquisam a interdição seletiva e a predição de violência, sutilmente mudam os padrões. Eles dizem que as
correlações entre os índices sociais e a violência futura, sem dúvida, são baixos e que as porcentagens de
falso-negativo e falso-positivo são altas. Mas, eles seguem dizendo que assim também são todas as correlações das ciências médica, psicológica e social. Agora,
as correlações de 0,35 com medidas novas e melhoradas, podem crescer para 0,37 ou talvez até alcançar 0,40.
Isto, presumivelmente, torna os resultados aceitáveis.
Assim, os pesquisadores atuais, em contraste com aqueles de 1970, entraram no debate ortodoxo ou mesmo no
100
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
apoio ao sistema, na doxa. Novamente, a mudança do
ponto de vista de parte dos pesquisadores é contextualmente produzida: hoje em dia, o debate público geral é
drasticamente diferente daquele da década de 1970. Os
pesquisadores também seguiram o mesmo caminho15.
Isso nos leva para a terceira camada. Esta, pelas razões que delinearei em um minuto, é a mais importante.
Existe ao longo da extremidade ou fronteira do sistema
carcerário: é formada pelos meios de comunicação de massa enquanto uma esfera ou espaço público que consegue
conter tudo na sociedade moderna ocidentalizada.
A informação fornecida pelo sistema carcerário, é
sistematicamente filtrada e distorcida pelos meios de
comunicação de massa. Isso tem ocorrido de modo crescente durante nosso século. Mas um salto qualitativo
significante ocorreu com o advento da televisão após a
Segunda Guerra Mundial. Um outro salto qualitativo tremendo ocorreu aproximadamente da metade da década
de 1970 em diante, com muitos avanços tecnológicos
engenhosos que aconteceram no final do século XX, fazendo com que a televisão alcançasse todos os cantos do
mundo.
A questão é que com o advento e a aceleração do desenvolvimento da televisão, entramos em algo que é
equivalente a uma nova religião. Quando o automóvel
chegou, na virada do século, muitas pessoas acreditaram que fosse um cavalo e uma charrete, apenas sem o
cavalo. Reminiscentes desta época, ainda falamos em
“potência de cavalos”. Mas não era um cavalo e uma
charrete sem cavalo, era algo completamente novo, que
continha as sementes de uma sociedade completamente
diferente. O mesmo aconteceu com a televisão. Quando
ela chegou, algumas pessoas acreditaram que era apenas um jornal em movimento. Mas não foi somente isso;
101
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foi um meio inteiramente novo criando uma sociedade
completamente nova e, poderia ser acrescentado, um
meio novo que fundamentalmente influenciou a forma
e o conteúdo dos antigos meios.
A questão da influência da televisão em atitudes específicas e no padrão comportamental é muito discutida
e estudada, mas é relativamente insignificante. A questão importante é o “paradigma” total ou a “Gestalt” que
emana do meio. O pesquisador da mídia americana
George Gerbner descreveu isto suscintamente, da seguinte maneira: “[a questão é o conceito de] uma
aculturação ampla ao invés de mudanças estreitas na
opinião ou no comportamento. Ao invés de perguntar
que “variáveis” de comunicação poderiam propagar que
tipo de mudanças no comportamento das pessoas, queremos saber que tipo de consciência comum sistemas
inteiros de mensagens poderiam cultivar. Isso se parece menos com perguntar sobre medos e esperanças préconcebidos e mais sobre os “efeitos” do cristianismo no
modo como cada um vê o mundo ...”16.
O paralelo estabelecido com a religião deveria ser
considerado mais do que uma metáfora. Nossa relação
com a televisão tem várias características do relacionamento dos fiéis com a Igreja. O pesquisador britânico
da mídia, James Curran, colocou essa questão em termos funcionais: “os meios de comunicação de massa
modernos, na Inglaterra, agora desenvolvem muitas das
funções integrativas da Igreja na Idade Média. Como a
Igreja medieval, a mídia liga diferentes grupos e proporciona experiências compartilhadas que promovem a solidariedade social. A mídia também enfatiza valores coletivos que aproximam as pessoas, de um modo que é
comparável à influência da Igreja medieval: o senso de
comunidade da fé cristã celebrada pelos rituais cristãos
agora é substituído pelo senso de comunidade do consu-
102
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
mo e do nacionalismo, celebrados nos “rituais” da mídia,
tais como as competições esportivas internacionais (que
afirmam a identidade nacional) e os bens de consumo
(que celebram uma identidade coletiva de consumidores). De fato, as duas instituições, de algum modo,
engajaram-se em um ‘trabalho’ ideológico muito similar, a despeito da diferença no tempo que as separa (...)
Os meios de comunicação de massa modernos deram,
em épocas diferentes, atenção desproporcional e
massiva a uma série de ‘marginalizados’ (...) comparáveis à caça e ao desfile das bruxas pela Igreja medieval
e início da Igreja moderna supostamente possuídas pelo
diabo (...)”17.
A transformação pode ser descrita em termos mais
precisos. Como Neil Postman enfatizou18, na sua importante análise da televisão moderna, nós estamos no
meio de uma transformação crucial da ênfase na mensagem escrita para a ênfase na imagem. A ênfase na
imagem, como aquilo que define o verdadeiro e o falso, o
que realmente aconteceu, como se a representação não
existisse, implica mudança cultural fundamental no
ocidente. A mudança inclui também a imprensa moderna, por exemplo, através da “tabloidização” dos jornais, com grandes fotos “da cena”, grandes manchetes
sensacionalistas e textos resumidos. A noção de Foucault
de um desenvolvimento “panóptico”, no qual poucos
vêem e supervisionam muitos, é paralelo a um enorme
desenvolvimento “sinóptico”, contrastante com o primeiro, mas relacionado funcionalmente a ele, no qual muitos vêem, supervisionam e admiram os poucos: as estrelas da mídia no céu da mídia. No sentido duplo da
palavra, estamos, como tentei formular em um livro que
escrevi sobre esse assunto, vivendo em uma “sociedade de telespectadores”19.
103
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Em termos do conteúdo da mídia, estamos no meio de
uma mudança paralela em direção ao entretenimento.
Não temos que concordar com uma implicação do discurso de Postman que a transformação em termos de
forma da imagem, necessariamente transforma o conteúdo em diversão, para concordarmos com ele que
estamos, de fato, “nos divertindo até a morte”. Mesmo
se os noticiários mais sérios e os mais violentos dos
eventos relatados são exibidos como “espetáculos” e com
um “sabor de entretenimento”... Informação e entretenimento são fundidos no “infotretenimento”. A escrita
ainda existe, assim como análises sérias. Mas em termos de tendência, o espaço para as notícias públicas,
predominantemente, é preenchido com fotos e tablóides
que “divertem”. O tempo não permite uma análise das
forças, que por sua vez, moldam essas tendências. É
suficiente dizer que uma nova era tecnológica, testemunhando a produção de sistemas inteiramente novos,
assim como sistemas de comunicação na área da mídia
de massa, com inúmeros satélites preenchendo o céu,
permitiu que as forças do mercado entrassem no espaço público de uma forma impensável há três ou quatro
décadas.
Esfera pública alternativa
Minha questão básica é a seguinte. Das três “camadas”,
que protegem a prisão e mantêm a sua irracionalidade em
segredo: a dos administradores, em um sentido mais amplo da palavra, a dos pesquisadores e a dos meios de comunicação de massa, a mais fundamental é a da mídia.
Se a mídia, especialmente a televisão, mudasse o
conteúdo do divertimento superficial para o conhecimento crítico criaria uma mudança cultural básica, uma
mudança no clima cultural, que teria repercussões em
104
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
todas as áreas de pesquisadores e intelectuais, assim
como de administradores. Como eu já mencionei, os
administradores e os pesquisadores, dentro e na ponta
do sistema, geralmente “seguem o exemplo”. Quando o
clima cultural envolvendo a prisão torna-se difícil eles
tornam-se difíceis. Quando o clima cultural abranda, eles
abrandam. Não são heróis independentes, ao contrário,
suas antenas estão basicamente dirigidas para fora, em
direção ao clima cultural, mediado como é pelos meios
de comunicação de massa. Uma mudança no clima cultural externo, na opinião sobre o que é a “linha correta”,
criaria uma mudança paralela entre os pesquisadores
próximos ao sistema e os administradores dentro dele.
Certamente, ainda estariam envolvidos em longas batalhas, na margem, assim como dentro da prisão. Talvez a mudança cultural básica no centro e na margem
deva parcialmente esperar pela próxima geração, mas
aconteceria mais cedo ou mais tarde.
De tudo isso podemos concluir que muito de nossa
luta para alcançar, escancarar, revelar e então eliminar o calcanhar de Aquiles do sistema carcerário — sua
irracionalidade fundamental e total — precisa ser
direcionada à televisão e aos meios de comunicação de
massa em geral, já que são seu escudo mais protetor.
Isso faria com que os outros escudos caíssem e liberassem o segredo. Em vista dos grandes interesses econômicos nos “negócios de entretenimento” e dos enormes
avanços tecnológicos envolvidos, esta é uma tarefa formidável. Francamente, não antevejo uma luta fácil.
Mencionarei brevemente uma linha de ação.
Em norueguês, a palavra chave é “alternativ
offentlighet”, em alemão é “Alternative Öffentlichkeit”,
e em português, a expressão mais precisa é “espaço
público alternativo”. A questão é contribuir para a criação de um espaço público alternativo na política penal,
105
4
2003
onde a argumentação e o pensamento honesto e escrupuloso, ao invés da diversão, representem os valores
dominantes. Busco o desenvolvimento de um espaço
público alternativo na área da política penal contendo
três componentes.
O primeiro é a liberação do que eu chamaria de poder absorvente dos meios de comunicação de massa; a
liberação da definição da situação que implica existência de alguém é totalmente dependente da cobertura e
do interesse da mídia. Sem a cobertura e com o silêncio
da mídia eu, provavelmente, não existo, minha organização não existe, a reunião não aconteceu. Na sociedade ocidentalizada é, provavelmente, impossível e
desaconselhável abster-se completamente da participação da mídia. Mas, certamente, é possível dizer “não!” a
muitos programas de entrevistas e “debates” apresentados como entretenimento, mencionados anteriormente, que inundam nossos vários canais de televisão e,
mais importante, é certamente, possível não deixar a
nossa definição de sucesso ser dependente da cobertura da mídia. Geralmente ela converte e perverte completamente nossas mensagens.
O segundo é a restauração da auto-estima e o sentimento de confiança por parte dos movimentos organizados de baixo para cima. Não é verdade que estes movimentos, enfatizando a organização de uma rede de solidariedade nas bases, tenham morrido. O que aconteceu
foi que com o desenvolvimento da mídia de massa que
eu delineei, eles perderam a fé em si mesmos. Um
exemplo importante da história recente da Noruega, da
vitalidade real desses movimentos: em 1993, milhares
de noruegueses participaram em um movimento amplo
para dar aos refugiados da Kosovo-Albânia um abrigo duradouro nas igrejas norueguesas por todo o país. O movimento terminou com uma vitória parcial, na qual to-
106
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A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
dos os casos relacionados com os refugiados albaneses
foram revistos novamente pelo Ministério da Justiça. O
exemplo sugere que a solidariedade nestes movimentos organizados de baixo para cima se estende mesmo a
grupos “distantes”, como os refugiados, e que eles não
morreram com o fim da guerra do Vietnan.
O terceiro é a restauração do sentimento de responsabilidade por parte dos intelectuais no sentido mais
amplo da palavra. Não estou pensando em todos os pesquisadores ortodoxos na margem do sistema. Não se pode
confiar neles como iniciadores de mudança; deles apenas pode-se esperar que sigam o exemplo. Estou pensando nos pesquisadores independentes que estão por
aí e, mais importante, toda a gama de artistas, escritores, atores e músicos, além de uma variedade enorme
de pesquisadores e cientistas, por exemplo nas humanidades e artes liberais. A questão da prisão não é uma
questão para um segmento, mas para todos nós. Sua
recusa em participar nos programas dos meios de comunicação de massa seria importante. Eles têm um
poder de barganha em relação à mídia. A revitalização
da pesquisa considerando os interesses das pessoas comuns como ponto de partida, é igualmente importante.
Esta questão é nova, mas, certamente, volta várias décadas na história intelectual ocidental. A área está
cheia de conflitos e problemas, mas estes não são insolúveis.
Vocês podem perguntar como os três ingredientes que
mencionei serão encadeados e desenvolvidos. A tarefa,
por certo, é de longa duração. Deixem-me dar um pequeno exemplo: tentamos fazer um pouco disso na Noruega, na organização KROM – Associação Norueguesa
para a Reforma Penal, uma organização híbrida, estranha, com intelectuais e muitos prisioneiros, com uma
causa comum20. Todos os anos organizamos grandes
107
4
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conferências sobre políticas penais. Já organizamos 25
delas e para criarmos uma tradição mantivemos o mesmo lugar: um hotel nas montanhas perto de Oslo. No
começo, no fim da década de 1960, a participação era
restrita; com o decorrer dos anos ficou muito mais ampla e, hoje em dia, a participação é definida, em muitos
círculos profissionais, como “obrigatória”. Toda uma gama
de profissões e agências relevantes para a política penal e muitos prisioneiros estão lá. Também organizamos seminários regulares, assim como outras atividades. Em resumo, tentamos criar uma rede de opinião e
informação atravessando os limites formais e informais
entre segmentos dos sistemas políticos e administrativos relevantes. A questão é precisamente tentar criar
um espaço público alternativo onde a argumentação e o
pensar escrupuloso sejam valores dominantes; um espaço público com uma cultura diferente que no final
possa competir com o espaço público superficial dos
meios de comunicação de massa.
Esse tipo de tentativa tem a vantagem, ao contrário
do que ocorre nos meios de comunicação de massa, de
estar baseada em relações organizadas e reais entre
pessoas. O espaço público dos meios de comunicação de
massa, neste sentido, é fraco: é um espaço público que
é desorganizado, segmentado, espalhado por milhões de
indivíduos desconectados — este é seu verdadeiro caráter de massa verdadeira — e, igualmente, segmentada
em milhares de estrelas individuais da mídia no céu da
mídia. Falei do calcanhar de Aquiles da prisão. Este é o
calcanhar de Aquiles do espaço público da mídia, que
tentamos tansformar numa vantagem para nós.
Esta é uma linha de pensamento e trabalho. Obviamente, há outras. Muito do nosso tempo deve ser dedicado a encontrá-las. A tarefa de revelar às pessoas a
irracionalidade da prisão, que faria o sistema sucumbir
108
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
semelhantemente à caça às bruxas na Espanha há 400
anos, exige todas elas.
Notas
Conferência publicada com a autorização da Association for Humanist
Sociology. Proferida no Brasil, na PUC/SP, em ocasião do Seminário Internacional de Abolicionismo Penal e publicada em Edson Passetti e Roberto Baptista
Dias da Silva (orgs.). Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da
sociedade punitiva. São Paulo, IBCcrim/PEPGCS-PUC/SP, 1997, pp. 263287. Tradução de Jamil Chade.
1
2
Nils Christie. Crime control as industry — towards gulags, western style?. London,
Routledge, 1994. [N. do E. — Publicado no Brasil como: Nils Christie. A
indústria do controle do crime: a caminho do gulags em estilo ocidental. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 1998.]
3
Sebastian Scheerer. “Towards abolitionism” in Contemporary Crisis, 1986, p. 7.
Gustav Henningsen. Heksenes advokat (The witches advocate). Copenhagen,
Delta, 1981.
4
Henry Charles Lea. A History of the Inquisition of Spain. New York, AMS Press,
Inc. 1906, 2nd. ed. 1966.
5
Andrew Rutherford. The dissolution of the training schools in Massachusetts.
Columbus, Academy for Contemporary Problems, 1974.
6
7
Henry Charles Lea. Op. cit., vol IV, p.234.
Lloyd W. McCorkle and Richard R. Korn. “Resocialization within walls” in
Annals of American Academy of Political and Social Science, 1954, p. 88.
8
Karl F. Schumann et al. Jugendkriminalität und die Grenzen der Generalprävention
(Delinqüência juvenil e os limites da prevenção geral). Cologne, Luchterhand,
1987.
9
10
Idem.
Alfred Blumstein et al (eds). Criminal careers and career criminals. Washington
DC, National Academy Press, 1986.
11
12
Idem. Vol I, p. 128
Jan M. Chaiken and Marcia R. Chaiken. Varieties of criminal behavior —
summary and policy implications. Santa Monica, Rand Corporation, 1982, p. 26.
13
Andrew von Hirsch. Past or future crimes: deservedness and dangerousness in the
sentencing of criminals. Manchester, Manchester University Press, 1986. Idem.
Censure and sanctions. London, Clarendon Press 1993. Para uma crítica ver
14
109
4
2003
Thomas Mathiesen. Prison on trial: A critical assessment. London, Sage
Publications, 1990. Idem. Perché il carcere? Torino, Edizioni Gruppo Abele,
1996, (Italian translation of Prison on trial, with a new postscript).
15
Para mais detalhes ver Thomas Mathiesen. “Selective incapacitation revisited”
Law and human behavior. Na ocasião da conferência a obra encontrava-se no
prelo.
George Gerbner and Larry Gross: “Living with television: the violence
profile” Journal of Communication. Spring, 1976, p. 180.
16
James Curran. “Communications, power and social order” in Michael
Gurevitsch et al (eds). Culture, society and the media. London, Methuen, 1982, p.
227.
17
18
Neil Postman. Amusing ourselves to death: public discourse in the age of show
business. London, Heinemann, 1985.
19
Thomas Mathiesen. Seersamfundet. Om medier og kontroll i det moderne samfund
(The viewer society. on media and control in modern society). Copenhagen,
Socpol, 1987. Idem. “The viewer society: Michel Foucault’s ‘panopticon’
revisited”. Theoretical criminology. [Na ocasião da conferência encontrava-se no
prelo. Posteriormente, veio a ser publicada no Brasil: Thomas Mathiesen. “A
sociedade espectadora. O ‘panóptico’ de Michel Foucault revisitado”. Margem, São Paulo, Educ, 1999, vol. 8].
Idem. The politics of abolition: essays in political action theory. London, Martin
Robertson, 1974. Idem. “About KROM. Past - present - future”. Institute for
Sociology of Law. Oslo, 1995.
20
110
verve
A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?
RESUMO
O artigo enfoca, especificamente, os pontos centrais de manutenção da existência da prisão moderna, ressaltando, de forma particular, o papel desempenhado pelos meios de comunicação de massa
conectados à proliferação da lógica do sistema criminal. O autor
faz uma densa descrição histórica de diferenciados sistemas de
punição, mostrando a possibilidade de sua abolição.
Palavras-chave: Abolicionismo penal, prisão,
comunicação de massa.
ABSTRACT
The article is specifically focused on central elements for the
continuous existence of the modern prison, highlighting, in a particular way, the role played by the mass media associated to the
proliferation of the criminal systems’ logics. The author presents
a dense historical description of the various systems of punishment,
showing the possibility of its abolishment.
Keywords: abolition of punishment, prison, mass media.
Indicado para publicação em 18 de março de 2002
111
4
2003
clevelândia (oiapoque). colônia penal ou
campo de concentração?
carlo romani*
“Se gli anarchici non se ne curano, la storia la faranno i loro nemici.”
Gaetano Salvemini.
Em seu ensaio sobre o anarquismo italiano, Carl Levy
recorre a estas palavras do velho anarquista para dar
vida ao seu argumento de que “aqueles partidos ou movimentos sociais que tiveram redução em sua importância foram negligenciados. O anarquismo foi esquecido, relegado a pequenas notas de rodapé...”1. Não somente o anarquismo sofreu com o esquecimento
consentido da maioria, acontecimentos escabrosos ocorridos no passado também o foram. Um deles é o caso da
* Carlo Romani é mestre em História Social pelo IFCH/Unicamp e está desenvolvendo tese de doutorado na mesma instituição sobre o povoamento e ocupação da zona de fronteira do Oiapoque na década de 1920. Esta pesquisa tem
o financiamento da FAPESP.
verve, 4: 112-130, 2003
112
verve
Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração?
“Colônia Penal de Clevelândia”, um campo brasileiro de
confinamento de prisioneiros montado nos anos 1920,
que praticamente desapareceu das páginas de nossa
historiografia2. A associação direta com o anarquismo
deve-se ao fato de que o único contingente de pessoas
confinadas nesse campo por motivos absolutamente políticos, foram os simpatizantes libertários. Não há registros de presos de outra corrente política que não a
anarquista.
O movimento anarquista, que praticamente conduziu toda a luta do operariado brasileiro durante as duas
primeiras décadas do século XX, começou a dividir-se
após 1920 e parte de seus antigos militantes migrou
para as posições bolchevistas articuladas em torno do
recém fundado PCB, em 1922. O panorama político nacional, no entanto, não mudou, e tudo continuava sob o
comando das velhas oligarquias agrárias que elegeram,
em 1922, Arthur Bernardes para a presidência do país.
Porém, surgia nesse cenário uma nova força política e
militar, organizada a partir do movimento dos baixos oficiais do Exército, denominada Tenentismo. Opondo-se
à política conservadora das oligarquias, esse movimento conquistou a simpatia das camadas médias urbanas,
a pequena burguesia emergente após o surto industrial
vivido durante a I Guerra. Duas revoltas tenentistas
armadas marcaram os primeiros anos do governo
Bernardes: a do forte de Copacabana em 1922, e a rebelião de São Paulo em 1924.
As revoltas tenentistas, apesar de fortes militarmente, careciam do apoio popular, tanto que, nem o proletariado rural nem o urbano participaram de fato desses
movimentos. O PCB ainda tentou costurar um apoio
entre seus comandados e o movimento militar, já que
os comunistas viam na aliança com a pequena burguesia um possível projeto revolucionário para o país. Os
113
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2003
anarquistas, por sua parte, apesar de não verem nenhum potencial revolucionário no movimento, decidiram apoiá-lo na medida em que ele pudesse se tornar
um avanço na conquista de maior liberdade política no
país3.
Este era o quadro que se desenhava na cena política
nacional em meados da década de 1920. A resposta governamental aos acontecimentos não tardou a chegar.
Veio através das leis de exceção cerceando as liberdades pessoais e ampliando os espaços de ação para uma
política repressiva que, se já era prática comum desde o
início da República, passou a tornar-se cada vez mais
arbitrária. Esse foi o auge do período do estado de sítio
decretado durante o governo Bernardes a partir de 5 de
julho de 1924, quando irrompeu o levante tenentista em
São Paulo, e que durou até 31 de dezembro de 1926. Foi
nesse período em que a prática política de se governar
com base nas leis excepcionais, elevou-se a níveis ainda não vistos na República Velha. Ao mesmo tempo, a
arbitrariedade policial tornou-se a regra. Em dezembro
de 1924, surgiu em São Paulo uma delegacia especializada em controlar e vigiar as atividades do cidadão: o
DOPS, ou Delegacia de Ordem Política e Social. Era sua
atribuição submeter toda atividade de associação política a um exercício de vigilância permanente. Todos os
operários ativistas de qualquer movimento político, eram
identificados e fichados. O DOPS paulista seguia a trilha já aberta desde novembro de 1922 no Rio de Janeiro
com a criação da 4ª Delegacia Auxiliar, cuja atribuição
básica era:
“...desenvolver a máxima vigilância contra quaisquer
manifestação ou modalidade de anarquismo violento e
agir com solicitude para os fins da medida de expulsão
de estrangeiros perigosos”4.
114
verve
Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração?
Paralelamente à expulsão de estrangeiros indesejáveis, centenas de brasileiros, considerados pessoas inaptas a viver em sociedade, foram sumariamente desterrados para o campo de internamento na selva, chamado
gentilmente de “colônia penal”. Precursor do atual spa,
esta colônia penal, lugar de regime de emagrecimento
forçado de sua população, ficou postumamente conhecida como Inferno Verde. Mesmo não havendo a participação direta dos libertários naqueles movimentos
revoltosos liderados pelos tenentistas, a reação policial
atingiu em cheio a base anarquista no país. Este combate do governo contra os ativistas libertários fez com
que “o declínio que então se iniciou não tivesse portanto como base o fracasso da militância anarquista nos
sindicatos, mas sua expulsão e eliminação por forças
policiais com amplo respaldo político e social.” Esta análise de Ângela de Castro Gomes, pelo perfil ideológico da
autora, não pode ser considerada uma propaganda anárquica5.
Figuras de destaque do movimento, como José Oiticica
e Everardo Dias, permaneceram presas e incomunicáveis durante meses em calabouços fétidos nas ilhas ao
largo da Baía de Guanabara. Ilha Rasa, Ilha das Flores,
Ilha de Bom Jesus, são bonitos nomes que ficaram para
sempre marcados na memória dos anarquistas brasileiros. A repressão mais intensa ganhou corpo quando o
governo Bernardes decidiu desterrar esses indesejáveis
como forma de impedir o sucesso dos inúmeros pedidos
de habeas corpus impetrados em favor das pessoas arbitrariamente presas. Prudentemente, o presidente decidiu deportá-los e confiná-los em locais inóspitos e isolados, de difícil acesso e de impossível defesa jurídica, protelando indefinidamente as detenções efetuadas sem
nenhum amparo legal e muitas vezes sem a existência
sequer de processos correntes na justiça.
115
4
2003
O Oiapoque, lá onde o Brasil acaba e começa a Guiana
Francesa, ou o inverso, como reclamam os seus moradores, foi o palco privilegiado para a instalação de um
campo de internamento de prisioneiros em que temos
a possibilidade de cruzarmos algumas trajetórias de vida
distintas, e que lá se encontraram dividindo o mesmo
espaço de isolamento. O Núcleo Colonial Cleveland6, um
centro agrícola avançado sob a custódia do Ministério
da Agricultura, fundado em 1922 foi transformado em
colônia penal, um verdadeiro campo de concentração.
Reconstituindo a história do núcleo de Clevelândia, o
nome pelo qual ficou conhecido o local, encontramos a
versão oficial realizada em 1970 pelo Padre Rogério
Alicino. Mesmo permanecendo na vila militar como convidado da Companhia de Fuzileiros da Selva, o relato do
padre não deixa dúvidas quanto ao tratamento dado aos
presos que lá foram enviados: “a chegada, dentro em
prazo breve, de mais de mil pessoas, criou problemas de
peso na vida da Colônia. [...] Em primeiro lugar, escassearam os alojamentos. O Engenheiro Gentil Norberto
mandou construir outras casas, além de um grande barracão situado perto da atual serraria, ajudando-se da
mão de obra dos próprios presos. [...] A fim de desfrutar
de toda a mão de obra, agora até de sobra, foi construída,
perto do lugar denominado Sibéria, uma usina para a
extração da essência de paurosa [...] Os presos, de seu
lado, não deixaram de empecilhar a vida da Colônia.
Entre eles havia duas categorias: os políticos e os criminosos; estes em maior número e de ‘péssimos antecedentes’, segundo afirma o Senador Calmon”7.
A mão de obra escrava confinada na Sibéria brasileira, foi lançada numa vala comum contendo pessoas presas por motivos político-ideológicos e bandidos comuns.
Clevelândia foi o exemplo mais cruel desse tempo. Toda
uma gama de brasileiros revoltosos: tenentistas, anar-
116
verve
Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração?
quistas, ladrões, cafetões, vadios, loucos e outros simplesmente considerados como desclassificados pelo governo, foram esquecidos nos confins do Brasil. Inicialmente, foram jogados no porão do navio-prisão “Campos”, aguardando uma espécie de julgamento fantasma
que nunca chegou. A primeira leva desses homens foi
enviada, em dezembro de 1924, para uma longa viagem
de navio com escala em Belém até a foz do rio Oiapoque.
De lá, um vapor fluvial, o chamado gaiola, os levou rio
acima até o ponto navegável mais próximo da colônia.
Seguia-se outra viagem, segundo os relatos, às vezes
de canoa, às vezes a pé, atravessando os igarapés, dezoito quilômetros mata adentro, chegando enfim, ao inferno equatorial. Os relatos disponíveis sobre as condições de sobrevivência no local são assustadores8. Os que
conseguiam fugir para a Guiana Francesa, enviavam
de lá tristes notícias para os companheiros residentes
no sul do país:
“Saint Georges, 14-12-1925.
É verdade que daqui também é difícil sair e é quase
impossível a vida, por falta de trabalho, porém livramonos das humilhações e tiranias de que éramos vítimas
em Clevelândia”9.
Para simplificar a análise dos fatos, utilizando-se a
fonte inicialmente encontrada por Paulo Sérgio Pinheiro no relatório intitulado “Viagem ao Núcleo Colonial
Cleveland”, dos 946 presos lá internados entre 1924 e
1927, 491 morreram, ou seja, mais da metade10. Boa
parte dos sobreviventes que retornaram ao Rio e a São
Paulo, de onde foram em sua maioria retirados, permaneceu com traumas e seqüelas para sempre. A malária, o impaludismo e outras doenças adquiridas naquelas paragens distantes, fizeram-lhes perpetuar o sofrimento. Alicino, o biógrafo do Exército, ao recolher o relato
117
4
2003
de um dos habitantes sobreviventes daquela época concluiu que em meados de 1925, após a chegada dos presos provenientes de Catanduvas, rebentou, no meio de
todos os moradores de Clevelândia, presos e colonos, uma
espantosa epidemia de disenteria bacilar que vitimou a
muitos”. A testemunha ocular daqueles trágicos dias de
Clevelândia, Manoel Figueiredo da Silva, contou-lhe:
“era uma amebiana que liquidava (sic) rápido a vida dos
padecentes. Em um dia vi fazer o sepulto de seis pessoas. Era uma mortandade de doer o coração”11!
A memória local sobre este trágico episódio de nossa
história também foi devidamente aniquilada. Atualmente em Clevelândia existe apenas uma base avançada do
Exército brasileiro, a 2ª Companhia de Fuzileiros da
Selva, e daqueles anos passados já não resta nenhum
legado material, a não ser as covas e os possíveis ossos
ainda enterrados no cemitério São Carlos. Na cidade
mais próxima habitada pela população civil, Oiapoque,
restam poucos traços daqueles acontecimentos. Na pesquisa do padre há mais de 30 anos, a tradição popular
lembrava-se em forma de lenda o caso de um preso que,
condenado à morte, foi anistiado por ter cantado, à beira da cova por ele mesmo cavada, a despedida de sua
mãe: “Adeus Rio Oiapoque/sepulcro dos infelizes/a ouvir minhas preces/até as pedras se maldizem/Já não
vejo minha mãe/pois me falta a liberdade/quanto é triste/ter saudade!”12.
Distante do local consagrado como palco dos sofrimentos, a memória persiste em grande parte devido ao esforço dos simpatizantes da causa anarquista que observam naquele episódio um marco da luta libertária contra todas as formas de dominação e opressão dos
homens. Através de cartas enviadas à imprensa operária e aos jornais da burguesia, sabemos da passagem de
pelo menos 20 anarquistas pelo campo de Clevelândia.
118
verve
Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração?
É provável que tenham sido muitos mais. Vários dos
desterrados classificados simplesmente como operários pelo governo, poderiam ter sido militantes junto aos
sindicatos ou simpatizantes do anarquismo. Entre os
chamados vadios também é possível encontrarmos outros anarquistas, não classificados deste modo com o
intuito de omitir o objetivo obviamente político da repressão. De todo modo, dezenas de anarquistas sem
nenhuma participação direta nas revoltas ocorridas em
1924, foram confinados com a finalidade de desarticular o movimento junto ao operariado, e instaurar o medo
e o terror entre os companheiros que permaneceram
no sul e sudeste do país. Alguns dos anarquistas que
retornaram de Clevelândia, como foi o caso do carpinteiro Domingos Passos13, não arrefeceram o ânimo após
o regresso e continuaram com sua militância operária,
apesar de trazer “no corpo os calafrios da maleita que
contraíra nas infernais regiões do Oiapoque”. Continuaram trabalhando junto ao movimento sindical, e passaram a ter de enfrentar também a ação dos “grupos de
choque” do PCB, que tentavam impedir a atuação dos
anarco-sindicalistas.
Enfim, após este curto olhar sobre os desterros para
o Oiapoque, fica a pergunta: que tratamento deve dar a
historiografia a esse funesto episódio da vida nacional?
Será que a chamada colônia penal de Clevelândia foi
apenas uma “colônia penal”? O internamento forçado
de brasileiros e inclusive até de alguns estrangeiros
(sabemos da existência de pelo menos quatro estrangeiros com possíveis ligações com o anarquismo que foram lá confinados: o português Atílio Lebre; José Garcia
de nacionalidade desconhecida; o italiano De Chiara; o
anarquista colombiano Biófilo Panclastra) já não caracterizaria uma espécie de campo de concentração? E se
levarmos em conta, então, a mortalidade entre os pre-
119
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2003
sos da colônia que ultrapassou 50% do total dos presos
confinados?
O desterro de prisioneiros políticos para locais isolados, muitas vezes até inóspitos, foi uma prática muito
utilizada por vários governos, desde os mais totalitários, passando pelos que ainda mantêm uma fachada democrática, representantes da democracia liberal como
o caso do governo norte-americano que durante a 2ª
Guerra Mundial isolou os habitantes de origem japonesa em campos fechados na Califórnia.
Desde o século XIX, o governo francês mantinha uma
ilha equatorial abandonada ao largo da costa da Guiana
Francesa, a Ilha do Diabo, como principal centro de
confinamento de prisioneiros políticos e comuns. A ilha,
notória pela quase impossibilidade de se evadir dela, ficou famosa como receptáculo de prisões arbitrárias feitas por mesquinhos interesses políticos e até por motivos de caráter racista. De modo parecido, na ausência
de uma possessão ultramarina, a Itália utilizou durante um longo período, desde o século XIX até a queda do
fascismo, a prática do confinamento em ilhas no Mediterrâneo, uma forma conhecida como domicilio coatto14.
Esta forma de prisão arbitrária decidida sumariamente
pelas comissões provinciais, tribunais locais de ação
rápida que não permitiam a possibilidade de defesa jurídica, foi caracterizada pelo envio compulsório de prisioneiros políticos e comuns, para locais ermos onde eles
detinham apenas restrita liberdade de locomoção. Além
do isolamento marítimo, outra prática bastante comum
foi a do uso de regiões isoladas, inóspitas, em alguns
países até geladas, como é o caso da prisão argentina
em Ushuaia15, ou o Gulag da Rússia czarista e posteriormente da URSS estalinista, na congelada Sibéria.
120
verve
Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração?
A versão brasileira adotada como opção pelos governos republicanos para o confinamento de prisioneiros
sempre foi a ocupação da selva equatorial, campos em
grandes espaços abertos, cuja fuga do lugar, se não era
dificultada pela vigilância, o era pelo completo isolamento. Um trabalho realizado por Paulo Sérgio Pinheiro fez
um apanhado geral dessa política de encarceramento
ecológico realizada durante a República Velha16. Desde
as revoltas ocorridas no governo de Floriano Peixoto, os
palcos amazônicos de Tabatinga, Xingú, do Alto Rio Branco e do Acre, este último receptor dos detidos durante a
Revolta da Vacina, foram os locais onde se abriram postos avançados para o sacrifício humano. O próprio ministro da Agricultura do governo Bernardes, Miguel
Calmon, em discurso no Senado, lembrou desses assassinatos ocorridos em 1904: “fizeram-se deportações larga manu (sic) para a Amazônia, não se sabendo até hoje
do paradeiro das centenas, senão milhares, de indivíduos largados ao abandono, sem alimentação nem assistência médica, nas margens dos rios do território do
Acre...”17.
Com a intensificação da organização do proletariado
urbano em São Paulo, a partir do início deste século,
profundamente influenciado pela propaganda e
militância anarquista, os operários também passaram
a ser vistos pelo governo como boas espécies para alimento de serpentes e onças, animais que naquela época ainda povoavam nossas selvas. Segundo o historiador José Maria dos Santos, “o processo de depuração dos
meios proletários foi admitido como normal, mesmo sem
qualquer perturbação da ordem pública. Em São Paulo
deportava-se para a região noroeste de Bauru, que então começava a ser aberta”18.
Foi seguindo essas pegadas já deixadas nas páginas
tristes e mal contadas de nossa história, que o governo
121
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de Artur Bernardes fez uso de uma localidade ainda mais
ao norte, onde pretendia resolver dois problemas com
um único tiro: o de colonizar a fronteira setentrional
sob o risco de infiltração francesa e o silenciamento da
oposição mais combativa ao seu regime. Nesse contexto surge a idéia de se utilizar uma tentativa de colônia
agrícola que de fato nunca se consolidou19, permanecendo mais como um posto avançado do Estado na fronteira, com o firme propósito de abandonar à própria sorte os algozes de seu governo. E para tanto, nem necessitou de uma vigilância muito severa. Pôde utilizar
somente um pequeno destacamento militar vindo de
Belém do Pará, lá montado para manter a ordem na colônia agrícola, e deixar que a mãe natureza, proprietária daquelas paragens, se encarregasse de intimidar
possíveis fugas com a sua força selvagem. Mesmo assim, alguns corajosos preferiram embrenhar-se na mata
virgem a ter que forçosamente morrer no inferno equatorial.
Pelos relatos e informações colhidas é possível formular a hipótese de que no Brasil, os campos de
internamento, colônias penais, locais de degredo ou seja
qual for o termo usado para designar estas prisões, foram muito mais campos de “abandono” planejado, em
que a morte dos lá confinados não era considerada um
fato de maior relevância para os governantes. Neste
sentido não me parece lógico “internar” ou “confinar”
alguém numa selva. O termo internar implica em manter dentro de, aprisionar em locais fechados, bastante
vigiados e com pouca possibilidade de fuga, muitas vezes utilizando edifícios públicos já existentes. O termo
confinar já implicaria então, internamento de pessoas
em locais distantes, isolados. Uma outra possibilidade
de se fazer isto, seria a inclusão de uma grande quantidade de gente em um pequeno espaço ou em um espaço
122
verve
Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração?
com pouca capacidade de absorção dessa gente, concentrando-as.
Carlo Capogreco, em seu estudo sobre os campos de
internamento fascistas, observa que “os campos de concentração italianos, portanto, somente em pouquíssimos
casos, teriam sido ‘campos’ no sentido corrente do termo. Mais do que em barracões, os internados vinham
em geral ‘concentrados’ em vilas, castelos, sedes de fazendas, ex-conventos, escolas ou cinemas, etc...”20. Ainda segundo este autor, os campos de concentração italianos mantinham em seu interior entre 1000 e 1500 prisioneiros. Capogreco usa de ironia ao falar do termo
comumente aceito de campo de concentração evitando
adotá-lo. Pelo seu julgamento, os prisioneiros de guerra
do fascismo italiano não teriam vivido, ou sobrevivido,
em regime de concentração. Se os critérios acima são
válidos, vejamos a seguir como é que se constituiria então, um campo de concentração fascista “de verdade”.
O caso dos campos de concentração italianos montados durante a 2ª Guerra, vêm recebendo, somente nos
últimos anos, um tratamento adequado por parte dos pesquisadores, considerando-se a importância do assunto.
Giorgio Sacchetti, um historiador das prisões italianas
que anteriormente já havia realizado um detalhado estudo sobre os casos de detenção em regime de domicilio
coatto, ao debruçar-se sobre o caso dos campos de concentração fascistas, nos fala que em fins de 1943, em
“Renicci d’Anghiari, localidade da Valtiberina, se encontra um dos piores campos de concentração da Itália quer
pelo número de internados, quer pelo comportamento
mantido pelo pessoal de vigilância. No momento da chegada dos anarquistas e dos eslavos se encontravam lá
trancados 4500...”21. Segundo o relato do capelão do campo, Giuliano Giglioni, os presos eram separados em grupos através de cercas metálicas e as condições de disci-
123
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plina e regime interno eram bestiais provocando numerosas mortes: “os primeiros foram sepultados no cemitério paroquial, mas depois da minha ida à Prefeitura de Anghiari, foi reativado o velho campo santo [...] a
comida é reduzida, constituída de uma magra ração diária de uma centena de gramas de pão e de pouca sopa,
variando entre a cenoura ou batatas com casca e água
bombeada diretamente do rio Tevere”22.
Provavelmente o historiador Capogreco, valendo-se
de seus critérios, não consideraria Anghiari um campo
de concentração. Portanto, o uso do termo é bastante
discutível e depende bastante da interpretação, ou dos
interesses do autor. Como forma de comparação, Pier
Carlo Masini fala numa ração diária de “600 gramas de
pão e 160 gramas de sopa por dia” 23; durante os
confinamentos em domicilio coatto; o prisioneiro português Atílio Lebre, relata que no translado de navio do
Rio de Janeiro até Clevelândia, havia como “comida de
manhã, um púcaro com mate e uma bolacha; a cada
uma das principais refeições, um prato com feijão frade
e cem gramas de carne verde pessimamente cozinhada”24; conforme Eugen Kogon, um sobrevivente e também pesquisador do assunto, os campos de concentração alemães durante a vigência do nazismo mantinham
um regime alimentar diário para os prisioneiros, da ordem de 400 a 500 gramas25.
Em nossa tragédia amazônica, sabemos que os presos em Clevelândia permaneceram alojados em grandes barracões construídos por eles mesmos, chamados
de bangalôs, separados conforme suas afinidades políticas ou crimes praticados, vivendo em um local de umidade e calor intenso, em condições insalubres, permitindo a proliferação de doenças como o impaludismo, a
malária, diversos tipos de febres e disenterias, absolutamente sem condições de serem tratadas na enferma-
124
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Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração?
ria lá improvisada, sem equipe médica nem medicamentos suficientes.
Alguns dos sobreviventes quando de seu retorno ao
Rio de Janeiro, foram descritos por Everardo Dias como
homens “curvados, magros, amarelados, sem coragem
sem ânimo e sem vitalidade” e que mostravam as agruras sofridas em “seus rostos escaveirados e cor de cera
apenas os olhos sobressaiam... no mais pareciam múmias”26. Mesmo com todo o sofrimento por que passaram, pelo menos os anarquistas lá confinados souberam se defender e realizar de sua passagem na selva
também um aprendizado. Em uma carta enviada à imprensa libertária, Domingos Braz lembra-se do “contentamento e satisfação pela harmonia de ideais, pensamentos e sentimentos mútuos de firmeza, coesão e
ânimo para enfrentar as agruras inomináveis de um
degredo injusto, inumano, arbitrário e sanguinário —
e, então nos lembramos do convívio harmonioso dos camaradas entre as selvas — estudando e sonhando em
comum, protestando em comum, tornando mais brandos e minorados nossos sofrimentos e as nossas privações pelo compartilhamento mútuo e recíproco”27.
Longe de esmorecerem ante o suplício imposto, os
anarquistas recriaram nesse espaço de confinamento
os valores da cultura libertária, não se preocupando com
o amanhã, mas principalmente com o que era possível
de se fazer naquele presente. Assim, anarquizaram a
vida na colônia deixando gravados na memória de Domingos Braz aqueles tempos, quando “os momentos de
ócio eram dedicados às nossas palestras, aos nossos
estudos, às nossas canções, enfim, à expansão da nossa alma de idealistas que vivia opressa e moribunda
sob a guante da mais férrea e bruta tirania...”28.
125
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Abandonados em um regime semi-aberto, onde a vigilância não era muito severa, já que a própria natureza se encarregava de fazê-la, ainda assim, seria “difícil
convencer um foragido que voltasse para um campo de
concentração, ou pelo menos de internação, à espera da
morte”29. A designação de campo de concentração para
o campo de Clevelândia foi usada também por Paulo
Sérgio Pinheiro, embora o cientista político não adotasse oficialmente esta nomenclatura. Já, em seu trabalho bastante preciso e meticuloso, Alexandre Samis evita falar em campo de concentração, referindo-se sempre à Clevelândia como colônia penal. No próprio Arquivo
Artur Bernardes, o mais extenso material oficial existente sobre as prisões e o estado de sítio durante aquele
governo, o inventário do fundo usa o indexador campo de
concentração, para referenciar a “colônia” de Clevelândia
do Norte. Como se vê, até na própria documentação oficial arquivada pelo governo brasileiro, assim ele era
considerado.
O historiador Capogreco talvez nos dê a explicação do
por quê, somente neste século, com a chegada do “nazismo o internamento adquiriu o significado sinistro que
a história hoje em dia lhe conferiu, e o Lager (‘campo de
concentração’) tornou-se sinônimo de total violação dos
direitos humanos e de lugar de extermínio planificado
(‘campo de extermínio’ ou ‘campo de morte’)”30.
O objetivo deste artigo não é o de ingressar no mérito
semântico para se designar e classificar os diversos
graus de vigilância e controle possíveis de serem estabelecidos sobre um grupo qualquer de prisioneiros, e que
no decorrer da 2ª Guerra Mundial adquiriram conotações
totalmente extraordinárias. Após estas breves linhas
deixo a seguinte questão e minha particular opinião
sobre ela. Se desfrutar o trabalho forçado de prisioneiros políticos na selva amazônica, num lugar cuja alcu-
126
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Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração?
nha era Sibéria e de onde dos mil e poucos que foram,
mais de quinhentos nunca voltaram, não caracterize
um campo de concentração, o que pode caracterizar um?
