Centro Universitário da Grande Dourados Revista Jurídica UNIGRAN ISSN 1516-7674 Revista Jurídica UNIGRAN Dourados v.14 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. n.27 p. 1- 258 Jan./Jun. 2012 1 Revista Jurídica UNIGRAN / Centro Universitário da Grande Dourados. v.14, n.27 (1999 ). Dourados: UNIGRAN, 2012. Publicação Semestral ISSN 1516-7674 - impresso ISSN 21769184 - on line 1. Direito - Periódicos. I. Título. CDU-34 Solicita-se permuta. On demande l´échange. Wir bitten um Austausch. Si richiede la scambio. Pídese canje. We ask for Exchange. Editora UNIGRAN Rua Balbina de Matos, 2121 - Campus UNIGRAN 79.824-900 - Dourados - MS Fone: 67 3411-4141 - Fax: 67 3422-2267 E-Mail: [email protected] www.unigran.br/revistas 2012 2 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Editorial A Revista Jurídica UNIGRAN - ISSN 1516-7674 (Impressa) e ISSN 21769184 (On line), tem por objetivo divulgar o resultado de pesquisas de docentes e discentes da Faculdade de Direito do Centro Universitário da Grande Dourados, e de outras instituições, no Brasil e no exterior, que mantenham cursos de graduação e pós-graduação em Direito. O conteúdo da Revista é de artigos científicos, resenhas críticas, jurisprudências comentadas e informações referentes à Ciência do Direito. Público-alvo A Revista Jurídica UNIGRAN é voltada para professores, pesquisadores, estudantes, advogados, magistrados, promotores, procuradores e defensores públicos. Trata-se de um público abrangente, mas que compartilha a busca constante por aprofundamento e atualização. Meio e periodicidade A Revista Jurídica UNIGRAN é publicada com periodicidade semestral, na forma impressa e em meio eletrônico - pelo site www.unigran.br/revistajuridica, com acesso público e gratuito. Linha editorial Direito, Estado e Sociedade. Responsabilidade Editorial Editor responsável: Ana Cristina Baruffi - UNIGRAN Responsabilidade Acadêmica e Científica O conteúdo dos artigos publicados na Revista Jurídica Unigran - inclusive quanto à sua veracidade, exatidão e atualização das informações e métodos de pesquisa - é de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es). As opiniões e conclusões expressas não representam posições da Faculdade de Direito ou da UNIGRAN. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 3 REVISTA JURÍDICA UNIGRAN Dourados - Mato Grosso do Sul Rosa Maria D’Amato De Déa Reitora Terezinha Bazé de Lima Pró-Reitora de Ensino e Extensão Tânia Rejane de Souza Pró-Reitora de Administração Adriana Mestriner Pró-Reitoria de Pesquisa Noemi Mendes Siqueira Ferrigolo Diretora da Faculdade de Direito Joe Graeff Filho Coordenador do Curso de Direito Conselho Editorial Institucional Adilson Josemar Puhl Carlos Ismar Baraldi Gassen Zaki Gebara Joe Graeff Filho Noemi Mendes Siqueira Ferrigolo Ricardo Saab Palieraqui Nacional Aristides Cimadon – UNOESC Celso Hiroshi Iocohama - UNIPAR Cristina Grobério Pazá - UFES Egon Bockmann Moreira - UFPR Helder Baruffi - UFGD José Carlos de Oliveira Robaldo – UFMS José Geraldo de Souza Júnior – UnB José Gomes da Silva Loreci Gottschalk Nolasco – UEMS Valério de Oliveira Mazzuoli – UFMT Wanise Cabral Silva- UFF Editor Responsável Ana Cristina Baruffi - UNIGRAN Capa e Diagramação D.D.I Departamento de Diagramação/ Impressão Unigran 4 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Sumário APRESENTAÇÃO.................................................................................................07 O PROPORCIONAL E O RAZOÁVEL: A CONTRIBUIÇÃO PIONEIRA DE RUI BARBOSA AO ESTUDO DO CRITÉRIO DA NECESSIDADE E DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE .................................................................................................... 09 Hidemberg Alves da Frota ASPECTOS BASILARES DA DEONTOLOGIA JURÍDICA COMO CIÊNCIA DO COMPORTAMENTO HUMANO ...........................................................................53 Nadia Sater Gebara A RELEVÂNCIA DOS MANDAMENTOS NUCLEARES DO DIREITO AGROAMBIENTAL NA SOCIEDADE DE RISCO .................................................................................67 Thaisa Maira Rodrigues Held Tiago Resende Botelho O ÉBRIO E O DOLO EVENTUAL .........................................................................85 Felipe Cazuo Azuma FATOR PREVIDENCIÁRIO DE PREVENÇÃO - FAP CONSTITUCIONAL, MAS VICIADO DE ILEGALIDADE? .......................................99 Ana Paula Vaskevicz Valkiria Briancini A PROBLEMÁTICA ACERCA DA JORNADA DE TRABALHO NAS USINAS DE AÇÚCAR E ÁLCOOL DO ESTADO DO PARANÁ ...............................................................111 Angélica Guerra Raphael Prof. Me. Luís Otávio de Oliveira Goulart Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 5 LITISPENDÊNCIA E CONEXÃO NO PROCESSO COLETIVO BRASILEIRO ............157 Marcelo Henrique Matos Oliveira ESTÁGIO E SUA RELEVÂNCIA PARA O BACHAREL DE DIREITO .........................183 Taciana Mara Corrêa Maia Maria Cecília Gonçalves Silveira HOMOCONJUGABILIDADE & JUSTIÇA: DA POSSIBILIDADE JURÍDICA DO CASAMENTO HOMOAFETIVO À IGUALDADE VIRTUAL? ..................................203 Aparecido Januário Júnior Fábio Jun Capucho José Manfroi A EQUIPARAÇÃO DO MENOR SOB GUARDA JUDICIAL A FILHO E O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DE VONTADE NOS CONTRATOS DE SEGURO ............................221 Vinicius de Almeida Gonçalves COMENTÁRIO A ACÓRDÃO ...........................................................................237 Paulo César Nunes da Silva RESENHA ........................................................................................................251 Ana Cristina Baruffi NORMAS GERAIS PARA A PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS ..................................255 6 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. APRESENTAÇÃO Caro leitor, Um novo ano. Um novo encontro. Uma nova conversa. Mas não qualquer conversa. Pois como assinala René Descartes, “A leitura de todos bons livros é como uma conversa com os melhores espíritos dos séculos passados, que foram seus autores, e é uma conversa estudada, na qual eles nos revelam seus melhores pensamentos” (Discurso do Método). Na caminhada de divulgação do pensamento jurídico, o ano de 2012 se destaca por trazer mudanças importantes para a Revista Jurídica da Unigran. Na busca diária de fortalecer sua linha e política editorial, para se firmar ainda mais no espaço de produção científica e acadêmica na área jurídica, estabelece uma maior rigidez qualitativa, ao mesmo tempo em que assegura a observação cada vez mais rigorosa e consistente do processo de avaliação double blind peer review, contando com consultores permanentes e ad hoc de diversas instituições de ensino nacionais, com titulação acadêmica e notável saber jurídico. Este número traz contribuições significativas e debates atuais com o objetivo de provocação para novos estudos – que esperamos, em breve, disponibilizar neste espaço – notadamente no campo do direito constitucional, ambiental, penal, trabalhista, processual e civil em um rol de ensaios e artigos que abordam matérias que envolvem o Direito e a Cidadania. Traz artigos de autores locais e de outras unidades da federação, atendendo ao critério de exogenia. Outra inovação é a inauguração de duas novas seções. Uma para a publicação de Comentários de Acórdãos, que abordará, através de análise Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 7 científica, a posição dos Tribunais brasileiros, e outra para publicação de resenhas da literatura jurídica. Este número conta com uma obra indispensável na biblioteca, cuja leitura remete-nos ao Direito Romano Clássico para apresentar como se dava a legitimação processual coletiva. O sucesso de mais um volume é resultado de um trabalho conjunto. Agradecemos especialmente aos autores, aos pareceristas e à toda equipe responsável pela editoração da Revista. Boa leitura, E até o próximo encontro! Me. Ana Cristina BARUFFI Editora Responsável pela Revista Jurídica da Unigran 8 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. O PROPORCIONAL E O RAZOÁVEL: A CONTRIBUIÇÃO PIONEIRA DE RUI BARBOSA AO ESTUDO DO CRITÉRIO DA NECESSIDADE E DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE Hidemberg Alves da FROTA1 Resumo: O presente artigo almeja demonstrar a pertinência de pesquisa realizada por Rui Barbosa na década de 1910 para a apreciação de polêmicas atuais envolvendo os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, além de correlacionar tal estudo do jurista baiano com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal concernente à inconstitucionalidade de leis a imporem limitações geográficas à fixação de novas drogarias e farmácias. Palavras-chaves: proporcionalidade, necessidade e razoabilidade; Rui Barbosa; liberdade de iniciativa econômica, de empresa e de concorrência. Abstract: This paper aims to demonstrate the relevance of research carried out by Rui Barbosa in the 1910s for the assessment of current controversies involving the principles of reasonableness and proportionality and correlates this study of Bahian lawyer with the jurisprudence of the Supreme Court concerning the constitutionality of laws to impose geographical limitations to the establishment of new drugstores and pharmacies. Keywords: proportionality, necessity and reasonableness; Rui Barbosa; freedom of economic initiative, free enterprise and free competition. 1. INTRODUÇÃO O presente artigo consubstancia homenagem a Rui Barbosa, ao demonstrar o pioneirismo e a atualidade de pesquisa realizada pelo ilustre jurista 1 Agente Técnico-Jurídico do Ministério Público do Estado do Amazonas. Pesquisador em Direito. E-mail: [email protected]. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 9 baiano corporificada no memorial forense As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais. Pioneirismo, porque, décadas antes dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (bem como do subprincípio da necessidade) ingressarem na pauta do debate jurídico brasileiro, o ideólogo da Constituição de 1891, no exercício do seu múnus advocatício, consultava precedentes judiciais anglo-saxônicos do final do século XIX e do início do século XX relativos à razoabilidade da interdição da liberdade comercial e à necessidade dessa interveniência na liberdade de empresa não ultrapassar a fronteira do necessário. Atualidade, já que, decorridas quase uma centúria após o advento de tal estudo, viceja na dogmática pátria vigorosa controvérsia acerca dos pontos de convergência entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. A par disso, tal contributo de Rui Barbosa às letras jurídicas nacionais serve de ensejo para se analisarem precedentes do Supremo Tribunal Federal relativos à inconstitucionalidade de leis a imporem limitações geográficas à fixação de novas drogarias e farmácias. Em suma, a propósito do resgate histórico dessa parcela do legado intelectual ruiano, buscou-se trazer à tona determinadas questões contemporâneas relacionadas à seara do proporcional, do razoável e do necessário, bem como da interdição da liberdade empresarial e de concorrência. 2. O PROPORCIONAL E O RAZOÁVEL: A ATUALIDADE DO TEMA NA DOUTRINA BRASILEIRA 2.1 A diversidade temática No Brasil, mostra-se expressiva a quantidade de trabalhos monográficos publicados em formato de livros-texto e dedicados especificamente ao princípio da proporcionalidade, elenco a abranger as mais diversas áreas e temáticas jurídicas. Exemplos: (a) Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito. A incidência do princípio da proporcionalidade no controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos 10 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. fundamentais2, no controle dos atos legislativos3, na ponderação racional ante a colisão de direitos fundamentais4, na interpretação constitucional5 e na quebra do sigilo bancário6. O princípio da proporcionalidade na Teoria Geral dos Direitos Fundamentais7 e no Estado Democrático de Direito8, bem como na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal9. O significado e a aplicação prática do princípio da proporcionalidade10. O princípio da proporcionalidade fundamentado na concepção grega de justiça11. O princípio da proporcionalidade como princípio jurídico12. A crítica ao princípio da proporcionalidade alicerçada no pensamento do filósofo alemão Jürgen Habermas13. (b) Direito Administrativo. No controle do ato administrativo14 e na Principiologia do Direito Administrativo15. (c) Direito Ambiental. No âmbito do direito ao “meio ambiente equilibrado” 16 . BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3. ed. Brasília, DF: Brasília Jurídica, 2003, p. 157-184. 3 PEDRA, Anderson Sant’Ana. O controle da proporcionalidade dos atos legislativos: a hermenêutica constitucional como instrumento. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 189-272. 4 GAVIÃO FILHO, Anizio. Colisão de direitos fundamentais, argumentação e ponderação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 239-314. 5 FIGUEIREDO, Sylvia Marlene de Castro. A interpretação constitucional e o princípio da proporcionalidade. São Paulo: RCS, 2005, p. 218-230. 6 ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Máxima da proporcionalidade aplicada: a quebra do sigilo bancário pelo Fisco e o direito fundamental à vida privada. Florianópolis: Momento Atual, 2004, p. 105-110. 7 CARDOSO, Henrique Ribeiro. Proporcionalidade e argumentação: a teoria de Robert Alexy e seus pressupostos filosóficos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 227 et seq. 8 CHADE, Rezek Neto. O princípio da proporcionalidade no Estado Democrático de Direito. Franca: Lemos & Cruz, 2004, p. 53-80. 9 SANTOS, Gustavo Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: limites e possibilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 157-200. 10 ARAÚJO, Francisco Fernandes de. Princípio da proporcionalidade: significado e aplicação prática. Campinas: Copola, 2002, passim. 11 SANTOS, Jarbas Luiz dos. Princípio da proporcionalidade: concepção grega de justiça como fundamento filosófico; implicações. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 41-54. 12 BARROS, Wellington Pacheco; BARROS, Wellington Gabriel Zuchetto. A proporcionalidade como princípio de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, passim. 13 FERRAZ, Leonardo de Araújo. Da teoria à crítica: princípio da proporcionalidade: uma visão com base nas doutrinas de Robert Alexy e Jürgen Habermas. Belo Horizonte: Dictum, 2009, p. 143-180. 14 CHAIB, Liana. O princípio da proporcionalidade no controle do ato administrativo. São Paulo: LTr, 2008, p. 87-95. 15 FROTA, Hidemberg Alves da. O princípio tridimensional da proporcionalidade no Direito Administrativo: um estudo à luz da Principiologia do Direito Constitucional e Administrativo, bem como da jurisprudência brasileira e estrangeira. Rio de Janeiro: GZ, 2009, p. 17-278. 16 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. Curitiba: Juruá, 2006, p. 145. 2 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 11 (d) Direito Processual Civil. Na seara do processo civil em geral17, do abuso do direito processual18, da tutela constitucional e dos resultados do processo civil19, assim como das tutelas de urgência20. (e) Direito Penal e Direito Processual Penal. Seja no Direito Penal em geral21, no controle de normas penais22 e no controle dos tipos penais incriminadores23, seja no Direito Processual Penal em geral24, na extinção antecipada da sanção penal25, na aferição de exceções à inadmissibilidade de provas ilícitas no processo penal26, na aplicação e execução da pena27, em sede de medidas cautelares pessoais e de súmulas vinculantes28 de cunho processual penal, na ponderação de interesses em matéria probatória processual penal29, além de circunstâncias em que há colisão de normas jurídicas de natureza penal e/ou processual penal30. (f) Direito Tributário. O princípio da proporcionalidade em diálogo com o princípio da capacidade tributária e a liberdade de planejamento tributário, bem assim com as sanções tributárias e as contribuições de melhoria no domínio econômico31. A par disso, a questão da proporcionalidade das multas tributárias32. AGUIRRE, José Eduardo Suppioni de. Aplicação do princípio da proporcionalidade no processo civil. Porto Alegre: Fabris, 2005, p. 149-244; GÓES, Gisele Santos Fernandes. Princípio da proporcionalidade no processo civil: o poder de criatividade do juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 103-182. 18 ARAÚJO, Francisco Fernandes de. O abuso do direito processual e o princípio da proporcionalidade na execução civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 139-320. 19 BONICIO, Marcelo José Magalhães. Proporcionalidade e processo: a garantia constitucional da proporcionalidade, a legitimação do processo civil e o controle das decisões judiciais. São Paulo: Atlas, 2006, p. 53-214. (Coleção Atlas de Processo Civil) 20 MESQUITA, Eduardo Melo de. O princípio da proporcionalidade e as tutelas de urgência. Curitiba: Juruá, 2006, p. 258-292. (Biblioteca de Estudos em Homenagem ao Professor Arruda Alvim) 21 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: RT, 2003, p. 82-206. 22 FELDENS, Luciano. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 155-215. 23 CORREIA, Belize Câmara. O controle de constitucionalidade dos tipos penais incriminadores à luz da proporcionalidade. Porto Alegre: Fabris, 2009, p. 125-164. 24 D’URSO, Flavia. Princípio constitucional da proporcionalidade no processo penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 79-139. 25 GOMES, Marcus Alan de Melo. Princípio da proporcionalidade e extinção antecipada da pena. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 199-203. 26 ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Provas ilícitas e proporcionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 199-287. 27 ESSADO, Tiago Cintra. O princípio da proporcionalidade no Direito Penal. Porto Alegre: Fabris, 2008, p. 91-97. 28 PACHECO, Denilson Feitoza. O princípio da proporcionalidade no direito processual brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 245-274. 29 PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa do. A ponderação de interesses em matéria de prova no processo penal. São Paulo: IBCCRIM, 2006, p. 157-228. 30 AMARAL, Thiago Bottino do. Ponderação de normas em matéria penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 123-159. 31 PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000, p. 101-186. 32 OVALLE, Claudenei Leão. Os ilícitos contra a ordem tributária e a proporcionalidade das multas aplicáveis. Leme: Mizuno, 2009, p. 38-41. 