Eglon Pinto da Fonseca
Educação Sociocomunitária, corporeidade e linguagens circenses: a
práxis dos arte-educadores do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo
Americana
2012
Eglon Pinto da Fonseca
Educação Sociocomunitária, corporeidade e linguagens circenses: a
práxis dos arte-educadores do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo
Dissertação apresentada como exigência
parcial para obtenção do grau de mestre em
Educação Sociocomunitária, com a linha de
pesquisa: linguagem, intersubjetividade e
práxis, no Centro Universitário Salesiano de
São
Paulo,
sob
a
orientação
do
professor/Doutor Severino Antônio Moreira
Barbosa.
Centro Universitário Salesiano
Americana
2012
Fonseca, Eglon Pinto da
F239e
Educação Sociocomunitária, corporeidade e linguagens
circenses: as práxis dos arte-educadores do Instituto Sócio
Cultural Brinquedo Vivo / Eglon Pinto da Fonseca – Americana:
Centro Universitário Salesiano de São Paulo, 2012.
125 f.
Dissertação (Mestrado em Educação). UNISAL – SP.
Orientador: Prof. Dr. Severino Antonio Moreira Barbosa.
Inclui bibliografia.
1. Educação Sociocomunitária. 2. Corporeidade.
3.Linguagens circenses – Brasil. I. Título.
CDD – 370.193
Catalogação elaborada por Maria Elisa Pickler Nicolino – CRB-8/8292
Bibliotecária do UNISAL – Unidade Americana.
Autor: Eglon Pinto da Fonseca
Título: Educação Sociocomunitária, corporeidade e linguagens circenses: as
práxis dos educadores do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo
Dissertação apresentada como exigência parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Educação Educação
Sociocomunitária, com a linha de pesquisa: linguagem,
intersubjetividade e práxis, no Centro Universitário
Salesiano de São Paulo, sob a orientação do
professor/Doutor Severino Antonio Moreira Barbosa.
Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em____/____/______,
pela comissão julgadora:
_______________________________________
Professor/Doutor Severino Antônio Moreira Barbosa
Centro Universitário Salesiano de São Paulo - Unisal
__________________________________________
Professor/Doutor Luis Antônio Groppo
Centro Universitário Salesiano de São Paulo - Unisal
__________________________________________
Professora/Doutora Claudia Regina Alves Prado Fortuna
Universidade Estadual de Londrina – UEL
Americana
2012
Resumo
A presente pesquisa de mestrado dissertou sobre os trabalhos educativos de
alguns arte-educadores que se apropriam das linguagens circenses como
meios para as suas intervenções. Partindo do entendimento de que Educação
é um fenômeno complexo, que vai além dos processos educativos
desenvolvidos
pela
escola
formal,
buscamos
investigar
as
possíveis
contribuições que as práticas circenses proporcionariam na formação do
educando. Para tanto, além de focarmos a nossa atenção nessa questão,
procuramos entender como acontecem os processos de aprendizagens
organizados e conduzidos pelos arte-educadores que trabalham debaixo da
lona – práxis – a partir de uma perspectiva de circo escola. Para entendermos
o que acontece debaixo da lona, lançamos mão da observação participante,
subsidiados pela concepção fenomenológica da Educação, tendo como
principais referências as contribuições dos educadores/formadores brasileiros
Augusto J. Crema Novaski, e Antônio Muniz Rezende, e orientados pela
pedagogia libertadora de Paulo Freire estabelecemos diálogos com os
pressupostos do paradigma da Corporeidade que nos possibilitou ensaiar
algumas reflexões sobre o corpo no processo de aprendizagem. Ao final desse
trabalho, chegamos ao entendimento provisório de que as experiências com as
linguagens circenses contribuem de forma significativa com o desenvolvimento
global dos educandos. No entanto, apesar dos belos trabalhos que os arteeducadores desenvolvem, falta-lhes um melhor entendimento sobre a
importância das suas próprias práticas, pois isso lhes possibilitariam realizar
intervenções de forma mais consciente, mais sensível, mais competente.
Acreditamos que este trabalho possa colaborar com os educadores que se
interessam em conhecer as linguagens circenses, e suas possibilidades de
utilização em suas práxis.
Palavra
chaves:
circenses.
Educação
Sociocomunitária,
Corporeidade,
linguagens
Abstract
This master research spoke about the educational work of some art educators
who appropriate languages as media circus for their interventions. Based on the
understanding that education is a complex phenomenon that goes beyond the
educational process developed for formal schooling, we investigate the possible
contributions that the circus would provide practice in elementary education. For
this purpose, and focus our attention on this is sue, try to understand how the
processes of learning take place organized and conducted by art teachers
working under canvas-praxis- from the perspective of a circus school. To
understand what happens under the canvas, we used participant observation,
subsidized by the phenomenological conception of Education, the main
references the contributions of educators/ trainers Brazilian Augusto J. Novaski
Crema and Antônio Muniz Rezende, and directed by Paulo Freire liberating
pedagogy establish dialogues with the assumptions of the paradigm of
Embodiment, which allowed us to test some reflections on the body in the
learning process. At the end of this work, we reached the provisional view that
the experiences with the circus language contribute significantly to the overall
development of students. However, despite the beautiful works that art teachers
develop, they lack a better understanding of the importance of their own
practices, as this would allow them to intervene more consciously, more
sensitive, more competent. We believe this work can collaborate with educators
who are interested in learning languages circus, and its possible usesin
hispractice.
Keywords: The Social and community Education, Embodimentand circus
languages.
Sumário
Introdução......................................................................................................................12
1 - Reflexões sobre Educação......................................................................................18
1.2 Educação: em busca de um sentido..............................................................29
1.3 Educação Sociocomunitária e comunidade circense.....................................42
2 – Corporeidade e Educação.......................................................................................50
2.1 O corpo que aprende.....................................................................................59
3 – Linguagens circenses: arte e motricidade...............................................................69
3.1 A experiência de criar pelo movimento..........................................................70
3.2 As experiências vivenciadas debaixo da lona...............................................74
3.2.1 Ginástica Acrobática...................................................................................75
3.2.2 Tecido Acrobático.......................................................................................78
3.2.3 Lira..............................................................................................................79
3.2.4 Trapézio......................................................................................................80
3.2.5 Malabares....................................................................................................81
4 – Os caminhos da pesquisa.......................................................................................82
4.1 Delineando um caminho.................................................................................83
4.2 Apresentando o Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo...............................88
4.3 Aprender com o outro: aproximando os conhecimentos................................91
4.4 O trabalho de campo......................................................................................93
4.5 As vozes dos educadores..............................................................................97
4.6 Sobre o que observamos e ouvimos............................................................112
Considerações finais...................................................................................................118
Referências Bibliográficas...........................................................................................122
“A grandeza do homem consiste na sua decisão de ser
mais forte que a condição humana”
Albert Camus
“Cada um de nós compõe a nossa história, e cada ser em
si carrega o dom de ser capaz e ser feliz”.
Almir Sater – “A marcha”
Agradecimentos
Ao professor/Doutor Severino Antônio, com quem aprendi que ser
educador é saber aprender com as experiências dos outros por meio do
diálogo, pela orientação e pela paciência com que conduziu esse processo.
Aos professores Luis Antônio Groppo e Claudia Fortuna, pelas valiosas
contribuições na qualificação.
A todos os meus amigos do programa de mestrado em especial a Suzana
Coutinho, Jose Vicente, Carolina Defilipe, Rogério Masi, Sandra Bittencourt,
Viviam Kauling, Maria do Carmo. Com eles aprendi o sentido da palavra
solidariedade.
Ao Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo por abrir as portas e permitir a
pesquisa fosse realizada.
Aos arte-educadores do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo, pelo
acolhimento e pelas valiosas contribuições que ofereceram. Compartilho com
todos os citados os resultados deste trabalho.
Dedico este trabalho a minha esposa Manoela. Pelos
incentivos, pela compreensão e paciência que foram
fundamentais na realização deste trabalho.
Em memória dos meus pais Raymundo Fonseca e Lucila
da Silva Fonseca.
| 12
Introdução
Educação!? Qual é o seu sentido? Essa pergunta vai nos acompanhar
em todo o processo de construção desse trabalho.
A princípio, parece ser uma pergunta de fácil resposta. Mas, para os
educadores profissionais não é bem assim. Podemos encontrar várias
respostas em todos os lugares, inclusive acompanhadas por receitas prontas
de ações educativas. Para isso há uma quantidade imensurável de obras que
se propõem a esse fim.
No entanto, apesar de existir modelos educativos validados e
reconhecidos pela comunidade científica-educativa, o que testemunhamos com
frequência são os exemplos de comportamentos egoístas, individualistas,
consumistas e de confronto. Na sociedade contemporânea, ainda não
conseguimos erradicar os comportamentos que geram as situações de
injustiças, de violência gratuita, de desrespeito aos direitos dos outros e, o que
é mais lamentável, é que estamos perdendo a capacidade de nos indignar com
essas situações.
É comum nos depararmos com situações de desrespeito: dos mais
novos para com os mais velhos, dos filhos para com os pais, dos alunos para
com os professores, no trânsito, na política. As referências de valores
privilegiam as aparências, o poder econômico, as fantasias criadas pelos meios
de comunicação para estimular o consumo e inculcar valores. Educar, nesse
contexto, tornou-se um desafio.
Acreditamos que, assim como nós, muitos educadores/professores
tenham certa dificuldade em definir com clareza e convicção o sentido da sua
ação profissional e as suas responsabilidades. Devemos educar para
transformar o sistema vigente ou adaptar os educandos/alunos a uma realidade
que a primeira vista nos parece imutável? É possível mudarmos a realidade? O
que podemos propor para viabilizar essa mudança?
Apesar dos mais otimistas acreditarem que é possível construir, por
meio da educação, uma sociedade melhor para se viver, escolhemos seguir um
caminho mais modesto, acreditando que é possível contribuir na formação de
| 13
pessoas capazes de viver e sobreviver de maneira ética em um mundo
competitivo, egoísta, esquizofrênico, no qual as pessoas falam “X”, mas fazem
“Y”, onde somos constantemente julgadaspelo o que temos e não pelo o que
somos.
Na sociedade contemporânea, onde os espaços e os recursos são cada
vez mais escassos, é comum que exista uma disputa de poder entre os
homens, ou determinados grupos sociais, pela hegemonia material e simbólica.
Se antes a supremacia dos interesses era imposta pelo uso da força bélica,
hoje os mecanismos de dominação são sutis.
Podemos elencar vários mecanismos de alienação e de controle
utilizados para a obtenção do poder, porém consideramos que os mais
eficientes são os meios de comunicação de massa que têm a capacidade de
propagar informações interessadas e/ou criar um mundo de sonhos e fantasias,
contribuindo fortemente na formação de uma cultura em que não é possível
diferenciar o que é real do irreal, se temos necessidades ou desejos de
consumo. Na sociedade contemporânea é comum que se criem necessidades
de consumo para escravizar as pessoas, formando uma dinâmica sem fim de
trabalho-consumo-endividamento,
mais
trabalho,
mais
consumo,
mais
endividamento...
Entretanto, devemos reconhecer que essa é uma dinâmica em que
muitos gostam de estar inseridos, ou pelo menos não se importam com ela, e
não cabe a quem quer que seja dizer se ela é boa ou má, se ela traz a
felicidade ou a infelicidade, mesmo por que ninguém pode instituir parâmetros
definitivos para essa questão.
Cabe à educação e ao educador profissional fornecer subsídios, para o
educando, que o capacite para que possa realizar uma leitura mais
contextualizada, para que assim possa decidir os rumos que direcionarão a sua
vida. Por meio da educação intencional e sistematizada – educação formal e
não formal –, precisamos contribuir para a formação de sujeitos que sejam
capazes de criar alternativas e possibilidades de sobrevivência, seguindo um
conjunto de princípios éticos. Alguns educadores/formadores (ASSMANN,
1998; ANTÔNIO, 2010; REZENDE, 1978, 1992; NOVASKI, 1994), acreditam
| 14
que é preciso desenvolver os sentidos e a sensibilidade, pois são eles as bases
dos filtros de percepção da realidade. A falta de sensibilidade leva os sujeitos
a se comportarem como pessoas apáticas, perdendo o senso ético, agindo por
meio de ações mecanizadas. São incapazes de criar, e vivem conforme os
interesses e ideais dos outros.
É fato corrente, entre os educadores, que a educação é um processo
que leva as pessoas a uma mudança de comportamento, e a certeza que
temos é que essas transformações apenas ocorrem quando há modificações
nas suas estruturas cognitivas – maturação orgânica –, pois desenvolvem as
suas capacidades de associação de conceitos e de fatos, por meio do
pensamento e do raciocínio, permitindo que façam suas escolhas para as
tomadas de decisões mais vantajosas (DAMASIO, 1996), sem a necessidade
de desrespeitar os espaços e os direitos dos outros. Dessa forma, os sujeitos
partirão de um ponto de ignorância, ou incapacidade de formular referências de
análises para a leitura da realidade, para outro em que são capazes de
manipular os recursos de cognição e de linguagem para uma leitura
contextualizada do mundo, ou seja, movem-se da imposição alheia para a
emancipação individual (SANTOS, 2007).
Neste momento histórico de incertezas, é fundamental que o
educador/professor, saiba a diferença entre o seu mundo dos sonhos e o
mundo real. Com tantas teorias educacionais, não é difícil cairmos na
armadilha de acreditarmos nos discursos ocos, nas retóricas sem finalidade
prática. É muito comum encontrarmos educadores/professores “papagaios”, ou
seja, aqueles que decoram um conjunto de teorias e saem por aí repetindo,
sem reflexão, sem conseguir atribuir sentido a sua própria prática.
Nesse trabalho dissertativo, a nossa intenção é de nos aventurar pelo
mundo – da educação – em busca de respostas que pudessem dar sentido ao
ato
de
educar.
Nessa
caminhada
dialogamos
com
alguns
educadores/formadores, brasileiros, principalmente com os que lançam mão
das concepções fenomenológicas da educação (NOVASKI, 1984; RESENDE,
1992), para o enriquecimento desse diálogo também buscamos nos aproximar
de outras vertentes epistemológicas como a antropologia social, por meio das
| 15
contribuições de Brandão (2010), e dos pressupostos da formação para a
autonomia e emancipação social de acordo com ás ideias do educador Paulo
Freire (1992), e do sociólogo Boaventura de Souza Santos (2007). Refletimos
sobre suas concepções e tentamos esboçar um sentido próprio para a
educação e as responsabilidades dos educadores profissionais, do educador
social e do professor.
Como sabemos a escola, na sociedade contemporânea, tornou-se a
principal referência na questão da formação humana a partir de processos
educativos. Porém, acreditamos ser um equívoco atribuir unicamente a ela
essa responsabilidade. Se assim fosse, atribuiríamos uma responsabilidade
para o professor – como agente da educação nesse espaço – indo além das
suas
possibilidades.
Essa
responsabilidade,
de
educar,
no
nosso
entendimento, deve ser partilhada com outras instituições sociais onde as
relações humanas acontecem, por exemplo: família, instituições religiosas,
centros comunitários e de convivência.
Neste sentido, precisamos entender quais são os espaços, as
perspectivas e as possibilidades de atuação do profissional da educação –
educador social e professor. Assim acreditamos que seja possível forjar outros
caminhos e outros meios de realização de processos educativos a partir de
linguagens não contempladas, ou pouco contempladas, pela educação escolar
ou familiar. Lembramos que, de forma nenhuma queremos substituir a
educação escolar ou familiar. Somos conscientes das suas importâncias no
processo de formação humana. O que queremos dizer é que não podemos
reduzir a processos de educação formal (escolar) e informal (familiar) toda a
formação humana.
Partindo do pressuposto que o processo educativo acontece a partir de
experiências de aprendizagem, na maior parte das vezes em relação com os
outros, acreditamos que seja possível educar por meios alternativos, como as
atividades artísticas e corporais.
Existem várias instituições e educadores que se propõem a desenvolver
propostas educativas que contemplem as artes, seja visual, corporal, escrita,
musical, plástica, entre outras. Dessa forma, entendemos ser legitimo o
| 16
interesse conhecer com profundidade as propostas educativas dessas
instituições e desses educadores para que possamos realizar uma leitura
reflexiva sobre as sua práxis.
No
caso
comunidade
específico
educativa,
em
desse
que
trabalho,
buscamos
acontecem
investigar
experiências
uma
educativas
intermediadas pela arte e pela motricidade humana; uma comunidade circense,
o Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo. Iremos considerar como comunidade
circense – arte-educadores e educandos – que compartilham um espaço em
comum – debaixo da lona – e desenvolvem processos educativos.
As linguagens circenses, como linguagens artísticas e corporais, devido
às suas características, contribuem para a educação dos sentidos e da
sensibilidade,que são os meios pelos quais percebemos e interpretamos o
mundo que nos rodeia, permitindo que possamos agir de forma crítica e
criativa. No entanto, precisamos compreender o homem como um ser
complexo – emocional, biológico, histórico, cultural – em constante processo de
reorganização de sua corporeidade para continuar vivo, não apenas existindo.
Nessa comunidade que investigamos, os arte-educadores circenses são
os principais protagonistas da organização das experiências de aprendizagem
a serem compartilhadas. Não desconsideramos as diversas subjetividades dos
demais membros dessa comunidade (educandos), mas voltamos nosso olhar
para os educadores por acreditarmos que se trata de pessoas que participam
do processo e das relações de forma mais qualificada devido às suas
experiências de vida.
Para a realização desse trabalho, optamos por utilizar os métodos da
observação participante, por entendermos que apenas a partir de uma relação
próxima aos educadores entenderemos os sentidos que fundamentam suas
práticas. Para melhor situar o leitor nesse trabalho, resumiremos aqui os três
capítulos que serão descritos no desenvolvimento do trabalho.
No primeiro capítulo realizaremos uma reflexão sobre Educação,
refletindo sobre suas possibilidades e suas limitações, deixando claro o nosso
entendimento e posicionamento quanto à questão, e partindo do principio de
| 17
que se trata de processos intencionais e não intencionais, que podem ser
desenvolvidos em diversos ambientes, e não unicamente na escola. Nesse
momento também discutiremos sobre Educação Sociocomunitária, um conceito
em construção que, entre outras intenções, busca investigar as experiências
educativas que acontecem em espaços não escolares, a partir das múltiplas
abordagens e linguagens. Falaremos também sobre a comunidade circense
como uma comunidade educativa que se apropria de linguagens específicas
que são intermediadoras das relações e das experiências.
No segundo capítulo, discorreremos sobre o paradigma da corporeidade,
entendendo que suas bases teórico-epistemológicas permitem que os
educadores/professores entendam a importância do corpo nos processos de
construção e apreensão de conhecimento (aprendizagem). Neste capítulo
também
aprofundaremosa
questão
das
linguagens
circenses
como
possibilidades educativas, pois proporcionam um conjunto de experiências
corporais que permitem relações enriquecedoras com o outro e com o mundo.
O terceiro capítulo tratará dos procedimentos adotados na pesquisa de
campo que, como já adiantamos, consiste em uma observação participante com
os arte-educadores do Instituto, na intenção de participar ativamente das suas
realidades para se pensar comunitariamente, a superação de eventuais
dificuldades encontradas por esses educadores. Posteriormente iremos propor a
leitura e interpretação das informações colhidas junto com esses educadores.
Finalmente, faremos uma discussão sobre vozes dos arte-educadores
do Instituto, assim como a de seu fundador e das observações que realizamos,
procurando estabelecer uma relação com os princípios da educação para a
humanização. O fim desse estudo é provocar o leitor a refletir sobre as
possibilidades de uma filosofia de ação na educação que aponte para um
caminho
que
leve
o
educando
a
uma
vida
livre
e
mais
feliz.
1 – Reflexões sobre Educação
“A inteligência e o caráter é o objetivo da verdadeira
educação”.
Martin Luther King
“A principal meta da educação é criar homens que sejam
capazes de fazer coisas novas, não simplesmente repetir
o que outras gerações já fizeram. Homens que sejam
criadores, inventores, descobridores. A segunda meta da
educação é formar mentes que estejam em condições de
criticar, verificar e não aceitar tudo que a elas se propõe.”
Jean Piaget
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Vamos iniciar esse trabalho de pesquisa realizando algumas reflexões
sobre
educação,
baseados
em
nossa
experiência
como
educadores
profissionais, e em nosso convívio com outros educadores – educadores
sociais e professores de educação escolar.
Para nós, educadores profissionais, um dos maiores desafios da prática
docente é transformar as teorias que foram apreendidas no momento de
formação acadêmica em ações educativas coerentes.
Quando terminamos a etapa como alunos de graduação e iniciamos na
carreira de educadores profissionais deparamo-nos com uma realidade
completamente diferente aos pressupostos teóricos da formação acadêmica, e
muitas vezes nos sentimos inábeis e até incompetentes. Perguntamo-nos: até
que ponto as proposições teóricas proferidas no ambiente de formação
acadêmica são válidas ou eficientes no exercício da profissão? Como iniciantes
na profissão, parte considerável dos recém formados ainda não possui
subsídios para a realização de uma leitura que identifique e diferencie os
verbalismos inoperantes e as possibilidades reais de ações educativas. Dessa
forma, tornam-se facilmente influenciáveis pelos discursos ocos, pelas teorias
sem nenhuma conexão com a realidade docente que vivenciam. Situação que
deixa os educadores confusos e indecisos em relação às suas práticas.
Entendemos que essa situação apenas será superada após um longo período
de trabalho e reflexões que levarão o educador a um amadurecimento pessoal
e profissional.
Cabe aqui uma ressalva de Otto Maduro, que vai a encontro da nossa
percepção do universo acadêmico:
[...] valeria a pena refletir pessoal e coletivamente sobre qual é
a situação especifica daqueles que reconhecemos como
autoridades científicas: a partir de onde, apoiados por quem,
em beneficio de quem, com que proveito próprio e em quais
áreas
tais
autoridades
fazem
ciência,
produzem
conhecimentos? Qual é a posição social, econômica, política,
profissional etc., a partir da qual tais autoridades dizem
conhecer? Quais vozes, interesses, tradições, especialidades,
habilidades, conquistas, técnicas e conhecimentos são, ao
contrario desautorizados por essas autoridades? Em que
outros aspectos se diferenciam autoridades e desautorizados?
Seria algo causal? (1994, p.69)
| 20
Acreditamos que refletir sobre essas provocações, do autor, deva ser o
inicio para formularmos um entendimento autônomo e provisório do sentido da
educação. Sem esse entendimento ou consciência, qualquer prática ou
intervenção educativa não passará de ativismo, sem um ponto de partida ou de
chegada, e sem um caminho possível a ser percorrido.
Cabe-nos, como educadores profissionais, estarmos atentos e vigilantes
às influências dos discursos inoperantes daqueles que nunca vivenciaram,
corporalmente, a realidade de uma comunidade educativa. Para tanto,
precisamos religar teoria e prática, ação e reflexão, para saber o que é possível
e o que é apenas discursos politicamente corretos que são pronunciados por
aqueles que têm a intenção de se apropriar do poder (FOUCAULT, 2010).
A grande dificuldade dos educadores profissionais – educador social e
professor –, é exatamente definir os fins e os meios da educação. Partimos do
princípio de que o bom educador/professor é aquele que é capaz de atribuir
significado a sua própria prática, partindo de reflexões constantes sobre o
contexto histórico que estamos vivendo. O bom educador profissional, no
nosso entendimento, é aquele que não permite que os sentidos da sua ação
sejam impostos por fatores externos a ele – discursos ocos. No entanto, para
nos tornarmos bons educadores, precisamos desenvolver a nossa capacidade
leitora da realidade que nos cerca. Isso nos permitira renovar e reinventar as
nossas ações.
Para nós, é evidente que existem sentidos que circulam na sociedade,
em relação à educação, que beneficiam um pequeno grupo que trabalha em
busca da dominação dos recursos materiais e simbólicos. A partir da
concepção desse grupo, o projeto de educação das pessoas deve estar voltado
para a formação da mão de obra que atenda as suas demandas, os seus
interesses, garantindo dessa forma a manutenção do poder e da dominação.
A história tem nos mostrado que o homem age por dois motivos: para
obter prazer, ou para evitar o sofrimento. Novaski (1984, p.16) comenta que
“[...] a vida é um constante sentir necessidades em busca de satisfação, que
podem ser de ordem material e também de ordem não material [...]”. Isso faz
com que o ser humano viva em um grande jogo, em que as relações humanas
| 21
giram em torno da disputa da busca pelo prazer. Podemos então estabelecer
uma relação do prazer, ou sua busca, com o poder. Aqueles que possuem a
habilidade de manipular a dinâmica social serão os privilegiados com o prazer,
e na maioria das vezes o poder subjuga e oprime o outro, pois poder e
opressão andam lado a lado.
A história também nos mostra que o homem, no intuito de conquistar o
poder, criou vários mecanismos e estratégias para fazer valer sua supremacia.
O homem, então, passou a explorar o trabalho dos seus semelhantes, os
menos privilegiados, transformando-os em objetos, coisas, ou melhor,
coisificando-os. Paulo Freire é feliz ao fazer uma critica a essa dinâmica social,
quando disserta que “ninguém pode ser, autenticamente, proibindo que os
outros sejam [...] o ser mais que se busque no individualismo conduz ao ter
mais egoísta, forma de ser menos. (1982, p.86).
Santos (2007) nos lembra que os mecanismos de alienação e opressão
não estão apenas relacionados à questão trabalho-capital. O autor entende que
existem seis formas de poder – patriarcado, exploração, fetichismo das
mercadorias, diferenciação desigual, dominação e intercâmbio desigual – que
podem ser vistos como instrumentos analíticos de produção de poder e de
saber.
Nesse momento podemos lembrar as provocações de Otto Maduro, pois
nos faz refletir sobre o conhecimento e o poder que ele exerce, e como pode
ser utilizado como instrumento de manipulação a serviço dos interesses de
alguns grupos sociais. Por essa razão devemos ver os discursos dos
intelectuais da educação com certa cautela. Cada autor, escritor, cientista
enxerga a realidade com os olhos dos seus interesses, e a maioria das vezes
os discursos proferidos sobre a realidade social injusta fica apenas na retórica,
pois não tem nenhum interesse em modificá-las, mas apenas ganhar
notoriedade na comunidade acadêmica. Foucault (2010) em sua obra “A ordem
do discurso” nos fala sobre os discursos como instrumento de apropriação do
poder, dessa forma nos esclarece que as disputas entre grupos sociais pelo
poder simbólico e material, podem acontecer por meio de discursos que
| 22
propagam ideias e interesses pontuais daquele grupo, negando e interditando o
discurso dos demais.