Talvez somente a existência de câmaras de gás e fornos crematórios. Mas aí já estamos falando de puro e
simples extermínio.
Notas
Carl Levy. “Italian anarchism, 1870-1926” in David Goodway (org.). For
anarchism. Londres, Routledge, p. 25.
1
2
As informações sobre esse episódio vêm através das memórias históricas ou da
história contada por aqueles que a viveram, como é o caso por exemplo, de
Everardo Dias. Bastilhas Modernas: 1924-1926. São Paulo, Editora de Obras
Sociais e Literárias, 1926 (livro de memórias das passagens pelas prisões que traz
o relato do tenentista Lauro Nicácio, confinado em Clevelândia, pp. 237-49).
Também são fontes as cartas deixadas por Pedro Catalo e outros ativistas anarquistas como Pedro Carneiro, Domingos Passos e Domingos Braz e publicadas
por Edgar Rodrigues. Novos rumos. Rio de Janeiro, Mundo Livre, s/d. Outros
trechos estão disponíveis nas obras Os companheiros, vol 1. Rio de Janeiro, VJR,
1994; Os companheiros, vol 2. Rio de Janeiro, VJR, 1995; Os companheiros, vol 3 e
4. Florianópolis, Insular, 1997; Os companheiros, vol 5. Florianópolis, Insular,
1998. Notícia e correspondências sobre o tema foram publicadas em jornais
libertários, principalmente A Plebe, de São Paulo, mas também em O Syndicalista,
de Porto Alegre e até A Batalha, de Lisboa. Na historiografia, a triste história de
Clevelândia somente mereceu algum destaque quando passou a ser contada por
John Foster Dulles, Anarquistas e comunistas no Brasil. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1977 (no item Oiapoque, livro VI, 8); posteriormente Paulo Sérgio
Pinheiro. Estratégias da Ilusão. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, dedicouse ao assunto no capítulo 5, “Desterro e campos de internamento”. Uma matéria
sobre o tema foi publicada no artigo “Clevelândia, o Gulag brasileiro”, Utopia.
Rio de Janeiro, n.º. 3, verão de 1990. Contudo, o mais amplo e detalhado trabalho
sobre o assunto foi publicado recentemente por Alexandre Samis. Clevelândia.
São Paulo. Imaginário/Achiamé, 2002. Antes deste trabalho, foi publicado, também por Alexandre Samis. Moral pública e martírio privado. Rio de Janeiro, Achiamé,
1999. Além destes trabalhos já publicados encontra-se em andamento com previsão de conclusão para dezembro de 2003, minha tese de doutorado: Aqui
começa o Brasil! IFCH/Unicamp. Nesta tese, pesquisei como ocorreu o processo
de ocupação da região da fronteira do Oiapoque entre 1900 e 1927 a partir da
perspectiva dos diversos trânsitos e confinamentos gerados pelas populações do
127
4
2003
lugar, das relações estabelecidas entre elas e dos confrontos e interações estabelecidos entre essas populações e o Estado.
3
Segundo o artigo “Movimento revolucionário”, A Plebe, a. 7, n º. 244. São
Paulo, 25/07/1924.
Marília Xavier. “Antecedentes criminais de nossa polícia política” in DOPS: a
lógica da desconfiança. Rio de Janeiro, Secretaria de Estado da Justiça/Arquivo
Público do Estado, 1993, p. 33.
4
Angela de Castro Gomes. A Invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro, IUPERJ,
1988.
5
6
Padre Rogério Alicino. Clevelândia do Norte. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1971. “O certo é que os primeiros colonos chegaram à Clevelândia durante
a terceira década do mês de maio de 1921”, p. 88.
Idem, pp. 94-95.
7
Foram publicados em diversos números de A Plebe, durante o ano de 1927 e
também nos jornais operários: A Batalha, de Lisboa; O Syndicalista de Porto
Alegre, La Antorcha, de Buenos Aires, além de alguns jornais da imprensa burguesa.
8
9
Carta de Manuel Ferreira Gomes. Utopia, op. cit.
P.S. Pinheiro, op. cit, p. 104. O relatório também foi trabalhado por Alexandre
Samis, op. cit., pp. 172-8. O documento encontra-se no Arquivo Público Mineiro, Fundo Arquivo Artur Bernardes, AAB.
10
11
Padre Alicino, op. cit, p. 96.
12
Idem, p. 98.
Edgar Rodrigues. Os Companheiros vol. 2. Rio de Janeiro, VJR, 1995, p. 25. Esse
conjunto de cinco livros do historiador do anarquismo, compondo pequenas
biografias, traz breves relatos de centenas de militantes anarquistas, alguns deles
prisioneiros em Clevelândia como foi o caso de Domingos Passos.
13
Sobre o assunto ver: Pier Carlo Masini. Storia degli anarchici italian. Da Bakunin
a Malatesta. Milão, BUR, 1974; Carlo Romani. Oreste Ristori. Uma aventura anarquista. São Paulo, Annablume, 2002; Amedeo Borghi. Ricordi del domicilio coatto.
Turim, Seme Anarchico, 1954; Giorgio Sacchetti, “Controllo sociale e domicilio
coatto nell’Italia Crispina” in Rivista Storica dell’Anarchismo. Pisa, BFS, ano 3 n º.
1, jan/jul/1996; Zagaglia (L. de Fazio) I coatti politici in Italia. Salerno, Galzerano
Editori, 1987.
14
Sobre as prisões na Patagônia Argentina, ver a obra completa, os quatro volumes de Osvaldo Bayer. La Patagônia trágica. Entre seus livros, tratam do tema,
Severino Di Giovanni, el idealista de la violencia. Buenos Aires, Legasa, 1989 e Radowitzky
mártir o asesino?. Buenos Aires, Legasa, 1984.
15
128
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Clevelândia (Oiapoque). Colônia penal ou campo de concentração?
16
Paulo Sérgio Pinheiro, op. cit., utilizando-se de variadas informações, dentre
elas merece destaque a obra do historiador José Maria dos Santos. A política geral
do Brasil. São Paulo, 1930.
“A verdade sobre a deportação para a Clevelândia”. Discurso publicado em A
Notícia, 4/2/1928.
17
18
José Maria dos Santos, op. cit., p. 414.
19
Conforme mostra a pesquisa de Carlo Romani, Aqui começa o Brasil!..., op. cit.
Carlo Spartaco Capogreco. “I campi di internamento fascisti per gli ebrei (19401943)” in Storia contemporânea, ago/91.
20
Giorgio Sacchetti. “Resistenza e guerra sociale” in Rivista Storica dell’Anarchismo.
Pisa, BFS, ano 2, nº 1, jan/jun/1995.
21
Idem, p. 9. Os depoimentos sobre as condições de vida dos internados foram
obtidos por Sacchetti e publicados em “Renicci: um campo di concentramento
per slavi e anarchici” in I. Tognarini (org.). Guerra di sterminio e resistenza. La
provincia di Arezzo 1943-1944. Napoli, 1990.
22
“Vendetta insaziabile (I coatti a Port’Ercole)”, artigo publicado em Lota di
Classe. Milão, 2 e 3/03/1895, apud Pier Carlo Masini. Storia degli anarchici italiani
nell’epoca degli attentati. Milão, BUR, 1982, p. 60.
23
Carta de Atílio Lebre ao deputado Adolfo Bergamini. Câmara dos Deputados.
Estado de sítio, vol 12. Rio de Janeiro, 1925, p. 485.
24
25
Eugen Kogon. L’Etat SS. Le système des camps de concentration allemands. Paris,
Seuil, 1947.
26
Everardo Dias, op. cit., p. 237.
“A horrível situação dos degredados”, carta de Domingos Braz, publicada em A
Plebe, ano XI, n º. 245, 12/02/1927.
27
28
Idem.
29
Paulo Sérgio Pinheiro, op. cit, p. 104.
30
Carlo Spartaco Capogreco, op. cit., p. 663.
129
4
2003
RESUMO
Estudo sobre perseguição a anarquistas no Brasil, prisões e extermínios planejados no começo do século XX com a criação do
campo de concentração Clevelândia, instalado no Oiapoque. Análise do acontecimento, seus efeitos e resistência do anarquismo
registrada em documentos, cartas, periódicos e livros anarquistas, apresentando balanço de estudos historiográficos e políticos
sobre o tema.
Palavras-chave: anarquismo, Estado, campo de concentração.
ABSTRACT
Study on the persecution of anarchists in Brazil, imprisonments
and executions planned in the beginning of the 20th century with
the creation of the concentration camp of Clevelândia in Oiapoque.
Analysis of the episode, its effects and the anarchist resistance
registered in documents, letters, journals and anarchist books,
presenting the outcome of political and historical researches on
the subject.
Keywords: anarchism, state, concentration camp.
Recebido para publicação em 1 de agosto de 2003
130
verve
a palavra é isto vulva
de cadela úvula
vibrante de som
migranas fantasmagorias
um gosto de escarlate
nas narinas
Haroldo de Campos
131
4
2003
medida e desmesura
marianne enckell *
marianne enckell*
No seu romance The Secret Agent (1907), Joseph
Conrad põe em cena um grupo de terroristas que pretendem desestabilizar o poder atingindo-o diretamente
no coração: farão ir pelos ares o observatório de
Greenwich, localização do meridiano zero desde 1891.
Quando Marcel Camus adapta o romance de Conrad para
a televisão francesa, em 1982, situa a ação em Paris: o
alvo dos revolucionários é agora o metro-padrão de platina, colocado, desde 1889, no Centro Internacional dos
Pesos e Medidas.
O observatório de Greenwich serve não só para calcular as latitudes e longitudes, mas é também ele que
nos “dá” a hora certa. Se a balança é o instrumento
metafórico da justiça, o metro-padrão e a hora certa serão, pelo contrário, instrumentos metafóricos da dominação.
* Pesquisadora anarquista, com vasta produção, e diretora do Centre
International de Recherches sur l’Anarchisme (CIRA).
verve, 4: 132-144, 2003
132
verve
Medida e desmesura
A unificação dos pesos e medidas e a sua determinação centralizada caminharam ao lado da emergência
dos poderes centralizados. Já no século XVI, por altura
da reunião dos Estados Gerais, Jean Bodin declarava:
“os legisladores, que recomendavam ao povo que tivesse apenas uma forma de pesos, balanças e medidas, que
além disso fosse justa, não entendiam simplesmente
dos artifícios que servem para a distinção das coisas do
comércio mas queriam que o mesmo se aplicasse aos
costumes e ações, que cada um deve compor, pesar e
medir bem, a fim de poder ser o seu próprio juiz... A moeda
é um dos direitos da soberania, e o mesmo se dirá da
medida e dos pesos”1.
O discurso dos filósofos e dos sábios do século das
Luzes introduz a noção de democracia: um homem, um
voto, deixa de haver arbítrio e desigualdade. É um discurso de progresso nas ciências, na razão, na sociedade
civil e no Estado — que propõe também a uniformização
das normas e dos instrumentos de medida. “Concebese bem, escreve a Enciclopédia, que os povos nunca se
ponham de acordo para tomarem concertadamente os
mesmos pesos e as mesmas medidas. Mas isso é facilmente possível num país submetido ao mesmo senhor”2.
Este discurso vai assim contribuir para a centralização
da dominação e para a modernização do Estado, bem
como para a generalização das relações mercantis e para
a codificação da economia enquanto ciência.
A revolução democrática traz consigo a igualdade
perante a lei, e a igualdade perante os pesos e as medidas. Mas os cadernos de agravos do Terceiro Estado, que
deploram o arbítrio e a injustiça das medidas fixadas
pelos senhores, limitam-se a reclamar medidas equitativas e únicas para cada cantão, contra o abuso das feudais; não desejam abandonar nem as suas varas nem
as suas léguas em benefício de um sistema novo sem
133
4
2003
referência histórica nem territorial. Por baixo das suas
aparências progressistas, o sistema métrico submete o
conjunto dos cidadãos à razão de Estado.
Nos tempos neolíticos dos caçadores e coletores, na
área da França, pensa-se que era necessário a cada
indivíduo um domínio de 200 hectares para assegurar a
sua subsistência. Um agricultor moderno pode subsistir com 0,2 hectares. Mas estaremos falando dos mesmos hectares e das mesmas medidas?
As antigas medidas agrárias não se referiam ao tempo de trabalho ou à quantidade das sementes; a unidade
variava segundo a qualidade do solo, do relevo, o gênero
de cultura, a estação estival ou invernosa. Do ponto de
vista técnico e econômico, um hectare não é igual a
outro, não podem ser adicionados. Os produtos da terra
eram também objeto de medidas diversas, quando se
tratava de calcular o imposto, ou de vender, ou de comprar; um cereal de má qualidade era medido em
alqueires maiores dos que se aplicavam, com o mesmo
nome, ao trigo panificável; para a compra media-se o
alqueire “cheio”; para a venda “raso”, e era assim que
se calculava o lucro.
O agricultor atual cobre anualmente talvez mais quilômetros do que o seu antepassado caçador; a densidade
de povoamento não só exigiu a intensificação das culturas e o desenvolvimento das técnicas como multiplicou
também os equipamentos coletores, as instalações de
utilidade pública, as trocas — queiramos ou não.
“O fato brutal é que a nossa civilização é hoje apreciada segundo a utilização dos instrumentos mecânicos,
porque as oportunidades de produção comercial e de exercício do poder se encontram aí (...). O que distingue realmente a técnica moderna do ponto de vista social é o
fato de tender a eliminar as distinções sociais. O seu
134
verve
Medida e desmesura
objetivo imediato é o trabalho efetivo. Os meios são a
estandardização, a tônica colocada no genérico e no típico. Em suma, um esforço confessado de economia”3.
Enumerar, medir, pesar, são antigas atividades humanas. E a diversidade dos modos de cálculo dos pesos e
das medidas, das divisões do tempo lunar ou solar não
constituíram durante muito tempo qualquer obstáculo
à compreensão ou à troca. Tácito ou Marco Polo, viajando nos confins do mundo conhecido, sabiam que os outros povos possuíam outras medidas, outras linguagens;
sabiam também que basta entendimento acerca da referência para garantir a compreensão.
O que é necessário é uma norma, uma regra. As próprias palavras o dizem. Tudo o que significa deve poder
circular: são precisos termos de referência comuns, uma
linguagem. Trata-se de algo que faz parte integrante da
história da consciência humana.
As medidas antigas partiam da medida do corpo (o
côvado, o palmo, o passo, a jornada) ou da do céu. Em
numerosos casos, a ordem da percepção é suficiente.
E eis que de súbito as medidas, corporais e próximas,
se tornam científicas, arbitrárias e cósmicas. Todos os
antigos padrões deixam de ser lícitos, todos os hábitos
perdem a validade. É a sociedade nova, nascida da Revolução, que com um traço rasura o mundo antigo: não é
de espantar que o calendário republicano e o sistema
métrico sejam introduzidos por decreto no mesmo dia,
18 Germinal do Ano III.
“O sistema métrico é um sistema universal, ou ainda de aspiração universalista, que se dirige ‘a todos os
tempos, a todos os povos’, contrariamente aos antigos
pesos e medidas estigmatizados pelos seus ‘particularismos’. A respectiva assimilação deveria, portanto, fazerse tão ‘naturalmente’ como o triunfo da razão sobre a
135
4
2003
ignorância; os obstáculos com que eventualmente deparasse o novo sistema só poderiam resultar da tenacidade dos preconceitos, ou do encarniçamento dos inimigos das Luzes e, por conseguinte, da Revolução”4.
Seriam assim medidos pela mesma vara os campos,
os tecidos e o trigo? A passagem à ordem conceitual, à
codificação universal torna a referência estranha ao
indivíduo. A medida métrica não “significa” nada, socialmente falando. É acompanhada pelo cálculo decimal,
que não é tão fácil de realizar quanto pode à primeira
vista parecer, depois de séculos e séculos de divisão por
dois e de novo por mais dois.
“Unidade da língua, unidade do governo, unidade contra os inimigos do exterior e do interior: havia três anos
que as pessoas estavam obcecadas pela unidade, aborreciam o arbítrio, sentiam-se universais”5.
Em fevereiro de 1812, o Império cede em parte aos
protestos e resistências populares e introduz uma reforma, o “compromisso napoleônico”: o sistema métrico
continua a ser obrigatório, mas tem-se o direito de utilizar no comércio de retalho o oitavo de hectolitro, o
“alqueire”, e o meio-quilo, a “libra”; esta divide-se em
dezesseis onças; um pé será igual a uma terça parte do
metro, uma toesa a dois metros. Estas unidades estão
próximas das medidas tradicionais e da vida cotidiana;
o fato de serem idênticas ou ligeiramente diferentes
das medidas antigas pouca importância tem para os consumidores: redescobre-se a ordem da percepção.
O fato de se medir com instrumentos atuais é, sem
dúvida, mais eficaz, mas perdeu em significação. “O que
é medir? Não será substituir ao objeto que medimos o
símbolo de um ato humano cuja simples repetição esgota o objeto?” — perguntava-se Paul Valéry6.
136
verve
Medida e desmesura
Perguntemo-nos como calcular um metro sem nos
apoiarmos na abertura dos braços, como calcular um
segundo sem por a mão no pulso...
Perguntemo-nos também se tudo isto será realmente necessário.
Os instrumentos e os códigos uniformes (o sistema
métrico, na ocorrência), determinados e controlados pelo
poder central, com um sentido unívoco, põem a questão
do limite entre a norma e a lei. Se considerarmos que a
lei é boa, que é natural, assente na razão, e universal,
então não se torna necessário estabelecer essa diferença. Mas as variações foram bem observadas pelos
que pretendiam fazer as leis para o bem do povo. E mais
ainda pela República, que unia o saber e o poder.
Em 1749, Guillaute, oficial da maréchaussée de Paris7, declarava cruamente: “deixará de haver motins,
tumultos, desordens e a segurança pública reinará se
houver o cuidado de regular o tempo e o espaço entre a
cidade e o campo através de uma ordenação severa do
trânsito, dos horários, dos alinhamentos e da sinalização; e se, por meio da normalização do espaço, toda a
cidade for tornada transparente, quer dizer familiar aos
olhos da polícia”8.
O Congresso Geográfico Internacional de 1881, reunido em Veneza, depois de ter escrupulosamente estudado a questão, decidira que o meridiano de base não
podia situar-se fora de um país politicamente estável.
Quando a Alemanha reconhece o meridiano de
Greenwich dez anos mais tarde, é graças aos esforços
do general Moltke para persuadir o Parlamento de que
surgiriam dificuldades insuperáveis em caso de
mobilização, dada a disparidade horária entre as regiões ou mesmo nos diversos pontos do território de uma
só região ou país.
137
4
2003
O desenvolvimento das investigações relativas ao
tempo conheceu também um salto qualitativo e produziu depois instrumentos de medida infinitamente mais
precisos. Deu-se em paralelo com o progresso dos transportes e das comunicações: cada vez mais precisão, cada
vez maior velocidade. E cada vez mais controle sobre a
produção e o trabalho humano. Na Rússia da NEP [Nova
Política Econômica, 1921] fundou-se uma associação a
favor do uso do relógio de pulso, destinada a ensinar aos
operários os benefícios da pontualidade9. Quarenta anos
mais tarde, o etnólogo francês Georges Balandier, um
progressista, um amigo do Terceiro Mundo, realiza uma
investigação sobre as noções africanas do tempo — a
semana de quatro ou de dez dias, o tempo ritmado pela
realização dos mercados, pelas estações, pelo clima.
A investigação é financiada pela Federação
Relojoeira da Suíça, que quer saber as possibilidades de
abrir um mercado africano de relógios de pulso.
Balandier conduz o seu trabalho igualmente com a idéia
de participar no processo de descolonização e de construção de Estados Modernos na África10. A introdução
dos relógios de pulso faz-se assim em proveito dos fabricantes, dos cobradores de impostos, dos empresários, dos
hábitos associados ao trabalho assalariado. A medida do
tempo é realmente aqui a medida do poder.
Foi em 1792 que alguns sábios se mobilizavam com
a intenção de medir uma volta ao mundo a fim de determinarem o comprimento do metro, no momento em que
a Europa se livrava do feudalismo e preparava a instalação dos seus Estados Modernos; na mesma época, os
camponeses queimavam os registros feudais e quebravam os instrumentos de medida da dízima. Haviam começado, alguns séculos antes, por quebrar os sinos das
igrejas.
138
verve
Medida e desmesura
Não é de admirar que o imaginário revolucionário
ataque os relógios, as medidas feudais, a moeda quando
o valor de um campo se mede pelo preço do seu produto,
quando o valor de troca se torna heterônomo, quando o
valor do tempo vivido se reduz ao salário por hora e aos
pagamentos da segurança social. Os sinos que dobram
por Deus e pelo Rei, pela dízima e pelos censos, pelo
preço do pão, tocam a sensibilidade do povo em movimento, do Ano Mil à Comuna de Paris.
A história das resistências talvez seja tão antiga como
a história da codificação das medidas. A medida deve
ser justa, sem dúvida, mas é também maldita: foi Caim
quem, segundo a lenda relatada por Flávio Josefo, cometeu “a invenção dos pesos e medidas, o que mudou a
inocente e generosa simplicidade em que a humanidade vivera até então numa existência dominada pelo logro...”11.
A medida é maldita porque é fonte de injustiça quando são os mais ricos e os mais fortes a determiná-la. “A
medida não é uma convenção, é sempre um valor. Nunca é indiferente, mas boa ou má”12. Os senhores de Berna do Cantão de Vaud recolhiam o dízimo em alqueires
cheios a transbordar; vendiam o trigo em recipientes
análogos, mas rasos. As medidas variam com a alta dos
preços por toda a França do século XVIII, a fim de aumentarem as rendas senhoriais.
O sistema métrico parece trazer solução para tais
injustiças e instaurar a eqüidade. Mas será ele possível
sem governo central, sem comércio e sem moeda, sem
submissão generalizada à dominação?
“A imposição da novidade pelos decretos e por uma
administração minuciosa era sentida como uma agressão cultural, nomeadamente nos campos. Nas regiões
‘libertadas’ pelos exércitos de conquista, que traziam o
139
4
2003
sistema métrico na ponta das baionetas, este era sentido como uma pura e simples violência. A Itália fornece-nos um exemplo impressionante do fato: quando os
exércitos franceses se retiravam, eram repostos os antigos pesos e medidas”13.
Para alguns anarquistas, o progresso social caminhava a par do progresso científico, e este só podia ter um
sentido.
No Congresso da Federação do Jura de 1873, James
Guillaume expõe os benefícios que implicam na sua
opinião as respostas objetivas que a estatística fornece
para os problemas econômicos e sociais: “a estatística
se tornará a base da ciência social; esses números
inexoráveis, e não esta ou aquela teoria elaborada por
pensadores de gabinete, substituirão no futuro os manuais de política e os catecismos religiosos; a estatística formará, enfim, o fio de Ariadne por meio do qual o
homem poderá avançar a passo seguro pelo gigantesco
Dédalo da organização do trabalho emancipado”14.
Uma vez que todos tomassem posse do saber, o poder
passaria a ser de todos.
Em 1924, a Enciclopédia anarquista apresenta o que
pensa serem as vantagens do sistema métrico: “os homens em sociedade utilizaram sucessivamente as medidas naturais; depois criaram padrões de medida; por
fim — num esforço por maior objetividade, simplicidade
e lógica — instauraram um sistema internacional de
medidas. (...) A lei seguiu, embora com bastante atraso,
os progressos das medidas resultantes dos progressos
industriais e comerciais, bem como dos acordos científicos internacionais realizados pelos sábios. A lei sobre
as unidades de medida sancionou as medidas já
adotadas, do mesmo modo que a lei sobre os sindicatos
140
verve
Medida e desmesura
operários sancionou as liberdades conquistadas pela
classe operária”15.
Doze anos mais tarde, a lei francesa sobre o trabalho
generalizava as férias pagas; o metro-padrão, o relógio e
a balança nem por isso eram postos de lado. A lei não se
limita a sancionar: codifica a razão de Estado, padroniza
as relações entre os cidadãos. A inteligência humana,
o auxílio mútuo e a liberdade têm outros códigos, que
bem poderiam ser os da desmesura.
Quando Elisée Reclus propunha que o meridiano de
referência fosse deslocado, ou suprimida a era cristã,
apresentava para isso boas razões. A Inglaterra orgulhava-se do meridiano de Greenwich, do qual se apropriara; um meridiano de base que passasse pelo estreito de Behring quase não tocaria qualquer terra habitada; não sendo de ninguém, será mais facilmente de
todos. O calendário cristão apresenta a particularidade
absurda de datar negativamente tudo o que se passa
antes de J.C.; num calendário que tomasse como ponto
zero um fenômeno universal (como um eclipse de sol)
não daria o primado a qualquer cultura, podendo ser
admitido por toda a gente. Se houver sistema universal, que não seja pelo menos nem hierárquico, nem
imperialista.
A última obra de Reclus, a sua geografia social do
planeta, devia chamar-se simplesmente O homem16. Por
mim, veria de bom grado um tratado de metrologia
intitular-se Os cinco sentidos.
Vivemos cada vez mais num meio ambiente medido
e amoedado. Todos os brinquedos eletrônicos têm um
relógio incorporado, os bilhetes de automóvel de tarifa
única são válidos durante sessenta minutos, aluga-se
um apartamento de 2 cômodos e cozinha, 40 m2, a velha
141
4
2003
piada: “O que é que pesa mais: um quilo de penas ou um
quilo de chumbo?” já não faz rir ninguém...
Estes padrões de utilização cotidiana já não têm qualquer medida comum nem com as percepções nem com
o senso comum. O metro-padrão, que durante um século e meio fora calculado de acordo com o comprimento
do meridiano e materializado num pedaço de platina,
tornou-se a seguir um múltiplo do comprimento de onda
da radiação do krypton 86, noção impalpável entre todas; desde 1983, define-se por uma fração do trajeto da
luz durante um segundo, o que é ainda menos concebível.
“O perigo é o do fosso que cresce à grande velocidade
entre conhecimento comum e conhecimento científico. Não se trata aqui das diferenças de natureza entre
as duas formas de conhecimento: falar da chuva e do
bom tempo com provérbios ou em termos de altas pressões, seria uma heterogeneidade fecunda — se aceitássemos a interação e o confronto entre os dois discursos. Enquanto se fala da mesma coisa, é agradável podermos falar dela em termos diversos. Mas o drama é o
da divergência entre os objetivos do conhecimento, o da
separação entre os objetos da ciência e os da vida cotidiana (...). Não há para a ciência papel cultural, tradição
a compartilhar. Não tem tradição e, em todo o caso, já
não poderia partilhá-la, doravante demasiado isolada,
tanto no tempo como no espaço do saber”17.
Não se trata evidentemente aqui de propor a abolição dos códigos e das regras, sob pena de com isso perdermos todo o sentido: não é através de uma operação
mágico-fenomenista que se anula com um traço a sociedade da dominação. Trata-se talvez de pôr em dúvida a
eqüidade do sistema métrico, essa “ironia da história”,
como lhe chama Witold Kula; de pôr em dúvida a igual-
142
verve
Medida e desmesura
dade perante os pesos e as medidas, como constituindo
um dos logros da democracia. No projeto anarquista, para
além da dominação e da economia, que medidas serão
as nossas, que desmesuras?
Notas
1
Jean Bodin. La République. 1576.
Encyclopédie, ou Dictionnaire raisoné des sciences des arts et des métiers, tomo X,
“Mesure”, (apud Witold Kula. Les mesures et les hommes. Paris, Maison des
Sciences de l´Homme, 1984)
2
3
Lewis Mumford. Technique et civilization. Paris, Seuil, 1950, p. 243.
Bronislaw Backo. “Rationaliser révolutionnairement” in Les mesures et l´histoire.
Paris, CNRS, 1984, p. 57.
4
5
Denis Guedj. La Méridienne. Paris, Seghers, 1987, p. 13.
6
Paul Valéry. Variétes, III, (apud Kula, op. cit.).
Corpo de segurança constituído por homens a cavalo, durante o Antigo Regime francês. (Nota do tradutor da versão portuguesa.)
7
8
Paul Virilio. Vitesse et politique. Paris, Galilée, 1977, p. 27.
9
Lewis Mumford, op. cit., p. 25.
10
Georges Balandier. Le temps et la montre en Afrique noire. Bienne, FUS, 1963.
11
Witold Kula, op cit, p. 9.
12
Idem, p.25.
13
Bronislaw Backo, op. cit., p. 59.
14
Bulletin de la Féderation Jurassienne. Sonvilier, 1.5., 1873.
15
Encyclopédie anarchiste.
Elisée Reclus. L´Homme et la Terre. Paris, 1905, tomo I, em particular p. 326327, e Nouvelle proposition pour la supression de l´ère chrétienne. Bruxelas, 1905.
16
17
Jean-Marc Lévy-Leblond. L´esprit de sel: science, culture, politique. Paris, Fayard,
1981, p. 92.
143
4
2003
RESUMO
O artigo problematiza a adoção do sistema métrico como padrão
universal, apontando as motivações generalizadoras e implicações
políticas desse processo. A unificação dos sistemas de medida
impõe um padrão arbitrário que escapa às percepções do senso
comum, anulando as referências anteriores que possuíam relação
direta com a natureza e com o próprio corpo humano.
Palavras-chave: Sistema métrico, universalismo, anarquismo.
ABSTRACT
The article discusses the adoption of the metric system as universal standard, presenting the universalistic motivations and political
implications of this process. The unification of the measure systems
imposes an arbitrary pattern that is not recognized by the common
sense and erases the previous references that were directly related
to nature and the human body.
Keywords: Metric System, universalism, anarchism.
Indicado para publicação em 3 de março de 2003
144
verve
Economia e política, problematizações libertárias
economia e política, problematizações
libertárias
natalia montebello *
Um pensar libertário
Era o ano de 1936. Rudolf Rocker, anarquista alemão,
estava nos Estados Unidos com Milly. Os dois percorreram lugares, fronteiras ideológicas, totalitarismos que
lhes eram intoleráveis. Práticas autoritárias reverberam na fé daqueles que acreditam na fatalidade de seus
lugares, de seus costumes e tradições: uma verdade que
fala por eles, e que se inscreve numa história que é
maior do que eles. Rudolf e Milly inventam espaços. Aos
Estados Unidos chegaram, não para fugir, mas para viver; nunca para abraçar uma autoridade mais democrática, mas para inventar a vida, pensando-a
libertariamente. Não se tratava de achar um lugar. O
lugar é sempre uma crença coletiva, uma miragem compartilhada que persiste nos olhos que a vêem. Se o lugar e seu tempo estão no pensar, o pensar está vivo quan* Mestre em Ciência Sociais pela PUC-SP e pesquisadora no Nu-Sol.
verve, 4: 145-161, 2003
145
4
2003
do demole convenções e ignora conveniências, e então
os espaços não têm forma, pois um aqui e agora evidencia vontades e encontros. Em 1936, Rocker publica seu
Nacionalismo e cultura1, escrito na Alemanha, e que,
como ele, não seria capturado por idéias, épocas ou geografias.
Nacionalismo e cultura faz de uma idéia um olhar sem
contemplações sobre o pensamento: pensa-se a sociedade apenas localmente, pois leis naturais, continuidades ou qualquer “última instância” escapam às invenções de sociabilidade, as práticas de liberdade e de autoridade que contam a nossa história. Para pensar o
nacionalismo e a cultura, para pensar politicamente,
Rocker abre mão, antes de mais nada, do determinismo
econômico, grande tentação do pensamento, para encontrar leis que expliquem a história. O determinismo
não é mais do que o exercício de um saber que se pretende verdade, que necessita dos efeitos da verdade para
assentar sua ordem e demarcar obediências e desvios.
Rocker está interessado num pensar que deve estar
atento, que deve demolir consensos e mostrar, onde há
verdade e práticas autoritárias. O principal determinismo que descreve a história é o determinismo econômico.
A política, ciência da regularidade, da preservação
das obediências, tem se servido deste determinismo,
ou melhor, da suposta preponderância dos motivos econômicos, para preservar hierarquias e privilégios, assim como submissões e demarcações das várias formas
da fé cívica, a crença irrestrita numa ordem que, ao ser
legítima, se entende por justa. A forma das relações econômicas, assim como a das relações políticas, não pode
responder a nenhum determinismo, a nenhuma lei da
natureza na história, pois a economia e a política têm
por força a vontade, e a vontade é sempre uma irrupção,
146
verve
Economia e política, problematizações libertárias
uma invenção totalmente dispensável. Se há na história alguma força que volte sempre, essa força é a vontade, a vontade de poder, diz Rocker. Não é o modo de produção que molda as formas políticas, assim como não
são os interesses econômicos os que determinam as
práticas de dominação. A política e a economia não se
separam, a não ser por subterfúgios do pensamento, para
efeitos de explicação, mergulhos em diversos marasmos
das profundidades ideológicas.
Práticas de dominação transformam-se em traços do
nacionalismo, ou em obediências que descrevem a cultura, quando são políticas, exercícios políticos de verdades universais, e esta política é sempre uma certa economia, uma certa religiosidade, uma sensação de
transcendência que não é uma coisa ou outra, mas tudo
ao mesmo tempo, pois a obediência universal só é possível se a fé na ordem preserva suas diversas produtividades, a despeito do cumprimento de promessas. Existe
o governo universal, e a obediência universal, não porque ele cumpra aquilo que o justifica, o bem-estar geral, ou tampouco porque aqueles que mais se favorecem de sua existência o preservem, contra a vontade
dos desfavorecidos: o governo existe porque cria os meios de seu sustento, e estes meios não são mais do que o
trabalho e a fé dos que a ele se submetem. O problema
da economia é um problema político, assim como a política é, também, um problema religioso. Ocupa-me aqui
este ponto de vista, entre a economia e a política, como
problematização da submissão ao poder centralizado.
O ponto de vista da economia como problema político
prescinde do determinismo econômico como lei da história, pois desta maneira não teríamos mais do que desvendar esta lei e, novamente, obedecer, acatando seus
desígnios pelas linhas desta ou daquela verdade. Pensar não é um mergulho, talvez um vôo, tanto faz, pensa-
147
4
2003
se como se vive, quando se está vivo, como diz Artaud,
com a força viva da fome. Em lugar de leis ao pensar, o
prazer. A vontade investe no prazer, potencializa-se nele
para se reinventar. É o prazer da dominação o que transforma a dominação em grande vontade de nossa história, ou na forma mais popular das sociabilidades que
inventamos. Este prazer não se exerce segundo o cálculo das vantagens econômicas.
“O mórbido desejo de submeter milhões de seres humanos a uma determinada vontade, e de comandar impérios inteiros por caminhos que parecem convenientes aos propósitos ocultos de pequenas minorias, manifesta-se, com freqüência, nos representantes típicos do
capitalismo moderno, com maior clareza do que as considerações puramente econômicas e as perspectivas de
maiores vantagens materiais. Não só com o desejo de
amontoar cada vez maiores benefícios esgotam-se atualmente as aspirações da oligarquia capitalista. Cada
um de seus representantes sabe que enorme poder dá a
propriedade de grandes riquezas ao indivíduo e à casta
a qual ele pertence. Esse conhecimento tem uma atração sedutora e engendra aquela consciência típica dos
amos cujas conseqüências são, com freqüência, mais
corruptoras que o próprio fato do monopolismo. Essa atitude espiritual do grand seigneur moderno, da grande
indústria ou das altas finanças, é o fator que repele toda
oposição e não tolera junto a si indivíduos com iguais
direitos”2.
No anarquismo, a problematização da liberdade percorre práticas e espaços que são, em uníssono, políticos
e econômicos. Assim como a liberdade não é uma questão de grau, não é, também, de departamentos. A liberdade não é política ou econômica, pois o governo não é
um mal necessário ou um assunto para determinados
casos. O governo sobre todos é, sempre, intolerável, e dá
148
verve
Economia e política, problematizações libertárias
no mesmo se ele se exerce segundo o princípio do
intervencionismo irrestrito ou apenas sobre a ordem
civil, como mero observador da ordem econômica. Mesmo porque a história, com maior eloqüência do que as
divagações teóricas, já mostrou que o Estado tem sempre um tamanho, que se mede pelo consentimento de
seus cidadãos, e tem sempre uma função, que é tanto
política como econômica, que é a de se preservar. A discussão a respeito das funções do Estado, se políticas,
econômicas ou ambas, é, para o anarquismo, uma discussão a respeito da distribuição de privilégios, nunca
uma discussão sobre a liberdade. A liberdade está no
pensar quando se abandonam as medidas e os lugares
certos. A liberdade política não se separa da liberdade
econômica, e nisto os anarquismos são claros: não se
trata de dois aspectos distantes ou anacrônicos entre
si. Enfim, a economia está entre as problematizações
políticas como unidade analítica pela qual é possível
radicalizar a crítica às práticas que preservam e projetam o exercício, consentido, da autoridade sobre todos.
Política e economia
A guerra abre caminho, passando dos campos de batalha, das trincheiras e linhas de frente, para o confronto em áreas urbanas, diante de alvos civis, até chegar à guerra sem campo, sem áreas nem tempos, sem
povo-alvo. A guerra segue, hoje, os ditames do catecismo terrorista: não há alvo, pois todos o são, não há estratégia, pois a surpresa é o elemento chave, não há
tempo de paz, pois a ameaça é constante. Ao Estado não
cabe mais ditar a disposição de seus exércitos, a menos
que estes pretendam estar em todo lugar, a qualquer
momento.
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4
2003
Exércitos não mais resguardam fronteiras nacionais
porque estas, salvo conhecidos casos anacrônicos, não
mais interessam. Hoje, muito mais evidente do que
antes, o poder se exerce de qualquer lugar. Entretanto,
a fórmula do Estado moderno é o resguardo da ordem
interna e a garantia da integridade nacional diante das
ameaças externas. O Estado existe para nos proteger
dos outros, compatriotas ou não. Nem o maior arsenal
pode, a todo momento, proteger seus cidadãos de ataques externos. E não é necessário arsenal nenhum para
se tornar uma ameaça ao Estado. Mesmo assim, na guerra, ou no conflito sempre iminente com o exterior, radica uma importante produtividade do Estado. O Estado
combate o perigo que ele mesmo cria, e recria, como
abnegado protetor dos inimigos que existem e estão por
vir.
Para seus cidadãos o Estado reserva outra grande
produtividade, já que o perigo, e talvez o maior perigo, é
o que surge entre suas fronteiras. Indivíduos perigosos
são a grande produtividade do Estado, pois este, seu criador, é o mesmo que os trata, os mata, os instrui, os
regenera. E da mesma maneira que com a ameaça externa, o Estado não nos garante a ordem interna. Em
suma, se a política deu ao Estado o monopólio da força
física e da violência não é pelo exercício desta força e
desta violência que ele persiste, mas pelo grande privilégio, o monopólio.
O poder centralizador persiste, não porque ele cumpra ou possa cumprir sua função política, a proteção dos
súditos. Persiste porque seu monopólio, como qualquer
monopólio, é infinitamente produtivo. Mas a forma política da centralização, o Estado nacional moderno, não é
determinada pelo modo e produção existente, o capitalismo, já que não se trata de resguardar privilégios econômicos, ou de cálculos de perdas e ganhos, mas de pro-
150
verve
Economia e política, problematizações libertárias
longar a ineficácia política em produtividades que escapam à última instância e são, simultaneamente, políticas e econômicas. O mesmo sistema capitalista que
ergue o Estado nacional é aquele que, hoje, ignora suas
fronteiras e reinventa espaços, não para subverter a
ordem do Estado, mas para, junto a ela, permitir novas
produtividades. Nomes são adjacências: não interessa
o sistema capitalista, interessa a produção. Ganha-se e
perde-se, tanto faz, o que importa é não parar, já que a
submissão, a obediência cordial, precisa de continuidade.
Assim, da mesma maneira, a fábrica, a vila industrial, o regime da produção capitalista, abre-se caminho, superando a localização das fileiras de máquinas,
dos espaços perfeitamente organizados, das classes sociais e seus conflitos, para a superprodutividade que
prescinde de tempos e de espaços, assim como de classes trabalhadoras e corpos ativos. Os grandes conglomerados econômicos dispensam a espacialidade tradicional do Estado, os horários de produção e lazer, a organização sindical, e elevam-se num não-tempo que é
sempre um agora em qualquer lugar. Aqui também não
é apenas a produtividade, mas a produtividade constante, a continuidade, que interessam, pois se produz em
nome do bem-estar geral, da satisfação de necessidades, mas não são estas as variáveis que importam; importa o sistema, o qual cabe ao Estado, o privilégio do
monopólio.
Bastante óbvio: o Estado deve evitar que os perigosos, indivíduos, grupos ou outros Estados, nos privem de
nossa liberdade civil ou nos matem, e, portanto, cabe a
ele o monopólio de fazê-lo; assim como deve evitar, também, que a nossa liberdade econômica seja limitada ou
anulada por outros, cabendo legitimamente a ele o poder do monopólio econômico. Não por acaso a grande
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2003
chancela intelectual do moderno e benevolente Estado
contemporâneo da democracia universal será o liberalismo que, no século XX, chamou o Estado para reconstruir o mundo pós Segunda Guerra, inventando pressupostos macroeconômicos como necessidade de governo
na liberdade econômica. A livre iniciativa deixou de ser
a base da perfectibilidade social para ceder espaço, em
moldes liberais, à política econômica que deve administrar os ciclos de crescimento e recessão próprios ao
sistema, agora não mais perfectível mas caótico. A equação liberal, que apostava na liberdade econômica como
medida da ação política do Estado, teve de recorrer à
desmesura do poder político para limitar a liberdade econômica.
Logo, tanto a política quanto a economia modernas
instauraram a medida, o lugar e o momento exatos, como
primeira condição da ordem centralizadora que hierarquicamente deveria localizar cada um em seu próprio
destino. O controle dos números, para o Estado, significa, modernamente, o controle — ou a encenação do controle, tanto faz — da obediência e da produtividade. Mas
os arquivos e as disposições oficiais parecem ter perdido o compasso, já que lugares não mais são visíveis segundo demarcações. Se o moderno Estado nacional perdeu seu campo de batalha e sua fábrica, isto não é seu
destino, mas sua força, que não mais podemos encontrar entre suas fronteiras e departamentos, mas que
nos envolve por um olhar à distância, via satélite, que
está muito mais próximo, porque se exerce de qualquer
lugar e a qualquer momento.
Até o século XX, lutava-se contra um inimigo, lutava-se contra uma cultura, uma religião, uma ideologia
ou uma classe social e seus privilégios. Lutava-se para
ocupar um lugar. Foi esta luta que deu ao Estado, sua
razão de ser. Nunca devemos esquecer que toda autori-
152
verve
Economia e política, problematizações libertárias
dade apenas se consolida quando é capaz de criar os problemas que deve resolver. Se, na política, o Estado teve
a tarefa de democratizar o mundo, no século XX teve, na
economia, a tarefa de humanizar a produção, regando a
direitos trabalhistas os privilégios da propriedade privada, outra de suas invenções. Apagaram-se sob gloriosas
concessões as mais dramáticas práticas da dominação
econômica, mas, com o mesmo gesto, o Estado tornouse o único agente da ordem macro-econômica. À Segunda Guerra sucedeu a reconstrução política e econômica do mundo, pela fórmula da universalização, que
reescreve as diferenças como pluralidade, a nova produtividade do Estado.
Determinismo econômico
Sabemos o quanto já se disse — e ainda se insiste
em dizer — a respeito da preponderância dos motivos
econômicos sobre a história ou sobre o presente das
sociedades — de todas, não importa onde ou quando.
Ouvimos, ainda, seguras afirmações de futuros, como
cálculos infalíveis baseados em variáveis econômicas.
Em raras ocasiões, entretanto, encontramos dissonâncias, ou melhor, invenções nesta música de fundo do
pensamento. As ocasiões são raras, mas interessam aos
ouvidos ainda não adormecidos. Para falar sobre elas,
gostaria, antes, de me deter nestas primeiras considerações.
O tema da preponderância das motivações econômicas se repete, invade o ar e parece deslizar-se, comodamente, entre aqueles que escutam. Mais ainda: foi com
louvor que o determinismo econômico deu ao pensar
sobre as sociedades aquele ar de ciência exata que, burocraticamente falando, sempre lhe caiu tão bem. Encontraremos principalmente no século XIX o cenário
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2003
onde serão ovacionadas, pela primeira vez, as grandes
divas destas ciências, repetindo, segundo esta ou aquela grande verdade, as diversas formas do determinismo
econômico. Darão o tom, justamente pela última instância da economia, da moderna maneira de aliar ao
poder político o sistema econômico.