17 12 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Ademais, há obras monográficas que realizam a análise conjugada dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, quer no Direito do Consumidor 33, no Direito Administrativo 34, no Direito Tributário 35 e na Teoria Geral do Direito 36, quer no campo dos conflitos entre princípios constitucionais37. Mencionem-se, ainda, trabalhos monográficos que estudam ambos os princípios de forma ampla e diferenciada 38. Também cumpre recordar as monografias jurídicas direcionadas ao tema que vislumbram os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade como um princípio jurídico único (de acordo com tal entendimento, haveria sinonímia entre os termos razoabilidade e proporcionalidade), ao examiná-los no âmbito do Direito Processual Civil39, do Direito de Trânsito 40, do ordenamento jurídico pátrio e estrangeiro 41 e da discricionariedade administrativa 42. Há, ainda, obra de Nohara, centrada no controle da razoabilidade do ato administrativo 43, deixando em segundo plano as questões peculiares ao princípio da proporcionalidade. 2.2 Os elementos do princípio da proporcionalidade Na dogmática brasileira atual, disseminou-se a principal concepção alemã de princípio da proporcionalidade, ancorada no eixo adequação-necessidadeproporcionalidade em sentido estrito: FERREIRA NETO, Manoel Aureliano. A aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade nas relações de consumo: decisões não fundamentadas, que não traduzem os critérios jurídicos na aplicação desses princípios. São Luís: Fiuza, 2008, p. 105-108. 34 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 27-547. (Coleção Temas de Direito Administrativo, v. 16) 35 CRETTON, Ricardo Aziz. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e sua aplicação no Direito Tributário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 103-148. 36 BRANCO, Luiz Carlos. Equidade, proporcionalidade e razoabilidade: doutrina e jurisprudência. São Paulo: RCS, 2006, p. 131-150. 37 CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Colisões entre princípios constitucionais: razoabilidade, proporcionalidade e argumentação jurídica. Curitiba: Juruá, 2009, p. 189-266. 38 SILVA BRAGA, Valeschka e. Princípios da proporcionalidade & razoabilidade. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008, passim; CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 195-235. 39 QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade das normas e sua repercussão no processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 116. 40 FERNANDES, Daniel André. Os princípios da razoabilidade e da ampla defesa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 41-44, 109-123. 41 PUHL, Adilson Josemar. Princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade. São Paulo: Pillares, 2005, p. 23-196. 42 CALCINI, Fábio Pallaretti. O princípio da razoabilidade: um limite à discricionariedade administrativa. Campinas: Millennium, 2005, p. 147, 155-169. 43 NOHARA, Irene Patrícia. Limites à razoabilidade nos atos administrativos. São Paulo: Atlas, 2006, p. 153-201. 33 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 13 (a) No elemento da adequação, perquire-se se, por intermédio do ato jurídico escolhido, pode-se (1) alcançar determinada finalidade (realizando-a) ou (2) fomentá-la (nesse caso, não se pretende contemplar in totum o fim almejado, mas tão somente promovê-lo)44. (b) No elemento da necessidade, afere-se se o ato jurídico a limitar dado direito fundamental é, de fato, imprescindível, isto é, verifica-se se a finalidade incumbida àquele ato jurídico pode ser alcançada ou promovida por ato jurídico alternativo, o qual vise ao mesmo propósito, procedendo com a mesma intensidade e, ao mesmo tempo, restrinja em menor escala o direito fundamental afetado45. (c) No elemento da proporcionalidade em sentido estrito, efetua-se sopesamento ou ponderação, ao se cotejar, nas palavras de Luís Virgílio Afonso da Silva, “a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido”46 com “a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva”47. O magistério de Luís Virgílio Afonso da Silva acolhe tal concepção trina do princípio da proporcionalidade com as seguintes ressalvas: (a) Embora prefira se referir àquele como regra da proporcionalidade, porquanto, à luz da classificação de princípios e regras de Robert Alexy — explica Afonso da Silva —, “não pode ser considerado um princípio [...], pois não tem como produzir efeitos em variadas medidas”48, pontua o jurista paulista que a SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, v. 91, n. 798, abr. 2002, p. 36. Ibid., p. 37. 46 Ibid., p. 40, grifo nosso. 47 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 48 Ibid., p. 25. Trata-se de posicionamento assim rebatido por Willis Santiago Guerra Filho: “Dessa circunstância, de ter seu conteúdo formado por subprincípios, passível de subsumirem fato e questões jurídicas, não se pode, contudo, vir a considerar o princípio da proporcionalidade mera regra, ao invés de verdadeiro princípio, como recentemente se afirmou entre nós, supostamente com apoio em Alexy, pois não poderia ser uma regra o princípio que é a própria expressão da peculiaridade maior deste último tipo de norma em relação à primeira, o tipo mais comum de normas jurídicas, peculiaridade esta que Ronald Dworkin refere como a ‘dimensão de peso’ (dimension of weight) dos princípios, e Alexy como a ponderação (Abwägung) – justamente o que se contrapõe à subsunção nas regras. E também, caso a norma que consagra o princípio da proporcionalidade não fosse verdadeiramente um princípio, mas sim uma regra, não poderíamos considerá-la inerente ao regime e princípios adotados na Constituição brasileira de 1988, deduzindo-a do sistema constitucional vigente aqui, como em várias outras nações, da ideia de Estado democrático de Direito, posto que não há regra jurídica que seja implícita, mas tão somente os direitos (e garantias) fundamentais, consagrados em princípios igualmente fundamentais – ou, mesmo, ‘fundantes’ –, a exemplo deste princípio de proporcionalidade, objeto da presente exposição.” Cf. O princípio da proporcionalidade em Direito constitucional e em Direito privado no Brasil. In: ALVIM, Arruda; CÉSAR, Joaquim Portes de Cerqueira; ROSAS, Roberto (Org.). Aspectos controvertidos do Novo Código Civil: escritos em homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves. São Paulo: RT, 2003. p. 583-587, grifo nosso, transcrição adaptada à nova ortografia do português brasileiro. 44 45 14 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. locução princípio da proporcionalidade se incorporou à prática jurídica brasileira49, reconhece a “forte carga semântica”50 da expressão e a polissemia em torno do conceito de princípio jurídico51. (b) Por outro lado, o renomado constitucionalista uspiano rechaça a sinonímia entre o princípio da proporcionalidade e o princípio da razoabilidade, ante a formulação alemã daquela e a origem anglo-saxônica desta, bem como a diferente estrutura de ambos os princípios: enquanto o princípio da proporcionalidade se ancoraria nos elementos da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, o princípio da razoabilidade se adstringiria ao elemento da adequação: A exigência de razoabilidade, baseada no devido processo legal substancial, traduz-se na exigência de “compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a aferição da legitimidade dos fins”. Barroso chama a primeira exigência – compatibilidade entre meio e fim – de razoabilidade interna, e a segunda – legitimidade dos fins –, de razoabilidade externa. Essa configuração da regra da proporcionalidade faz com que fique nítida sua não identidade com a regra da proporcionalidade. O motivo é bastante simples: o conceito de razoabilidade, na forma como exposto, corresponde apenas à primeira das três sub-regras da proporcionalidade, isto é, apenas à exigência de adequação. A regra da proporcionalidade é, portanto, mais ampla do que a regra da razoabilidade, pois não se esgota no exame da compatibilidade entre meios e fins, conforme ficará claro mais adiante.52 2.3 O debate sobre as distinções e semelhanças entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade Todavia, na doutrina brasileira grassa a diversidade de entendimentos quanto às diferenças e às semelhanças entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. Op. cit., p. 25. Ibid., loc. cit. 51 Ibid., loc. cit. 52 Ibid., p. 32-33, grifo do autor, transcrição adaptada à nova ortografia do português brasileiro. 49 50 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 15 Endossam as distinções entre tais princípios jurídicos ressaltadas por Afonso da Silva as monografias de Luciano Feldens53, Carolina Medeiros Bahia54 e José Sérgio da Silva Cristóvam55. Nesse sentido, averbamos: Embora o princípio da razoabilidade e o princípio tridimensional da proporcionalidade acolhidos no Brasil tenham raízes históricas diversas (o primeiro, estadunidense, e o segundo, alemã), no Direito brasileiro, o princípio tridimensional da proporcionalidade fagocita, em sua dimensão da adequação, o princípio da razoabilidade. Por isso, no Direito pátrio, aquele se torna uma evolução deste. Do ponto de vista histórico, na doutrina e na jurisprudência brasileiras, a disseminação do (e invocação recorrente ao) princípio da razoabilidade (a partir meados do século XX, mormente em sua segunda metade) antecede ao princípio tridimensional da proporcionalidade (finais do século XX e, sobretudo, década de 2000), ainda que usual, na segunda metade do século XX, a remissão ao princípio da proporcionalidade como sinônimo do princípio da razoabilidade. (Independente de haver sinonímia entre tais princípios e independente do princípio tridimensional da proporcionalidade constituir, no Direito pátrio, aprimoramento do princípio da razoabilidade, a questão central, na prática jurídica, diz respeito à necessidade de existir criteriosa aplicação de ambas as normas, bem como dos princípios da juridicidade e da dignidade da pessoa humana.)56 Consoante preconiza Marcus Alan de Melo Gomes57, o proporcional é razoável, mas o razoável nem sempre é proporcional — ponderação também feita por Mariângela Gama de Magalhães Gomes58. Suzana de Toledo Barros vislumbra o princípio da razoabilidade forjado na jurisprudência dos Estados Unidos da América como expressão do princípio FELDENS, Luciano. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 160-161. 54 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. Curitiba: Juruá, 2006, p. 79. 55 CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Colisões entre princípios constitucionais: razoabilidade, proporcionalidade e argumentação jurídica. Curitiba: Juruá, 2009, p. 196. 56 FROTA, Hidemberg Alves da. O princípio tridimensional da proporcionalidade no Direito Administrativo: um estudo à luz da Principiologia do Direito Constitucional e Administrativo, bem como da jurisprudência brasileira e estrangeira. Rio de Janeiro: GZ, 2009, p. 23. 57 GOMES, Marcus Alan de Melo. Princípio da proporcionalidade e extinção antecipada da pena. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 149. 58 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: RT, 2003, p. 38. 53 16 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. da proporcionalidade na ordem jurídica estadunidense59. Também notando sinonímia entre ambos os princípios, Eduardo Melo de Mesquita consigna: “Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade ou razoabilidade em sentido estrito).”60 Atribuem ao princípio da razoabilidade o mesmo conteúdo do princípio tridimensional da proporcionalidade os magistérios de Daniel André Fernandes61 e Adilson Josemar Puhl62. Igualmente compartilham do posicionamento favorável à sinonímia entre os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade Raphael Augusto Sofiati de Queiroz63, Anderson Sant´Ana Pedra64 e Celso Antônio Bandeira de Mello65. Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o princípio da proporcionalidade é uma faceta do princípio da razoabilidade66. Conforme Irene Patrícia Nohara, “por mais que se aponte a utilização do termo proporcionalidade de forma diferenciada, sua identificação se pauta no juízo de razoabilidade, e salvo a diferenciação quanto à nomenclatura e à identificação dos elementos, que não é pacífica, os dois conceitos”67 — infere — “acabam se prestando ao mesmo objetivo de controle das atividades legislativa e executiva para que não haja restrições excessivas aos direitos dos cidadãos”68. Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos compartilham do entendimento de que, apesar “da origem e do desenvolvimento diversos”69, 59 BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3. ed. Brasília, DF: Brasília Jurídica, 2003, p. 59-70. 60 MESQUITA, Eduardo Melo de. O princípio da proporcionalidade e as tutelas de urgência. Curitiba: Juruá, 2006, p. 68. (Biblioteca de Estudos em Homenagem ao Professor Arruda Alvim) 61 FERNANDES, Daniel André. Os princípios da razoabilidade e da ampla defesa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 45. 62 PUHL, Adilson Josemar. Princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade. São Paulo: Pillares, 2005, p. 106-115. 63 QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade das normas e sua repercussão no processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 46. 64 PEDRA, Anderson Sant’Ana. O controle da proporcionalidade dos atos legislativos: a hermenêutica constitucional como instrumento. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 209. 65 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 101. 66 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 76. 67 NOHARA, Irene Patrícia. Limites à razoabilidade nos atos administrativos. São Paulo: Atlas, 2006, p. 153-96, grifos nossos e da autora. 68 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 69 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio (Org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 302, grifo nosso. (Coleção Teoria & Direito Público, v. 2) Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 17 ambos os princípios “abrigam os mesmos valores subjacentes: racionalidade, justiça, medida adequada, senso comum, rejeição aos atos arbitrários ou caprichosos”70, motivo por que “razoabilidade e proporcionalidade são conceitos próximos o suficiente para serem intercambiáveis”71. Na Ciência do Direito Administrativo, José Roberto Pimenta Oliveira esposa juízo próprio sobre as distinções entre ambos os princípios: consoante a construção planteada por Oliveira, enquanto o princípio da razoabilidade constitui “mandato de otimização, exigindo seu conteúdo jurídico a proscrição de condutas axiologicamente intoleráveis, irrazoáveis ou arbitrárias, no desempenho da função administrativa, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas pertinentes”72 — obtempera — “a cada caso em que opera sua incidência na atividade administrativa”73, o princípio da proporcionalidade “procedimentaliza ou racionaliza os contornos da razoabilidade”74, ao delinear como são aplicados “princípios e regras do regime jurídico-administrativo”75 e como são “ponderados os interesses e valores, presentes no processo de atualização do direito, instrumentalizando e potencializando o controle intersubjetivo”76. Já na Teoria Geral do Direito, Humberto Ávila77 igualmente formula entendimento próprio: ao contrário do princípio da proporcionalidade, o princípio da razoabilidade não se refere à relação de causalidade entre meio e fim nem ao “entrecruzamento horizontal de princípios”78 (ausente, pois, “espaço para afirmar que uma ação promove a realização de um estado de coisas”79), e sim ao “dever de harmonização do Direito com suas condições externas (dever de congruência)”80, a exigir “a relação das normas com suas condições externas de aplicação, quer Ibid., loc. cit., grifo nosso. Ibid., loc. cit., grifos nossos e dos autores. 72 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 544. (Coleção Temas de Direito Administrativo, v. 16) 73 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 74 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 75 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 76 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 77 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 110111. 78 Ibid., p. 110, grifo nosso. 79 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 80 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 70 71 18 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. demandando um suporte empírico existente para a adoção de uma medida, quer exigindo uma relação congruente entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada”81. Luiz Carlos Branco, conquanto estude em separado os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, vincula ambos aos subprincípios da adequação e da necessidade (sem versar acerca do subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito)82. Tiago Cintra Essado divisa a razoabilidade “como instrumento para a obtenção de equidade, congruência e equivalência”83 e agasalha a subdivisão do princípio da proporcionalidade nos subprincípios da “adequação (pertinência ou aptidão), necessidade e proporcionalidade em sentido estrito”84. Belize Câmara Correia, partidária da formulação tripartite do princípio da proporcionalidade, abraça a distinção feita por Peter Craig85: o princípio da razoabilidade diz respeito ao contraste entre a medida atacada e a prudência do ser humano comum, ao passo que a proporcionalidade “tem como objetivo aquilatar se existe justificativa no interesse público para que se permita a invasão da esfera individual”86. Na visão de Gustavo Ferreira Santos, inspirado em lição do jurista português Vitalino Canas 87, a razoabilidade consubstancia “teste intermédio de proporcionalidade”88, uma vez que não indaga “a natureza do meio escolhido pelo Estado”89, mas apenas se questiona se o meio elegido foi moderado e prudente. Ibid., loc. cit., grifo nosso. BRANCO, Luiz Carlos. Equidade, proporcionalidade e razoabilidade: doutrina e jurisprudência. São Paulo: RCS, 2006, p. 131-150. 83 ESSADO, Tiago Cintra. O princípio da proporcionalidade no Direito Penal. Porto Alegre: Fabris, 2008, p. 56, grifo do autor, transcrição adaptada à nova ortografia do português brasileiro. 84 Ibid., p. 64. 85 CRAIG, Peter. Unreasonableness and proportionality in UK Law. In: ELLIS, Evelyn. The principle of proportionality in the Laws of Europe. Oxford: Hart, 1999. p. 99-101. 86 CORREIA, Belize Câmara. O controle de constitucionalidade dos tipos penais incriminadores à luz da proporcionalidade. Porto Alegre: Fabris, 2009, p. 63, grifo nosso. 87 CANAS, Vitalino. Proporcionalidade (princípio da). In: DICIONÁRIO JURÍDICO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. Lisboa: 1994, separata do v. 6. p. 57. 88 SANTOS, Gustavo Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: limites e possibilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 130. 