A nossa dificuldade em definir e compreender de imediato o termo e o
sentido da educação se justifica pelo medo de, inconscientemente, estarmos
reproduzindo os discursos e interesses que não sejam os nossos e
automaticamente estar servindo como instrumento para atender os interesses
dos outros. Lembro aqui um comentário do professor Novaski, em sua tese de
doutorado, que em seus cursos costumava provocar seus alunos dizendo: “sou
muito mais aquilo que me fizeram ser, do que aquilo que penso ter feito por
mim” (1984, p.91). Vale aqui também referenciar Foucault quando diz que “[...]
todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou modificar a
apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem
consigo” (2010, p. 44).
Acreditamos que esse é o momento ideal de me posicionar em relação
ao nosso entendimento provisório sobre educação, que confessamos que se
fundamenta em uma visão pouco otimista do mundo e do ser humano.
Brincando de observar os comportamentos das pessoas e o nosso próprio –
dizemos brincar, por não sermos um profissional da área; psicólogo, psiquiatra,
ou psicanalista –, percebemos que poucas pessoas têm a capacidade de tomar
decisões que lhes tragam benefícios sem prejudicar os outros.
É rotineiro nos depararmos com pessoas dessensibilizadas, que não têm
nenhuma consideração aos sentimentos e necessidades dos outros e por isso
possuem atitudes desonestas, mesquinhas, que não medem as consequências
dos seus atos se for para obterem vantagens. Alguns podem questionar: mas
nem todas as pessoas são assim! Ainda existem pessoas dignas e honestas,
com um grande senso de solidariedade e respeito ao próximo. E concordamos
com esse discurso, e são pessoas assim – que acredito que é a minoria – que
alimentam a nossa vontade em contribuir para formar um mundo melhor.
No nosso entendimento, algumas pessoas, de boa fé e até com uma
dose de inocência, pensam em educação como a fórmula mágica para todos
os males da sociedade. O nosso questionamento é até que ponto a educação
pode interferir nos comportamentos das pessoas? Estamos cansados de ver
| 23
campanhas educativas na tentativa de conscientizar as pessoas para não
dirigir após consumir bebidas alcoólicas, mas a cada dia assistimos noticiários
recheados de noticias de acidentes de transito envolvendo pessoas
alcoolizadas. Fala-se muito de reeducação para jovens infratores, mas
trabalhamos com vários adolescentes em situação de liberdade assistida com
comportamentos nocivos a si mesmos e aos outros. Em nosso tempo de
estudante de ensino médio cansamos de presenciar adolescentes consumindo
drogas dentro da escola, apesar de que no entendimento popular escola é
lugar para estudar. E o que dizer de irmãos que tiveram, praticamente, a
mesma formação familiar, que frequentaram a mesma escola, conviveram com
o mesmo grupo social, mas um seguiu um caminho para a vida honesta e outro
o da criminalidade? Essas experiências e outras que até hoje vivenciamos, nos
mostra que um mundo com pessoas dignas, honestas, solidarias e
respeitadoras dependem de fatores que vão além das intervenções educativas
dos educadores profissionais, e é nesse sentido que precisamos dissertar o
que entendemos por educação e intervenção educativa realizada por
educadores profissionais.
Entendo que mudar o comportamento ou as crenças das pessoas já com
certa
experiência
de
vida,
não
seja
possível,
mesmo
que
esses
comportamentos e crenças sejam destrutivos para elas mesmas e para os
outros, mas podemos contribuir para evitar que outras gerações continuem
reproduzindo e contribuindo para um sistema de crenças e valores
desumanizantes. É nesse sentido que deve atuar o educador profissional.
Como dissertamos anteriormente, nem sempre temos a capacidade de
tomar decisões que nos beneficiem. Há estudiosos das neurociências – como
Antônio Damásio (1996) –, e das ciências biológicas – como Humberto
Maturana e Francisco Varela (1995) – que acreditam que os fatores que
influenciam as tomadas de decisões dependem de um conjunto de
experiências corporais que modificam as estruturas neurológicas dos sujeitos.
Dessa forma, podemos acreditar que as decisões tomadas por alguém
acontecem a partir de um repertório de possibilidades construídas e adquiridas
durante suas experiências – conhecimento – e, quanto menos experiências o
sujeito possui, menores serão as referencias para a tomada de decisões –
| 24
ignorância –, repercutindo em ações desajustadas, impensadas e agressivas a
si mesmo e aos outros, ou em ações baseadas nas influências dos outros.
É comum, na sociedade contemporânea, encontrarmos pessoas
subjugadas aos determinismos, conformados com as migalhas que sobram dos
detentores do poder – econômico ou simbólico. Pessoas que não acreditam em
sua própria capacidade de superação e por isso ficam letárgicos, acreditando
em uma virada da sorte para ter uma vida melhor. Ignoram a ideia de que o
desenvolvimento e aperfeiçoamento humano é um processo que exige
sacrifícios, escolhas, alegrias e frustrações. Para muitos, a felicidade depende
dos rumos políticos, de Deus, de sorte. Questões como trabalho, dedicação,
entrega, estudo são desconsideradas. Na concepção de Santos (2007), a
superação do sistema opressor apenas será possível quando o sujeito passar
da condição de ignorância – caos – para uma condição de conhecimento –
ordem –, ou seja, quando o sujeito se apropriar de um conhecimento
emancipatório que o possibilite sair da imposição colonial e passar para uma
autonomia solidária.
Apesar de reconhecer que ações isoladas são incapazes de transformar
o egoísmo em empatia, a ignorância em conhecimento, o individualismo em
solidariedade, temos a consciência de que podemos contribuir na tentativa da
formação de pessoas mais conscientes, mais éticas, e menos gananciosas.
O nosso desafio, que acreditamos que seja também a dos outros
educadores, é não deixar que nossa prática torne-se um sistema de ações
mecanizadas, reproduzidas da mesma forma por diversos anos, independente
do espaço, do publico, das necessidades específicas dos educandos. É comum
encontrarmos com educadores/professores que aprendem um método de
ensino, fundado em um conjunto de conteúdos específicos, durante um
determinado tempo e posteriormente reproduzem, ritualisticamente, a mesma
proposta pelos próximos anos da sua carreira. Entendemos que o bom
educador é capaz de ressignificar e reinventar a sua prática, por meio da leitura
reflexiva da realidade, contemplando as necessidades dos educandos e o
contexto histórico da sua atuação.
| 25
A formação do bom educador depende de muitos fatores que vão além
da apreensão dos conhecimentos originados pelas teorias pedagógicas.
Novaski (1984) acreditava que o bom educador – ou filósofo da educação, nas
suas palavras –, não pode desmerecer o conhecimento acadêmico, no entanto
não pode reduzir o sentido de sua prática a ele. Dessa forma, orientava seus
alunos que a matéria prima fundamental na construção de propostas de
intervenções educativas era a própria história vivida. Segundo Novaski,
A contemporaneidade seria o primeiro traço desse perfil.
Partilhar dos anseios contemporâneos, das angustias e
vicissitudes que permeiam a vida cotidiana é, com efeito,
colocar-se na linha de uma filosofia engajada. Compromisso
com a história, na medida em que compete a cada um inserir
na indeterminação dos acontecimentos a determinação da
ação judiciosa. (1984, p. 86)
No entanto, para nos aventurarmos pelo mundo na tentativa de contribuir
com a superação dessas angustias da vida cotidiana, como nos fala Novaski,
entendemos que devemos, antes, superar nossas próprias angustias, com a
busca do entendimento do sentido da educação. Sem esse entendimento do
seu sentido não nos é possível construir propostas de intervenção; ou melhor,
os rumos que devemos tomar. Como nos lembra Novaski (1984):
[...] a primeira responsabilidade da filosofia, que é a de não
ficar nas análises e descrições da nossa contemporaneidade,
mas de certa forma sair do diletantismo à la ironia socrática e
partir para uma maiêutica cujo escopo seria a coerência entre o
pensar e o agir, coerência esta dotada do mesmo índice de
inacabamento de que é dotada a verdade, pois
fundamentalmente a busca da coerência é ela também
alétheia. (p.86-87, grifos do autor).
Essas angústias, que acompanham boa parte dos educadores
profissionais e também a nós, apenas serão superadas quando nos
esforçarmos em entender os comportamentos humanos e suas origens, além
de contextualizá-los em um momento histórico. Não é mais possível, para o
bom
educador,
esconder-se
por
detrás
de
discursos
inoperantes
–
parafraseando Paulo Freire. Urge a necessidade de fundamentarmos
propostas de ação baseadas nas experiências pessoais e profissionais.
Boaventura de Souza Santos (2007), em seu livro, “Renovar a teoria critica e
reinventar a emancipação social”, defende a ideia de que não podemos ter
como base para a tomada de decisões unicamente as ciências, que no caso do
| 26
nosso campo são as ciências da educação. O autor defende que não devemos
considerar os conhecimentos como rivais – científico e empírico – mas sim
devemos entender que cada conhecimento contribui da sua forma para a
explicação da realidade. Essa forma de entender os conhecimentos é
denominada pelo autor de “ecologia de saberes”, que em suas próprias
palavras:
Não se trata de "descredibilizar" as ciências, nem de um
fundamentalismo essencialista "anticiência"; como cientistas
sociais, não podemos fazer isso. O que vamos tentar fazer é
um uso contra-hegemônico da ciência hegemônica. Ou seja, a
possibilidade de que a ciência entre não como monocultura,
mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes, em
que o saber científico possa dialogar com o saber laico, com o
saber popular, com o saber dos indígenas, com o saber das
populações urbanas marginais, com o saber camponês. (2007,
p. 32-33).
Compartilhando com as ideias de Novaski (1984), a nossa filosofia de
ação pedagógica, nada mais é do que a filosofia do que somos. Se formos, ou
nos comportamos como seres escravizados, alienados, manipulados pelos
discursos e teorias de educação, nos tornaremos apenas reprodutores dessas
teorias, e nada teremos a acrescentar à vida do outro, estaremos fingindo ao
outro e para nós mesmos que estamos agindo. Se teorias e discursos vão
contra ao que somos em nossa realidade, serão inutilidades que usaremos
para justificar nossa prática pedagógica. Paulo Freire (1996) nos alerta para o
risco de cairmos na armadilha do verbalismo inoperante – a qual muitos,
inclusive eu, se deixaram seduzir –, por meio de discursos sem finalidade
prática, apenas para satisfazer a ordem do discurso politicamente correto.
Na tentativa de nos distanciarmos dessa armadilha e também dos
ativismos mecanicistas, pensamos em desenvolver um trabalho de pesquisa
em que seja possível aliar os pressupostos das ciências da educação com as
experiências práticas de alguns arte-educadores que trabalham com as
linguagens
circenses.
Partindo do principio
de que
“compreender é
compreender-se, interpretar é interpretar-se”, decidimos “andarilhar” pelo
mundo, na tentativa de compreender o que os outros educadores/professores
estão fazendo, por que estão fazendo? Como estão fazendo? Acreditando que
com a interpretação das suas práticas de intervenção educativa, possamos
| 27
encontrar subsídios que nos ajudem a pensar um sentido da educação, e
assim fundamentar a nossa própria prática.
Antônio (2007, 2009) orienta-nos a escutar as vozes que são proferidas
pelos outros sujeitos, independente da origem social do discurso, pois nessas
vozes pode haver fontes riquíssimas de conhecimento, que nos ajudarão na
nossa caminhada rumo à humanização. Para Antônio “educar é criação de
sentido. Uma atividade de descoberta e construção de conhecimento.
Reconhecemos e produzimos sentido nas interações e diálogos que
configuram o trabalho de educar e educar-se” (2009, p.19). Para Rezende “[...]
a atitude interpretativa e crítica prolonga-se e se completa na criatividade que,
por isso mesmo, aponta para frente, em projetos que, pelo menos, apresentamse como novas possibilidades” (1978, p. 70).
Nessa empreitada, pretendemos dialogar com alguns educadores
formadores brasileiros – Antônio (2010); Assmann (1998); Brandão (2010),
Resende (1992), Novaski (1984); Paulo Freire (1992) –, e outras vozes que
venham contribuir para a reflexão sobre o sentido da educação.
Nesse momento é fundamental deixar claro que a intenção não é
observar o trabalho dos arte-educadores para depreciá-los. Não queremos ser
como os oportunistas que usam os outros – professores/educadores – para
colher dados e informações e, posteriormente, realizar uma análise baseado
em algum paradigma, finalizando com pronunciamentos sobre erros e acertos,
instituindo o certo ou o errado. Por outro lado, não pretendemos deixar de lado
a nossa responsabilidade como interpretes críticos desse contexto. Devemos
considerar que, não importando a origem social do discurso, todos nós somos
capazes de produzir conhecimentos e, mais do que isso, temos credibilidade
(BRANDÃO, 2010).
Essa dissertação antes de ser endereçada à comunidade científica, para
o consentimento de uma graduação acadêmica, é endereçada a nós mesmos,
pois precisamos satisfazer as nossas necessidades. Cabe aqui uma referência
de Paulo Freire quando diz que
[...] os homens são seres do que fazer e exatamente por que
seu que fazer é ação e reflexão. É práxis. É transformação do
| 28
mundo. E, na razão mesma em que o que fazer é práxis, todo
fazer do que fazer tem de ser uma teoria que necessariamente
o ilumine. O que fazer é teoria e pratica. É reflexão e ação. Não
pode reduzir [...] nem ao verbalismo, nem ao ativismo” (1992,
p.145)
O trabalho, que hora iniciamos, tem como objetivo principal refletir sobre
as práticas educativas de outros educadores/professores, na esperança de que
o encontro entre nossas subjetividades forme subsídios para compreendermos
e fundamentarmos as nossas ações.
Pensamos que, com essa intenção, possamos provocar os educadores
profissionais, que tenham contato com este trabalho, a buscar um significado
para a sua própria prática, relacionando o que são com o que fazem. Para tal,
precisamos reconhecer o quanto somos medíocres, para depois vislumbrarmos
a possibilidade de mudança, para agir da forma que considerarmos
significante.
Os leitores desse trabalho estão percebendo que temos mais perguntas
do que respostas, e isso nos leva a um esforço na tentativa de atingir nossos
objetivos, mesmo atribuindo mais importância ao processo e menos ao
resultado final.
Nos próximos itens, buscaremos algumas referências sobre o conceito e
o sentido da educação. Para tal, pretendemos dialogar com alguns
educadores/formadores acreditando que seus entendimentos possam nos
ajudar a formular o nosso. Posteriormente, falaremos sobre Educação
Sociocomunitária, um conceito ainda em construção que pode contribuir para
compreendermos o trabalho da instituição que estamos investigando.
1.2 – Educação: em busca de um sentido
“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os
homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
Paulo Freire
“Ninguém escapa da educação”
Carlos Rodrigues Brandão
| 30
Na sociedade contemporânea, a escola tornou-se sinônimo de
educação; quando se fala em educação, naturalmente nos vem à cabeça a
palavra escola, dando a impressão de que, esse espaço, é o único onde ela se
desenvolve. Porém, Brandão (2007), a partir de uma visão antropológica de
educação, afirma que a escola não é o único espaço para seu
desenvolvimento, e talvez nem seja o melhor local.
Não é tarefa simples conceituar e buscar sentido para a palavra
educação devido à sua complexidade. Se recorrermos à origem etimológica da
palavra entenderemos que educar se origina do latim “educere” que significa
extrair de dentro de si, denotando que educar consiste no processo pelo qual
se “extrai” do educando todas as suas potencialidades. Entretanto o processo
de “extração” de potencialidades não acontece apenas no processo
educacional, pois existem outros métodos que também são capazes de atingir
esses objetivos.
Educar como um processo contínuo e permanente deve possuir um
significado mais abrangente e com uma importância maior, pois educar é algo
exclusivamente humano, porque podemos adestrar – treinar, capacitar,
preparar – animais, mas não educá-los. Brandão afirma que “a educação não é
uma atividade provisória e antecipadamente calculável segundo princípios de
utilidade instrumental, utilidade cujo destino é apenas o trabalho produtivo,
principalmente quando o exercício deste trabalho serve ao poder e aos
interesses do mundo dos negócios” (2010, p.21).
Ao nascer, o homem é naturalmente inserido em instituições sociais –
grupos humanos –, com um conjunto de códigos e símbolos culturalmente
estabelecidos. A apreensão e compreensão desses códigos e símbolos são
determinantes para que o homem tenha uma vida satisfatória. São delegadas
as gerações mais experientes a tarefa de traduzir esses códigos e símbolos em
forma de conhecimento, pois serão esses conhecimentos – sistematizados ou
não, e transmitidos por meio de diversas linguagens – que subsidiarão o
homem na sua caminhada pela existência, de maneira que possa transformar
os recursos disponíveis em instrumentos para uma vida de qualidade.
| 31
É na interação/relação com o mundo e com os outros, que o homem vai,
paulatinamente, construindo sua personalidade e sua identidade, em um
processo no qual vai influenciando o mundo ao mesmo tempo em que é
influenciado por ele (BUBER, 2003).
Brandão comenta que “educação é como outras, uma fração do modo
de vida dos grupos sociais, que criam e recriam, entre tantas outras invenções
de sua cultura, em sua sociedade” (2007, p.11). Em um entendimento muito
próximo de Brandão, o professor Antônio Muniz Rezende entende educação é
como um processo-projeto, o qual tem como objetivo personalizar os sujeitos.
O autor, em sua tese de livre docência, estabelece uma interface entre filosofia
e antropologia cultural, e define educação “como sendo o processo pelo qual,
através da historia, os membros dos diversos grupos humanos assimilam e
vivem a imagem de homem veiculado por suas respectivas culturas”
(REZENDE, 1978, p.10).
Podemos notar, no discurso dos autores citados anteriormente, uma
unidade de significado, a palavra cultura. O homem precisa conhecer o seu
entorno, sua cultura, precisa adaptar-se a ela, criar e recriar formas de se viver.
Há educadores/pesquisadores que defendem a ideia de que processos vitais e
processos cognitivos – de conhecimento – podem ser considerados sinônimos,
ou seja, “todo sistema vivo precisa necessariamente estar conhecendo
ativamente o seu entorno para poder continuar vivo e agir” (ASSMANN, 1998,
p.38). Nesse sentido, o sujeito necessita adquirir um conjunto de habilidades
que o subsidiarão na sua existência, em outras palavras precisa saber viver. O
saber viver depende da capacidade do indivíduo em se adaptar/aprender
formas de manter-se vivo nesse entorno.
A partir dessas considerações, podemos sintetizar, por meio dessas
referencias iniciais, que educação é um processo pelo qual o homem se
submete, de forma voluntaria ou não, em que apreende conhecimentos que
irão auxiliá-lo na sua inserção nos grupos sociais, de forma que possa
contribuir produtivamente, satisfazendo suas necessidades como ser humano.
Dessa maneira, não podemos considerar a escola como o único momento e
lugar onde se desenvolve educação, mas sim um ambiente – frequentado,
| 32
durante um determinado período – responsável por desenvolver habilidades e
competências específicas que contribuirão com apenas uma parcela na
formação do educando.
Gohn (2010) nos fala sobre os vários contextos educacionais: a
educação formal, que acontece dentro do ambiente escolar, e onde os
professores são responsáveis pelos processos educativos; a educação não
formal, que acontece em espaços coletivos e tem como objetivo preparar as
pessoas para o exercício da cidadania a partir de experiências compartilhadas;
nesse espaço atua o educador social; e a educação informal, que consiste na
apreensão de valores éticos e morais a partir do convívio entre pessoas do
mesmo grupo social - pais, amigos, escola, igreja etc.
Não importando o contexto educacional, o que devemos considerar é
que os processos educativos devem proporcionar experiências que ajudem os
educandos a adquirir habilidades que serão importantes no seu relacionamento
com o mudo e com os outros.
Muito depende da educação, o processo de desenvolvimento da
sociedade. Para isso se torna necessário preparar as novas gerações para que
assumam a responsabilidade de contribuir produtivamente na sociedade em
que vivem. É necessário, nesse momento, realizar algumas perguntas, como:
para qual sociedade? E, qual o perfil de homem que deve ser formado? Seja
qual for a resposta para essas perguntas, torna-se necessário que se
pronunciem princípios que nortearão os processos educativos que serão
desenvolvidos.
Em uma sociedade capitalista, como é a nossa, os princípios
norteadores de formação de ser humano estão voltados para a obtenção de
poder por meio do acúmulo de propriedade e de bens de consumo. Boa parte
das pessoas estão com as preocupações voltadas para a formação de um
homem que se adéque às normas e exigências do mercado. Sobreviver na
sociedade capitalista depende da capacidade do indivíduo em acumular
riquezas, capital; de consumir, mesmo que para isso ocorra o empobrecimento
e até a miséria de alguns, ou de muitos. Sendo assim, o princípio mais
importante na educação contemporânea é educar para o trabalho. O educando
| 33
deve apreender um conjunto de conhecimentos que o habilitem para sobreviver
na sociedade de consumo.
Como já dissertamos anteriormente, hoje, mais do que antes, a
educação formal/escolar tornou-se a principal referência na formação do
indivíduo para a sociedade. Com as transformações da sociedade, se
aperfeiçoaram os mecanismos de alienação e controle social, a partir de então,
as elites perceberam, no espaço escolar, uma possibilidade de controlar e
manipular a sociedade conforme seus interesses. Para se manter o poder via o
acumulo do capital, são necessários que se controlem as potencialidades
humanas, fazendo com que os sujeitos ocupem espaços e posições pessoais
pré- determinadas, atendendo o interesse de classes, grupos ou indivíduos.
Quanto mais for controlado o processo de desenvolvimento humano e social,
maiores serão as possibilidades de manutenção do status de determinado
grupo ou classes. Como nos lembra Ivan Illich (1988, p.35):
A escola tornou-se a religião universal do proletariado
modernizado, e faz promessas férteis de salvação dos pobres
da era tecnológica. O Estado-nação adotou-a, moldando todos
os cidadãos num currículo hierarquizado, à base de diplomas
sucessivos [...] O Estado moderno assumiu a obrigação de
impor os ditames de seus educadores por meio de inspetores
bem intencionados e de exigências empregatícias [...]
Para Illich (1988), a escola é um meio utilizado pelo Estado para
institucionalizar o modo de vida das pessoas, impondo-lhes valores, princípios,
códigos de condutas e papéis sociais, por meio de aprendizagens, que vão ao
encontro de seus interesses, como Estado. Dessa forma determinam-se os
espaços que cada um deverá ocupar, desconsiderando as subjetividades e os
anseios pessoais.
Por esse motivo, se considerássemos a escola como única referência
educacional, acabaríamos por reconhecer a necessidade de formar o
educando para se encaixar na engrenagem de um sistema explorador. Nesse
sentido, educar deixaria de ser apenas processo de apreensão de
conhecimentos
construídos
historicamente,
para
tornar
os
indivíduos
autônomos/emancipados, para ser um processo determinista, institucionalizado
que serve apenas ao interesse de um pequeno grupo social.
| 34
Rezende (1978, 1994) defende a ideia da educação como um processoprojeto em que o sujeito se apropria de uma consciência cultural e a partir dela
pode personalizar suas ações e se tornar homem, ou humano. Diferentemente
da educação mecanicista – que em algumas vezes a educação escolar se
aproxima –, que determina a condição humana como uma peça no processo de
produção, sem espontaneidade, sem intencionalidade criativa.
Em suas reflexões, Paulo Freire (1996) argumenta que o homem não é
um recipiente vazio, a ser preenchido por um conhecimento mecanizado, fruto
de memorização, para que assim possa se adaptar á realidade, mas sim um
sujeito capaz de construir novos conhecimentos interferindo nos rumos de sua
existência, ou seja, humano. Para Paulo Freire educação “[...] implica na
negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim
também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens”
(1982, p. 81).
O conhecimento, nesse processo, torna-se o principal, mas não o único
objetivo a ser alcançado, pois é dele que o educando precisa lançar mão como
instrumento de sobrevivência. Conhecer a realidade que nos cerca e aquilo que
nos incomoda, é fundamental para refletirmos sobre as possibilidades de
superá-la (MADURO, 1994). Esse é um dos motivos do por que não podemos
conceber a educação formal/escolar como única fonte a subsidiar a formação
dos educandos, pois o contexto escolar que a classe trabalhadora dispõe está
voltada, quase que exclusivamente, para a formação de mão de obra para
atender ás necessidades do mercado. Nesse contexto privilegia-se o saber
fazer em detrimento da capacidade de entender o processo. Este saber é
mecânico, domesticado não necessita de leitura ou interpretação.
O que defendemos é a possibilidade de desenvolver processos
educativos não formais – ou para além da escola – que subsidiem a
humanização das ações dos educandos, possibilitando-os a criar formas de
viver de ser feliz. Entendemos por humanização a habilidade do ser humano de
criar possibilidades de superação dos desafios cotidianos, superando os
determinismos impostos pela sociedade de controle e consumo.
| 35
Para Rezende “a educação aparece como processo-projeto de
humanização do sujeito, que não seria simplesmente objeto passivo, mas
sujeito ativo da historia e da cultura. Neste sentido, mais do que um mero
processo, a educação pretende ser um projeto de personalização dos sujeitos,
de desalienação tanto individual como coletiva” (1978, p.14).
Podemos, nesse momento, realizar uma interface com a visão
antropológica de Brandão (2010, p.21) que nos diz que “ainda que represente
uma escolha de saberes, de sentidos, de significados e de sociabilidades, entre
outras, a educação não pode preestabelecer ‘modelos de pessoas’. Não pode
criar antecipadamente ‘padrões de sujeitos’ como atores sociais predefinidos e
treinados para realizar, individual ou coletivamente, um estilo social de ser”.
Mais uma vez encontramos sentidos de educação semelhantes entre os
dois autores – Brandão, (2003) e Rezende, (1978) –, a da personalização do
ser humano, em que o sujeito deve participar ativamente do seu entorno e para
isso precisa ter a habilidade de aprender e, com base nesse aprendizado,
atribuir sentido próprio ao mundo.
No entanto, precisamos adentrar nas questões dos processos de
construção de conhecimentos, e de que forma eles acontecem. Partindo do
pressuposto de que todo conhecimento é construído como forma de superação
de alguma dificuldade humana, e considerando que os homens partilham de
dificuldades e desafios em comum, seria correto afirmar que a construção do
conhecimento poderia ser concebida de forma cooperativa e comunitária. Para
tal, é necessário que o homem entre em relação com os outros e através das
experiências subjetivas construam formas de superação das dificuldades e
desafios. Nesse sentido, as palavras relação e experiências tornam-se
importantíssimas no processo de construção de conhecimento.