No XIX, dois grandes pensamentos, o marxismo e o
liberalismo, debatem-se entre a política e a economia
para encontrar combinações, fórmulas, que orientem
as sociedades num único caminho que ambas teorias
juram existir. É como se a consagração do sistema capitalista, a industrialização, tivesse dado, não só às relações, mas também ao pensamento, o ritmo das engrenagens, a ordem, o enfileiramento, das máquinas, o
espaço da produção. E nisto não há nada de surpreendente, se consideramos que, tanto para o liberalismo
como para o marxismo, trata-se, em última instância, de
reformar, de manter a forma, não necessariamente do
sistema econômico — não é aqui que está o grande problema —, mas da velha e boa forma de sociabilidade baseada num centro de poder político, hierárquico e absoluto. Qual é, então, o tom?
Vejamos os caminhos. Para o liberalismo, as sociedades evoluíram de formas tribais, selvagens, de produção para a forma capitalista de produção, o sistema mais
perfeito, já que nele, segundo certas condições políticas, é possível o princípio do mais forte, uma seleção
natural que resguarda as diferenças econômicas na lei
do mais apto a gerar lucro. Pela preservação do direito
da propriedade privada, cabe ao Estado, mesmo que teoricamente mínimo, o resguardo desta e da vida, ou da
produtividade, de seus cidadãos3.
Desde suas primeiras encenações até hoje, o liberalismo concentra-se na discussão do grau, da intensida-
154
verve
Economia e política, problematizações libertárias
de, da ação do Estado. O caminho a seguir é a preservação do princípio da liberdade econômica, da livre iniciativa, sob tutela, é claro, do Estado e seus privilégios. Para
o marxismo, as sociedades evoluíram, igualmente, de
formas tribais, selvagens de produção para a forma capitalista de produção, que não é o sistema mais perfeito, já que consagra as diferenças de classes, o que significa que ainda resta um novo movimento da história,
um confronto de classes, que deverá resultar na anulação desta diferença pela abolição da propriedade privada
dos meios de produção. Neste processo, o sabemos muito bem, cabe ao Estado — do proletariado? — comandar a
última transição, para o totalitarismo comunista, este
sim o sistema mais perfeito. Trata-se da igualdade econômica, segundo a livre iniciativa do Estado, ou do partido, ou da elite pensante...
Malgrado a ausência de detalhes e considerações
importantes a que estas poucas linhas, por serem poucas, me levam, observemos os efeitos destas teorias. O
liberalismo não só não reduziu o âmbito do Estado, mas
tem servido como grande base teórica da ininterrupta
reformulação e prolongamento deste, atualizando como
parâmetros democráticos grandes dominações universais. Já o caminho marxista guarda valiosos troféus na
história que certificam a velha e certeira afirmação da
crítica radical: por meios autoritários alcançam-se resultados autoritários. Em suma, não são as relações
econômicas, mas os delírios políticos os que têm determinado uma grande continuidade sobre a qual se inscreve a história: a vontade de poder.
Entre o imperador, o rei, o presidente, o congresso, o
parlamento ou o partido não há evolução: o trono está
sempre ocupado. Assim como também não há evolução
entre o modo de produção de subsistência e o modo de
produção capitalista, ou comunista, sempre que, do tro-
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2003
no, se ditem os privilégios. Mas não há evolução, não só
porque alguma forma de centralismo nunca é preferível
a outra, mas, antes de mais nada, porque traçar uma
certa evolução onde há vida não é mais do que tentar
apagar a vida com verdades.
Crítica radical
O XIX é, também, o lugar de dissonâncias que até
hoje incomodam. Destoam, por vontade de afirmação,
criativamente, das questões de grau e dos caminhos
certos. Diversas problematizações anarquistas têm em
comum a urgência de pensar a economia como lugar
privilegiado de relações livres, sempre que destituídas
das intermediações dos idealismos políticos. Para os
anarquismos, o problema do Estado nunca foi um problema de grau ou de transição. Deste ponto de vista,
eles acionam uma reinvenção da política que é, ao uníssono, uma demolição, de suas instituições e seus diversos catecismos, e uma afirmação de vida e pensares
políticos, justamente porque afirmativos.
Nos anarquismos não há concessões para a política,
que realiza a mágica de dar a alguns a voz de muitos.
Desta forma, se o agir em nome de todos é sempre o
exercício da autoridade sobre todos — e não importa se
a ação é adornada pela benevolência sobre todos ou apenas apresentada como vontade do Senhor —, não se trata de administrar a ação do Estado, mas de inventar relações sem ele. Demolindo esta política, as relações econômicas são urgências que o pensar interessado deve
resolver, não segundo este ou aquele princípio
distributivo geral, sobre este ou aquele princípio de justiça geral, sobre esta ou aquela ideologia geral, mas sobre esta e aquela condições específicas, dissonantes,
surpreendentes. Daí que o federalismo, a descentrali-
156
verve
Economia e política, problematizações libertárias
zação política e econômica, seja, de diversas maneiras,
a grande interrupção, a grande interrogação, que os
anarquismos desenham livremente, ignorando a linha
reta e contínua da autoridade dos nossos vários senhores.
Como pensar afirmativo, o anarquismo não se interessa por determinismos. Determinar é sempre exercer uma autoridade universal e irrestrita, e não há diferença entre o pensamento e a vida — a menos que o
pensamento invista em aniquilá-la. Claro que ao abrir
mão dos determinismos ou das grandes leis das ciências, o anarquismo investe num pensar que requer, sempre, ser inventado; e sua vida, sua força, a força de sua
crítica e de sua afirmação está justamente em prescindir do amparo de qualquer música de fundo.
Novamente, não havia um caminho traçado entre o
modo de produção de subsistência e a produção de excedente econômico na forma capitalista, assim como não
há um cálculo de vantagens econômicas que orienta,
em última instância, os acontecimentos que supostamente movem a história. Nisto os anarquismos, como pensares insuportáveis, apresentam-se como a única crítica radical diante do moderno consenso da necessidade
da centralização política como duplo perfeito das relações econômicas.
Rocker e algumas sinalizações do século XX
Há uma vontade que se inscreve no percurso da nossa história como força que, em boa medida, o desenha:
a vontade de poder. Talvez seja o prazer da dominação o
que mais nos mova, o que melhor descreva a paisagem
dos nossos tempos — os que passaram e os que ainda
inventaremos. Move-nos, a vontade de poder ou o prazer
da dominação, como por um encantamento que é muito
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mais forte que aquele que podemos derivar de motivos
puramente econômicos.
A história, diz Rocker, move-se muito mais segundo
a vontade de poder do que segundo o cálculo de vantagens econômicas. Ver na história uma sequência de
determinismos econômicos não é mais do que solapar
uma história de violências, de dominações que, longe
de responderem a qualquer lei, apenas expressam escolhas, vontades, percursos que respondem a presentes, que não se inscrevem em paisagens inevitáveis.
Também em 1936 aparecerá a Teoria geral do emprego, do juro e da moeda4, de John Keynes. Aqui encontraremos as primeiras grandes linhas da macroeconomia,
ou a visão do sistema econômico que consagrará o papel do Estado como grande regulador de seus ciclos. Para
Keynes, o Estado precisa conhecer, reinventar suas cifras, prever e orientar, como uma série de cálculos5
entre os quais o sistema capitalista é capaz de gerar
crescimento, sempre que todos sejam devidamente remunerados. O Estado deverá manter o fluxo das trocas
do sistema capitalista em constante movimento e, de
preferência, expansão. Criam-se, assim, as instituições
que oferecem as cifras oficiais, apresentando os indicadores da política econômica a ser implementada a todo
momento, tanto dentro das fronteiras nacionais, como
no novo espaço das relações econômicas: o fluxo.
Rocker destruirá a noção do determinismo econômico na história, enquanto que Keynes determinará que
a história econômica se expressa pela competência do
Estado em administrar as caóticas relações capitalistas. Em 1936, também, transbordam, na Espanha, práticas libertárias que interrompem tanto a continuidade
política do Estado como a continuidade econômica do modo
de produção capitalista. A Guerra Civil Espanhola mos-
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Economia e política, problematizações libertárias
trou aos submissos olhos do planeta que a insurreição
política, longe de estar necessariamente acompanhada
da paralisação econômica, ou de tornar a economia função dos conflitos políticos, permite, quando afirmativa,
a reinvenção das relações econômicas segundo necessidades locais — prescindindo, diga-se de passagem, de
leis econômicas.
Keynes será uma chave crucial da reconstrução do
mundo na segunda metade do século XX, a Guerra Civil
Espanhola permanece como afirmação de liberdades
políticas e econômicas, silenciada pela escolha, deste
mundo — perfeitamente coerente à sua reconstrução
— pelo totalitarismo como “problema preferível” a ser
equacionado, e Rocker ainda nos diz que uma crítica
radical à política só é demolidora e afirmativa quando
subverte todos os privilégios, políticos e econômicos.
Invenções libertárias de sociabilidade são problemas
de difícil equacionamento por qualquer ordem centralizadora. Não serão afirmações macroeconômicas, que
preservam e prolongam a fé no Estado, as que conversarão com as várias irrupções de liberdade no marasmo
dos determinismos. O coletivismo, o cooperativismo, o
federalismo descentralizado, a autogestão, enfim, desenhos anarquistas de espaços sem delimitações, nunca
serão equacionados. Ao investir em invenções, o
anarquismo não é pluralista, mas insuportavelmente
surpreendente.
O anarquismo, diz Rocker em Anarcosindicalismo6, “(...)
é uma corrente intelectual bem definida na vida de nosso tempo, cujos partidários investem na abolição dos
monopólios econômicos e de todas as instituições coercitivas, tanto políticas quanto sociais, dentro da sociedade. Em lugar da atual ordem econômica capitalista,
os anarquistas desejam o livre estabelecimento de uma
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livre associação de todas as forças produtivas, fundada
no trabalho cooperativo, cujo único impulso seja a satisfação das necessidades de cada membro da sociedade, descartando no futuro todo interesse especial das
minorias privilegiadas na unidade social. Em lugar das
atuais organizações do Estado, com seu inerte mecanismo de instituições políticas e burocráticas, os anarquistas querem que seja organizada uma federação de
comunidades livres, que se unam umas às outras por
interesses sociais e econômicos comuns e que solucionem todos os seus assuntos por mútuo acordo e livre
contrato”7.
Notas
1
Rudolf Rocker. Nacionalismo y cultura. Buenos Aires, Americalee, s/d.
2
Idem, p. 32.
Observemos, entretanto, que, para o Estado, uma vida produtiva, economicamente ativa, ou potencialmente produtiva, não tem valor algum, a não ser
como resultado estatístico. De outra forma, o quanto vale, ou produz, uma
vida vadia? Não digo, é claro, que encontremos respostas em nossos bons e
justos textos oficiais, mas certamente as encontraremos em todas as instituições, instâncias e práticas que do Estado reverberam e que repetem seu princípio de ordem e progresso — do sistema jurídico e penal à tal da opinião pública,
da escola à família, passando por qualquer instituição de observação e controle,
ou seja, por qualquer reclusão, entre quatro paredes ou a céu aberto. A moral do
Estado é eloqüente.
3
John Maynard Keynes. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo,
Abril Cultural, 1983.
4
No seu conto Tigres azuis, Borges nos lembra, ao narrar a história de pedras
que subvertem as matemáticas, que foram as pedras gregas que legaram à
humanidade, como primeiros algarismos, a palavra “cálculo”. O cálculo, aqui,
é a pedra. Cf. Jorge Luis Borges. La memoria de Shakespeare. Madrid, Alianza
Editorial, 1997.
5
6
Rudolf Rocker. Anarcosindicalismo: teoría y práctica. Barcelona, Ediciones Picazo,
1978.
7
Idem, p. 5.
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verve
Economia e política, problematizações libertárias
RESUMO
Do ponto de vista libertário, a economia e a política são
problematizadas investindo em afirmações que prescindem de centralizações e determinismos. A atualização do Estado capitalista
no século XX é interrogada com pertinência pela crítica anarquista
de Rudolf Rocker.
Palavras-chave: Estado, anarquismo, Rudolf Rocker.
ABSTRACT
From a libertarian perspective, economy and politics are discussed
in such way as to avoid centralization and determinisms. The
revision of the capitalist state in the 20th century is appropriately
questioned by the anarchist criticism of Rudolf Rocker.
Keywords: state, anarchism, Rudolf Rocker.
Recebido para publicação em 17 de agosto de 2003
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Haroldo de Campos
quando se vive sob a espØcie da viagem o que importa nªo Ø a viagem mas o come o da
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2003
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Infiltrações burguesas na doutrina socialista
infiltrações burguesas na doutrina
socialista1
errico malatesta*
Já faz um certo tempo que os socialistas reformistas
puseram-se a modificar não somente a tática, mas também as teorias do socialismo, para justificar todas as
suas renúncias. Um certo número de idéias e preconceitos de ordem moral, política e econômica, que são
em sua essência burgueses, infiltram-se assim, pouco
a pouco, na doutrina socialista.
A gravidade deste fenômeno será facilmente compreendida se se considerar que ele toca não somente facções mais moderadas do partido socialista democrata,
mas que ele começa a se manifestar igualmente nas
outras facções que se proclamam revolucionárias e intransigentes.
Os jornais, por exemplo, nos informam que mesmo o
bem conhecido socialista italiano intransigente Arturo
Labriola, defendeu em uma de suas últimas conferências que “o problema mais urgente que se deve resolver
não é o da distribuição da riqueza, mas o da organização
racional da produção”.
verve, 4: 163-169, 2003
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2003
É um erro sobre o qual é importante ater-se, porque
ele compromete as próprias bases da doutrina socialista, permitindo deduzir logicamente conclusões que nada
têm de socialistas.
Os conservadores de todas as escolas sustentam,
desde Malthus, que a miséria não é devida à repartição
injusta da riqueza ou à insuficiência da indústria humana, mas ao fato de que a produção é limitada.
Em razão de sua origem, historicamente, e em razão
de sua própria essência, o socialismo é a negação desta
tese. Ele é a afirmação de que o problema social é antes
de mais nada uma questão de justiça social, uma questão de distribuição. Mas desde que os socialistas se puseram a pactuar com o poder e com as classes proprietárias, isto é, desde que deixaram de ser socialistas,
sustentam também as teses dos conservadores, sob uma
forma um pouco renovada.
Se a tese adotada por Labriola fosse verdadeira, o
antagonismo entre patrões e operários não seria mais
irredutível, pois a solução seria o interesse comum dos
assalariados e dos patrões em aumentar a quantidade
de produtos. Em outros termos, o socialismo seria falso,
pelo menos como meio imediato para resolver a questão social. E, de fato, já vimos Turati, sustentar que os
operários devem tomar o cuidado de, durante as greves,
não arruinar o patrão nem sua empresa; antes de Turati,
Ferri também dizia que os socialistas devem favorecer
o enriquecimento dos burgueses. Por sinal, todos os representantes mais notórios do socialismo democrático
italiano nos repisam continuamente que seria vantajoso para os proletários italianos serem governados por
uma burguesia rica, culta, “moderna”.
Fazer com que o proletariado consciente abandone o
caminho da luta de classes e lançá-lo no impasse do
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verve
Infiltrações burguesas na doutrina socialista
reformismo burguês é o objetivo da nova propaganda dos
socialistas, e esta propaganda é ainda mais perigosa por
apoiar-se em um fato real: os produtos não existem atualmente em quantidade suficiente para satisfazer as
necessidades de todos, mesmo em limites restritos. Após
ter impressionado as pessoas demonstrando-lhes este
fato, eles fazem do que é o efeito a causa, graças a um
artifício enganador, e tiram disso as conclusões errôneas que são úteis ao objetivo que eles se propõem.
É preciso revelar abertamente seus procedimentos.
Não há nenhuma dúvida que a produção em geral,
particularmente no que concerne aos artigos de primeira
necessidade, é imperfeita, insuficiente, ridiculamente
limitada em relação ao que ela poderia e ao que deveria
ser.
Aquele que tem fome e que passa diante das lojas
repleta de víveres, aquele a quem tudo falta e vê como
os comerciantes têm dificuldade em vender as mercadorias, muito abundantes em relação à demanda, podem pensar que há abundância de bens para todo mundo e falta somente dinheiro para comprá-los. Enganados
pelos números mais ou menos cabalísticos das estatísticas e talvez por disporem de um argumento surpreendente e penetrante para sua propaganda, certos anarquistas sustentaram que a produção efetiva ultrapassa
em muito as necessidades racionais e que bastaria que
o povo se tornasse senhor dela para que todo mundo
pudesse viver na abundância. As pretensas crises de
superprodução (isto é, o trabalho que falta porque os patrões não conseguem vender os produtos acumulados)
servem com freqüência para confirmar no espírito da
maioria esta impressão superficial.
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Mas todos aqueles que sabem raciocinar um pouco
friamente não tardam a perceber que esta pretensa riqueza nada mais é senão uma ilusão.
O que a grande massa da população consome não é
suficiente para cobrir as necessidades mais elementares. A maioria dos homens é mal nutrida, mal alojada,
mal vestida e lhe falta quase tudo; muitos morrem de
fome e de frio. Se se produzisse realmente o necessário
para satisfazer todo mundo, onde se acumularia o excedente anual da produção, visto que a maioria não consome sequer o mínimo? E os capitalistas, que fazem produzir para vender e para extrair lucro, seriam, portanto,
bastante loucos para continuarem a fazer o que eles não
poderiam vender?
Pode acontecer que se produza mais do que é necessário em um dado momento, por causa da concorrência
que fazem os capitalistas e da ignorância em que cada
um deles se encontra quanto à quantidade que os outros podem lançar no mercado em um dado momento;
por causa do espírito de especulação, da sede do ganho,
do erro nas previsões. E isto particularmente na indústria manufatureira, cujas capacidades de produção são
as mais elásticas. Mas, então, a crise não tarda a se
produzir, a suspensão do trabalho vem restabelecer o
equilíbrio e, em definitivo, normalmente só o que é consumido é produzido. É o consumo que determina a produção, não o inverso.
Além disso, no que diz respeito aos produtos alimentícios, que têm uma importância vital, basta ver as terríveis conseqüências, nos países agrícolas, de uma colheita insuficiente para viver de um ano para o outro,
se bem que a maioria dos homens esteja mal alimentada.
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verve
Infiltrações burguesas na doutrina socialista
Se o conjunto da riqueza produzida todos os anos —
da qual mais da metade é hoje absorvida por um pequeno número de capitalistas — fosse repartida entre todos
de modo eqüitativo, as condições dos trabalhadores não
seriam notavelmente melhoradas. A parte que lhes caberia não seria aumentada por coisas indispensáveis,
mas por uma grande quantidade de coisas sem importância, praticamente inúteis e, às vezes, nocivas. Não
haveria mudança sensível no que concerne ao pão, à
carne, à moradia, ao vestuário e a outros objetos de primeira necessidade, mesmo que a parte consumida ou
desperdiçada pelos ricos fosse repartida entre todos.
Estamos, portanto, de acordo: a produção é insuficiente e é preciso aumentá-la.
Mas por que não se produz mais atualmente? Por que
há tantas terras que não são cultivadas ou o são mal?
Por que tantas máquinas e tantos braços não empregados? Por que não se constróem casas para todo mundo,
por que não se fabrica em quantidade suficiente para
vestir todos os mal vestidos quando os materiais abundam, assim como os homens capazes e impacientes em
utilizá-los?
A razão é bem clara, e nenhum daqueles que se dizem socialistas deveria ignorá-la. É porque os meios de
produção, a terra, as matérias-primas, os instrumentos
de trabalho não pertencem àqueles que necessitam dos
produtos. Eles constituem a propriedade privada de um
pequeno número de pessoas que deles se servem para
fazer os outros trabalharem em proveito delas mesmas,
na medida e na forma que melhor corresponde aos interesses próprios desta minoria.
Não é porque ele é um ser humano que o homem
tem, atualmente, o direito a uma parte dos produtos:
ele só come e só vive se o capitalista, o proprietário dos
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4
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instrumentos de produção, obtém seu lucro explorando
seu trabalho.
Ora, o capitalista não tem interesse em desenvolver
a produção para além de um certo limite: ele tem mesmo interesse em manter constantemente uma certa
escassez. Em outras palavras, ele faz produzir enquanto
pode revender o produto mais caro do que seu custo de
produção; e aumenta sua produção enquanto seus lucros aumentarem paralelamente. Mas tão logo ele perceba que, para vender, é-lhe necessário vender mais
barato e que a abundância levaria a uma diminuição
absoluta de seu lucro, ele pára a produção e chega até
mesmo — assim como há mil exemplos disso — a destruir uma parte dos produtos disponíveis para aumentar o valor dos produtos restantes.
Assim, para aumentar a produção de modo a que ela
possa satisfazer as necessidades de todos, é preciso que
ela esteja orientada em função destas necessidades e
não em função do lucro de um pequeno número somente. Todos devem ter o direito de usufruir destes produtos; todos devem ter o direito de utilizar os meios de
produção.
Se todos aqueles que têm fome tivessem o direito de
pegar o pão do qual precisam, seria necessário produzilo para todo mundo e, a partir daí, as terras seriam cultivadas e a velha rotina substituída por métodos de cultura mais produtivos. Mas se, como é o caso atualmente, as riquezas existentes em meios de produção e em
produtos acumulados pertencem a uma classe particular, e se esta classe, à qual nada falta, pode fazer fuzilar
aqueles que gritam muito alto porque têm fome, então
a produção permanecerá mantida em um limite fixado
pelos interesses dos capitalistas.
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verve
Infiltrações burguesas na doutrina socialista
Conclusão: é na distribuição restrita que é preciso
procurar a causa atual da falta de produção, é esta causa que é preciso destruir para eliminar seu efeito.
Para que se produza em quantidade suficiente para
todos, é necessário que todos tenham direito a um consumo suficiente.
Assim se acha demonstrada a tese socialista: o problema da miséria é antes de mais nada um
problema
de
max
nettlau
distribuição.
Nota
Texto originalmente publicado no jornal Il Pensiero, n º 10 em 16 de maio de
1905; extraído do livro “Anarquistas, Socialistas e Comunistas”, publicado
pela Ed. Cortez, 1989, edição esgotada. Tradução de Plínio A. Coêlho.
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Indicado para publicação em 11 de novembro de 2002
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em memória de errico malatesta1
max nettlau*
De 1871 a 1889
Ao meio-dia da sexta-feira, 22 de julho de 1932, morreu em Roma, Errico Malatesta. A morte o libertou de
uma cruel doença, mas também de uma refinada privação de liberdade que somente os ex-socialistas autoritários sabem impor, com o desejo de inutilizar suas vítimas libertárias a partir do isolamento.
Lênin isolou Kropotkin em um povoado e soube evitar que fosse se recompor em um clima propício.
Mussolini, ex-socialista, isolou Malatesta em sua própria casa, e quando o velho tentou refrescar-se no mar,
uma perseguição policialesca o forçou em poucos dias a
voltar à cidade calorenta, ardente. Outros socialistas
elegeram o deserto como residência aos seus adversá* Historiador anarquista e destacado arquivista do movimento. Publicou uma
das mais importantes biografias de Errico Malatesta. Sua extensa coleção de
livros, periódicos e documentos encontra-se hoje no International Institute of
Social History, Amsterdã.
verve, 4: 170-185, 2003
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verve
Em memória de Errico Malatesta
rios anarquistas, tornando praticamente impossível que
os doentes pudessem encontrar algum alívio. O calabouço do tirano era preferível à crueldade hipócrita do
isolamento. Além do mais, os socialistas autoritários
de todos os tempos conservam os calabouços para povoálos com outras vítimas.
Malatesta nasceu em 4 de dezembro de 18532, e ultrapassou a idade de Kropotkin (1842-1921) em alguns
meses, cedendo a vida de ambos à mesma doença, acentuada e inflamada no curso de uma longa luta contra a
morte. O clima da Inglaterra, úmido, debilitou provavelmente a saúde dos dois homens. Kropotkin estava acostumado ao frio seco da Rússia, Malatesta ao clima ameno italiano. Malatesta foi também vítima do trabalho.
Fazia instalações elétricas e teve freqüentemente que
trabalhar em condições muito perigosas aos pulmões
combalidos. Precisou colocar seu corpo em contato com
as pedras frias, entre correntes de ar que lhe trouxeram uma pneumonia em certa ocasião, quase o levando à morte. Seguiu com uma dilatação nos brônquios
que o fez precaver-se do tempo, sobretudo no inverno e
a primavera. No verão de 1931, que foi extremamente
quente, teve de afastar-se do mar, e um companheiro
americano que o visitou pôde informar que o velho estava muito mal. Meses depois enfrentou uma grave doença em sua companheira. Quando, ao findar o ano, fortaleceu-se com a melhora de sua companheira, pôde
gozar algumas semanas de relativa saúde, mas em abril
se viu atacado pela mesma doença que venceu sua vida.
Na última carta que recebi de Malatesta (31 de maio),
ele escreve: “Sim, meu amigo, estou bastante mal e longe de sarar. Depois de uma má temporada, tive uma
bronquite que me colocou a um passo da morte. Não estou
bem, talvez não seja ainda um convalescente, melhoro
lentamente e talvez possa salvar a vida de novo”.
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O pior ocorreu entre 15 e 20 de abril, e a partir de
então, passou a respirar com auxílio de oxigênio. O coração estava debilitado como conseqüência dos constantes esforços e da alimentação insuficiente. Lutou até o
último instante contra a morte. Bertoni me mostrou
uma carta de Malatesta recebida em 16 de maio: “Passo
uma parte do dia meio dormindo, como um animal. Geralmente não consigo descansar à noite. Vivo uma tragédia íntima, a do afeto que recebo dos companheiros e
o tormento de não merecer isto. Há algo pior, é a consciência que tenho de não poder fazer nada. Francamente,
quando se sonhou tanto e se esperou por tanto, é doloroso morrer como eu, às vésperas de acontecimentos tão
desejados”.
Ao período de abatimento e, sem dúvida, de esgotamento e debilidade física, seguiu a melhora que se refere a carta de 31 de maio. A melhora se manifesta também por uma avidez por notícias, verdadeira sede de estar
junto dos acontecimentos. Era muito difícil agradar a
Malatesta, tendo em vista que não se podia falar com
liberdade, temendo por violação ou seqüestro de correspondência. O mesmo ocorria com os impressos. Creio
que não reagia lendo a correspondência recebida em
tão precárias condições. Eu não me atreveria a completar a informação, supondo que demoraria a se curar,
ainda que não deixasse por esperar por isso. Ignoro, no
entanto, as circunstâncias concretas de sua morte: não
sei se faleceu como conseqüência da debilidade de seu
coração, por falta de forças para reagir, ou ainda se foi
vítima de uma recaída ou ataque violento. O fato é que
nos deixa, e como esteve sempre conosco e foi um militante desde 1871, o sentimento é maior na proporção à
proximidade que teve de nós em nossos anos de vida
anarquista.
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Em memória de Errico Malatesta
Malatesta nasceu de pais da pequena burguesia, ocupados com o crescimento de seus negócios. Morreram
cedo, depois de matricularem Errico na educação do Liceu. Tinha apenas dezessete anos quando começou
seus estudos de medicina na Universidade de Nápoles.
Nesta cidade, viveu, parece, sob a tutela de uma tia idosa que o deixou livre para que se desenvolvesse e instruísse, seguindo suas próprias iniciativas. Na infância, contemplou a ruína do absolutismo dos Bourbons
em 1860: uma parte da epopéia de Garibaldi se desenvolveu perto do povoado natal de Malatesta, Santa Maria
Capua Vetere, na fortaleza de Cápua, assim como a luta
de Volturno, em 1860. Os garibaldinos e o exército piamontês se confundiram. Mazzini e pouco depois Garibaldi cederam e entrou o rei Victor Manuel. Malograram as esperanças republicanas, impondo-se o novo
governamentalismo.
Como não haviam conseguido os objetivos nacionais
da época (Roma e Veneza), seguiu até 1870 uma década
de conspirações, insurreições, intrigas diplomáticas, nas
quais se misturava o fantasma da guerra. Republicanos
e partidos populares podiam ser úteis, entretanto, à
monarquia, e foram por ela manipulados, controlados e
submetidos à paralisia, sem permitir a realização de
seus próprios designos. Tudo parecia viver como possibilidade, em potência. Agitadores e propagandistas não
provocaram muitos inconvenientes. A fachada era liberal. Como o Papa dispunha de Roma e do Estado Papal, o
anticlericalismo foi a religião oficial da dinastia.
No Liceu de Nápoles, pôde observar o adolescente
Malatesta todas estas peculiaridades, mas seu espírito
permanecia na antiguidade: o republicanismo austero
dos heróis históricos da Grécia e de Roma. Este espírito
clássico fascinou Malatesta.
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Sonhava com a República da igualdade, do tiranicídio,
do tribunal popular, na barricada rebelde. O próprio
Malatesta descreve estes sentimentos de 1868 em um
de seus raros artigos introspectivos, de 1884.
Já fora do Liceu, sendo estudante de Medicina, participou de manifestações populares, e para mostrá-lo com
suas próprias palavras, transcrevemos as seguintes:
“Como republicano, contemplei pela primeira vez o interior de um cárcere da monarquia”. Sei por uma carta
do próprio Malatesta, que pretendeu entrar em uma organização mazziniana secreta. Os veteranos da mesma, que observavam a conduta do candidato durante
certo tempo com o objetivo de aceitar ou não a admissão, informaram, muito justamente, que Malatesta tinha um espírito independente, propício à desobediência, pouco disposto a submeter-se à rigorosa disciplina
intelectual e moral que Mazzini impunha aos homens
de sua confiança. Como conseqüência de tudo isso, foi
negada a candidatura do jovem Malatesta.
Sobreviveu à Comuna de Paris, de março a maio de
1871. Foi um acontecimento que entusiasmou Malatesta, a ele introduzido pelo advogado Carmelo Palladino,
homem generoso, situado no ambiente do grupo de
Bakunin, no ambiente da Internacional, com suas lutas entre autoritários e anti-autoritários, luta que crescia naquele momento na organização. Ingressou à seção de Nápoles quando tinha dezessete anos e alguns
meses, contribuindo para a preponderância que teve,
em 1871, a seção fundada em 1869.
A comuna acabou afogada no sangue do povo; Bakunin
lutara na Itália contra Mazzini, o inimigo da Comuna;
brigava com Marx e Engels em Londres, instigadores de
Cafiero, que obedecia então à sua influência, para malograr e paralisar a obra de Bakunin (feito que corres-
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Em memória de Errico Malatesta
ponde à viagem de Lafargue à Espanha um pouco depois). As perseguições das autoridades e a dissolução da
seção em agosto, imprimiram uma vida agitada à seção
de Nápoles em 1871. Foi Malatesta um dos membros
mais ativos. Congregou estudantes e trabalhadores na
seção, soube abrir os olhos de Cafiero, que passou a ser
seu amigo. Sabe-se que Cafiero, depois de visitar
Bakunin em Locarno em 1872, entregou-se totalmente
à causa anarquista. Malatesta se complicou durante a
perseguição contra os militantes da seção, e quando esta
voltou a reconstituir-se mais ou menos ilegalmente com
o nome de Federação dos Trabalhadores Napolitanos no
inverno de 1871-72, Malatesta atuou como secretário
federal e redator do programa onde se incluem habilmente os princípios da Internacional de 1864 e as idéias anarquistas de Bakunin. É o primeiro trabalho intelectual de Malatesta que se conserva. A atividade em
favor da Federação da zona de Nápoles continuou em
1872. Não tomou parte da Conferência Constituinte da
Federação Italiana que se reuniu em Rímini em agosto, que rompeu com o Conselho Geral de Londres, que o
nomeou secretário da seção de estatística, a qual tinha
um objeto mais importante do que indica o modesto
nome.
Em setembro foi a Zurique e contatou Bakunin e
outros delegados italianos de convenções anti-autoritárias. Em Zurique, encontrou os delegados espanhóis que
voltavam do Congresso de Haia: Farga Pellicer, Alerini,
Morago e Marselau. Em diferentes reuniões com
Bakunin, constituíram a Aliança dos Revolucionários
Socialistas, grupo internacional secreto. Depois de 1871,
Malatesta lia normalmente as publicações da Internacional espanhola como La Federación de Barcelona, e
outros. Com certeza vi exemplares encaminhados a
Malatesta em uma coleção de Roma, em 1903. Em Zuri-
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que, Malatesta conheceu militantes destacados. Com
eles, Bakunin e outros camaradas, assistiu ao Congresso anti-autoritário de Saint-Imier (Jura), que atacou
profundamente a facção marxista da Internacional. Não
queria viver como emigrado e voltou a Nápoles para continuar suas campanhas de propaganda.
Ao dirigir-se à Bolonha para assistir ao Congresso
italiano, foi detido, permanecendo cinqüenta e quatro
dias na prisão. Foi depois a Locarno, encontrou Bakunin,
a quem propôs a idéia de mudar-se para Barcelona tendo em vista os acontecimentos esperados e que ocorreram, efetivamente, pouco tempo depois, em junho, em
Sanlúcar de Barrameda, onde estava Morago; em Alcoy,
onde estava a Comissão Federal, em Barcelona com a
intervenção de J. García Viñas, Paul Brousse e outros.
Uma viagem de Bakunin e Malatesta a Barcelona tinha
que ser necessariamente secreta e exigia cuidadosa preparação e meios. Para pactuar com Malatesta, Cafiero
foi rapidamente a Barletta (Apulia), mas o prenderam,
sendo libertado seis meses depois sem ser processado.
A Internacional foi perseguida na Itália por arbitrários procedimentos em 1873, o que gerou mais de uma
insurreição de caráter geral em 1874. Não se tratava de
uma insurreição isolada; tratava-se de incorporar aos
garibaldinos que ainda atuavam e aos mazzinistas avançados, supondo que podiam chegar a uma subversão como
conseqüência das revoltas locais de origem social, tais
como falta de alimentos, greves, descontentamento dos
camponeses, etc. Malatesta se inteirou do plano ao sair
da prisão e se dedicou a trabalhar nisso de Nápoles à
Sicília. Houve quem cometesse erros, contudo Malatesta
fez tudo o que pôde para conseguir armamentos e preparar a ação. Nem ali todos atenderam à convocação e o
que se fez em Apulia do 10 ao 14 ou 15 de agosto de
1874, próximo ao Castelo do Monte, teve poucas reper-
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Em memória de Errico Malatesta
cussões. Tratava-se de um desafio ao Estado e ao sistema atual, ataque este que não pode ser esquecido.
Malatesta, vendo que estavam todos presos, dirigiu-se a
Locarno sendo preso em Pistoia, antes de chegar. Seguiu-se um enorme processo contra ele e outros companheiros em Trani (Apulia) em agosto de 1875. A atitude dos processados atraiu a simpatia de todos, sendo
absolvidos e saudados como heróis vitoriosos. Malatesta
se mudou para Lugano, onde viu Bakunin pela última
vez, e discutiu com Cafiero em Locarno a reorganização
do movimento. Não demorou a fazer sua primeira viagem à Espanha, visitando Morago em Madri e Alerini
na prisão em Cádiz. Queria promover a fuga deste último, o qual se negou por acreditar estar próximo da liberdade legal.
Durante o inverno de 1875-76, Malatesta empenhouse ativamente na propaganda em Nápoles. Foi então que
Merlino (1856-1930), seu companheiro do Liceu, entrou
no movimento, atraído ao campo das idéias, sem intervenção de Malatesta, depois de trabalhar como advogado no escritório de Gambuzzi, ex-companheiro de
Bakunin. Uma reunião em Roma (março de 1876) prepara a organização da Internacional. Malatesta foi um
dos que participou, e quem se viu obrigado a voltar a
Nápoles. Queria defender os sérvios na guerra contra a
Turquia, mas foi detido duas vezes, na Áustria e na
Hungria, e devolvido pela polícia à Itália. Interessavase pela causa das nacionalidades oprimidas, sentindose obrigado a interessar-se por aquele prelúdio da grande guerra russo-turca, como se tratasse de uma questão de honra. Em 1874, em Apulia, não chegou realmente
a abater-se, e sentia uma espécie de rivalidade vendo
que os republicanos garibaldinos lutavam como voluntários. Os internacionalistas desejavam mostrar igual
espírito militar combativo.
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Ao regressar à Itália, começou a relacionar-se com
os companheiros de Florença, e passou certo tempo em
Nápoles com Cafiero e Covelli. Concordavam na teoria,
sobre passarem do coletivismo ao comunismo anarquista, determinação a que chegaram os primeiros na Itália, discutindo e tratando de reorganizar a Internacional no Congresso de outubro em Florença, para empregar toda a força em um movimento revolucionário de
caráter geral, social e anarquista, desta vez sem a cooperação dos republicanos.
Contavam com o descontentamento social do povo
urbano e camponês e resolveram começar pelas meridionais italianas, com a intenção de que a revolução
poderia ter alguma efetividade antes de ser combatida.
Durante este período, supunha-se que os trabalhadores
do campo e da cidade se uniriam contra as forças governamentais antes que essas pudessem controlar a situação. A traição de um camponês que tinha influência
em uma localidade, e com o qual contavam, comprometeu os conjurados, que se viram obrigados a antecipar o
movimento, começando em abril e não em maio. Fazia
frio; nas montanhas de Nápoles havia neve, e os revolucionários foram abatidos pelo frio e pelas privações. Cercados pelo exército, 23 revolucionários tiveram que se
render, entre os quais estavam Cafiero e Malatesta. Era
a noite de 11 para 12 de abril, em uma granja isolada
cujo proprietário os traiu, delatando-os aos soldados.
Esteve preso muito tempo e quando da morte do rei, grande parte dos supostos delituosos foram anistiados, sendo julgados e absolvidos os restantes em Benevento em
agosto de 1878. A população ficou extraordinariamente
impressionada, ao constatar a dignidade e integridade
dos prisioneiros.
Com freqüência se reprovou os anarquistas dizendo
que os atos insurrecionais que criam em nome da anar-
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Em memória de Errico Malatesta
quia são pouco reflexivos, simplistas. Em 1877, assim
como em 1874, aconteceu algo fragmentado, uma parte
incompleta do plano total, um feito que devido à defesa
não poderia se tornar público.
Malatesta conversou posteriormente comigo sobre
este assunto, explicando o verdadeiro caráter daqueles
movimentos e deve-se considerar que assim como durante os anos 1860-70, a década seguinte, para muitos
na Itália, o Estado era débil e havia esperança na possibilidade de mudanças políticas.
Malatesta foi maltratado na Itália, no Egito, na Síria,
na França, na Suíça, na Romênia e na Bélgica, em toda
a Europa, entre 1878 e 1879, até achar asilo seguro em
Londres na primavera de 1881. Foi a Genebra quando
da fundação de La Révolte, e esteve em Paris quando
surgiram os primeiros grupos anarquistas; na Bélgica
quando o blanquismo revolucionário tinha influência.
Chegou a Londres quando se preparava o Congresso Internacional Socialista em 1881. Enquanto isso, na Itália a mesma Internacional fôra reduzida ao silêncio, perseguida com grandes processos e quebrada com a deserção de Andrea Costa, que desde 1879 se entregou ao
socialismo de aspirações parlamentares e arrastou por
seu antigo prestígio os internacionalistas da Romênia.
Malatesta, para ater-me só a ele, foi importante para
contê-lo, mesmo estando só e distante. Em nenhum lugar encontrou apoio, exceto em Londres, de onde precisamente não podia influenciar o povo italiano contra o
parlamentarismo. O Estado italiano se consolidou assim como outros Estados, aos quais o estatismo dava
atribuições sociais e grande preponderância que desembocou na guerra universal, no funestíssimo período de
1880 a 1930, aproximadamente. Ainda perduram as formas estranhas e únicas de que se valeu o estatismo.
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Ninguém protestou como Malatesta contra o desvio, mas
não pôde contê-lo e paralisou sua ação impetuosa.
Em Genebra, de princípios de 1879 até sua expulsão
da Suíça poucos meses depois, conheceu Kropotkin, vendo-se ambos com freqüência em Londres em 1881 e
1882. Deve-se ressaltar o fato de que um grupo limitado, íntimo, formado por Bakunin desde 1864 e
reconstruído em Genebra em 1872, a Fraternidade Internacional, voltou a reconstituir-se no verão de 1872,
elegendo Kropotkin como secretário. Malatesta e Cafiero
estavam presos, mas figuravam como membros do grupo. Kropotkin e Malatesta foram os mais ativos propagandistas do reduzido círculo, obtendo confiança ilimitada um no outro, uma confiança que não foi homogênea nas idéias e táticas, apesar de ambos terem sido
anarquistas comunistas convictos.
Em um ensaio de Malatesta sobre Kropotkin, publicado em fins de 1930, e na Revista Blanca em 1931, explicou discretamente mas com firmeza, a diferença que
o separava de Kropotkin, mostrando que não estavam
de acordo na grande maioria dos assuntos. Pode se comprovar a diferença lendo os escritos antigos e os recentes dos dois revolucionários. Unidos por amizade
indestrutível, cada um considerava a atividade do outro
como de grande importância, abstendo-se mutuamente
de diminuir a eficácia com a crítica, já que esta levada
às últimas conseqüências produzia separação e cisão.
Estiveram tacitamente de acordo em seguir cada um
seu caminho, e com o passar do tempo, por este e outros
motivos, deixaram de se ver com freqüência. Malatesta
explica que a posição crítica não podia continuar quando começou a guerra mundial, encontrando-se com
Kropotkin e produzindo-se uma cena penosa para ambos, porque foi um rompimento.
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Em memória de Errico Malatesta
Sabemos o que há no fundo de tudo isso. Malatesta
não carecia de fé revolucionária, e a manteve até a última hora, mas supunha que o otimismo e certa expectativa de Kropotkin careciam de base realista. A espontaneidade criadora, a abundância, a cooperação harmoniosa quase automática, podem se produzir por uma
evolução de condições favoráveis, mas não são, evidentemente, dados presentes, atuais, palpáveis e sólidos
com os quais se possa contar hoje e amanhã, no dia
seguinte que eclodir a revolução e antes desta para que
seja eficaz, Malatesta buscava fundamentos mais reais
e muito mais exeqüíveis e abundantes do mundo do qual
há de sair toda evolução. Daí a simpatia de Malatesta
pela organização, a relação mútua, os pactos, a pressão
que se explica pela ausência efetiva de abundância, a
qual não é ainda um feito, ainda que os depósitos estejam até o limite.
Pensava Malatesta em todas estas coisas e se prevenia à rapidez dos amorfos, dos organizadores, dos que
crêem na abundância absoluta e na felicidade automática, etc. Malatesta foi como o estorvo, o alvo predileto
dos ataques, odiosos muitas vezes, dos fanáticos de uma
prosperidade anarquista. Kropotkin julgava muitas coisas de maneira diferente, e o conhecem pouco aqueles
que o julgam por “A conquista do pão”. A distância que o
separa de Malatesta não o diminui, apesar de tudo. No
fundo, as idéias de todo pensador anarquista emanam
da ausência íntima do próprio ser, que expressa os desejos limitados pelo próprio caráter. No fundo, Malatesta
e Kropotkin são muito diferentes.
Merlino, não tão unido pelos laços indicados antes,
iniciou uma crítica às idéias de Kropotkin em certo artigo de revista que foi publicado em novembro de 1893.
No mês seguinte, Kropotkin começou a escrever um
artigo que numerou como o primeiro de uma série, tal-
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vez o prólogo de um livro sobre tais críticas. Em janeiro,
Merlino foi detido na Itália e semanas depois La Révolte
foi suspensa. A série de artigos não foi escrita, e se foi,
não chegou a ser publicada.
De 1879 a 1887, Malatesta se contrapôs à tendência
amorfa, partidária da espontaneidade, que torna impossível todo acordo para a ação revolucionária; também se
mostrou contra a tendência de Costa, que representava
deserção, a escapatória rumo ao parlamentarismo. Buscava uma cooperação para destruir o Estado e o capitalismo com os revolucionários autoritários, imaginando
se separar deles no momento da derrubada do atual regime, e até atacá-los se impedissem os anarquistas de
realizarem seus feitos característicos. Blanqui e os
blanquistas pareciam constituir então um fator sério,
mas Blanqui morreu e seus seguidores perderam o brio,
que nunca havia sido colocado em prova. Malatesta expôs a idéia no Boletim do Conselho de Londres, e com
mais franqueza na carta circular dirigida aos mais próximos da Fraternidade, carta que me enviou em 1930 e
que eu preparava para o suplemento de La Protesta interrompido naquela ocasião. Se existiu blanquismo revolucionário, morreu com Blanqui no final de 1880.