89 Ibid., loc. cit. 81 82 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 19 De acordo com Flavia D´Urso, adotar-se o princípio da razoabilidade como sinônimo do princípio da proporcionalidade reduziria a abrangência daquele, ao confiná-lo à seara do devido processo legal90. Gisele Santos Fernandes Góes preleciona que a razoabilidade se exaure no bloqueio ao “inaceitável ou arbitrário”91, diferentemente do proporcional, que agrega a essa função negativa a função positiva de “resguardo na materialização da melhor medida possível dos direitos constitucionais fundamentais”92. O entendimento de que o princípio da razoabilidade se distingue do princípio da proporcionalidade em virtude daquele se limitar à função negativa também é esposado por Chade Rezek Neto93. Segundo Manoel Aureliano Ferreira Neto, enquanto o princípio da razoabilidade “apenas impede a existência de atos irrazoáveis, sem substituir a medida assim considerada”94, o princípio da proporcionalidade “sopesa, na aplicação dos subelementos estruturantes, os princípios em conflito, apontando qual deles deve prevalecer, em face do exame da dimensão do peso de cada um deles”95. Willis Santiago Guerra Filho impinge ao princípio da razoabilidade uma “função negativa”96 (desobedecê-lo “significa ultrapassar irremediavelmente os limites do que as pessoas em geral, de plano, consideram aceitável, em termos jurídicos)”97, e ao princípio da proporcionalidade atribui “uma função positiva [...], na medida em que pretende demarcar aqueles limites, indicando como nos manteremos dentro deles - mesmo quando não parecer, à primeira vista, ‘irrazoável’ ir além”98. D’URSO, Flavia. Princípio constitucional da proporcionalidade no processo penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 59. GÓES, Gisele Santos Fernandes. Princípio da proporcionalidade no processo civil: o poder de criatividade do juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 62, grifo nosso. 92 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 93 CHADE, Rezek Neto. O princípio da proporcionalidade no Estado Democrático de Direito. Franca: Lemos & Cruz, 2004, p. 30. 94 FERREIRA NETO, Manoel Aureliano. A aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade nas relações de consumo: decisões não fundamentadas, que não traduzem os critérios jurídicos na aplicação desses princípios. São Luís: Fiuza, 2008, p. 66. 95 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 96 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade. In: GUERRA FILHO, Willis Santiago (Org.). Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. Cap. I, p. 26, grifo nosso. 97 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 98 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 90 91 20 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Enquanto “a razoabilidade é um princípio de interpretação, que está (ou deve estar) presente em todo agir individual e social”99 — contrasta Francisco Fernandes de Araújo —, “a proporcionalidade, além desse aspecto, também é um princípio de calibragem ou dosimetria na feitura e na aplicação da norma, isto é, tem uma ‘materialização’ mais forte do que o princípio da razoabilidade”100. A “razoabilidade trata da legitimidade da escolha dos fins em nome dos quais agirá o Estado”101 — reflexionam Wellington Pacheco Barros e Wellington Gabriel Zuchetto Barros —, ao passo que “a proporcionalidade averigua se os meios são necessários, adequados e proporcionais aos fins já escolhidos”102. Consoante aduz Leonardo de Araújo Ferraz, enquanto o princípio da proporcionalidade se resume ao papel de “instrumento estruturado e preordenado de solução de conflitos envolvendo direitos colidentes”103, o princípio da razoabilidade se associa ao conceito de “racionalidade comunicativa”104 (“coerência lógica e interna do sistema jurídico”105) e à “proibição de excesso ou insuficiência”106. Conforme o ensino de Carlos Roberto Siqueira Castro, no âmbito da legislação destinada ao combate de desigualdades, a razoabilidade corresponde à “compatibilidade e congruência entre a classificação [legislativa] e o fim a que ela se destina, o que caracteriza e demarca o território singular do princípio da razoabilidade (reasonableness)”107, e a proporcionalidade concerne ao “controle da medida da suficiência, da insuficiência ou do excesso, calcado no trinômio necessidade-adequaçãoproporcionalidade estrita, que circunscreve o território específico da aplicação do princípio da proporcionalidade”108. ARAÚJO, Francisco Fernandes de. Princípio da proporcionalidade: significado e aplicação prática. Campinas: Copola, 2002, p. 54, grifo nosso. 100 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 101 BARROS, Wellington Pacheco; BARROS, Wellington Gabriel Zuchetto. A proporcionalidade como princípio de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 49, grifo nosso. 102 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 103 FERRAZ, Leonardo de Araújo. Da teoria à crítica: princípio da proporcionalidade: uma visão com base nas doutrinas de Robert Alexy e Jürgen Habermas. Belo Horizonte: Dictum, 2009, p. 143, grifo nosso. 104 Ibid., p. 142, grifo nosso. 105 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 106 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 107 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 234, grifo nosso. 108 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 99 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 21 Para Valeschka e Silva Braga109, o princípio da razoabilidade radica sua matriz na construção pretoriana norte-americana do devido processo substantivo (neste se fundamenta), enfoca a interpretação jurídica (destinada à “exclusão de condutas desarrazoadas”110) e “a congruência dos motivos (pressupostos de fato) com a finalidade da medida”111, “possibilita a verificação da adequação e necessidade entre os motivos e os fins”112, “abrange as circunstâncias pessoais”113 do caso concreto, “em virtude do tempo e do lugar, envolvendo a noção de senso comum”114, relaciona-se com o déficit de lógica ou congruência (dimensão da racionalidade: adequação + necessidade)115 aos olhos da “sensatez do homem comum”116 (dimensão da razoabilidade em sentido estrito117), traduz “a percepção do bom senso admitido pela comunidade, que acaba variando de acordo com os padrões do próprio intérprete”118 e se volta à “valoração dos atos emanados do Poder Público, para que estes não deixem de ser informados por justiça, bom senso, razão”119. Já o princípio da proporcionalidade, segundo a alentada monografia da jurista cearense, nasce e se desenvolve no âmbito do Tribunal Constitucional da Alemanha, alicerça-se no Estado de Direito, e direciona o exame da “compatibilidade dos meios com os fins”120 a “situações jurídicas abstratas”121, estribado nos critérios predefinidos122 das dimensões da adequação, da necessidade e da proporcionalidade, colocando-se “na balança dois interesses legítimos, para que eles sejam sopesados, a fim de que seja analisado qual deles deve prevalecer”123, com vistas não apenas a “dar subsídios à interpretação jurídica”124 como também a atuar na “otimização dos direitos fundamentais, solucionando-lhes os conflitos”125. SILVA BRAGA, Valeschka e. Princípios da proporcionalidade & razoabilidade. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 181-186. Ibid., p. 183, grifo nosso. 111 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 112 Ibid., p. 184, grifo nosso. 113 Ibid., p. 183, grifo nosso. 114 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 115 Ibid., p. 74. 116 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 117 Ibid., loc. cit. 118 Ibid., p. 184, grifo nosso. 119 Ibid., p. 185, grifo nosso. 120 Ibid., p. 183. 121 Ibid., p. 184, grifo nosso. 122 Ibid., loc. cit. 123 Ibid., p. 185, grifo nosso. 124 Ibid., p. 183, grifo nosso. 125 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 109 110 22 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Apesar de Marcelo José Magalhães Bonicio asserir que ambos os princípios “são bastante parecidos”126, sobretudo no campo do Direito Processual Civil brasileiro, adverte que o princípio da razoabilidade decorre do due process of law e consiste em “regra geral de conduta”127 adaptável “às particularidades de cada hipótese”128 (aspecto em que seu ponto de vista se aproxima da ensinança de Silva Braga). Helenilson Cunha Pontes realiza três diferenciações entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade: (1) O princípio da proporcionalidade exige maior “grau de motivação racional” 129 do ato decisório, ou seja, além da “consideração dos interesses concretamente em jogo e a eleição de uma medida razoável, mediante o afastamento das medidas irrazoáveis ou inaceitáveis” 130 (campo de incidência do princípio da razoabilidade), requisita o atendimento aos requisitos da “adequação, necessidade e conformidade” 131. (2) Enquanto o princípio da razoabilidade “exige apenas que a decisão jurídica seja racionalmente motivada, aprecie os interesses concretamente em discussão e seja uma dentre as várias decisões igualmente razoáveis, mediante um juízo de exclusão”132, o “princípio da proporcionalidade consubstancia notadamente, mas não exclusivamente, um juízo acerca da relação meio-fim, entre a medida tomada e o fim com ela buscado”133, porquanto “os aspectos da adequação e da necessidade, em maior medida, e a conformidade ou proporcionalidade em sentido estrito, em menor medida, realizam-se tendo em vista aquela relação”134. (3) “A proporcionalidade [...] não exige apenas que a atuação estatal e a decisão jurídica sejam razoáveis, mas que sejam melhores, e representem a maximização das aspirações constitucionais”135. BONICIO, Marcelo José Magalhães. Proporcionalidade e processo: a garantia constitucional da proporcionalidade, a legitimação do processo civil e o controle das decisões judiciais. São Paulo: Atlas, 2006, p. 32, grifo nosso. (Coleção Atlas de Processo Civil) 127 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 128 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 129 PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000, p. 88, grifo nosso. 130 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 131 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 132 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 133 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 134 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 135 Ibid., p. 89, grifo nosso. 126 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 23 Na óptica de Ricardo Aziz Cretton, o princípio da razoabilidade possui traços hermenêuticos e converge “para a ponderação de outros princípios”136, ao passo que o princípio da proporcionalidade se reveste “de vocação objetiva, material, substancial, precipuamente destinado, ad ovo, ao balanceamento de valores (e de outros princípios decorrentes)”137, a exemplo da segurança, liberdade, igualdade e propriedade, e ambos deságuam no princípio da ponderação de valores e bens, espécie de superprincípio “fundante do próprio Estado de Direito Democrático contemporâneo (pluralista, cooperativo, publicamente razoável e tendente ao justo)”138. As monografias brasileiras relativas ao princípio da proporcionalidade escritas por José Eduardo Suppioni139 de Aguirre, Liana Chaib140, Thiago Bottino do Amaral141, Denilson Feitoza Pacheco142 e Fabiana Lemes Zamalloa do Prado143 aludem à mencionada controvérsia terminológica sem ostentarem posicionamento nitidamente favorável ou contrário à sinonímia ou não entre ambos os princípios, ao priorizarem a fundamentação de aspectos mais fulcrais de suas correspondentes pesquisas jurídicas, ou seja, preponderando o foco de tais autores a questões de maior pertinência à problematização dos respectivos trabalhos monográficos. Também há monografistas que não mencionam a controvérsia terminológica concernente aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, optando por estudo centrado em matriz germânica do princípio da proporcionalidade, a exemplo das obras de Thiago André Pierobom de Ávila144, Anizio Pires Gavião Filho145 e Orlando Luiz Zanon Junior146. CRETTON, Ricardo Aziz. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e sua aplicação no Direito Tributário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 75. 137 Ibid., loc. cit. 138 Ibid., loc. cit. 139 AGUIRRE, José Eduardo Suppioni de. Aplicação do princípio da proporcionalidade no processo civil. Porto Alegre: Fabris, 2005, p. 107-110. 140 CHAIB, Liana. O princípio da proporcionalidade no controle do ato administrativo. São Paulo: LTr, 2008, p. 61. 141 AMARAL, Thiago Bottino do. Ponderação de normas em matéria penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 73-83. 142 PACHECO, Denilson Feitoza. O princípio da proporcionalidade no direito processual brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 79, 83, 85. 143 PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa do. A ponderação de interesses em matéria de prova no processo penal. São Paulo: IBCCRIM, 2006, p. 186.. 144 ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Provas ilícitas e proporcionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 19-22. 145 GAVIÃO FILHO, Anizio. Colisão de direitos fundamentais, argumentação e ponderação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 239-314. 146 ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Máxima da proporcionalidade aplicada: a quebra do sigilo bancário pelo Fisco e o direito fundamental à vida privada. Florianópolis: Momento Atual, 2004, p. 100-101. 136 24 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Jarbas Luiz dos Santos, ao propor a concepção grega de justiça como fundamento filosófico, escolheu desconsiderar as “eventuais diferenças apontadas entre os conceitos de razoabilidade e proporcionalidade”147. Sylvia Marlene de Castro Figueiredo versa sobre as variações terminológicas do princípio da proporcionalidade apenas no âmbito da Europa continental, sem se imiscuir na questão da razoabilidade148. No sentir de Fábio Pallaretti Calcini, o princípio da razoabilidade exprime o devido processo legal substantivo149, engloba o princípio tridimensional da proporcionalidade150 e representa “um standard de justiça”151. 3. A CONTRIBUIÇÃO DE RUI BARBOSA AO DIÁLOGO ENTRE O CRITÉRIO DA NECESSIDADE E O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE Em uma época (ano-base: 2011) em que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, portanto, possuem ampla acolhida na doutrina jurídica brasileira, não há no pensamento jurídico pátrio consenso entre as distinções e semelhanças entre ambos os princípios, e existe em catálogo, nas nossas livrarias, mais de duas dezenas de monografias voltadas aos princípios da razoabilidade e/ ou da proporcionalidade, convém resgatar o estudo pioneiro de Rui Barbosa de Oliveira152 (1849-1923) — referido, de forma tradicional, no corpo de textos acadêmicos, didáticos e jornalísticos brasileiros simplesmente por Ruy ou Rui, SANTOS, Jarbas Luiz dos. Princípio da proporcionalidade: concepção grega de justiça como fundamento filosófico; implicações. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 17. 148 FIGUEIREDO, Sylvia Marlene de Castro. A interpretação constitucional e o princípio da proporcionalidade. São Paulo: RCS, 2005, p. 171-186. 149 CALCINI, Fábio Pallaretti. O princípio da razoabilidade: um limite à discricionariedade administrativa. Campinas: Millennium, 2005, p. 172. 150 Ibid., p. 147. 151 Ibid., loc. cit. 152 Ante o dissenso acerca da grafia hodierna do nome civil do ilustre jurista baiano, optou-se por Rui Barbosa, em vez de Ruy Barbosa, com fincas nesta ensinança gramatical (baseada, por sua vez, no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa assinado em 16 de novembro 1990, vigente, no Brasil, desde 1º de janeiro de 2009, por força do art. 2º, caput, do Decreto n. 6.583, de 29 de setembro de 2008 — as normas ortográficas novas e pretéritas coexistirão durante o período de transição, de 1º de janeiro de 2009 a 31 de dezembro de 2012, conforme determina o art. 2º, parágrafo único, do precitado Decreto Presidencial) da lavra do Prof. Evanildo Bechara (representante brasileiro do Novo Acordo Ortográfico): “Não sendo o próprio que assine o nome com a grafia e a acentuação do modo como foi registrado, a indicação de seu nome obedecerá às regras estabelecidas pelo sistema ortográfico vigente: Fundação Casa de Rui Barbosa (o notável jurista baiano assinava Ruy).” Cf. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lucerna, 2009, p. 95, grifo do autor. 147 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 25 em vez de Barbosa de Oliveira ou Barbosa —, o mais célebre e influente jurista da Primeira República (1889-1930), ideólogo da Constituição brasileira de 1891 (a nossa primeira Constituição republicana), constitucionalista de papel decisivo para o advento das bases constitucionais do federalismo brasileiro e do início do processo de autonomização do Poder Judiciário pátrio153. Originalmente publicada pelo então denominado Ministério da Educação e 154 Saúde , as Obras Completas de Rui Barbosa, hoje sob os auspícios da Fundação Casa de Rui Barbosa (à época órgão155 integrante da Pasta da Educação e Saúde, hoje fundação pública vinculada ao Ministério da Cultura156) foram digitalizadas, mediante parceria iniciada em 2007157 com o Supremo Tribunal Federal, e hoje se encontram disponíveis na Rede Mundial de Computadores, por meio do site institucional <http://www.casaruibarbosa.gov.br>158, inteirando-se, na atualidade (ano-base: 2011), 137 (centro e trinta e sete) tomos publicados159. Sobre o contributo de Rui Barbosa ao Direito Constitucional pátrio, cf. DINIZ, Sílvia Paula Alencar. Contribuição de Rui Barbosa para a formação do pensamento constitucional brasileiro. In: LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; ANDRADE, Denise de Almeida de; ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre de; JUCÁ, Roberta Laena Costa; QUEIROZ, Paulo Roberto Clementino (Org.). Temas de pensamento constitucional brasileiro. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2008, v. 1. Cap. 29, p. 636-660. Há de se reconhecer o mérito de Rui ter contribuído para iniciar a construção da nossa República federativa e a alvorada da autonomia do Poder Judiciário pátrio, ainda que o Advogado baiano tenha se precipitado ao transpor para o ordenamento jurídico do Brasil o modelo constitucional dos Estados Unidos da América, sem realizar imprescindíveis ajustes, à luz do processo histórico, cultural e social brasileiro, inclusive da dificuldade de se efetuar abrupta transição de Estado unitário, de regime monárquico e sistema parlamentarista, para Estado federal, de regime republicano e sistema presidencialista. A propósito, para a análise crítica da exacerbada anglofilia da Constituição republicana de 1891, cf. COELHO, Inocêncio Mártires. A experiência constitucional brasileira: da Carta Imperial de 1824 à Constituição democrática de 1988. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. Cap. 3, p. 186-189. 154 O Decreto-Lei n. 3.668, de 30 de setembro de 1941, cometeu ao Ministério da Educação e Saúde o múnus de publicar em cinquenta volumes as Obras Completas de Rui Barbosa (art. 1º, caput), incumbindo à Casa de Rui Barbosa a execução de tal encargo (art. 4º). Cf. BRASIL. Decreto-Lei n. 3.668, de 30 de setembro de 1941. Dispõe sobre a publicação das Obras Completas de Rui Barbosa. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=29579>. Acesso em: 20 abr. 2011. 155 À época, a Casa de Rui Barbosa constituía órgão integrante do Ministério da Educação e Saúde, nos termos do então vigente art. 1º do Regimento Interno da Casa de Rui Barbosa, constante do Anexo do Decreto n. 22.168, de 25 de novembro de 1946. Cf. BRASIL. DecretoLei n. 22.168, de 25 de novembro de 1946. Aprova o Regimento Interno da Casa de Rui Barbosa. Disponível em: <http://www6.senado. gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=232331>. Acesso em: 20 abr. 2011. 156 Fundação pública vinculada ao Ministério da Cultura à luz do disposto no art. 1º, caput, da Lei n. 4.943, de 6 de abril de 1966 (diploma legislativo ainda vigente, conferiu personalidade jurídica própria à Casa de Rui Barbosa) c/c art. 1º do atual Estatuto da própria FCRB (Anexo I do Decreto n. 5.039, de 7 de abril de 2004). Cf. BRASIL. Lei n. 4.943, de 6 de abril de 1966. Transforma em Fundação a atual Casa de Rui Barbosa e dá outras providências. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2007/11/lei-4943de-1966.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2011; BRASIL. Decreto n. 5.039, de 7 de abril de 2004. Aprova o Estatuto e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções Gratificadas da Fundação Casa de Rui Barbosa ― FCRB, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5039.htm>. Acesso em: 20 abr. 2011. 157 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Supremo fecha semestre com avanços na informatização de processos. Disponível em: <http://www. stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=70428&caixaBusca=N >. Acesso em: 20 abr. 2011. 158 O endereço completo (para acesso direto à página das Obras Completas de Rui Barbosa é <http://www.casaruibarbosa.gov.br/rbonline/ obrasCompletas.htm>. Evitou-se consigná-lo in totum no corpo deste trabalho, a fim de não prejudicar a estética e a diagramação do texto. 159 BRASIL. Fundação Casa de Rui Barbosa. Obras Completas de Rui Barbosa ― OCRBdigital. Disponível em: <http://www. 153 26 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. No tomo I do volume XL (correspondente ao ano de 1913), consta o trabalho intitulado As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais, sobejamente lastreado na jurisprudência anglo-saxônica do final do século XIX e início do século XX. No referido memorial forense (§ 278), Rui Barbosa considera justificável a limitação temporal e espacial à liberdade comercial, desde que não seja uma “interdição perpétua e universal”160, uma vez que, nesse caso, significaria a “abdicação da liberdade e personalidade humana, que o direito não a pode sancionar”161 (sancionar, nesse contexto, como sinônimo não de punir, mas de chancelar162). Esteado em tal premissa, infere (§ 301) a “nulidade jurídica dos contratos de cessão de clientela, ainda mesmo expressos, quando sem limites de tempo e espaço”163. Compulsando-se tal memorial alinhavado por Rui, percebe-se o pioneirismo do estadista baiano em se debruçar, na primeira metade da década de 1910164, sobre questões jurídicas que se tonariam, mormente a partir de década de 2000, aspecto central do debate jurídico brasileiro, mormente na seara do Direito Constitucional e da Teoria dos Direitos Fundamentais. Mais do que isso: por meio do estudo ruiano, percebe-se a possibilidade de diálogo entre a dimensão da necessidade do princípio tridimensional da proporcionalidade (matriz alemã) e o princípio da razoabilidade (matriz anglo-saxônica). A concepção dogmática do subprincípio da necessidade majoritariamente abraçada pela doutrina brasileira baseia-se na formulação casaruibarbosa.gov.br/rbonline/obrasCompletas.htm>. Acesso em: 20 abr. 2011. 160 BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa: as cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1948, v. 40, t. 1, p. 275, grifo do autor. Disponível em: <http:// www.casaruibarbosa.gov.br/rbonline/obrasCompletas.htm>. Acesso em: 20 abr. 2011. 161 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 162 SILVA, De Plácido. Vocabulário jurídico. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 1256-.1257; INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 1 CD-ROM. 163 BARBOSA, Rui. Op. cit., p. 294, grifos do autor e nossos. 164 O trabalho forense de Rui Barbosa intitulado As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais foi originalmente publicado em 1913, na atual Capital do Estado do Rio de Janeiro, pela Empresa Foto-Mecânica do Brasil — Impressões Artísticas, segundo pesquisa realizada por Francisco Antônio de Almeida Morato (1868-1948), Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, prefaciador e revisor do tomo I do volume XL da coleção Obras Completas de Rui Barbosa. Cf. MORATO, Francisco Antônio de Almeida. Prefácio. In: BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa: as cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1948, v. 40, t. 1, p. XV-XVI. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/rbonline/obrasCompletas.htm>. Acesso em: 20 abr. 2011. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 27 alemã do princípio tridimensional da proporcionalidade segundo a qual “o exame do princípio parcial da necessidade” 165 — esclarece Anizio Pires Gavião Filho — “é uma questão de comparação entre a medida escolhida ou a ser escolhida e outras medidas alternativas” 166. Desse modo, averigua-se — prossegue Gavião Filho — “se entre as medidas alternativas não existe uma que, com o mesmo grau de idoneidade para alcançar o fim que a medida escolhida ou a ser escolhida promove, intervenha com intensidade de menor grau em outro ou em outros direitos na colisão”167, o que implica aferir tanto “a idoneidade equivalente ou maior das medidas alternativas para a promoção do fim imediato”168 (“medida alternativa, que promove o fim exigido por um direito fundamental igual ou mais, melhor, mais rápido, com mais eficiência e maior segurança”169) quanto “a escolha da medida com menor grau de intensidade de intervenção nos direitos fundamentais ou bem jurídicos coletivos constitucionalmente protegidos”170 (perscruta-se “se não existe, [d]entre as medidas consideradas idôneas, uma que não restrinja posições jurídicas fundamentais prima facie de direitos fundamentais ou bem [sic] jurídicos coletivos constitucionalmente protegidos ou, senão isso, que o faça em grau inferior que todas as outras”171). Para Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, na seara do subcritério da necessidade (Erforderlichkeit), verifica-se se existe medida alternativa menos gravosa ao “titular do direito que sofre a limitação de seu direito fundamental”172 e de “eficácia semelhante ao meio escolhido pela autoridade estatal”173 (“o meio menos gravoso deve ser adequado da mesma forma que o meio mais gravoso escolhido pela autoridade e que todos os demais (possíveis e adequados) meios menos gravosos que o escolhido pela autoridade estatal”174). GAVIÃO FILHO, Anizio. Colisão de direitos fundamentais, argumentação e ponderação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 245, grifo nosso. 166 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 167 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 168 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 169 Ibid., p. 246, grifo nosso. 170 Ibid., p. 245, grifo nosso. 171 Ibid., p. 246, grifo nosso. 172 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: RT, 2007, p. 215, grifo nosso. 173 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 174 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 165 28 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Humberto Ávila separa em duas etapas a aplicação do critério da necessidade: “em primeiro lugar, o exame da igualdade de adequação dos meios, para verificar se os meios alternativos promovem igualmente o fim”175, “em segundo lugar, o exame do meio menos restritivo, para examinar se os meios alternativos restringem em menor medida os direitos fundamentais colateralmente afetados”176. Em textos doutrinários pátrios relativos ao subprincípio da necessidade177, acolhe-se, por vezes, a ensinança do constitucionalista português Joaquim José Gomes Canotilho de que a dimensão da necessidade (denominada de “princípio da exigibilidade”178 pelo Mestre de Coimbra) abrange a exigibilidade material (“o meio deve ser o mais ‘poupado’ possível quanto à limitação dos direitos fundamentais”179), a exigibilidade espacial (“aponta para a necessidade de limitar o âmbito da intervenção”180), a exigibilidade temporal (“pressupõe a rigorosa delimitação no tempo da medida coativa do poder público”181) e a exigibilidade pessoal (“a medida se deve limitar à pessoa ou pessoas cujos interesses devem ser sacrificados”182). Essa formulação de origem germânica do critério da necessidade se aproxima, em essência, do conteúdo do princípio da razoabilidade extraído por Rui Barbosa da jurisprudência dos Estados Unidos e do Reino Unido do século XIX e início do século XX, ao defender a possibilidade de que seja regular e justificável a interdição ilimitada e prevista em contrato da liberdade de comércio ou de indústria, quando unicamente de cunho temporal, ou quando unicamente de caráter espacial, ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 122, grifo do nosso. 176 Ibid., loc. cit., grifos nosso e do autor. 177 Ad exemplum, dentre os adeptos do ensinamento do Mestre de Coimbra, elencam-se estes trabalhos monográficos brasileiros: SILVA BRAGA, Valeschka e. Princípios da proporcionalidade & razoabilidade. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 113; PEDRA, Anderson Sant’Ana. O controle da proporcionalidade dos atos legislativos: a hermenêutica constitucional como instrumento. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 217; BARROS, Wellington Pacheco; BARROS, Wellington Gabriel Zuchetto. A proporcionalidade como princípio de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 63; FIGUEIREDO, Sylvia Marlene de Castro. A interpretação constitucional e o princípio da proporcionalidade. São Paulo: RCS, 2005, p. 190; CHADE, Rezek Neto. O princípio da proporcionalidade no Estado Democrático de Direito. Franca: Lemos & Cruz, 2004, p. 39; D’URSO, Flavia. Princípio constitucional da proporcionalidade no processo penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 67. 178 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 270, grifo nosso. 179 Ibid., loc. cit., grifo nosso, aspas francesas adaptadas às aspas inglesas, adotadas no Brasil. 180 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 181 Ibid., loc. cit., grifo nosso, ortografia adaptada ao português brasileiro. 182 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 175 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 29 considerando irrazoável (não razoável, sem razão ou irracional183) a interdição perpétua e universal de jaez temporal e, ao mesmo tempo, espacial184 (§§ 278, 279, 282 e 284): [...] No sistema a que chamaríamos continental, por ser o predominante entre as nações do continente europeu, se estabeleceu um critério definido e seguro para a declaração da validade ou nulidade nessas convenções, anulando-se absolutamente as que encerrarem uma interdição de liberdade comercial ou industrial, ilimitada quanto ao território e quanto à durabilidade. O magistrado não pode aceitar como subsistente a proibição, posta ao cedente, de reexercer, no comércio ou na indústria, certo gênero de atividades, senão quando essa proibição tiver limites de lugar ou tempo. [...] [...] pode-se discutir sobre a subsistência ou insubsistência da interdição, quando ela for ilimitada quanto ao tempo ou quanto ao lugar; mas a sua nulidade é inquestionável, se a estipulação for ilimitada quanto ao lugar e quanto ao tempo. [...] [...] Em última análise, não se trata senão de reunir numa só palavra a dupla ausência de limites quanto à duração e ao território nas obrigações desta natureza. É unreasonable a interdição, porque irrestrita quanto ao tempo e ao espaço. [...]185 Com o fito de robustecer seu entendimento, abeberou-se — rememora-se — em precedentes britânicos e estadunidenses186 (§§ 278 a 300). Colheu (§279) da obra de Edmund H. T. Snell intitulada “The Principles of Equity: intended for the use of students and of practitioners” (à época reeditada por Archibald Brown e publicada em Londres pela Editora Stevens & Haynes)187 precedentes da jurisprudência inglesa a reconhecerem a nulidade de “contratos de interdição geral de um comércio”188, salvo se “a interdição, sendo limitada, como a de não exercer alguém certo comércio em determinado lugar ou por tempo BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa: as cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1948, v. 40, t. 1, p. 276, 278, 284. Disponível em: <http:// www.casaruibarbosa.gov.br/rbonline/obrasCompletas.htm>. Acesso em: 20 abr. 2011. 184 Ibid., p. 276. 185 Ibid., p. 279, 282, grifo de Rui Barbosa, transcrição adaptada à nova ortografia do português brasileiro. 186 Ibid., p. 275-293. 187 SNELL, Edmund H. T. The Principles of Equity: intended for the use of students and of practitioners. 16th ed. London: Stevens & Haynes, 1912, p. 420. Disponível em: <http://www.archive.org/download/cu31924021656222/cu31924021656222.pdf>. Acesso em: 9 mai. 2011. 188 Ibid., p. 276, tradução e grifo de Rui Barbosa. 183 30 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. razoável”189. Posto de outro modo: a teor dessa corrente de pensamento, afigurase válido contrato de interdição de comércio, “se bem que ilimitado quanto ao espaço [Nordenfelt v. Maxim Co., Limited, 1894, A. C. 535190], ou, até, quando ilimitado quanto ao tempo [Haynes v. Doman, 1899, 2 Ch. 13191], supondo-se sempre que seja razoável nas circunstâncias de um e outro caso”192. No entanto, o jurista baiano pondera (§ 280) que o critério adotado à época na Inglaterra (primeira metade da década de 1910) deixava de ser meramente de cunho temporal e/ou espacial, à medida que se disseminava naquela jurisprudência o parâmetro da razoabilidade (conjugado com a análise da abrangência territorial da proibição ao exercício do comércio): Não há negar, porém, que, ultimamente, em Inglaterra, o critério dominante nesta apreciação não está nem no tempo nem no espaço, mas na reasonableness, na razoabilidade, ou não razoabilidade, que a interdição convencionada apresentar. “A pedra de toque, a que primeiro há de recorrer o tribunal, é a da razoabilidade (reasonableness), e, para solver a questão da responsabilidade, é que terá de apreciar a extensão territorial abrangida na interdição.” (Americ. and Engl. Encyclop. of Law, v. XXIV, p. 845, not. 6, in fine, e p. 850, n.º 4, in fine.) [...] [...] Como se vê, em última análise, a questão da razoabilidade se resolve, afinal, justamente na do tempo e espaço, que limitam a interdição. 193 Nesse contexto, para se aquilatar se determinada interdição na liberdade comercial de âmbito territorial e temporal seria razoável, Rui Barbosa traz a lume (§§ 280 e 285) baliza pretoriana que muito recorda o princípio parcial da necessidade ou da exigibilidade de matriz alemã (a necessidade, na abordagem alemã — lembra Afonso da Silva — verifica se dado “ato estatal que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido”194) quanto à proibição de excesso (no Ibid., loc. cit., tradução e grifo de Rui Barbosa. SNELL, Edmund H. T. Op. cit., loc. cit. 191 Ibid., loc. cit. 192 BARBOSA, Rui. Op. cit., loc. cit., tradução de Rui Barbosa e grifo nosso. 193 Ibid., p. 277-278, tradução e grifo de Rui Barbosa, transcrição adaptada à nova ortografia do português brasileiro. 194 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 91, n. 798, abr. 2002, p. 38. 189 190 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 31 sentido de que — alumia Paulo Bonavides — “a medida não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja”195): Os tribunais (diz Wharton Beall na sua monografia sobre a Restraint of Trade) têm adotado todos a regra estabelecida, no caso Horner v. Graves, pelo juiz Tindal. Essa regra consiste em se verificar se a interdição não vai além do necessário para assegurar proteção razoável aos interesses da parte, a favor de quem se estipulou, sem contrariar os do público em geral: “Wether the restraint is such only to afford a fair protection to the interest of the party in favor of whom it is given, and not so large as to interfere with the interests of the public.” (Am. and Engl. Encycl. of Law, codem loco.) Se a interdição exceder os limites da proteção devida ao cessionário, não pode trazer legítima vantagem a ele nem ao público: será, então, meramente opressiva, e, sendo opressiva, aos olhos da lei não é razoável. “Whatever restraint is larger than the necessary protection of the party can bem of no benefit to either; it can only be oppressive; and, if oppresive, it is in the eye of the law, unreasonable.” (Ib., p. 850-51.) (1) [...] [...] Basta, pois, que não seja razoável, isto é, basta que seja excessiva a extensão do território abarcada na interdição de comerciar, para que o contrato incorra na taxa de não razoável, e, como tal, se haja por vão, caduco, inexistente.196 Destarte, Rui Barbosa invoca, sob a rubrica da razoabilidade, traço característico ao critério da necessidade de raiz alemã, isto é, a vedação ao exercício de direito além do indispensável à adequada proteção do interesse do titular do direito. Em que pese tenha se abeberado na construção jurisprudencial anglo-saxônica em torno do princípio da razoabilidade, Rui Barbosa, fiel à mentalidade jurídica de sua época, ressalva (§ 282) que não se poderia no ordenamento jurídico brasileiro, filiado ao sistema romano-germânico, “confiar aos tribunais o arbítrio de validarem ou anularem contratos, em que forem interessadas liberdades como a do comércio e a da indústria, deixandoos à sua apreciação discricionária, sob um critério absolutamente opinativo”197 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 397, grifo nosso. BARBOSA, Rui. Op. cit., p. 277-278, 283, tradução de Rui Barbosa, grifos nossos e de Rui Barbosa, transcrição adaptada à nova ortografia do português brasileiro. 197 Ibid., p. 280. 