Buber (2003) em seu livro “EU-TU”, disserta sobre as relações interhumanas – aqui chamadas de intersubjetivas – nas quais o homem se
descobre no mundo com o outro – podemos dizer: eu-tu ou tu-ele – são a partir
das relações que o homem vai reconhecer-se como humano, através das
experiências compartilhadas. Rezende (1978) diria “ser-no-mundo-com-osoutros”. Esse então seria o fundamento principal dos processos educativos
| 36
com vistas à humanização das ações: Proporcionar experiências nas quais os
educandos signifiquem e re-signifiquem o apreendido, criando ou re-criando
novas formas de fazer, ultrapassando a forma mecanizada e superficial de
aprender.
Correndo o risco de cair na obviedade, devemos entender que o sujeito
possui um meio de comunicação entre ele e o mundo, entre ele e o outro, que
é o seu corpo. “Todo o sistema de relações humanas está construído na e pela
corporeidade. O fundamento da presença humana ou do fenômeno humano
acontece na corporeidade significante e expressiva em direção ao outro. É no
universo da corporeidade que se instaura a subjetividade e a inter-subjetividade
[...]” (SANTIN, 1987, p.51).
É por intermédio do seu corpo, com seus órgãos sensoriais - visão,
olfação, tato, paladar e audição - que o homem estabelece contato com o
mundo – relação – e com toda produção material e simbólica dos homens, ou
seja, com a cultura. Esse contato se dá em forma de sensações. É por
intermédio dos sentidos que o homem percebe o seu entorno, e os outros
sujeitos, a matéria, atribuindo significados às suas percepções, ou nas palavras
do neurologista Antônio Damásio (2000): a formação da consciência.
Segundo Damásio (2000), as sensações que percebemos por meio dos
nossos órgãos dos sentidos, são transformadas, pelo nosso cérebro, em
imagens mentais, formando um tipo de consciência: a consciência central.
Quando as imagens mentais são evocadas em um processo chamado
pensamento e manipuladas em forma de raciocínio, para planejar estratégias
de ação a serem tomadas, no futuro, a consciência deixa de ser central e
passa para um outro estágio que o autor denomina: consciência ampliada.
Entretanto, isso não acontece de forma automática e linear. Partindo do
pressuposto de que cada organismo vivo – que chamaremos aqui de
corporeidade – possui sensações e percepções singulares, precisamos
entender que cada corporeidade atribui sentido e significado singular as
sensações (ASSMANN, 1994; GONÇALVES, 2004; MERLEAU PONTY, 1999;
MATURANA, VARELA, 1995). Por esse motivo, concordamos com Rezende
(1978) com o fato de que de que é preciso educar os sentidos – ou
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corporeidade –, pois entendemos que é a partir da corporeidade que é possível
estabelecer relações de qualidade com o mundo e com os outros, ampliando a
consciência e possibilitando um maior conhecimento de si mesmo e do mundo.
Entretanto, a elite intelectual, econômica e social, compreendeu que a
massificação da consciência coletiva deveria ser iniciada por esses canais de
comunicação do ser com o mundo, e com o auxílio dos meios de comunicação
de massa passou a disseminar formas-pensamento – ideias – que são
interessantes para seus
objetivos,
criando
“uma
espécie de mundo
intermediário, o das imagens, que, num certo nível, substitui o mundo real”
(REZENDE, 1978, p. 64), influenciando diretamente na constituição da
corporeidade dos sujeitos.
Maduro afirma que “[...] submetidos a interesses de minorias fortes e
poderosas, os mais fracos podem acabar aceitando como verdadeiro aquilo
que lhe é imposto pelos mais fortes – coisa que geralmente é benéfica para os
poderosos, mas prejudicial para os mais vulneráveis” (1994, p.113).
Essa armadilha – na qual facilmente caímos – não nos permite atribuir
nossos
próprios
significados
ao
que
percebemos,
limitando
nossa
compreensão do mundo. Isso faz com que sejamos determinados pelos
discursos alheios. Rezende defende a tese de que o homem só se torna
humano de fato quando, por meio da sua inteligibilidade, é capaz de atribuir
sentido próprio ao mundo percebido, fora desse contexto, é apenas um sujeito
perdido no mundo, condenado a alienação.
Segundo Rezende:
[...] não cabe a nenhuma outra pessoa dar sentido á minha
própria existência. Essa é talvez a crítica mais profunda que se
possa fazer a uma insuficiente noção religiosa de
predestinação ou mesmo de presciência. Mas, essa critica
nunca é tão pertinente como com relação às tentativas de
dominação de pessoas e grupos sobre outras pessoas e
grupos humanos. (1978, p.31)
Robert Greene (2000), em seu livro “As 48 leis do poder”, uma espécie
de manual do charlatão ou fenomenologia do poder, ensina em uma dessas
leis, sobre “o despertar a fantasia nas pessoas” que
| 38
[...] em geral evita-se a verdade por que ela é feia e
desagradável. Não apele para o que é verdadeiro ou real se
não estiver preparado para enfrentar a raiva que vem com o
desencanto. A vida é tão dura e angustiante que as pessoas
capazes de criar romances ou invocar fantasias são como
Oasis no meio do deserto: todos correm até lá. Há um enorme
poder em despertar a fantasia das massas. (p.290)
Infelizmente, essas afirmações soam como verdadeiras, por mais
chocantes que pareçam ser, e apesar de não querermos aceitar. É fato que na
sociedade de consumo – e de controle – as pessoas são estimuladas pelos
meios de comunicação e a vestirem máscaras sociais para mostrar aos outros
uma imagem que elas gostariam que tivessem delas, e para isso passam a
comprar o que não precisam – e muitas vezes com um dinheiro que não têm –
para passar uma falsa imagem de felicidade. Camus (2008, p.21) afirma que “o
homem é a única criatura que se recusa a ser o que é.”
É nessa relação, de fantasia e poder, que a concepção fenomenológica
da educação e a antropologia social – apropriando-se do paradigma da
corporeidade – devem agir fazendo com que o homem seja capaz de atribuir
sentido próprio ao mundo concreto, e não viver a fantasia que amansa seu
espírito de contestação.
Camus (2008) explica que as grandes revoltas surgem quando o homem
percebe que está sendo cerceado de seus direitos, da percepção da tentativa
de terceiros em amansá-lo, dominá-lo fazendo dele instrumento a serviço de
interesses que não são os seus, instituindo assim um mundo estranho –
alienado – e passa a agir de forma que possa atribuir seus próprios significados
ao mundo, tomando controle da sua própria vida. Novaski disserta sobre a
responsabilidade do filósofo em educação – ou educador – que é ajudar o
homem a tornar-se humano: “aquele que não se deixar mutilar pela
oficialização dos valores quaisquer que sejam: religião, ética, educação, saúde,
bem-estar, sexo; aquele que tem uma vontade quase desesperada de vida
autêntica, pois acha que ainda não está esgotado para possibilidades maiores”
(1984, p.18).
É no processo-projeto de educação que o homem vai paulatinamente se
humanizando e readquirindo a sua sensibilidade, livrando-se da opressão do
sistema. Para isso, é necessário negar a concepção mecanicista de educação
| 39
em que, por meio da imposição de uma cultura hegemônica, se massifica a
consciência coletiva.
Cabe nesse momento referenciar Paulo Freire (1996), com suas
preposições embasadas na concepção fenomenológica da educação nas quais
disserta que
Infelizmente, o que se sente, dia a dia, com mais força aqui,
menos ali, em qualquer dos mundos em que o mundo se
divide, é o homem simples, esmagado, diminuído e
acomodado, convertido em expectador, dirigido pelo poder dos
mitos que forças poderosas criam para ele. Mitos que voltandose contra ele, o destroem e aniquilam. É o homem
tragicamente assustado, temendo a convivência autentica e até
duvidando de sua possibilidade. Ao mesmo tempo, porém,
inclinando-se a um gregarismo que implica ao lado da solidão,
que se alonga como medo da liberdade, na justaposição de
indivíduos a quem fala um vinculo critico e amoroso, que a
transformaria numa unidade cooperadora, que seria a
convivência autêntica (FREIRE, 1996, p.53)
É por esse motivo que “para a fenomenologia, há na educação todo um
trabalho de educar os sentidos, a partir deles: aprende-se a ouvir, a ver, a
cheirar, a degustar, a sentir, como se aprende a lidar com a imaginação”
(REZENDE, 1990, p.52). Serão esses sentidos, bem desenvolvidos, que
subsidiarão o homem a refletir, a se conhecer, através das interpretações que
faz de si mesmo e do mundo. A concepção antropológica de educação
contribui com esse diálogo a respeito do “processo social de aprendizagem”,
em que o homem apreende todos os códigos e símbolos de sua cultura,
atribuindo-lhes significados, e tudo aquilo além do seu universo cultural tornase alienação (BRANDÃO, 2007).
Vale ressaltar que não estamos falando em conduzir o homem rumo “a
uma vida melhor”, não cabe a ninguém decidir o que é melhor para o outro,
mas sim subsidiá-lo, com habilidades perceptivas que o propiciem a pensar a
vida, e a contextualizá-la.
Outra responsabilidade do filósofo em educação – educador/professor –
baseado nos pressupostos da fenomenologia da educação – é ajudar o sujeito
a buscar o equilíbrio entre a autonomia e a heteronômia, tendo a consciência
de que o homem necessita do outro para se desenvolver, mas, estabelecendo
| 40
limites entre sua individualidade e sua identidade cultural. Novaski afirma que
“foi rompido o equilíbrio entre essa duas formas, devido à hipertrofia das
instituições que hoje não só detém o monopólio radical do seu produto, como
também tornam sem valor a ação autônoma das pessoas que querem gerir
suas próprias vidas” (1984, p. 16).
Dessa maneira, na maioria das vezes, as ações dos homens são
inspiradas e motivadas por forças contrárias a sua intencionalidade criativa,
carecendo de espontaneidade e obedecendo a normas de comportamentos
instituídos pelo pensamento dominante.
Nesse
trabalho/dissertação,
defendemos
a
educação
como
um
processo-projeto – parafraseando Rezende (1999) – no qual o homem –
através de sua corporeidade – estabelece relação com o mundo e com os
outros, adquirindo habilidades em perceber as diferentes sensações que o
mundo o submete, possibilitando-o a dar respostas através de significados
construídos de forma subjetiva, ou seja, construindo conhecimentos. Para tanto
entendemos que a educação acontece a todo o momento, nos mais diversos
espaços, através de diversas linguagens, como na arte, na musica, na
motricidade.
A educação como processo para humanizar as ações dos homens – ou
sua corporeidade – pode e deve acontecer não apenas nas instituições formais
como a escola, mas em todos os lugares onde existam relações humanas.
Dessa maneira, precisamos refletir sobre a possibilidade de vivenciarmos
experiências que nos possibilitem humanizar-nos, seja dentro ou fora das
instituições formais.
A partir da década de 1990, no Brasil, surgiram alguns estudos – como
os de Ghon – refletindo sobre a possibilidade de construção de propostas
educacionais fora do ambiente escolar, denominada como educação não
formal. Tais reflexões, a princípio, estavam voltadas ao aprendizado
proporcionado dentro dos movimentos sociais, entretanto, não demorou a
perceber a possibilidade de sistematização de propostas educacionais em
outros espaços além dos movimentos sociais e das escolas, que visam formar
o sujeito para a vida social.
| 41
A educação Sociocomunitária, com pressupostos que se aproximam aos
da educação não formal, apesar de ser praticada há algum tempo por
educadores dentro das comunidades mais carentes, passou a ser pensada de
forma sistemática na área de ciências da educação com a formação do
programa de mestrado em educação Sociocomunitária do Centro Universitário
Salesiano de São Paulo – Unisal. No próximo capítulo realizaremos algumas
considerações sobre educação Sociocomunitária, um conceito ainda em
construção, e a atuação dos educadores Sociocomunitários. Também
discorreremos sobre as comunidades educativas lugares em que acontecem
ações educativas intencionais ou não. Finalmente argumentaremos que
podemos considerar os espaços debaixo das lonas de circo e os
frequentadores
desse
espaço
como
comunidades
educativas.
1.3 – Educação Sociocomunitária e Comunidade Circense
“A comunidade pode, a partir da relação entre duas ou
algumas pessoas, tornar-se o fundamento da vida em
comum de muitas pessoas. Mesmo assim, contudo, lhe
são colocados limites espaciais cuja ultrapassagem
representa o inicio da diluição do conteúdo da
imediaticidade: a forma legítima da comunidade como
construção social é a construção concreta”
Martin Buber
| 43
No item anterior discutimos sobre o sentido da educação, evidenciando
a sua utilização por alguns grupos sociais para a apropriação do poder
simbólico e econômico. Também discutimos a educação a partir das
concepções de alguns educadores/formadores brasileiros, e defendemos a
educação como um processo-projeto de humanização das ações do ser
humano. Para tal, acreditamos que é essencial o desenvolvimento dos sentidos
e da sensibilidade humana, pois são essas habilidades que nos fornecerão
subsídios para realizar uma leitura contextualizada do mundo a partir de uma
consciência autônoma.
A intenção agora é dissertar sobre os pressupostos da educação
Sociocomunitária – um conceito em construção – e o circo, que aqui iremos
nos referir como “debaixo da lona”, considerando este um micro-sistema social,
ou uma comunidade educativa, que na definição de Gomes (2007, p.41) “[...]
implica que se tenha um conjunto de pessoas que estão compartilhando um
tempo histórico e um espaço geográfico”. E ainda, uma linguagem específica,
no caso as linguagens circenses, que se trata de um conjunto de
manifestações artísticas predominantemente corporais que surgiram com a
intenção de divertimento e hoje estão sendo utilizados com outras intenções –
lazeres, educação, terapia, estética etc.
Existem várias versões sobre o surgimento do circo, mas não vamos nos
atentar a sua historicidade. As informações disponíveis acerca do assunto
sugerem que manifestações artísticas e culturais em diversas partes do mundo
ocorriam em momentos comemorativos nos quais os grupos exibiam suas
destrezas físicas ou artísticas. Por esse motivo, consideraremos, nesse
trabalho, como conjunto de atividades de destreza corporal e/ou artística
desenvolvida por determinados grupos sociais/culturais que, com o tempo, vão
sendo re-significadas por outros grupos. O que nos importa nesse trabalho é
evidenciar e reconhecer que as linguagens, que são dispostas nas
apresentações circenses, podem se transformar em experiências educativas
com vistas à formação dos educandos. Entretanto, devemos esclarecer que o
conceito comunidade circense não se encerra na existência de uma única
comunidade.
| 44
Em fase de construção, a educação Sociocomunitária surgiu pelo
interesse de investigar as articulações comunitárias que se propõem em
transformar a sociedade por meio de propostas de intervenções educativas.
Gomes (2006) nos ensina que não se trata apenas de uma prática, um
ativismo, mas uma ação que se origina da reflexão – práxis – atribuindo uma
direção histórica. Inspirada na Educação Salesiana, proposta de educação
Sociocomunitária vai da ação para a sistematização, ou seja, privilegiam-se as
experiências de intervenção realizadas pelos educadores e, posteriormente,
realiza-se uma análise e interpretação das mesmas, refletindo sobre as suas
possibilidades e limitações.
Com pressupostos que se aproximam da educação não formal,
podemos considerar a educação Sociocomunitária como um meio educacional
que acontece a partir das experiências compartilhadas pelos membros de uma
comunidade,
provocando
modificações
nas
estruturas
cognitivas
e
comportamentais desses membros. Nesse contexto, o educador-pesquisador
sociocomunitário – educador social, arte-educador, ludo-educador etc – é um
organizador das experiências intencionais de aprendizagem, a partir dos
conhecimentos construídos pela própria comunidade. Dessa forma, o educador
sociocomunitário, não institui experiências que considera importante para a
comunidade, mas sim busca organizar experiências a partir da realidade
cultural que fundamenta o convívio da comunidade.
É parte fundamental desta dissertação entender o que acontece
“debaixo da lona”, como acontecem as interações humanas por meio dos
processos educativos, e qual é o endereço histórico do resultado dessas
interações. Entendemos esse espaço como uma “ecologia cognitiva” 1, ou
como uma comunidade educativa.
O
educador
sociocomunitário,
como
investigador,
interlocutor
e
intérprete, precisa ouvir as vozes desses sujeitos, suas dificuldades, suas
intenções, seus sonhos, para saber se há algo que possa fazer para contribuir
na formação desses sujeitos. Antônio (2007) nos orienta que o educador
1
Em sua obra “Reencantar a educação” editora Vozes, 1998. Hugo Assmann referese à ecologia cognitiva como um ambiente capaz de propiciar experiências de
aprendizagens, o qual contribuiria na formação dos sujeitos “aprendentes”.
| 45
Sociocomunitário não é aquele que, ao engajar-se na comunidade, dita os
comportamentos e pensamentos que seus membros devem ter, mas é aquele
que busca contribuir na evolução humana desses. E como isso é possível?
Segundo Antônio, “primeiro você escuta, só trata o outro como sujeito, se tiver
escuta da alma dele. Não é só falar de coisas agradáveis e de consenso, mas
também de conflitos, de dores e questões não resolvidas. Se você não escuta,
não há relação educativa” (2007, p.53).
Ser interlocutor e intérprete nesse ambiente específico da nossa
pesquisa – debaixo da lona – com características peculiares – as linguagens
circenses, um misto de arte e motricidade humana – requer determinada
habilidade perceptiva e interpretativa, pois o discurso dos protagonistas da
pesquisa não é apenas enunciado por meio de suas vozes, mas principalmente
pelas ações de seus corpos.
É neste momento que gostaríamos de valorizar a nossa formação e
denotar a importância do profissional de Educação Física nessa empreitada, e
até ousar em criar um novo termo: “Educador Físico sociocomunitário”. Existem
vários autores que poderíamos lançar mão para justificar esse termo, mas a do
educador/formador Silvino Santin já nos parece suficiente. Segundo o autor,
[...] o movimento humano, por fim, pode ser compreendido
como linguagem, ou seja, como capacidade expressiva. O
homem se expressa pelos seus movimentos, pelas suas
posturas, pelos seus gestos. O corpo humano é fala e
expressão. A presença do homem é sempre presença falante,
mesmo silenciosa. O homem se expressa no seu olhar, na sua
face, no seu andar; ao ocupar seu lugar; o movimento humano
será sempre intencional e pleno de sentido. (SANTIN, 1987,
p.34).
O profissional de Educação Física adquire, na sua formação,
conhecimentos provenientes de várias vertentes epistemológicas, que o
subsidiam na sua prática profissional. A palavra “física” – que aqui podemos
entender como sinônimo de corpo –, da Educação Física pressupõe que,
logicamente, haveria uma educação não física ou “intelectual”. Essa
fragmentação provoca um entendimento de que o professor de Educação
Física é aquele que “educa o corpo”, como se corpo e mente/cérebro fossem
partes dissociadas. Educador físico a que me refiro, deve ser entendido como
| 46
profissional da educação que passou por um processo de formação em que
adquiriu um conjunto de conhecimentos que o possibilitam a desenvolver um
conjunto de práticas educativas, apropriando-se da motricidade humana como
linguagem educativa e como instrumento de trabalho.
Com
diversas
possibilidades
de
atuação
profissional
–
saúde,
treinamento esportivo, educação – o educador físico tem na motricidade
humana – e sua produção cultural – uma linguagem educativa e seu
instrumento de trabalho, e para tal, necessita desenvolver um olhar
diferenciado sobre o corpo e sobre as ações motoras. Dessa maneira, o
educador físico sociocomunitário caracteriza-se pela sua habilidade em
reconhecer e interpretar as vozes corporais, que se expressam através das
ações motoras – entendendo que cada ação é a expressão do discurso interior,
em que explicitam os medos, os anseios, os desejos, as aspirações – para que
assim possa construir comunitariamente propostas de ação com vistas a
atender as demandas das comunidades.
Especificamente neste trabalho, o educador físico sociocomunitário,
como educador, pesquisador, interlocutor e intérprete, necessita engajar-se
nessa comunidade – circense – para verificar se existe a possibilidade de
transformar um saber eminentemente familiar e empírico – circo família – em
um saber popular a ser socializado por intermédio de experiências educativas.
Se antes as linguagens circenses eram restritas apenas aos integrantes das
famílias circenses, em que o saber era transmitido de forma oral, e muitas
vezes informalmente, por meio de vivências e observações; com a
modernidade e a escolha dessas famílias em atribuir um novo rumo às suas
vidas e de seus filhos, as artes circenses transformaram-se em produtos
possíveis de ser comercializados 2.
Atualmente existem instituições que utilizam as linguagens circenses
como possibilidade de intervenções educativas buscando formar um sujeito
2
No Brasil, a primeira escola de circo que se tem noticia é a escola de circo Piolin, que
na década de 1970, no Rio de Janeiro, ensinava técnicas circenses a pessoas não
pertencentes a famílias circenses. Daí a passagem do circo-familia para o circoescola.
| 47
capaz de exercer sua cidadania, como é o caso do Instituto Sócio Cultural
Brinquedo Vivo. Desse modo, os profissionais que desenvolvem esses projetos
educativos são, em sua maioria, oriundos de famílias circenses, ou ex-alunos
de escolas de circo, dotados de um rico conhecimento empírico, que é preciso
que seja reconhecido.
Porém, é necessário que se entenda que o saber desses sujeitos surgiu
de uma metodologia especificamente voltada para a formação do artista
circense, ou seja, aquele que utiliza as suas destrezas artísticas e corporais
para apresentações e shows, em troca de determinada remuneração. Nesse
sentido, a transmissão do saber circense tem como aporte o método técnico
instrumental, no qual os praticantes reproduzem movimentos pré-determinados
pelos mais experientes.
Entretanto, a missão das instituições que utilizam as linguagens
circenses como conteúdos a serem contemplados no processo formativo, no
nosso entendimento, não pode ficar limitada ao saber-fazer. Lembramos, aqui,
Paulo Freire, que foi um dos maiores críticos da educação bancária, educação
que vê o aluno como um banco em que deve ser depositado todo
conhecimento “verdadeiro” do educador. Para Paulo Freire “[...] ensinar não é
transferir conhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito
criador da forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado” (1996, p.
22).
Entendemos que debaixo da lona seja um espaço rico para o processo
de formação da identidade humana, pois consiste em um lugar em que são
desenvolvidas experiências educativas, e onde as subjetividades encontram-se
por meio da arte corporal, um lugar propício ao desenvolvimento dos sentidos e
das sensibilidades. Porém, essa formação apenas será completa se houver
liberdade de cada sujeito em manifestar seus próprios significados, suas
intencionalidades, suas espontaneidades. “A educação pode existir livre e,
entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar
comum, como saber, como idéia, como crença, aquilo que é comunitário, como
bem, como trabalho ou como vida” (BRANDÃO, 2003, p. 10).
| 48
O fim da alienação da consciência humana apenas será possível quando
o homem se tornar senhor de si mesmo, quando através de suas experiências,
for capaz de atribuir seus próprios sentidos, sistematizar seus próprios
conhecimentos, nem que seja ingênuo, pois como nos ensina Paulo Freire “[...]
ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se
fez velho e se dispõe a ser ultrapassado por outro amanhã” (1996, p. 26).
O papel de todo educador, comprometido com a utopia da formação de
um homem livre, seja ele educador social, escolar, sociocomunitário etc., é de
criar condições para que o homem não se torne apenas uma peça na
engrenagem do sistema dominador e de controle. É por isso que “debaixo da
lona” as experiências educativas não podem estar voltadas apenas para o
saber fazer, sem reflexão, sem espontaneidade, sem intencionalidade. O saber
fazer “debaixo da lona” deve andar lado a lado com o saber pensar, o saber
criar, recriar ou ressignificar. A autonomia humana só é possível quando o
sujeito atribuir o próprio sentido às suas experiências (REZENDE, 1978).
Daí, a importância do educador físico sociocomunitário, aquele que
articula o saber das ciências da educação com o conhecimento empírico dos
profissionais de circo, acreditamos que no encontro dessas subjetividades seja
possível sistematizar a práxis circense de forma que possa contribuir com a
formulação de experiências que objetivam formar um sujeito autônomo. No
nosso entendimento, como profissional da educação, o educador físico
sociocomunitário é um educador profissional capaz de realizar propostas de
intervenções educativas que contribuam para a formação de um sujeito
autônomo, por meio de experiências educativas envolvendo ações corporais.
Deixamos claro, nesse momento, que não estamos falando em ensinar a
se movimentar, mas a pensar a vida por meio do corpo, a contextualizar e
atribuir sentido próprio com os recursos que são adquiridos nos processos de
interações.
Por se tratarem, como já dissemos, de arte e motricidade humana,
entendemos que o paradigma da corporeidade possa ser o corpo teórico que
contribuirá em nossas reflexões acerca das linguagens circenses. Muitos
profissionais da educação, principalmente os educadores físicos, apropriam-se
| 49
desse paradigma para fundamentar as suas propostas de ação. Sendo
considerado por muitos como uma das principais vozes da corporeidade, o
filósofo Maurice Merleau Ponty (1999) nos referencia com seus estudos acerca
da sensibilidade e das sensações que são, para os educadores físicos, os
princípios norteadores para as propostas de intervenções educativas. Nas
teorias de Merleau Ponty (1990) o homem se manifesta a partir de sua
corporeidade, não apenas como corpo material, mas como corpo expressivo,
capaz de expressar-se por meio de seus movimentos. Na voz de Merleau
Ponty:
Os outros homens nunca são puros espíritos para mim: só os
conheço através de seus olhares, de seus gestos, de suas
palavras, em suma através de seus corpos. Certamente, para
mim, um outro está bem longe de reduzir-se a seu corpo. Um
outro é esse corpo animado de todos os tipos de intenções,
sujeito de ações ou afirmações as quais me lembro e que
contribuem para o esboço de sua figura moral para mim. (2004,
p.43)
Segundo Assmann, a partir de uma visão educacional fundamentada
pelos
pressupostos
das
ciências
cognitivas
e
até
certo
ponto
nos
entendimentos de Merleau Ponty, “a corporeidade não é fonte complementar
de critérios educacionais, mas seu foco irradiante primeiro e principal”
(ASSMANN, 1995, p.77). Entendemos que o paradigma da corporeidade,
possa nos dar recursos importantes ao tratar do entendimento acerca das
relações corpo e mundo.