Malatesta lutou para dar coesão efetiva à Internacional que pretendia fundar. Os não partidários da organização só admitem um organismo sem outros órgãos
além de um escritório que seja por sua vez uma caixa
de correio para as cartas. As seções acabariam por não
fazer nada para que ninguém oprimisse ou dominasse
os outros. Um alemão e um russo constituíam o escritório com Malatesta. Nada se fez; não havia nada para se
fazer e nada foi feito, sendo extinto o escritório pouco
depois. Para apartar-se daquela inatividade forçada, foi
ao Egito em janeiro de 1882 com alguns companheiros
italianos desejosos de lutar nas fileiras árabes na in-
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verve
Em memória de Errico Malatesta
surreição, então, contra os ingleses e outros exploradores
europeus no Egito. Era o tempo da insurreição de Arabi
Pashá, que tinha certo fundo social. Foi impossível vencer
os ingleses, e uns meses depois, no começo de 1883, mudou-se para a Itália, disposto a lutar abertamente contra o
desvio de Andrea Costa e a reorganizar a Internacional
italiana.
Foi detido e encarcerado até o final de 1883. Com
luce fabbri
cresatti
Merlino
e outros
companheiros, enfrentou um grande
processo. A acusação se referia ao Conselho e à nova Internacional de Londres, tal como haviam feito em Lyon
para condenar Kropotkin e tantos outros a muitos anos de
prisão. Em liberdade provisória, antes do fim do processo,
fundou La Questione Sociale, pensado como Il Popolo, em
Florença entre 22 de dezembro de 1883 e 3 de agosto de
1884. Apesar de estar condenado a três anos de reclusão,
e Merlino a quatro, apelou e enquanto se resolvia a apelação esteve em liberdade até a decisão inapelável do tribunal, em janeiro de 1885, que confirmou os três anos. Podese dizer que às vésperas de ser condenado, tinha certa
liberdade para renovar seus crimes de excitação e organização clandestina. De qualquer maneira, conseguiu fazer
o melhor periódico que tiveram os anarquistas italianos.
Entre camponeses foi escrito para combater aos desvios autoritários e reformistas e constituir grupos numerosos que
tiveram desde então relações mais estreitas, apesar de
que seu projeto de Internacional, explicado no Programma
de organizzazione della Associazone Internazionale dei
Lavoratori (Florença, 1884, 64 páginas) não ter sido realizado.
A epidemia de cólera paralisou todos os esforços na segunda metade de 1884, e Malatesta acorreu a Nápoles,
onde a situação estava difícil, para atender os doentes no
hospital. Ao regressar a Florença, e tendo em vista a imi-
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nente condenação, preferiu a rebeldia e se ausentou de
novo.
Em fins de 1884 desapareceu e de Florença seguiu para
Londres, de onde saiu com uns tantos companheiros militantes para Buenos Aires. Fugido da Itália, expulso de tantos outros países continentais, não sendo possível a atuação eficaz a partir de Londres, preferiu ausentar-se da
Europa. Na Argentina, desenvolveu grande atividade propagandística unindo os companheiros de língua italiana e
espanhola, fundando uma nova publicação, Questione
Sociale (que nunca pude ver), ajudando na formação dos
primeiros sindicatos, de espírito muito combativo, como a
organização dos padeiros, etc.
Pelo despertar dos elementos vitais, numerosos ainda
que dispersos, a propaganda intensiva e coordenada data,
na Argentina, da atuação de Malatesta de 1885 a 1889. A
ação das massas trabalhadoras na Europa, que parecia
anunciar o ano de 1889 e confirmar o seguinte, fizeramno escolher este último período para voltar à luta. Deve
ter chegado à França em meados de julho ou no mais tardar em agosto de 1889.
Termino a evocação de Malatesta em sua primeira juventude, aos trinta e cinco anos, na plenitude do vigor.
Posso atestá-lo, já que o conheci em Londres meses depois, em novembro de 1889. Ainda que de mim só pudesse
esperar que absorvesse seu tempo, foi, desde que nos conhecemos até sua morte, o companheiro mais amável,
em toda nossa relação. As últimas palavras que me dirigiu foram as contidas na citada carta, que é de 31 de maio
de 1932. Como sabia que falava então de Barcelona, as
últimas palavras da carta diziam: “Minhas grandes lembranças a Urales, a Soledad e a Federica”. Nos satisfazia
extraordinariamente dizer: “Estou um pouco melhor a cada
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verve
Em memória de Errico Malatesta
dia que passa”, e logo chegou a notícia irrevogável de sua
morte.
Notas
Este é o primeiro escrito de uma série de três publicados por Max Nettlau em
memória de Malatesta. Tradução de Gabriel Passetti, de Max Nettlau. “En
memoria de Errico Malatesta” in E. Malatesta. Escritos. Fundación Anselmo
Lorenzo, Madri, Colección Clásicos Anarquistas 1, 2002.
1
Errico Malatesta nasceu a 14 de dezembro de 1853 no povoado de Santa
Maria Capua Vetere, próximo a Nápoles. Malatesta. Etineraire, une vie, une pensée.
Paris, 1989, no 5/6. [N. do E.]
2
Indicado para publicação em 11 de novembro de 2002
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malatesta e a violência1
luce fabbri*
É a primeira vez, creio, que a figura lendária do velho revolucionário italiano, morto em 1932 aos 79 anos,
aparece num filme. Peter Lilienthal2 a situa no pólo não
violento de uma situação idealmente conflitiva, cujo pólo
oposto é ocupado por terroristas letões, no ambiente
multinacional dos refugiados, acolhidos pela ainda
vitoriana Londres de 1910.
A exibição do filme na retrospectiva de Lilienthal programada pela Cinemateca (com o apêndice de uma apresentação privada que por gentileza do Instituto Goethe
foi oferecida aos atrasados) proporciona a ocasião para
evocar uma personalidade interessante, que tem contribuído para fazer história mais do que admitem manuais e enciclopédias.
Sua lenda surgiu no final do século XIX, mas sua vida,
mesmo obstinadamente coerente, esteve sempre
submersa em seu tempo, que, no final, já era tempo de
aceleração de mudanças. Não sou imparcial ao falar dele,
pois gostava muito dele, como se gosta de um bom avô.
* Anarquista, escritora e historiadora. Filha de Luigi Fabbri, viveu em Montevidéu, Uruguai, de 1935 até sua morte em 2000.
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Malatesta e a violência
Acredito ser meu dever fazer esta declaração logo de início, para prevenir o leitor. E devo confessar que este carinho me inibe, pois nunca gostei da hagiografia. Mas
penso que o Malatesta simbólico do filme requer a terceira dimensão do Malatesta histórico, não para os
amantes do cinema (uma criação artística deve bastarse a si mesma), mas para os amantes da história.
Da República à Internacional
Nascido no seio de uma família abastada do reino de
Nápoles — mais precisamente em Santa Maria Capua
Vetere — em 1853, isto é, sob essa dinastia Bourbon à
qual restava sete anos de vida, cresceu na atmosfera
ardente criada pela expedição de Garibaldi, que em 1860
produziu a união de todo o Sul ao reino da Itália. A expedição havia sido conduzida com entusiasmos republicanos e teve um desenlace monárquico. Errico, como grande parte da juventude de estudantes napolitanos, no
marco dessa desilusão, começou como partidário de
Mazzini, o grande republicano, apóstolo da Jovem Itália
e da Jovem Europa, que tanto havia contribuído com o
processo de independência e de unificação e o tinha visto
terminar de forma tão oposta a seus ideais. Aos quatorze
anos, Malatesta foi preso pela primeira vez por ter escrito uma carta, julgada ofensiva ao rei Victor Manuel
II, mas em 1870 já estava afiliado à Primeira Internacional. Nunca quis ser um teórico. Costumava dizer que
seus motivos eram absolutamente primários: combater
a injustiça, contribuir para melhorar a situação dos que
sofrem opressão e exploração. “Violaria todos os princípios, se fosse necessário, para salvar a vida de um só
homem”, o ouvi dizer mais de uma vez. “O amor — escrevia em 1892 — é o fundo moral do nosso programa”3.
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Identificada a causa do mal-estar social ao poder político do Estado e ao poder econômico do capital, pertenceu à ala bakuninista da Internacional (que, depois da
dissolução, prevaleceu na Espanha e na Itália) e participou do trabalho conspiratório imposto ao novo movimento pelas perseguições.
No turbilhão da história menor
Houve uma tentativa insurrecional em 1874, outra,
limitada à região de Benevento, em 1877. Errico participou das duas, mas diria que na segunda desempenhou,
junto com Cafiero e o russo Stepniak, um papel protagonista, se a característica dos participantes não tivesse
sido, justamente, a de rejeitar todo protagonismo. Os
processos que seguiram a estas tentativas revolucionárias foram outras tantas ocasiões para difundir os
princípios da Internacional. O banco dos réus se transformava invariavelmente em tribuna. Como conseqüência do processo de 1875, alguns jurados inscreveram-se
na Internacional e o advogado defensor de Malatesta em
1878, Saverio Merlino, também se deixou convencer
pelos argumentos de seu defendido, e foi logo, por muitos anos, militante anarquista. (Mais tarde ingressou
ao Partido Socialista, sustentando em seu seio uma posição não marxista que, através de novas edições de seus
escritos, está suscitando interesse na Itália atual, meio
século depois de sua morte).
Nos últimos trinta anos do século XIX encontramos
Malatesta em qualquer ponto da Europa Ocidental no
qual se estivesse preparando ou já tivesse eclodido um
movimento emancipador, mesmo que sua finalidade não
coincidisse totalmente com seus ideais. Em 1875, estourava uma revolta em Herzegovina (os Bálcãs contra
a opressão turca); ele tentou juntar-se aos insurretos,
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verve
Malatesta e a violência
porém foi detido, à beira do Sava, pela polícia húngara,
que o entregou à polícia italiana depois de mil peripécias. Pouco depois tentou chegar, com o mesmo objetivo,
à Servia. Era o espírito de Garibaldi que fermentava na
juventude revolucionária. Mais tarde, porém, Malatesta
limitou sua ação ao campo social.
Em 1878, pouco depois do processo pela expedição de
Benevento, é detido no Egito; deportado a Esmirna, foge
e chega a Genebra, onde ajuda Kropotkin a publicar Le
Révolté. Expulso da Suíça, vai à Romênia, mas em pouco
tempo o encontramos em Paris como orador de rua.
Expulso mais uma vez, vai à Bruxelas, de lá a Londres, e
depois, clandestinamente, de novo a Paris, onde é detido por ter violado a expulsão. Só em Londres pôde, depois de tudo isto, morar alguns anos com relativa tranqüilidade e continuidade. Este é só um exemplo do que
foi sua agitadíssima vida, completamente impossível de
sintetizar.
Momentos
Certa vez fugiu escondido numa caixa, que o policial
que o vigiava se ofereceu gentilmente a transportar.
Outra vez, procurado, ocultou-se numa prisão de Nápoles, de cujo diretor fizera-se amigo numa detenção anterior.
Durante uma manifestação na qual ele figurava
como orador, no norte da Itália, chegou uma companhia
de carabineiros com o objetivo de interromper o evento
na primeira palavra considerada subversiva: temeu-se
um conflito. Mas ele falou, como napolitano que era, das
condições de miséria em que se encontrava o sul da
Itália, de onde procediam todos os carabineiros (e ainda
procedem); o capitão teve que sair rapidamente com seus
homens, com os olhos cheios de lágrimas.
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Em 1884, sob liberdade condicional, organizou um
grupo de companheiros de idéias para contribuir com o
cuidado dos doentes de cólera, durante uma grave epidemia desta doença que se desencadeara em Nápoles.
Enquanto ex-estudante de medicina, esteve no comando de toda uma seção, que foi a que obteve a maior porcentagem de cura. No término da epidemia, o atestado
laudatório outorgado pelas autoridades sanitárias fôra
rejeitado; ele publicou com seus companheiros um manifesto no qual afirmava que a causa da epidemia era a
miséria. Logo em seguida teve que fugir da Itália, já
que, enquanto isso, a Corte de Cassação falhara contra
ele (era acusado de ter exaltado a Comuna de Paris em
outro manifesto).
Em suas andanças, freqüentemente padeceu de fome
e privações de toda espécie. Mas sempre pôde subsistir
dando aulas particulares, ou graças ao ofício de eletricista mecânico, que aprendera quando abandonou seus
estudos de medicina para se tornar operário. Este foi
sempre seu meio de vida, pois, quando seus pais morreram, destinou a totalidade do dinheiro herdado à divulgação de suas idéias, e doou, a seus inquilinos pobres,
alguns imóveis que lhe teriam permitido viver comodamente.
Inconvenientes de ser um mito. O “Lênin da Itália”
Por ter iniciado muito jovem a sua militância, viveu
ativamente a transição entre os séculos XIX e XX, entre o surgimento do movimento socialista na Primeira
Internacional e os movimentos de massa que, na Europa Ocidental, seguiram-se à Revolução Russa e à Primeira Guerra Mundial. Chegou, sem dúvida, ao auge
de sua notoriedade quando, logo após a Guerra, voltou à
Itália vindo de Londres — apesar da oposição do governo
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Malatesta e a violência
italiano e, portanto, mais uma vez clandestinamente —,
e foi aclamado por multidões exaltadas que o idealizavam, conhecendo apenas sua fama de lutador obstinado. A confusão entre o inconsistente revolucionarismo
das massas, que o viram, por um momento, como o Lênin
da Itália, e seu pragmatismo libertário e concreto, obrigara-o a perder tempo e energia numa cansativa luta
contra seu próprio mito. Em cada discurso rejeitava, com
o máximo de energia, as aclamações que tendiam a
transformá-lo num chefe, numa tentativa de fugir do
personalismo e suscitar a iniciativa criadora das bases
sociais. Dirigiu, nesses agitados anos, o jornal anarquista Umanitá Nova. Das suas colunas e da tribuna, esforçou-se inutilmente para que a retórica revolucionária
se transformasse em ação construtiva. Nesse sentido,
lutou desesperadamente para que a ocupação das fábricas pelos operários, que se produziu em toda a Itália em
1920, fosse permanente. O abandono das fábricas abriu
as portas ao fascismo, que, em poucos anos, destruiu
toda vida independente. Em 1926 foi publicado o último
número da última publicação dirigida por Malatesta: a
revista Pensiero e Volontá.
O pensamento
O caráter distintivo de Malatesta no espectro das múltiplas tendências socialistas do fim do século foi a rejeição do determinismo difuso entre todas elas — inclusive as libertárias — graças ao cientificismo positivista e
de uma interpretação primária do marxismo. As idéias
de Malatesta foram voluntaristas, baseadas na reivindicação dos direitos dos trabalhadores do campo e da cidade, mas orientadas para uma sociedade centrada no
homem enquanto tal em seus dois aspectos, individual
e social, uma sociedade liberada da opressão econômi-
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ca e política, cimentada nos dois valores fundamentais
da liberdade e da solidariedade. Era partidário do “gradualismo revolucionário”, pois acreditava que a revolução não deve impor nada pela força, e, portanto, deve
limitar-se às realizações que encontram o consentimento da maioria. Mas reivindicava para as minorias não
só as liberdades clássicas, mas também a liberdade das
realizações experimentais. Era, então, pluralista e partidário da tolerância para todas as formas de organização que não implicassem em imposição e exploração do
trabalho alheio.
Concordava com a idéia de seu amigo Kropotkin (desenvolvida em seu conhecido livro Apoio Mútuo) de que
há nos seres vivos um instinto solidário que não anula,
mas que complementa a darwiniana “luta pela sobrevivência”. Mas não compartilhou o espontaneísmo kropotkiniano e estava convencido da necessidade da organização, tanto para os movimentos de reivindicação
como para a sociedade futura. Por isso se manteve em
constante, ainda que cordial, polêmica com as tendências individualistas, que negavam o Estado partindo de
Stirner e Nietzsche. Era favorável ao movimento operário, mas não foi sindicalista, pois nunca considerou positivo o monopólio sindical da luta e da reconstrução.
Seu ideal era uma sociedade organizada como federação coordenadora de autonomias, nos mais distintos
âmbitos, sobre a base de uma propriedade social (não
estatal) da terra e dos meios de produção.
Considerava a violência um fenômeno autoritário.
Admitia e pregava a insurreição popular contra o Estado
repressivo, por considerá-la legítima defesa, mas a limitava à ruptura das estruturas de exploração e de poder. Para as soluções reconstrutivas, confiava apenas
no exemplo e na persuasão. Resolutamente contrário
ao terrorismo (O terror foi sempre instrumento da tira-
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Malatesta e a violência
nia), e ao ódio como motor revolucionário, afirmava: “Não
somo vingadores ou justiceiros”.
O roubo na joalheria, tentado pelo grupo de letões que
protagonizava o filme de Lilienthal e que acabou com a
morte trágica de um dos líderes do grupo, deu-lhe motivo para escrever o artigo “Capitalistas e ladrões”, que o
próprio filme cita no final. Nele, compara o roubo com a
apropriação do trabalho alheio que caracteriza o capitalismo. Quase ao mesmo tempo, era publicado em Pagine
Libere de Lugano (número de 1º de janeiro de 1911) um
artigo do então socialista Benito Mussolini, que continha uma acalorada apologia dos terroristas tragicamente mortos em Londres e de seus métodos.
Encerro este rascunho com umas linhas escritas por
Malatesta numa carta pessoal aos meus pais, no seu
último ano de vida, sobre os sentimentos de justiça e
amor como forças sociais.
“Justiça significa dar aos outros o equivalente daquilo que você recebe; significa l’echange égal de
Proudhon, significa reciprocidade, proporção, e portanto, implica cálculo, medida... O amor, entretanto, dá tudo
o que é possível e gostaria de dar cada vez mais, sem
contar... Em economia, “dar a cada um segundo seu trabalho” seria justiça, “dar a cada um segundo suas necessidades” seria mais do que justiça.
Penso que no espírito humano existem dois sentimentos contrapostos: o sentimento de simpatia, de amor
para os semelhantes, que é sempre fator de bem, e o
sentimento de justiça, que é causa contínua de luta,
pois cada um acha justo aquilo que lhe convém. Aquele
que se apoderou da terra acha justo que aquele que dela
queira tirar proveito lhe pague um tributo. O conquistador, já que teve a força e a habilidade de vencer, acha
justo dominar o povo conquistado... O comunista autori-
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tário e o fascista dirão, já que o indivíduo é um produto
social, é justo que se submeta à Sociedade e ao Estado
que pretende representá-la... Até o antropófago deve ter
sentido, em sua turva consciência, que era justo matar
e devorar seu inimigo vencido, já que este o teria devorado caso fosse o vencedor...”. Desta maneira justificava Malatesta sua afirmação, numa carta anterior, que
meu pai objetara: “Nosso programa, baseando-se no
amor, vai além da própria justiça”.
Ao escrever estas palavras, Errico Malatesta estava
apenas com sua companheira e sua filha adotiva, vigiado dia e noite pela policia de Mussolini, sem poder receber nenhum visitante, já que este seria imediatamente detido, com o único horizonte da morte próxima.
Nota
Luce Fabbri. “Errico Malatesta y la violencia”. Jacques, Montevideo, 1984, no
39. Tradução de Natalia Montebello.
1
2
A autora se refere ao filme Malatesta, de 1970, do diretor alemão Peter
Lilienthal e escrito por ele, Michael Koser e Helthcote Williams (N. do E.).
3
En dehors, Paris, 17/8/1892.
Indicado para publicação em 11 de novembro de 2002, por
sugestão de Margareth Rago.
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Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
malatesta e sua concepção voluntarista
de anarquismo1
maurício tragtenberg *
Errico Malatesta via no anarquismo um alvo a realizar subtraído a qualquer apriorismo filosófico ou científico. Não subordinava o anarquismo a nenhuma teoria,
não o estabelecia enquanto sistema; para ele, o anarquismo era, antes de mais nada, uma atitude: antiautoritarismo e solidariedade social. Uma visão bem
diferente de outros teóricos do anarquismo, para os quais,
como Kropotkin, o anarquismo se constituía enquanto
sistema ou em obediência às leis da ciência.
Para Malatesta, o anarquismo é o objetivo prático a
conseguir através da ação social das massas; o
anarquismo consiste no complexo de métodos e formas
de ação, tendo como base a vontade realizadora. Desenvolve Malatesta uma concepção voluntarista em contraposição à concepção determinista (Kropotkin) para quem o
Foi professor no Departamento de Política e na Pós-graduação em Ciências
Sociais da PUC-SP, na Unicamp e na FGV.
*
verve, 4: 195-227, 2003
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anarquismo seria “inevitável”, determinado por uma lei
do progresso.
Malatesta define que a existência de uma vontade
capaz de produzir efeitos novos, independentemente das
leis mecânicas da natureza, constitui uma pressuposição necessária para aquele que defende a mudança social2.
A finalidade da propaganda anarquista, para ele, era
formar essa vontade, difundindo idéias e exemplificando
com fatos. Para que o anarquismo seja uma realidade
enquanto vida de grupos sociais, dizia ele, era necessário que interviesse a vontade organizadora de seus
membros, capazes de estabelecer, com base na liberdade, todas aquelas relações fundadas na autoridade. A destruição dos órgãos autoritários e a ampliação de novas
estruturas fundadas na liberdade, segundo ele, não se
dará por via espontânea e automática; tanto para a destruição como para criação a vontade humana está presente. A harmonia entre os homens não se deve a uma
ação espontânea da natureza, somente pela ação consciente e voluntária será ela conseguida, diz Malatesta.
Não negava ele a existência de relações de causalidade
nos fenômenos sociais e históricos, apenas regia pela
negação da subjetividade, da vontade humana no processo histórico. Uma vida consciente e ativa pressupõe
a eficiência da vontade, sujeita às limitações de ambiente e época histórica.
Cabe às ciências sociais, diz ele, estudar as leis gerais que regem o desenvolvimento das sociedades e ao
mesmo tempo fazer com que as vontades dos indivíduos
concorram unanimemente a um objetivo comum perseguido por todos.
Para Malatesta, a noção de anarquia está fundada no
respeito à personalidade humana e no amor às pesso-
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verve
Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
as. A luta pela libertação da humanidade da opressão e
exploração, para ele, só pode ser fruto de uma vontade: a
vontade daqueles que desejam tal libertação.
Ao justificar por que intitulara de Volontá a revista
por ele publicada em Ancona (Itália), Malatesta explicava que este nome era uma reação às teorias deterministas e fatalistas que negam o livre-arbítrio do homem.
Para ele, tais teorias são paralisantes da ação humana,
além de extinguirem qualquer entusiasmo humano.
Além do mais, dizia ele, o título Volontá aplica-se muito
bem ao desejo de uma sociedade em que os homens cooperem voluntariamente para o bem coletivo.
Criticava ele os deterministas mecanicistas de sua
época no meio anarquista que pretendiam reduzir o
movimento social a uma lei mecânica, onde tudo está
predeterminado por antecedentes físico-mecânicos. Num
sistema deste tipo não há lugar para o sujeito, para a
vontade e a para liberdade, argumenta Malatesta.
Pergunta ele: ao aplicar-se aos fatos sociais e morais da vida humana a interpretação mecânica dos fenômenos como na física, química, fisiologia, chega-se à
conclusão de Laplace, segundo a qual tudo que sucedeu
deveria ter sucedido daquela forma. Que lugar haveria
num sistema destes para a vontade, responsabilidade e
liberdade?
Se o homem não influi nas coisas, para quê educação?
Se o homem nada tem a aprender num universo
determinístico, a pedagogia é totalmente desnecessária. Por valorizar o fator vontade, Malatesta opunhase na sua época a todos os deterministas mecanicistas,
viessem da corrente anarquista, como Kropotkin, viessem da corrente marxista, como Kautsky, Labriola. Assim, reagia ele à interpretação determinista que Karl
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Kautsky, o maior teórico da II Internacional, dava aos
conceitos de “miséria crescente”, “concentração do capital”.
Da mesma forma não idealizava as massas; para ele
havia massas reacionárias, conservadoras e revolucionárias. O predomínio de uma dessas tendências submetia-se à lei do ascenso e descenso do movimento das
massas. Em períodos de ascenso social, as massas tornam-se audaciosas, criativas e reivindicativas; num
período de descenso do movimento social, apareciam
apáticas, submissas e recolhidas à vida privada.
É claro que aí se coloca o problema, segundo os marxistas reside na “vanguarda”, segundo os anarquistas
reside nas minorias; essas minorias — incluída a minoria anarquista — devem, segundo ele, estar sempre
junto às massas, formar núcleos que organizem a vontade de mudança social. Embora trataremos com mais
detalhes deste aspecto mais adiante, avançamos por ora,
dizendo que ele via na minoria uma vanguarda, porém,
fundamentada numa poderosa “retaguarda”.
Critica Malatesta qualquer idealização da massa, pelo
fato de a miséria e opressão que ela sofreu milenarmente terem efeitos negativos na sua conduta; aos efeitos deprimentes da miséria e opressão, ele opõe os efeitos construtivos da influência moralizadora do trabalho.
Vê ele uma missão para a minoria anarquista e
voluntarista: derrubado o Estado burguês, a anarquia só
pode vir na medida em que a massa conceba-a e desejea; porém, nunca viria se não houvesse uma minoria
anarquista que preparasse o ambiente para isso. E isso
através do exemplo: essa minoria anarquista,
estruturando formas livres de vida, leva-as à sua multiplicação no âmbito social.
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Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
O anarquismo não está vinculado a nenhuma escola
filosófica específica, o indivíduo pode ser anarquista sendo espiritualista ou materialista. Pois ele nasceu da rebeldia às injustiças socias. Quando um grupo de homens
percebeu que a miséria e dor dos trabalhadores não são
devidas a nenhuma lei inexorável, mas fruto de uma
organização social dividida em classes, cabendo lutar
para suprimir essa desigualdade, surgiu o anarquismo,
diz Malatesta.
Diferente de Malatesta, Kropotkin concebia o anarquismo como uma filosofia científica no sentido positivista do termo, admitia que o anarquismo tinha como
base a interpretação mecânica dos fenômenos da natureza englobando as sociedades humanas, acreditava
encontrar na natureza a comprovação do seu ponto de
vista, segundo o qual a anarquia era a ordem natural,
pela qual a harmonia reinará em todas as coisas, inclusive nas sociedades humanas.
Liberdade para todos
Dessa maneira sintetizava Malatesta o anarquismo.
Tratava-se não de uma liberdade teórica e jurídica, senão de uma liberdade de fato, que consiste na ausência
de toda coerção violenta do homem sobre o homem e na
faculdade de cada um dispor de si mesmo e fazer o que
quiser, tendo como limite a liberdade dos outros.
No entanto, para Malatesta, isso não era um ideal de
realização longínqua, mas também uma norma de conduta, de luta a partir do aqui e do agora, no contexto da
sociedade existente.
Esse aspecto, mesmo entre os anarquistas, é tratado
abstratamente. Muitas vezes, eles agem autoritariamente hoje, reservando-se para amanhã agirem libertaria-
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mente. Contra esse tipo de inconsistência, Malatesta
pregava constantemente.
Uma vez, na pequena aldeia da Umbria, em Foligno,
em junho de 1897, um Círculo Católico quis inaugurar
sua sede com uma procissão religiosa. Os anticlericais
da localidade, incluindo os anarquistas, dissolveram a
procissão a paus e socos. Este é um dos casos em que o
dogmatismo, mesmo anti-religioso, conduz a atitudes
autoritárias na prática.
Num artigo intitulado “Per La Libertá”, L’Agitazione
de Ancona de 2 de setembro de1897, escreve Malatesta
a respeito: “que isto seja visto como um triunfo liberal e
que os liberais façam isso, uma experiência secular provou-o, o que por liberdade entende a classe social que
triunfou com a revolução de 1789: a burguesia. Começou seu reinado assassinando os prisioneiros e guilhotinando em massa a nobres e populares, “realistas” e
comunistas; defendeu-se com inaudita ferocidade sempre que viu seus privilégios perigarem, restabelecendo
a odiosa ordenação Real que contém uma arbitrária de
prisão ou de desterro. Parece-me que nas violências
contra os clericais, tomaram parte os anarquistas e isso
me envergonha. Sabemos — escreve Malatesta — que,
apesar dos programas, o espírito de violência e dominação, a tendência a abusar da força e a voluptuosidade de
impor aos demais as próprias idéias, estão muito vivas
no ânimo daqueles que se proclamam partidários da liberdade, mesmo da liberdade absoluta. Está na hora de
limitar e deter o avanço do autoritarismo que existe em
nossos meios e dizer bem alto que não é anarquista o
que não respeita nos outros a liberdade que reclama
para si, que, odiando os esbirros, adota suas posturas
quando tem oportunidade de fazê-lo. Devemos opor à propaganda a propaganda e não recorrer à repressão. Caso
o contrário, a população acreditará que seremos tiranos
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Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
iguais aos outros quando formos mais fortes, que a anarquia será vã palavra como foi vã a palavra liberdade, da
qual os burgueses, antes de seu triunfo, diziam ser defensores”.
Da mesma maneira, polemiza Malatesta com aqueles anarquistas que defendem o ponto de vista segundo
o qual a liberdade plena é para a futura sociedade; no
caso da sociedade atual, enquanto existir como é, devem ser negados aos inimigos qualquer liberdade ou
qualquer direito. Malatesta critica veementemente essa
concepção que permite a liberdade na sociedade futura,
negando-a no presente. Assim pensando, é que se estabeleceram e se estabelecem as tiranias presentes e
futuras. Liberdade para todos, sem outro limite que a
igual liberdade aos demais, isso não significa respeitar
a opressão, a exploração que são o oposto da liberdade,
argumenta ele.
Raciocina Malatesta: o adversário pode estar errado,
sua propaganda pode produzir danos, no entanto, tem
direito à liberdade mais completa. De outra maneira:
quem julgaria qual é a verdade permitida e a verdade
proibida? O direito a combater e suprimir o erro pela
violência é teoria de inquisidores, serviu de justificação
a todas as tiranias.
Os anarquistas só usam violência para resistir e subtrair-se a ela. São partidários de que a liberdade que
reclamam para si seja estendida a todos sem exceção,
seja a liberdade de imprensa, palavra e reunião. Porém,
a liberdade para saquear, incendiar e assassinar, pregada pelo fascismo, é arbitrariedade infame, prepotência
e violação de todas as liberdades.
No artigo “Religione e questione sociale” em L’Agitazione, Ancona, 12 de agosto de 1897, escrevia Malatesta:
“Somos inimigos da religião como somos inimigos da
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economia política burguesa, que substitui os decretos
de Deus pelas leis naturais...” e, finalmente, justifica
dessa forma a dominação e exploração da maioria por
uma minoria.
Porém, diz ele, é possível que da idéia de Deus uns
deduzam que é importante lutar pela igualdade e liberdade humana e outros infiram o dever de obediência e
resignação ante a hierarquia. Da mesma forma acontece com a hipótese darwiniana: uns deduzem a justificação do regime burguês e outros a razão de ser do socialismo, acrescenta.
Muito mais importante do que crer ou não crer em
Deus era o fato de o trabalhador rural poder olhar seu
amo de frente, esclarece Malatesta.
Nesse sentido, diz ele, possui a fé que remove montanhas, porém não a fé cega, mas resultado de uma firme vontade unida a uma forte esperança.
Questão de organização
Uma das maiores preocupações de Malatesta dizia
respeito à organização operária e sindicalismo. Dava ele
à discussão a respeito de organização a importância
máxima, pois via na anarquia uma organização
libertária em substituição a uma organização autoritária.
Em 1886, na Argentina, via-se nascer as primeiras
organizações operárias por sua obra. Exerceu imensa
influência nos fundadores do anarco-sindicalismo francês, Pelloutier e Pouget, que visitavam-no por ocasião
de seu exílio em Londres. A partir de 1897, sua propaganda em favor do anarco-sindicalista na Itália cresce
e influencia Armando Borghi, o grande organizador operário de Bolonha.
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Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
Bem antes de falar-se em sindicalismo, Malatesta
pregava a “ação direta”, a “greve geral” e a solidariedade
de classe acima da divisão dos partidos políticos operários.
Num artigo publicado no número 847 do jornal Il
Risveglio de Genebra, em 1 de maio de 1932, escrevia
ele a respeito:
“Devemos procurar influir diretamente sobre a massa e conseguiríamos isso se vivêssemos em seu seio,
se fizéssemos uma propaganda clara, simples, vinculada ao quotidiano em lugar de assumirmos ares filosóficos, querer a todo preço aturdir o mundo e permanecermos entre nós discutindo bagatelas, dizer coisas terríveis que... jamais se realizam.”
Incitou sempre seus companheiros a permanecerem
no meio da classe trabalhadora, esclarecendo-a de que
ela não pode emancipar-se senão pela abolição de qualquer poder político. Pregava a criação e participação nas
associações operárias onde existirem. Segundo ele: “a
concordância, a associação, a organização são a lei da
vida e o segredo da força hoje como após a revolução”,
conforme artigo seu no jornal La Révolte, em 1 de outubro de 1892, Paris.
Para ele, a greve tinha uma função educativa, especialmente na sua preparação, os trabalhadores aprendem a lição da solidariedade, do apoio mútuo, embora
não seja a greve que irá resolver a questão social.
Porém, considerava Malatesta, o movimento sindical que começa reivindicativo tende rapidamente a degenerar. “Quanto mais forte se torne este movimento,
mais ele se torna egoísta, conservador, ocupado exclusivamente com seus interesses imediatos e restritos e
desenvolve em seu seio uma burocracia que, como sem-
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pre, não tem outro objetivo senão o de fortalecer e de
crescer”3.
Embora os sindicalistas revolucionários representem
uma posição avançada na luta sindical, adverte Malatesta
que “cada instituição possui uma tendência a desdobrar suas funções, a se perpetuar e a se tornar seu próprio objetivo”.
A questão é que o mercado de trabalho é regulado por
normas capitalistas, daí os trabalhadores são colocados
em posição de concorrerem entre si; o interesse de cada
trabalhador é ter seu emprego, em conseqüência concorre com os desempregados de seu país e com a mãode-obra estrangeira. O sindicalismo está condenado a
ocupar-se mais dos interesses de certa categoria profissional de operários do que dos interesses do público
em geral, do interesse dos sindicatos mais do que dos
interesses dos desempregados e dos interesses da classe operária. Os sindicatos, à medida que são abertos a
todos, perdem em importância suas opiniões sobre a
organização social global; à proporção que o sindicato
cresce numericamente, seus fundadores perdem-se na
grande massa, enquanto que a maioria se ocupa das
pequenas questões do momento.
Conclui Malatesta: “Assim, pode-se ver desenvolverse em todos os sindicatos que atingiram uma posição
influente a tendência a assegurar — em acordo ao invés de contra os patrões — uma situação privilegiada, a
criar dificuldades para a admissão de novos membros,
uma tendência a entesourar fundos que eles temem
depois comprometer, a procurar o favor dos poderes públicos: a se absorver inteiramente na cooperação e em
todas espécies de mutualidades e a se tornar em elemento conservador na sociedade”4.
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Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
Entendia ele que o movimento sindical não poderia
substituir o movimento anarquista, caberia ao anarquismo uma função estimuladora no sindicato, combater tudo o que tenda a tornar o sindicalista egoísta, conservador, o orgulho profissional, o espírito corporativista,
as grandes cotizações, acumulação dos capitais investidos, confiança nas boas funções do governo, burocratas remunerados e funcionários permanentes. Vaticina para os anarquistas o mesmo fim que coube aos social-democratas, logo após eles terem entrado no
parlamento: “Ganharam em força numérica mas se tornaram cada dia menos socialistas. Nós — escreve ele
— nos tornaremos cada dia mais numerosos, mas cessaremos de ser anarquistas”5.
Paralelamente à sua crítica ao sindicalismo, ele não
poupava crítica à greve geral, como substituto da insurreição, achando seus defensores que ela obrigaria a
burguesia a render-se premida pela fome!
Houve até militantes que procuravam armazenar ervas e “pílulas” capazes de sustentar indefinidamente o
corpo humano sem necessidade de alimentá-lo, colocando os proletários em condições de esperar num jejum
pacífico que os burgueses viessem desculpar-se e pedir
perdão!
Para ele, por sua natureza, o sindicalismo operário
tende ao reformismo. O movimento operário, se não for
fecundado pela crítica dos revolucionários libertários,
longe de levar à mudança social, levará à maior adaptação à sociedade existente. O sindicato não pode ser um
veículo a-histórico para mudança social, ele é fruto do
regime capitalista; um regime socialista deverá encontrar outros órgãos para que cumpram as tarefas desse
novo regime.
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Malatesta insistia em que os sindicatos, como as cooperativas, podem ser órgãos provisórios que sirvam à
transição ao anarquismo. Queria ele dirimir a confusão
existente entre sindicalismo e movimento anarquista;
o sindicato deve ser autônomo ante qualquer partido ou
tendência para cumprir seu papel de resistência dos
trabalhadores ante ao capital e o anarquismo deve ter
um movimento autônomo ante qualquer organização
operária existente, para cumprir seu papel de incentivador, organizador da revolta social, dos trabalhadores,
setores médios, homens e mulheres, trabalhadores urbanos ou rurais.
Explica Malatesta que aos anarquistas não interessa dominar a União Sindical Italiana, não pretende o
poder porque não quer dominar. O homem que pensa
com seu próprio cérebro é preferível àquele que quer
dominar tudo e aprova cegamente tudo. Admitia que,
para ele, os sindicatos têm uma função positiva sob o
capitalismo, agregar os trabalhadores e organizá-los na
luta econômica.
O capital opõe trabalhadores de um setor industrial
aos de outro setor. Exemplifica ele com a Federação
Americana do Trabalho, nos Estados Unidos; a grande
luta dessa Federação é contra os forasteiros, recém-chegados à procura de uma carteira sindical, aqueles que
não podem obter trabalho nas fábricas, que recorrem à
Federação, que vão oferecer sua força de trabalho a um
patronato que os emprega por salários inferiores aos do
mercado. É característica do sindicalismo norte-americano que quando consegue alcançar o número de sócios
que permite à organização tratar o patronato de igual
para igual, procura impedir a entrada de novos sócios.
Nesse contexto, os operários qualificados desdenham os
manuais, os brancos oprimem os negros, os “verdadei-
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verve
Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
ros” norte-americanos desprezam os trabalhadores de
origem chinesa ou italiana.
Num período revolucionário, diz Malatesta, os sindicalistas serão muito valiosos, com a condição de que
sejam menos sindicalistas.
Há anarquistas que vinculam diretamente o movimento operário ao anarquismo: são os anarco-sindicalistas.
Na ação sindical, o grave não é aceitar um cargo de
direção, é perpetuar-se nesse cargo. É importante, adverte Malatesta, que o pessoal dirigente se renove mais
rapidamente, seja para capacitar um número maior de
trabalhadores nas funções administrativas, seja para
impedir que o trabalho de organizador se transforme em
profissão, imbuindo as lutas operárias com a preocupação da perda do cargo.
Os sindicalistas como os anarquistas têm aversão
ao comunismo estatal, querem também prescindir do
governo substituindo-o por sindicatos e atribuem a eles
a função de controlar as riquezas, requisitar víveres,
distribuí-los, organizar a produção e a distribuição dos
produtos necessários à sociedade. Não haveria inconveniente, argumenta Malatesta, se os sindicatos o fizessem desde que abrissem suas portas para todos e
deixassem os dissidentes se auto-organizarem.
Porém, a expropriação e distribuição de bens devem
ser definidas através de assembléias populares, especificando os grupos ou indivíduos encarregados de fazêlas.
Ocorre que, se existe um pequeno número de pessoas que por um longo hábito são consideradas chefes dos
sindicatos e existem secretários permanentes e
organizadores oficiais, seriam eles que organizariam a
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revolução tendendo a considerar como intrusos os que
quiserem tomar iniciativas independentes deles e desejarão, embora com as melhores intenções, impor sua
vontade, mesmo usando força.
Qual seria o resultado disso? pergunta Malatesta. Ele
mesmo tem a resposta: o regime sindicalista se transformaria na mesma tirania em que se transformou a chamada ditadura do proletariado. O remédio contra esse
perigo radicaria na existência de uma massa de indivíduos capazes de iniciativas e tarefas práticas, na massa não abandonar causas coletivas nas mãos de qualquer um e delegar só para cargos determinados e por
pouco tempo. Tal espírito só pode ser criado por sindicato onde a influência libertária for importante.
Há partidos políticos que pretendem atrelar o sindicato a suas posições e práticas, isso deve ser combatido, da mesma maneira deve ser rejeitada a posição de
“excluir a política dos sindicatos”, o que esconde uma
mentira. A política é parte integrante da vida social, à
medida que existe um Estado a serviço de uma classe
dominante que impregna com sua presença a esfera
econômica, política e social. Nenhuma organização operária pode ser independente de partidos a não ser que
se transforme num. Portanto é vã a espera em excluir a
política dos sindicatos. Qualquer greve econômica transforma-se numa greve política e é neste âmbito que a
solução do dilema autoridade e liberdade terá lugar.
Enquanto os trabalhadores reivindicam pequenas
concessões da classe dominante, a luta é mantida pelos
capitalistas no âmbito econômico; tão logo estes se vêem
prejudicados — argumenta Malatesta — como na rebelião de Mussolini na Itália e Franco na Espanha, empregam seu poder econômico para financiar um novo
regime que possa melhor servi-los.
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Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
A aceitação da sociedade de classes, a limitação da
luta a migalhas econômicas, é característica da Federação Americana do Trabalho e das trade unions inglesas; ao fazer isso o sindicato transforma-se numa correia de transmissão dos desejos da classe dominante. A
ação puramente sindical tende ao reformismo, ela pode
chegar a encarnar a idéia de mudança social, por influência daqueles que têm um ideário claro a respeito.
A organização anarquista
Malatesta polemizou muito contra aqueles anarquistas individualistas que negam a necessidade de uma
organização. Para ele a organização não é somente a
prática da cooperação e da solidariedade, condição de
existência da vida social, ela constitui um fato que se
impõe a todos.
O homem só é verdadeiramente homem na sociedade, contando com a cooperação de seus semelhantes.
O erro maior dos inimigos de qualquer forma de organização consiste no fato de acreditarem que não pode
haver organização sem autoridade, preferindo renunciar a qualquer tipo de organização para não aceitar a mais
mínima autoridade.
O homem conheceu várias alternativas de sociabilidade: sofrer a autoridade dos outros (escravos), impor
sua vontade aos outros (ser a autoridade) ou viver com
os outros mediante um acordo fraternal (ser um associado). Ninguém pode eximir-se dessa necessidade social
e os anti-organizadores radicais não deixam de sofrer
os resultados da organização geral da sociedade em que
vivem; inclusive na sua rebelião contra a organização
se organizam com aqueles que estão de acordo e utilizam os meios de que a sociedade dispõe.
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No caso do movimento anarquista, ou ele parte para
ação organizada ou sucumbirá na impotência e no isolamento e cairá numa completa apatia. Pode declarar
que quer conhecer algo e não quer fazer algo, porém,
para Malatesta, o socialismo e o anarquismo são finalidades, projetos a serem postos em prática. Se os anarquistas não conseguem reunir-se em associação, precisando de chefes, isso quer dizer que eles devem capacitar-se a viver anarquicamente antes de mais nada.
É na impotência da ação coletiva do povo que surgem
as burocracias que ocupam seu lugar, burocracia policial para garantir a ordem nas ruas; se o produtor não
tem contato direto com o consumidor para satisfazer uma
demanda econômica, surge o intermediário, o comerciante para ocupar um espaço.
Quanto menos organizado estiver o povo, tanto mais
estará dependente da ação de um indivíduo investido
como chefe.
O que elimina a liberdade e torna impossível a iniciativa não é a organização, é o isolamento que torna os
homens impotentes. É na cooperação com os outros homens que o homem encontra espaço para desenvolver
sua iniciativa.
Para Malatesta, uma organização anarquista deverá
estruturar-se com base na plena autonomia e liberdade
e, portanto, sob a plena responsabilidade dos indivíduos
e dos grupos; o livre acordo entre os envolvidos na luta
por um fim comum, o dever moral em manter os compromissos aceitos. Os grupos, as federações devem desenvolver uma prática que não contrarie o programa
definido e aceito por todos.
Os congressistas, numa organização anarquista,
embora possuam todas imperfeições dos órgãos representativos, estão imunes ao autoritarismo na medida
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Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
em que não legislam nem impõem ao grupo suas próprias deliberações. Servem para manter e aumentar as
relações pessoais entre os militantes mais ativos, sintetizando os estudos a respeito das formas de ação na
sociedade, formulando opiniões correntes entre os anarquistas. Elaboram estatísticas, porém suas decisões não
constituem regra obrigatória, senão para aqueles que
as aceitam e enquanto as aceitarem.
Numa organização anarquista todos os membros podem expressar todas as opiniões e empregar todas as
técnicas que estejam de acordo com os fins estabelecidos. Uma organização dura enquanto o consenso superar o dissenso, caso contrário, ela se extingue e dá espaço a outras que apareçam.
A duração de uma organização libertária deve ser o
resultado da afinidade entre seus membros e de sua
adaptabilidade às situações que mudam. Há inúmeros
libertários, diz Malatesta, que só aceitam atuar em organizações anarquistas ou que tenham o anarquismo
como finalidade; tal método condenará o anarquismo à
esterilidade.