195 196 32 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. — continua — “como o de serem, ou não, razoáveis esses contratos, seria uma transplantação desastrosa” 198. Em similar sentido, também como reflexo da visão jurídica da primeira metade do século XX, Miguel Seabra Fagundes repudiara a aplicação, no Brasil e inspirada na experiência forense do Estados Unidos, do controle judicial da razoabilidade dos atos administrativos: O território jurídico da apreciação da legalidade é muito restrito, em nada podendo obstar a ação eficiente das comissões, desde que contida na órbita legal. Só nas hipóteses de incompetência, desvio de finalidade etc. é que o Judiciário as poderia conter, porém aí, como é claro, em defesa da ordem jurídica. É descabido, em desabono do que dizemos, o exemplo norteamericano. Nos Estados Unidos, como já tivemos ocasião de observar, o juiz, analisando a razoabilidade dos atos administrativos, exerce jurisdição plena e não de simples legalidade, penetra no mérito do procedimento da Administração, vincula-a ao seu critério administrativo. Aqui nunca se deu nem se pode dar tal ingerência, que entre os americanos decorre da cláusula do due process of law.199 Entretanto, da alvorada desses estudos pioneiros de Rui Barbosa e Miguel Seabra Fagundes até os dias hodiernos, o cenário judicial brasileiro se alterou de forma significativa. Hoje já não se discute a possibilidade jurídica do nosso Poder Judiciário aplicar o princípio da razoabilidade, e sim se a jurisprudência do órgão de cúpula da Justiça pátria, de fato, vale-se do princípio da proporcionalidade ou se adstringe a realizar “um apelo à razoabilidade”200, de modo que a pesquisa de Rui Barbosa sobre a razoabilidade se insere em uma questão jurídica em voga no Direito brasileiro, que é, justamente, a análise comparativa entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e o exame da interação entre as dimensões da razoabilidade e da proporcionalidade. Ibid., loc. cit., grifo do autor, transcrição adaptada à nova ortografia do português brasileiro. FAGUNDES, Miguel Seabra. Da proteção do indivíduo contra o ato administrativo ilegal ou injusto. Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, Rio de Janeiro, v. 5, n. 18, jun. 1946, p. 21, grifo do autor. 200 AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. In: TORRENS, Haradja Leite; ALCOFORADO, Mario Sawatani Guedes (Org.). A expansão do direito: estudos de direito constitucional e filosofia do direito em homenagem a Willis Santiago Guerra Filho (por duas décadas de docência e pesquisas). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 113. 198 199 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 33 4. A PROIBIÇÃO DE LIMITAÇÕES GEOGRÁFICAS À FIXAÇÃO DE DROGARIAS E FARMÁCIAS, À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Rui Barbosa, ao repelir as interdições perpétuas e universais da liberdade de empresa e de concorrência de cunho simultaneamente temporal e espacial (previstas, in casu, em contratos de alienação de estabelecimentos comerciais e industriais), denota-se em harmonia com o princípio constitucional da liberdade de iniciativa econômica. Consectária do princípio fundamental da livre iniciativa (art. 1º, inciso IV, in fine c/c art. 170, caput, todos da Constituição Federal de 1988)201 — o qual, por sua vez, decorre da própria liberdade humana202 (art. 5º, caput, da CF/88) —, a liberdade de iniciativa econômica (também chamada de liberdade econômica203) encastoa-se no art. 170, parágrafo único, da CF/88 (“É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”204)205, e abrange (a) a liberdade de empresa (desdobrada nas liberdades de contrato — art. 421 do Código Civil de 2002 —, de indústria e de comércio), (b) a liberdade de concorrência206, a igualmente denominada livre concorrência207 (art. 170, inciso IV, da CF/88), e (c) “a proteção da propriedade privada”208 (art. 5º, caput e incisos XXII e XXIX, c/c art. 170, inciso II, todos da CF/88). SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de direito constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 797. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 202. 203 Ibid., p. 203. 204 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao. htm>. Acesso em: 1º mai. 2011. 205 SILVA NETO, Manoel Jorge e. Op. cit., loc. cit. 206 GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 205. 207 Ibid., p. 211. 208 CHIMENTI, Ricardo Cunha; SANTOS, Marisa Ferreira dos; ROSA, Márcio Fernando Elias; CAPEZ, Fernando. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 497. Em sentido diverso, ao entender que “o fundamento do princípio da liberdade de iniciativa se encontra na aceitação do direito de propriedade privada”, ou seja, enxergando-se o direito de propriedade privada como a matriz do princípio da liberdade de iniciativa e não o contrário, cf. FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito econômico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004 p. 128, grifo nosso. De toda sorte, afigura-se pertinente este ensino de José Afonso da Silva acerca da indispensabilidade de que a propriedade tenha função social, para que seja legítima: “O regime de propriedade denota a natureza do sistema econômico. Se se reconhece o direito de propriedade privada, se ela é um princípio da ordem econômica, disso decorre, só por si, que se adotou um sistema econômico fundado na iniciativa privada. Os conservadores da Constituinte, contudo, insistiram para que a propriedade privada figurasse como um dos princípios da ordem econômica, sem perceber que, com isso, estavam relativizando o conceito de propriedade, porque submetendo-o aos ditames da justiça social – de sorte que se pode dizer que ela só é legítima enquanto cumpra uma função dirigida à justiça social.” Cf. AFONSO DA SILVA, José. Comentário contextual à Constituição. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 712, grifo do autor. 201 202 34 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. A fim de que seja legítima — pontua José Afonso da Silva —, a liberdade de iniciativa econômica deve promover a existência digna de todos, consoante os preceitos da justiça social 209, em decorrência — infere-se — do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF/88). Nesse sentido, cumpre ao Estado prevenir e reprimir condutas dos setores público e privado a sufocarem o lícito funcionamento de empresas (atividade desempenhada por intermédio de empresários e empresárias em nome individual, bem assim de sociedades empresárias210), sobretudo quando se obsta ou dificulta a existência e “a expansão das pequenas iniciativas econômicas”211. Corolária da liberdade de iniciativa econômica, a liberdade de concorrência, explica Eros Roberto Grau, abarca (a) o direito de “conquistar a clientela, desde que não [seja] através de concorrência desleal”212, (b) a “proibição de formas de atuação que deteriam a concorrência”213 e (c) a “neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, em igualdade de condições dos concorrentes”214. Na óptica de João Bosco Leopoldino da Fonseca, a liberdade de concorrência, no contexto do capitalismo contemporâneo, consiste em meio para se atingir o “equilíbrio entre os grandes grupos e um direito de estar no mercado também para as pequenas empresas”215. Almejando salvaguardar a livre iniciativa, o ordenamento jurídico pátrio proíbe tanto a concorrência feita com abuso de poder (plasmada na infração da ordem econômica — objeto do ramo jurídico conhecido por Direito Antitruste216 AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 794. Por motivos didáticos, oportuno lembrar o ensino do Direito Empresarial de que a empresa não se confunde com sociedade empresária. Dilucida Fábio Ulhoa Coelho: “Empresário é a pessoa que toma a iniciativa de organizar uma atividade econômica de produção ou circulação de bens ou serviços. Essa pessoa pode ser tanto a física, que empresa seu dinheiro e organiza a empresa individualmente, como a jurídica, nascida da união de esforços de seus integrantes. [...] A pessoa jurídica empresária é cotidianamente denominada ‘empresa’, e os seus sócios são chamados ‘empresários’. Em termos técnicos, contudo, empresa é a atividade, e não a pessoa que a explora; e empresário não é o sócio da sociedade empresarial, mas a própria sociedade.” Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: Direito de Empresa. 12. ed. São Paulo: Saraiva 2008, v. 1, p. 63, grifo do autor. 211 AFONSO DA SILVA, José. Op. cit., p. 795, grifo nosso. 212 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 205, grifo nosso. 213 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 214 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 215 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito econômico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004 p. 129, grifo nosso. 216 Conquanto o campo de incidência das infrações da ordem econômica transcenda o combate à “formação de grandes conglomerados econômicos”, ao se direcionar também contra outras modalidades de abuso do poder econômico, a locução Direito Antitruste permanece em uso por força da tradição. Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: Direito de Empresa. 12. ed. São Paulo: Saraiva 2008, v. 1, p. 202. 209 210 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 35 ou Direito Concorrencial217, que possui como principal diploma legislativo a Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994, a Lei Antitruste —, a afetar “as estruturas do livre mercado”218, por meio da dominação dos mercados219, da eliminação da concorrência220 e do aumento arbitrário dos lucros221 — dicção do art. 173, § 4º, da CF/88222) quanto a concorrência desleal (a concorrência desleal prejudica somente o interesse “do empresário diretamente vitimado pela prática irregular”223, ao passo que a infração de ordem econômica, ao lesionar as bases do economia de mercado, alcança “universo muito maior de interesses juridicamente relevantes”224), a qual se subdivide, ensina Fábio Ulhoa Coelho, em concorrência desleal específica (“sancionada civil e penalmente”225, concernente à “violação de segredo de empresa” e à “indução de consumidor em erro”226) e genérica (“sancionada apenas no âmbito civil”227). Veda-se não apenas a concorrência ilícita (bifurcada — repisa-se — na infração da ordem ec onômica e na concorrência desleal) como também a interveniência de órgãos e entidades estatais na ordem econômica, se afrontosa ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, da CF/88), ou seja, é defesa a intervenção do Estado no domínio econômico, caso essa atuação se volte, salienta Walber de Moura Agra, ao “favorecimento de uma empresa ou de uma atividade em detrimento de outra”228 (a menção ao princípio da impessoalidade, nesse contexto, foi achega nossa ao pensamento de Agra). A ênfase do Direito Concorrencial não está na análise da natureza jurídica de quem desempenha a atividade de empresa, mas na aferição se houve ilícito concorrencial: “Para o Direito da Concorrência”, pondera Werter Faria, “não importa se a associação, no seio da qual foi tomada a decisão, tem objetivo de lucro, se é este ou aquele tipo de empresa, mas sim se esta entidade cometeu uma infração quando decidiu que seus associados deveriam operar de tal maneira, transgredindo as regras de concorrência.” Cf. FARIA, Werter. Noção de empresa no Direito da Concorrência. Revista do Instituto dos Advogados do Paraná: Semana de Estudos em Homenagem ao Professor Rubens Requião: tendências atuais do Direito Comercial, Curitiba, n. 29, 2000, p. 151. 218 COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 189, grifo nosso. 219 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao. htm>. Acesso em: 1º mai. 2011, grifo nosso. 220 COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., loc. cit., grifo nosso. 221 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 222 Ibid., p. 202, grifo nosso. 223 Ibid., p. 190, grifo nosso. 224 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 225 Ibid., p. 192. 226 Ibid., loc. cit. 227 Ibid., loc. cit. 228 AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 654, grifo nosso. 217 36 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Na seara das infrações da ordem econômica, existe a concentração e a colusão. Enquanto na concentração “empresas passam a submeter-se à mesma direção econômica com ou sem perda de autonomia jurídica”229, na colusão horizontal há acordos (orais inclusive) somente entre “empresários situados no mesmo estágio de produção e circulação econômica (por exemplo, industriais concorrentes em situação concertada)”230, e na colusão vertical existem acordos entre “empresários situados em estágios diferentes da produção e circulação econômica (por exemplo: fornecedor e distribuidores em atuação concertada)”231. Caracterizam, pois, a colusão horizontal as circunstâncias versadas por Rui Barbosa, concernentes às interdições contratuais perpétuas e universais à liberdade de concorrência entre sociedades empresárias que atuam no mesmo estágio de produção e circulação econômica. Por outro lado, a ordem econômica também é alvejada quando tal interdição, em vez de estipulada em contrato, é realizada por diploma legislativo. É o que demonstra a jurisprudência da Corte Suprema brasileira. Explica-se: o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, em sede do Recurso Extraordinário n. 193749/SP (Relator para o acórdão, Ministro Maurício Corrêa), aos 4 de junho de 1998, considerou inconstitucional norma legal municipal (art. 1º da Lei n. 10.991, de 13 de junho de 1991, do Município de São Paulo — SP232) a impor limitação geográfica (fixação de distância mínima) para o estabelecimento de farmácias e drogarias233, ao reputar tal ato legislativo ofensivo ao princípio da livre iniciativa e deletério à ordem consumerista. COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 210, grifo nosso. Ibid., loc. cit., grifo nosso. 231 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 232 Assim dispunha o art. 1º da Lei n. 10.991/1991, do Município de São Paulo — SP, verbo ad verbo: “Art. 1º – A licença de localização para a instalação de novas farmácias e drogarias no Município será concedida somente quando o estabelecimento ficar situado a uma distância mínima de 200 (duzentos) metros de raio da farmácia ou drogaria mais próxima já existente.” Cf. SÃO PAULO. Lei n. 10.991, de 13 de junho de 1991. Disponível em: <http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/fulltext/leis/L10991.pdf>. Acesso em: 5 mai. 2011. 233 Examinando a terminologia jurídico-farmacêutica planteada nos incisos X e XI do art. 1º da Lei n. 5.991, de 17 de dezembro de 1973, a Lei de Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e Correlatos, nota-se que tanto a drogaria quanto a farmácia atuam na “dispensação e comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos” (parte da definição legal de drogaria, positivada no aludido inciso XI), com a diferença de que a farmácia possui raio de atuação mais amplo, a abranger — além daquela atividade igual à da drogaria — a “manipulação de fórmulas magistrais e oficinais” e o “atendimento privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra equivalente de assistência médica” (parte da definição legal de farmácia agasalhada no inciso X). Cf. BRASIL. Lei n. 5.991, de 17 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e Correlatos, e dá outras Providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5991.htm>. Acesso em: 6 mai. 2011. 229 230 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 37 Em outras palavras, no referido decisum, o Pretório Excelso, vencido o voto do Ministro-Relator Carlos Velloso em face da divergência aberta (ainda quando o processo tramitava na Segunda Turma) pelo voto do Ministro Maurício Corrêa, esplendeu que tal restrição geográfica “induz à concentração capitalista, em detrimento do consumidor, e implica cerceamento do exercício do princípio constitucional da livra concorrência, que é uma manifestação da liberdade de iniciativa econômica privada”234. O voto condutor, pronunciado pelo Ministro Maurício Corrêa, ao vislumbrar tal diploma legislativo paulistano como meio de fomento à concentração capitalista, ressaltou que a medida legislativa sub examine, ao tolher a livre concorrência, garante, no perímetro em que fora interditada a criação de nova farmácia ou drogaria, o lucro do estabelecimento já situado em tal área, ao mesmo tempo que empecilha o acesso do consumidor local a melhores preços: [...] A limitação geográfica imposta à instalação de drogarias somente conduz à assertiva de concentração capitalista, assegurando, no perímetro, o lucro da farmácia já estabelecida. Dificulta o exercício da livre concorrência, que é uma manifestação do princípio da liberdade de iniciativa econômica privada garantida pela Carta Federal quando estatui que “a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. (art. 173, § 4º).”235 O Ministro Nelson Jobim destacou a incompetência dos Municípios para editarem leis que invadam a seara das infrações da ordem econômica (além de consubstanciar matéria disciplinada em diploma legislativo federal, a mencionada Lei n. 8.884/1994, Capítulo II, arts. 20 a 21, trata-se de questão pertinente ao Direito Econômico, competência legislativa não municipal e concorrente da União, dos BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Trecho da ementa do acórdão em sede do Recurso Extraordinário n. 193749/SP. Relator: Ministro Carlos Velloso. Relator para o acórdão: Ministro Maurício Corrêa. Brasília, DF, 4 de junho de 1998. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 4 mai. 2001, p. 35. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 5 mai. 2011, grifo nosso. 235 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Trecho da fundamentação do voto condutor proferido pelo Ministro Maurício Corrêa em sede do Recurso Extraordinário n. 193749/SP, ao transcrever passagem do voto alinhavado por ele mesmo (Ministro Maurício Corrêa) nos mesmos autos, ainda quando sob os auspícios da Segunda Turma do STF. Relator: Ministro Carlos Velloso. Relator para o acórdão: Ministro Maurício Corrêa. Brasília, DF, 4 de junho de 1998. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 4 mai. 2001, p. 35. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 5 mai. 2011, grifos do autor. 234 38 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Estados e do Distrito Federal — art. 24, inciso I, da CF/88), e, a par disso, rutilou que a norma municipal em liça fere a livre concorrência e o livre mercado: [...] Na verdade, a livre concorrência é assegurada sem a reserva de espaços públicos, mas o exercício legítimo da livre concorrência é fiscalizado a partir das regras da Lei nº 8.884, que disciplina as infrações à ordem econômica, que são as operações que possam fazer as partes, ou seja, os comerciantes, no sentido de estabelecimento de oligopólios e cartéis. Veja V. Exa. que o art. 20 define essa infração dizendo: “Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: ........................................ II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;” Creio que a legislação municipal extrapolou a sua área de abrangência. Não diz respeito a uso de solo urbano, nem a zoneamento, que é da competência efetiva do Município, mas às regras que pretendem disciplinar, na área urbana, o exercício de uma atividade a partir de pressupostos da concorrência. Essa norma fere o dispositivo constitucional da livre concorrência, e nossas preocupações em relação a um sistema de livre mercado, que seja legítimo, estão exatamente nos instrumentos de proteção da concorrência, traduzidos basicamente no Código de Defesa do Consumidor e na legislação que coíbe os abusos da ordem econômica.236 Mesmo entendimento foi reiterado pelo Pleno do Pretório Excelso no Recurso Extraordinário n. 199517/SP (Relator, Ministro Maurício Corrêa), também julgado aos 4 de junho de 1998 e assim sumulado: EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ARTIGO 1º DA LEI Nº 6.545/91, DO MUNICÍPIO DE CAMPINAS. LIMITAÇÃO GEOGRÁFICA À INSTALAÇÃO DE DROGARIAS. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A limitação geográfica à instalação de drogarias cerceia o exercício da livre concorrência, que é uma manifestação do princípio constitucional da liberdade de iniciativa econômica privada (CF/88, artigo 170, inciso IV e § único c/c o artigo 173, § 4º). 2. O desenvolvimento do BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Trecho da fundamentação do voto condutor proferido pelo Ministro Nelson Jobim em sede do Recurso Extraordinário n. 193749/SP. Relator: Ministro Carlos Velloso. Relator para o acórdão: Ministro Maurício Corrêa. Brasília, DF, 4 de junho de 1998. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 4 mai. 2001, p. 35. Disponível em: <http://www.stf.jus. br>. Acesso em: 5 mai. 2011. 236 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 39 poder econômico privado, fundado especialmente na concentração de empresas, é fator de limitação à própria iniciativa privada à medida que impede ou dificulta a expansão das pequenas iniciativas econômicas. 3. Inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 6.545/91, do Município de Campinas, declarada pelo Plenário desta Corte. Recurso extraordinário conhecido, porém não provido.237 O paradigmático precedente do Recurso Extraordinário n. 193749/SP restou invocado pelo Ministro-Relator Gilmar Mendes à fl. 153238 dos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2327/SP, ao proferir o voto condutor daquele julgamento. Ao ementar tal acórdão, consignou-se que o delineamento de “distância mínima para a instalação de novas farmácias e drogarias”239 ofende o “princípio constitucional da livre concorrência”240. Porém, no caso da alienação de estabelecimento empresarial, o alienante — registra Fabio Ulhoa Coelho — “não pode restabelecer-se na mesma praça, concorrendo com o adquirente, no prazo de 5 anos seguintes ao negócio”241, salvo autorização expressa, na exata inteligência do art. 1.147 do Código Civil de 2002. Observe-se que não se trata de interdição perpétua, porém temporária. Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery vislumbram tal interdição temporária à refixação de estabelecimento empresarial como consequência do princípio da boa-fé objetiva: É decorrência da cláusula geral de boa-fé objetiva (CC 422), expressão da função social do contrato e da base do negócio jurídico (CC 421), a circunstância que impede o alienante do estabelecimento de exercer concorrência ao adquirente, prevalecendo-se de sua anterior atividade empresária no referido estabelecimento. A venda de farmácia, por exemplo, faz com que todo o estabelecimento BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Ementa do acórdão em sede do Recurso Extraordinário n. 199517/SP. Relator: Ministro Carlos Velloso. Relator para o acórdão: Ministro Maurício Corrêa. Brasília, DF, 4 de junho de 1998. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 13 nov. 1998, p. 15. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 5 mai. 2011. 238 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Trecho do voto condutor do Ministro Gilmar Mendes nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2327/SP. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, DF, 8 de maio de 2003. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 22 ago. 2003, p. 20. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 5 mai. 2011, grifo nosso. 239 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Trecho da ementa do acórdão em sede da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2327/SP. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, DF, 8 de maio de 2003. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 22 ago. 2003, p. 20. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 5 mai. 2011, grifo nosso. 240 Ibid., loc. cit., grifo nosso. 241 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 31, grifo nosso. 237 40 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. empresarial (ponto, aviamento, clientela etc.) seja transferido ao adquirente, de modo que o vendedor não pode abrir comércio semelhante ao adquirente, tomando-lhe a clientela, o aviamento etc. Isto porque quem vende estabelecimento tem o dever de agir (boafé objetiva) de conformidade com o que o comprador dele espera: entrega completa do estabelecimento empresarial, com o dever de não lhe fazer concorrência. A norma do CC 1147 caput está em conformidade com as do CC 421 e 422. [...]242 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 1 No Brasil, mostra-se expressiva a quantidade de trabalhos monográficos publicados em formato de livros-texto e dedicados especificamente ao princípio da proporcionalidade e/ou ao princípio da razoabilidade, elenco a abranger as mais diversas áreas e temáticas jurídicas, a exemplo da Teoria Geral do Direito, do Direito Constitucional, da Teoria dos Direitos Fundamentais, do Direito Administrativo, do Direito Ambiental, do Direito Tributário, do Direito de Trânsito, do Direito do Consumidor, do Direito Penal, do Direito Processual Civil e do Direito Processual Penal. 2 Na dogmática jurídica brasileira contemporânea, nota-se considerável diversidade de pensamento quanto às distinções e semelhanças entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Há correntes doutrinárias que consideram ambos os princípios possuidores do mesmo conteúdo essencial, apesar das origens geográficas e culturais distintas. Há correntes doutrinárias que os distinguem tendo em vista a forma diversa como foram moldados em face dos diferentes sistemas jurídicos em que se forjaram. Há correntes doutrinárias que inserem o princípio da razoabilidade dentro do campo de incidência do princípio da proporcionalidade. E há correntes doutrinárias que encaixilham o princípio da proporcionalidade no interior do princípio da razoabilidade. 3 Serve de achega a esse debate o trabalho intitulado As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais, sobejamente lastreado na jurisprudência anglo-saxônica do final do século XIX e 242 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 5. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 803-804. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 41 início do século XX, constante do tomo I do volume XL (correspondente ao ano de 1913) das Obras Completas de Rui Barbosa, originalmente redigido sob a forma de memorial forense. 4 No referido memorial forense (§ 278), Rui Barbosa considera justificável a limitação temporal e espacial à liberdade comercial, desde que não seja uma “interdição perpétua e universal”, uma vez que, nesse caso, significaria a “abdicação da liberdade e personalidade humana, que o direito não a pode sancionar”. Esteado em tal premissa, infere (§ 301) a “nulidade jurídica dos contratos de cessão de clientela, ainda mesmo expressos, quando sem limites de tempo e espaço”. 5 Compulsando-se tal memorial alinhavado por Rui, percebe-se o pioneirismo do estadista baiano em se debruçar, na primeira metade da década de 1910, sobre questões jurídicas que se tonariam, mormente a partir de década de 2000, aspecto central do debate jurídico brasileiro, mormente na seara do Direito Constitucional e da Teoria dos Direitos Fundamentais. Mais do que isso: por meio do estudo ruiano, percebe-se a possibilidade de diálogo entre a dimensão da necessidade do princípio tridimensional da proporcionalidade (matriz alemã) e o princípio da razoabilidade (matriz anglo-saxônica). 6 A formulação de origem germânica do critério da necessidade se aproxima, em essência, do conteúdo do princípio da razoabilidade extraído por Rui Barbosa da jurisprudência dos Estados Unidos e do Reino Unido do final século XIX e início do século XX, ao defender a possibilidade de que seja regular e justificável a interdição ilimitada e prevista em contrato da liberdade de comércio ou de indústria, quando unicamente de cunho temporal, ou quando unicamente de caráter espacial, considerando irrazoável (não razoável, sem razão ou irracional) a interdição perpétua e universal de jaez temporal e, ao mesmo tempo, espacial (§§ 278, 279, 282 e 284). 7 Rui colheu (§§ 279) da obra de Edmund H. T. Snell intitulada “The Principles of Equity: intended for the use of students and of practitioners” precedentes da jurisprudência inglesa a reconhecerem a nulidade de “contratos de interdição geral de um comércio”, salvo se “a interdição, sendo limitada, como a de não exercer alguém certo comércio em determinado lugar ou por tempo razoável”. Posto de outro 42 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. modo: afigura-se válido contrato de interdição de comércio, “se bem que ilimitado quanto ao espaço [Nordenfelt v. Maxim Co., Limited, 1894, A. C. 535], ou, até, quando ilimitado quanto ao tempo [Haynes v. Doman, 1899, 2 Ch. 13], supondose sempre que seja razoável nas circunstâncias de um e outro caso”. 8 No entanto, o jurista baiano pondera (§ 280) que o critério adotado à época na Inglaterra (primeira metade da década de 1910) deixava de ser meramente de cunho temporal e espacial, à medida que se disseminava naquela jurisprudência o parâmetro da razoabilidade (conjugado com a análise da abrangência territorial da proibição ao exercício do comércio). 9 Nesse contexto, para se aquilatar se determinada interdição na liberdade comercial de âmbito territorial e temporal seria razoável, Rui Barbosa traz a lume (§§ 280 e 285) baliza pretoriana que muito recorda o princípio parcial da necessidade ou da exigibilidade de matriz alemã quanto à proibição de excesso, isto é, a vedação ao exercício de direito além do indispensável à adequada proteção do interesse do titular do direito. 10 Rui Barbosa, ao repelir as interdições perpétuas e universais da liberdade de empresa e de concorrência de cunho simultaneamente temporal e espacial (previstas, in casu, em contratos de alienação de estabelecimentos comerciais e industriais), denota-se em harmonia com o princípio constitucional da liberdade de iniciativa econômica. 11 Na esteira, menciona-se, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desenvolvida com alicerce no paradigmático acórdão em sede do Recurso Extraordinário n. 193749/SP (Relator para o acórdão, Ministro Maurício Corrêa), de 4 de junho de 1998, o qual julgou inconstitucional norma legal municipal a impor limitação geográfica (fixação de distância mínima) para o estabelecimento de farmácias e drogarias, ao reputar tal ato legislativo ofensivo ao princípio da livre iniciativa e deletério à ordem consumerista. 12 No plano infraconstitucional também se extrai (a contrario sensu) vedação à interdição perpétua, na medida em que o art. 1.147 do Código Civil de 2002 veda ao alienante de estabelecimento empresarial fazer concorrência ao adquirente “nos cinco anos subsequentes à transferência” (grifo nosso), ou seja, proíbe-se por prazo certo, e não de forma ilimitada. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 43 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. AGUIRRE, José Eduardo Suppioni de. Aplicação do princípio da proporcionalidade no processo civil. Porto Alegre: Fabris, 2005. AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. In: TORRENS, Haradja Leite; ALCOFORADO, Mario Sawatani Guedes (Org.). A expansão do direito: estudos de direito constitucional e filosofia do direito em homenagem a Willis Santiago Guerra Filho (por duas décadas de docência e pesquisas). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 83-299. ______. Revista dos Tribunais, v. 91, n. 798, p. 23-50, abr. 2002. AFONSO DA SILVA, José. Comentário contextual à Constituição. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009 ______. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. AMARAL, Thiago Bottino do. Ponderação de normas em matéria penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. ARAÚJO, Francisco Fernandes de. O abuso do direito processual e o princípio da proporcionalidade na execução civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004. ______. Princípio da proporcionalidade: significado e aplicação prática. Campinas: Copola, 2002. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Provas ilícitas e proporcionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. Curitiba: Juruá, 2006. BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa: as cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1948, v. 40, t. 1. Disponível em: <http://www. casaruibarbosa.gov.br/rbonline/obrasCompletas.htm>. Acesso em: 20 abr. 2011. 44 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3. ed. Brasília, DF: Brasília Jurídica, 2003. BARROS, Wellington Pacheco; BARROS, Wellington Gabriel Zuchetto. A proporcionalidade como princípio de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio (Org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 271-316. (Coleção Teoria & Direito Público, v. 2) BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lucerna, 2009. BONICIO, Marcelo José Magalhães. Proporcionalidade e processo: a garantia constitucional da proporcionalidade, a legitimação do processo civil e o controle das decisões judiciais. São Paulo: Atlas, 2006. (Coleção Atlas de Processo Civil) BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. BRAGA, Valeschka e Silva Braga. Princípios da proporcionalidade & razoabilidade. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008. BRANCO, Luiz Carlos. Equidade, proporcionalidade e razoabilidade: doutrina e jurisprudência. São Paulo: RCS, 2006. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 1º mai. 2011. ______. Decreto n. 5.039, de 7 de abril de 2004. Aprova o Estatuto e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções Gratificadas da Fundação Casa de Rui Barbosa ― FCRB, e dá outras providências. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5039.htm>. Acesso em: 20 abr. 2011. ______. Decreto-Lei n. 22.168, de 25 de novembro de 1946. Aprova o Regimento Interno da Casa de Rui Barbosa. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/ legislacao/ListaPublicacoes.action?id=232331>. Acesso em: 20 abr. 2011. ______. Decreto-Lei n. 3.668, de 30 de setembro de 1941. Dispõe sobre a publicação das Obras Completas de Rui Barbosa. Disponível em: <http://www6.senado. gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=29579>. Acesso em: 20 abr. 2011. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 45 ______. Fundação Casa de Rui Barbosa. Obras Completas de Rui Barbosa ― OCRBdigital. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/rbonline/ obrasCompletas.htm>. Acesso em: 20 abr. 2011. ______. Lei n. 4.943, de 6 de abril de 1966. Transforma em Fundação a atual Casa de Rui Barbosa e dá outras providências. Disponível em: <http://www.cultura. gov.br/site/wp-content/uploads/2007/11/lei-4943-de-1966.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2011. ______. Lei n. 5.991, de 17 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e Correlatos, e dá outras Providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Leis/L5991.htm>. Acesso em: 6 mai. 2011. ______. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2327/SP. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, DF, 8 de maio de 2003. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 22 ago. 2003, p. 20. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 5 mai. 2011. ______. Supremo fecha semestre com avanços na informatização de processos. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=7 0428&caixaBusca=N>. Acesso em: 20 abr. 2011. ______. (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário n. 193749/SP. Relator: Ministro Carlos Velloso. Relator para o acórdão: Ministro Maurício Corrêa. Brasília, DF, 4 de junho de 1998. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 4 mai. 2001, p. 35. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 5 mai. 2011. ______. Recurso Extraordinário n. 199517/SP. Relator: Ministro Carlos Velloso. Relator para o acórdão: Ministro Maurício Corrêa. Brasília, DF, 4 de junho de 1998. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 13 nov. 1998, p. 15. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 5 mai. 2011. CALCINI, Fábio Pallaretti. O princípio da razoabilidade: um limite à discricionariedade administrativa. Campinas: Millennium, 2005. CANAS, Vitalino. Proporcionalidade (princípio da). In: Dicionário Jurídico Da Administração Pública. Lisboa: 1994, separata do v. 6. p. 623-624. 46 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. CARDOSO, Henrique Ribeiro. Proporcionalidade e argumentação: a teoria de Robert Alexy e seus pressupostos filosóficos. Curitiba: Juruá, 2009. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. CHADE, Rezek Neto. O princípio da proporcionalidade no Estado Democrático de Direito. Franca: Lemos & Cruz, 2004. CHAIB, Liana. O princípio da proporcionalidade no controle do ato administrativo. São Paulo: LTr, 2008. CHIMENTI, Ricardo Cunha; SANTOS, Marisa Ferreira dos; ROSA, Márcio Fernando Elias; CAPEZ, Fernando. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: Direito de Empresa. 12. ed. São Paulo: Saraiva 2008, v. 1. ______.Manual de direito comercial. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. COELHO, Inocêncio Mártires. A experiência constitucional brasileira: da Carta Imperial de 1824 à Constituição democrática de 1988. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. Cap. 3, p. 183-213. CORREIA, Belize Câmara. O controle de constitucionalidade dos tipos penais incriminadores à luz da proporcionalidade. Porto Alegre: Fabris, 2009. CRETTON, Ricardo Aziz. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e sua aplicação no Direito Tributário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Colisões entre princípios constitucionais: razoabilidade, proporcionalidade e argumentação jurídica. Curitiba: Juruá, 2009. D’URSO, Flavia. Princípio constitucional da proporcionalidade no processo penal. São Paulo: Atlas, 2007. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2008. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: RT, 2007. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 47 DINIZ, Sílvia Paula Alencar. Contribuição de Rui Barbosa para a formação do pensamento constitucional brasileiro. In: LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; ANDRADE, Denise de Almeida de; ALENCAR, Emanuela Cardoso Onofre de; JUCÁ, Roberta Laena Costa; QUEIROZ, Paulo Roberto Clementino (Org.). Temas de pensamento constitucional brasileiro. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2008, v. 1. Cap. 29, p. 636-660. ESSADO, Tiago Cintra. O princípio da proporcionalidade no Direito Penal. Porto Alegre: Fabris, 2008. FELDENS, Luciano. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. FERNANDES, Daniel André. Os princípios da razoabilidade e da ampla defesa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. FERRAZ, Leonardo de Araújo. Da teoria à crítica: princípio da proporcionalidade: uma visão com base nas doutrinas de Robert Alexy e Jürgen Habermas. Belo Horizonte: Dictum, 2009. FERREIRA NETO, Manoel Aureliano. A aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade nas relações de consumo: decisões não fundamentadas, que não traduzem os critérios jurídicos na aplicação desses princípios. São Luís: Fiuza, 2008. FIGUEIREDO, Sylvia Marlene de Castro. A interpretação constitucional e o princípio da proporcionalidade. São Paulo: RCS, 2005. FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito econômico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. FROTA, Hidemberg Alves da. O princípio tridimensional da proporcionalidade no Direito Administrativo: um estudo à luz da Principiologia do Direito Constitucional e Administrativo, bem como da jurisprudência brasileira e estrangeira. Rio de Janeiro: GZ, 2009. GAVIÃO FILHO, Anizio. Colisão de direitos fundamentais, argumentação e ponderação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. GÓES, Gisele Santos Fernandes. Princípio da proporcionalidade no processo civil: o poder de criatividade do juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Saraiva, 2004. 48 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. GOMES, Marcus Alan de Melo. Princípio da proporcionalidade e extinção antecipada da pena. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: RT, 2003. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade. In: GUERRA FILHO, Willis Santiago (Org.). Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. Cap. I, p. 11-29. ______. O princípio da proporcionalidade em Direito constitucional e em Direito privado no Brasil. In: ALVIM, Arruda; CÉSAR, Joaquim Portes de Cerqueira; ROSAS, Roberto (Org.). Aspectos controvertidos do Novo Código Civil: escritos em homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves. São Paulo: RT, 2003. p. 583-596. ELLIS, Evelyn. The principle of proportionality in the Laws of Europe. Oxford: Hart, 1999. FAGUNDES, Miguel Seabra. Da proteção do indivíduo contra o ato administrativo ilegal ou injusto. Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, Rio de Janeiro, v. 5, n. 18, p. 1-37, jun. 1946. FARIA, Werter. Noção de empresa no Direito da Concorrência. Revista do Instituto dos Advogados do Paraná: Semana de Estudos em Homenagem ao Professor Rubens Requião: tendências atuais do Direito Comercial, Curitiba, n. 29, p. 145-164, 2000. INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 1 CD-ROM. MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. MESQUITA, Eduardo Melo de. O princípio da proporcionalidade e as tutelas de urgência. Curitiba: Juruá, 2006. (Biblioteca de Estudos em Homenagem ao Professor Arruda Alvim) Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 49 MORATO, Francisco Antônio de Almeida. Prefácio. In: BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa: as cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1948, v. 40, t. 1, p. XV-XVI. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/rbonline/obrasCompletas.htm>. Acesso em: 20 abr. 2011. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 5. ed. São Paulo: RT, 2007. NOHARA, Irene Patrícia. Limites à razoabilidade nos atos administrativos. São Paulo: Atlas, 2006. OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006. (Coleção Temas de Direito Administrativo, v. 16) OVALLE, Claudenei Leão. Os ilícitos contra a ordem tributária e a proporcionalidade das multas aplicáveis. Leme: Mizuno, 2009. PACHECO, Denilson Feitoza. O princípio da proporcionalidade no direito processual brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. PEDRA, Anderson Sant’Ana. O controle da proporcionalidade dos atos legislativos: a hermenêutica constitucional como instrumento. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000. PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa do. A ponderação de interesses em matéria de prova no processo penal. São Paulo: IBCCRIM, 2006. PUHL, Adilson Josemar. Princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade. São Paulo: Pillares, 2005. QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade das normas e sua repercussão no processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. SÃO PAULO. Lei n. 10.991, de 13 de junho de 1991. Disponível em: <http:// camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/fulltext/leis/L10991.pdf>. Acesso em: 5 mai. 2011. 50 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. SANTOS, Gustavo Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: limites e possibilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. SANTOS, Jarbas Luiz dos. Princípio da proporcionalidade: concepção grega de justiça como fundamento filosófico; implicações. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de direito constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. SILVA, De Plácido. Vocabulário jurídico. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. SNELL, Edmund H. T. The Principles of Equity: intended for the use of students and of practitioners. 16th ed. London: Stevens & Haynes, 1912. Disponível em: <http:// www.archive.org/download/cu31924021656222/cu31924021656222.pdf>. Acesso em: 9 mai. 2011. ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Máxima da proporcionalidade aplicada: a quebra do sigilo bancário pelo Fisco e o direito fundamental à vida privada. Florianópolis: Momento Atual, 2004. Recebido em: 17/04/2012. Aceito em: 01/07/2012. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 51 52 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. ASPECTOS BASILARES DA DEONTOLOGIA JURÍDICA COMO CIÊNCIA DO COMPORTAMENTO HUMANO Nadia Sater GEBARA1 Resumo: O presente estudo tem por finalidade abordar questões pertinentes à ética e à dimensão humana no contexto das atividades profissionais ligadas à atividade do advogado, que tem na deontologia jurídica sua institucionalização e especificidades. O tema abordado objetiva uma reflexão sobre a moralidade e a ética para compreender as ações pelas quais perpassam as contextualidades propostas pelas diferentes correntes filosóficas que nutrem e fundamentam toda estrutura da deontologia como regra de conduta humana para o agir diante das diversidades sociais e profissionais. O estudo abarca ainda, posicionamentos importantes que sustentam a preocupação com o equilíbrio social, fundado na conscientização e relevância dos preceitos morais e dos princípios universais conduzidos no decorrer da história do pensamento filosófico e que ganham significados diferentes frente as diversidades culturais e a modernidade. Palavras chave: ética – conduta humana – valores sociais Abstract: this study aims to address issues relevant to ethics and to the human dimension in the context of professional activities related to the lawyer’s activity, which has in its legal ethics and institutionalization specificities. The subject is a reflection on morality and ethics in understanding the actions by which permeate the contextualidades proposed by different philosophical currents that nourish and underlie the whole structure of professional ethics as a rule of human conduct to the Act on social and professional diversity. The study also covers important positions that support the concern with the social balance, founded on the awareness and importance of moral precepts and conducted in the course of universal principles history of philosophical thought and who earn different meanings and cultural diversities front to modernity. Keywords: Ethics – human conduct – social values Licenciada em Pedagogia pela UNIGRAN, Bacharel em Direito, Especialização em Metodologia de Ensino Superior pela UNIGRAN, Professora Universitária, Mestranda em Desenvolvimento Local em Contexto de Territorialidade na Universidade Dom Bosco. Contato: e-mail: [email protected]. 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 53 1. INTRODUÇÃO A Deontologia Geral é a ciência que tem como objeto de estudo a conduta humana no contexto dos fundamentos filosóficos da moral e da ética, permeado dos valores culturais e religiosos. Sob o ponto de vista empírico, pode ser conceituada também como a ciência do dever, independente de questões axiológicas ou de motivações que levam à prática de determinado ato, mas apenas pelo cumprimento do que é considerado correto. Tão amplo o seu estudo que alguns autores a consideram como filosofia prática que se constrói no campo dos princípios e deveres morais assimilados no tempo e na história. Jeremy Bentham, em sua teoria sobre a ética utilitarista (1834), foi o primeiro filósofo a referir-se à Deontologia como a “ciência do que é justo e conveniente que o homem faça, dos valores que decorrem do dever ou norma que dirige o comportamento humano”. Toma-se como exemplo, uma forma de organização do comportamento, exigido de acordo com os valores de cada sociedade, flexível, dinâmico, mas com imposições e limites que possibilitam certo equilíbrio à convivência humana e à ordem social. Assim como as estruturas do poder público ou de uma empresa necessitam de uma organização racional no desenvolvimento de suas atividades e de distribuição de deveres, o homem necessita de princípios norteadores de sua conduta. A ética, como norma de conduta manifestadas pela Deontologia, pode ser equiparada á organização racional dos setores sociais preconizada por Weber (1940), em sua Teoria da Burocracia como um modelo de organização social. Pela teoria do autor demonstra-se a necessidade de uma organização racional das instituições sociais, e percebe-se que em todos os setores da vida humana, a ordem racional é o caminho mais correto para se atingir um objetivo maior que, não deve ser outro, senão o equilíbrio das relações pessoais e profissionais. Esse elementos podem conduzir ao bem-estar de todos e correspondem às funções sociais do Direito. Weber propôs ainda, a criação de um modelo de burocracia capaz 54 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. de sobrepor os interesses humanos e seguir a ordem da razão como a única forma possível para conduzir uma organização. Transferimos o pensamento do autor para a vida em sociedade, que tem o Estado como o responsável pela sua organização e controle, de modo a se evitar os demandos inerentes à conduta humana desregrada. A organização, segundo Weber, seria aplicável não somente aos setores da economia, mas a todas as formas de organização humana. Analisando a teoria de Weber ao utilitarismo de Bentham e a capacidade racional do homem, como recursos capaz de coibir abusos praticados por sua ação instintiva, as regras positivamente exteriorizadas em razão de uma prestação de atividade, impõem ao sujeito sua integralização e internalização. Com isso, a moral que é um sentimento próprio de cada um, manifesta-se pela reiteração da conduta exteriorizada pelas regras institucionalizadas. Fundamental se faz também, a abordagem de outros pensadores que defendem a necessidade de um controle formal das ações sociais, com vistas o bem comum. Thomas Hobbes (1642), precursor de Rousseau, ao abordar sobre em seu contratualismo, registrou histórica e universalmente a imprescindibilidade de se defender o poder absoluto do Estado. O filósofo racionalista estudou o homem em seu estado natural, em que a justiça era pensada e se manifestava sob a forma de vingança, feita pelas próprias mãos ou pelo exercício da autodefesa. Certificou que, nessas condições naturais, a humanidade chegaria ao caos. Em contraposição à esse desequilíbrio social promovido pelo próprio instinto humano, formulou uma teoria que fundamenta, até os dias atuais, a necessidade de um Estado soberano para manter a ordem. A construção hipotética do autor o levou a afirmar que o Estado conduzido pelo pacto social, assegurava ao homem conter suas intemperanças e se sujeitar às regras do Estado, como o meio mais eficaz de convívio social, pois, em sua concepção, no estado de natureza, a condição do homem é de guerra, de todos contra todos. No Estado Civil, para deixar essa situação de guerra, os homens passam a se sujeitar às limitações de suas ações impostas pelo Estado Absoluto (ROUSSEAU, 2002). Hans Welzel, ao estudar sobre as teorias de Hobbes considera que... Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 55 “Todas estas fuentes tan diversas robustecen la idea pesimista que Hobbes tiene del hombre como un ser dinámico y peligroso como un lobo, que, al revés que los otros lobos, no tiene instintos sociales, y sólo es animado por el ansia de dominación sobre los demás.” (WELZEL,1957). Em outras palavras, nos homens, assim como nos lobos prevalecem os instintos da sua própria natureza animal, ainda que vivam em sociedade, têm necessidade de dominar. A principal condição para a ordem social, é que o homem deixe o seu estado natural e utilizasse a razão, guiado pelas regras criadas pelas instituições sociais. É o que ensina Norberto Bobbio sobre o pensamento de Hobbes: “O estado de natureza, como dissemos, é à longo prazo intolerável, já que não assegura ao homem a obtenção do ‘primum bonum’, que é a vida. Sob forma de leis naturais, a reta razão sugere ao homem uma série de regras (...), que têm por finalidade tornar possível uma coexistência pacífica.” (BOBBIO,1998). Em estudo seguinte, no século XVIII, Jean Jacques Rousseau, reitera o mesmo pensamento de Hobbes e afirma que a liberdade e o bem estar do homem só poderiam ser consolidados pelo contrato social instituído pelo Estado, governado pelos bons. A vontade de todos representaria a própria vontade do Estado que equivaleria ao bem comum. A breve menção feita acima, retiradas dos inesgotáveis ensinamentos, ampara a reflexão e ressalta a importância da Deontologia como o estudo do dever ético das profissões e que impõe em toda atuação, como ciência que disciplina suas condutas e sobre as quais imperam regras éticas de relações sociais e profissionais. A ética, vista tanto sob a capacidade do homem pela razão em controlar seus atos e, neste caso trata-se da moral interior, como a ética sob o ponto de vista das instituições, advindas da necessidade de um domínio imposto pelas normas de conduta. Como regra de conduta, a ética é estudada e organizada pela deontologia. Esta, por sua vez impõem-se às inúmeras classes profissionais e, no estudo aqui tratado, à classe dos advogados pois esses profissionais atuam em nome de terceiros e representam garantias do direito vigente na ordem democrática. Tal garantia vem expressa no texto da Constituição Federal em seu Artigo 133: O 56 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. Bentham(1998), ao definir conceitos sobre a ética utilitarista, trata sobre o princípio da felicidade como uma conquista que só pode ser atingida pelas ações praticadas. Essas ações devem ser capazes de trazer a máxima felicidade para o maior número possível de indivíduos. Assim, a máxima felicidade para todos (humanidade) surge como o objetivo principal da filosofia utilitarista. Pela vontade racional, o homem deve ser capaz de ações direcionadas ao bem que lhe propicia a felicidade; só pela vontade o homem alcança o prazer, esta vontade deve se servir da razão, da consciência que permitirá o discernimento entre o que é bom e o que é mal. Este posicionamento constitui o princípio de sua teoria. Neste sentido, a pessoa humana deve praticar somente aquilo que é bom; aquilo que poderá ser revertido em seu favor e, por conseguinte, em favor da humanidade, que caracterizam os aspectos da confiança, da boa-fé, da solidariedade e da justiça como alicerces do Direito. Abre-se aqui um parêntese, para lembrar que essa teoria vem representada expressamente nas normas do direito administrativo, especialmente aquelas direcionadas a regular a atuação do homem público, norteadas pelos princípios da impessoalidade, da probidade administrativa, da legalidade, da eficiência, subsidiadas pela solidariedade e pelos princípios do Direito Constitucional. Os princípios que orientam a atuação do Estado são imposições de ordem moral e da ética deontológica, que legitimam as decisões. O caráter da responsabilidade de cada um dos membros envolvidos no processo de desenvolvimento de comunidades e a responsabilidade, está intrinsecamente relacionada à definição de Ética. A ética, representa a emancipação de uma comunidade, pois tem raízes vigorosas e profundas na confiança, na solidariedade e no dever ser e é considerada, de acordo com Leonardo Boff, como “concepções de fundo acerca da vida, do universo, do ser humano e de seu destino, estatui princípios e valores que orientam pessoas e sociedades. Uma pessoa é ética quando se orienta por princípios e convicções. Dizemos, então, que tem caráter e boa índole” (BOFF, 2003). Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 57 Nesse sentido, conduta humana e moralmente ética, desperta a confiabilidade e a cidadania sendo capaz transformar para desenvolver, com consequente democratização, inclusive em relação à ordem econômica, cultural, ambiental, de acesso aos direitos. Se ser ético é preservar os valores morais na condução das ações, significa dizer que, ser ético é, por consequência, ser cidadão pleno de direitos e deveres, pois viver eticamente comporta o bom relacionamento com as pessoas, o respeito com o ambiente e com as organizações sociais e os próprios “sistemas”, Bauman (1999). Neste sentido, a teoria moral e da legislação apresentada pelo princípio da utilidade apresenta-se por Bentham da seguinte forma: [...] Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover ou a comprometer a referida felicidade. Digo qualquer ação, com o que tenciono dizer que isto vale não somente para qualquer ação de um indivíduo particular, mas também para qualquer ato ou medida de governo [...]”