Partindo do principio de que somos seres-no-mundo-com-os-outros
(REZENDE,
1978),
e
que
os
processos
educativos
acontecem,
predominantemente, em relação com os outros, por intermédio do corpo, nos
próximos capítulos dissertaremos acerca da corporeidade e suas contribuições
na área da educação, bem como as relações entre motricidade, arte e
educação que acontecem debaixo da lona, assim como o trabalho do educador
circense.
2 – Corporeidade e Educação
“Eu sou um ser. Sou uma pessoa que começa no existir
do corpo de quem é: o meu corpo. Mas ele (ou eu) é
também o corpo que me habita. Pois quem seria ele sem
eu? É o corpo que eu vivo a minha vida, o corpo em que
eu vivo a vida, o corpo que eu habito e em que me obrigo
para viver, pois quem seria eu sem ele agora?”
Carlos Rodrigues Brandão
“O nosso corpo é um exemplo que clarifica os diferentes níveis
de realidade, interconectados e interdependentes. Nosso corpo
é, ao mesmo tempo, um organismo físico-quimico-biológico e
uma existência sócio-histórica-cultural. Ele é feito de palavras,
assim como vestígio de estrelas. Constitui-se da matéria orgânica
e da matéria de que são feitos os sonhos”.
Severino Antônio
| 51
No
capítulo
anterior
procuramos
refletir
sobre
Educação
sociocomunitária, partindo do pressuposto de que se trata de uma abordagem
que busca investigar as ações educativas comunitárias. Essa abordagem tem a
intenção de fundamentar propostas educativas, através da práxis, dentro das
comunidades, a partir dos saberes e dos potenciais dessas comunidades,
visando contribuir na formação de um sujeito autônomo. Também procuramos
evidenciar nosso entendimento de que debaixo da lona consiste em um espaço
de interação – comunidade – com saberes e linguagens específicas que
proporcionam um ambiente de aprendizagem.
Pelo fato das linguagens circenses se constituírem em um misto de
motricidade e arte – entendendo motricidade como movimento humano
intencional, e arte como a corporificação da criatividade e sensibilidade
humana – acreditamos ser o paradigma da corporeidade a luz para iluminar o
caminho da compreensão das inter-relações debaixo da lona. Neste capitulo
iremos nos atentar aos pressupostos da corporeidade como possibilidade no
processo educativo debaixo da lona.
Merleau Ponty (1999) em sua obra “Fenomenologia da percepção” traz
contribuições importantes para os estudos dos processos de apreensão do
conhecimento intermediados pelo corpo, que nesse trabalho entenderemos
como corporeidade. No entendimento de Merleau Ponty nosso corpo e a
motricidade humana são os principais meios que nos colocam em contato com
o mundo e com os outros sujeitos, ou seja, são os interlocutores entre os
sujeitos e as experiências do conhecimento. Nas palavras de Merleau Ponty
(1999, p. 253) “é por meu corpo que compreendo o outro, assim como é pelo
meu corpo que compreendo as coisas”.
O mundo sensível, os outros e os objetos apenas podem existir no
momento em que atribuímos um sentido para eles, e tais sentidos acontecem a
partir da corporeidade. A existência humana acontece por meio da
corporeidade.
Na concepção de Merleau Ponty, para compreendermos o processo de
construção e apreensão do conhecimento precisamos nos atentar á
importância do corpo e principalmente da motricidade humana. O homem
| 52
existe por meio da sua corporeidade e, é a partir dela que ele percebe e
interage com o mundo, apreendendo seus sentidos e significados, sempre em
constante movimento intencional, que o autor denomina de motricidade
humana. Dessa forma o movimento não é um simples deslocar-se pelo mundo,
mas sim uma condição que permite o homem se expressar por meio de sua
gestualidade. Para Merleau Ponty (1999, p.193)
Um movimento é aprendido quando o corpo o compreendeu,
quer dizer, quando ele o incorporou ao seu "mundo", e mover
seu corpo é visar às coisas através dele, é deixá-lo
corresponder à sua solicitação, que se exerce sobre ele sem
nenhuma representação. Portanto, a motricidade não é como
uma serva da consciência, que transporta o corpo ao ponto do
espaço que nós previamente nos representamos. Para que
possamos mover nosso corpo em direção a um objeto,
primeiramente é preciso que o objeto exista para ele, é preciso
então que nosso corpo não pertença à região do "em si". Os
objetos não existem mais para o braço do apráxico, e é isso
que faz com que ele seja imóvel.
Os estudos de Merleau Ponty inspiraram outros trabalhos de diferentes
correntes epistemológicas. Um dos trabalhos mais conhecidos é a obra dos
biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, “A árvore do
conhecimento” (2001). Segundo os cientistas, cujos entendimentos vão ao
encontro dos estudos de Merleau Ponty, o processo de apreensão do
conhecimento depende das relações recíprocas entre o sujeito e o mundo. O
homem, por meio das experiências corpóreas, estabelece relação com o
mundo e com os outros e essas relações provocam modificações em sua
estrutura corporal, principalmente as estruturas cognitivas.
A partir dos pressupostos dos autores, devemos entender que todo o ser
vivo possui uma estrutura biológica inicial que vai se modificando a partir da
sua relação com o mundo. Dessa forma, as sensações corporais, que
acontecem principalmente por meio dos cinco sentidos – olfato, audição, visão,
paladar e tato – e da consciência ampliada (DAMÁSIO, 2000) – como produto
final dessa interação –, permitem ao homem perceber os estímulos e
provocações do mundo e, a partir de um processo de leitura e interpretação
valendo-se da consciência, adaptar-se a ele. Essa é um sistema complexo de
auto-organização, que os autores chilenos (MATURANA; VARELA, 2001)
| 53
denominam de autopoiesis – auto fazer-se, auto criar-se. No entanto, as
modificações dessas estruturas não dependem dos estímulos externos e sim
das estruturas iniciais dos seres vivos. Nas palavras dos próprios biólogos,
[...] todo ser vivo começa com uma estrutura inicial, que
condiciona o curso de suas interações e delimita as
modificações estruturais que estas desencadeiam nele. Ao
mesmo tempo o ser vivo nasce num determinado lugar, no
meio que constitui o entorno no qual ele se realiza e em que
ele interage, meio esse que também vemos como dotado de
uma dinâmica estrutural própria, operacionalmente distinta
daquela do ser vivo. (MATURANA; VARELA, 2001, p. 107).
Apesar de sujeito e entorno formarem e pertencerem a uma ecologia e
se influenciarem reciprocamente, o que define as modificações nos seres vivos
são suas estruturas iniciais. Nesse sentido,
[...] se uma célula interage com uma molécula X, incorporando-a
a seus processos, o que acontece como consequência da
interação não está determinada pelas propriedades dessa
molécula, e sim pela maneira como ela é “vista” ou tomada pela
célula, ao incorporá-la à sua dinâmica autopoiética. As
mudanças que possam ocorrer nela, em conseqüência dessa
interação, serão as determinadas por sua própria estrutura
como unidade celular. (MATURANA, VARELA, 2001, p.61)
Esses pressupostos são importantes para entendermos a participação
do corpo nos processos de experiências intencionais de aprendizagem.
Precisamos entender o corpo/corporeidade como um sistema complexo, autoorganizativo, capaz de se adaptar as diversas provocações do meio externo.
Para tal, o organismo vivo/corpo possui uma incrível capacidade genética de
adaptar-se ao ambiente e continuar vivendo. Essa adaptação acontece por
meio
das
aprendizagens.
Por
esse
motivo
que,
para
alguns
estudiosos/educadores, processos cognitivos – de aprendizagem – e
processos vitais são sinônimos (ASSMANN, 1998/1999; GONÇALVES, 2004).
Diversos autores, estudiosos da corporeidade, das duas concepções –
ciências cognitivas e filosofia – (SANTIN, 1987; BATISTA FREIRE, 1991;
SALIN GONÇALVES, 1994; MERLEAU PONTY, 1999; CARMO JR., 2005;
ASSMANN, 1995; GONÇALVES, 2004) criticam a visão da filosofia dualista
que dicotomiza o homem em corpo e alma/mente/cérebro, atribuindo à mente
| 54
importância maior em relação ao corpo. Para Assmann (1995) não existe
educação fora do corpo, e questiona: como atribuir importância maior à mente,
se ela está encarnada em um corpo e depende desse corpo para existir?
Para Gonçalves (2004, p. 49) “o uso do termo corporeidade procura
construir uma linguagem que ultrapasse a dicotomia do corpo e da mente como
instâncias separadas. Desta forma a mente não seria apenas uma proprietária
do corpo como forma dele dispor quando conveniente”.
Trataremos o corpo/corporeidade, neste trabalho, como uma unidade,
sem dualismo, um organismo vivo com uma incrível capacidade de autoorganização – interna – para dar respostas às provocações do meio – externo
– pois “[...] a corporeidade humana constitui um todo biológico, sociológico e
psicológico de fenômenos articulados, podendo abrir espaço para tentar
enxergar um lugar no qual o sentido do todo corporal projeta nossa
consciência” (CARMO JUNIOR, 2005, p. 25). E, também, entenderemos como
corporeidade a capacidade do homem em expressar-se por meio da sua
motricidade, pois “[...] o homem não age por partes, mas age sempre como um
todo. O pensar, as emoções e os gestos são humanos, não são hora físicos ou
psíquicos, mas sempre totais, isto é, são ao mesmo tempo toda a adjetivação
que lhe pode atribuir” (SANTIN, 1987, p.25).
Dessa maneira devemos considerar o corpo como um organismo, que
recebe estímulos/provocações do meio externo (percebe); decodifica e
interpreta (auto-organiza) e emite respostas (significa); por meio de linguagens
expressivas (gestualidade). São as respostas frente aos estímulos que
determinam o significado individual de cada sujeito, ou seja, sua corporeidade.
Para Carmo Junior, “O corpo se transforma em corporeidade na medida em
que adquire sentido, quando se torna referência na transição e transmissão de
dados e idéias" (2005, p. 26).
Essa ideia inicial nos faz pensar na urgência de um modo de pensar
educação diferentemente da que acontece na maioria das escolas. Na
pequena experiência que temos como professores de educação física escolar
percebemos que o corpo é tratado, nesse ambiente, como inimigo do
aprendizado, pois a ideia dos profissionais de educação desse ambiente é a de
| 55
que o aluno aprende melhor quando o corpo está inerte. Surge então uma
pergunta: se o corpo é o principal elemento relacional com o mundo – e
consequentemente com o conhecimento – um corpo sem movimento não terá
mais dificuldade em apreender conhecimentos?
Batista Freire (1991) disserta sobre a unidade entre o sensível e o
inteligível, em que trata o corpo como sensível e o intelecto como inteligível.
Para Batista Freire “[...] o incremento da inteligência do inteligível depende
tanto da sensibilização do inteligível quanto a sensibilização do sensível
depende da inteligência do sensível” (1995, p.77).
Dessa maneira seria um equívoco pensar educação de forma
compartimentada, em que se educa mente – por meio de matérias/disciplinas
predominantemente “teóricas” como Geografia, História, Matemática, Língua
Portuguesa, etc., e a Educação Física ou educação motora, que ensina o
movimento humano. Primeiro, porque para aprender Matemática, História,
Geografia etc., é necessário que o corpo esteja presente no processo. Sem
corpo não há educação, assim como para se movimentar é necessário que o
corpo pense, pois o pensamento também é uma forma de movimento. E,
segundo, porque acreditamos que o papel do educador/professor não é ensinar
Matemática, Geografia, História, Língua Portuguesa ou movimentos prédeterminados de alguma modalidade esportiva ou artística, e sim provocar o
aluno a atribuir sentido próprio ao que faz, utilizando os conhecimentos
adquiridos no processo educativo para contextualizar o mundo em que vive,
criando formas de superar as dificuldades e desafios que surgem na sua
existência. Concordamos quando Antônio nos diz que “conhecer não é
dissociar, mas principalmente contextualizar” e também “conhecer não é
abstrair, mas principalmente concretizar” (2009, p. 24).
O corpo, dessa maneira, se constitui como interlocutor principal entre o
conhecimento disponível no mundo e o sujeito, funcionando como um meio
pelo qual as informações desconexas vão adquirindo sentido. É por meio das
relações dos sistemas sensoriais com o mundo que o corpo vai organizando as
respostas, baseadas em matrizes de significação incorporadas a consciência.
| 56
Para Santin “[...] todo sistema de relações humanas está constituída na
e pela corporeidade” (1987, p. 51). Entendemos, então, porque Assmann
(1995) defende a corporeidade como foco principal para se pensar educação.
Para Assmann “[...] a corporeidade não é fonte complementar de critérios
educacionais, mas seu foco irradiante e principal. Sem uma filosofia do corpo,
que pervada tudo na educação, qualquer teoria da mente, da inteligência, do
ser humano global, é, de entrada, falaciosa” (1995, p. 77).
No entanto, desenvolver a corporeidade, no intuito de possibilitar que as
relações sejam mais significativas, perpassaria pelo acesso a experiências
educativas que priorizassem o movimento. É nesse sentido que as linguagens
circenses
se
tornariam
possibilidades
ricas
no
desenvolvimento
da
corporeidade, pois são constituídas – como dito anteriormente – de uma junção
de motricidade e arte. Dessa maneira, as linguagens circenses, vivenciadas a
partir
de
experiências
educativas
proporcionariam
aos
educandos
a
oportunidade de desenvolverem-se, como sujeitos, através de um processo de
auto-organização, levando em consideração suas capacidades expressivas e
subjetivas.
Debaixo da lona, nesse contexto, se configuraria assim em uma
comunidade com espaço específico e uma linguagem própria (GOMES, 2008),
ou seja, uma ecologia cognitiva capaz de proporcionar experiências de
aprendizagem/educativas (ASSMANN, 1998). No entanto, para aperfeiçoar as
relações e as oportunidades de aprendizagem, contribuindo assim na formação
dos sujeitos, torna-se necessário pensar educação diferentemente das
propostas/concepções tradicionais, nas quais se homogeniza as experiências –
obrigando o educando/aluno a deitar-se no leito de Procusto da educação 3 –, e
3
A metáfora refere-se a Procusto, um bandido da mitologia grega que construiu em
sua casa um leito de ferro. Tinha o costume de sair pelas ruas e deter os viajantes,
convidando-os para jantar em sua casa e quando terminava a refeição estendia-os
sobre o leito de ferro. Se o corpo ficasse menor que o leito, ele o desconjuntava-o, por
outro lado, se ficasse maior, ele mutilava o excedente. Essa metáfora pode ser
utilizada na educação tradicional, onde as subjetividades são anuladas pelo processo
de homogenização dos comportamentos e aprendizagens, o educando/aluno que não
se adéqua aos padrões é considerado incompetente/inapto, ficando às margens, da
sociedade por não atender suas necessidades. Referência disponível em
http://www.slideshare.net/matiasalves/o-leito-de-procusto : acessado em 03/08/2011.
| 57
mecaniza as experiências de aprendizagem 4.
A característica positiva das linguagens circenses está no fato de que
são atividades que se manifestam a partir da motricidade, e é nesse sentido
que se justifica pensar propostas educativas a serem realizadas “debaixo da
lona” a partir da corporeidade. No entanto, sem a necessária ruptura
metodológica que predomina nas concepções tradicionais de educação, as
linguagens circenses se tornariam apenas experiências instrutivas, voltadas ao
saber fazer, ao reproduzir o que já se sabe, deixando no esquecimento a
capacidade interpretativa e criadora. Historicamente, as manifestações
artístico-corporais surgiram da necessidade das diversas culturas de expressar
suas habilidades criativas, através de movimentos subjetivos e espontâneos.
Tomando como base essas considerações, necessitamos entender
quais concepções que, hoje, predominam no trabalho das instituições que
desenvolvem ações educativas a partir das linguagens circenses, ou seja, o
que acontece debaixo da lona. A intencionalidade aqui não é validar um
discurso em detrimento de outros, mas conhecer o que acontece debaixo da
lona, para posteriormente poder discutir propostas de aprimoramento dessas
ações a partir da corporeidade.
O que intencionamos evidenciar até aqui, são as contribuições das
experiências educativas através das linguagens circenses na formação dos
sujeitos, tendo como base de entendimento o paradigma da corporeidade.
Necessitamos, neste momento, lançar mão de todos os recursos teóricos
disponíveis para adentrarmos em um universo onde essas experiências
acontecem. Esse trabalho faz a proposta de conhecer, de forma participante,
não apenas as praticas/ações dos educadores debaixo da lona, mas também o
significado
4
que
cada
educador
atribui
à
sua
prática.
A mecanização da aprendizagem refere-se à concepção técnico-instrumental muitas
vezes privilegiada pela educação tradicional. Baseada nos princípios da administração
cientifica de Frederick W. Taylor (1856-1915), em que existe uma preocupação com o
comportamento motor do empregado, visa a perfeição do gesto motor garantindo
maior produtividade.
| 58
A seguir discorreremos sobre as linguagens circenses, evidenciando
como manifestações da criatividade humana, expressadas pelo corpo.
2.1 – O corpo que aprende
“É por meu corpo que compreendo o outro, assim como é
pelo meu corpo que compreendo as coisas”.
Merleau Ponty
| 60
Realizaremos neste momento algumas considerações sobre as
modificações que o corpo passa devido aos processos de aprendizagem em
relação com o mundo e com os outros. Acreditamos que necessitamos
entender o que acontece com o corpo quando ele está diante de uma
experiência de aprendizagem e quais as consequências dessas experiências
vividas. Para tal, recorreremos aos pressupostos das ciências cognitivas
acreditando que possam contribuir com nossas reflexões.
Na nossa prática docente, como profissional de Educação Física, tanto
em ambientes escolares como não escolares, observamos que eram
constantes as reclamações dos professores e educadores em relação às
dificuldades de aprendizagem de seus educandos/alunos. O discurso que
circulava, e até hoje circula entre os educadores profissionais, é o de que os
educandos/alunos possuem uma incapacidade de compreender os conteúdos,
e de resolver as situações problemas que são propostas. Outro fator que os
incomodava era, e é, o fato dos alunos apresentarem pouco interesse em
aprender.
Como educador/professor, vivenciamos as mesmas dificuldades, pois é
comum observar em nossas aulas, seja com a Educação Física escolar ou nas
oficinas de artes circenses, a dificuldade dos alunos em compreender as
explicações das propostas. Muitas vezes é preciso demonstrar corporalmente
os movimentos e mesmo assim a assimilação é demorada. No entanto, vemos
um diferencial que torna nosso trabalho um pouco menos difícil: a
prazerosidade.
Geralmente, as aulas de Educação Física na escola são as mais
queridas e esperadas pelos alunos. Quando, por algum motivo, os
educandos/alunos ficam durante determinado tempo sem essas aulas,
segundo o relato dos professores/educadores, eles ficam mais estressados,
mais agitados, o que dificulta ainda mais o processo de aprendizagem. Para
muitos educadores as aulas de Educação Física são apenas momentos em
que os educandos/alunos têm possibilidades de se descontrair por meio do
movimento.
| 61
Entretanto, não acreditamos que as aulas que envolvem o movimento
humano – Educação Física, oficinas de expressões corporais ou esportivas –
sejam apenas uma válvula de escape para as tensões dos alunos/educandos.
Para nós, o movimento humano pode ser uma estratégia educativa e o corpo o
principal interlocutor entre o mundo do conhecimento e os sujeitos.
Na etapa de convívio com os arteeducadores circenses, lhes
perguntamos sobre os benefícios de praticar as atividades circenses e, entre as
várias repostas, encontramos uma interessante: Segundo os educadores,
constantemente, os pais os procuram para relatarem as mudanças no
comportamento de seus filhos que refletem positivamente no rendimento
escolar. Podemos sintetizar essa situação na resposta da arte-educadora (F)
que nos relatou que um pai a procurou para agradecer, pois o seu filho estava
melhorando o rendimento escolar:
“depois que meu filho (a) passou a praticar as atividades circenses as suas
notas na escola melhoraram”.
A partir daí surge uma pergunta: existe relação entre o aprendizado das
artes circenses, ou qualquer outra que envolva o movimento humano, com o
desenvolvimento das capacidades cognitivas? Para responder essa pergunta
devemos inicialmente compreender os processos cognitivos, ou o que
acontece com o corpo quando estamos participando de uma experiência de
aprendizagem.
Um dos maiores equívocos dos professores/educadores, segundo o
nosso entendimento, é a de que boa parte deles considera que aprendemos
melhor quando estamos parados. Isso pode ser notado nas salas de aula, lugar
onde o movimento é proibido, e o bom aluno é aquele que fica sentado na sua
cadeira recebendo passivamente as orientações do professor. Dessa forma,
esses professores privilegiam, em suas práticas educativas, a utilização de
recursos tecnológicos de informação (computadores) e os visuais (televisão). A
intenção, dessa estratégia, é fazer com que os alunos mantenham seus corpos
parados.
Nesse sentido, mesmo sem saberem, embasam as suas práticas a partir
de uma visão dualista de homem que separa a mente – cérebro – do corpo.
| 62
Esse dualismo, inspirado na concepção dualista-cartesiana5, entende a
mente/cérebro
como
dimensão
primeira
e
principal
a
ser
trabalhada/desenvolvida. Por outro lado o corpo seria um fator secundário,
lugar onde o cérebro faz a sua morada, com uma importância menor no
processo de conhecer.
Nesse momento intencionamos argumentar/refletir brevemente sobre
algumas questões que envolvem os processos de aprendizagem, como
processo de construção de conhecimento, evidenciando a importância do corpo
nesse processo.
Humberto Maturana e Francisco Varela (1995) explicam que os
processos do conhecer humano estão diretamente relacionados com as nossas
experiências corpóreas. Os autores apresentam evidências que sugerem que o
conhecer humano surge a partir de um complexo sistema de interação entre o
organismo vivo e o meio/entorno, que faz surgir uma compreensão particular
do conhecido. Para os autores “[...] toda a experiência cognitiva inclui aquele
que conhece de um modo pessoal, enraizado em sua estrutura biológica,
motivo pelo qual toda experiência de certeza é um fenômeno individual cego
em relação ao ato cognitivo do outro [...]” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 22).
As estruturas cognitivas de quem conhece – sujeito – define as
interpretações que ele faz daquilo que é conhecido - entorno. E, essas
estruturas vão se modificando a partir das relações que estabelecemos com o
mundo e com os outros em um processo, como dito no capitulo anterior, que os
autores chamam de autopoiesis (autofazer-se, autocriar-se). Dessa maneira o
organismo/sujeito e meio/entorno formam uma ecologia indissociável, em que
ambos influenciam e são influenciados reciprocamente. Hugo Assmann (1998),
a partir de uma interpretação da obra de Maturana e Varela, estabelece uma
interface entre seus pressupostos e a educação e colabora afirmando que
1
A concepção dualista cartesiana foi formulada pelo filósofo René Descartes que entendia o
homem como um ser duplo. De um lado o ser-corpo (res extensa, ou extensão do espaço) e o
ser consciencia (res cogitans, capaz de pensar). Nessa concepção o corpo como ser biológico,
corpóreo que ocupa lugar no espaço, e por isso se submete às leis da natureza, por isso ser
determinado. Por outro lado, a mente consciência seria a parte responsável pelo pensamento,
que não ocupa lugar no espaço, por isso ser livre. Dessa forma, pensar, para Descartes, era
uma atividade separada do corpo (Discurso do método, Renê Descartes. Tradução: Manuel
dos Santos Alves, Editora Universitária Lisboa, 1990).
| 63
[...] o organismo vivo e seu entorno formam, em cada
momento, um único sistema, e qualquer distinção acerca de
autonomias de subsistemas dentro desse sistema (por
exemplo, aprendentes individuais num sistema aprendente)
tem que frisar o caráter relativo dessas autonomias [...]
(ASSMANN, 1998, p.36)
A partir dessa concepção podemos entender que o conhecimento
gerado a partir das interações não são provocados pelos elementos externos
aos sujeitos, mas sim pelo modo como o sujeito interpreta e responde a essas
interações. A forma como conhecemos acontece a partir de um processo
interno “[...] donde se conclui que não há separação entre o produtor e produto.
O ser e o fazer de uma unidade autopoietica são inseparáveis, e esse constitui
seu modo específico de organização” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 57).
Nessa perspectiva podemos creditar ao corpo uma importância
fundamental no processo de aquisição e construção do conhecimento –
aprendizagem –, pois é ele que estabelece relações, modificando suas
estruturas de modo que possa continuar vivendo harmoniosamente com o
entorno. Como nos diz Assmann:
O aprender não se resume em aprender coisas, se isto fosse
entendido como ir acrescentando umas coisas aprendidas a
outras, num processo acumulativo semelhante a juntar coisas
num montão. A aprendizagem não é um amontoado sucessivo
de coisas que vão se reunindo. Ao contrário, trata-se de uma
rede ou teia de interações neuronais extremamente complexas
e dinâmicas, que vão criando estados gerais qualitativamente
novos no cérebro humano. É a isto que dou o nome de
morfogênese do conhecimento (1998, p.40) grifos do autor
Outra obra importante que estuda as relações do corpo com os
processos de apreensão do conhecimento – aprendizagem – é a do
neurocientista português Antônio Damásio, denominada “O erro de descartes:
emoção, razão e cérebro humano” (1996). Damásio defende a ideia de que o
corpo e a mente formam um sistema indissociável, integrados por circuitos
bioquímicos e neurais em intensa interação com o meio que os rodeiam.
Reforçando os pressupostos de Maturana e Varela, que criticam o
entendimento dualista do homem – corpo e cérebro/alma –, Damásio fala sobre
a forte influência que o entorno exerce na formação das estruturas cognitivas
do sujeito. Para o autor:
| 64
O ambiente deixa sua marca no organismo de diversas
maneiras. Uma delas é por meio da estimulação da atividade
neural dos olhos (dentro das quais está a retina), dos ouvidos
(dentro dos quais está a cóclea, um órgão sensível ao som, e o
vestíbulo, um órgão sensível ao equilíbrio) e as miríades de
terminações nervosas localizadas na pele, nas pupilas
gustativas e na mucosa nasal. As terminações nervosas
enviam sinais para pontos de entrada circunscritos no cérebro,
os chamados córtices sensoriais iniciais da visão, da audição,
das sensações somáticas, do paladar e do olfato. (1996, p.