O trabalhador que compreender que sua força é a
solidariedade com seus iguais, que compreender a burguesia e o Estado como parasitas, mesmo que não o diga,
é um anarquista, escreve Malatesta.
Fortalecer os movimentos sociais populares é uma
conseqüência lógica da adoção das idéias anarquistas e
deveria fazer parte do programa de qualquer entidade
anarquista.
A diferença entre a organização anarquista e a estatal é que a organização anarquista é voluntária, estruturada livremente pelos diretamente interessados, enquanto a organização estatal é coativa, imposta segundo os interesses de classes ou grupos dominantes. Or-
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ganização autoritária é aquela em que os adeptos põem
seu direito de iniciativa e de intervenção em mãos de
alguns indivíduos que devem pensar por todos e servirse da força coletiva para realizar sua vontade particular, enquanto na organização anarquista cada membro
é um indivíduo autônomo que se associa em condições
de paridade com os que têm os mesmos objetivos, para
encontrar na associação o apoio que lhe falta se agisse
isoladamente. Assim, a organização direta, livre, sem
obrigações impostas, é a anarquia.
A anarquia é uma sociedade fundada no livre acordo
de vontades livres, de todos e de cada um. Explica
Malatesta, no plano teórico somos pela liberdade contra
a autoridade, no plano prático, somos pela livre ação do
povo contra toda ditadura. Quando falamos de interesse
geral, exemplifica Malatesta, entendemos o bem de todos, isto é, de cada indivíduo e não este pretenso interesse social que sempre foi a mentira que serviu para
justificar todas as tiranias. Esse bem só será alcançado
garantida a liberdade individual total. O interesse geral
deve ser a soma dos particulares; quando em conflito, é
preciso que se harmonizem na base de concessões
mútuas. Se, ao contrário, é um governo que deve findar
com esses conflitos, significa a pretensa harmonização,
na prática o sacrifício da maioria e o triunfo dos
governantes e seus amigos. Anarquia, para Malatesta,
significa não-governo e ainda com mais razão não-ditadura, entendida como governo absoluto sem limites ou
controles constitucionais.
Ironicamente nota Malatesta: quem diz que a anarquia não é um ideal sublime? Mesmo os prefeitos e os
magistrados concordam com isso; enquanto esperam,
prendem-nos e nos fuzilam!
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verve
Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
Coisas administradas pelo livre acordo significam
anarquia, administradas pelos burocratas do governo é
Estado, igual à tirania.
Anarquia e socialismo são interligados como o fundo
à forma, o fim ao meio. O socialismo sem anarquia é o
Socialismo de Estado, que é uma impossibilidade, pois o
socialismo seria destruído pelo órgão que deveria mantêlo: o Estado.
Quanto à imposição do anarquismo, Malatesta é
taxativo: diz ele, não queremos e não podemos impor a
anarquia pela força a quem quer que seja. Fazê-lo seria
uma contradição em termos. Se os trabalhadores, escreve ele, quiserem ter seu governo, nós lhes deixaremos toda a liberdade de construí-lo com quem eles quiserem. Mas sob a condição de que, também, tenhamos
a nossa liberdade de experimentar nossas idéias, nossos sistemas, toda a forma de organização libertária de
que formos capazes, sem ter que prestar juramento,
pagar impostos, sem que sejamos obrigados a fazer o
que quer que seja, senão o que consideremos livremente ser nosso dever fazê-lo.
Salienta Malatesta, a anarquia não se impõe pela
força e não poderíamos querer impor aos outros nossas
próprias concepções, sem cessar de ser anarquistas;
desejamos viver anarquicamente tanto quanto as circunstâncias exteriores nos permitirem, assim como
nossas capacidades.
O que queremos fazer pela força, esclarece Malatesta,
é expropriar aqueles que detêm os meios de produção e
que obrigam os deserdados a trabalhar para eles e também, evidentemente, destruir o poder governamental:
sem isso a expropriação não seria possível, assim como
a reorganização da sociedade que a seguiria também
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não, em proveito de todos e segundo as vontades variáveis dos interessados.
Num artigo publicado em Umanitá Nuova, a 22 de abril
de 1930, salienta Malatesta, ao criticar a visão determinista de Kautsky quanto à revolução: acreditamos que
a revolução é um ato de vontade, vontade dos indivíduos, das massas, pensamos que ela exige para ter sucesso certas condições objetivas, mas que não acontece
fatalmente por fatores econômicos e políticos. Sem propriedade e sem Estado, diz ele, a revolução seguirá as
linhas traçadas pelas necessidades práticas e que a livre experimentação modificará pouco a pouco.
Acentua Malatesta o papel das minorias na emergência de uma nova idéia, nova instituição, todo progresso. Declara enfaticamente que a pretensão do
anarquismo é a elevação de todos os homens ao nível de
forças conscientes da vida social. Porém prevê dificuldades no caminho, argumentando que para conseguir tal
finalidade é necessário acabar com a violência que
ressua esses meios aos trabalhadores e isso só pode ser
feito pela violência, não por uma razão de princípio, mas
porque é impossível de outra maneira.
Esclarece com toda nitidez que anarquismo não significa a pregação de um golpe para tomar o poder, mas o
contrário, suscitar todas as forças populares para que a
era da livre evolução comece, conclamando todos os partidos, todas as organizações operárias, para galvanizar
a massa, dividida entre diversas organizações.
Critica aqueles que pretendem esperar que as massas se tornem anarquistas para depois fazer a revolução, convencido está que elas nunca se tornarão, ao persistirem as instituições que as mantêm escravas. Apela a uma estratégia de aproximação com as massas,
aceitando-as como são para fazê-las avançar o mais lon-
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Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
ge possível. Tal trabalho, diz ele, nada tem a ver com
aqueles que pregam no deserto para pura satisfação de
seu orgulho intelectual.
A revolução como concebem os anarquistas é a menos violenta possível, ela procura interromper toda violência tão logo cesse a necessidade de se opor à força
material do Estado e da burguesia. Os anarquistas só
admitem a violência como legítima defesa. Pois, segundo Malatesta, o ideal serve para frear, corrigir e destruir este espírito de violência que a revolução como ato
material teria a tendência de desenvolver.
Malatesta não incide no basismo segundo o qual “as
massas têm sempre razão” ou “a voz do povo é a voz de
Deus”, ressalta que não pretende segui-las em seus humores mutáveis, o anarquismo significa um programa a
cumprir, porém, como o objetivo é libertar e não dominar, trata de habituar as massas à livre iniciativa e à
livre ação. Para ele, é a liberdade que educa para a liberdade e para a solidariedade.
Uma sociedade comunista ou anarquista deve nascer do livre acordo, senão será uma sociedade de caserna com igualdade formal e aparente no meio da desigualdade, com base na regra: para cada um o que ele
quiser, o que supõe a abundância e o amor. O espírito
de fraternidade, a aptidão a fazer concessões, a tolerarse e suportar-se, não se criam, menos ainda se desenvolvem por meio de leis e graças a policiais. Para ser
realmente a comunidade das almas, explicita Malatesta,
e não um retorno à escravidão, o comunismo ou o
anarquismo deve nascer localmente, entre grupos com
afinidades, graças à experiência, das vantagens materiais que ele permite, à segurança que ele inspira, o
fato de satisfazer os sentimentos de sociabilidade e de
cordialidade que estão na alma de todo ser humano e
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que se manifestam e se desenvolvem tão logo cresce a
necessidade de lutar contra os outros para assegurar a
própria vida e a das pessoas que lhe são caras. Em suma,
o comunismo ou o anarquismo, prega Malatesta, deve
estar nos corações antes de estar nas coisas.
É como uma família ou um grupo de companheiros
que vivem juntos, esclarece Malatesta. Vive-se como
comunista ou anarquista se se ama e na exata proporção em que se ama. Somente se houver acordo e amor
entre os membros do grupo, se dará mais àquele que é
mais fraco, àquele que mais necessita e todos ficam
felizes e orgulhosos de contribuírem para o bem comum.
Malatesta reage contra aqueles que defendem o ponto de vista segundo o qual no momento da revolução
deve-se esquecer a doutrina, à medida que doutrina significa programa, esquecê-lo no momento de realizá-lo é
colocar-se a serviço daquele que conseguiu dominar e
explorar a revolução.
Para ele, o socialismo ou anarquismo é uma questão
de consciência e vontade. Quando os trabalhadores não
suportam mais seu estado de inferioridade moral e material, quando os homens de coração se revoltarem contra um mundo de infâmias e sofrimentos inúteis, quando
um número suficiente quiser acabar com isso, aí então
o socialismo existirá. Do contrário, não.
Pois, os grupos e indivíduos agem à medida que se
desenvolve neles o estado de espírito necessário à ação,
o espírito de iniciativa, e desaparece a tendência a esperar ordens e ação dos chefes, que se denomina, errônea e habitualmente, espírito de disciplina.
A respeito do conceito de disciplina — esclarece
Malatesta — constitui ele a grande palavra que serve
para paralisar a vontade dos trabalhadores conscientes.
Não deve ser uma disciplina bovina, devoção cega aos
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Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
chefes, uma obediência àquele que sempre diz para não
se mexer. A disciplina revolucionária significa: coerência com as idéias aceitas, fidelidade aos engajamentos
assumidos, sentir-se obrigado a participar com os companheiros de luta, o trabalho e os riscos. Somente os
velhos conspiradores mazzianos concebiam uma “revolução disciplinada”, desconhecida para a maioria e que
sequer tinha início. Havia um Comitê Central que nomeava os subcomitês, elaboravam-se os planos, enviavam-se as ordens e, geralmente, não se obtinha sucesso.
Malatesta preconizava a união das esquerdas, do proletariado contra a burguesia e o governo, em artigo publicado em 22 de abril de 1930. Reafirma em artigo publicado na revista Volontá, a 1 de maio de 1920, e salienta, entre os deveres, ser o mais importante a solidariedade mais ativa com as outras forças revolu-cionárias,
qualquer que seja sua orientação, para defender a revolução de todas as tentativas de reação interna ou vinda
do exterior. Explica que a liberdade não significa isolamento.
Grande parte da atividade jornalística de Malatesta é
dedicada à crítica aos erros e omissões da II Internacional e do Partido Socialista italiano e sua política reformista.
Assim, critica ele o que chama “os socialistas democratas” que pretendem conquistar o Poder Público e aumentar sua ação estatal via tributação para converter a
riqueza privada em pública. Daí prometem um governo
com seus fiscais, coletores, oficiais de justiça, policiais, administradores, corpo legislativo para fazer leis e
ministros para executá-las. O Estado Socialista representaria a todos, todos os poderes sairiam do povo. De
nada vale dizer que não havendo classes sociais o go-
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verno representará a coletividade. Malatesta aproveita
a ocasião para desenvolver uma engenhosa teoria, segundo a qual os governantes constituem uma classe e se
desenvolve entre eles uma solidariedade mais poderosa que
a existente entre as classes operárias. Argumenta ele, é
exato dizer que hoje o governo é escravo da burguesia,
mas isso tem mais a ver com o fato de que seus membros são burgueses do que com fato de serem governo.
Propriedade e governo operam juntos; ao abolir o governo sem abolir a propriedade, os proprietários reconstruirão o governo. Quem está no governo quer lá permanecer e fazer triunfar sua vontade. “O governo”, salienta
Malatesta, “engendra em torno dele uma classe que lhe
deve seus privilégios e que está interessada que ele permaneça no poder”. Os partidos do governo são no plano
político o que as classes proprietárias são no plano econômico. Adverte Malatesta: “quem fala em abolir o governo e substituir a administração dos homens pela administração sobre as coisas, esquece que quem tem a
administração das coisas tem domínio sobre os homens”.
O princípio do governo que conservam — os socialistas — e reforçam destruiria o princípio de igualdade social e abriria uma nova era de luta de classes, salienta
Malatesta.
Num artigo publicado a 16 de maio de 1926, no jornal
Il Pensiero, Malatesta já apontava o fato de o Partido Socialista italiano ir a reboque da burguesia, acentuando:
“os representantes mais distintos do socialismo democrático italiano nos repetem continuamente que seria
vantajoso para os proletários italianos serem governados por uma burguesia rica, culta e moderna”. Parece
estarmos ouvindo o discurso de certa “esquerda” no Brasil de hoje.
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Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
Parlamento
Um dos temas fundamentais dos escritos de
Malatesta é o tema do Parlamento, o sentido da luta parlamentar, como obstáculo à formação da consciência
social do trabalhador, como “fábrica de ilusões”. Ao Parlamento liga-se o eleitoralismo, que acaba dominando
nos partidos acima de qualquer ideologia ou propaganda
política.
O Parlamento é parte integrante de um regime político individualista onde vigora a chamada “soberania
popular”, onde a lei é feita por quem o povo elegeu, teoricamente ela representa a vontade de maioria, na prática “ela é o resultado de uma série de transformações
e de ficções que falsificam a expressão autêntica da vontade popular”, diz Malatesta.
Num artigo de 16 de maio de 1906, Malatesta critica
todos quantos cultivam o “fetichismo parlamentar”, isto
é, enchem o povo de ilusões de que tem amigos no Parlamento; isso leva-o a esperar que algo ocorra. Por outro
lado, muitos socialistas parlamentares em seus discursos eleitorais acentuam o Parlamento não servir para
nada, daí a pergunta de Malatesta: “por que eles se esforçam para fazer com que ele sirva para alguma coisa”?
Critica ele aqueles que são revolucionários na campanha eleitoral, e após as eleições voltam ao regaço conservador após “fazerem discursos eleitorais que pareciam apelo às armas”. Manifesta-se contra a autoridade à
medida que é a violência do pequeno número contra o
grande número, também seria contra a autoridade se
ela fosse conforme “a utopia democrática, a violência
da maioria sobre a minoria”.
Salienta ele que o Parlamento acaba por criar uma
categoria de “político” com seus interesses específicos,
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geralmente opostos ao do povo. O reformismo socialista
liga-se à ação parlamentar. O caminho do reformismo é
o da legalidade, é tranqüilo, mas cheio de armadilhas.
Toda vez que alguns se propõem a conquistar os poderes
públicos, indo ao Parlamento e aos Conselhos Municipais e provinciais, moderam cada vez mais seu programa, colocando-se ao abrigo de relações de colaboração
mais ou menos disfarçada com a classe burguesa, procurando proteção nas áreas governamentais. Procuram
reformar o regime sem tocar nas suas bases; podem
suavizar o mal agudo, mas consolidam as causas do malestar social.
Na época da ocupação das fábricas em Turim, o Parlamento tudo sufocou, deixando os trabalhadores entregues ao fascismo. Enquanto isso, uma fração do Partido
Socialista ofereceu-se para, aliada da burguesia, salvar
suas instituições. Daí a proclamação de Malatesta: que
os trabalhadores intimem os que dizem seus amigos a
deixarem o Parlamento e lutarem ao seu lado.
Na comédia parlamentar, as eleições são fraudadas
pelo governo e pela classe capitalista, daí a grande maioria do Parlamento ser composta de burgueses e seus
representantes; os proletários eleitos só servem para
um simulacro de oposição. Se a grande maioria de eleitores é composta de assalariados, deveriam eles compor a maioria no Parlamento, a burguesia deixaria expropriar-se em obediência à maioria? Lembra Malatesta:
o fascismo nada ensinou a essa gente? Esclarece: “desde
o início do desvio parlamentarista nós lhes dissemos —
aos socialistas — se algum dia fossem maioria parlamentar seriam expulsos aos pontapés no traseiro e que
lhes seria necessário se submeter ou recorrer à insurreição, com a diferença de que o povo teria se tornado
menos apto à insurreição devido à propaganda
eleitoralista. Acreditam que a burguesia desarmaria
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verve
Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
seus fascistas, os mandaria para casa, deixaria os
carabinieri (polícia) e os magistrados serviriam fielmente aos governantes socialistas?”
Conclui ele: a tática eleitoral e parlamentar acabou
com o espírito revolucionário das massas e conduziu à
abdicação do socialismo. Os socialistas podem chegar
ao governo, porém, ocuparão postos subalternos se deles a burguesia precisar para conterem a onda popular.
Poderiam fazer até uma boa obra administrativa, “seriam bons administradores e talvez liberais” – esclarece
Malatesta – “socialistas, não”!
Julgava ele, em artigo no jornal Umanità Nuova, de 22
de agosto de 1922, enquanto partidos estiverem atacados pela peste do parlamentarismo, nunca farão revolução. Isso não quer dizer que ele se posicione contra toda
e qualquer reforma social. Esclarece Malatesta: “incitamos os trabalhadores a querer e a impor todas as
melhorias possíveis e impossíveis e é por isso que gostaríamos que eles não se resignassem a viver em más
condições hoje esperando o paraíso futuro. E se somos
contra o reformismo, não é porque as melhorias parciais não nos interessam, mas porque acreditamos que o
reformismo é um obstáculo não somente à revolução, mas
até mesmo às reformas”6.
Diz ele, temos horror pela mentira democrática que,
em nome do povo, oprime o povo no interesse de uma
classe, “o parlamentarismo corrompeu e castrou os socialistas, corromperá e castrará os comunistas”7.
Após enunciar que uma insurreição implica preparo
técnico, acentua: “como acreditar nisso quando se vê os
que falam nisso preocupados com as eleições municipais, submeter-se a decretos governamentais sobre
invalidez e seguro-velhice, enquanto dizem querer expropriar a burguesia”8?
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Esclarece Malatesta, que combate o Partido Socialista quando ele exige e pretende disciplinar as massas
para aceitarem uma nova tirania, quando quer que as
massas sigam cegamente os “chefes”, da mesma maneira como combate as Câmaras do Trabalho e Cooperativas quando se tornam órgãos de conservação e colaboração com a burguesia. Porém, quando o Partido Socialista permanece no terreno revolucionário, quando as
organizações operárias permanecem órgãos de luta contra o patronato e as cooperativas sob gestão direta dos
trabalhadores, toda nossa simpatia e cooperação lhe são
dadas9.
Em outro artigo publicado em Umanità Nuova a 1 de
maio de 1920, Malatesta define sua posição a respeito
da célebre proposta de “ditadura do proletariado” dos
bolcheviques. Para ele, nada mais é do que o governo
absoluto de um, ou melhor, dos chefes de um partido que
impõem a todos o seu programa particular, quando não,
seus interesses particulares. Ela se apresenta sempre
como provisória, mas, como todo poder, tende a se perpetuar e a aumentar seu próprio poder e acaba, ou por
provocar uma revolta, ou por consolidar um regime de
opressão.
O comunismo imposto levaria a perder o apoio das
massas e só poderia contar com a ação estéril e perniciosa da burocracia. Embora respeitasse a sinceridade e
admirasse sua energia, Malatesta não deixava de notar
que o conceito ditadura do proletariado significa ditadura de todos, o que é impossível, o proletariado fica na
posição de povo nos regimes liberais, serve para esconder as coisas. Na realidade é uma ditadura de chefes de
um partido, com sua força armada, que poderá ser empregada contra os trabalhadores para consolidar interesses de uma nova classe.
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Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
Razão pela qual escrevia de Londres a 30 de julho de
1919: “Lênin, Trotsky e companhia certamente são revolucionários sinceros em relação a seu modo de compreender a revolução e não a trairão; mas preparam os
quadros estatais que servirão àqueles que, em seguida,
virão se aproveitar da revolução e matá-la. Serão os primeiros a serem vítimas de seu método e a revolução cairá com eles, temo por isso. É a história que se repete:
mutatis mutantis, é a ditadura de Robespierre que levou-o ao cadafalso e preparou o caminho para Napoleão”.
Temia Malatesta que o poder nascido da revolução
utilizado contra os reacionários e inimigos externos, após
serem vencidos, servisse para se impor às massas, deter a revolução e defender novos privilégios. Mostra
Malatesta, em artigo de 1 de maio de 1920 em Umanità
Nuova, “quando o governo ditatorial for formado e os órgãos estatais criados, os socialistas sinceros que não
desejariam chegar aonde este fato tenderá necessariamente a conduzi-los, serão as primeiras vítimas de seu
sistema”.
Lênin e Trotsky reprimiram Makhno e Cronstadt,
Stalin liquidou o último de seus adeptos. Lênin morrera
a tempo.
Acentua Malatesta que a revolução não teme a reação daqueles que foram expropriados de sua propriedade e perderam os meios de ataque, temível é a reação
daqueles que aspiram à ditadura.
Malatesta critica a polaridade estabelecida na norma: uns trabalham, outros os defendem, assim foram
justificados exército, polícia, e quaisquer instituições
parasitárias e opressivas. Propõe o término da dualidade,
um maneja a pá e outro a espada, pois o que tem a espada explora o que tem a pá. Conclui ele, “nós não desejamos este tipo de comunismo, aquele que trabalha deve
223
4
2003
e pode se defender, se precisar contratar um protetor
permanecerá escravo”10.
Polemizando com um defensor do bolchevismo, em
artigo do Umanità Nuova de 18 de julho de 1920, argumenta Malatesta que Maxim, o defensor do leninismo,
deveria mostrar por que as dificuldades seriam resolvidas por uma ditadura e não pela ação direta dos trabalhadores; prossegue: “ele deveria nos demonstrar como
e por que os homens mais ativos e inteligentes seriam
mais úteis estando no governo onde desperdiçariam o
melhor de seus esforços para se manter no poder, ao
invés de estar no meio das massas, trabalhando, incitando os outros a trabalhar e tomando todo tipo de iniciativas benéficas”. Conclui salientando que “este modo
de pensar de ‘Maxim’ é o de todos reacionários e conservadores: o medo e o desprezo da massa e a fé na virtude
taumatúrgica (milagrosa) que a ‘autoridade’ confere a
quem dela está investido. Ele é um adepto fervoroso do
chicote, mas pelo menos, nos diz que deve ter este chicote na mão”.
No fundo da questão teórica da ditadura há sempre
esta questão prática: quem deve ser o ditador? O movimento operário fica premido entre essa corrente autoritária e a eleitoralista reformista que esquece os fins,
“uma longa experiência nos ensinou que os interesses
eleitorais levam sempre a melhor sobre todas as razões
doutrinárias concernentes ao futuro”11.
A respeito da formação da III Internacional, pergunta ele: seu Programa será discutido, proposto e formulado num Congresso? Como será convocado? Os delegados de todas organizações operárias e partidos subversivos poderão participar com direitos iguais?
Critica tanto a idéia da formação de uma Internacional Comunista como uma Socialista ou Anarquista, pois
224
verve
Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
elas visariam um programa particular e não a Internacional dos Trabalhadores. Essa, sim, deveria unir todos
os trabalhadores, sejam eles anarquistas, socialistas,
sindicalistas, respeitando os métodos de luta de cada
um, preservando a identidade de fins, uma Internacional assim se constituiria em alavanca da luta social.
Em artigo publicado no Umanità Nuova a 2 de setembro de 1920, salienta ele a importância da URSS como
“farol”, uma esperança, contínua fonte de inspiração para
o proletariado mundial, criticando o regime de concessões mútuas da diplomacia soviética, que poderá despedaçar o ímpeto revolucionário abrindo o caminho à “restauração”. Critica ele a volta da diplomacia secreta na
URSS, resultando que “uma coexistência do sistema
comunista e do sistema capitalista seria eventualmente tentada e a revolução seria finalmente assassinada”.
Em outro artigo publicado a 4 de maio de 1922,
Malatesta mostra que os anarquistas sempre lutaram
pelo poder aos sovietes; assim, Emma Goldman e Alexandre Berkman, anarquistas norte-americanos, gostariam de fazer tudo que pudesse ser útil aos sovietes.
Porém, o governo russo dá mais importância à sua manutenção no poder do que à revolução e joga os anarquistas na prisão, fuzilando-os.
Malatesta encontra-se em Spezia (Itália) com um
enviado do governo russo, Sandomirsky, atestando que
“ele reconheceu como verdadeiras todas as acusações
que lhe apresentamos contra o governo de Lênin: supressão total de toda liberdade de imprensa, reunião,
associação, greve, as falsas acusações de banditismo
lançadas aos anarquistas que eles queriam suprimir; a
onipotência da polícia secreta, as prisões, as torturas,
225
n
4
2003
deportações assassinas, execuções sumárias de anarquistas, socialistas e comunistas dissidentes”.
A isso nada é preciso acrescentar.
Finaliza Malatesta, analisando criticamente a “justiça revolucionária” do Estado Operário a serviço de um
governo que, para permanecer no poder e impedir que a
revolução se desenvolva, emprega meios de repressão
iguais aos utilizados pelo antigo regime militar. Os tribunais militares, a pretexto de defender a “revolução”
como os outros defensores da “ordem”, dirigem seus golpes contra os revolucionários que eram uma ameaça
para o poder recentemente estabelecido.
Diz o partido dominante na URSS que representa uma
classe, quando a revolução fôra feita para abolir as classes. Dizem que representam o proletariado fabril, mesmo assim “os conscientes”, mas só os inscritos no PC e
assim só a camarilha governante. Estes querem ter o
direito de vida e morte e dispor do destino de um povo
que fez a mais gloriosa das revoluções, exclama
Malatesta.
Notas
1
Texto originalmente publicado como introdução ao livro Anarquistas, Socialistas e Comunistas; uma coletânea de diversos artigos de Errico Malatesta, publicado pela Ed. Cortez, 1989. Tradução de Plínio A. Coêlho. Edição esgotada.
2
Luigi Fabbri. Malatesta. Buenos Aires, Editorial Americalee, 1945, p. 192.
Errico Malatesta. A Anarquia. Brasília, Novos Tempos, 1988, p. 71. [Reeditado
na Coleção Escritos Anarquistas, vol. 1. [N. do E.].
3
4
Idem, pp. 75-6.
5
Ibidem, p. 77.
6
Umanità Nuova, 1 de junho de 1920.
226
verve
Malatesta e sua concepção voluntarista de anarquismo
7
Idem, 3 de setembro de 1921.
8
Ibidem, 20 de julho de 1920.
9
Ibidem, 25 de agosto de 1920.
10
Idem, 1 de maio de 1920.
11
Ibidem, 3 de outubro de 1920.
Indicado para publicação em 11 de novembro de 2002
227
4
2003
errico malatesta — revolta e ética
anarquista
nildo avelino*
O anarquismo em sua gênese, em suas aspirações, em
seus métodos de luta não está necessariamente vinculado
a nenhum sistema filosófico. O anarquismo nasceu da rebelião moral contra as injustiças sociais. A partir do momento em que aqueles homens que se sentiram como sufocados pelo ambiente social em que estavam obrigados a
viver e cuja sensibilidade caiu ferida diante da dor alheia,
e ante a sua própria, e em que estes homens se convenceram de que grande parte da dor humana não se deve fatalmente a inexoráveis leis naturais ou sobrenaturais, senão
que provém de fatos sociais que dependem da vontade humana — então se abriu o caminho que devia levar ao
anarquismo.
Errico Malatesta, Pensiero e Volontà, 01/09/1925
* Mestre em Ciências Socias pela PUC-SP e integrante do Centro de Cultura
Social de São Paulo.
verve, 4: 228-263, 2003
228
verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
Errico Malatesta é, sem dúvida, uma das referências
internacionais do movimento anarquista, figurando entre aquelas vozes que deram ao anarquismo seu corpo
de concepções e práticas históricas. Juntamente com
Proudhon, Bakunin e Kropotkin, Malatesta forma o quarteto que “pensou” o anarquismo, pesem as valiosas e
quase desconhecidas contribuições de William Godwin
e Max Stirner, e reservou para as gerações futuras um
certo número de práticas com as quais os grupos e indivíduos pautaram sua atuação.
Conhece-se algumas razões da pertinência histórica desse quarteto.
Proudhon, o tipógrafo de Besançon, produziu a obra
que o tornou o revolucionário mais conhecido de toda a
França: O que é a Propriedade? Ou estudos acerca do princípio do direito e do governo, em 1840. A resposta entusiástica se tornou a máxima revolucionária mais famosa
do século XIX: “É o roubo! E, implicando a negação da
propriedade na negação da autoridade, deduz-se imediatamente de minha definição este corolário não menos
paradoxal: a verdadeira forma de governo é a anarquia”1.
Ao contrário da tradição socialista de sua época,
Proudhon concebeu algo completamente original em relação àquilo que ofereceram as concepções do saintsimonismo e pela tradição autoritária remanescente do
jacobinismo; com efeito, ele proporá algo novo: inventou
uma concepção antiestatal de gestão econômica, escapando da moda de sua época e dos prejuízos dela advindos.
O que tornou possível para Proudhon esse gesto
inventivo? Não se trata de responder nesse artigo a essa
pergunta; mas, ela situa-se naquilo que podemos chamar de problematização do pensamento ou, em todo caso,
na maneira pela qual verdades “menores” colocam em
questão aquilo que até então era tido por verdadeiro; na
maneira como saberes descentralizados e não-hierar-
229
4
2003
quizados, questionam, interrogam e, como que lançando
um desmentido, retiram sempre os efeitos de poder pelos quais o verdadeiro era legitimado. Trata-se de um
pensamento que não nasce dos conceitos, mas da sua negação e da declaração da sua insuficiência diante da vida;
simultaneamente, é um pensamento que parte intuitivamente de um imediato sentimento da vida para depois
devolvê-lo “teoreticamente”. O que está em jogo, portanto, é resolver o problema da vida, ao qual tudo o mais deve
orientar-se para sua solução. “Um dia perguntei-me: Por
que tanta dor e miséria na sociedade? Terá o homem de
ser eternamente infeliz? E, sem me deter nas explicações dos empreendedores de reformas, que atribuem à
miséria geral, uns à imperícia do poder, outros aos conspiradores e aos motins; outros ainda à ignorância e à
corrupção gerais; cansado dos combates intermináveis
entre a tribuna e a imprensa, quis eu próprio aprofundar
o problema. Consultei os mestres da ciência, li cem volumes de filosofia, direito, economia política e história; e
quis Deus que vivesse um século em que tanta leitura
me fosse inútil!”2.
Bakunin foi um jovem entusiasta da esquerda
hegeliana que penetrou nos segredos da filosofia alemã
entre os anos de 1835-1836; com efeito, “esta foi para
Bakunin então uma realidade, uma verdade que podia
situar-se no lugar ocupado pelas supostas verdades religiosas”3. Acreditou, com isso, na possibilidade da completa expansão da Liberdade e Solidariedade no mundo
inteiro e em pouco tempo passou a ser o revolucionário
mais temido da burguesia européia, o conspirador incansável da ordem pública e o combatente de todas as
barricadas; o revolucionário sobre quem pairava a impressão de que no “primeiro dia da revolução é uma verdadeira jóia, mas no dia seguinte deve ser fuzilado”4; de
quem o general da Revolução de 1848, Flocon, teria de-
230
verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
clarado que “se houvesse na França trezentos homens
como Miguel Bakunin, todo governo seria impossível”5.
Um homem que tendo ainda conhecido de perto o terrível poder do czar russo Nicolau I, o encarceramento e
evasão da sua tenebrosa fortaleza de Pedro e Paulo, tornou-se uma lenda para os círculos operários europeus
do final do século XIX. E foi exatamente com uma descrição lendária que Zola a ele se referiu num dos seus
romances: “Besteiras! Mas que seja... Aliás, essa tal de
Internacional vai funcionar mesmo, dentro em breve.
Ele está tratando disso”. “Ele quem?”. “Ele!” Esta última
palavra fôra pronunciada a meia voz, com fervor religioso, em direção ao Oriente. Falava do mestre, de Bakunin,
o exterminador. “Só ele pode, tem força para isso — continuou. Esses teus sábios são uns idiotas com suas teorias da evolução. Dentro de três anos a Internacional,
sob as ordens de Bakunin, vai esmagar o velho mundo”6.
Kropotkin foi a grande personalidade internacionalmente reconhecida pela comunidade científica por suas
pesquisas na Sibéria em geografia e geologia, realizadas para a Sociedade de Geografia Russa, mantendo
estreita relação com a Geographical Society, colaborando
na imprensa especializada de sua época como o
Geographical Journal, The Nineteenth Century e a British
Encyclopedia; “poeta da ciência”, como dirá dele
Malatesta, a quem se deve o desmentido das teorias do
darwinismo social de Huxley. Também o “príncipe” do
anarquismo, para mencionar o termo bastante inapropriado lançado pelo historiador Woodcock; em todo caso,
foi certamente o “intérprete da utopia anarquista” mais
lido pelos círculos operários, artísticos e intelectuais,
nas regiões onde a cultura anarquista preponderou. A
esse respeito, pode-se citar como exemplo o folheto por
ele escrito em 1881, “Aos Jovens”, de grande circulação
231
4
2003
e influência, traduzido para doze idiomas e levado para
os países da América do Sul e para os Estados Unidos7.
Também autor da obra, provavelmente a mais celebrada no meio anarquista, A conquista do pão, de 1892, em
que buscou as bases científicas ao slogan do “bem estar
para todos”, erguendo em teoria a solidariedade entre os
homens e desenvolvendo os princípios morais da sociedade futura. Kropotkin encontrou para o anarquismo
uma justificação científica, operando em seus postulados uma sistematização sem precedentes e cuja implicação foi um afastamento do problema da vida. Disse
que “a ciência contemporânea conseguiu deste modo
um duplo objetivo. Por um lado deu ao homem uma preciosa lição de modéstia, ensinado-lhe que é tão-somente uma partícula infinitamente pequena do universo.
Com isso, o retirou de seu estreito e egoísta isolamento. Dissipou sua ilusão de crer-se centro do universo e
objeto da preocupação especial do criador. Ensinou-lhe
que sem o grande Todo, nosso “Eu” não é nada e que
para determinar o “eu” um certo “tu” é imprescindível”8.
Malatesta foi um jovem estudante de medicina que
interrompeu os estudos para dedicar a vida ao movimento anarquista; homem de poucos escritos, de ação comedida, mas de grande influência entre aqueles com
quem conviveu e de incansável militância. Manteve ação
ativa na Internacional e se tornou mundialmente conhecido, não por algum sistema de idéias, mas, paradoxalmente, pelas polêmicas sustentadas com democratas, socialistas, comunistas e anarquistas, pelo substrato
pedagógico e ético que essas polêmicas contém e pela
sensibilidade política que elas transmitem. Ao contrário de seus predecessores, não valorizou nem a ciência,
nem a filosofia, mas inventou uma concepção que ficou
conhecida como voluntarismo anarquista que postulou o
232
verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
anarquismo como um estilo de vida em que se reclama
uma atitude diante da autoridade.
É preciso reconhecer que há entre esses homens
diferenças, muitas vezes, insuperáveis. É preciso ver
que o anarquismo, embora possa ser concebido como
“um conjunto de postulados básicos convergentes”9, no
seu desenvolvimento histórico há pouca ou quase nenhuma linearidade, mas há alguma descontinuidade. E
penso que essa descontinuidade é fundamental para
entendê-lo de uma forma mais libertária e mais anárquica, evitando a celebração unitária e reducionista das
teorias totalizantes.
Malatesta se diferenciou dos outros militantes anarquistas que procuraram fundamentar suas premissas
socialistas libertárias ora na razão (como Godwin), ora
nas leis sociais (como Proudhon), ora num certo
evolucionismo (como Kropotkin); a singularidade de
Malatesta reside no fato dele ter buscado a validade da
proposta socialista libertária em fundamentos éticospolíticos, ou seja, no movimento real dos indivíduos e
das associações de indivíduos. Há em Malatesta uma
menoridade10 em relação aos seus predecessores e contemporâneos; uma menoridade, entretanto, que não é
da ordem da teoria: seu pensamento é inseparável de
sua ação e sua conduta é resultante de seu amplo envolvimento com a realidade de sua época. Malatesta conviveu com os últimos anos da vida de Bakunin, conheceu
os terrores da repressão à Comuna de Paris, assistiu à
criação e à extinção da seção italiana da Primeira Internacional, a formação da Segunda, o triunfo da Revolução Russa e a sua posterior decadência. Viveu e morreu sob o fascismo. Essa trajetória, da qual os limites
desse artigo não nos permitirão dar conta, é todavia o
que possibilita ver em Malatesta “um exemplo de
233
4
2003
integração de teoria e prática, raro nos dias que correm”11.
Tudo ocorre como se o anarquismo, partindo com
Proudhon de um intuitivo sentimento de vida, formulando-se como solução para o problema da vida, ganhasse em extensão com a ação e o sentido dado por Bakunin
e, posteriormente, em sistematização pela interpretação
de Kropotkin, o que vai provocar um certo esvaziamento
ético de seus postulados, um certo afastamento daquela
imediata intuição da vida que lhe é originário. Finalmente, a anarquia é retomada dentro de uma dimensão ética-política com Malatesta. É o que este artigo pretende esclarecer.
Descontinuidades
Até a influência de Bakunin a partir de 1868, a AIT
(Associação Internacional de Trabalhadores), fundada
em 1864, tem como seus principiais elementos constitutivos os sindicalistas britânicos e os mutualistas franceses unidos pelo desejo de “melhorar” as condições da
classe operária no seio da sociedade existente e no desprezo, principalmente entre os franceses, pela luta política. As razões dessa “melhoria das condições” podem
ser buscadas naquela “prudência” própria a Proudhon e
que deve ser atribuída à sua concepção de progresso. A
correspondência que jogou Proudhon e Marx em campos inimigos ressalta não apenas a diferença de caráter entre os dois socialistas, como também a posição de
ambos em relação ao socialismo. Marx, em sua carta,
manifestou a necessidade do que chamou de um coup
de main, o “momento de ação” ou choque revolucionário; Proudhon lhe respondeu que “nossos proletários têm
tal sede de compreensão que seríamos por eles muito
234
verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
mal recebidos se nada lhes déssemos a beber senão sangue”12.
Para Proudhon “quem diz revolução diz necessariamente progresso” e isso não apenas retira o valor de
qualquer Revolução como ruptura brusca, mas ainda a
coloca num campo negativo como apelação à força e como
arbitrariedade e, neste sentido, como contradição e contra-revolução. Para ele, o progresso nunca se apresenta
como uma repentina metamorfose, e sim como prolongamento e conseqüência das etapas do desenvolvimento que a precede; o “golpe” não é mais que um movimento sucessor da velha ordem pela nova ordem que se
descobre pelo corte e pela descontinuidade. É por isso
que a “pregação” revolucionária é para ele uma arrogância desmedida, onde: “acumular os ressentimentos e,
se é possível fazer essa comparação, armazenar, por
compreensão, a potência revolucionária, é condenar-se
a franquear de um salto todo o espaço que a prudência
ordena recorrer no detalhe e pôr, no lugar do progresso
contínuo, o progresso em saltos e tremores”13.
Essas foram as noções que animaram a ala mutualista francesa e suíça da Internacional, as mais expressivas até a chegada de Bakunin.
O enfraquecimento dessa tendência pôde ser percebido já em 1867. No congresso de Lausanne, as tendências de melhoria das condições abrandaram sensivelmente e a Internacional se viu empurrada pela força
dos acontecimentos em direção ao coletivismo inspirado por Bakunin. Já não se trata de melhorar as condições e reformar a sociedade existente, mas de destruíla para construir outra nova, e assim o coletivismo se
desgarra e se impõe progressivamente, enquanto os
“progres-sistas”, em cada greve declarada, perdem ter-
235
4
2003
reno em proveito dos partidários da ruptura revolucionária.
Bakunin terá um papel eminente nesse processo de
radicalização da Internacional e com ele o anarquismo
viverá sua “época das revoluções” nesse contexto de vicissitudes do movimento operário europeu que compreende o período de 1830-1870, cujo ápice pode ser visto
na aparição da 1ª Internacional e seu declínio na repressão à Comuna de Paris. É sem dúvida um dos períodos mais turbulentos da história do movimento operário. Nesta época a Europa é constantemente convulsionada por revoltas e insurreições populares que são em
si a demonstração da força de sua organização. O grande tremor que iria sacudir o mundo em 1848 havia destronado a monarquia francesa e implantado o governo
provisório. Disse Bakunin: “me levantava as quatro, às
cinco horas da madrugada e me deitava as duas, permanecendo todo o dia em pé, assistindo as assembléias, reuniões, clubs, manifestações, passeios ou demonstrações; em uma palavra, absorvia por todos os meus
sentidos e por todos os meus poros a embriaguez da atmosfera revolucionária”14.
É desta forma que até 1870 o efervescente clima revolucionário europeu, com o crescimento espantoso da
AIT e sua radicalização sem precedentes sob a influência de Bakunin, acalentou nos militantes a certeza da
greve geral, como o estopim para a Revolução Social. As
crescentes greves a partir de 1866 foram seguidas de
uma adesão em massa à Internacional; em Lyon se disse, após um episódio grevista, que “não foi a Internacional quem empurrou os operários para a greve, e sim a
greve que os lançou na Internacional”15. Durante o Congresso de Genebra, em 1866, o número de adesistas na
França não ultrapassou 500; em 1868 eram apenas
2.000; mas, em 1869, e nos primeiros meses de 1870,
236
verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
os inscritos somavam 245.000 membros16. Nesta altura
o proudhonismo “esfriou” e prevaleceu o coletivismo
inspirado por Bakunin. Toulain, um dos mais expressivos proudhonianos, cedeu lugar a Eugène Varlin, um
dos maiores expoentes do anarco-sindicalismo francês,
considerado o “antecedente vivo de Pelloutier, Griffulhes,
Merrheim, Monatte, etc.”17.
No entanto, em 15 de Julho de 1870 foi anunciada a
guerra franco-prussiana. Paris foi encerrada num círculo de fogo e Napoleão III rendeu-se em 2 de Setembro.
Ao receber a notícia, o Império se desintegra e proclama-se a República. Em 28 de março de 1871 é proclamada a Comuna com 229.000 votos.
Em maio, Thiers reúne 130.000 soldados que afogam
em sangue as barricadas dos comunardistas. A seção
franco-suíça da Internacional fornece muitos dos seus
combatentes. Um dos mais célebres entre os jovens combatentes internacionalistas foi Eugène Varlin. Combateu em todas as barricadas da Comuna e, quando não
restou nenhuma, abandonou-se ao azar. Reconhecido e
denunciado por um padre na Place Cadet foi detido pelo
tenente Sicre que o conduziu de mãos atadas às costas.
O jovem membro da Internacional foi, segundo
Lissagaray, um dos maiores historiadores da Comuna,
o nervo das associações operárias do final do Império.
Incansável, modesto, um dos primeiros que em 18 de
março trabalhou durante toda a Comuna e esteve em
suas barricadas até o fim. A sua morte é terrível e marcará profundamente a geração anarquista seguinte:
“Aquele Varlin que arriscara a vida para salvar os reféns da rue Haxo foi arrastado mais de uma hora pelas
ruas escarpas de Montmartre. Sob uma chuva de golpes, sua jovem cabeça meditativa, que só tivera pensamentos fraternos, converteu-se em montão de carne
informe, com um olho pendendo da órbita. Quando che-
237
4
2003
gou à rue des Rosiers, ao estado maior, já não caminhava, era carregado. Sentaram-no para o fuzilamento. Os
soldados destroçaram o cadáver a coronhadas. Sicre roubou seu relógio e se enfeitou com ele”18.
Cem mil pessoas caíram vítimas da repressão à
Comuna. Thiers, defendendo o “máximo rigor”, proferiu
a frase que se tornou célebre: “O socialismo estaria acabado por muito tempo”19. De fato, o afogamento em sangue da Comuna foi igualmente o extermínio do movimento revolucionário francês; com ela, a seção da Internacional francesa, a mais expressiva, desaparecu
deixando-a à disposição das manobras de Marx e
Engels20, que culminou na expulsão, em setembro de
1872, durante o congresso de Haia, da ala anti-autoritária e federalista representada por Bakunin.
Será preciso uma análise mais detalhada para se tirar maiores proveitos do impacto que a feroz repressão
que se abateu sobre o movimento operário nesta década de 1870 imprimirá nos corações dos militantes. Entretanto, podemos supor que tenha sido o bastante para
uma reavaliação de suas táticas, o que pôde ser ouvido
anos mais tarde nas palavras de Reclus, ex-preso
comunardista, ao declarar que “aqueles dentre nós que
combateram pela Comuna conhecem essas terríveis
ressacas da maré humana. Na partida para os postos
avançados, acompanhavam-nos saudações comoventes,
lágrimas de admiração brilhavam nos olhos daqueles
que nos aclamavam, as mulheres agitavam seus lenços carinhosamente. Mas qual foi a acolhida dos heróis
da véspera que, depois de ter escapado do massacre,
retornaram como prisioneiros entre duas fileiras de soldados? Em muitos bairros, o povo compunha-se dos mesmos indivíduos; mas que contraste absoluto em seus
sentimentos e em sua atitude! Que conjunto de gritos e
de maldições! Que ferocidade nas palavras de ódio. [...]
238
verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
[Concluindo que] Já não basta lançar-se furiosamente
à batalha [...]. A primeira condição para o triunfo é nos
livrarmos da ignorância”21.