117)
Podemos entender, a partir das explicações do autor, que as influências
do
meio,
percebidas
pelos
órgãos
sensoriais/perceptivos,
provocam
modificações nas estruturas sinápticas do cérebro, possibilitando que o sujeito
tenha a capacidade de formar imagens mentais, que são manipuladas, em um
processo
chamado
pensamento,
e
podem
nos
servir
para
articular
comportamentos e ações a serem tomados em determinadas situações. Vale
lembrar que quando ele fala de imagem, não se refere apenas a imagens
visuais, mas também as imagens sonoras, olfativas, palativas etc. Damásio nos
fala que:
O conhecimento adquirido baseia-se em representações
dispositivas existentes tanto nos córtices de alto nível como ao
longo de muitos núcleos de massa cinzenta localizados abaixo
do nível do córtex. Algumas dessas representações
dispositivas contêm registros sobre o conhecimento imagético
que podemos evocar e que é utilizado para o movimento, o
raciocínio, o planejamento e criatividade; e outras contêm
registros de regras e de estratégias com as quais manipulamos
essas imagens. A aquisição de conhecimento novo é
conseguida pela modificação contínua dessas representações
dispositivas. (1996, p.133)
A partir desses pressupostos, acreditamos que os processos de
construção e apreensão do conhecimento – aprendizagem – acontecem a
partir do corpo e do movimento corporal. Quando limitamos nossos meios de
interação com o ambiente a apenas uma dimensão perceptiva, limitamos
também nosso modo de compreender o mundo. Por isso a nossa crítica da
utilização exagerada dos recursos tecnológicos e visuais e a organização do
processo pedagógico que nega o movimento corporal.
As preferências maiores pelos aparelhos eletrônicos não se limitam
apenas ao espaço escolar. Na contemporaneidade as pessoas adotam o uso
excessivo de aparelhos eletrônicos em suas vidas. Além de delimitar o
| 65
desenvolvimento dos nossos órgãos sensoriais/perceptivos esses aparelhos
exercem uma influência negativa na formação de nosso cérebro e
consequentemente de nossos pensamentos, segundo os estudos de Valdemar
Setzer (2001).
Dentre vários recursos tecnológicos, o autor fala sobre a televisão e as
influências do aparelho, principalmente nas crianças. Segundo Setzer (2001)
quando estamos na frente do televisor ficamos fisicamente inativos e, dos
nossos sentidos, somente a visão e a audição trabalham, e de maneira muito
precária. O autor explica que “[...] a falta de movimento dos olhos de uma
pessoa vendo televisão indicam um estado de desatenção, de sonolência, de
semi-hipnose” (p.18). Esse estado deixa nossos pensamentos praticamente
inativos o que nos impede de raciocinarmos conscientemente e de realizarmos
associações mentais. Outro fator negativo no aparelho está nas mudanças
constantes e rápidas das imagens, que é intencional, pois provoca “[...] a
excitação necessária dos sentimentos (recursos usados para impedir que o
telespectador passe do estado de sonolência para o de sono profundo) [...]”
(p.19).
A partir dessas explicações podemos levantar a hipótese de que a falta
de
concentração
das
crianças
nas
explicações
feitas
pelos
educadores/professores, seja gerada pela incapacidade do cérebro em pensar
por imagens criadas ou formadas. A criança, e até o adulto, que passa muito
tempo à frente da televisão acostuma-se a pensar por imagens prontas, dessa
forma é incapaz de manipular imagens mentais (pensar) para articular
conceitos e associações. Outro fator é a incapacidade de manter a atenção por
muito tempo. O cérebro está acostumado a mudar constantemente de
foco/visão.
Setzer, como crítico do uso dos meios eletrônicos na educação,
principalmente de crianças, argumenta que:
Na leitura, é preciso produzir uma intensa atividade interior:
num romance, imaginar a paisagem e os personagens; num
texto filosófico ou científico, associar constantemente os
conceitos descritos. A TV, pelo contrário, não exige nenhuma
atividade mental: as imagens chegam prontas, não há nada
para associar. Não há possibilidade de pensar sobre o que está
sendo transmitido, por que a velocidade das mudanças da
imagem, de som e de assunto impede que o telespectador se
| 66
concentre e acompanhe a transmissão conscientemente (2001,
p.19)
E adiante continua
[...] a educação deveria ter como uma das suas principais
metas desenvolver nas crianças e nos jovens a capacidade de
imaginar e de criar mentalmente. Mas a televisão faz
exatamente o contrário: o constante bombardeio de milhões de
imagens faz com que o telespectador perca a habilidade de
imaginar e criar. Isso é principalmente preocupante com
crianças e jovens, que estão desenvolvendo essas habilidades
(num adulto que as tenha, a perda parcial pode ser lamentável,
mas muito pior é nunca chegar a desenvolvê-las (2001, p.20).
Outro aparelho criticado por Setzer é o jogo eletrônico. Segundo Setzer
esse tipo de jogo exige do jogador velocidade de reação, ou seja, ações sem
pensar, automáticas. Nesse sentido, os jogos eletrônicos possuem a
capacidade de des – sensibilizar o jogador, fazendo com que ele se acostume
a ter reações automáticas, sem pensar nas consequências de seus atos.
Setzer nos explica que:
É interessante notar que reações automáticas são
características de animais e não de seres humanos adultos.
Em geral, o ser humano pensa antes de fazer algo,
examinando, por meio de representações mentais, as
consequências de seus atos. (SETZER, 2001, p. 23).
Em sua obra “Meios eletrônicos e educação: uma visão alternativa”
(2001), Valdemar Setzer realiza um estudo aprofundado sobre vários aparelhos
eletrônicos. O que nos interessa nesse momento é levantar hipóteses para
entender as dificuldades de aprendizagem dos alunos e a dificuldade que os
educadores têm de conduzir o processo de ensino. Essas pequenas
explanações de Setzer podem ser o fundamento básico para associarmos as
dificuldades de aprendizagem com os modos de vida e de ensino que na
atualidade são assumidos.
Se voltarmos à questão inicial, em que os arte-educadores que
trabalham debaixo da lona relatam que os pais dos educandos lhes agradecem
pela transformação do comportamento de seus filhos, principalmente sobre a
melhora no desempenho escolar, podemos acreditar com certa convicção que
os movimentos característicos das atividades circenses ajuda os educandos a
superar a inércia de raciocínio e de pensamento. Vejamos:
| 67
Em uma das visitas que realizei nas lonas observei alguns educandos
realizando a atividade de malabares com três claves. O arte-educador ia
constantemente orientando os alunos em relação aos erros que iam surgindo.
Notamos que os iniciantes tinham um semblante tenso, precisavam se
concentrar de modo que não deixassem cair às claves. Lembramos que se
trata de uma atividade muito complexa. Para realizar essa atividade o
educando necessita de uma coordenação motora bem desenvolvida, a todo o
momento duas claves estão no ar, é necessário que se preste atenção nas
claves e nas mãos. Um educando com mais habilidade era capaz de jogar as
três claves e se equilibrar em cima de um rola-rola6, outra educanda fazia uma
dinâmica, também com três claves, com o arte-educador em que apenas uma
das mãos era utilizada para lançar as claves ao alto e outra mão precisava
“roubar o chapéu” do companheiro.
Outro exemplo: nas várias lonas que visitei observei as (os) arteeducadoras (es) ensinando os movimentos das atividades aéreas (trapézio,
tecido, lira). A maior parte dos movimentos são ensinados com os educandos
nos aparelhos, primeiro eles sobem depois as educadoras vão passando a
informação para que eles executem. Os movimentos são sequenciais, quando
se realiza um movimento é necessário que se encaixe outro na sequência.
Poucas
vezes
vi
as
arte-educadoras
demonstrando
corporalmente
o
movimento, e poucas vezes esses movimentos foram simulados no solo.
Esses são dois exemplos, entre os vários, que poderíamos relatar que
mostram que as atividades circenses exigem que os educandos formulem
imagens mentais, que associem velocidade com força, equilíbrio com
flexibilidadee, principalmente, consciência corporal. O risco à integridade física
que algumas atividades possuem, exige dos educandos a capacidade de
pensar corretamente, que nesse caso, é pensar corporalmente.
Como já dissemos anteriormente, atividades corporais – esportes,
danças, expressões circenses – não podem ser vistos como válvulas de
escape para tensões, tampouco pouco ser justificada apenas pela importância
da saúde corporal. Essas atividades contribuem na formação dos educandos
6
Um cilindro onde os educandos se equilibram com uma pequena tábua semelhante à prancha
de skate.
| 68
no desenvolvimento de suas corporeidades, melhorando suas capacidades de
aprendizagem.
Na sequência do trabalho dissertaremos sobre as linguagens circenses,
evidenciando sobre a sua importância no processo educativo e para o
desenvolvimento dos sentidos e da sensibilidade a partir da arte e da
motricidade.
3 – Linguagens circenses: arte e motricidade
“A arte não estabelece verdades gerais, conceituais, nem
pretende discorrer sobre classes de eventos e fenômenos.
Antes, busca apresentar situações humanas particulares nas
quais esta ou aquela forma de estar no mundo surgem
simbolizadas e intensificadas perante nós”.
João Francisco Duarte Junior
“Vivemos seguramente, graças ao caráter superficial de nosso
intelecto, numa ilusão perpétua: necessitamos, portanto, para
viver da arte a cada instante. Nossa visão nos prende às
formas. Mas se somos nós próprios aqueles que educamos
essa visão, vemos também reinar em nós mesmos uma força
artistica. Vemos até mesmo na natureza mecanismos
contrários ao saber absoluto: o filósofo reconhece a linguagem
da natureza e diz: ‘temos necessidade da arte’ e ‘só
precisamos de uma parte do saber”.
Nietzsche
| 70
3.1 A experiência de criar pelo movimento
Em alguns anos de prática docente, como profissional de Educação
Física, sempre nos intrigou o porquê da necessidade do homem em se
movimentar. Percebemos que o movimento humano é mais do que um ato de
locomoção, com o intuito de se deslocar. O homem tem no movimento uma
forma de sentir prazer. Isso pode ser facilmente notado ao observarmos
quando crianças, mesmo sem se conhecerem, ao se encontrarem logo
arrumam alguma forma de brincar, de se movimentar. Alguém já viu duas
crianças sentadas, conversando sem se movimentar? As crianças, na maioria
das vezes se comunicam brincando.
O que dizer dos bailes da terceira idade que estão cada vez mais
frequentados? Achamos fascinante observar pessoas já passando dos 50 anos
buscando na dança uma forma de se sentirem mais jovens. E os atletas de
finais de semana, nos parques, nas quadras, nas piscinas. Médicos dizem que
não é aconselhável fazer atividade física apenas nos finais de semana, pois
pode ser um risco à saúde. Se nos perguntassem sobre a questão, eu diria que
o importante não é viver saudável e sim morrer feliz.
O que podemos notar é que uma pequena parte da população,
principalmente urbana, vem encontrando outras formas de prazer que
substituem o prazer pelo movimento. Uma hipótese, possível, para explicar
esse comportamento pode estar relacionada ao crescimento das possibilidades
tecnológicas que facilitam os afazeres diários. Se antes o homem caminhava
para se deslocar ao trabalho, hoje vai de carro, se antes andava de bicicleta,
hoje anda de moto, se antes saia para conversar com os amigos, hoje isso é
possível com a utilização da internet. Outro fator que não podemos
desconsiderar são as poucas oportunidades que os espaços urbanos propiciam
para as práticas de atividade física e de lazer. As brincadeiras de rua estão em
extinção. Nas escolas onde lecionamos – aulas de Educação Física – temos
que ensinar as regras de brincadeiras como: mãe da rua, taco, rebatida, quatro
cantos etc. As crianças vivem cada vez mais trancadas em suas casas e
apartamentos, algumas vendo televisão, outras brincando com jogos
| 71
eletrônicos ou em computadores, atividades que inibem as suas capacidades
criativas.
Assmann (1998; 1999) baseado nas teorias das ciências cognitivas –
principalmente nos estudos dos cientistas Humberto Maturana e Francisco
Varela (2001) – nos lembra que não há diferença entre processos cognitivos e
processos vitais, ou seja, “[...] todo sistema vivo precisa necessariamente estar
conhecendo ativamente o seu entorno para poder continuar vivo e agir” (1998,
p.38, grifo nosso). Isso significa que para conhecer precisamos estar
interagindo corporalmente com o ambiente/entorno. O corpo é, nesse
processo, o interlocutor entre o sujeito e o ambiente/entorno, e a motricidade
sua principal linguagem. Segundo as teorias das ciências cognitivas é por meio
do movimento que o pensamento vai sendo construído.
Merleau Ponty (1999) fala sobre o “mundo dos pensamentos”, onde as
operações cognitivas, que vivenciamos a todo o momento, devido às relações
e experiências, vão se sedimentando, tornando conceitos de que lançamos
mão no momento em que nos deparamos com o desconhecido. No entanto, as
aquisições originadas das operações cognitivas não podem ser consideradas
aquisições absolutas, ou seja, a cada nova experiência vamos ressignificando
os nossos conceitos, formulando outros que nos subsidiarão em novas leituras.
Para Merleau Ponty:
[...] cada frase que dizem diante de mim faz então germinar
questões, idéias e reorganiza o panorama mental e se
apresenta como uma fisionomia precisa. Assim, o adquirido só
está verdadeiramente adquirido se é retomado em um novo
movimento de pensamento, e um pensamento só está situado
se ele mesmo assume sua situação (1999, p. 183)
Na experiência que temos na Educação Física escolar, principalmente
com crianças nas idades entre 5 a 10 anos, é muito comum ao entrarmos nas
salas de aula, para buscar as turmas, ver as crianças sentadas nas cadeiras,
ameaçadas de não participar da aula de Educação Física se não ficarem
quietas. A proibição na participação nas aulas de Educação Física é um meio
que os professores lançam mão para manter a ordem. Conhecendo as crianças
dessa idade, nós, até certo ponto, respeitamos essa estratégia. Mas, como são
pelos movimentos que as crianças se relacionam com os outros e com o
| 72
mundo/entorno, qual a possibilidade de haver o desenvolvimento cognitivo se
os corpos estão inertes? É fato que algumas crianças querem se movimentar
até demais, chegando a atrapalhar as aulas, mas devemos reconhecer que
elas estão aprendendo.
A relação com o entorno é feita de provocações e desafios. No entorno
existe a necessidade de sobreviver, de se adaptar a ele, de superar as
dificuldades que ele impõe. Viver corporalmente o entorno/ambiente significa
conhecê-lo, estabelecendo relações significativas, criando possibilidades de
superar seus desafios. Os estudiosos das ciências cognitivas chamam esse
processo de adaptação do organismo vivo de autopoiesis que pode ser
entendido como auto fazer-se ou auto criar-se. Segundo Assmann, “[...] a
motricidade humana consiste em processos de aprendizagem corporal em
interação com o meio circundante, e as biociências nos mostram que isso
acontece sob a forma de processos autopoieticos [...]” (1998, p. 46).
Como já discorremos anteriormente, o homem é um sujeito autônomo e
heterônomo (NOVASKI, 1984; REZENDE, 1978), que se humaniza por meio de
suas relações com os outros e com o mundo – EU-TU (eu - você) e EU-ISSO
(eu - experiência) – conforme Buber (2003). Isso significa que existem
conhecimentos de que nos apropriamos a partir das relações que
estabelecemos com o mundo – subjetivos –, e conhecimentos formulados por
meio de sínteses que se originam das relações com os outros - intersubjetivas.
O homem no instinto de sobrevivência viu a necessidade em se unir a
outros homens, criando comunitariamente formas de sobreviver, aprendendo a
transformar os recursos disponíveis na natureza em utensílios para lhes facilitar
a vida. Esses conhecimentos foram sendo compartilhados, ressignificados e
reconstruídos pelos membros das comunidades, em suas relações sociais
(BRANDÃO, 2007).
Entretanto, o homem não se conteve em apenas sobreviver. Na verdade
ele sempre teve, e sempre vai ter a necessidade de superar-se, de ir além de
seus limites, de adquirir habilidades especiais e de expressá-las de várias
formas.
| 73
Neste trabalho, vamos entender como arte toda forma de materialização
e expressão da sensibilidade e criatividade humana. Bosi (2004) entende que a
arte é um fenômeno que passa por três dimensões: o conhecer, que se refere à
capacidade imaginativa do homem em formular idéias que modificarão o (seu)
mundo; o fazer, ou operar construtivamente sobre os recursos naturais e
culturais; e o exprimir, ou materializar sua criação. Segundo Bosi, “a arte é uma
produção; logo supõe trabalho. Movimento que arranca o ser do não ser, a
forma do amorfo, o ato da potencia, o cosmos do caos” (2004, p. 13).
Antônio (2010) nos lembra que a todo o momento estamos realizando
uma criação, seja ela intelectual, sensitiva ou imaginativa, e que nossas
criações devem ser consideradas. Geralmente temos a concepção de que
fazer arte é privilégio de uma minoria abastada intelectualmente, ou seja, por
pessoas com dons especiais. Antônio discorda, dizendo que todo homem é um
sujeito e esse sujeito é um autor
[...] de idéias, de textos, de diálogos, de ações, de vida, ainda
que precariamente, ainda que cercado de muitas misérias e
opressões. Precisa reconhecer-se como sujeito e como autor.
Precisa ser assim reconhecido. Esse reconhecimento é
fundamental para a experiência de reconhecimento e de
educação, assim como para mudar a vida, para transformar o
mundo (2010, p.111).
O que nos parece é que conhecer o entorno para continuar vivendo –
como defendem os pesquisadores das ciências cognitivas – não é o suficiente.
É preciso manifestar o que já se tornou conhecido. O ser humano já não se
contenta apenas em saber, ele quer também expressar, e a expressão do
saber acontece corporalmente. Com base em Merleau Ponty (1999), podemos
partir do principio de que toda manifestação expressiva acontece por meio do
corpo. Segundo Merleau Ponty (1999), é por meio das percepções que temos
do mundo e das relações sensíveis que estabelecemos e que permitem que os
nossos pensamentos vão se formando e respondemos a essa relação de forma
expressiva, ou seja, o movimento é uma forma de expressão do nosso
pensamento e, por isso, tem em si uma grande dose de subjetividade.
Voltando ao proposto pelo trabalho, quando dizemos que as linguagens
circenses são caracterizadas por um misto de motricidade e arte, estamos
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sugerindo que são atividades corporais que possibilitam a expressão da
criatividade humana com uma estética diferenciada. É comum observarmos um
artista circense realizar uma releitura de uma modalidade – malabares,
acrobacias, mágicas – e nessa releitura ele atribui um sentido próprio ao seu
movimento.
Para Carmo Junior, “[...] ditar as coisas com o corpo é afirmar que a
motricidade nele nasce como força de expressão” (2005, p. 14). O mais
interessante é que, quando estamos debaixo da lona, sabemos que existem
“atalhos” que precisamos seguir para realizar algum movimento, mas, quando
esses movimentos nos são interiorizados, podemos sugerir nossos próprios
sentidos aos movimentos através de gestos motores que se tornam uma fala
corporal. As linguagens circenses tornam-se uma fala criativa, dotadas de
sentidos, com altas doses de subjetividade.
O gesto falante é o movimento que não se repete, mas que se
refaz, e refeito diz cem vezes, tem sempre o sabor e a
dimensão de ser inventado, feito pela primeira vez. A repetição
criativa não cansa, não esgota o gesto, pois não é repetição,
mas criação. Assim ele é sempre movimento novo, diferente,
original. Ele é arte (SANTIN, 1987, p.26).
As linguagens circenses, como conteúdos a serem contemplados como
propostas educativas para o desenvolvimento dos sentidos e da sensibilidade
tornam-se, dessa maneira, uma fonte riquíssimapara o desenvolvimento da
criatividade humana a partir de sua corporeidade, pois exigem que o educando
lance mão de recursos adquiridos no contato com os outros e com as
experiências para ressignificar e dar sentido próprio ao mundo, criando formas
originais e subjetivas de expressão.
Até o momento, dissertamos sobre a importância de proporcionar, aos
educandos, uma educação humana, na qual o educando é capaz de atribuir
sentido próprio ao mundo por meio de um processo de leitura contextualizada,
dando significado e ressignificando o já conhecido. Para isso se faz necessário
que estabeleça relação com o mundo e com os outros. Dissertamos, também,
sobre a comunidade circense como uma comunidade educativa. No próximo
capítulo dissertaremos sobre o caminho que iremos percorrer para chegarmos
a esse entendimento. Para tal, adotaremos a observação participante como
| 75
referência inicial, entendendo ser esse um bom caminho para colhermos
informações significativas e interpretá-las, na busca de um entendimento sobre
os sujeitos a serem pesquisados.
3.2 As experiências vivenciadas debaixo da lona
Quando falamos em linguagens circenses estamos nos referindo a um
grande número de modalidades e manifestações, dente elas: malabares,
mágica,
ginástica
acrobática,
atividades
acrobáticas
aéreas,
palhaços,
equilibrismo. No entanto, especificamente debaixo da lona – do Instituto
Brinquedo Vivo – algumas modalidades são praticadas com maior frequência.
Para melhor situar o leitor nesse trabalho, realizaremos uma pequena
exposição, por meio de fotos, que adquirimos em nossas visitas nos pólos.
3.2.1 Ginástica acrobática
Também conhecida como ginástica de solo, caracteriza-se por um
conjunto de movimentos acrobáticos – rodantes, flic-flac, estrelas sem apoio das
mãos, saltos mortais etc – e semi-acrobáticos – estrelas, reversões, rolamentos,
paradas de mãos etc. Esses movimentos são intercalados com exercícios de
apoio e suspensão entre pares: pirâmides ou figuras. A idéia é a de que os
parceiros – duplas, trios, quartetos ou grupos maiores – realizem uma evolução
dinâmica que envolva movimentos coreográficos, intercalados com os
movimentos da ginástica, sempre com apoio e auxílio entre parceiros.
| 76
Figura 1- Pirâmides em grupos maiores.
Foto: Acervo do pesquisador
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Figura 2 – Exercício estático em duplas.
Foto: Acervo do pesquisador
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3.2.2 Tecido acrobático
O tecido acrobático é uma das modalidades aéreas do circo. Consiste em
um tecido suspenso – em duas partes – em que os praticantes se penduram e
desenvolvem movimentos corporais – enrolar-se,
se, realizam chaves de pé,
quedas – formando posições/ figuras. Essa modalidade exige do praticante um
domínio corporal considerável, além de muita resistência
resistência física. A figura a seguir
demonstra alguns exercícios que podem ser realizados tecido.
Figura 3 – Figuras no tecido.
Fotos das alunas do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo. Acervo do
pesquisador
| 79
3.3.3 Lira
A lira é um aparelho, em forma de arco, que fica suspenso por um cabo
de aço em que o educando pendura-se
pendura se e realiza movimentos corporais –
figuras, contorções. As capacidades motoras mais importantes para a realização
dessa modalidade são: força muscular e flexibilidade.
Figura 4 – Lira circense.
Foto: acervo do pesquisador
| 80
3.3.4 Trapézio
É uma barra de ferro suspensa por duas cordas, neste aparelho são
realizadas figuras e quedas e o trapézio permanece sem balanço.
Figura 5 – Trapézio fixo.
Foto: acervo do pesquisador
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3.3.5 Malabares
Os malabares são aparelhos que devem ser manipulados sem que se perca o
seu controle. Exige dos educandos uma grande capacidade de organização corporal
que acontece por meio da coordenação óculo-manual – olhos/mãos.
Figura 6 – Malabares (claves)
Foto: acervo do pesquisado
4 – Os caminhos da pesquisa
“Aprender com a experiência dos outros é menos penoso do
que aprender com a própria”
José Saramago
“O progresso do saber não constitui em esquecer o que nos dizem
os sentidos ingenuamente consultados, e que não tem lugar
num quadro verdadeiro do mundo, a não ser como
particularidade de nossa organização humana [...]
Merleau Ponty
“Saber com o outro significa que a pesquisa científica não deve
ser pensada e colocada em prática como um momento único
ou isolado, em nome e a serviço de qualquer interesse de
adquirir poder por meio da ciência”.
Carlos Rodrigues Brandão
“O conhecimento é algo sempre por fazer, refazer, criticar e
transformar. A linguagem é um dos principais instrumentos
para construção, comunicação, critica e transformação do
conhecimento”.
Otto Maduro
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4.1 Delineando um caminho
Na nossa prática docente – que se iniciou por meio de estágios –
sempre percebemos um distanciamento significativo do que vivenciávamos na
formação universitária e nas literaturas que tinha à disposição, com a realidade
que encontrava nas comunidades onde praticávamos intervenções educativas.
Essa situação fez com que nós formulássemos alguns dilemas que há muito
tempo nos perseguiu. Alguns deles foram passíveis de superação, outros até
hoje estão mal resolvidos. O principal deles está relacionado aos discursos.
Muitos autores dissertavam e dissertam sobre educação propondo soluções
simplistas aos problemas do cotidiano educacional. Pelos enunciados, a
impressão
que
passam
é
a
de
que
apenas
conhecem
crianças/alunos/educandos por fotos, ou leituras científicas. Então, como
alguém pode dissertar sobre educação se nunca estabeleceu relação próxima
com os educandos? Qual é a contribuição desses autores nos problemas
educacionais além de formular pressuposições? Seguindo as ideias de
Brandão (2003): são educadores que pesquisam? Ou pesquisadores que
eventualmente educam? Educam quem?
O que, infelizmente, acontece na sociedade contemporânea, é a hiper
valorização dos “educadores de biblioteca”, ou seja, aqueles que recebem
financiamento, por meio de bolsa pesquisa, de instituições governamentais
para formular “hipóteses” que servirão para orientar os “ignorantes”
trabalhadores da educação. Bom educador, na atualidade, é aquele que torna
publico livros ou artigos em revistas científicas. Ainda persiste a ideia de
“autoridades”, ou pessoas com conhecimentos validados por certificações e
reconhecidos pela comunidade cientifica. Já, aqueles educadores que todos os
dias travam uma batalha real com as dificuldades do cotidiano educacional, na
maioria das vezes recebendo baixos salários e com recursos materiais e
espaciais precários, esses têm pouco valor, e seus discursos e vozes não têm
credibilidade.
No íntimo, sempre percebemos essa injustiça, principalmente por
pertencermos a esse grupo de desacreditados da educação, cujas vozes
eram – e são – oprimidas pelos “donos da verdade científica”.
| 84
Ao ter contato com as obras de Michel Foucault (2010), Otto Maduro
(1994) e Santos (2007), percebemos que toda teoria pronunciada em forma de
discurso é uma forma de apropriação de poder. Foucault (2010) nos fala sobre
interdição. Em uma sociedade como a nossa não temos o direito de dizer tudo
o que pensamos, pois como o discurso é uma forma de apropriação do poder,
haverá sempre a disputa que se reflete na tentativa de calar as vozes dos
outros. Para Foucault, “[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta o poder
do qual nós queremos apoderar (2010, p. 10)”. Na mesma linha de Foucault, e
realizando uma crítica à idéia de que apenas os “intelectuais” são capazes de
produzir conhecimentos, Otto Maduro nos fala que:
[...] um dos problemas do conhecimento humano é que, com
demasiada frequência, desprezamos nossa própria capacidade
– e a de outras pessoas e comunidades – de participar ativa e
criativamente nas atividades intelectuais, isto é, nas tarefas de
construção crítica e transformação do conhecimento.
Habitualmente, pensamos que são apenas os peritos,
cientistas,
intelectuais,
e
outros
profissionais
que
verdadeiramente conhecem ou que são, pelo menos, aqueles
que sabem o que na verdade é mais importante (1994, p.104).
Temos o péssimo hábito de recorrer apenas a discursos de especialistas
para validar alguma decisão ou pensamento, mas será que existem
especialistas na arte de viver? Devemos acreditar em algo ou alguém apenas
por serem reconhecidos pela comunidade científica?
O que percebemos na nossa “andarilhagem” pela vida é que algumas
pessoas sem títulos ou status acadêmicos eram – e algumas ainda são –
dotadas de uma sabedoria ímpar e muito tinham – e ainda tem – a acrescentar
na vida dos outros, eram – e são – educadores auto-formados.
Mais uma vez, deixamos claro que em nenhum momento estamos
desqualificando o conhecimento metodicamente construído pelas ciências e
pelos cientistas. O que estamos tentando dizer é que devemos tomar cuidado
com a ideia deconhecimento válido ou refutável, verdadeiro ou falso, e que a
sua construção ou validação não é tarefa restrita a especialistas. Em uma
conversa, informal, com um dos coordenadores do Instituto Sócio Cultural
| 85
Brinquedo Vivo, o sociólogo Eduardo Ullian7, lhe perguntamos qual seria a sua
definição de conhecimento, e sua resposta podemos resumir em uma pequena
frase, mas que vai ao encontro do que também acreditamos ser. Segundo o
sociólogo, “toda ação humana transformadora e criadora é uma forma de
conhecimento”, ou seja, todo ser humano, a todo o momento, produz
conhecimento.
Constantemente nos vemos em situações difíceis, que nos causam
sofrimentos e inquietações, e buscar a superação desses momentos se torna
um desafio. Quando, de alguma forma, encontramos possibilidade de
superação desses desafios, estamos então construindo conhecimento e, esse
conhecimento pode ajudar outras pessoas a superá-lo também (MADURO,
1994). Sobre essa questão Severino Antônio nos fala que “os saberes são fruto
do trabalho coletivo, direta e indiretamente, e não apenas dos nomes
conhecidos. Representam possibilidades, de melhorar a vida, diminuir o
sofrimento, alargar a consciência e os campos de possíveis (2010, p.30)”.
Devemos reconhecer que somos seres com necessidades e também
seres com desejos e, na busca de suprir nossas necessidades e desejos,
criamos formas diferenciadas de ação/superação.
Não conhecemos tudo – e isso é óbvio – e por meio das relações
aprendemos coisas novas todos os dias. Brandão nos fala que “[...] de várias
maneiras estamos sempre vivendo experiências de criação, de buscar
respostas às nossas perguntas (2003, p. 73)”. Então, nesse trabalho
intencionamos agir como pesquisadores que se lançam no mundo para
compreender
a
sua
própria
prática.
Consideramo-nos
educadores-
pesquisadores, e só o fato de pesquisar significa que não sabemos e
precisamos aprender. Acreditamos que muito temos a aprender com os
educadores do instituto a ser pesquisado. Por outro lado, a experiência que
adquirimos pesquisando e trabalhando pode ser compartilhada, acrescentando
algo nas práticas educativas desses educadores.
7
O sociólogo Eduardo Ullian é coordenador de projetos do Instituto Sócio Cultural Brinquedo
Vivo.
| 86
A partir desses pressupostos propomos realizar esse trabalho,
acreditando haver muito conhecimento disponível nas ações dos educadores
do Instituto, mas que precisa de alguma maneira ser refletida, compreendida,
sistematizada, fundamentada para ser transformada em práxis educativas.
Para tal, acreditamos ser necessário estabelecer uma inter-relação entre
pressupostos das ciências da educação e da prática empírica desses
educadores.
Para tanto, lançaremos mão da pesquisa qualitativa, que pode ser
definida como o estudo das experiências humanas. Chizzotti esclarece que os
pesquisadores que adotam essa abordagem se dedicam
[...] à análise dos significados que os indivíduos dão às suas
ações, no meio ecológico em que constroem suas vidas e suas
relações, a compreensão do sentido dos atos e das decisões
dos atores sociais ou, então, dos vínculos indissociáveis
dasações particulares com o contexto social em que estas se
dão (1998, p. 79).
Como esse trabalho tem um viés social e educativo, em que visa buscar
o sentido e significado das práticas educativas realizadas pelos educadores
debaixo da lona, acreditamos – nós e nosso orientador - não ser suficiente
entender os discursos e ações de maneira distante e supostamente “neutra”,
mas que é importante a participação ativa no cotidiano desses educadores.
Com base em Groppo e Martins (2003), entendemos que para
realizarmos essa intenção, a observação participante seja a mais adequada.
Os autores nos explicam que “na observação participante há um contato direto
do pesquisador com o fenômeno observado, recolhendo as ações dos atores
no seu contexto natural, muitas vezes com base nos pontos de vista dos
atores” (2003, p. 49).
Nessa perspectiva, a pesquisa foi realizada em duas fases:
I – Entrevistas: em um primeiro momento a nossa preocupação foi a de
conhecer os arte-educadores do Instituto. Nesse momento abrimos espaços
para que as vozes dos arte-educadores sejam pronunciadas. Segundo Groppo
e Martins (2003, p.51), “a entrevista pode ser descrita como um diálogo que o
pesquisador estabelece com uma ou mais pessoas que guardam informações
| 87
sobre o tema e problema da pesquisa”. Esse instrumento foi escolhido por
proporcionar uma relação mais próxima entre os sujeitos da pesquisa –
entrevistador/entrevistado, pesquisador/educador –, e também por possibilitar
maior espontaneidade aos discursos. Em um segundo momento será realizado
uma observação participante, na qual o educador/pesquisador passará a
conviver com os outros sujeitos da pesquisa – os arte-educadores –,
registrando suas ações, as dinâmicas e estratégias que adotam como se
articulam; conversando sobre os porquês, os objetivos, as intencionalidades, as
dificuldades etc.
II – análise e interpretação dos dados: Essa fase também será realizada
em dois momentos: em um primeiro momento faremos a descrição e análise
dos discursos dos arte-educadores, adotando uma atitude fenomenológica.
Para Masini“[...] este enfoque de pesquisa caracteriza-se pela ênfase ao
‘mundo da vida cotidiana’, pelo retorno àquilo que ficou esquecido, encoberto
pela familiaridade” (1994, p. 61). Rezende explica que essa atitude –
fenomenológica – “[...] contribui didaticamente para um tratamento adequado
da experiência, isto é, para a manifestação do sentido da existência humana
(1978, p.179)”. Em um segundo momento, a intenção era de sereunir com os
sujeitos participantes e realizar uma exposição dos dados coletados, bem como
das análises realizadas. Nesse momento seriam expostos os discursos,
cruzando-os com os registros das observações anotadas, evidenciando todos
os aspectos observados subjetivamente pelo pesquisador.
Entendíamos que esse seria um momento enriquecedor da pesquisa,
pois pretendia discutir com os educadores sobre as suas práticas, pois é no
encontro das subjetividades que se constrói o conhecimento. Voltamos
novamente à premissa de que todos nós, a todo o momento, construímos
conhecimento, e que “[...] somos confiáveis e podemos acreditar em nossas
mentes racionais e aprendentes, e também no todo consciente pensante de
nós mesmos, por que sentimos e pensamos, imaginamos e devaneamos,
saltando fronteiras, desconfiamos dos saberes consagrados [...], dialogamos e
transgredimos” (BRANDÃO, 2010, p.61). Infelizmente esse momento de
encontro e dialogo não foi possível, por motivos que explicaremos mais
adiante. Entretanto, o que realizamos nos foi suficientemente satisfatório.
| 88
Para início de trabalho entendemos ser importante abrirmos espaço para
ouvir as vozes dos arte-educadoresdo Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo,
precisamos conhecer melhor essa instituição, e acreditamos que além de
considerar os documentos que legitimam a instituição; sua historicidade e suas
intencionalidades é muito importante darmos vozes aos idealizadores da
formação do mesmo, assim comoaos educadores. Nesse sentido, procuramos
o principal idealizador da instituição e realizamos uma entrevista na intenção de
conhecer melhor essa instituição.
A seguir apresentaremos de forma um pouco mais detalhada a
instituição que será pesquisada, dialogando com as pessoas que vivenciam
seu trabalho no dia a dia, considerando ser importante ouvir de suas próprias
vozes sobre o trabalho que desenvolvem e suas perspectivas em torno de suas
ações.
4.2 - Apresentando o Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo
O Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo8 é uma instituição do terceiro
setor (ONG), que se propõe a promover ações educativas por meio da arte em
diversas regiões da cidade de São Paulo. A instituição mantém convênio com
alguns parceiros da iniciativa privada, mas principalmente com o setor público.
Com vários projetos em andamento – o circo-escola, as brinquedotecas,
as oficinas de confecções de brinquedos, recreação em parques públicos
ounas ruas de lazer – a instituição prioriza a educação pelo brincar. Defende a
idéia de que, por meio dos jogos e das brincadeiras seja possível desenvolver
habilidades artísticas, corporais e sociais, que favorecerão no processo de
formação de crianças e adolescentes.
Nesse momento acreditamos ser relevante a apresentação da Instituição
de que estamos realizando a pesquisa. Para tal pensamos em contar a história
do seu surgimento a partir da voz do seu principal idealizador. Senhor Roberto
Avritchir, é um medico cardiologista que tem uma relação estreita com as
linguagens artísticas e culturais. Em entrevista concedida a nós – em seu
consultório –, ele nos contou um pouco da sua vida e suas relações com a arte
e a educação, bem como os seus planos para o futuro. Essa entrevista nos
8
WWW.brinquedovivo.org.br
| 89
abriu um panorama para que pudéssemos compreender um pouco melhor as
intencionalidades do instituto.
Para a realização dessa entrevista optamos pelo método não diretivo,
que consiste em uma entrevista semi-estruturada, mas aberta a novas
possibilidades. Acreditamos que esse método de entrevista melhor contribuiria
para o nosso objetivo que é buscar a autenticidade do entrevistado a partir de
um discurso livre (MARTINS; GROPPO, 2007).
Chizotti nos esclarece que:
[...] o informante é competente para exprimir-se com clareza
sobre questões da sua experiência e comunicar
representações e análises suas, prestar informações
fidedignas, manifestar em seus atos o significado que tem no
contexto em que eles se realizam, revelando tanto a
singularidade quanto a historicidade dos atos, concepções e
ideias (1998, p. 92)
Avritchir nos conta que desde garoto, sempre foi um apaixonado pela
magia do circo, por brinquedos, e coleções. Paixão que até hoje o ajuda a
manter o espírito de criança.
“Há uns oito anos atrás eu fui fazer uma avaliação e percebi que tinha mais de
cinco mil peças no meu acervo, do brincar, do lúdico. Não brinquedos só, mas
peças que mostravam a alma do artista, como brincadeira, dessas pessoas que
a gente vê que são sonhadores, que é um perfil do artista e do artesão”.
Em suas relações sociais, Avritchir nos contou que conheceu pessoas
que, de forma direta ou indireta, tinha e tem relação com a arte, com a criação
de brinquedos e esculturas.
“[...] além de colecionar, na verdade eu gostava muito de conversar com
pessoas que faziam essas peças (se referindo aos brinquedos artesanais,
esculturas, quadros, etc) [...] e eu percebi que eram pessoas com a alma de
criança”.
A ideia principal, na voz de Avritchir, ao fundar a instituição, não era
apenas proporcionar a vivência de brincadeiras, mas principalmente valorizar
as brincadeiras espontâneas e criativas via construção de materiais para
brincar, por isso entendemos a valorização dos artistas e dos artesões.
“A profissão da criança é brincar. O brinquedo não faz a menor diferença, mas
o brincar sim. [...] algumas vezes as crianças com um pedaço de giz, riscam
um amarelinho no chão e vão brincar, e naquela brincadeira aprendem as
| 90
regras do jogo e o respeito às regras, isso vai fazer uma sociedade e um
mundo melhor”.
Podemos notar, no discurso exposto anteriormente, que o instituto surgiu
com a intenção de prezar pela educação por meio das linguagens lúdicas, seus
projetos são todos voltados a ludo-educação, ou seja, práticas educativas a
partir das brincadeiras. Roberto Avritchir nos fala sobre suas concepções em
relação à importância de brincar na formação da criança:
“a gente fala que brincar é coisa séria! [...] a criança que brinca vai ser um
adulto melhor [...]”
Para que o nascimento do instituto fosse possível foi preciso que
houvesse a união de força com outras pessoas próximas ao Sr. Roberto
“[...] tinha uma pessoa aqui na clínica, que é o senhor Mesake, eu conversei
com ele e contei o meu sonho, e nasceu a ideia de fazer uma ONG. Então, na
verdade, o instituto é uma ONG, uma instituição de bairros [...] ela tem
participado de processos junto ao estado [...] em projetos de circo,
brinquedotecas, brincadeiras de ruas [...]”
Ao nos falar sobre a sua participação no andamento da instituição o
Avritchir esclarece que a sua participação/colaboração é limitada, segundo ele
seu papel na instituição é colaborar indiretamente para o bom andamento dos
projetos
“[...] todo projeto tem os sonhadores e as pessoas que fazem acontecer, no
caso sou o sonhador, eu acho que a minha missão no projeto é ajudar as
pessoas”.
Inicialmente, o instituto foi formado na intenção de resgatar as
brincadeiras populares e a confecção artesanal de brinquedos. Com o tempo
outras linguagens foram sendo incorporadas aos seus projetos, e o circo é um
dos casos.
Roberto Avritchir nos relata que um dos seus sonhos é de que o instituto
tenha uma sede própria em que ofereça a vivencia de brincadeiras populares e
artesanais. Hoje, o Instituto conta com um escritório que fica responsável pelas
questões administrativas.
| 91
Outro sonho é o de que a proposta do Instituto Sócio Cultural Brinquedo
Vivo possa ser desenvolvida por outros países, formando uma rede de trocas
de experiências.
“[...] gostaria muito que o instituto tivesse seus irmãos em outros países e
assim possibilitasse a todos a oportunidade de brincar. Quem brinca é mais
feliz. Só construiremos um mundo melhor quando percebermos a importância
do lúdico na vida das pessoas”.
Ao final da entrevista, abrimos espaço para que o Avritchir falasse sobre
o que quisesse respondendo a pergunta que não fizemos.
Roberto Avritchirnos disse que achou que todas as perguntas foram
importantes para falar sobre o trabalho e agradeceu a nossa iniciativa por
realizar esse trabalho.
“[...] gostaria de parabenizar você e seu orientador por essa iniciativa. Vocês
estão mostrando que é possível aproximar a teoria com a prática”.
4.3 – Aprender com o outro: aproximando os conhecimentos
Até esse momento do trabalho de pesquisa, procuramos deixar claro
que a nossa intencionalidade, como educador/pesquisador, é a de investigar o
que acontece debaixo de uma lona de circo, entendendo esse espaço como
uma
comunidade
educativa,
sendo
os
arte-educadores
os
principais
protagonistas e sujeitos chaves da pesquisa.
Quando decidimos realizar essa investigação já tínhamos a consciência
de que não seria um trabalho fácil. Afinal estaríamos “invadindo” um espaço
que é compartilhado por um público específico, com saberes próprios, com
concepções próprias sobre os trabalhos educativos e sobre o corpo.
Para nós, o maior desafio nessa pesquisa é o de aproximar os
conhecimentos empíricos dos educadores circenses com o saber sistematizado
das ciências da educação. Desafio, porque ainda entendemos que as disputas
pelo poder material ou simbólico acontecem a partir da formação dos
discursos. Por vezes, as ciências de modo geral, e as ciências da educação de
modo específico, reivindicam para si a idéia de “conhecimento válido” ou
“conhecimento pertinente”. Por outro lado, supomos que os educadores
| 92
circenses não abrem mão de um conhecimento construído a partir das
experiências no seio das suas famílias que foi transmitido as várias gerações.
Pensamos que a disputa pela legitimação do conhecimento seja um mal
para ambos, pois restringe o saber das duas partes, limitando seus
entendimentos sobre a educação e suas práticas educativas.
Concordamos com Boaventura de Souza Santos quando ele nos fala
que “[...] não há conhecimento geral; tampouco há ignorância geral. Somos
ignorantes de certo conhecimento, mas não de todos” (2007, p.52). Segundo o
autor, podemos considerar a existência de dois tipos de conhecimentos: o
conhecimento de regulação, que vai de um ponto A – ignorância/caos – a um
ponto B – saber/ordem, e o conhecimento de emancipação que vai de um
ponto A – colonialismo ou objetivação do outro – a um ponto B – conhecimento
solidário, ou construído com o outro.
O problema é que temos o hábito de valorizar o “conhecimento validado
pela ciência”; dessa forma, a ordem para o caos depende do saber
eminentemente sistematizado pela ciência, mesmo que para isso o
conhecimento empírico/subjetivo, originado das experiências subjetivas, seja
desconsiderado. Nesse sentido, aceitamos viver segundo as “recomendações
científicas”, ou seja, colonizados por um do modo de vida, desconsiderando
plenamente a possibilidade de construção de conhecimento com o outro a
partir das experiências, o conhecimento solidário.
Em outro extremo, os empiristas acreditam que o conhecimento
construído a partir das experiências práticas do dia a dia sejam o suficiente
para compreender a realidade. Otto Maduro nos fala que “nosso modo real de
viver molda nossa maneira de ver a realidade, levando-nos usualmente a
acreditar que as coisas são, sem duvida, como as vemos e que outras
maneiras de vê-las são, é claro, falsas” (1994, p. 21. grifos do autor).
O que mais uma vez pretendemos fazer é trazer a reflexão, a partir das
explanações anteriores, que não podemos desconsiderar os conhecimentos
sistematizados pelas ciências nem tampouco o conhecimento construído a
partir das experiências com os outros e com o mundo. Precisamos, sim,
estabelecer um diálogo entre as duas formas de conhecimento de maneira que
| 93
nos facilite a compreensão do mundo e nos possibilite a formular ações
contextualizadas das ações educativas. Nesse desafio recorremos às
orientações de Boaventura de Souza Santos (2007) que propõe a formação de
uma ecologia de saberes em que os conhecimentos empíricos e científicos
dialogam entre si para a compreensão de um fenômeno. Nessa concepção “[...]
a ignorância não é necessariamente um ponto de partida, pode ser um ponto
de chegada” (2007, p. 54). Nesse sentido, para aprendermos algo diferente não
precisamos desaprender o que já conhecemos. Nas próprias palavras do
sociólogo:
[...] a utopia de uma ecologia de saberes é que possamos
aprender outros conhecimentos sem esquecer nossos próprios
conhecimentos. Mas nosso ensino nas universidades, nossa
maneira de criar teoria, reprime totalmente o conhecimento
próprio, o deslegitima, o desacredita, o inviabiliza. (SANTOS,
2007, p. 54).
O desafio dessa pesquisa é o de aproximar as duas diferentes formas de
conhecer. Buscando as contribuições das experiências empíricas dos
educadores circenses para as ciências da educação, bem como utilizando os
conhecimentos sistematizados das ciências para compreender o fenômeno das
comunidades educativas circenses.
Para nós, não há outro caminho senão a convivência com esses arteeducadores. É preciso ouvir suas vozes, considerar suas subjetividades,
entender o que fazem e por que fazem.
4.4 - O trabalho de campo
Para a realização dessa pesquisa buscamos uma maneira de conviver
com os arte-educadores sem atrapalhar o trabalho deles e da instituição. O
Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo realiza o trabalho de oficina de artes
circenses em parceria com a Secretaria Municipal de Esportes da cidade de
São Paulo. São montadas lonas de circo em alguns clubes recreativos
municipais nas diversas regiões da cidade.
Ficou combinado com a instituição que as visitas consistiriam em
observações participantes que em nada interfeririam no desenvolvimento das
aulas. Também ficou combinado que a entrevista seria realizada mediante a
concordância dos entrevistados, ou seja, o arte-educador não era obrigado a
| 94
participar das entrevistas. Aceito os termos do acordo partimos para a visita
nos pólos. Apesar de a instituição realizar trabalhos educativos, por meio das
linguagens circenses, em diversos pólos nas diferentes regiões da cidade,
escolhemos três para observarmos as oficinas e entrevistarmos os arte
educadores. Como recurso material, utilizamos um gravador de voz e papel e
caneta para anotarmos as nossas sensações que surgiam durante a entrevista.
Foram realizadas observações no pólo do Clube-escola Vila Curuça
durante 5 dias; no pólo do Clube-escola José Bonifácio outros 4 dias, e no
Clube José de Anchieta mais 3 dias. Foram entrevistados 7 arte-educadores:
sendo 3 do sexo masculino e 4 do sexo feminino.
Inicialmente, procuramos observar as estruturas espaciais e materiais.
Em cada pólo – como chamaremos os locais – trabalham três educadores.
Basicamente as atividades realizadas eram as mesmas: ginástica de solo
(acrobacias e semi-acrobacias), malabares, atividades aéreas (trapézio, lira,
tecido), trampolim acrobático, ou cama elástica. Havia pólos que tinham
recursos outros recursos, como: mini-tramp, ou mini trampolim, arame de
equilíbrio ou corda bamba.
Não conseguimos enxergar diferenças significativas no desenvolvimento
das aulas, as dinâmicas eram muito parecidas. Apenas alguns poucos
exercícios
físicos
e
motores
se
diferenciavam.
Por
esse
motivo
descreveremosa dinâmica das aulas de um modo geral, não especificando as
lonas individualmente.
Nos inícios das aulas acontece um aquecimento inicial. Os educadores
se revezam na condução desse momento. Enquanto um dos educadores
conduz o aquecimento, os outros dois não participam, apenas observam de
longe. Os educadores, formados em Educação Física, sabem que nem todos
os alunos que realizam uma atividade física têm consciência corporal, ou seja,
uma postura adequada para a sua realização. As posturas equivocadas podem
causar danos às estruturas da coluna cervical ou nas articulações dos
membros superiores e inferiores, causando um comprometimento na qualidade
de vida dos educandos, pois os impedem de realizar certos movimentos ou até
os movimentos básicos de locomoção.
| 95
Podemos aqui dar uma primeira sugestão: os educadores precisam de
uma formação mínima que os possibilite compreender as posturas corporais
mais adequadas na realização dos exercícios. Outra questão que acreditamos
ser pertinente é a da colaboração entre os educadores: enquanto um conduz o
processo de ensino, os outros dois poderiam corrigir e orientar os educandos,
de modo que os impedissem de realizar posturas e movimentos equivocados.
Devemos lembrar que não se trata de instituir um estereótipo de movimento
para padronizar as ações dos educandos. É ideia corrente, entre os que
trabalham com a motricidade, que existem maneiras de movimentar que não
acarretam danos ao aparelho locomotor.
Ao fim dessa primeira parte da aula, geralmente há um intervalo de 5 a
10 minutos para que os educandos tomem água. Na volta, eles estão livres
para realizar as atividades que preferirem. Dessa forma os educadores se
dividem em estações: solo, aéreos, malabares, trampolim (cama elástica) etc.
Percebemos aqui que os educadores dividem as responsabilidades, os alunos
são obrigados a participar apenas no primeiro momento das aulas.
Nas estações, os educadores propõem atividades explicando e
demonstrando corporalmente os exercícios, constantemente vão dando o
retorno para os alunos sobre os seus erros e o melhor caminho para superálos.
Nas oficinas de circo as dinâmicas sequenciais das aulas vão
acontecendo conforme o que os educadores vão se lembrando. A impressão
que tivemos, confirmada posteriormente conversando com os educadores, era
a de que as ações não eram sistematizadas previamente, ou seja, as oficinas
não eram preparadas.
Essas observações nos permitiram fazer uma comparação entre a
educação formal (escolar) e a não formal. Geralmente um professor da
educação formal tem a responsabilidade de entregar, no início do ano, um
planejamento anual especificando os conteúdos a serem abordadas, as
estratégias (metodologia), os objetivos, o tempo pedagógico, o processo de
avaliação etc. Debaixo da lona esse planejamento não acontece. As ações dos
educadores têm como base as suas experiências; dessa forma as aulas vão
acontecendo. Quando perguntamos a alguns educadores sobre o processo de
| 96
avaliação, em termos gerais, eles nos disseram que não se preocupam com o
rendimento corporal e sim com o comportamento que os alunos apresentam.
Entretanto, essas observações não se tornam relatórios escritos ou registrados.
Apesar dessas diferenças com a educação formal (escolar), percebemos
que os educandos aprendem, seja pelo auxílio dos arte-educadores, seja pela
relação com os outros educandos, ou por livre iniciativa. O domínio corporal
que os educandos têm, algumas vezes, chega a impressionar. Como também
temos experiência na educação escolar, sabemos que os alunos, por diversos
motivos, a maior parte das vezes, possuem dificuldades de aprendizagem, e
que não há sistematização que dê conta de ensinar alguns conteúdos.