Daqui por diante, os métodos de ação anarquistas
sofreriam uma sensível mudança, sobretudo com a atuação da conhecida corrente anarco-comunista representada por Kropotkin, Reclus e Malatesta. Os chamados “à
Revolução”, a ação de sublevar as massas descontentes
e incitá-las ao motim foram, certamente não abandonados, mas relativizados pela geração seguinte de anarquistas. Um certo ingrediente ético-pedagógico seria intensificado nos métodos anarquistas com objetivo de fomentar não apenas a revolta, mas “forças conscientes”.
Um outro impulso seria dado ao anarquismo numa
direção distinta daquela que inspirava Bakunin. Com
efeito, essa jovem geração de anarquistas que se declarará comunista, acolherá não apenas o encanto incendiário de Bakunin, como também a amarga lição dos
tempos.
A emergência de Errico Malatesta
A pessoa
Neste contexto é que emerge a figura de Errico
Malatesta. Nascido em 14 de dezembro de 1853, em Santa Maria Capua Vetere, uma cidade pouco habitada perto de Nápoles, de uma família pertencente à pequena
burguesia. Conhece Saverio Merlino, com quem polemizou mais tarde, quando se dedicou aos estudos clássicos em uma escola religiosa. Aos quatorze anos, escreveu uma carta insolente ao rei Victor Manuel II que
o levou à prisão onde ficou detido um dia. De volta à
família, o pai, de formação liberal, tentou dar-lhe lições
de moderação. Não pretendia segui-lo e deste ouviu as
239
4
2003
seguintes palavras: “Pobre filho meu, sinto em dizerlhe, porém acabarás na forca!”22. É provável que o impulso antimonarquista e até mesmo seu republicanismo
“precoce” fosse devido ao fato de ter contemplado, ainda
na sua infância, os efeitos do absolutismo dos Bourbons
e a epopéia garibaldina na sua cidade natal, palco de
violentos enfrentamentos. Já em Nápoles, fora da Faculdade de Medicina, Malatesta participou das manifestações populares motivadas pela unificação italiana, declarando a Max Nettlau, “Como republicano contemplei
pela primeira vez o interior de um cárcere da monarquia”23; foi republicano desde os quatorze anos e manteve vivas simpatias por Giuseppe Mazzini, escrevendo
em 1926, aos 73 anos que, “no fundo de nosso coração e
nos sentimentos que ele nos inspirou, fomos mazzinianos como Mazzini foi internacionalista”24.
Os veteranos da sociedade secreta mazziniana observavam o comportamento de seus candidatos ao ingresso durante um certo tempo, sendo depois proposta a
admissão; foi informado a Mazzini que Malatesta tinha
um espírito “independente, propício à desobediência,
pouco disposto em submeter-se à rigorosa disciplina
intelectual e moral”, teve seu pedido de adesão a
Alleanza Republicana Universale negado, o que o lançou às fileiras da Internacional, em 1871, conhecendo,
entre outros, Giuseppe Fanelli.
Dedicou-se de corpo e alma à seção italiana, interrompendo seus estudos de medicina na Universidade
de Nápoles. Atirou seu patrimônio na propaganda e na
organização anarquistas. Dirigiu-se ao congresso de
Saint-Imier, em 1872, porém antes encontrou-se, pela
primeira vez, com Bakunin, em Zurique, onde permaneceu dezesseis dias. A relação entre os dois passou a
ser estreita e freqüente fazendo do jovem italiano um
secretário ocasional de Bakunin. Com efeito, observou
240
verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
Nettlau que: “Bakunin viveu conosco por que sobreviveu durante mais de meio século na modesta figura de
Malatesta”25.
Não obstante, algumas distinções marcarão os métodos de ação entre Bakunin e Malatesta. Ao contrário
de Bakunin, Malatesta não foi o “incendiário”, o propagandista poderoso, ardente e irresistível ao qual se atribui a personalidade de Bakunin. Malatesta, veremos,
também tinha o “diabo no corpo”, mas a fascinação e o
entusiasmo que exerceu era de outra natureza. Não lançou mão de grandes palavras, tampouco utilizou uma
literatura rebuscada e eloqüente. Segundo Luigi Fabbri,
“seu melhor livro, Malatesta o escreveu com sua própria vida”26.
Em Malatesta isso é enfático. Fabbri recorda o dia
em que o conheceu como sendo “o da impressão mais
forte de sua longínqua juventude”. Neste primeiro encontro, iniciou com ele uma discussão num sábado
que durou até às três da manhã do dia seguinte, interrompida para descansar e despertar às sete da
manhã para continuar a conversa que terminou ao
anoitecer. Depois disso, a anarquia que lhe era a fé
mais radiante de sua primeira juventude, tornou-se
saber vital.
Malatesta convenceu mais pela sua pessoa do que
por uma lógica aparente. Ao falar, o interlocutor era atraído não por um palavreado rebuscado, mas por um despertar das “melhores qualidades”. Esse “fundo” de sensibilidade política a tudo que é intolerável e inaceitável,
que podemos chamar “racionalidade estética”, contido
nas palavras de Malatesta, é de onde resultou sua eficácia persuasiva que provocou enorme influência nos
lugares mais díspares e antagônicos. A ex-rainha de
Nápoles, Maria Sofia, nutriu profunda impressão por
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Malatesta; noutra ocasião Malatesta, durante um processo, fez correr as lágrimas de alguns juízes e policiais
ao falar das famílias operárias. Fabbri menciona como o
juiz Alípio Alippi, católico e reacionário, lhe falou sobre
Malatesta, a quem tinha conhecido por razões de ofício,
declarando que “se todos os anarquistas tivessem sido
como Malatesta, a anarquia teria podido ser uma realização da palavra de Cristo”27. E quando, em 1913-14, aos
guardas encarregados em vigiar dia e noite a porta de
sua casa, foi perguntado se ele não escaparia durante
seu revezamento, eles responderam que: “Um homem
tão bom como ele não pode fazer nenhum mau”.
Do mesmo modo aconteceu durante um encontro em
Persieto no ano de 1920. O pequeno coreto da praça reservado para seu discurso, foi cercado por uma numerosa patrulha de carabineros muito bem armados. “Parecia uma provocação!”. Perguntou-se a Malatesta se não
era necessário exigir a saída da força pública: “Não —
respondeu —, deixem-nos tranqüilos; também falarei para eles”. Começou falando da miséria das famílias camponesas de Itália dentro das quais o Estado recruta, aproveitando-se do impulso da fome de que padece, a maioria dos carabineros e agentes de polícia; falou das mães
cujos filhos muitas vezes não voltam a ver novamente.
Assustado pela impressão das palavras de Malatesta em
sua tropa, o tenente acreditou mais prudente fazê-la sair
e deixar o meeting se desenvolver sem vigilância alguma28.
Pesando sobre Malatesta o ammonizione, espécie de
liberdade vigiada, encontrou em 1876, num bairro da
periferia de Nápoles, um antigo diretor de um cárcere
de Trani, que o recebeu com grande alegria. Malatesta
contou-lhe que era perseguido pela polícia e não sabia
mais onde esconder-se para passar a noite: “Vem à minha casa — lhe disse Battistelli —; te esconderei”. “On-
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verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
de? No Cárcere!” [exclamou Malatesta] “Malatesta aceitou. Assim foi que, por alguns dias, para não ser encarcerado, o temido internacionalista se refugiou... no cárcere!”29.
Fabbri recorda como Malatesta se levantou contra um
companheiro, fazendo-o corar e calar-se, por ter falado
com pouca consideração a respeito de uma prostituta. E
ao passar seus últimos anos na Itália fascista, viveu
em estreita humildade devido à ajuda de companheiros
do exterior. Porém, foi ainda essa ajuda que também
lhe permitiu auxiliar, uma vez e outra, em socorro de
algum desventurado além da fronteira, anarquista ou
não.
Certa vez, num momento de crise quando morou em
Londres, os amigos o aconselharam a vender coisas na
cidade. Adquiriu um carrinho de mão e alguns doces e
saiu. No primeiro dia aproximou-se um menino mal vestido que lhe pediu um doce. Malatesta deu-lhe, seguido
de carícia afetuosa. Aos poucos chegaram mais e mais
crianças até que Malatesta se viu cercado delas, que
ganharam todos os doces. Ao ser perguntado por
Kropotkin como andava o novo ofício, respondeu sorridente: “Clientela não me faltaria, porém me faltam os
meios de adquirir as mercadorias”30.
É preciso insistir que essa disposição para a generosidade, que não deve ser confundida com fraqueza, se
trata de uma bondade viril. Se trata de uma capacidade
de julgamento e de diferenciação que repousa sobre a
sensibilidade. Isso era para ele nada mais que anarquia,
era arma de luta e fermento de rebeldia. Para Malatesta a
existência anarquista não se limita à persuasão lógica e
teórica acerca das injustiças da organização social; não
basta a simples manifestação do convencimento de uma
melhor organização. O valor anarquista reside num sen-
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timento que se pode ter pela vontade. Esse sentimento
é a generosidade voluntária e deliberada pelo próximo,
pelo desejo do bem-estar alheio e pela sua liberdade:
“Que não nos venham com ‘filosofias’ [dizia] a nos falar
de egoísmo, altruísmo e outros quebra-cabeças. Estamos
de acordo: somos todos egoístas, todos buscamos nossa
satisfação. Porém é anarquista aquele cuja máxima
satisfação é a de lutar para o bem de todos”31.
Para Malatesta o ódio à opressão e o desejo de poder
expressar a própria personalidade não bastam para fazer de alguém anarquista; essas aspirações devem ser
acompanhadas pelo desejo de que todos desfrutem de
igual liberdade, e da junção destas surge um estilo com
o qual não se obtém mais que rebeldes anarquistas.
Malatesta fez do sentimento de simpatia uma posição política que para ele era o mesmo valor que a solidariedade para Kropotkin, mas em oposição aberta a este
se recusou transformá-lo em arte de teoria. Esse sentimento o fez pronunciar que se dispunha a “sacrificar
todos os princípios para salvar um homem” e que “se
para vencer se devesse elevar a forca nas praças, preferia perder”.
Mesmo pesando sobre as costas uma condenação, em
1884, dirige-se a Nápoles para ajudar no combate a uma
epidemia de cólera; segundo consta, seus conhecimentos de medicina fizeram com que o setor que orientou
tenha registrado mais curas, pelo que lhe foi endereçado um despacho oficial de agradecimentos pelo empenho. Malatesta respondeu: “a verdadeira causa da cólera é a miséria e o único remédio eficaz para evitar o
regresso da epidemia era a revolução social”.
É preciso mencionar ainda o fato de Malatesta ter
abandonado a faculdade de medicina muito cedo, e de
ter, aos vinte anos, aprendido a profissão de mecânico
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verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
eletricista na oficina de seu amigo internacionalista,
Agenore Natta, profissão que manteve até a morte. A
lamentar fica apenas o fato de Malatesta nunca ter se
ocupado em sistematizar seu pensamento. Fabbri sublinhará que seu maior impedimento material foi que deveu trabalhar sempre para viver. Desde então, Malatesta
se entregou a um trabalho extenuante.
Durante seu exílio em Londres, Pietro Gori encontrou Kropotkin para visitarem Malatesta; ao chegarem,
viram-no suspendendo um letreiro de uma firma comercial. Kropotkin, então, exprimiu: que homem admirável!,
ao que acrescentou Gori: “Sim, Malatesta é admirável;
porém que triste mundo é esse que obriga a uma inteligência tão alta a gastar tempo, energia e saúde em um
trabalho como esse, que tantos outros saberiam realizar, impedindo-lhe de efetuar aquilo que só ele sabe fazer! E que grande erro de nosso movimento não achar
um modo de permitir a este homem cumprir aquele trabalho, mais útil à humanidade, de que tão capaz ele é!”32.
E foi ainda Fabbri quem o encontrou em Roma, em 1923,
já com setenta anos, na mesma circunstância que fez
Gori pronunciar essas palavras.
De fato, para Malatesta viver com menos sacrifícios
dependia da recusa voluntária aos privilégios que lhe
trouxesse sua grande inteligência; poderia ter colecionado títulos e adquirido status sem, no entanto, abandonar suas posições anarquistas tal como fizeram seus
velhos amigos Kropotkin e Reclus; era, porém, contrário ao conforto da profissão literária e desprendido dos
luxos da vida.
Dentre os grandes “teóricos” do anarquismo internacional, e aqui poderíamos dizer Godwin, Proudhon,
Bakunin e Kropotkin, Malatesta foi o anarquista de carne e osso; jamais foi um “revolucionário especialista”,
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nem santo, nem herói, nem sequer um homem “predestinado”; foi um companheiro entre os outros. Jamais
impôs seus argumentos sob o peso da sua personalidade ou em nome de qualquer outra verdade científica ou
filosófica. Evitou a idéia vulgarizada do “super-homem”,
do culto à personalidade e durante o congresso de Berna, em 1876, Malatesta protestou contra o costume de
chamarem a si mesmo de “bakuninistas”: “por que não
somos, já que não compartilhamos de todas as idéias práticas e teóricas de Bakunin, e sobretudo por que seguimos as idéias e não os homens, e nos rebelamos contra o
costume de encarnar um princípio em um homem”33. Por
isso Malatesta jamais se utilizou de truques oratórios,
sabendo fazer transbordar em seus escritos uma lógica
sensível e de sentido comum.
Sobre o homem que foi Malatesta, é preciso dizer ainda que se trata da atitude anarquista na sua mais clara
expressão: recusou-se a vincular o anarquismo a qualquer sistema filosófico ou científico. Anarquia era para
ele uma conduta, um modo de vida individual e social,
ou, como gostava de dizer, “uma hipótese experimental
aplicada à arte de viver em sociedade”.
A ação
Malatesta conheceu e conviveu com uma galeria de
grandes homens. Garibaldi, Mazzini, Marx e Bakunin
foram os primeiros mestres de sua juventude; ingressou na seção napolitana da Internacional aos dezessete
anos, da qual se tornou secretário no inverno de 1872.
Mas foi de Bakunin que recebeu uma forte influência.
No mesmo ano, foi a Zurique encontrar a delegação
espanhola que regressava do congresso de Haia, e também com o próprio Bakunin. Durante inúmeras discussões, funda com ele e outros companheiros a Aliança
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verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
dos Revolucionários Socialistas; assistiu o congresso
anti-autoritário de Saint-Imier do qual resultou a reprovação das propostas marxistas e autoritárias.
Retornou à Itália para assistir a um congresso em Bolonha, sendo preso e encarcerado por 54 dias. Ao ser posto
em liberdade, pretendeu fazer uma viagem secreta com
Bakunin para Barcelona, e ao fazer os preparativos, juntamente com Cafiero, foi novamente detido por mais seis
meses.
A década de 1860-70 foi particularmente repressiva
na Itália, sobretudo devido às ações dos garibaldinos e
da Alleanza de Mazzini; foi então que, em 1874, preparando uma insurreição generalizada, Malatesta percorreu de Nápoles à Sicília, organizando ações e fornecendo armamentos. Ao fim dessa revolta, seguiu-se um
imenso processo contra ele e outros revolucionários em
Trani. Vai para Lugano (Suíça), em 1875, e verá Bakunin
pela última vez.
De volta à Itália, Malatesta se envolve em novo levante, e é novamente detido juntamente com outros 23
revolucionários. Não podendo mais permanecer na Itália, percorre respectivamente Egito, Síria, França, Suíça, Bélgica, exilando-se finalmente em Londres, em
1881.
Conhece em Genebra, no ano de 1879, Kropotkin, a
quem vê com freqüência em Londres; em 1882, irá ao
Egito na tentativa de sublevar os árabes contra os ingleses. Depois segue, com outros companheiros, para
Buenos Aires, onde manterá uma intensa propaganda
coordenada durante os anos de 1885 a 1889, dirigindo o
jornal bilíngüe La Questione Sociale e fundando, com
outros companheiros, o sindicato dos padeiros, um dos
mais combativos. No ano seguinte vai à Patagônia dedi-
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car-se ao garimpo, tentando obter ouro para a propaganda anarquista34.
Ao regressar à Europa, no verão de 1889, Malatesta
encontrou o anarquismo debilitado e o socialismo parlamentarista fortalecido. Max Nettlau observará que na
década de 1880 o anarquismo se resumia a três concepções: o individualismo americano de Tucker, o coletivismo espanhol e o comunismo franco-italiano35; as
cisões resultantes dessas diferenças teóricas reduziram
a propaganda anarquista à quase esterilidade. Foi quando Malatesta escreveu seu “Appello”, insistindo na necessidade de abandonar todos os “exclusivismos de escola” para a formação de associações livres, por livres
pactos. Segundo Malatesta, “fora destes extremos não
teremos razão de dividirmos em pequenas escolas pelo
furor de determinar com excesso as particularidades,
variáveis segundo o lugar e o tempo, da sociedade futura [...] não é lícito dividirmos por puras hipóteses”36.
As palavras de Malatesta, na época, soaram como
heresias. O ambiente era constituído pelos anarquistas
que consideravam como fórmulas definitivas as idéias
de Kropotkin por um lado, e por outro, pelos anarquistas
ultra-individualistas que se especializaram em atacar
os “organizadores” e “moralistas” da anarquia. Os escritos de Kropotkin eram considerados como as últimas
palavras da anarquia, e vivia-se um ambiente tranqüilamente sem organização e sem relações organizativas.
Malatesta, sem polemizar abertamente com Kropotkin,
passa a escrever sobre as necessidades da organização.
Suas idéias foram mais bem acolhidas na Itália e na
Espanha, onde pronunciou diversas conferências em
Barcelona e Sevilha e manteve estreito contato com
Ricardo Mella.
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verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
Retornou clandestinamente à Itália e fundou no ano
de 1897, em Ancona, o periódico L’Agitazione, iniciando
a conhecida polêmica com Merlino, contra suas tendências parlamentaristas, que durou um ano.
Foi preso durante uma manifestação em 1898 e condenado a “domicilio coatto” (desterro) por cinco anos
numa ilha inóspita em Ustica. Isso não estava em seus
planos. Na noite de 09 de maio de 1899, atirou-se na
água com outros companheiros e nadaram até um barco próximo da ilha. Parte para os Estados Unidos no
mesmo ano, quando polemiza com o anarquista individualista Giuseppe Ciancabilla e sua publicação L’Aurora.
Será vítima de um atentado durante uma conferência
em Nova Jersey, após uma calorosa discussão com um
ouvinte que após interrompê-lo várias vezes saca uma
pistola e o fere na perna. O autor do disparo, imobilizado
por Gaetano Bresci (futuro assassino do rei de Itália,
Humberto I), não era anarquista, desmentindo o que se
atribuiu muitas vezes a Ciancabilla37.
De volta a Londres em 1900, dirigiu-se a Paris no 1º
de Maio de 1906 aguardando uma grandiosa manifestação, no apogeu do anarco-sindicalismo. Retorna à Londres decepcionado. Estando em sua residência, Fabbri o
surpreendeu com a “fé diminuída, que era muita em
1897 e até há pouco, no movimento sindicalista”38. Em
Paris, teve a impressão que o sindicalismo estava em
sua fase descendente e que diminuiu, ao invés de aumentar, a combatividade dos anarquistas; impressionoulhe o fato de que o vigoroso caráter de lutadores se imobilizou e se acomodou nos postos de responsabilidade e
direção das organizações sindicais. A hostilidade de revolucionário só se fazia sentir contra as últimas rodas
da engrenagem estatal, enquanto que com os principais responsáveis se discutia afavelmente.
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Malatesta sentiu atenuar-se o espírito de rebelião
no sindicalismo francês, fazendo com que seus militantes escolhessem caminhos mais cômodos. Ele estava
convencido da necessidade dos sindicatos, bem como das
associações culturais, agrupamentos recreativos, etc.,
porém afirmou que tudo isso resulta inútil “sem a luta
e a revolta diretas e ativas, sem fatos revolucionários
concretos”39. No ano seguinte, durante o Congresso Internacional Anarquista de Amsterdã, todos foram tomados por uma surpresa geral ao verem Malatesta se opor
ao sindicalismo tal como era apresentado.
Em 1913, Malatesta resolve voltar à Itália diante dos
acontecimentos que levaram à “semana vermelha”.
Toma essa decisão pesando-lhe sessenta anos, idade
com a qual muitos revolucionários se retiram da vida
pública para dedicarem-se às suas memórias. Funda,
juntamente com Luigi Fabbri e César Agostinelle, um
dos mais expressivos periódicos de Itália: Volontà. Conhece o então diretor da folha socialista Avanti!, Benito
Mussolini, de quem dirá “esse homem é revolucionário
apenas no jornal. Não há nada que fazer com ele!”40.
É obrigado a evadir-se novamente para Londres, no
ano seguinte, onde debaterá abertamente com Kropotkin
e o grupo dos “quinze” na polêmica contra a guerra que
assume a extensão da ruptura pessoal entre os dois velhos amigos. Malatesta retorna à Itália em 1919, em
plena ascensão fascista.
Lá é recebido como uma grande figura pública, por
uma multidão que o aplaudiu sob bandeiras vermelhas
nos bairros populares por onde passava. O Corriere della
Sera dizia que “o anarquista Malatesta é hoje uma das
maiores personagens da vida italiana. As multidões das
cidades correm ao seu encontro e lhe entregam as chaves de suas portas, como costumava fazer em outro tem-
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Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
po, só que já não há portas”41. Em Milão, funda o periódico Umanità Nova, em 1920.
Foi preso mais uma vez em 1919, juntamente com
outros companheiros fazendo greve de fome em protesto. Na primeira página o Umanità Nova estampou que
Malatesta corria um grande risco de morrer devido sua
idade e grande debilidade física. A Itália comoveu-se e
ocorreram, de imediato, inúmeras greves e atentados.
O fascismo fecha a edição de Umanità Nova. Malatesta
fazia sua última viagem ao estrangeiro clandestinamente, em setembro de 1922, por ocasião das comemorações do cinqüentenário do congresso anti-autoritário de
Saint-Imier e do qual era o último participante vivo.
Nessa ocasião, publica longo artigo lembrando “A Primeira Internacional”. Por ocasião de seu 70º aniversário, um grupo de amigos ofereceu a Malatesta os meios
de continuar trabalhando pela causa. Por iniciativa do
periódico Fede!, dirigido por Luigi Damiani, foram recolhidos alguns milhares de liras para que o já velho militante pudesse iniciar uma nova publicação regular. Em
1º de janeiro de 1924, surge em Roma Pensiero e Volontà
(Rivista quindicinale di studi sociali e di coltura generale. Roma,
1924-1926), publicação que Malatesta não redigiu como
atividade periodística. Nela se encontram os seus escritos mais extensos e, na falta de palavra melhor, mais
maduros, relatando suas recordações de Bakunin e
Kropotkin e delimitando os erros e êxitos destes militantes.
Malatesta passou os últimos anos de sua vida em
prisão domiciliar; isso também foi um ato voluntário,
pois seu amigo Fabbri lhe havia sinalizado várias vezes
para deixar a Itália. Malatesta não quis! Sua oficina tinha sido saqueada pelos fascistas, as casas onde fazia
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algum trabalho mecânico eram por eles revistadas, ficando limitado a viver da ajuda de seus companheiros.
Mussolini impôs-lhe um duro silêncio. Colocou diante de sua porta uma vigilância de 24 horas, e o simples
ato de cumprimentar-lhe na rua levava quem o praticasse a um interrogatório. Era uma figura demais notória para ser fuzilada e muito corajosa para se deixar em
paz: foi preciso matá-lo aos poucos!
Quando morreu em 22 de julho de 1932, em Roma
aos 79 anos, apenas sua companheira, filha e sobrinhos,
puderam acompanhar o féretro. O espectro de sua pessoa era tal que o comissário de polícia dizia em nota
confidencial que “hoje, o célebre anarquista Errico Malatesta faleceu, em Roma. Peço que a vigilância sobre os
elementos anarquistas e subversivos seja intensificada, a fim de se impedir todo e qualquer tipo de manifestação. Recomendo a maior atenção, visto que Malatesta
tinha muitos partidários, há vários anos que aqui se
encontrava e fazia uma propaganda eficaz”42.
Os fascistas o enterraram em vala comum e jogaram sobre sua tumba uma cruz, contrariando os pedidos da família para se fazer um enterro ateu.
O pensamento
Malatesta é considerado, com unanimidade, o mais
realista entre aqueles pensadores anarquistas internacionais; a atualidade e a contemporaneidade de suas
idéias está nesta perspectiva, como se constata nas inúmeras polêmicas que travou dentro e fora do movimento anarquista sobre individualismo, comunismo,
antimilitarismo, sindicalismo, parlamentarismo, disciplina, violência, greve, etc. Em todos esses assuntos,
seus interlocutores eram surpreendidos pela ducha fria
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verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
do pragmatismo e realismo malatestiano. Nettlau dizia
que todos os outros pensamentos “parecem diferenciarse de Malatesta”, e que embora internacionalmente se
tenha seguido a figura mais brilhante de Kropotkin,
“oxalá depois de sua morte se chegue a compreender
enfim Malatesta!”43.
“Compreender, enfim, Malatesta” significa abdicar de
um pensamento único do anarquismo, muito em voga
ontem e hoje. Significa entender o anarquismo como
processo e devir, e os anarquistas como sujeitos moralmente autárquicos, que se bastam a si mesmos, com
potencialidades associativas. Não nos espanta que
Malatesta, ao contrário de seus predecessores, tenha
sido odiado pelos anarquistas ansiosos em fazer valer
seu ponto de vista; suas opiniões eram tidas como fantasias e quimeras e “teve Malatesta que resistir à crescente inimizade de quase todas as tendências anarquistas”44. Ele foi o principal responsável por manter o
anarquismo fora de dogmatismos e comodismos, que
hoje, mais do que nunca, deve obter a máxima importância.
Malatesta pronunciou, por ocasião do 50º aniversário da morte de Bakunin, calorosas e não menos duras
observações: “eu fui bakuniniano, como todos os camaradas de minha geração, infelizmente já distante no tempo. Hoje, depois de longos anos, não me considero mais
como tal. Minhas idéias se desenvolveram e evoluíram.
Hoje, penso que Bakunin foi muito marxista na economia política e na interpretação histórica. Creio que sua
filosofia se debatia, sem conseguir sair, numa contradição entre a concepção mecanicista do universo e a fé
na eficácia da vontade sobre os destinos do homem e da
humanidade”45. Para ele, no momento em que os anarquistas se rogaram “filósofos” e “científicos”, originou-
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se uma confusão de palavras e idéias nocivas ao
anarquismo.
Na polêmica com Kropotkin, o grande anarquista
entusiasta do desenvolvimento científico desse período,
por exemplo, Malatesta criticou a confusão que se estabelece entre ciência e anarquismo. Em sua obra A ciência moderna e a anarquia, Kropotkin tentou fundamentar os ideais do socialismo com base em resultados da
investigação científica. Malatesta, não apenas foi o crítico destas concepções mas seguiu outros caminhos.
Sem a ambição de ser “teórico” não formulou nenhum
sistema. Ao contrário, dizia que se pode ser anárquico
sob qualquer sistema filosófico: “há anarquistas materialistas como há outros, como eu, que [...] preferem declarar-se simplesmente ignorantes”46. Era anarquista
não por que a ciência indicou, mas por que quis.
Para Malatesta, as ciências e as teorias, sempre hipotéticas e provisórias, são um meio cômodo de reunir
e relacionar fatos conhecidos e um instrumento útil para
a investigação, o descobrimento e a interpretação de
novos fatos, mas jamais serão a verdade; isso porque a
ciência, sobretudo a “ciência social”, é quase sempre
um verniz com o qual alguns cobrem seus desejos e vontades.
Ele não acreditou na infalibilidade do Papa, da Moral
e da Sagrada Escritura, mais do que na ciência e neste
sentido a dúvida lhe pareceu a posição mental de quem
aspira aproximar-se da verdade, pois ela se coloca no
campo infinito da investigação e do descobrimento, e
apenas admite verdades provisoriamente e relativamente
na espera de novas verdades: “Nenhuma fé, pois, no sentido religioso da palavra”: à vontade de crer Malatesta
opôs a vontade de saber.
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Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
Malatesta discutiu abertamente suas divergências
com Kropotkin um ano antes de vir a falecer, em seu
último escrito de 15/04/1931, artigo onde recorda seu
velho amigo: “Pietro Kropotkin — Ricorde e critiche di
un vechio amico”.
Kropotkin, na sua tentativa em fixar o lugar da anarquia na ciência moderna, disse que a anarquia é uma
teoria do universo baseada na interpretação mecânica
dos fenômenos, e que alcançava toda natureza incluindo a vida social.
Malatesta respondeu que “isso é filosofia, aceitável
ou não, porém certamente não é nem ciência nem anarquia”47. Para ele, anarquia é uma aspiração humana
que não parte de nenhuma verdade, ou suposta verdade, ou necessidade natural, e cuja realização depende
unicamente da vontade dos homens. Ela aproveita os
meios que a ciência põe ao seu alcance, tanto quanto
aproveita igualmente os progressos filosóficos: “porém
não pode ser confundida, sem cair no absurdo, nem com
a ciência, nem com qualquer sistema filosófico”.
Se por um lado, dirá Malatesta, Kropotkin se mostrou severo em relação ao fatalismo marxista, por outro
caiu num fatalismo mecanicista ainda mais paralisante.
Assim é que sua filosofia não poderia deixar de influir
na sua visão de futuro: tendo o comunismo anárquico
que ocorrer necessariamente, as dificuldades eram suprimidas ou ocultadas na forma de um otimismo exagerado e dentro de uma uniformidade mórbida.
Aqueles que pensaram o “anarquismo cientifico” não
conseguiram escapar à moda de sua época. Nestas concepções, observou Malatesta, há “um pouco de sobrevivência das idéias religiosas” incorporadas pela ciência,
na qual a divisa “tudo ocorre pela vontade de Deus”, foi
substituída por “tudo ocorre segundo a natureza” ou “tudo
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ocorre segundo a ciência”. Para Malatesta, tudo ocorrerá ou não segundo a vontade dos indivíduos livremente
associados.
Entregar os destinos humanos ao providencialismo
científico, não é menos diferente que entregá-lo nas
mãos de Deus! A solidariedade para Malatesta não está
dada na natureza, quando muito trata-se apenas de um
slogan em que alguns homens se aferram. Ao contrário,
a luta, a competição, os interesses discordantes constituem a realidade vivida: “Quando se diz que a liberdade
de um indivíduo acha, não o limite, mas o complemento
na liberdade dos demais”, se expressa em forma afirmativa um ideal sublime, talvez o mais perfeito que se
possa destacar na evolução social; porém, se com isso
se pretende afirmar um fato positivo, atual, ou que poderia atuar-se depois de destruir as instituições presentes, muda-se simplesmente a realidade objetiva por
concepções ideais de nosso cérebro. [Já que a realidade] prova que muitas vezes nossa liberdade acha um
limite na liberdade dos demais”48.
Polêmicas não menos penosas Malatesta sustentou
durante toda sua vida; a mais longa delas, objeto de livro, foi sobre o parlamentarismo, mantida igualmente
com um velho amigo de militância anarquista, Saverio
Merlino.
Merlino foi propagandista do anarquismo por mais de
vinte anos, e igualmente crítico das posições comunistas kropotkinianas. A partir de 1897 passou a defender
as eleições como forma de luta, reclamando a importância das chamadas liberdades políticas e da sua defesa devendo ser travada em todos os terrenos, incluindo
o eleitoral: “nos dias que correm, cabe ao partido socialista (no qual incluo também os anarquistas não individualistas) a defesa da liberdade. Esta luta, na minha
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verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
opinião, deve ser travada em todos os terrenos, incluindo o das eleições, mas não exclusivamente nele”49.
Malatesta respondeu imediatamente dizendo que
“habituar o povo a delegar para outros a conquista e defesa dos seus direitos é a maneira mais segura de deixar livre curso à arbitrariedade dos governantes. O parlamentarismo vale mais do que o despotismo, é verdade; contudo, só quando aquele representa uma concessão
feita pelo déspota, com medo do pior. Entre o parlamentarismo que se aceita e gaba, como se fosse uma meta
intransponível, e o despotismo que se suporta, porque a
tal se é forçado, com o espírito absorto pela desforra, é
mil vezes melhor o despotismo”50.
Malatesta desenvolveu essa polêmica com Merlino,
a mais longa que sustentou, até janeiro de 1898. Cabe
mencionar que a polêmica não é apenas de altíssima
qualidade, mas também é tomada de respeito, honestidade e clareza que Malatesta preservou em relação a
Merlino até sua morte. Por ocasião desta, disse que
Merlino “foi um dos escritores mais capazes, mais claros e mais convincentes, entre os que escreveram sobre o tema que tanto defendemos. [...] Colocamos sobre
a sua campa a flor do reconhecimento, fazendo votos
para que um dia a nova geração tenha a possibilidade
de conhecer a sua obra anarquista, que ignora totalmente”51.
Vontade anarquista
Exceto os seus numerosos artigos, aos quais sempre
foram escritos tendo por objetivo debater e orientar o
público anarquista, serão seus cinco ensaios considerados os mais representativos de seu pensamento: “Entre Camponeses”, “No Café”, “Em Tempo de Eleições”, “A
anarquia” e “Nosso Programa”; destes cinco ensaios, os
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três primeiros são escritos na forma de diálogos dirigidos ao público geral, onde questões cotidianas levam a
exposições muito completas das concepções anarquistas. O mais célebre deles, “Entre Camponeses” (Fra
Contadini, 1884) chama seu interlocutor a absorver as
idéias sem disso aperceber-se; trata-se, em suma, de
uma técnica que, levando o interlocutor a contradizerse, o faz problematizar a si mesmo e onde, ao invés de
“informar”, “forma” nele valores que, ao contrário do discurso impessoal, recobre uma dimensão ética da adesão voluntária de seu interlocutor. Mesmo em um texto
supostamente “informativo” como “A anarquia”, depara-se com alocuções como: “imaginem, pois, que ao homem de pernas atadas, do qual falamos, o médico expõe
toda uma teoria e dá mil exemplos habilmente inventados para persuadi-lo de que, com suas pernas livres ele
não poderia caminhar nem viver, este homem defenderia enraivecidamente suas correntes e consideraria
como inimigos aqueles que quisessem arrebentá-las”52.
Os diálogos de Malatesta não visam construir uma
teoria, nem uma norma ou demonstrar o bem; sua concepção anarquista é avessa a isso, ele não subordinou o
anarquismo a nenhuma teoria filosófica ou científica.
Para ele, o anarquismo é uma atitude anti-autoritária e
de solidariedade social, um alvo a realizar por uma vontade criadora e para a qual a finalidade da propaganda é
a persuasão; aqui o sujeito ético é peça fundamental,
pois de sua vontade depende a atitude anarquista. Vêse relativizada uma certa idealização das massas, própria a Bakunin. No voluntarismo malatestiano, o apelo
é do “indivíduo” ao “indivíduo”; vê-se igualmente um
caminho oposto trilhado por seu velho amigo Kropotkin,
para quem “toda sociedade que romper com a propriedade particular, ver-se-á forçada, no nosso entender, a organizar-se em comunismo anarquista”53.
258
verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
Para produzir efeitos anarquistas é necessário uma
vontade anarquista, e para formar essa vontade há a
propaganda que, por meio da educação, difunde os valores e os sentimentos anárquicos o mais amplamente
possível. Para Malatesta, ainda que destruído o Estado e
a propriedade, a anarquia não nascerá por obra da natureza nem por força dos fatos, é preciso querê-la; e neste
sentido, discorda tanto de Bakunin como de Kropotkin.
Nele, o único fato inegável é que queremos viver a anarquia porque queremos tirar da vida a máxima satisfação
possível, e quando se nega a vontade e a faz parecer
risível frente a todo esforço para um objetivo qualquer, é
porque esse objetivo repugna nossos sentimentos fazendo a ação impossível.
O que é vontade? perguntava-se. “Não sabemos, assim como não sabemos o que são, em sua essência, a
matéria e a energia”54. O fato é que queremos viver uma
vida consciente e ativa e essa vida exige certas disposições necessárias que podem ser inconscientes, mas que
estão sempre nos ânimos de todos: “ide persuadir de que
os anarquistas têm razão a alguém que seja insensível
aos males alheios, que se apraz em viver do trabalho
dos demais, que se satisfaz circundado de escravos obedientes! Um sentimento não se comunica senão despertando um sentimento análogo no ânimo alheio. E a
anarquia reside completamente em um sentimento: o
respeito à personalidade humana e o amor a todos”55.
É por isso que a palavra vontade sintetiza bem a concepção de sociedade anarquista para Malatesta, uma vez
que não pode ser mais que uma sociedade de homens
que cooperam voluntariamente para o bem de todos. Ademais, a vontade lhe aparece como única força criadora
tangível, única força que, operando por minorias e núcleos diversos de anarquistas, é capaz de ir subtraindo
às “multidões volúveis” sua adaptação ao ambiente e
259
4
2003
seu estado de apatia. É preciso liberar das “massas” sua
vontade para que ela perca o hábito de se deixar governar e para isso é preciso um longo e paciente trabalho
de preparação e organização popular, sem cair na ilusão da revolução “a curto prazo”, que apenas é factível
pela iniciativa de poucos e por curto período.
Ambrósio — “Porém, se os homens não quiserem pensar nisso?”
Jorge — “Tanto pior para eles. Você não quer compreender: não há nenhuma providência, seja divina ou
natural, que se ocupe do bem dos homens. De seu bem,
é necessário que os homens se preocupem por si mesmos, fazendo o que julguem útil e necessário para conseguir o fim. E você dirá ainda: porém, e se não querem? Nesse caso não conseguirão nada e permanecerão presas das forças cegas que lhes circundam. É o que
acontece hoje: os homens não sabem como fazer para
serem livres, e os que sabem, não querem fazer o que é
preciso para libertar-se. E por isso continuam sendo
escravos. Porém esperamos, mais cedo do que você pensa, que eles saibam e queiram. Então, serão livres!”56.
Notas
Pierre-Joseph Proudhon. Las Confesiones de un revolucionario para servir a la
Historia de la Revolucion de febrero de 1848. Buenos Aires, Editorial Americalee,
s/d, p. 137.
1
Pierre-Joseph Proudhon. O que é a propriedade?. Lisboa, Editorial Estampa,
s/d, p. 13.
2
260
verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
Max Nettlau. Socialismo Autoritario y Socialismo Libertário: estúdios y sugerencias
sobre la accion internacional del anarquismo en la lucha contra la reaccion mundial.
Barcelona, Guilda de Amigos del Libro, s/d, p. 47.
3
Rudolf Rocker. As idéias absolutistas no socialismo. São Paulo, Ed. Sargitário,
1946, p. 65.
4
5
Idem.
6
Émile Zola. Germinal. São Paulo, Circulo do Livro, s/d, p. 251.
Cf. Marinice da Silva Fortunato. A categoria solidariedade humana no pensamento
de Kropotkin. São Paulo, Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, 1998, p. 107.
7
Piotr Kropotkin. Etica (parte primera). Origen y evolucion de la moral. Buenos
Aires, Editorial Argonauta, 1925, p. 19.
8
Jaime Cubero. As idéias-força do anarquismo. Centro de Cultura Social, datilo,
1991.
9
Menoridade enquanto ausência de pretensões à maioridade, permanecer menor. A esse respeito ver Edson Passetti. Éticas dos amigos — invenções libertárias
da vida. São Paulo, Imaginário/CAPES, 2003.
10
11
Mauricio Tragtenberg. “A atualidade de Errico Malatesta” in Folha de São Paulo,
16/01/1973, p. 06-07.
12
Cf. Armand Cuvillier. Proudhon. México, Fondo de Cultura Econômica, 1986,
p. 138.
Peter Heintz. Problemática de la autoridad en Proudhon – ensayo de una crítica
inmanente. Buenos Aires, Editorial Proyección, 1963, p. 54.
13
Mikhail Bukunin. Confesión ao Zar Nicolás I. Barcelona, Ed. Labor, 1976, p.
69.
14
15
Jacques Freymond (dir.). La Primeira Internacional, Tomo I. Madri, Edita Zero,
1973, p. 16.
Cf. Juan Gomes Casa. Nacionalimperialismo y Movimento obrero en Europa – hasta
después de la segunda Guerra Mundial. Madrid, CNT-AIT, 1985, p. 66.
16
17
Idem, p. 71.
Prosper-Olivier Lissagaray. História da Comuna de 1871. São Paulo, Ensaio,
1995, p. 285.
18
19
Idem, p. 284.
É conhecida a posição de Marx-Engels diante da guerra franco-prussiana;
Marx, que chamava a seção internacionalista franco-suíça de “asnos proudhonianos”, escrevia a Engels em 20/07/1870: “Os franceses precisam de umas
chicotadas. Se os prussianos saem vitoriosos, a centralização do poder do
20
261
4
2003
Estado será útil à concentração da classe operária alemã. A preponderância
alemã, ademais, transportará o centro de gravidade do movimento operário
europeu da França para Alemanha; e basta comparar somente o movimento em
ambos os países desde 1866 até agora para ver que a classe operária alemã é
superior à francesa, tanto do ponto de vista teórico como na organização. A
preponderância, no teatro do mundo, do proletariado alemão sobre o proletariado francês, seria ao mesmo tempo a preponderância de nossa teoria sobre a
de Proudhon”. Apud Juan Gomes Casa, op. cit., p. 74.
21
Élisée Reclus. A evolução, a revolução e o ideal anarquista. São Paulo, Imaginário/
Expressão & Arte, 2002, p. 51.
22
Luigi Fabbri. Malatesta. Buenos Aires, Editorial Americalee, s/d, p. 62.
Max Nettlau. “En memoria de Errico Malatesta” in Errico Malesta. Escritos.
Fundación de Estúdios Libertarios Anselmo Lorenzo, 2001, p. 363.
23
24
Vernon Richards. “Apuntes para una biografía” in Malatesta, vida e ideas.
Barcelona, Tusquets Editor, 1977, p. 296.
Max Nettlau. Socialismo Autoritário y Socialismo Libertario: estúdios y sugerencias
sobre la acción internacional del anarquismo en la lucha contra la reacción mundial.
Barcelona, Guilda de Amigos del Libro, s/d, p. 52.
25
26
Luigi Fabbri, op. cit., p. 60.
27
Idem, p. 23.
28
Cf. Luigi Fabbri, op. cit., p. 24.
29
Idem, 73.
30
Luigi Fabbri, op. cit., p. 25.
31
Errico Malesta. Volontà. 15/06/1913.
32
Luigi Fabbri, op. cit., p. 54.
33
Vernon Richards. op. cit., p. 295.
Ver a respeito Christian Ferrer. “Gastronomia e anarquismo — vestígios de
viagens à Patagônia trapeiro”. Verve, São Paulo, Nu-sol, no 3, 2003, pp. 137160.
34
Max Nettlau. La anarquía a través de los tiempos. Barcelona, Edições Júcar,
1978, p. 121.
35
36
Max Nettlau. “En memoria de Errico Malatesta” in Errico Malatesta. op. cit.,
p. 374.
37
Cf. Vernon Richards. op. cit., p. 338.
38
Luigi Fabbri. op. cit., p. 119.
39
Idem. p. 120.
262
verve
Errico Malatesta — revolta e ética anarquista
40
Ibidem, p. 130.
41
Idem. p. 140.
Júlio Carrapato. “Breve posfácio” in Errico Malatesta e Francesco Saverio
Merlino. Democracia ou Anarquismo? A célebre polêmica sobre as eleições, o parlamentarismo, a liberdade, o anarquismo e a ação revolucionária que apaixonou a Itália rebelde.
Faro, Edições Sotavento, 2001, p. 257.
42
43
Max Nettlau. La anarquía a través de los tiempos. op. cit., p. 144.
Max Nettlau. “En memoria de Errico Malatesta” in Errico Malatesta, op.
cit., p. 379.
44
Errico Malatesta. Escritos revolucionários. Brasília, Novos Tempos, 1989, p.
130.
45
46
Errico Malatesta. Pensiero e volontà. 01/07/1925.
47
Idem, p. 56.
48
Errico Malatesta. Escritos. op. cit., p. 21.
Francesco Saverio Merlino. Il messaggero. 29/01/1897. Errico Malatesta e
Francesco Saverio Merlino. op. cit., pp. 10-11.
49
50
Errico Malatesta. Il messaggero. 07/02/1897. Idem, p. 13.
51
Errico Malatesta. Il risveglio. 26/07/1930. Ibidem, pp. 214-215.
Errico Malatesta. A anarquia e outros escritos. São Paulo/Brasília, Centro de
Cultura Social/Ed. Novos Tempos, 1987, p. 10.
52
53
Piotr Kropotkin. A conquista do pão. Lisboa, Guimarães & Cia. Editores, 1975,
p. 45.
Errico Malatesta. Pensiero e volontà. 01/02/1926 in Vernon Richards, op. cit.,
p. 63.