Os leitores desse trabalho podem por um instante pensar que a nossa
intenção é levantar o debate do que é melhor ou mais adequado na prática
pedagógica: sistematizar e agir pragmaticamente na condução do processo
educativo ou privilegiar os conhecimentos empíricos na condução de uma aula
mais espontânea? Mas esse não é o caso. E acreditamos que educação é um
processo tão complexo que se tentarmos pronunciar o que é melhor ou mais
adequado corremos o risco de reduzir o processo educativo a “receitas
pedagógicas”, e isso já estamos saturados de ver, e saber que não é o
caminho. O que estamos tentamos dizer é que não são apenas os processos
formais que educam. Lembramos de uma passagem do livro “Sobre
comunidade” (2008) do filósofo Martin Buber, que no capitulo “Educação para a
comunidade”, nos fala que:
[...] consideremos novamente a influência do professor sobre
os alunos. Como o professor exerce realmente influência sobre
o aluno? Na medida em que não existir esta resistência, na
medida em que entre ele e os alunos não houver a seguinte
situação: “ah, agora vamos ser educados!” Em outras palavras,
quando as relações entre o professor e o aluno forem
espontâneas e estes não o saibam nem o percebam. Quando
ele educa, o faz com sua existência pessoal, e se ele acha
incapaz de ensinar assim, é recomendável que mude de
profissão (2008, p. 90)
Para Buber, o processo educativo deve acontecer de forma espontânea
e é a existência – ou estar no mundo com os outros – a base principal da
educação.
| 97
Concordamos em parte com o filósofo. As relações com os outros é fator
importante no processo educativo, mas é necessário que os conhecimentos
construídos historicamente sejam compartilhados de forma organizada e
intencional. Acreditamos que esse processo possa ser importante na evolução
dos sujeitos, das comunidades, das sociedades etc.
Mas, retomando as narrações sobre as observações, percebemos que
debaixo da lona não existem objetivos claros, ou tempos pedagógicos
previamente estipulados. As modificações das estruturas cognitivas, derivadas
do desenvolvimento do saber sensível – sensibilidade –, que permitem que os
alunos realizem uma leitura da realidade que os cerca, e o tempo necessário
para essas mudanças, não são as preocupações desses educadores. O
importante é que os educandos aprendam.
Para
melhor
compreensão
do
universo
circense,
a
seguir
apresentaremos as entrevistas que fizemos com os educadores. Suas vozes
podem contribuir para essa compreensão.
4.5 - As vozes dos arte-educadores
Para nós, esse é o momento da pesquisa que mais causa preocupação,
e vários são os motivos: nossos preconceitos, nossa sensibilidade limitada,
nossa revolta em relação aos discursos hipócritas que circulam no mundo etc.
Nessa discussão, Rezende (1978) contribui conosco, quando nos sugere que o
pesquisador, para alcançar seus objetivos de encontrar os sentidos que
circulam em determinada cultura, precisa se despir de seus pré-conceitos e
pré-conhecimentos. Para o autor:
[...] o pesquisador deverá interrogar-se a respeito de sua
própria capacidade de compreender e interpretar os dados que
recolheu ou que lhes foram propostos. A auto critica inicial élhe sugerida pela atitude fenomenológica de époque, cujo
nome deverá colocar entre parêntesis tudo o que já sabe, para
estar atento ao sentido do texto tal como proposto pelo
interlocutor, isto é, pela situação sócio histórica que vai analisar
(1978, p.184, grifos do autor).
Quando iniciamos a fase de entrevistas e observações, o fizemos com
certo receio. Não sabíamos se haveria aceitação dos arte-educadores da
| 98
nossa
proposta.
Apresentamo-nos
aos
educadores/pesquisadores
e
explicamos o motivo da nossa visita. Deixamos bem claro sobre a participação
voluntária nas entrevistas.
Para a nossa surpresa, não houve resistência ou rejeição ao nosso
trabalho. Ao contrário do que pensávamos, os arte-educadores nos receberam
muito bem e colaboraram de todas as formas para a realização do trabalho.
Contamos com a orientação de Novaski (1984), que dizia que: o que
fazemos tem raízes tão profundas quanto o que somos, e que as propostas de
ações educativas têm origens na história de vida do educador, ou seja,
qualquer proposta educativa apenas poderá ser legitimada “[...] na medida em
que a história vivida for a matéria prima para elaboração daquela proposta”
(1984, p.7). Na mesma direção, Rezende nos fala que “[...] a existência é a
fonte de toda informação” (1978, p. 180), sugerindo que, se não conhecermos
as experiências dos outros, jamais poderemos atribuir sentido as suas ações.
Nesse sentido, para entendermos o que esses arte-educadores fazem,
porque fazem e como fazem, precisamos buscar em suas histórias de vida os
processos que forjaram suas identidades, pois entendemos que suas ações
têmraízes fundadas nas suas experiências como artistas circenses e como
seres humanos, inclusive nas suas relações com os seus educadores.
Entrevistamos sete arte-educadores, sendo quatro do sexo feminino e
três do sexo masculino. Realizamos as mesmas perguntas. Encontramos
respostas semelhantes, outras isoladas, mas foi possível compreender um
pouco desse universo.
Para melhor identificação dos educadores, iremos nomeá-los como:
Arte-educador A, Arte-educador B, Arte-educador C, e assim sucessivamente.
Inicialmente, solicitamos aos arte-educadores que fizessem uma
regressão de memória sobre suas histórias de vida, sua formação, e como foi
sua relação com as artes circenses. A seguir, apresentaremos os relatos de
história de vida dos sujeitos da pesquisa, acreditando que seja possível
compreender de maneira mais completa as suas práticas.
Arte-educador A - Tenho vinte e nove anos e trabalho com o circo há nove
anos, tenho o ensino fundamental completo. Estudei teatro há dois anos. Fiz
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vários shows de rua no litoral de São Paulo, quando voltei para a capital me
chamaram para trabalhar aqui no projeto.
Arte-educador B - Tenho quarenta e seis anos, vim de uma família tradicional
de circo que é a quarta geração, comecei a trabalhar com circo a partir dos seis
anos de idade, geralmente crianças de circo começam como palhaço, depois
vai atingindo um certo grau físico e uma certa idade vai se aperfeiçoando em
outras atividades.
Arte-educador C – Tenho cinquenta anos de idade, estudei até o segundo ano
colegial, sou de família tradicional da arte circense, já trabalhei em vários circos
aqui no Brasil e também no exterior, hoje estou trabalhando no projeto do
brinquedo vivo.
Arte-educadora D - Tenho vinte e dois anos estou cursando faculdade de
sociologia. Minha formação foi de escola circense, fiz curso profissionalizante
de circo, e comecei estagiando com adolescentes e crianças, depois me
convidaram a trabalhar nesse projeto.
Arte-educadora E – Tenho vinte e cinco anos cursei ensino médio completo.
Entrei na escola de circo aos cinco anos e saí com dezoito. Eu passei por todos
os aparelhos de circo, mas a minha especialização são os aéreos.
Arte-educadora F - Tenho vinte e sete anos, sou formada em Educação Física,
comecei praticando ginástica acrobática e logo depois comecei a praticar
asatividades circenses e mais interesse dos aéreos de circo. Aqui no projeto
dou aulas de ginástica acrobática e de aéreos.
Arte-educadora G - Tenho trinta e três anos, cursei dois anos do curso de
Educação Física. Quando tinha três anos comecei a fazer ballet clássico, com
oito fiz ginástica olímpica. Quando fui estudar no colégio da policia militar
conheci a ginástica acrobática. Trabalhei em vários projetos como voluntaria
até que me convidaram a trabalhar aqui no projeto.
No decorrer das entrevistas tivemos a mesma sensação em relação a
todos os arte-educadores; que eles tinham muito orgulho de relatarem as suas
histórias, e que estavam muito felizes em expor suas experiências, como se
tivessem muito a dizer e aquela era a oportunidade. Mas foi um início difícil,
tanto para nós quanto para eles, pois parecia que ambos buscavam as
palavras certas, nós, sujeitos pesquisadores, buscávamos as palavras certas
para perguntar, eles sujeitos da pesquisa buscavam as palavras “politicamente
corretas” para responder. A impressão que tivemos é a de que os arteeducadores com quem dialogamos imaginavam que a qualidade de seus
| 100
trabalhos resumia-se aos discursos e aquele momento de diálogo, era
fundamental para mostrar o seu valor.
No momento em que estamos separando as unidades de significado,
para entendermos esses arte-educadores, percebemos as diferentes histórias
de vida e de formação. Alguns são de famílias circenses – com a experiência
do circo família, não apenas as experiências das linguagens artísticas, mas
também as experiências do convívio em suas comunidades sociais, que vão
além dos treinamentos e ensaios –, outros de escola de circo profissionalizante
ou de projetos sociais, e há também os que se relacionaram com as artes
circenses devido às outras praticas anteriores – formação acadêmica, teatro,
esportes, danças etc.
Pelo fato de esses educadores profissionais possuírem diferentes
experiências, também possuem valores e comportamentos diferentes, por esse
motivo temos a convicção de que encontraremos sentidos diferentes nos seus
discursos.
Uma das hipóteses que levantamos era a de que as suas ações
educativas
eram
fortemente
influenciadas
pelas
experiências
que
tiveramquando eram ainda artistas ou alunos, e por isso solicitamos que eles
falassem sobre as relações com seus educadores, perguntando: como foram
os seus primeiros contatos com as linguagens circenses? Como era a sua
relação com os seus professores?
Arte-educadora E - Eu passei por muitos professores, mas meu relacionamento
com os professores sempre foi bom, tinha meus professores como pais, mas
era tratada como uma aluna como todos. E havia um respeito mútuo. Já vi
muitos casos que os professores querem mandar na vida dos alunos fora do
circo e eu acredito que não é por aí.
Apesar de não encontrarmos outro discurso semelhante a esse,
podemos notar que em algumas vezes a admiração do aluno/educando para
com seus educadores/professores é tão intensa que o educando toma seus
educadores quase como heróis e em algumas vezes como pais. Por outro lado,
os educadores/professores, confundem suas responsabilidades, querendo
assumir as responsabilidades que, no nosso entendimento, não lhes
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competem, e sim aos pais. Entendemos que o bom senso do educador, tão
valorizado por Paulo Freire (1996), também está relacionada em reconhecer
até onde vai a nossa responsabilidade, e o que foge dela. Nunca podemos
esquecer que somos apenas educadores e não o “messias” que veio trazer a
salvação a todos os males do mundo.
Outro discurso chamou a atenção, por deixar claro para nós um perfil de
educador/professor: a do controlador. Vale salientar que em alguns casos esse
comportamento é admirado pelo educando, que considera essa postura como
forma de dizer que o educador/professor se importa com ele, que quer o seu
bem.
Arte-educadora G - Meus professores eram muito exigentes, eles cobravam
muito a gente, eles não eram bravos, eles eram muito ruins. Na parte da
disciplina eu aprendi muito com eles. Na parte dos exercícios, quando você não
conseguia fazer um exercício o professor falava: se você não consegue fazer
então o que você está fazendo aqui? Por que então você não vai embora?.
Muita coisa eu aprendi com eles.
Arte-educadora D - Quando fazia a escola profissionalizante de circo, meus
professores eram muito rígidos, tínhamos que atingir a perfeição na realização
dos exercícios.
No diálogo com os arte-educadores percebemos a valorização da rigidez
no processo educativo. Eles entendem o termo disciplina como sinônimo de
controle e bom aluno como aquele que sesubmete aos comandos do educador.
Nesse sentido, bons educadores são aqueles temidos pelos educandos, e que
controlam a todo o momento os processos educativos.
Por meio desse discurso, identificamos um entendimento que era muito
próximo ao nosso, pois como dissemos anteriormente, nossa prática educativa,
por falta de entendimento, segurança ou conhecimento, era baseada por meios
coercitivos de controle. Nesse momento, surgiu em nós duas sensações:
primeiro a de satisfação por saber que a nossa sensibilidade não é tão limitada
assim, pois identificamos no outro algo em que também acreditávamos, como
dizia Novaski (1984), interpelar é interpelar-se, interpretar é interpretar-se. A
segunda sensação é a de preocupação, pois ao identificarmos essas posturas
percebemos que esses educadores estão trilhando um caminho perigoso, em
que pode acarretar problemas não apenas na formação do educando, mas na
sua própria formação como educador.
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Em relação aos educadores que são de origem familiar circense,
algumas vezes a relação extrapola os limites de preparação corporal para
eventos e apresentações. Em conversas com eles, boa parte nos relata que
sua formação envolvia castigos físicos, quando eram incapazes de realizar
alguma tarefa.
Arte-educador B - Meus pais que me ensinaram quase tudo. Quando você é de
família de circo você precisa aprender tudo, desde vender pipoca até bater
estaca. Minha relação era rígida, quando uma criança de circo não consegue
fazer alguma atividade ou reclama que está cansada ela apanha.
Uma das grandes confusões, não apenas entre os educadores
profissionais – professores e educadores sociais – mas também dos demais
educadores – família e sociedade – é o sentido de autoridade. A partir da
concepção do senso comum, entendemos autoridade como capacidade de
exercer influência no comportamento e nos desejos dos outros, seja pela força
física ou pelo temor de algo – coação. O professor Silvio Donizette Gallo em
sua tese de doutorado “Autoridade e a construção da liberdade: o paradigma
anarquista em educação”, pela Universidade de Campinas (1993), realiza um
estudo fenomenológico sobre esses temas – autoridade e liberdade –,
fundamentado, a partir do paradigma anarquista da educação. Nessa pesquisa
Silvio Gallo, defende a idéia de que, ao contrário da concepção dos defensores
do modelo da escola nova que “[...] critica o uso da autoridade, argumentando
que o indivíduo deve desenvolver-se de forma livre e natural [...]” (p. 140), a
condição da liberdade e da autonomia é construída a partir de um processo
que se inicia pelo principio de autoridade, e diz “[...] uma educação que se
pretenda libertária não pode tomar a liberdade como um ponto de partida, mas
de chegada; a liberdade é o fim e não o meio da educação anarquista” (p.136).
Para Silvio Gallo, a autonomia e a liberdade não podem ser doadas, pois
a incompreensão dos sentidos de normas, códigos e símbolos que circulam no
mundo impossibilita que os sujeitos realizem ações e escolhas não nocivas
para eles e para os outros. Por esse motivo é necessário que os sujeitos
passem por um processo de autoridade em que, por meio das experiências
com os outros, possam aumentar sua cosmovisão, sendo capaz de avaliar
suas ações e consequências.
| 103
[...] a aplicação do princípio de autoridade nas crianças, mais
do que justo, é absolutamente necessário e legítimo. Deixar as
crianças a mercê de uma suposta liberdade natural é a mais
pura irresponsabilidade pedagógica; longe de constituir-se
numa educação libertária, seria uma educação libertina.
(GALLO, 1993, p.137)
Desse modo, o professor/educador participa do processo educativo de
uma forma mais qualificada, com uma visão mais completa do mundo, e essa
qualificação e experiência é que lhe atribuem a autoridade. Cabe ao
professor/educador conduzir o processo educativo até o momento em que o
aluno seja capaz de caminhar sozinho nos processos de apreensão e
construção do conhecimento para a tomada de decisões.
Na sequência da pesquisa, sentimos que precisávamos entender como
aconteceu à transição de aluno/artista circense para educador. Nesse sentido
pedimos para que os educadores rememorizassem essa passagem, e por esse
motivo perguntamos: Como foi a passagem de artista/aluno para arteeducador?
Arte-educador B - Eu não tinha noção de como era ser professor de circo, era
uma coisa nova [...] eu ensinava assim como os meus pais me ensinaram.
Arte-educadora E - Eu não tive muita dificuldade, pois era uma escola
profissionalizante. Usávamos uma linguagem mais direta. Éramos um pouco
mais diretos com os alunos. Eu tive dificuldades quando eu fui trabalhar em um
projeto social [...] em um circo social nós temos que trabalhar a educação, há
coisas que não posso falar.
Arte-educadora D - Essa passagem foi bem complicada. Eu comecei a ensinar
na escola profissionalizante onde eu também era aluna. Pensava que era só
passar o conhecimento, mas aí você vê que não é bem assim, a gente tem que
respeitar a idade, se tem menos flexibilidade, menos memorização, e isso a
gente adquire na convivência.
Arte-educadora F - Não comecei sendo professora de circo. Já tive experiência
em projetos culturais. No começo tive muitas dificuldades, principalmente na
organização dos alunos, eram alunos indisciplinados, a maioria só queria
atrapalhar as aulas. Com o tempo consegui dominar o grupo e ficou mais fácil.
Como podemos observar nas falas anteriores, a transição aluno/artista
para educador exigiu uma adaptação a uma nova realidade. Como já
dissertamos, o circo família abriu espaço para o circo escola com objetivos
totalmente diferentes, sendo que o primeiro prepara os sujeitos para as
| 104
apresentações e shows e o segundo para a formação humana que possibilite a
emancipação e autonomia. As dificuldades relatadas fazem sentido, pois a
única referência de processos educativos que esses novos educadores
profissionais era a de formação de artistas circenses.
É aceitável acreditar que o professor/educador em começo de carreira
tem a tendência de reproduzir as ações de seus professores/educadores,
principalmente daqueles com quem tiveram mais afinidade. Isso parece
razoável, pois nesse momento lidamos com a nossa limitação, com a nossa
inexperiência, que nos causa insegurança, por isso buscamos, em exemplos já
vivenciados, um porto seguro para a nossa prática. Porém, assim como muitos
educadores, acreditamos que o profissional de educação qualificado é aquele
que é capaz de dar sentido à sua prática, que compreende que é sempre
necessário reinventá-la, em um processo interminável de ação-reflexão-ação.
Saber se houveram mudanças no trato das ações educativas desses
arte-educadores só é possível por intermédio do entendimento que eles têm do
que é pertinente ou não naquele momento – das ações educativas –, naquele
contexto, por isso solicitamos aos arte-educadores que relatassem sobre quais
as ações de seus educadores que eles consideram importantes e, por isso
adotaram em suas práticas, e o que eles de maneira nenhuma reproduzem.
Arte-educador B - Eu falo que é a técnica de ensinamento (podemos entender
como prática de ensino). A criança que é de família circense não pode se negar
a fazer nada. Quando a gente ia fazer uma sequência de rodada com flick
(movimentos acrobáticos das ginásticas artística e acrobática) meu professor
colocava de cada lado uma fileira de cadeiras com as pernas para cima. Se eu
errasse, eu caia em cima das cadeiras. Hoje, é lógico que a gente não vai fazer
isso. Então alguns modos de antigamente eu vejo que não são adequados para
fazer hoje. É o mesmo caso de um pai que educa um filho usando o cinto. É
errado. Não se educa forçando a pessoa a fazer aquilo que ela não quer.
Esse relato de um arte-educador que é de família circense nos chama a
atenção por evidenciar como eram os processos educativos dentro de um
universo circo-família. As aprendizagens eram, e talvez ainda sejam baseadas
no temor por errar, que acarretaria em sofrimentos físicos. Dessa maneira os
educadores procuravam garantir as aprendizagens pela dor em caso de erros.
Outro fator que diferencia o educador de família circense do educador social é
a condução do processo. No circo família os educandos eram obrigados a
| 105
realizar as atividades por meio de coação. No circo escola exige-se do
educador uma postura diferenciada, pois os educandos não são obrigados a
participar das atividades.
Outro discurso muito semelhante é de uma arte-educadora que
participou temporariamente – três anos –, como aluna, de um circo
profissionalizante. Na concepção dessa educadora os métodos de seus
professores eram muito rígidos, o que não cabe em um circo escola.
Arte-educadora C - O processo no circo profissionalizante é muito rígido. Não
acho que é necessário ser tão rígido com as crianças. Quando é adulto tudo
bem, você pode pegar mais pesado. Tem professores que acham que a
criança tem que aprender na dor mesmo. Aqui tem que ser mais lúdico.
Não podemos nos esquecer de que o circo escola e o circo
profissionalizante têm objetivos diferentes, portanto abordagens diferentes.
Essa rigidez no processo parece não ser exclusiva das escolas de circo.
Uma arte-educadora de origem de escola militar, nas turmas de treinamento,
relata um processo de ensino idêntico aos praticados no circo família e na
escola profissionalizante.
Arte-educadora G - No meu tempo como atleta era muita disciplina. O
ensinamento era muito militar. Tinha crianças que chegavam a chorar. Se eu
fizesse aqui a mesma coisa que eles faziam, não ficaria nenhum aluno.
São questionáveis as metodologias utilizadas pelos educadores de
família circense. No entanto, esse trabalho não se propõe a emitir juízo de valor
sobre elas. Deixo esse exercício de reflexão aos leitores desse trabalho. E,
para ampliar essa reflexão, podemos perguntar: essa metodologia não expõe o
aluno/educando a ponto de desconsiderar a sua integridade e sua dignidade?
É possível alcançar os mesmos objetivos sem colocar em risco a integridade
física e moral do aluno/educando mesmo que os objetivos sejam os de
rendimento?
Paulo Freire (1996), quando nos fala dos saberes necessários para a
prática educativa, nos lembra que é fundamental que tenhamos bom senso,
que deságua na questão do respeito às características dos educandos/alunos.
Segundo Freire:
| 106
Saber que devo respeito à autonomia, à dignidade e à
identidade do educando e, na prática, procurar a coerência
com este saber, me leva inapelavelmente à criação de algumas
virtudes ou qualidades sem as quais aquele saber vira
inautêntico, palavreado vazio e inoperante. De nada serve, a
não ser para irritar o educando e desmoralizar o discurso
hipócrita do educador, falar em democracia e liberdade, mas
impor ao educando a vontade arrogante do mestre (1996, p.62)
Podemos até considerar que essa “rigidez” na condução das práticas
seja uma maneira de garantir a sobrevivência econômica a partir de seus
trabalhos corporais. Mas, justificaria colocar em risco a integridade do
educando?
O que nos chama a atenção, e consideramos muito significativo, é o
relato de duasarte-educadoras que vivenciaram o universo do circo
profissionalizante, que é muito parecido com o da educadora que frequentou
turma de treinamento em escola militar. Quando relatam sobre o que faria de
diferente em relação a seus instrutores, elas insistem na questão da linguagem,
ou melhor, no trato com os educandos. Segundo elas, as linguagens utilizadas
no circo profissionalizante são completamente diferentes das do circo escola. O
circo profissionalizante busca a perfeição dos movimentos dos praticantes, pois
serão artistas, seus corpos e suas habilidades serão vendidos em
apresentações. Quando essas educadoras tiveram a oportunidade de
experienciar uma realidade diferente – circo escola – encontraram algumas
dificuldades de adaptação.
Arte-educadora E - É completamente diferente trabalhar aqui (projeto social) e
trabalhar no curso profissionalizante. Lá nós podemos exigir mais. Os alunos têm mais
disposição em aprender, ninguém reclama dos exercícios. Os alunos aqui são mais
preguiçosos, nem sempre querem fazer os exercícios.
Um discurso isolado, mas não menos importante, é de uma educadora
que relata que em sua prática evita reproduzir o sistema de exclusão. Segundo
ela, alguns educadores escolhem os alunos que irão realizar os exercícios.
Arte-educadora F - A maioria dos professores têm os seus preferidos. Os
alunos que se destacam têm atenção especial. A maioria dos professores não
gostam de trabalhar com alunos iniciantes ou os que têm mais dificuldade. Eles
definem o que os alunos vão fazer. Daí eles colocam seus preferidos nos
aparelhos que eles querem.
| 107
No
nosso
entendimento,
uma
das
maiores
virtudes
do
educador/professor é a paciência. E, negar ao outro a oportunidade de
aprender, seja qual for o motivo, demonstra que o educador perdeu a paciência
em ensinar e consequentemente seu comprometimento com a sua profissão.
Não podemos, aqui, utilizar essa dissertação para o pronunciamento de
um discurso do politicamente correto. Isso seria uma hipocrisia, considerando
que ainda estamos aprendendo a ser educadores/professores.
Os desafios da nossa profissão exigem de nós, educadores, uma
energia que nem sempre é restaurada, e o acúmulo de responsabilidades nos
deixa um pouco impacientes. É compreensível vez ou outra perder a paciência,
afinal somos seres humanos – racionais e emocionais –, mas viver mal
humorados todos os dias é sinal de que alguma coisa está errada. Ou, querer
facilitar o nosso trabalho em detrimento do aprendizado dos educandos/alunos
é uma total falta de compromisso com o outro e com a profissão, amostra do
desinteresse em contribuir na formação do outro.
Busco em Paulo Freire uma passagem que considero importantíssima
para a nossa reflexão.
Saber que não posso passar despercebido pelos alunos, e que
a maneira como me percebem me ajuda ou desajuda no
cumprimento de minha tarefa de professor, aumenta em mim
os cuidados com o meu desempenho. Se a minha opção é
democrática, progressista, não posso ter uma prática
reacionária, autoritária, elitista. Não posso discriminar o aluno
em nome de nenhum motivo. A percepção que o aluno tem
demim não resulta exclusivamente de como atuo, mas também
de como o aluno entende como atuo. Evidentemente, não
posso levar meu dia como professor a perguntar aos alunos o
que acham de mim ou como me avaliam. Mas devo estar
atento á leitura que fazem de minha atividade com eles.
Precisamos aprender o significado de um silêncio, ou de um
sorriso ou de uma retirada da sala. O tom menos cortês com
que foi feita uma pergunta. Afinal, o espaço pedagógico é um
texto para ser constantemente “lido”, interpretado, “escrito” e
“reescrito”. Neste sentido, quanto mais solidariedade exista
entre o educador e educandos no “trato” deste espaço, tanto
mais possibilidades de aprendizagem democrática se abrem na
escola. (1995, p.97, grifos nossos).
Essa passagem nos faz refletir sobre as nossas responsabilidades como
educadores/professores. Resumir os processos educativos em experiências de
| 108
aprendizagens é ignorar as múltiplas formas de existência humana, é não
reconhecer que os educandos são seres históricos e sociais. É querer
“catequizar”, ou transformar os outros à nossa imagem. Nesse sentido, os que
não se enquadram nas nossas normas, não realizam os nossos desejos,
deitam no nosso leito de Procrusto, ou seja, são excluídos. Resumindo, ser
educador/professor é ser capaz de reconhecer e respeitar os outros e nunca
negar-lhes o direito de aprender.
Nessa passagem da pesquisa a pergunta era: o que de bom, e o que de
mau você utiliza, que seus educadores utilizavam? Uma parte considerável dos
arte-educadores relatavam os fatos de que não gostaram, mas os bons
momentos muitos esqueceram.
Precisamos nos desculpar nesse momento, pois, como entrevistadores,
talvez ficamos um pouco empolgados e nos deixamos levar pelas histórias. A
nossa preocupação maior era a de deixar que os educadores falassem
livremente, sem interrompermos, e isso fez com que em algumas vezes
perdêssemos o foco principal da pergunta, e apenas percebemos falha no
momento em que estavamos separando as unidades de significado. Agora
descobrimos a importância de insistir na pergunta, buscando um sentido
principal que nos ajudaria em uma maior compreensão da realidade.
Felizmente, duas arte-educadoras foram mais centradas do que nós e
responderam a pergunta.