54
55
Luigi Fabbri, op. cit., p. 196.
Errico Malatesta. Hacia una nueva humanidad. Porto Alegre, Edições Proa,
1969, p. 136.
56
Recebido para publicação em 10 de março de 2003
263
4
2003
assinado:
Edgard Leuenroth
264
verve
As idéias-força do anarquismo
as idéias-força do anarquismo1
jaime cubero*
Apresentação
A inauguração do Centro de Cultura Social de São
Paulo é anunciada pela A Plebe, com a publicação do
anúncio: “Sábado, 14 de janeiro de 1933, às 20:00hs, no
salão da Quintino Bocayuva, 80. A Comissão convida para
este ato”.
Remanescente da grande atividade “anarco-sindicalista” e assim como os sindicatos, o CCS é uma organização pública do movimento anarquista destinada a estudar e debater os problemas sociais tendo por objetivo
“promover nos meios populares, principalmente entre
os trabalhadores, onde as possibilidades de cultura são
limitadas por toda sorte de empecilhos, o estudo de uma
nova ordem de coisas baseadas em princípios de justiça
e de equidades sociais, que facultem a cada indivíduo e
* Jaime Cubero participou da reativação do Centro de Cultura Social de São
Paulo, nos anos 1980. Aglutinou anarquistas e libertários e tornou-se referência para militantes e pesquisadores, acolhendo-nos com generosidade, humor e
contundência (Nota dos Editores).
verve, 4: 265-277, 2003
265
4
2003
à coletividade, o gozo de uma situação de liberdade e
bem estar, resultado do esforço comum e a que todos
fazem jus” (Estatutos).
Nele, as tradições anarquistas foram transmitidas
de geração em geração. Edgard Leuenroth, Pedro Catallo,
Florentino de Carvalho, entre outros, que lutaram ao
lado da primeira geração de imigrantes anarquistas em
São Paulo, formaram a geração seguinte dos irmãos
Cuberos, José Oliva Castillos, Lucca Gabriel, Nito Lemos, Antonio Martinez, entre outros.
Sua trajetória pode ser dividida em três fases: a primeira vai da sua fundação em 1933 até o seu fechamento pela ditadura getulista em 1937 e diz respeito à
sua forte atuação, junto com a Federação Operária de
São Paulo, nas lutas antifascistas que culminariam no
enfrentamento entre anarquistas e integralistas na
praça da Sé em 1934; a segunda refere-se ao período
que vai da sua reabertura em 1945 até novamente ser
fechado em 1969, após a promulgação do Ato Constitucional de nº 5; e a terceira fase diz respeito às atividades desenvolvidas após a abertura democrática em 1985
até os dias de hoje.
Nildo Avelino
É comum e da tradição na divulgação de textos e conferências de propaganda sobre anarquismo, começarse com definições e explicações sobre a palavra anarquia, a partir da origem etimológica (do grego: an privativo, negativo e arkhê, poder = ausência de poder), ou
seja, na (sem) arkhê (autoridade, governo), “estado de
um povo que se rege sem autoridade constituída, sem
governo” (Malatesta). É evidente a preocupação de libertar a palavra das conotações seculares que a tornaram
266
verve
As idéias-força do anarquismo
sinônimo de desordem, caos, bagunça e desorganização.
Mas os termos verbais ou escritos, que expressam o conteúdo dos conceitos, têm seu sentido alterado com o tempo, muitas vezes de forma capciosa, exigindo para seu
emprego, definições que tornem clara a intencionalidade
e o sentido. Por exemplo: julgamos que os conceitos de
poder, governo, assim como o de socialismo e outros, devem ser bem claros e definidos quando empregados no
sentido anarquista.
Há uma diferença sutil no discurso, mas importante
na realidade entre poder político e poder social. O primeiro exerce o poder de coação: uma ou mais pessoas
têm o poder de obrigar outras a fazer o que não desejam.
Ocupam o governo do Estado, o Kratos, o poder político no
sentido grego, qualquer que seja sua forma, teocracia,
aristocracia, monarquia, oligarquia, democracia, em
todas as instâncias; e é contra esse poder hipertrofiado
nos Estados Nacionais modernos que os anarquistas
lutam hoje. Os anarquistas sabem, e todos os estudos
históricos o demonstram, que o exercício desse poder
corrompe seus detentores que acabam sempre por
exercitá-lo em benefício próprio, de uma forma ou outra, em diferentes graus, sempre em detrimento do povo.
Transcrevemos trecho de uma carta — testemunho
insuspeito — de Lord Acton, John Acton, historiador inglês, de Cambridge (1834- 1902) para o bispo Creighton:
“... Não posso aceitar por norma que o senhor estabelece, segundo a qual devemos julgar o papa e o rei diferentes dos demais homens com a presunção favorável
de que não cometem injustiças. Se cabe alguma presunção é a oposta contra os mantenedores do poder, que
se acrescenta conforme se acrescenta o poder. A responsabilidade histórica tem que compensar a responsabilidade legal. O poder tende a corromper e o poder
267
4
2003
absoluto corrompe absolutamente. Os grandes homens
são quase sempre maus homens, ainda quando exerçam influência e autoridade, mais ainda quando se
acrescenta a tendência ou a certeza de corrupção pela
autoridade. Não há pior heresia do que a de que o cargo
santifica quem o exerce”(citado por Herbert Read em
Anarquia e Ordem).
O outro poder, o poder social, é o poder participado,
exercido por todos nas decisões coletivas: o poder de uma
assembléia de tomar decisões. Exemplo de proporções
enormes foi o poder que tinha a C.N.T. espanhola, com
milhões de filiados, durante a Guerra Civil, de decidir
pela organização autogestionária e pelas experiências
práticas do anarquismo durante a Revolução. É o poder
que é exercido por todos em qualquer prática autogestionária nas decisões realmente coletivas.
O termo governo tem o sentido de autoridade diretora
e o sentido restrito é o do governo político, centralizador
do Kratos social, mas por extensão tem o sentido de gestão, organização, ordenamento. As expressões
desgoverno (avião, carro desgovernado) têm o sentido de
desorganização e se (tenho a impressão que poderia ser
suprimido o “se”) análogo ao sentido pejorativo de anarquia. A proposta anarquista é pela organização e, nesse
sentido, pelo autogoverno, como sinônimo de autogestão.
A frase de Elisée Reclus, “a anarquia é a mais alta expressão da ordem”, tão repetida ao longo dos anos pelos
anarquistas, em contraposição ao poder coator do Estado, causa principal das desordens, injustiças e misérias sofridas por toda a sociedade, em última análise, tem
o mesmo sentido.
Não há expressão mais aviltada do que o termo socialismo. Assim como para a imensa maioria das pessoas,
é inconcebível às sociedades humanas se organizarem
268
verve
As idéias-força do anarquismo
sem Estado, tal a desinformação. Para a maioria das pessoas, socialismo passou a ser sinônimo de estatização.
Intelectuais das mais variadas tendências, nas universidades, na grande imprensa escrita e em todos os meios de comunicação, repetem a mesma pregação. Tudo o
que se refere a socialismo passa pelo Estado. Que diferença do conceito de socialismo hoje, e do que era discutido nos principais congressos do século passado [XIX]!
Com o ruir do sistema monolítico da Rússia e do Leste
Europeu, só se ouve o apregoar estridente de que chegamos ao fim da história, com o capitalismo e a economia de mercado como a suprema via da felicidade humana ab-aeterno. Como se estatização fosse socialismo
e não um modo de capitalismo.
Quando dizemos que o anarquismo é antes de tudo
sinônimo de socialismo, temos que dar um mínimo de
clareza ao nosso conceito de socialismo: daí a expressão
Socialismo Libertário. Socializar é tornar a propriedade e
os instrumentos de trabalho, enfim, toda a riqueza e o
que a produz à disposição de toda a sociedade, acabando
com a exploração do homem sobre o homem. Mas, para
o Socialismo Libertário, não basta socializar os bens
materiais. É preciso socializar o saber, a informação e
todos os bens culturais. Jamais haverá socialismo se
não se fizer a socialização do poder: a primeira coisa a
ser socializada é o poder, que começa na autogestão das
lutas. Destruir o poder político e fortalecer o poder social, o que significa a autogestão, a real igualdade e liberdade em todo o processo de transformação. Todas as tendências “socialistas” ou pseudo-socialistas, que através
de suas vanguardas dirigentes lutaram pela conquista
do Estado, por via parlamentar ou revolucionária, nada
mais fizeram do que criar novas castas de privilegiados,
perpetuadores do capitalismo e da exploração. A História reforça com poderosos exemplos a posição dos anar-
269
4
2003
quistas na grande pendência da 1ª Internacional:
libertários contra autoritários. Bakunin nunca foi tão
atual, seus argumentos hoje estão apoiados em fatos.
O anarquismo não é uma doutrina rígida, com artigos de fé, tábuas de lei, com profetas, com excomunhões,
processos de heresias e sanções. É antes um conjunto
de doutrinas e princípios, cujos postulados básicos são
convergentes, e sempre aberto às novas contribuições.
Esses postulados básicos formam um fundo comum, que
no amplo universo das múltiplas e alternativas atividades libertárias são o anarquismo propriamente dito.
O sentido de justiça e eqüidade, a revolta contra a
exploração econômica do homem pelo homem, o combate ao Estado com a consciência plena de que é a instituição que garante o regime de exploração e o privilégio
como fonte geradora de opressão e violência sobre o indivíduo e a coletividade, a liberdade como um dos mais
altos valores humanos (liberdade e autonomia plenas a
partir do indivíduo para a associação livre), solidariedade e apoio mútuo. Para Proudhon:
“... desde o ponto de vista social: liberdade e solidariedade são expressões distintas do mesmo conceito. Enquanto a liberdade de cada um não encontra barreiras
na liberdade dos outros, como diz a Declaração dos Direitos do Homem de 1793, mas em apoio, o homem mais
livre é aquele que mantém as maiores relações com
seus semelhantes”.
Combate a todas as formas de autoritarismo, combate a todo poder de coerção, a tudo o que restringe, limita, sufoca e asfixia o potencial criativo do ser humano.
Todo ser humano tem necessidade de desenvolver
seu físico e sua mente em graus e formas indeterminadas, todo ser humano tem o direito de satisfazer
livremente essa necessidade de desenvolvimento, to-
270
verve
As idéias-força do anarquismo
dos os seres humanos podem satisfazer essas necessidades por meio da cooperação e da vida associativa voluntariamente aceita. Cada indivíduo nasce com determinadas condições de desenvolvimento. Pelo fato de
nascer com aquelas condições tem necessidade — em
termos políticos, têm o direito — de se desenvolver livremente. Sejam quais forem suas condições, ele terá
a tendência de se expandir integralmente. Ele terá o
desejo de conhecer, saber, exercitar-se, gozar, sentir,
pensar e agir com inteira liberdade. Essa necessidade é
inerente ao próprio ser. Se o crescimento físico fosse
limitado por qualquer meio artificial, tal fato seria qualificado de monstruoso. Mas, a limitação do desenvolvimento de sua sensibilidade, do seu desenvolvimento
intelectual e moral anulando todo o seu potencial criativo, seria lógico considerar-se também uma monstruosidade. No capitalismo, esse crime se dá em todas as
instâncias da vida social e ninguém considera isso um
crime, somente os anarquistas.
A descentralização, a autonomia e o federalismo são
as vias pelas quais o anarquismo propõe a construção
da nova sociedade. A descentralização máxima é o indivíduo. Da plena liberdade e autonomia individual para a
organização segundo os interesses e as necessidades,
para as instâncias mais complexas até a completa malha social, os princípios não se alteram. Começando pelo
indivíduo como a unidade celular da sociedade até o mais
amplo tecido social, o princípio de autonomia está presente. Os interesses específicos de cada instância não
ultrapassam a própria esfera e não sofrem nenhuma
interferência. Os interesses comuns de diferentes níveis e setores — profissionais, de produção de bens, geográficos que vão desde o espaço físico das comunidades
à ecologia de grandes regiões, etc. — resolvem-se pelas
federações que as necessidades práticas indicarão. A
271
4
2003
união de interesses com objetivos comuns, sem quebra
da autonomia é a característica básica do federalismo.
Assim, as uniões locais se organizam em regionais até
as confederações internacionais.
Tendo como fundamento a liberdade e a igualdade, o
projeto anarquista de socialismo nos leva a clarear alguns aspectos dos conceitos de liberdade e ética para os
anarquistas. O que é a liberdade? Tema de grandes controvérsias através da História. Há livre-arbítrio ou
determinismo? Praticamos nossos atos por escolha ou
não? Somos apenas dirigidos pelos nossos impulsos interiores aos quais não controlamos? Acontece que o
homem é um animal racional: verdade que todos aceitam. Ser racional é ser capaz de escolher, capaz de preferir, de pesar, de comparar esta ou aquela solução, captar as possibilidades das possibilidades. O homem prevê
as conseqüências de seus atos. Pode imaginar que se
proceder assim poderá suceder isto ou aquilo. Tal ato
poderá levar a tais ou quais conseqüências. É porque
pode julgar, pode comparar, pode medir, pode escolher.
Se o homem fosse apenas um autônomo, não teria noção de futuro. Ao ter noção de futuro demonstra independência, capacidade de escolher no suceder que sobrevém. É por isso que o homem é um ser autônomo e
conhece a liberdade. Quando temos um impulso para
um ato determinado e refletimos sobre as conseqüências, ao pensarmos, se nos revela uma série de possibilidades que vamos analisando racionalmente. Reprimimos o impulso, vencemos o desejo e resolvemos não fazer o que desejamos. Negar esse fato prático que
verificamos em nossa vida seria negar praticamente
também todo o poder da educação. Nossos maiores obstáculos contra os quais temos que lutar são justamente
a pregação e a crença de que só podemos resolver os
magnos problemas econômicos e sociais à custa da li-
272
verve
As idéias-força do anarquismo
berdade, abdicando da liberdade. Mas a liberdade é muito mais. E é através da conquista da própria liberdade
que podemos garantir a solução que buscamos para esses problemas. O caminho da liberdade é o da prática da
própria liberdade. É como a prática da liberdade que formamos homens livres. Liberdade não é somente ausência de restrições: é responsabilidade, opção e livre aceitação de obrigações sociais.
Todos os nossos atos são passíveis de juízos de valor
e de conotações éticas. Tudo o que foi exposto até aqui
tem implicações éticas. Há vastíssimos estudos sobre
ética, desde a transcendente (religiosa), até a ultraracionalista, amoral, que pretende justificar posições
totalitárias; racistas, de casta, do Estado, etc... A que
nos interessa é a ética imanente, que fundamenta as
doutrinas libertárias, estudada e defendida por Proudhon
e desenvolvida por Kropotkin, com bases sólidas, que
aceitam uma ordem natural entre os homens, fundada
nas tensões que formam e que procuram conservar-se
porque na realidade toda ética está fundada nelas e nos
interesses por elas criada. Portanto, se a sociedade for
organizada sob bases simples e naturais, formará naturalmente sua ética, não como uma necessidade apenas, mas porque o homem sabe descobrir o que lhe convém para ordenar as suas relações, porque sabe escolher. Por isso, os homens, quando se reúnem para um
fim comum, logo sabem deduzir de sua organização as
regras e princípios justos (ajustados) que permitem conquistar da melhor forma o fim que visam, como têm-se
verificado ao longo da História na constante da polarização entre liberdade e autoritarismo, e em todos os movimentos que buscam a superação social. Dessa forma,
a organização anarquista desenvolve sua própria ética,
fundada num dever-ser próprio, que, como todo ato ético, é frustrável. O ato antiético para o anarquista é tudo
273
4
2003
o que ofenda a norma da organização, o que ofende a
solidariedade, seu fundamento, e que se estende à espécie humana. E o vigor, o desenvolvimento, as grandes
possibilidades do projeto anarquista dependem fundamentalmente da coerência de sua ética.
As diferentes tendências e visões que no evoluir das
idéias foram se sucedendo, como o anarco-individualismo, o mutualismo, o anarco-coletivismo, o anarco-comunismo e o anarco-sindicalismo, ainda vigente, pois
é simplesmente a atuação dos anarquistas no movimento sindical com características próprias, hoje praticamente se diluíram e podemos falar de anarquismos sem
adjetivos.
Ricardo Mella, um dos maiores teóricos do anarquismo espanhol, apresentou um trabalho no Congresso Revolucionário Internacional de Paris, em maio de
1900, com o título, “O Socialismo Anarquista”, contendo
críticas às propostas que alimentavam grandes discussões sobre como deveria ser a sociedade futura. Idéias
extraordinariamente atuais na análise sobre as tendências: “Se afirmamos a liberdade no sentido de que cada
indivíduo e cada grupo possam atuar em cada instante,
e nós todos a afirmamos, é claro que queremos os meios para que tal autonomia seja praticável”.
“E porque nós os queremos, somos, sem dúvida, socialistas, isto é, afirmamos a justiça e a necessidade da
posse comum da riqueza, porque sem essa posse comum,
que significa igualdade de meios, a autonomia seria
impraticável”.
“Entendemos, creio que sem divergências, por posse
comum da riqueza a posse comum de todas as coisas,
de tal maneira, que estejam à livre disposição de indivíduos e grupos. Isto faz supor que será necessário estabelecer um oportuno acordo para que se faça uso metó-
274
verve
As idéias-força do anarquismo
dico da faculdade de dispor livremente das coisas. A investigação das formas possíveis daquele necessário acordo dá origem às diferentes escolas assinaladas (o grifo é
nosso)”.
“Se trata, pois de questões de pura formalidade”.
“Será necessário, a partir de nossas afirmações genuinamente socialistas sistematizar a vida geral em
plena anarquia? Será necessário decidir-se desde já por
um sistema especial de prática comunista? Será necessário trabalhar para a implantação de um método
exclusivo?”.
“Se assim fosse, estaria justificada a existência de
tantos partidos anarquistas quanto idéias econômicas
dividem nossa opinião”.
“Por outra parte, demonstraríamos com tais propósitos, que pretendíamos algo mais que a igualdade de
meios como garantia da liberdade: demonstraríamos que
tratávamos de dar uma regra à própria liberdade, ou
melhor dizendo, ao seu exercício”.
“Sistematizar o exercício da autonomia é contraditório. Livre o indivíduo e livre o grupo, nada pode obrigá-lo
a adotar tal ou qual sistema de convivência social. Nada
será também bastante poderoso para determinar uma
direção uniforme na produção e distribuição da riqueza”.
“Posto que afirmamos a total autonomia individual e
coletiva, teremos de admitir, como conseqüência, a faculdade de todo mundo proceder como queira, a possibilidade de que uns ajam de um modo e outros de outro, a
evidência de múltiplas práticas, cuja diversidade não
será obstáculo à harmonia e à paz social que aspiramos. Havemos pois de admitir, resumindo, o princípio
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4
2003
da cooperação livre, fundada na igualdade de meios sem
ir mais longe nas conseqüências práticas da idéia”.
“Por que o anarquismo há de ser comunista ou
coletivista?”.
“Só o enunciado dessas palavras produz no entendimento a imagem de um plano preconcebido, de um sistema fechado...”.
“A afirmação de que tudo é de todos não implica que
cada um possa dispor de tudo arbitrariamente ou conforme determinada norma. Significa unicamente que
estando a riqueza à livre disposição dos indivíduos, fica
ao sabor destes a organização de seu usufruto”.
“A investigação das formas de organizar este usufruto é certamente útil e necessário, sobretudo a título de
estudo, não a título de imposição de doutrina. Mas a própria investigação não dará nem será necessário que dê
unanimidade de opiniões, nem é desejável que determine um credo social. Em matéria de opiniões, é preciso ser respeitoso com todas. A liberdade de levá-las à
prática é a melhor garantia desse respeito”².
O pluralismo que caracteriza o movimento anarquista
é condizente com a natureza humana. A máxima igualdade é aquela na qual cada um possa exercer plenamente sua diferença. Se não dispõe da posse atual dessa igualdade, os anarquistas já são donos virtuais dela.
Notas
1
Tema da segunda palestra no Curso de Anarquismo, em 11 de maio de 1991.
² Ricardo Mella. Ideario, Ediciones CNT, 1975, pp. 32-33.
276
verve
As idéias-força do anarquismo
RESUMO
Seguindo por outras direções, os anarquistas buscam criar caminhos para a liberdade. Caminhos que levam para uma sociedade
libertária, na qual, como discorre Ricardo Mella, vivencia-se a expressão da diversidade humana.
Palavras-chave: Anarquia, liberdade, diversidade.
ABSTRACT
Following other directions, anarchists seek to create paths to
liberty. Paths that lead them to a libertarian society in which, as
described by Ricardo Mello, one can live the expression of human
diversity.
Keywords: anarchy, liberty, diversity.
Indicado para publicação em 10 de março de 2003
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2003
enquanto os mortais
aceleram urânio
a borboleta
por um dia imortal
elabora seu vôo ciclâmen
Haroldo de Campos
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verve
Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras
Resenhas
hibridações, desarranjos, fusões e
fissuras paulo-edgar almeida resende*
Pierre-Joseph Proudhon. Sistema das contradições econômicas
ou filosofia da miséria (Tradução e notas de José Carlos Orsi Morel).
São Paulo, Ícone Editora, Tomo I, 2003, 438 pp.
O jovem Proudhon, nascido em 1809, publica a Filosofia da Miséria em 1846, quando ainda era empregado na
firma dos irmãos Gauthier, seus ex-colegas de estudo.
Nesta empresa de transporte fluvial, sediada em Lyon,
convive com marinheiros, estivadores, comerciantes,
mecânicos, carroceiros, oficiais de justiça. Está, portanto, a par do movimento operário de Lyon.
Intelectualmente, entra em contato com a filosofia
crítica de Kant, a filosofia política de Fichte, a dialética
hegeliana, e Feuerbach. Tem como guias, dado o descoProfessor no Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da
PUC-SP, autor – junto com Edson Passetti – de Proudhon. São Paulo, Ática,
1986.
*
verve, 4: 279-296, 2003
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4
2003
nhecimento da língua alemã, Karl Grün, da esquerda
hegeliana, e Bakunin. Completa-se assim o arco de sua
formação, em que se perfilam filosofia alemã, economia política inglesa e socialismo francês.
Ratifica em seu texto questões anteriormente trabalhadas em Celebração do domingo (1839), Criação da ordem na humanidade (1843) e sobretudo Advertência aos
proprietários (1842). Indispõe-se simultaneamente com
a direita e a esquerda de então, vale dizer, com economistas liberais manchesterianos e com socialistas
saint-simonianos e fourieristas. Os primeiros, criticados pelo seu dogmatismo, baseado em interesses e privilégios do presente. Os segundos, pelo misticismo e pelo
receio de certa impostura apriorística, sem respaldo na
realidade. Visa o socialismo com luz própria.
Com os marxistas, ou mais precisamente com Marx
e Engels, as relações começaram à base de certa reverência. Na Sagrada família, Proudhon é guindado às alturas. O que é a Propriedade é para o quarto estado o que
foi a obra de Sieyès para o terceiro estado, segundo Marx.
Mas a Filosofia da miséria é duramente criticada na Miséria da Filosofia. Esta mudança tem na carta convite
de Marx a Proudhon, seu ponto nevrálgico. Marx convida Proudhon a participar de encontro em Bruxelas, convite não aceito, com justificativa que explicita toda a
divergência posterior entre anarquistas e marxistas: ou
o operariado se liberta pela sua própria iniciativa, ou estará sujeito a novo tipo de dominação. Tal convicção será
reproduzida por Bakunin por ocasião dos debates na 1ª
Internacional, e que levará ao impasse e dissolução do
encontro, selando em definitivo a ruptura. Mais tarde,
em carta a Engels, por ocasião da guerra francoprussiana, Marx, pelos anos 1870, apesar de toda a crítica aos limites das nacionalidades, destilará seu fel,
mais amplamente, contra os franceses, que precisam
280
verve
Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras
ser surrados. A vitória de Bismark sobre Napoleão III será
interpretada como a vitória do nosso socialismo sobre o
socialismo de Proudhon.
Na presente edição, foram traduzidos apenas os primeiros sete capítulos da Filosofia da Miséria. Os demais
são prometidos para futura edição do tomo II. São
colecionados temas diversos, recorrentes na literatura
anarquista, por quem pode ser considerado autêntico
founder, sem a rede de segurança da narrativa acadêmica. Tem sob seus olhos fragmentos lançados pela economia política e pelo socialismo utópico, em que encontra incoerências. Ao falar do edifício social, suas colunas, capitéis e bases, madeiras, pedra e metal,
materiais reunidos para a construção de um templo
magnífico, a propriedade construiu choupanas. Tratase, pois, não apenas de reencontrar o plano do edifício,
mas também de desalojar seus ocupantes.
Em prefácio muito bem elaborado, e sobretudo em
oportunas, seguidas e extensas notas, José Carlos Orsi
Morel mostra-se qualificado leitor de Proudhon. Oferece
subsídios oportunos para a contextualização do acidentado percurso temático, reunido no tomo I.
Do ponto de vista epistemológico, é de se ressaltar o
que pode ser tido como a contribuição pioneira de
Proudhon, a assimilação crítica da filosofia alemã, do
socialismo francês, da economia inglesa e da teologia
judaico-cristã, com hibridações, desarranjos, fusões e
fissuras, bem antes do que foi atribuído a Marx. A
dialética hegeliana sujeitou-se à correção de que carecerá o marxismo. A dialética triádica — tese, antítese e
síntese — perderá seu gran finale. Sem a síntese, a história permanece em aberto. Proudhon problematiza a
certeza dos economistas com o presente, com a dinâmica de mercado. São demasiado otimistas diante dos fa-
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2003
tos consumados. É igualmente cético com a certeza na
previsão do futuro dos socialistas. Diríamos hoje que
Francis Fukuyama herda toda uma tradição do século
XIX, quando proclama o fim da história. Fim da história
à esquerda, com o postulado da luta de classe, que encontrará sua resolução na sociedade sem classe. Fim
da história à direita, com o estado positivo, superando
as fases teológica e metafísica. Para Augusto Comte o
espírito positivo, em mãos de sábios e cientistas,
reordenaria toda a sociedade dentro de rígidos padrões
de racionalidade. Para Marx, o proletariado tem vocação
universal, antepõe-se pela razão histórica ao entendimento corporativo da realidade pela burguesia.Em
Proudhon, a síntese cede vez à dialética serial, já
esboçada na obra Da criação da ordem na humanidade.
Os capítulos da Filosofia da Miséria operam enquanto
apronto para a partida, visando a superação do regime
proprietário, rumo à ordem anárquica, em um processo
que permanece em aberto.
No seu Prólogo, fala da hipótese de um Deus, tida como
necessária para justificar a crítica à transcendência,
que tem em Deus sua figuração exacerbada. Poderíamos aí ver a releitura da concepção de sístole e diástole
de Feuerbach, tão valorizada. O homem inicialmente,
como que atemorizado diante de suas próprias
potencialidades, em um movimento de sístole, em um
movimento de transcendência, envia para o Além seu
próprio sangue. No momento seguinte, reassume suas
potencialidades enquanto atividade coletiva, em um fluxo de diástole. Na descida da “região fantástica, a razão
impiedosa nos bate à porta, e é preciso respondê-la” (p.
42). Na ultrapassagem dos dogmatismos teológicos ou
cientificistas, todos marcados por graus variados de
transcendência, o operário escreve a história coletiva.
282
verve
Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras
Os economistas “afirmam que o que deve ser é. Os
socialistas dizem que o que deve ser não é ainda. Os
primeiros comportam-se como defensores da religião,
da autoridade e dos outros princípios contemporâneos e
conservadores da propriedade,(...). os segundos rejeitam
a autoridade e a fé, apelando para a ciência, ainda que
uma certa religiosidade, e um desdém pouco científico
pelo fatos sejam o caráter de suas doutrinas” (p.42).
Reiterações da crítica à economia política e ao socialismo
No capítulo I, são desenvolvidas críticas à economia
política ou à tradição, e feita a crítica interna do socialismo ou da utopia, o que de fato será reiterado nos demais capítulos, para não dizer em todas suas obras.
Quanto à economia política, “apesar da etimologia do
nome, nada mais é do que o código ou a rotina imemorial
da propriedade” (p. 86). É a história natural dos costumes, tradições, práticas e rotinas relativas à produção
e distribuição das riquezas. Trata-se da fisiologia da riqueza, prática organizada do roubo e da miséria. Ligada
a ela, a Jurisprudência, condecorada pelos legistas com
o nome de razão escrita, na verdade nada mais é do que
compilação de rubricas do banditismo legal e oficial, vale
dizer, da propriedade. “A economia política e o direito
formam a teoria completa da iniqüidade e da discórdia”
(p. 90). É a consagração do egoísmo.
Quanto ao socialismo, como Vishnu, sempre morrendo e sempre ressuscitando, na seqüência de encarnações, afirma a anomalia da presente constituição da
sociedade, afirma que a ordem civilizada é fictícia, contraditória, geradora de opressão, miséria e crime. Constitui o direito novo, com a oposição do princípio da associação ao princípio da propriedade. Trata-se da exaltação
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da comunidade, pedindo contas da desigualdade das
condições, que geram o luxo e a miséria. Os socialistas são desafiados pelos economistas a produzir o sistema em que se possa prescindir da propriedade, da
concorrência, da polícia. O próprio Proudhon, na sua
crítica interna, vê as tentativas socialistas se perderem no oceano proprietário. Constata a perseverança
do mal e o fracasso das tentativas reformistas e se pergunta: quando ocorrerá o julgamento? (p. 92). O socialismo grita que já é tempo de fazer vela rumo à terra
firme e de entrar no porto; mas dizem os anti-sociais:
não há porto, nossa circunavegação é eterna (p. 94).
Economia política e Socialismo são apresentados como
duas potências, que disputam o governo do mundo,
anatemizando-se mutuamente, com o fervor de dois
cultos hostis. Aos operários, que se queixam da insuficiência do salário e da incerteza do trabalho, a economia política opõe a liberdade de comércio. Aos cidadãos
que buscam as condições de liberdade e da ordem, os
ideólogos respondem com sistemas representativos.
Desta forma, a sociedade encontra-se dividida em dois
grandes partidos. Um, tradicional, essencialmente hierárquico, e que, segundo o objeto que se considere,
denomina-se realeza ou democracia, filosofia ou religião, ou em uma única palavra, propriedade. O outro,
ressuscitando a cada crise da civilização, proclama-se
anárquico, refratário a toda e qualquer autoridade: é o
socialismo. Mas os contendores estão de acordo com
relação à autoridade comum da ciência. Os socialistas
gritam novidade tão velha como o mundo: organizai o
trabalho, sem dizer no que consiste esta organização.
Até o momento foi dado apenas à economia política
traduzir suas idéias em atos, ao passo que o socialismo apenas entregou-se à sátira. Por isso, cabe reduzir
ao seu justo valor as declamações dos socialistas.
284
verve
Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras
Contra socialistas e economistas, Proudhon afirma
não ser necessário organizar o trabalho, como pensam
os primeiros, nem afirmar que ele já está se organizando, como dizem os segundos. O decisivo é que o trabalho se auto-organize, sem nenhum ponto de perfeição definitivo, mas em um perpétuo devir (p. 98). O socialismo e a economia política, fazendo-se uma guerra
burlesca, perseguem entretanto a mesma idéia no fundo: a organização do trabalho. O que fazem as partes
em litígio? Nada. Apenas levantam questões para terem a oportunidade de se dirigirem mutuamente injúrias. Camille Desmoulins é lembrado, ao responder a
Robespierre: infelizmente, queimar não é responder.
Neste tipo de debates, volta-se sempre ao fogo e à guilhotina (p. 104).
Nestes solenes debates, mais parece a Proudhon que
o processo inteiro decorre do fato de que uma das partes não quer ver, enquanto a outra recusa-se a caminhar. As práticas socialistas são então entrevistas no
interior do próprio movimento operário (p. 101). Há necessidade de se descobrir uma fórmula de conciliação
superior às utopias socialistas e às teorias truncadas
da economia política. Malthus teve o grande mérito de
reduzir ao absurdo toda a economia política. Quanto ao
socialismo, já foi julgado há muito tempo por Platão e
Thomas Morus em uma única palavra: utopia, quer dizer, não-lugar, quimera (p. 109). O presente, exaltado
pelos economistas, encontra poucos defensores, mas o
desagrado com a utopia não é menor, e o mundo inteiro compreende que a verdade está na fórmula que venha conciliar os dois termos: conservação e movimento (p. 110).
285
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2003
O valor enquanto relação social
No Capítulo II, a teoria do valor, já presente em Locke,
no século XVII, com a metáfora da água que brota da
fonte e é recolhida na bilha, encontra em Proudhon a
explicitação de ser relação essencialmente social, na
medida em que o valor de uso se transforma em valor de
troca. Pelo trabalho, ao mesmo tempo, a riqueza e a sociedade são gestadas (p. 121). Vale dizer, o valor se coloca sucessivamente sob três aspectos: valor útil, valor
trocável e valor social (p. 177). Tal é, pois, a marcha do
desenvolvimento econômico: no primeiro momento,
apropriação da terra e dos valores naturais. Depois, associação e distribuição pelo trabalho. A utilidade é a condição necessária da troca, mas elimine-se a troca e a
utilidade será nula: os dois termos estão indissoluvelmente ligados até à igualdade completa, embora os caminhos estejam semeados de abismos, o gládio está
suspenso sobre as cabeças. Mas para conjurar todos os
perigos, erige-se a razão.
A divisão do trabalho como forma de realização da
igualdade
No Cap. III, sobre a divisão do trabalho, Proudhon, nas
pegadas dos filósofos modernos, cita La Rochefoucauld,
Helvetius, Kant, Fichte, Hegel, Jacotot, e busca suporte
para a extensão da idéia de igualdade positiva. Todos os
homens são iguais na comunidade primitiva, iguais por
sua nudez e ignorância, iguais pelo poder indefinido de
suas faculdades (p.179). Se a inteligência difere nos indivíduos apenas quanto à aptidão própria de cada um,
enquanto que, naquilo que ela tem de essencial, a saber, o julgamento, ele é em todos quantitativamente
igual, daí resulta que, mais cedo ou mais tarde, o progresso geral deve conduzir todos os homens da igualda-
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verve
Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras
de original negativa para a equivalência positiva de talentos e conhecimentos. Portanto, a hierarquia das capacidades não poderia ser admitida como princípio e lei
da organização social: apenas a igualdade é a regra,
como também o ideal. A igualdade negativa da miséria,
nos começos, representa apenas o vácuo, devendo reproduzir-se, positivamente, no último termo da educação da humanidade. A divisão do trabalho é o modo segundo o qual se realiza a igualdade das condições e das
inteligências. Ela, pela diversidade de funções, dá lugar
à proporcionalidade dos produtos e ao equilíbrio nas trocas. Abre o caminho da riqueza e nos conduz a idealizar
todas as nossas operações. Mas, nessa hora solene da
divisão do trabalho, o vento das tempestades começa a
soprar sobre a humanidade. O trabalho, dividindo-se
segundo a lei que lhe é própria e que é a condição primeira de sua faculdade, atinge a negação de seus fins e
destrói-se a si mesmo.A divisão fora da qual não há progresso, nem riqueza, nem igualdade, subalterniza o operário, torna sua inteligência inútil, a riqueza nociva e a
igualdade impossível (p. 181). Assim, a divisão, depois
do trabalho, é causa primeira da multiplicação das riquezas e da habilidade dos trabalhadores, mas também
causa primeira da decadência do espírito, da miséria
civilizada (p. 182). O trabalho, que deveria trazer a consciência ao seu clímax e torná-la cada vez mais digna de
felicidade, conduzindo pela divisão parcelar ao desmoronamento do espírito, diminui o homem da mais nobre
parte de si, e o projeta na animalidade. A partir deste
momento, o homem decaído trabalha como um bruto e
conseqüentemente deve ser tratado como um bruto. Mas
é insuficiente a formulação de Blanqui, o economista,
irmão do revolucionário (p. 190), que postula a associação do trabalho e do capital e a participação do operário
nos lucros em um começo de solidariedade industrial.
Proudhon adapta ao seu raciocínio crítico a metáfora da
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circulação sanguínea de Feuerbach. Trata-se, segundo
ele, na proposta de Blanqui, de fazer com que o sangue,
provindo da digestão coletiva, ao invés de ser levado totalmente à cabeça, ao ventre e ao peito, chegue também aos braços e às pernas. Mas é um ato insano, pela
insignificância do que chegará a cada operário.
Máquina no desenvolvimento da liberdade
No capítulo IV, a introdução das máquinas na indústria é vista em oposição à lei da divisão do trabalho. A
máquina reúne as diversas partículas de trabalho, que
a divisão tinha separado. É um resumo de várias operações, uma condensação de trabalho. Trata-se de uma
abreviação da mão-de-obra, que multiplica a força do
produtor. Com o desenvolvimento da máquina na economia, é dado desenvolvimento à liberdade (p. 223). A
máquina é o símbolo da liberdade humana, a insígnia
de nossa dominação sobre a natureza. Liberdade é inteligência: eis todo o homem. Quando, no entanto, a razão
pronunciou-se pela boca dos economistas, que não havia regra para o valor e que a lei do comércio era a oferta e a procura, a liberdade entregou-se ao fogo da ambição, do egoísmo e do jogo. O comércio transformou-se
em mera aposta, submetida a regras de polícia. A miséria (p. 227) irrompe das fontes de riqueza. A liberdade é
tão mais perfeita quanto mais ela se determina e aprimora pelo trabalho, vale dizer, que o trabalho é a educação de nossa liberdade (p. 254). Para que a causa da
miséria seja contornada, solicitar ao governo que tome
tal iniciativa, é fazer como os camponeses que, ao ver a
tempestade aproximar-se se põem, rezam a Deus e invocam os santos. Os governos, nunca é demais repetir,
são hoje os representantes da divindade. O ato de des-
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Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras
confiança popular para com a divindade nos diz também
aquilo que devemos esperar do poder: nada.
A concorrência como conciliação da satisfação do egoísmo com necessidades sociais
No capítulo V, Proudhon se pergunta: entre a hidra
de cem goelas da divisão do trabalho e o dragão indomado
das máquinas, no que se transformará a humanidade?
A concorrência abriga caracteres do falso e do verdadeiro. Trata-se de resolver o problema da concorrência, quer
dizer, conciliar a mais alta satisfação do egoísmo com
as necessidades sociais. A concorrência é necessária
para a constituição do valor, ou seja, para o próprio princípio da distribuição, e, conseqüentemente, para o advento da igualdade. Enquanto um produto for dado por
um único fabricante, o seu valor real permanece um
mistério, por dissimulação de parte do produtor ou por
incúria ou incapacidade. Se a garantia do salário é impossível sem o conhecimento exato do valor produzido,
este valor só pode ser descoberto pela concorrência, não
pelas instituições comunistas ou por decreto do povo.
Se for ordenado que o trabalho e o salário estão garantidos a todos, logo um imenso relaxamento vai suceder à
tensão ardente da indústria. Embora se possa admitir
com socialistas que um dia a atração do trabalho possa
servir de alimento à emulação, sem segundas intenções de lucro, estamos ainda na terceira época da evolução econômica, na terceira idade da constituição do
trabalho, quer dizer, em um período em que é impossível para o trabalho ser atrativo. O trabalho atrativo é
efeito de um alto desenvolvimento físico, moral e intelectual (p. 269). Como manifestação mais alta da vida,
da inteligência e da liberdade, carrega em si sua própria atração, mas não pode ser separada sua atração do
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motivo de utilidade, portanto de um retorno ao egoísmo.
Vale dizer, Proudhon nega o trabalho pelo trabalho. Quando o homem busca apenas em seu trabalho o prazer do
exercício, logo deixa de trabalhar, ele brinca (p. 270). O
trabalho verdadeiro, aquele que produz riqueza e que
nos dá a ciência, o conhecimento de como fazer, tem
necessidade de regra, de perseverança, de sacrifício. A
faculdade de trabalhar distingue o homem dos brutos.
A agricultura francesa de seu tempo é diagnosticada
severamente pelo atraso, pela falta de concorrência,
pelas disputas de retalhos de terreno, pela concorrência; não via trabalho nos campos, mas no tabelião. Pagar os menores salários e fazer os menores investimentos, diminuir custos, não a melhoria do solo e a qualidade dos produtos, é o que predomina. Semeia e a
providência faz o resto (p. 275). O homem abandona sua
preguiça apenas quando a necessidade o inquieta. O
meio mais seguro para nele extinguir o gênio é libertálo de todos os cuidados, de subtrair-lhe o apetite dos lucros e das distinções sociais que pelo trabalho resultam, criando-se em torno dele a paz completa, e transportando para o Estado a responsabilidade de sua inércia.
A conclusão de uma tal reflexão é radical: em contraposição ao quietismo moderno, a vida do homem é uma
guerra permanente, guerra contra a necessidade, contra a natureza, com seus semelhantes e, conseqüentemente, guerra consigo mesmo. A teoria da igualdade
pacífica, fundada sobre a fraternidade, tem como princípio a mendicidade, o panegírico da miséria. Não se enfrenta o sistema de contradições, visando à justiça social, com visão harmonista, com promessa de paraíso
terrestre. Fora da concorrência, resta apenas o encorajamento, a mistificação, ou o sacrifício, uma hipocrisia.
A concorrência é a força vital que anima o ser coletivo;
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verve
Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras
destrui-la, se tal suposição pudesse ser feita, seria matar a sociedade.
Em resumo (p. 306), a concorrência, como posição ou
fase econômica, é considerada, na sua origem, resultado necessário da intervenção das máquinas, da constituição da oficina e da teoria da redução geral dos custos. Considerada em sua significação própria e na sua
tendência, ela é o modo segundo o qual manifesta-se e
exerce-se a atividade coletiva, é a expressão da espontaneidade social, o emblema da democracia e da igualdade, o instrumento mais enérgico da constituição do
valor e o suporte da associação. Como impulso das forças individuais, ela é o penhor de sua liberdade, o primeiro momento de sua harmonia, a forma da responsabilidade que as une e que as torna solidárias. Não
obstante, a concorrência, abandonada a si mesma e privada da direção de um princípio superior e eficaz, nada
mais é do que movimento vão, oscilação sem objeto do
poder industrial, arrastado entre dois extremos, igualmente funestos: as corporações e o patronato hierárquico de um lado e o monopólio do Estado ou o despotismo da comunidade de outro (p. 307).
A sui generis imbricação da concorrência e do monopólio
No Cap. VI, Proudhon disserta sobre o monopólio no
sentido de comércio, exploração ou gozo exclusivo de
uma coisa. O monopólio é o oposto natural da concorrência. Esta simples observação basta para fazer cair
utopias derivadas do pensamento de abolir a concorrência, como se ela fosse o contrário da associação e da
fraternidade. Mas desde que a concorrência é necessária, ela implica a idéia do monopólio, como que sede de
cada individualidade concorrente. Monopólio é a forma
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da posse social, fora da qual não há trabalho, não há
produção, troca e riqueza. Toda posse imobiliária é monopólio. O monopólio não carrega em si a idéia de injustiça. Mas da mesma forma que a concorrência, pode tornar-se anti-social e funesto. Reprimir os abusos,
denunciá-los, é o que fazem magistrados e a nova escola de economistas. Nos capítulos anteriores, Proudhon
dissertou sobre a divisão do trabalho como especificação
do operário, considerado sobretudo como inteligência. O
advento das máquinas e a organização da fábrica foram
vistos como expressão da liberdade do operário em ação
de concorrência. O monopólio apresenta-se então como
tradução da liberdade exitosa, o preço do esforço
despendido, a glorificação do gênio. É a autocracia do
homem sobre si mesmo, é o direito de todo produtor de
usar suas faculdades, de dispor dos instrumentos que
ele mesmo criou, de gozar do fruto da descoberta e dos
benefícios da aventura.
No começo de cada indústria, o homem, que inventa,
está isolado. A sociedade manifesta-se por dupla maneira, via conservação e via desenvolvimento. O desenvolvimento efetua-se pelo impulso das energias individuais. A massa é de natureza infecunda, passiva e refratária a qualquer novidade (p. 313). Ela é matriz estéril
por si mesma, mas na qual vêm se depositar os germes
criados pela atividade privada. Vã a hipótese de que o
trabalhador de alta capacidade possa se contentar, em
favor dos pequenos, com a metade de seu salário, supor
que forneça gratuitamente seus serviços, e que produza para o rei, vale dizer, para a abstração que se chama
sociedade. Por esta via, fundamenta-se a sociedade sobre um sentimento, que, erigido em princípio, transforma-se em falsa virtude. Mas a caridade, tomada como
instrumento de igualdade e lei de equilíbrio, seria a dissolução da sociedade. A igualdade produz-se entre os
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verve
Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras
homens pela rigorosa e inflexível lei do trabalho, pela
proporcionalidade de valores, pela sinceridade de trocas
e equivalências de funções, afirmação que esclarece a
concepção autogestionária e libertária do socialismo de
Proudhon. Igualdade vista como conjunto de equivalências e não como identidade única, daí a importância do
indivíduo como fonte de criatividade, energia, iniciativa. A crítica ao comunismo é formulada, e permeia toda
a obra, enquanto ameaça de absorção de toda iniciativa
no Estado, reduzindo os indivíduos a uma igualdade bruta e elementar. Todos, em tal caso, seriam igualmente
nulos. O grande problema do comunismo é caracterizado por não acreditar na igualdade de modo espontâneo e
na educação, e sim em decretos soberanos: “Fraternidade, irmãos o quanto quiseres, desde que eu seja o
primogênito e vós o caçula” (p. 319). Caridade é misticismo: “três mil anos de experiência ensinaram-me que
qualquer um que me fale de Deus, ou quer a minha
liberdade ou a minha bolsa” (p. 320).