Arte-educadora G - O que trago de bom é que apesar deles serem ruins (no
sentido de cruéis) eles sempre me motivaram, eles não deixaram que nós
desistíssemos, pelo mais difícil que fosse fazer um exercício. Aqui eu faço a
mesma coisa.
Arte-educadora F - Meu professor me cobrava muito, mas também me ajudava
muito. Toda hora ele vinha nos corrigir. Se precisasse de ajuda era só pedir
que ele ajudava. Aqui eu não sou babá de aluno, mas ajudo sempre que eles
precisam de mim.
Todo e qualquer processo educativo, seja intencional ou não, provoca,
no educando modificações em suas estruturas cognitivas, comportamentais ou
físicas/corporais. Desse modo, os processos educativos que acontecem
debaixo da lona também contribuem de alguma forma na formação do
| 109
educando. Nesse sentido perguntamos aos educadores sobre quais são, no
entendimento deles, os benefícios das atividades circenses na formação dos
educandos.
Arte-educador B - Eu acredito que é o corpo. Pra você ter uma boa saúde você
precisa exercitar o corpo. Aqui os alunos exercitam o corpo brincando.
Arte-educador A - A criança ganha mais alongamento, mais resistência,
coordenação motora. O beneficio do circo para o corpo é trabalhar o corpo dela
de uma maneira que ela gosta.
Arte-educadora E - Acredito que o aluno aprende a ser responsável. Quando o
aluno vai fazer um exercício ele tem que ter consciência de que se ele não fizer
corretamente ele pode se machucar. Tem muitos alunos que levam o circo
como brincadeira, e se ele brinca toda hora ele pode se machucar.
Arte-educador C - Quem faz o circo tem mais disposição, tem crianças aqui
que melhoraram as notas na escola depois que começaram a fazer as aulas de
circo. Elas ficam mais espertas.
Arte-eduadora G - O circo ensina que nos precisamos colaborar um com o
outro. Tem muitas atividades que os alunos precisam trabalhar em equipe. Se
um não confiar no outro não sai nada.
Nesse momento da pesquisa sentimos certa dificuldade dos educadores
em relatar os benefícios de suas práticas para os educandos. A sensação foi a
de que os arte-educadores nunca pararam para refletir sobre essa questão.
Mesmo assim, percebemos que, alguns educadores, valorizam os benefícios
físicos para uma boa saúde que as atividades proporcionam. Outros valorizam
a
convivência
social,
questões
como
trabalhar
cooperativamente,
responsabilidade, respeito, etc.
A próxima pergunta refere-se ao sentido que os arte-educadores
atribuem a suas práticas, ou melhor, o que é educação para eles e onde eles
querem chegar quando estão ensinando. Esse é um momento crucial para
entendermos como eles articulam as suas práticas. Encontramos respostas
diferentes:
Arte-educador B - As crianças chegam aqui muito carentes. Algumas delas
ficam sozinhas em casa enquanto os pais trabalham. Então aqui nós
ensinamos a importância de ser responsável; porque ele tem que ir para a
escola, o respeito aos colegas. Um pouco de tudo.
| 110
Arte-educador C - Educar é cuidar do aluno, orientar para que ele não saia por
aí fazendo besteira, a gente tem que ensinar o que é certo e errado.
Arte-educadora D - Trazer uma base social. Ensinar que é importante respeitar
o outro e respeitar o professor que é à base do ensinamento.
Arte-educadora E - Educação a gente leva pra todo lugar. Se a gente não tem
educação a gente não consegue nada. Aqui a gente tenta ensinar a educação
para eles serem pessoas boas, que respeitam os outros.
Arte-educador A - A gente tenta buscar o respeito deles, fazer eles levarem a
sério o trabalho com o corpo para que eles não se machuquem e trazer
confiança para a gente fazer um bom espetáculo.
Podemos notar que todos os arte-educadores relacionam o termo
educação com o aprendizado de bons modos, ou respeito às regras sociais.
Em uma sociedade como a nossa, que carece de princípios e valores morais,
os educadores acreditam que o seu papel é o de formar para conviver melhor
com os outros.
Sabemos que a instituição família, na sociedade contemporânea, vem
sofrendo transformações, uns até acreditam que é uma instituição falida. Nós
não achamos que chega a tanto. Esses arte-educadores, no nosso
entendimento, acreditam q que podem preencher as lacunas deixadas pelas
famílias na formação dos educandos, e direcionam as suas ações, ou as
justificam, no sentido de modificarem os comportamentos, ajustando-os às
regras sociais.
Algumas lonas que visitei recebem crianças de abrigos, outras recebem
crianças com necessidades especiais. São crianças sem a noção de limites ou
respeito ao outro. Os arte-educadores, a todo o momento, precisam chamar a
atenção ou até colocar alguns de castigo.
Ficamos pensando na nossa própria prática, as dificuldades que temos
em organizar e sistematizar os conhecimentos a serem compartilhados e em
criar estratégias para aquele educando que tem dificuldades em aprender.
Descobrimos que é muito difícil ser educador/professor. Mal conseguimos
cumprir com as nossas responsabilidades de maneira satisfatória. Nesse
| 111
momento, nos perguntamos: se mal conseguimos cumprir com as nossas
responsabilidades como educadores/professores, é possível que, além dessa
responsabilidade, podemos dar conta de assumir as responsabilidades da
família? Do Estado? Da sociedade? Será que não estamos incorporando a
síndrome de Atlas? Existem os messias da educação, que vêm salvar o mundo
de todas as mazelas? Ou a intervenção nas responsabilidades da família, do
Estado e da sociedade é mais uma exigência da profissão?
Entendemos que precisamos possuir uma consciência maior de quais
são as nossas responsabilidades. Sem essa consciência teremos dificuldades
em definir estratégias de intervenção educativa. Devemos, também, nos
conscientizar de que somos apenas parte do processo e, a formação dos
educandos depende de diferentes experiências que serão vivenciadas em
outros contextos, e não apenas nos espaços de educação formal ou não
formal.
Deixamos um pouco de lado esses questionamentos, pois são perguntas
que não cabem tentarmos responder nesse momento. Voltaremos ao foco do
trabalho. Nesse momento iremos agrupar sequencialmente a última pergunta
aos arte-educadores, ou melhor, a não pergunta. Perguntamos qual era a
pergunta que não fizemos, mas que eles consideram importante que
respondam. Ou deixei esse momento para eles ficassem à vontade para que
deixassem o último recado.
Arte-educador A - Eu queria deixar bem claro que, as pessoas hoje precisam
estar mais focadas em fazer atividade física para melhorar a saúde. Pra todos
que estão parados hoje e acham que não dá mais, que venham fazer atividade
física.
Arte-educador B - Eu acho que a pergunta que vocês não fizeram e que eu
acho que seria importante é por que eu estou aqui? E, eu estou aqui por que
eu acredito que através da arte circense eu possa não deixar a arte acabar, e
eu mesmo não estando no picadeiro, eu amo o circo. O circo é a minha vida,
tudo o que eu sei foi viajando de cidade a cidade, conhecendo outras pessoas,
outras cidades etc, se hoje eu sou uma pessoa de bem eu devo isso ao circo, e
por isso não posso deixar que essa arte acabe.
Arte-educadora E - Eu acho que a pergunta é: o que eu aconselho para todos
que querem seguir as artes circenses? e, eu acho que é a humildade, se você
é humilde você aprende mais, quando você acha que sabe tudo você para de
aprender.
| 112
Arte-educadora F - A arte é uma ferramenta maravilhosa de contato com as
pessoas e a educação é fundamental para o desenvolvimento do ser humano,
o circo pode educar, e as pessoas têm que ter o conhecimento disso.
Arte-educador C - Eu acho que tudo o que eu to fazendo aqui é com uma base
de prática. E tem muitos que fazem com uma base teórica. E a pratica é muito
importante. Nós que somos de circo (família), nós temos uma história e essa
história tem que ser respeitada.
Arte-educador G - Que bom seria se tivesse mais oportunidades para as
crianças de fazer aulas de circo. É uma pena que essa arte não seja
valorizada. A criança que faz circo é mais calma, tem mais disposição para
fazer as coisas.
Como
podemos
observar,
cada
educador,
baseado
no
seu
entendimento, deixa o seu recado final. Alguns valorizam as atividades como
um todo, já outros declarando o seu amor por essa atividade. O importante é
que esse é o momento em que o educador pode demonstrar que tem voz, que
tem algo a dizer. Não cabe a nós pesquisadores emitir juízo de valor sobre
seus trabalhos. Cada um possui uma experiência pessoal e é nela que se
baseia para atuar nas atividades.
3.4 - Sobre o que observamos e ouvimos
A decisão que tomamos em conhecer, de maneira próxima, essa
comunidade acabou tornando-se a mais acertada, mesmo que algumas
questões
não
tenham
ficado
muito
claras
para
nós.
Esperávamos
maishomogeneidade nos discursos, o que acabou não acontecendo. Entretanto
as ações educativas eram muito semelhantes.
Nesse momento, iremos realizar uma reflexão baseados em 4 itens: 1 –
o texto institucional disponível na internet
9
; 2 – a voz do fundador da
instituição; 3 – as vozes dos arte-educadores; 4 – as nossas impressões sobre
o que observamos e dialogamos.
Retomando a entrevista que realizamos com o fundador do Instituto
Sócio Cultural Brinquedo Vivo, Roberto Avritchir, perceberemos que a intenção
inicial do Instituto era o de proporcionar experiências educativas por meio de
confecções de brinquedos artesanais e do resgate das brincadeiras populares
9
WWW.brinquedovivo.org.br
| 113
que com o tempo estão desaparecendo. O relato de Avritchir vai ao encontro
do texto institucional que disserta que a Instituição:
“É uma organização sem fins lucrativos que propõe implantar, em parceria com
demais organizações, espaços interativos voltados a: atividades lúdicas,
capacitação, criação e exposição de brinquedos artesanais, que constituam um
meio para o desenvolvimento humano, social e educacional”.
Como podemos observar, a princípio, a Instituição não tinha como
objetivo inicial implantar propostas educativas por meio das linguagens
circenses, isso fica claro quando visitamos a sua página institucional da
internet. A implantação do projeto de circo veio posteriormente em parceria
com a Prefeitura de São Paulo. Entretanto, esse projeto não possui uma
divulgação completa, pois não cita que desenvolve o projeto em vários pontos
da cidade, e referenciam apenas em um dos muitos pólos em que a Instituição
atua. Segundo a página institucional:
“Nossa proposta são oficinas de circo do programa Clube escola CERET,
abertas à comunidade, buscando nas populações em situação de risco o foco
principal de nossa iniciativa. Com esse trabalho estamos preenchendo uma
lacuna no aprendizado escolar, que privilegia a escrita e as atividades
intelectuais, em detrimento das atividades físico-motoras”
Podemos encontrar um ponto discordante entre as vozes dos
educadores e o que está exposto na página institucional. Segundo a nota
institucional anterior, a instituição pretende “preencher as lacunas deixadas
pelas aprendizagens escolares” e, como observamos, para os arte-educadores,
amaior preocupação é a de preencher as lacunas deixadas pela educação
familiar – informal. Mais uma vez voltamos à discussão sobre as
responsabilidades dos educadores de cada campo da educação – formal, nãoformal e informal, que precisamos refletir e retomar em um outro momento.
Outra questão que consideramos importante é a dos sentidos ocultos nos
discursos dos educadores.
Se nos baseássemos no que os educandos estão aprendendo em cada
lona, as observações que realizamos não nos permitiram identificar nenhuma
habilidade
ou
conhecimentos
dos
arte-educadores
que
diferenciasse,
significativamente, os trabalhos realizados nas diferentes lonas. Apesar de que,
nas entrelinhas dos discursos, nós percebemos que existe um jogo de vaidade
| 114
entre os arte-educadores. No nosso entendimento, podemos dizer, com certa
convicção, que os arte-educadores de circo família, os arte-educadores de
origem de escolas profissionalizantes e os de formação acadêmica, entendem
que os seus conhecimentos são mais importantes ou pertinentes. Mas as
tentativas de apropriação de poder simbólico por meio do conhecimento não se
justificam.
Uma das falas que mais nos chamou a atenção foi a de uma arteeducadora que afirmou que a maioria dos arte-educadores tem os seus
“favoritos”, ou seja, privilegiam os educandos que sabem mais, ou mais
desenvolvidos.
Não
acreditamos
que
nenhum
arte-educador,
espontaneamente, assuma que realmente tem os seus preferidos e se dedicam
mais a eles. Quando observávamos os arte-educadores em atuação,
percebemos que realmente alguns educandos vivenciavam uma atividade em
um tempo maior do que os outros. Em nenhum momento pensamos que seria
um privilégio. Pensávamos que era normal, devido ao nível de desenvolvimento
do aluno. Depois do discurso da Arte-educadora expondo essa situação,
ficamos em duvida se aquela era uma situação de privilégio. Precisamos
investigar com mais tempo. No entanto, se essa situação for confirmada, é
lamentável.
Na página da instituição na internet, está escrito que uma das missões
da instituição é a de capacitar arte-educadores para trabalhar em espaços
recreativos. Segundo o texto:
“O Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo reflete a preocupação de seus
educadores com a falta de oportunidades e espaços para brincar, a escassez
de pessoas devidamente capacitadas para neles atuar”.
No entanto ao interpelar os educadores se era oferecida esse tipo de
capacitação eles nos disseram que existe um encontro uma vez por mês, mas
são tratados apenas assuntos administrativos, ou seja, não existe capacitação
ou orientação pedagógica. O que falta para a instituição, no nosso ponto de
vista, falando especificamente das oficinas de linguagens circenses, é definir
sentidos e objetivos para as ações educativas. Entendemos que seja
necessário a instituição explicitar as bases epistemológicas que fundamentam
o trabalho desenvolvido por ela. Isso facilitaria a construção de uma
| 115
metodologia de trabalho que legitimasse ainda mais a importância da arte
educação por meio das linguagens circenses.
A intenção inicial desse trabalho ouvir as vozes dos educadores e
posteriormente encontrá-los para sintetizar as informações que foram colhidas
debaixo das lonas. Acreditávamos que em diálogo com eles poderíamos
discutir e refletir sobre as ações, as dificuldades, os desafios e as possíveis
ações para a sua superação. No entanto, apesar do pedido de espaço em um
desses encontros, isso não foi possível. Segundo os coordenadores
responsáveis pela instituição, os assuntos a serem tratados nos encontros
tomariam um tempo que impediria a abordagem de outros assuntos. Nós
lamentamos.
Deixando de lado esse desencontro, ou não encontro, fizemos a
promessa aos arte-educadores, que colaboraram com essa pesquisa, de que
nós devolveríamos esse trabalho finalizado a eles, e nos colocaríamos a
disposição para dialogar sobre suas e nossas impressões.
O que mais nos marcou nessa pesquisa é a impressão que esses
educadores nos deixaram. Trata-se de sujeitos com um grande e reconhecido
conhecimento prático, com seus erros e acertos, mas que atingem resultados
reais, muitas vezes de forma não sistematizada ou previamente organizada.
São pessoas que gostam do que fazem e fazem com muita dedicação. Eles
têm prazer de ver os educandos realizando algo que eles ensinaram. Mas, por
outro lado, nos parece que eles não pararam para pensar na riqueza que seus
trabalhos representam para o processo de boa formação dos educandos e isso
ficou claro para nós no momento das entrevistas. São pessoas que têm muito a
dizer e muito a acrescentar, muito podem contribuir nos processos educativos
de seus educandos, mas não pararam para refletir e articular um discurso com
a da grandeza de seus trabalhos.
Ouvimos de uma educadora que as oficinas eram “um complemento da
escola”, de outro educador ouvimos que nas oficinas ele tentava mostrar para
os educandos porque é importante ir para a escola. A impressão que fica é de
uma importância menor de seus trabalhos, e não é nisso que acreditamos.
| 116
Na realidade, acreditamos que esse trabalho, desenvolvido debaixo da
lona, por ter características motoras – de movimento – e artísticas, pode
contribuir para a educação dos sentidos e das sensibilidades, proporcionando
uma maior e mais qualificada capacidade criativa. As ações dos educandos
encaixam-se, perfeitamente, em um entendimento de cognição incorporada, ou
no nosso entendimento, o aprender com o corpo, ou melhor, aprender a partir
da corporeidade.
A impressão que tivemos é a de que para ser arte-educador circense, é
necessário apenas que se vivenciem corporalmente as atividades do circo, de
modo que possa reproduzir todo o conhecimento vivenciado corporalmente de
forma mecânica, ou seja, ensinar exatamente como aprendeu. O problema
dessa forma de ensinar é que desprivilegia o principio da individualidade
biológica e a subjetividade dos educandos. O trabalho educativo, dessa forma,
estaria voltado ao puro treinamento técnico instrumental. Não entendemos que
deva ser dessa maneira.
Ser educador, como já dissemos anteriormente,
exige de nós uma reflexão ininterrupta da nossa prática, de modo que
possamos significá-la e constantemente reinventá-la. Para tal significação e
reinvenção, acreditamos que a redução das práticas em fundamentos
empiristas ou intelectualistas não seja o caminho.
Apropriando-nos das ideias de Boaventura de Souza Santos (2007),
entendemos que o conhecimento que subsidia a práxis precisa ser construído a
partir da união dos conhecimentos advindos das experiências corporais e das
reflexões sobre as propostas teóricas das ciências da educação, ou seja, a
partirde uma ecologia de saberes.
Todos aqueles que se propõem a utilizar as artes circenses como
conteúdo de ensino, independente de serem de família circense, ex-alunos de
escolas profissionalizantes para formar artistas, ou educadores licenciados por
graduação acadêmica, precisam compreender que ser educador é, também,
estar constantemente aberto para a aquisição de novos conhecimentos e,
dessa forma, em constante processo de formação.
No livro “Educação não formal e educador social”, (2010), a autora Maria
da Glória Gohn nos fala que, apesar do aumento em quantidade e qualidade de
pesquisas em educação não formal, existem lacunas e desafios que precisam
| 117
ser abordados e solucionados, entre eles: “Formação específica a educadores
a partir da definição de seu papel e atividades a realizar, no que se refere às
formas de conhecer uma dada realidade social, público alvo dos programas
educativos, características dos processos culturais e socioeducativos etc.” (p.
44-45).
Essa observação de Gohn nos faz pensar sobre a possibilidade de
promovermos uma proposta de formação específica para arte educadores que
se propõem a promover intervenções educativas por meio das linguagens
circenses. Cabe-nos, como educadores, e pesquisadores, articularmos
propostas de formação de arte-educadores, estabelecendo diálogo entre as
suas experiências práticas e as bases epistemológicas das ciências da
educação. No entanto, essa proposta depende de outro estudo, aprofundado
em
bases
epistemológicas
que
subsidiem
os
educadores
em
suas
intervenções.
Se observarmos, a partir da perspectiva da Educação Sociocomunitária
que investiga as ações educativas comunitárias e ensaia propostas de
intervenções educativas por meio das diversas linguagens, em constante
diálogo com as comunidades e as teorias das ciências da educação, podemos
sugerir a possibilidade de darmos continuidade a esse trabalho, devolvendo,
para esses arte-educadores, pressupostos que enriqueçam sua formação e
consequentemente seus trabalhos.
Para nós, é evidente o valor dos processos que acontecem debaixo de
uma lona de circo. Mas esse processo pode ser ainda mais valorizado a partir
de uma formação mais qualificada dos educadores, e isso envolve a aquisição
ede conhecimentos, valores pertinentes para o processo de construção de uma
sociedadedesejada.
| 118
Considerações finais
Quando iniciamos essa pesquisa buscávamos encontrar sentido para o
trabalho do educador profissional. Considerando a complexidade do ato de
educar,
dialogamos
com
várias
vozes,
principalmente
com
educadores/formadores da concepção fenomenológica da educação. Essa
caminhada nos possibilitou formular um entendimento provisório sobre o
sentido da educação e das responsabilidades do educador profissional, seja
ele professor ou educador social.
Educação é um processo que visa modificar as estruturas cognitivas e
comportamentais dos educandos por meio de apreensão e construção de
conhecimentos, preparando-os para viver e conviver colaborativamente e
eticamente na sociedade. E, educador profissional é aquele que, a partir de um
entendimento do mundo e do homem, organiza intencionalmente ações a
serem experienciadas pelos educandos e por ele mesmo, com o objetivo de
formar a capacidade leitora do mundo e das experiências, possibilitando
modificar e formular comportamentos socialmente aceitáveis dentro de sua
cultura. Nesse sentido educador e educando formam uma ecologia em que
ambos são educados.
Aos educadores profissionais é delegada a responsabilidade de preparar
os educandos para que possam enfrentar os desafios existentes na
comunidade e na sociedade em que vivem. Nesse contexto, os processos
educativos têm como principal objetivo capacitar – por meio de conhecimentos
apreendidos e construídos – para a autonomia e para a emancipação.
É por meio dos conhecimentos – apreendidos e construídos – que
podemos avaliar as possibilidades de ações a serem tomadas nas diversas
situações.
Resumindo, entendemos educação como um processo endereçado à
formação do homem por meio de apreensão de conhecimentos existentes e
construção comunitária e social de novos conhecimentos.
Um dos maiores equívocos cometidos pelos educadores profissionais,
no nosso entendimento, está em separar o processo de apreensão e
| 119
construçãodoconhecimento em: conhecimento sensível – que acontece a partir
das sensações e percepções do mundo, e conhecimento inteligível, que
acontece a partir dos processos de pensamento. Nessa pesquisa, baseamonos na concepção fenomenológica da educação que entende que não há
somente conhecimento sensível ou conhecimento inteligível, pois ambos são
dialeticamente interligados, não havendo a possibilidade da existência de um
sem o outro. Para a concepção fenomenológica da educação, existem sentidos
que circulam nas diversas culturas, e esses sentidos devem ser lidos,
interpretados e compreendidos para que sejam ressignificados e transmitidos
às gerações seguintes por meios das diversas linguagens. Nesse contexto, a
proposta é a de que devemos desenvolver os sentidos e a sensibilidade que
são habilidades fundamentais para que possamos realizar ações criativas.
Por esse motivo, fundamentamo-nos no paradigma da corporeidade –
corpo que sente e aprende – e buscamos conhecer uma comunidade
educativa, em que acontecem experiências de aprendizagem artísticas e
corporais por meio das linguagens circenses, uma comunidade circense.
As linguagens circenses, que podemos entender como um misto de
motricidade humana e arte são atividades que permitem aos educandos a
possibilidade de desenvolver sua sensibilidade e criatividade por meio de
movimentos corporais. Os educadores que se apropriam dessas linguagens
para
proporcionar
experiências
de
aprendizagens,
contribuem
significativamente com o desenvolvimento da corporeidade.
A partir de diálogos com os arte-educadores que trabalham debaixo da
lona, mais precisamente no Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo, e de
observações de suas práticas educativas, nos foi possível perceber a riqueza
de possibilidades de construção e apreensão do conhecimento por meio de
vivências corporais, e a importância do trabalho desses educadores na
formação dos educandos.
Nessa relação de observações e diálogos, percebemos como são
realizados os processos educativos desenvolvidos pelos arte-educadores, e os
sentidos que fundamentam essa prática. Comparando com a educação formal
– escolar – podemos perceber algo curioso e importante: não existe
planejamento por meio de unidade didática – o que vai ser desenvolvido em
| 120
cada aula – ou planejamento semanal, ou anual. O aprendizado acontece sem
acompanhamento sistematizado, é considerado apenas as percepções dos
arte-educadores em relação aos conteúdos que devem ser abordados para
novo aprendizado ou para superação das dificuldades.
Essa pesquisa nos mostrou que educação não se reduz a um único
momento, um único ambiente, ou uma única linguagem. Todos nós somos
educadores, profissionais ou não, e a todo o momento estamos realizando
processos educativos, sejam eles intencionais ou não.
As propostas de intervenções da Educação Sociocomunitária, não
pretendem substituir a educação escolar, pois não existe um método ou uma
abordagem ideal para os processos educativos, mas sim modos diferentes de
realizar as intervenções. Nesse sentido, os Educadores sociocomunitários
parte do princípio de que as comunidades possuem seus próprios
conhecimentos, construídos a partir de suas experiências, no entanto, muitas
vezes não percebem as riquezas – conhecimentos – de que dispõem.
A
responsabilidade desse educador, nesse contexto, é de organizar e
sistematizar os conhecimentos já existentes na comunidade, e devolvê-los
como possibilidades de superação de suas dificuldades, ou para viver melhor.
Esse é o sentido de ser interlocutor e intérprete.
O educador sociocomunitário não é um “catequizador”, que institui um
conhecimento em que ele acredita ser pertinente; mas sim, antes de tudo, um
organizador de experiências de aprendizagem que desperta nos educandos o
que eles já sabem, mas que com o tempo deixaram de perceber.
Nessa relação de construção por meio do diálogo, o educador precisa
participar de uma forma qualificada e, essa qualidade depende de uma
formação que o capacite para as suas responsabilidades. Entendemos que o
educador não deve impor suas convicções de maneira manipuladora ou
autoritária, mas, sim, precisa conquistar o respeito por meio de seus
conhecimentos que legitimam a sua autoridade.
Argumentamos, com essas considerações, que é fundamental para o
educador
profissional
–
educador
social,
arte-educador,
educador
sociocomunitário, professor –, passar por processos de formação permanente.
| 121
Não é aceitável que o profissional, seja de qualquer área de formação,
aprenda um conjunto de conhecimentos durante um ou dois anos de carreira e
reproduza a mesma forma de atuação nos anos posteriores. E, isso serve
também para o arte-educador circense. Dessa forma, apontamos para a
necessidade de fundamentarmos propostas de formação de educadores
profissionais que os capacite para atuarem nos vários lugares onde a educação
possa ser desenvolvida.
Essa pesquisa foi o passo inicial para entendermos especificamente o
universo circense. Os educadores com que dialogamos contribuíram
significativamente para um maior e melhor entendimento sobre as práticas
educativas que acontecem debaixo da lona. Agora, precisamos devolvê-los
para os arte-educadores, para que possam realizar suas ações educativas de
forma mais sensível, consciente, criativa, dialógica etc.
Entendemos que esse trabalho de pesquisa abre espaço para um
trabalho posterior, com novas fundamentações, e isso nos exigirá um tempo
maior. Mas, temos a convicção de que existe essa possibilidade e de que sua
realização possa ser o fundamental para os educadores que trabalham debaixo
daslonas.
| 122
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Eglon Pinto da Fonseca Educação Sociocomunitária