Sendo a humanidade individualizada na pluralidade,
o homem torna-se fatalmente monopolizador. O problema social consiste em saber não como se abolirão, mas
sim como se conciliarão todos os monopólios, cujos efeitos mais notáveis podem ser relidos na história da humanidade, dividida em vários agrupamentos, com acréscimos de riqueza, graças à divisão do trabalho, às máquinas, à concorrência. Resulta do efeito do monopólio
a ficção econômica, pela qual o capitalista passa a ser
considerado produtor, e o capital como agente de produção. Tal sociedade, em suas relações econômicas, divide-se em capitalistas e trabalhadores, empresários e
assalariados. Da mesma forma que a concorrência, o
monopólio está envolto nas contradições econômicas.
Se a concorrência é guerra civil, o monopólio é visto
como massacre dos prisioneiros. O monopólio leva o as-
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salariado à bancarrota e vive de seus despojos. O monopólio perverteu até mesmo a idéia de associação.
Diante de tal contexto, todas as seitas socialistas,
possuídas de confessa fragilidade diante do capital, na
expectativa de realizar suas idéias quando tiverem em
mãos o poder e o dinheiro, são aparentadas com a economia política. No caso dos socialistas, é como se tratasse de fundar nova casa para o monopólio (p. 351). O
capital e o poder, órgãos secundários na sociedade, são
sempre os deuses que o socialismo adora. Se o capital e
o poder não existissem, os socialistas os inventariam,
menosprezando suas próprias críticas.
A ordem invertida: a polícia ou o imposto
No capítulo VII, como conseqüência do desenvolvimento das contradições econômicas, a ordem nas sociedades mostra-se para Proudhon como que invertida. O
que deveria estar em cima, está colocado embaixo. O
que deveria estar iluminado, está rejeitado na sombra.
Assim o poder, bem como o capital, auxiliar e subordinado do trabalho, tornam-se, pelo antagonismo da sociedade, espião, juiz e tirano das funções produtivas.
O Estado, a polícia, ou seu meio de existência, o imposto, são o nome oficial da classe que se designa em
economia política sob a rubrica de improdutivos. O proletariado, que antes trabalhava apenas para a casta que
o devorava, a dos capitalistas, deve trabalhar mais para
a casta que o flagela, a dos improdutivos (p. 365). O Estado, seja qual for a forma que lhe afete, será para o povo,
uma danação legítima. O imposto, em princípio, penalizaria o monopólio. O povo faria leis contra o poder, contra o princípio de autoridade e de hierarquia contra a
liberdade e a propriedade. Os partidários do poder, os
doutrinários dinástico-republicanos, que diferem entre
294
verve
Hibridações, desarranjos, fusões e fissuras
si apenas pela tática, evitam o confronto decisivo: do
trabalho contra o capital, da liberdade contra a autoridade, do produtor contra o improdutivo, da igualdade contra o privilégio (p. 433). De nada serve mudar os depositários do poder, e trazer variantes às suas manobras. É
preciso encontrar a combinação através da qual o poder
se anule perante a sociedade. Cabe aos trabalhadores
vencer ao mesmo tempo o poder e o monopólio, fazer
surgir das entranhas do trabalho a autoridade maior,
que envolva o capital e o Estado e que os subjugue.
Considerações finais
Atenta aos desdobramentos do movimento operário
na primeira metade do século XIX, a obra de Proudhon
coloca em destaque a insuficiência da política, os limites do pacto social na sociedade do capital e as potencialidades da sociedade do trabalho. É um crítico dos
formalismos de participação, que ao invés de consolidarem a sociedade, esmeram-se no seu governo, com reposição da autoridade. Permanecem as garantias relacionadas com a inferioridade do trabalho em relação ao
capital. No decorrer de sua volumosa obra, cabe sobretudo ressaltar sua visada de um regime econômico que
é o contrário do regime governamental, característica
recorrente de todo discurso anarquista de crítica ao comunismo e, por extensão, ao marxismo. Não obstante,
são afirmações que não se fecham em círculo enquanto
proposta de um sistema clauso de idéias ou projetos. O
sistema da humanidade se dá a conhecer, segundo sua
teoria das séries, enquanto tendência, movimento, direção da história através das lutas do presente contra a
tríplice transcendência: da religião sobre as mentes, do
capital sobre o trabalho, do Estado sobre a sociedade. Filosofia da miséria não apenas nos situa no grande deba-
295
4
2003
te das idéias no século XIX. Torna-se um clássico, porque veicula temas de atualidade. Vale a licença para
reproduzirmos uma de suas citações de Plínio sobre o
monopólio fundiário: Latifundia perdidere Italiam. Onde
Itália, leia-se Brasil.
existência anarquista
acácio augusto*
Raquel Azevedo. A resistência anarquista — uma questão de identidade (1927-1937). São Paulo, Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2002, 381 pp.
Os recentes estudos historiográficos, que não se preocupam exclusivamente com os grandes fatos históricos, mas também em captar seu cotidiano, quando se
dedicam a estudar as experiências anarquistas
explicitam uma atitude inquieta e inquietante por parte dos libertários, ao notar os abalos que causam esta
atitude na vida diária. É justamente esta abordagem da
história que escolhe Raquel de Azevedo em seu estudo
acerca de como se deu a resistência anarquista no período de 1927 a 1937, apresentando, logo em seu primeiro capítulo, uma discussão sobre a maneira de tratar a história do anarquismo no Brasil. Propõe preencher uma lacuna na pesquisa histórica, analisando o
cotidiano e o imaginário anarquista entre o encerramento do estado de sítio no governo Artur Bernardes
(1927) e a instauração da ditadura varguista (1937).
Ao escolher esta abordagem a autora, através de uma
extensa análise dos jornais anarquistas (em especial o
Estudante de Ciências Sociais na PUC-SP, bolsista de iniciação científica
CNPQ e integrante do Nu-Sol.
*
verve, 4: 296-299, 2003
296
verve
Existência anarquista
jornal A Plebe, principal veículo da imprensa libertária
da época), da imprensa oficial — por via das notícias no
jornal O Estado de São Paulo — e de documentos dos
arquivos do DOPS, faz um relato das experiências anarquistas em um período em que o anarquismo era apontado pela historiografia marxista como “morto” ou “superado”. Nas pesquisas acadêmicas e nos livros didáticos de colegial é comum vermos a presença anarquista
no Brasil reduzida às primeiras duas décadas do século
XX como um movimento pré-político.
Atenta aos embates e conflitos causados pela intensificação da repressão policial, as disputas com os comunistas — após a fundação do PCB em 1922 — e a
institucionalização do movimento operário, Azevedo está
interessada em captar as saídas que criaram os anarquistas para resistirem às transformações pelas quais
passava a sociedade. Ao contrário de outras correntes
políticas, como o comunismo, que surgiam no meio operário e tentavam adaptar-se às circunstâncias, aceitando, por exemplo, o sindicato ligado ao Estado, os anarquistas estavam interessados em afirmar uma existência pautada na autogestão, nas relações anti- hierárquicas
e em uma atitude anti-autoritária, indo além das lutas
trabalhistas e visando uma transformação do indivíduo.
Os anarquistas afirmam que sem uma transformação
dos costumes nas relações cotidianas é impossível pensar uma transformação da sociedade.
Mesmo não tendo a mesma expressão que possuíam
no meio operário no período entre 1906 e 1924, os anarquistas continuam, após este momento (o intervalo causado pelo estado de sítio de 1922 a 1926), associando-se
para produzir jornais, escolas autogestionárias, centros
de cultura, apresentações teatrais, comitês em defesa
dos presos políticos, ligas anticlericais e viver a vida segundo seus costumes libertários. A autora vê nesta
297
4
2003
atitude do movimento anarquista a afirmação de uma
identidade coletiva, mostrando de que maneira entre
anarquistas, através da imprensa libertária, nos textos e nas figuras, e no posicionamento que tomavam
frente aos acontecimentos, havia sempre a lembrança de um passado “glorioso”, da presença anarquista
nos sindicatos e da força transformadora que possuía
o trabalhador consciente sobre o autoritarismo na sociedade. Mas é importante estar atento ao fato de que
— como o próprio livro mostra — havia um esforço por
parte da imprensa oficial, da polícia, dos comunistas,
dos fascistas e das demais forças que combatiam os
anarquistas em identificá-los, seja como portadores
de idéias exóticas, atrasadas ou românticas, seja como
os estrangeiros perigosos, sempre com uma dinamite
à mão pronta para explodir, ou ainda como os “agitadores violentos perturbadores da ordem pública”. Portanto, a construção de uma identidade podia ser uma
forma de resistir, mas era também um artifício para
destruir os anarquistas. Além disso, não há hegemonia
no pensamento anarquista. Como os próprios militantes da época costumavam dizer, havia sempre “acaloradas discussões” sobre os mais diversos temas, inclusive sobre a idéia de anarquismo de cada grupo ou
indivíduo, tornando ainda mais difícil a idéia de uma
identidade coletiva.
O interessante é notar como um trabalho com o
recorte de uma década é capaz de resultar em quase
quatrocentas páginas, mostrando a generosidade da
autora com quem se dedica a pesquisar os anarquismos, que pode certamente usar este material como
fonte, e sua firmeza em constatar a capacidade dos
anarquistas em não se engessarem em idéias acabadas e projetos a serem seguidos à risca, criando inúmeras possibilidades de existir e resistir. A compila-
298
verve
Existência anarquista
ção de documentos, como atas de reuniões e artigos
de jornais e a elaboração de tabelas mostrando a significativa participação anarquista nas greves, sindicatos e manifestações, mostram a criação de associações e grupos não necessariamente de operários e a
promoção de eventos e festas, explicitando como os
anarquistas foram em seu cotidiano e asseguraram a
continuidade de uma cultura libertária que questiona a cultura da autoridade na qual se baseia a sociedade. Cabe notar também que a publicação de um estudo como este é sinal de uma presença cada vez maior
de anarquistas na universidade. Isto mostra que assim como os anarquistas presentes neste livro não
tinham no sindicato um local exclusivo de atuação,
eles estão onde quer que seja possível a realização de
uma vida libertária. E a conclusão a que chega a autora, confirma: “o atrelamento das organizações operárias brasileiras teve vida longa, enquanto que a experiência libertária retirou-se do ambiente sindical,
ressurgindo em ameaças de explosões, não mais de
‘bombas de dinamite’, mas em atitudes rebeldes e
contestadoras dos micro-poderes, como ocorreu nas
agitações que percorreram o mundo em maio de 1968"
(p. 363).
299
4
2003
as drogas à luz do dia: o controle social e
o uso político dos psicoativos
henrique soares carneiro*
Thiago Rodrigues. Narcotráfico, uma guerra na guerra. São Paulo,
Desatino, 2003, 126 pp.
O livro recém-lançado Narcotráfico, uma guerra na guerra, de Thiago Rodrigues, mestre em Relações Internacionais pela PUC-SP, consegue em poucas páginas sintetizar os aspectos centrais do fenômeno do comércio
das drogas proibidas, não só resumindo de forma muito
informativa os contextos de três países — Colômbia,
Bolívia e Brasil — diretamente envolvidos nas redes de
grupos mafiosos e de corrupção estatal, mas, sobretudo,
desmontando as armadilhas conceituais mais correntes que deturpam a natureza precisa dos conflitos ligados às drogas e imiscuem visões preconceituosas e denominações deliberadamente imprecisas que dificultam
a apreensão dos significados geopolíticos dessa guerra
às drogas que, como de forma muito feliz indica o título
da obra, faz parte da natureza bélica mais geral dos conflitos sócio-econômicos da atualidade.
O primeiro conceito a ser desnudado na sua impropriedade é o de “narcotráfico”, inaplicável, por definição, às substâncias excitantes e/ou alucinógenas, mas
que é usado para designar um conjunto de drogas, a
maioria das quais não narcótica, cuja única característica comum é o estatuto jurídico de ilicitude. A imprecisão na classificação, assim como todos os demais malentendidos ou equívocos deliberados fazem parte de um
“imaginário” social meticulosamente construído ao longo
das décadas de proibicionismo que se sucedem desde,
Professor no Departamento de História da USP e pesquisador do Núcleo de
Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip).
*
verve, 4: 300-304, 2003
300
neiro*
verve
As drogas à luz do dia: o controle social e o uso dos psicoativos
que nos Estados Unidos grupos puritanos se articularam para impor a Lei Volstead, em 1919, proibindo o comércio de álcool. Das bebidas espirituosas para um conjunto de substâncias distintas, o móvel oculto dessas
proscrições de plantas e psicoativos sintéticos é a busca do controle social das populações, especialmente as
marginalizadas ou estigmatizadas tais como os pobres,
os imigrantes, as minorias étnicas.
A hipertrofia do poder dos Estados, submissos aos ditames da ordem mundial construída ao longo do século
XX pelo sistema imperial estadunidense, adentrou as
esferas da vida privada, no seu núcleo mais hedonista,
o do comportamento de busca do prazer através dos meios psicoquímicos, não simplesmente para extirpar e
proscrever usos culturais milenares, mas para obter
mecanismos de coerção e vigilância. Essa utilidade política do proibicionismo, evidente diante do número recorde e crescente de prisioneiros no sistema penal
estadunidense, mais da metade dos quais encarcerados por delitos ligados às drogas proibidas, une-se a profundos interesses econômicos que fazem do comércio
clandestino destas substâncias um dos maiores mercados do mundo.
A imprecisão classificatória, a começar da definição
de “narcotráfico”, estende-se a diversos outros conceitos, tais como, por exemplo, o de “cartel”, aplicado aos
grupos colombianos e que Thiago Rodrigues demonstra
ser impróprio para definir um tipo de comércio clandestino fragmentado, que não desapareceu com a morte dos
mais notórios barões da cocaína dos anos 1980, como
Pablo Escobar, mas que se difundiu numa divisão de tarefas mais complexa.
A rica e densa narrativa de Rodrigues sobre os casos
colombiano, boliviano e brasileiro, mostra como inte-
301
4
2003
graram-se interesses de Estado, na constituição de
“narcogovernos”, como o de Garcia Meza na Bolívia, ou
numa outra forma, no caso brasileiro, na convergência
de fatores que redundaram na organização de grupos
como o Comando Vermelho, originário das leis da ditadura que acabaram por construir as condições do seu
nascimento no presídio da Ilha Grande.
A conclusão mais contundente do livro é que “a Proibição instaurou o narcotráfico”. A exclusão de certos
produtos de grande demanda da esfera do comércio lícito criou as condições de alta lucratividade econômica e
de imensos recursos políticos estatais de controle do
comportamento público.
Além de situar historicamente as origens do
proibicionismo, de investigar a evolução recente do fenômeno em três países da América do Sul, o livro busca
compreender os sentidos políticos e ideológicos do imaginário contemporâneo das drogas no qual a noção antropológica de “contaminação” assume enorme relevo,
pois os estigmas produzidos em torno das drogas ilícitas, irracionalmente assim classificadas em distinção
das substâncias legais, como o álcool e o tabaco, servem
como ordenadores morais e servem para localizar “bodes expiatórios” para a identificação das causas da violência, do medo e das inquietações mais paranóicas,
confundindo propositadamente as conseqüências com
as causas do problema.
Dialogando com a bibliografia mais crítica, Thiago
Rodrigues, conclui seu livro afirmando corajosamente
uma posição ética e política que não aceita a atitude
contemplativa e contemporizadora de uma certa ciência social adaptacionista, mas insere sua obra no cerne
do debate, engajando-se e assumindo uma postura
libertária que se distancia tanto dos paladinos da re-
302
verve
As drogas à luz do dia: o controle social e o uso dos psicoativos
pressão como do reformismo descriminalizador. Thiago
Rodrigues aponta a perspectiva da liberação das drogas
como a única que pode recuperar o arsenal dos
psicoativos para os usos sociais possíveis, retirando-os
da esfera das leis penais, ou seja, deslegalizando-as.
Resta saber se, nesta hipótese, que equipararia as drogas a outros produtos de consumo da cultura material,
tais como os alimentos, por exemplo, subsistiriam ainda os mecanismos de vigilância sanitária e controle de
qualidade estatal. Subsiste também a questão de como
organizar-se-ia a produção e o comércio em larga escala, dado que a auto-produção através de cultivos domésticos não permitiria suprir os produtos de alta tecnologia
e fabricação industrial tais como as drogas sintéticas;
caberia, neste caso, uma intervenção estatizante,
criticada por Rodrigues por consistir num risco de colocar os consumidores sob um “controle mais refinado e
talvez mais profundo”?
Opondo tanto a “legalização liberal” quanto a “legalização estatizante” à pura liberação, Rodrigues não responde às questões suscitadas por tal situação, mesmo
porque não é a intenção do livro “resolver a equação” do
problema nem apresentar fórmulas prontas e acabadas
mas, acima de tudo, recusar a banalização dos lugarescomuns e instigar a desconfiança. Nesse sentido, podese afirmar ser o livro perfeitamente bem-sucedido em
trazer, mais do que meras informações (no que ele é
muito abundante), uma atitude crítica sistemática que
desmonta desde os conceitos aparentemente
consensuais até as idéias reformistas supostamente de
cunho progressista. O único reparo a fazer, necessário
para uma segunda edição, é quanto a alguns erros de
revisão, tais como a identificação equivocada do atual
presidente boliviano, da data da anistia no Brasil e alguns outros deslizes que não comprometem a excelên-
303
4
2003
cia deste que é, talvez, o melhor trabalho de divulgação
disponível no Brasil sobre os diversos aspectos da questão do “narcotráfico”. Resta-nos agora esperar a publicação da tese completa de Thiago Rodrigues, já no prelo
pela Editora da Universidade Católica (Educ), para o
aprofundamento da discussão sobre um dos temas mais
candentes da atualidade.
alfabetizar todos?
francisco e. de freitas*
Paul Goodman. La des-educación obligatoria. Barcelona, Libros
de Confrontación, Serie: pedagógica 3, 1973, 181pp.
A liberdade tem sido “venerada” por todos que pensam as práticas de homens e mulheres como algo que
fosse possível dar a si mesmo ou a alguém. Este fato
tem produzido discussões que a minimizam, sem, entretanto, problematizá-la como invenção diferenciada
dos “seres vivos racionais” em algum momento. Em especial, a educação, teima em esquivar-se do problema.
Daí o mérito de Paul Goodman em fazer a crítica ao projeto de desenvolvimento dos Estados Unidos e, de forma
específica, ao sistema escolar quanto à centralização e
burocratização que reduz o espaço de discussão dos envolvidos diretamente. Reconhecendo a inexistência destas condições, num espaço que não é isolado e nem o
único, o leva tanto quanto a Illich a exigir o fim da escola compulsória, pois não haverá “ressonância interna”,
conseqüentemente, nem haverá um contínuo de intenProfessor no Departamento de Metodologia do Ensino no Centro de Educação na Universidade Federal de Santa Maria-RS, mestre em História pela
UFSC-SC e pesquisador no Nu-Sol.
*
verve, 4: 304-311, 2003
304
verve
Alfabetizar todos?
sidades entre o já estabelecido internamente e o exterior, dificultando apreender o obstáculo das relações de
acomodação e dependência.
Deste ponto de vista mais geral, tenho a sensação de
que o livro La des-educacion obligatoria, publicado em
espanhol em 1973 e jamais editado no Brasil, pode ser
considerado como uma das ações de Paul Goodman no
combate à coerção e ao sentimento do dever como instrumentos constitutivos da liberdade.
Em Paul Goodman, é possível identificar uma singularidade sem haver uma individualidade já no primeiro
momento que se embrenha no “mundo desumano e
inumano” — 9 de setembro de 1911 em Greenwich
Village Nova York —, pois não conheceu o cuidado
proibitivo por parte da família, favorecendo assim, a sua
curiosidade, o que muito provavelmente, facilitou-lhe
num futuro próximo, não só o andar por ruas, parques,
museus e bibliotecas de Nova York, mas também o contato com as mais variadas e diferentes culturas, afirmando o gosto por uma formação distante de crenças.
Não será igualmente equivocado dizer que a trajetória de Goodman mostrou-se multifacetada e latejante
em busca ressignificações. Graduado em Literatura Inglesa (1931) na Universidade de Nova York e Ph.D em
Literatura na Universidade de Chicago, exerceu a
docência nesta universidade até 1940, momento em que
é pressionado a abandonar suas atividades por não esconder sua bissexualidade. Passa a produzir poemas, pequenas histórias e sinopses de novelas, ao mesmo tempo em que participa de círculos literários e de teatro,
sendo considerado um artista marginal.
Em 1945, por negar-se a prestar o serviço militar obrigatório é preso e escreve o Manifesto Anarquista na prisão. No final da década de 1940, encontra com Fritz Perls.
305
4
2003
Deste encontro surge uma parceria importante, pois
elaboram a primeira apresentação teórico-prática da
“Gestalt-terapia” e fundam o Instituto da Gestalt Terapia em Nova York e Cleveland. Paralelamente à produção intelectual, Paul Goodman organizava movimentos
como o Free Speak Moviment e ações anti-racistas e contra a Guerra.
Goodman se utiliza da “gestalt-terapia” para passar
de artista e escritor, a crítico social, tendo como preocupação central, as questões político-pedagógicas, impulsionando desta forma, a “gestal-pedagogia”.
A descoberta de Paul Goodman pela juventude americana — nos anos 1960 — está relacionada aos seus
livros: Growing up absurd e Drawing the line, os quais
forneciam os argumentos teóricos para a problematização da sociedade consumista americana.
Entretanto, o especial interesse de Goodman, está
no sistema escolar americano. A este, dirige sua crítica desprovida de complacência e generosidade, por entender a escola como um desperdício econômico, além
de produzir prejuízos consideráveis à juventude. Os fundamentos da crítica ao ensino obrigatório fundam-se a
partir dos problemas da estrutura deficiente de uma
economia que favorece uma classe média alta, em detrimento da classe inferior.
Segundo Goodman, não basta discutir problemas
como a pobreza, a delinqüência, realizar cursos de
requalificação de mão de obra e formar um corpo de voluntários, pois isso só confirma a deficiência da estrutura econômica.
São elementos constitutivos da crítica, a evasão escolar, principalmente, no ensino superior; a unificação
com base nos princípios científicos, “conduzindo diretamente a um fascismo de centro” (p.15); o espírito de
306
verve
Alfabetizar todos?
automação que predomina na Vida e na Escola; e, especialmente, na configuração da sociedade estadunidense,
da utilização de índices de crescimento e o Produto Nacional Bruto (PNB) como medidas de saúde econômica,
produzindo um crescimento desregulado que gera mais
danos que benefícios, pois não elimina a tirania sobre a
pobreza.
Este conjunto de problemas exige uma mudança de
pensamento, os quais remetem, segundo Goodman, a
reavaliar a concepção sobre: “trabalho, ócio e desemprego” a partir da desconstrução da relação entre “bem
estar econômico” e a simples abundância. Simultaneamente, será necessário rever a valoração social da
tecnologia científica e da ciência que dá ênfase à produção — incluindo a expansão do conhecimento — pois
esta, quanto mais se expande, cada vez mais é menos
útil e, menos hábil, torna o homem médio, na medida
em que consiste em aprender a viver dentro de uma
elevada tecnologia.
Os desenvolvimentos espontâneos e inacabados, baseados numa estrutura desastrosa — centro, subúrbios
e um aglomerado urbano congestionado — seguem uma
política de autopistas, impostos, de comércio e
escolarização, intensiva urbanização; inviabilizando as
pequenas propriedades como “modo de vida” (p.15).
Esta é a “vitalidade política” que eventualmente renova a constituição, ou então, transforma-se em violência e em injustiça aprofundando ainda mais a crise
política mesmo que, por ventura, preserve as formas
democráticas, esvaziadas de conteúdo.
O que se percebe é que já em 1964, a crítica de
Goodman ao projeto americano de desenvolvimento
direciona-se à economia, à política, à filosofia e, de forma específica ao sistema escolar, em face da centrali-
307
4
2003
zação e a burocratização nas escolas, que reduz o direito à discussão dos envolvidos diretamente. Ao esvaziar
o sistema escolar compulsório da preocupação com o
desenvolvimento de uma futura utilidade prática para a
criança, no mundo das transformações e, em seu lugar,
implementa uma tecnocracia inadequada, porque cada
vez mais, a escola simplesmente adequou-se a um sistema mecânico que se distancia de incluir as crianças
em uma “humanidade unida” e reforça o isolamento das
classes. Ainda que bem intencionadas, as escolas deparam-se com as garras burocráticas de uma concepção
uniforme e de “inclusão” no sistema obrigatório de ensino em média, na época, de doze anos, numa espécie
de jaula a começar pela universidade, logo, é um projeto
do tipo “beco sem saída”.
Considerando que o projeto de desenvolvimento
estadunidense faz mais mal do que bem aos americanos, a melhor coisa é livrar-se dele. Principalmente, porque Goodman entende que o sistema obrigatório de ensino é uma armadilha universal que não serve para nada.
É isso por não haver autenticidade nas situações de aprendizagem, o que provoca uma cisão artificial entre sociedade e escola; os jovens são apartados do mundo dos adultos, e não há uma espontaneidade no ensino.
Esta constatação imbricada com os aspectos econômicos, políticos e de padrão de vida, coloca Goodman diante de um dilema: se por um lado o ambiente escolar é
ruim, também o ambiente doméstico e das ruas, para
muitas destas crianças é péssimo. Isso porque as cidades e os subúrbios são locais nos quais os adultos não
dão atenção aos jovens. E, estes, ao abandonarem as
escolas estão com corpo e espírito tão doentes que necessitam de algum tipo de “consolo e de atendimento”,
seja da própria escola, das instituições recreativas ou
em acampamentos.
308
verve
Alfabetizar todos?
Por isso, Paul Goodman defende a eliminação total
da escola para algumas classes — crianças com lares
em condições toleráveis, ainda que não tenham um bom
nível de cultura, mas que tenham vizinhos suficientemente numerosos para fazer companhia um aos outros
para que não se sintam “diferentes” do grupo. A substituição total da escola justifica-se, segundo Goodman, pois
qualquer criança “normal” consegue recuperar, em um
período de 4 a 7 meses, o trabalho realizado nos sete
primeiros anos letivos, desde que tenham bons professores.
Para a ausência da escola, Goodman esboça algumas
alternativas. Utilizar os prédios da própria cidade como
escola — bares, ruas, lojas, cinemas, museus, parques
e fábricas — como estratégia de contraposição às abstrações, num currículo “real”. Outra proposição é utilizar profissionais como farmacêuticos, donos de lojas e
mecânicos na introdução dos jovens no mundo dos adultos, amenizando a distância entre os velhos e jovens,
além de minimizar a autoridade dos educadores. No que
diz respeito à obrigatoriedade da presença nas aulas,
propõe que os alunos dediquem-se a desenvolver projetos que sejam estimuladores do viver aqui e agora.
Em termos do funcionamento administrativo centralizado do sistema de ensino, Goodman defende a criação de pequenas unidades espalhadas entre 20 a 50 lojas, ou clubes que disporiam seus equipamentos no desenvolvimento de atividades recreativas e sociais
direcionadas ao ensino formal com “classes” de 25 a 30
participantes de diversas idades. Em ocasiões especiais, estes grupos se reuniriam para discutir a idéia de
compartilhamento em uma comunidade maior. Faz parte
deste processo de descentralização a constituição de
grupos de jovens a serem enviados para pequenas fazendas, economicamente “marginais”, cabendo ao fa-
309
4
2003
zendeiro, não bater nas crianças e, a estas, desenvolver trabalho de campo. Esta prática proporcionaria aos
proprietários destas fazendas algum suporte financeiro, já que os recursos destinados à manutenção das escolas, lhes seriam repassados, bem como transformaria-se num projeto de equilíbrio entre a população rural
e a urbana.
Goodman enfatiza que este não é um projeto de educação para o ideal, mas sim, para um mundo que valha
a pena viver o “aqui e o agora”, pois a juventude pobre
da América não ascenderá à classe média só por freqüentar a mesma escola da classe média, pois a
automatização, a informatização e as comunicações
produzem transformações no mercado de trabalho que
exigem atividades voltadas à preservação das necessidades de cada região. Acoplado a este objetivo, Goodman
busca uma diminuição do sistema educacional
monolítico, transformando a educação mais utilitária
na medida em que os recursos financeiros investidos
na formação dos jovens seriam entregues diretamente
a estes, aos quais caberia viabilizar os seus próprios
projetos educacionais. Por outro lado, isso significaria
romper com o conformismo e combater a comunicação
de massa, pois estimularia a cada indivíduo sentir-se à
vontade diante da tecnologia e não alienado.
Ao interromper, por razões óbvias, este concentrado
e pretensioso esforço de resenhar um autor como Paul
Goodman, muito provavelmente, várias turvações devem ter entrado em suspensão, produzindo possíveis
enganos ao captar as “tessituras” dos seus “gritos”. Seja
como for, as imperfeições de nitidez estão conectadas
ao impacto da primeira leitura deste autor, muito provavelmente por conta do nebuloso “descontrole” que foi
instalado como efeito das labaredas de um pensamento
quente que derrama, consome, ergue uma outra coisa,
310
verve
Uma história de amor e prisão
mas que também oprime. Talvez por abordar um “velhonovo” tema, ainda às escuras, no permeio da tradição e
da inovação, a eliminação da escola, entretanto, continua como um acontecimento problemático, na medida
em que esta permanece como algo fundamental à vida.
Paul Goodman não hesitou diante dos vários acontecimentos e das diversas vias semelhantes, mas de ordens díspares que se abriam diante de si. Tomou o problemático como ponto de organização para a “ressonância interna” produzindo diferenças que desassossegam
o espaço sacro — a escola — aproximando-o das práticas
no campo dos anarquismos.
um história de amor e prisão
salete oliveira*
Manuel Rivas. O lápis do carpinteiro. Rio de Janeiro, Objetiva,
2002, 148 pp.
Manuel Rivas escreve o Lápis do carpinteiro e o inscreve na tensão entre a ficção e a realidade. Trata-se
de uma narrativa proliferada, na qual o narrador desdobra-se incontáveis vezes.
Quem é o narrador? Ele é reescrito, não pela mão
que toma o lápis mas, multiplicado pelos olhos do autorpintor-leitor que destoam e ecoam matizes de personagens possíveis. O que é o autor?
Uma história de amor e prisão atravessada pela experiência de duplos em discórdia: prisão-inveja; amorliberdade. O espaço-tempo é o da Guerra Civil Espanho* Pesquisadora no Nu-Sol e PRODOC-CAPES/PEPG Ciências Sociais PUCSP e professora na Faculdade Santa Marcelina.
verve, 4: 311-314, 2003
311
4
2003
la. O amor-liberdade da subversão. A prisão-inveja do
Franquismo. O livre-amor preciso e intransferível entre Daniel La Barca e Marisa. A inveja-prisão do guarda
Herbal, carcereiro devoto-amoroso do fascismo.
De histórias díspares o livro provém de inúmeros lugares e emerge vigoroso já na dedicatória que se imiscui na tessitura da narrativa. Diluição profusa de circunstâncias, objetos e gestos. O livro é dedicado a
Conchiña e à memória de seu grande amor Paco
Comesaña, “doutor que lutou contra o mal de ar”. Sua
figura estilhaça-se em diversos médicos que o atravessam ao longo do livro para confluírem na composição da
personagem de Daniel La Barca. Um médico libertário
que lutou contra a atmosfera do totalitarismo, inspirado
e expirando paixão por Marisa, extensão amorosa de
Conchiña. La Barca, na juventude, mirava Marisa, no
fim da vida, ele em sua beleza tísica, ainda a mirava,
“seus velhos olhos olhavam para ela tatuados de desejo”
(p. 13). Após tantos anos juntos, respondia enamorada
quando ele perguntava: como era mesmo o poema do
melro? Ela, simultaneando asas e miradas apaixonadas
de uma vida inteira, declamava de cor:
“Tanta paixão e tanta melodia
tinhas em tuas veias apressadas
que uma paixão à outra somada
já em teu corpo exíguo não cabia” (p. 12).
A luta do corpo contra a escassez de ar. A atmosfera
árida de pássaros confinados que transmutam-se na
prisão A Falcona — situada atrás do palácio Raxoi, próximo à praça do Obradouro, que dava em frente à catedral.
“Lá começava o Inferninho. Cada catedral medieval, o
grande templo de Deus, tinha por perto um Inferninho,
o lugar do pecado. Porque atrás da prisão ficava o Pombal, o bairro das putas” (pp. 22-23). Os arredores da pri-
312
verve
Uma história de amor e prisão
são condensavam, simultaneamente, o enunciado
franquista que dividia o espaço reservado às mulheres
na Espanha: metade freiras, metade putas. Face reversa
do inferninho-catedral composta pela extensão prisional
no território da casa dos loucos, o manicômio de Concho,
lá, cuja a passagem das horas era compassada pelos toques do relógio da Igreja.
O estarrecimento manicomial. Lugar-cárcere do primeiro encontro entre La Barca e o pintor que queria
retratar as paisagens da dor psíquica, aquela lavrada
nos rostos “(...), não por insanidade, mas por um fascínio abismal. A doença mental, pensava o pintor, desperta em nós certa repulsa. O medo diante do louco precede a compaixão, que às vezes nunca chega. Talvez, achava ele, porque intuímos que essa enfermidade faz parte
de uma espécie de alma comum e anda por aí solta, escolhendo um ou outro corpo conforme lhe convenha. Daí
a tendência a fazer o doente invisível. O pintor lembrava de, quando era criança, uma casa sempre fechada ao
lado da sua. Um dia ouviu gritos e perguntou quem estava lá. A dona da casa lhe disse: Ninguém. (...) O cenário do manicômio era estarrecedor. (...) O que impressionou o pintor foi o olhar dos que não olhavam. Aquela
renúncia às atitudes, o absoluto deslugar por onde caminhavam” (p. 35).
Segue no traço do lápis do carpinteiro, a espera da
compaixão do pintor esboçada ao lado de seu medo. A
loucura não é invisível, se faz escancarada em insuportáveis verdades diria a cruel-crueza de Antonin Artaud.
O deslugar do insuportável é confinado no lugar comum
prisão-manicômio. No cárcere que o pintor, também,
viria habitar e encontrar no seu algoz Herbal o duplo
que ele continuaria a acompanhar em forma de voz no
ouvido mesmo depois de morto. Mais um feixe de duplicação de narradores articulado por Rivas.
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4
2003
Para o franquismo o perigo do pintor residia no fato de
que ele pintava idéias, o de La Barca em permanecer vivo
todas as vezes que sua morte esteve prestes a se consumar; ao se fazer livre, de forma incessante, mesmo quando confinado. Permanecer livre independente da situação,
este é o maior perigo identificado pelos autoritarismos em
qualquer tempo ou espaço.
Herbal, o servo voluntário da inveja-prisão traça em
papel, com o lápis de carpinteiro que herdou, a sua sombra apequenada que acompanha o embate de La Barca ao
longo do livro. Anota cada gesto do médico, seus erros gramaticais transformam beleza tísica em beleza física, apresenta relatórios, delata. Confessa em rascunhos sua obsessão amorosa pela libertária Marisa. “O doutor La Barca
tinha namorada. E essa namorada era a mulher mais linda do mundo. Do mundo que Herbal conhecia, e, certamente, do que não conhecia” (p. 45). Herbal confinado em
seu mundo repleto de fronteiras demar-cadas pelo desejo
de propriedade da vida do outro, extensão do desejo fascista. Fronteiras do carcereiro, do fascismo, da prisão, da inveja que não suporta os apaixonados-livres cujo gesto espontâneo é o do abraço, da festa, da dança, do combate.
“E como se abraçavam, Herbal?, perguntou a menina
do clube. Ja vi homens e mulheres fazendo de tudo, mas
aqueles dois bebiam um ao outro. Lambiam-se a água com
os lábios e com a língua. Sorviam o líquido nas orelhas, na
cava dos olhos, pescoço acima do peito. Estavam tão
encharcados que deviam se sentir nus. Beijavam-se como
dois peixes” (p. 112).
A única coisa boa das fronteiras são as passagens clandestinas diz Rivas pela boca de La Barca. Para além disto,
fica para o leitor interessado na vida, livre e apaixonada,
sob o sol alto ou sob tempestades, a coragem da ultrapassagem e da diluição de fronteiras.
Thiag
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verve
o
espaço
quando
brilha
se
admira
dos
nadas
que
Thiago Rodrigues
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NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.
hypomnemata
Boletim eletrônico mensal, 1999-2003
vídeos
Libertárias, 1999
Foucault-Ficô, 2000
Um incômodo, 2003
CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do
Simpósio Um incômodo)
Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2003
1. a anarquia Errico Malatesta
2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice
Cranston
3. a guerra civil espanhola nos documentos
anarquistas C.N.T.
4. municipalismo libertário Murray Bookchin
5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux
6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky
7. a bibliografia libertária - um século de anarquismo
em língua portuguesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva
8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin
9. deus e o estado Mikhail Bakunin
10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin
11. escritos revolucionários Errico Malatesta
12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares
316
verve
13. do anarquismo Nicolas Walter
14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin,
Malatesta, Mirbeau, Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue,
Cubero
15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret,
Doumayrou, Breton, Schuster, Kyrou, Legrand
16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia
Makhno, Skirda, Berkman
17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia,
Berthet, Valenti
18. análise do estado - o estado como paradigma do
poder Eduardo Colombo
19. o essencial proudhon Francisco Trindade
20. escritos contra marx Mikhail Bakunin
21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc
Raynaud
22. a instrução integral Mikhail Bakunin
23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários
Bookchin, Boino, Enckell
24. max stirner e o anarquismo individualista Armand,
Barrué, Freitag
25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y
guardia Ramón Safón
26. a revolução mexicana Flores Magón
27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência
Eduardo Colombo
Livro
Pierre Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo,
Ed. Imaginário/Nu-sol, 2001, 134 pp.
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Publicações Libertárias em Língua Portuguesa
verve
Revista Semestral do Nu-Sol
Nas livrarias e em www.nu-sol.org
letralivre
Revista de Cultura Libertária e Literatura
Assinaturas: [email protected]
e Caixa Postal 50083
20062-970 Rio de Janeiro/RJ
libertários
Revista de expressão anarquista
Nas livrarias e bancas de jornais.
Assinaturas: [email protected]
utopia
Revista Anarquista de Cultura e Intervenção
www.utopia.pt
Novos Tempos
Nas livrarias e bancas de jornais.
Assinaturas: [email protected]
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verve
Libertários
Revista de expressão anarquista
Quem tem medo do anarquismo?
No 1 - 3o trimestre de 2002
Nicolas Walter, Luc Spirlet, Federação Anarquista
Francófona, Frank Mintz, Frédéric Goldbronn, Xavier Federação Anarquista, Héloïsa Castellanos, Alexis Vencia, Alexandre Samis, Renato Ramos, Bruno Rocha.
Miséria da economia, economia da miséria
No 2 - 2o semestre de 2003
Ronald Creagh, Miguel Chueca, Francisco Trindade,
Luciano Lanza, Piotr Kropotkin, Frédéric Blanchet, Antônio José Botelho, Noam Chomsky, James Herod,
Organisation Communiste Libertaire, Edson Passetti,
Daniel Aarão Reis Filho, Alexandre Samis. Resenhas.
Editora Imaginário
Tel. 3864-3242
Rua Ciro Costa, 94 cj. 1,
Perdizes, São Paulo - SP 05007-060
[email protected]
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2003
Robson Achiamé, editor
Caixa Postal 50083
20062-970 - Rio de Janeiro - RJ
[email protected]
Telefax: (21) 2544-5552
ÚLTIMOS LANÇAMENTOS
Discurso sobre o filho-da-puta – Alberto Pimenta - 80 pp.
Eric & Graciliano – Olavo Cabral Ramos Filho - 32 pp.
Sociobiologia ou ecologia social? – Murray Bookchin 88 pp.
Sobre o anarquismo (2a ed.) – Nicholas Walter - 96 pp.
Van Gogh – O Suicidado pela Sociedade (2a ed.) –
Antonin Artaud - 64 pp.
Direito à preguiça – Paul Lafargue - 72 pp.
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verve
Publicações da Faculdade e do PEPG em
Ciências Sociais da PUC-SP
Revista MargeM
Rua Monte Alegre, 984
Perdizes, São Paulo – SP 05014-901
Tel. 3670-8111
www.pucsp.br/~margem
[email protected]
Publicação semestral da Faculdade de Ciências Sociais e dos Programas de Estudos Pós-Graduados em
Ciências Sociais e História da PUC/SP, MargeM representa projeto editorial singular no panorama das publicações científicas ou acadêmicas que, ao longo de dez
anos, consolidou-se como espaço aberto para a expressão de uma reflexão crítica e propositiva, disposta a provocar o debate sobre as questões contemporâneas que
desafiam intelectuais, educadores e cidadãos.
MargeM organiza-se ao redor de uma temática nucleadora que reúne o dossiê, um espaço para outros artigos, resenhas, entrevistas e apresenta, a cada número, uma proposta plástica, gráfica, de um autor, artista
ou produtor cultural, compondo espaço intertextual de
debate e ressonância. Foram publicados até o momento
16 (dezesseis) números sendo que mais 2 (dois) estão
para serem lançados até o final de 2003. Constamos de
vários indexadores nacionais e estrangeiros. Editada
pela EDUC, Editora da PUC/SP, Margem tem alcance
internacional estando presente, através de permutas e
assinaturas, nas mais conceituadas instituições culturais do mundo.
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4
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Caderno Metrópole
Publicação do Núcleo de Estudos de Pesquisas Urbanas
(NEPUR), EDUC/FAPESP.
Nº 10 - Sumário (151 pp.)
1) “Irregularidade urbanística: questionando algumas
hipóteses”, de Adauto Lucio Cardoso.
2) “A Região Metropolitana e o Parlamento Comum: a
Carta de vereadores da Grande Natal”, de Maria do Livramento M. Clementino.
3) “O Novo Capital Social das Cidades Brasileiras”, de
Suely Leal.
4) “Participação e Arenas Públicas: um quadro analítico
para pensar os conselhos municipais setoriais e os
fóruns de desenvolvimento local”, de Gisele dos Reis e
Jussara Freire.
5) “Poder Local e Políticas Públicas: Um Estudo Exploratório
Sobre Conselhos Gestores”, de Celene Tonella.
6) “Governança Urbana e Participação Cidadã: a experiência do OP em São Paulo”, de Félix Sanchez.
NEPUR
Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências
Sociais, PUC-SP.
Rua Ministro Godói, 969, 4o andar, sala 4E-18
São Paulo-SP 05015-001
Tel. (11) 3670-8517
322
verve
Recomendações para colaborar com verve
Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Conselho Editorial para possível publicação. Os
textos enviados à revista Verve devem observar as seguintes orientações quanto à formatação:
Extensão, fonte e espaçamento:
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corpo 12, espaço duplo.
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03 linhas, para identificá-lo em nota de rodapé.
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até 10 linhas, em português e inglês.
Notas explicativas:
As notas, concisas e de caráter informativo, devem
vir em nota de fim de texto.
Citações:
As referências bibliográficas devem vir em nota de
fim de texto observando o padrão a seguir:
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I) Para livros:
Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano,
página.
Ex: Max Stirner. O falso princípio de nossa educação.
São Paulo, Imaginário, 2001, p. 74.
II) Para artigos ou capítulos de livros:
Nome do autor. “Título” in Título da Obra. Cidade, Editora, ano, página.
Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção
Os pensadores, p.76.
III) Para citações posteriores:
a) primeira repetição: Idem, p. número da página.
b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número
da página.
c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome
do autor, ano, op. cit., p. número da página.
IV) Para resenhas
As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo
após o título, da seguinte maneira:
Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano,
número de páginas.
Ex: Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo.
São Paulo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp.
V) Para obras traduzidas
Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano,
número de páginas. Tradução de [nome do tradutor].
Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. São Paulo,
Martins Fontes, 2000. Tradução de Salma T. Muchail.
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verve
As colaborações devem ser encaminhadas por meio
eletrônico para o endereço [email protected] salvos em
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Revista Verve
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