. Ou, em outros termos, o princípio da utilidade é exposto da seguinte forma: “[...] O princípio que estabelece a maior felicidade de todos aqueles cujo interesse está em jogo, como sendo a justa e adequada finalidade da ação humana, e até a única finalidade justa, adequada e universalmente desejável: da ação humana, digo, em qualquer situação ou estado de vida, sobretudo na condição de um funcionário ou grupo de funcionários que exercem os poderes do governo [...].(BENTHAM,1988). Outra questão apontada como requisito para uma conduta ética é o fato de o indivíduo agir de acordo com sua vontade. Sem vontade própria não há discernimento ou consciência que permita a decisão de agir para o bem, haveria, neste caso, apenas a fatalidade. Segundo Hobbes e Kant, nas obras citadas, asseveram que a liberdade para agir se faz indispensável por parte do sujeito que aceita e compreende a ação da vontade e que se decidiu pelo bem que lhe é revelado pela consciência. Toda conduta que intentar ou interferir na concretização desses fins existenciais, será conduta nociva, quer ao destino do próprio sujeito, quer ao destino de sua comunidade. 58 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Qualquer conduta contrária, implicará na ruptura da ordem natural das coisas, da quebra do equilíbrio social. A experiência da pessoa humana no mundo permite-lhe perceber que não é ela, tão somente, a medida de todas as coisas e nem o centro do universo, mas que a sua existência no universo depende das leis físicas, de leis biológicas de leis sociais e da própria natureza cósmica, da própria lei natural. Não é por acaso que se agregou um novo valor essencial à sobrevivência da humanidade: a ecologia, ciência considerada moderna e indispensável nos estudos da sustentabilidade da sociedade moderna. Os preceitos que respondem às inquietudes humanas, sobre o seus deveres se fundamentam na existência da própria lei que lhe impõe o cumprimento dos deveres, a liberdade de autodeterminação do homem, o livre arbítrio em cumprir ou não os deveres e as consequências recompensatórias, a concretização ou a frustração dos fins existenciais. Esses fundamentos primários e consolidados pela humanidade, amparam-se em alguns princípios universais como: “fazer o bem e evitar o mal”; ou “dar a cada um o que é seu”(preceito fecundo da filosofia grega e cristã, muito forte em Santo Agostinho e até no Direito Romano (Institutas de Justiniano, 533 d.C.), nos princípios humanistas da solidariedade e igualdade e nos preceitos universais de convivência social. Immanuel Kant, na mesma linha de pensamento de Rousseau e Hobbes, ressalta o uso da razão como forma de preservar os princípios que se relacionam com a vontade e o dever de agir sobre os preceitos da moral. Segundo o jusfilósofo, a razão, a sensibilidade e o entendimento são aparatos presentes em todo homem e funcionam como um “imperativo categórico”. Agir livremente, mas corretamente, é um comando moral e agir contrariamente seria o absurdo. Neste sentido, diz o autor: “Procede segundo máximas tais que possam ao mesmo tempo tomar-se a si mesmas por objeto como leis universais da natureza.” (KANT, 2004). Estabelecendo a relação entre os temas acima abordados, é possível concluir que, se o dever é o bem enquanto obrigatório, se o bem faz nascer o dever, daí resulta que o cumprimento do dever faz gerar a responsabilidade. Mas Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 59 se faz mister que o atendimento do dever tenha sido inteiramente livre. Quem não é livre não é responsável. Aristóteles, ao estudar sobre o comportamento humano, questionava como o homem deve viver. Do que precisa? O ponto de partida de sua argumentação foi o meio termo, a ponderação e o equilíbrio. Não devemos ser covardes, mas corajosos. Coragem de menos significa covardia e coragem demais significa audácia. Não ser avarento, nem extravagante, mas generosos. Generosidade de menos é avareza e generosidade demais é extravagância...Entre as ações e as paixões, o erro consiste ora em manter-se aquém, ora em ir além do que é conveniente. A virtude é saber aplicar a justa medida, numa média (ARISTÓTELES, 1999). Segundo Aristóteles, a virtude deve ser um hábito, uma qualidade ou disposição, permanente no ânimo do indivíduo para praticar o bem. Portanto, a conduta do homem deve sempre se manter em equilíbrio. A virtude não é inata, pois o homem adquire através de um comportamento ponderado, pela prática reiterada da boa conduta. Platão, na mesma linha de pensamento, descreve as quatro virtudes cardeais do homem: A sabedoria (o sábio tinha mais condições de ser virtuoso, pois o conhecimento leva o homem ao entendimento e compreensão do que é o bem e o mal); a fortaleza (disposição em enfrentar perigos e suportar males e não retroceder, aliada a paciência que consiste na capacidade de suportar adversidades); a temperança (consiste no aperfeiçoamento da potência sensitiva, de modo a conter o prazer sensual pela própria razão. A temperança é a moderação do agir e do pensar, pela qual assegura-se a liberdade do homem como senhor de seu prazer, em vez de seus escravos. É o desfrutar livre, e que, por isso, desfruta melhor ainda, pois desfruta também sua própria liberdade. Assim, a moderação no comer, sobriedade no beber, o domínio de si mesmo e a vontade de não se deixar desviar do bem) e a justiça (como forma de distribuição da equidade) (PLATÃO, 2002). Na atualidade, percorrendo todas as mudanças sociais, permanecem os mesmos ensinamentos que sustentam as afirmações da razão humana como 60 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. alicerce do equilíbrio social e que podem ser codificados, compreendido por Bittar, pela compreensão da ética como disciplina do comportamento profissional do homem e que tem como núcleo de sustentação a própria moral de cada um (BITTAR, 2002). 2 ÉTICA E COMPORTAMENTO HUMANO Como a ética está diretamente ligada ao comportamento e às escolhas humanas, pode-se dizer que ela foi profundamente influenciada e reconstruída ao longo dessas revoluções. Isso se aplica tanto a especulação ética, entendida como o “estudo dos padrões de comportamento, das formas de comportamento, das modalidades de ação ética, dos possíveis valores em jogo para a escolha ética”; quanto a prática ética, definida como “a conjugação de atitudes permanentes de vida, em que se construam, interior e exteriormente, atitudes gerenciadas pela razão e administradas perante os sentidos e os apetites.” (BITTAR, 2002) Entre a ponderação e o equilíbrio que deve haver uma conduta livre e consciente do agente, de modo que o resultado ofensivo dela decorrente, há de estar assentado no exercício ético cotidiano. Essa prática ética fundada nas leis morais, serve para descortinar os mistérios eventualmente existentes nessa conduta. O olhar ético nesse contexto é capaz de filtrar e de definir a medida justa do certo e razoável, do errado e desproporcional (ou do certo e desproporcional). Hans Kelsen questiona o conceito de justiça na ordem social: “A ordem regula a conduta dos homens de modo satisfatório a todos, ou seja, que todos os homens encontram nela a felicidade. O anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade. É a felicidade que o homem não pode encontrar como indivíduo isolado e que portanto, procura em sociedade. A justiça é a felicidade social.” (KELSEN, 2000) A lei natural direciona a pessoa para a perfeição de sua natureza, mas sem impor um comportamento e sim preservando a sua autodeterminação, seu livre arbítrio. A Lei moral é para a pessoa humana, segundo Kant, um imperativo de sua própria natureza. A obrigação moral é uma necessidade se for considerado Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 61 que não há outra forma de se atingir a plenitude de sua natureza senão conforme a obediência à Lei Natural, todavia, é também uma necessidade condicionada, na medida em que depende da autodeterminação do homem. Residem nesses estudos os ensinamentos da Deontologia Jurídica como disciplina ou ciência que pesquisa o comportamento ético do profissional do direito e que tem em seu conteúdo os fundamentos que embasam os Estatutos da Ordem dos Advogados do Brasil, da Magistratura, do Ministério Público e os Regimentos dos Tribunais. Ao profissional da carreira jurídica pressupõem-se condutas extremamente rigorosas no que tange o trato aos direitos preconizados no ordenamento jurídico como meio de garantir o pleno exercício desses direitos como verdadeira concretização da justiça e da proteção social. A solução de conflitos, função primeira do direito dar-se por força da ética ou do próprio direito, haja vista a conexão entre as duas ciências e ao operador do direito como instrumento mais eficiente de execução e de exteriorização da moralidade como fonte principal de sustentação da ordem universal. A Constituição Federal de 1988, reitere-se, prevê o exercício da advocacia como uma função social, como garantia da ampla defesa e do devido processo legal, instrumentos de garantia da ordem democrática de direito, colocando o advogado como papel indispensável na administração da justiça, critérios que só podem ser atendidos com observância ao posicionamento moral e ético desses profissionais. Neste sentido o advogado deve pautar-se em aplicar as máximas de Kant, com dever de agir “como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza”. A atuação do advogado deve corresponder às expectativas do cliente quando aos seus anseios por justiça, sendo o Direito, o caminho encontrado para recuperar sua dignidade e a condução de sua vida pessoal ou social. O advogado que contraria tais preceitos, rompe qualquer ordem ou expectativa social de justiça e respeitos aos direitos fundamentais. 62 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Indispensável se faz explicar que do estudo demandado acima, permitese chegar a conclusão, ainda que parcial, que a ética é comportamento virtuoso e medida que se exprime como a melhor forma de perpetuação da justiça, sendo esse o arrimo das relações sociais e profissionais estabelecidas pelo ordenamento jurídico. Os operadores do Direito carregam consigo o fardo maior da responsabilidade como defensores da justiça e da preservação da ordem social, quando incorporam à sua intelectualidade os conhecimentos jurídicos necessários para combater a injustiça e os males dela decorrentes. A relevância do estudo respalda-se na premissa nuclear de que ao advogado impõe-se em maior grau e rigor a observância de conduta ética no exercício de sua profissão, pautados pela lealdade e isonomia, pois é ele o representante e principal protagonista da sociedade democrática, frente as diversidades e conflitos sociais. O advogado, indispensável à administração equilibrada das relações sociais por meio da ética de consenso, da ética universal que busca privilegiar o público em detrimento do privado, o que não traduz qualquer desprestígio a este último. No curso de Direito, a Deontologia Jurídica, foi introduzida, conforme já informado acima, por Jeremy Bentham que tratou a disciplina como uma ciência que estuda o comportamento do homem, sob os fundamentos do dever e das normas morais. Fundou-se então a ciência dos deveres, e dos deveres para os operadores do Direito, assim considerados, os magistrados, promotores e os membros do Ministério Público, procuradores e advogados, relacionando a teoria utilitarista do autor e todas as teorias dos pensadores voltadas à moral e as virtudes como fonte norteadora das profissões. Como garantia ao respeito desses aspectos, expressam-se as regras éticas pelo Estatuto da Ordem dos Advogados, os Regimentos Internos dos Tribunais, sistematizados pela Deontologia Jurídica como comando para a atuação dos profissionais da área jurídica. Resta evidenciado que não apenas o Estatuto da Ordem dos advogados ou os Regimentos Internos dos Tribunais hão de servir de balizas solidárias na Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 63 conduta do operador do direito. Imperativo somar-se a elas, normas positivas, o sentimento e a prática exaustiva da ética angariados no curso da história recente. Não há que ser apenas a lei a norteadora do agir do advogado. Cada advogado deve estar necessariamente nutrido pelos princípios da moralidade e da honestidade, para garantir à todos tratamento isonômico, constitucional e justo. Rui Barbosa, com singularidade ímpar, deixou para os bacharéis em direito como legado de sua vida política e profissional, a “Oração aos Moços”, apresentada em sessão solene de formatura da turma de Direito da Faculdade de Direito de São Paulo, em 1921, registrado na história como mensagem à toda classe de advogado: “Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os mandamentos. Não desertar a justiça, nem cortejá-la. Não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho. Não transfugir da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia. Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínio a estes contra aqueles. Não servir sem independência à justiça, nem quebrar da verdade ante o poder. Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniqüidade ou imoralidade. Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas. Onde for apurável um grão, que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do amparo judicial. Não proceder, nas consultas, senão com a imparcialidade real do juiz nas sentenças. Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade. Amar a pátria, estremecer o próximo, guardar fé em Deus, na verdade e no bem...” (BARBOSA, 1999) 4 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, Roberto A.R. de. O que é Justiça. São Paulo: Alfa-Omega, 2000. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora da UNB, 1999. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. Saraiva, 2009. BARBOSA, Rui. Oração aos Moços Edição popular anotada por Adriano da Gama Kury. 5. ed. Edições Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro 1999). 64 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. BENTHAM, Jeremy. Introduction to the Principles of Morals and Legislation (“Introdução aos princípios da moral e legislação”) Edinburgh: Thomess Press, 1988. BITAR, Eduardo C.B. Curso de Ética Jurídica. São Paulo; Saraiva, 2002. BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes . Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1991, p. 33. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/2117/o-estadonatural-de-thomas-hobbes-e-a-necessidade-de-uma-instituicao-politica-ejuridica/2#ixzz1tTdZ74, visitado em 12 de maio de 2012. CHAUÍ , Marilena. Filosofia, Ed. Ática, São Paulo, ano 2000. HOBBES, Thomas. O Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo, Os Pensadores, 4 ed., Nova Cultura, 1998. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Companhia Editora Nacional, 2004 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Editora Martins Fontes, 2000. São Paulo. LANGARO, Luiz Lima. Curso de Deontologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1996. NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. Platão. A República, Editora Martin Claret, Ed. 2002. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Ricardo Rodrigues da Gama. São Paulo: Russel, 2006. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1999. ______. Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez. Parte 1,1993; parte 2, 1995, tradução Augustin Weret, introdução à edição brasileira de Maurício Tragtenberg . WELZEL, Hans. Derecho Natural y Justicia Material, preliminares para una Filosofia del Derecho. Madrid, Aguilar, 1957. Recebido em: 14/05/2012. Aceito em: 19/06/2012. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 65 66 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. A RELEVÂNCIA DOS MANDAMENTOS NUCLEARES DO DIREITO AGROAMBIENTAL NA SOCIEDADE DE RISCO Thaisa Maira Rodrigues HELD1 Tiago Resende BOTELHO2 Resumo: Preponderam na atual sociedade de risco as múltiplas incertezas científicas e tecnológicas: o temor, a irresponsabilidade organizada, os efeitos globais, invisíveis, imperceptíveis e até incomunicáveis, gestados pelo próprio homem na busca do desenvolvimento econômico tecnológico. Em contrapartida, buscando regulamentar e até conter os efeitos desconhecidos destas múltiplas inovações, seja da nanotecnologia, energia atômica, transgênicos, lixos tóxicos e outros solidificam-se no ordenamento jurídico pátrio os mandamentos nucleares do direitos agroambiental, como escudeiros protetores do meio ambiente ecologicamente equilibrado e, por conseguinte, da continuidade da sadia qualidade de vida. É neste contexto dicotômico, de riscos e incertezas, que o presente artigo se propõe a demonstrar a imprescindibilidade dos mandamentos nucleares do Direito Agroambiental como instrumentos capazes de reprimir e controlar os efeitos da nominada sociedade de risco. Palavras-chave: sociedade de risco – incertezas – irresponsabilidade organizada –mandamentos nucleares Abstract: In today’s risk society, many scientific and technological uncertainties, fear, organized irresponsibility, and global effects prevails; invisible, unnoticed, even incommunicable; created by man’s pursuit of economic and technological development. In contrast, regulation is seeking to tackle the unknown effects, of these innovations; nanotechnology, nuclear power, transgenics, and other toxic wastes solidify the national laws the Commandments agroenvironmental’s nuclear rights, as protectors of the squires ecologically balanced and therefore the Mestranda em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso; Bolsista CAPES; especialista em Direito Ambiental pela Faculdade Aldeia de Carapicuiba; Bacharel em Direito pela Universidade Camilo Castelo Branco e Advogada [email protected]. 2 Mestre em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso; especialista em Direitos Humanos e Cidadania pela UFGD; Licenciado em História pela Universidade Federal da Grande Dourados; Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e Analista Judiciário do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. [email protected]. 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 67 continuity of the sound quality of life. In this context dichotomous, risks and uncertainties, which this article intends to demonstrate the indispensability of the commandments of the Law nuclear Agroenvironmental as tools to suppress and control the effects of the nominated risk society. Keywords: risk society - uncertainty - organized irresponsibilitynuclear commandments. 1. INTRODUÇÃO O estudo em tela apropria-se da teoria da sociedade de risco do sociólogo alemão Ulrich Beck para afiançar a necessidade de se empregar uma redobrada atenção aos mandamentos nucleares do direito agroambiental, como forma de defender e preservar o meio ambiente, e consequentemente à vida, das múltiplas incertezas reforçadas por rápidas inovações tecnológicas e respostas sociais aceleradas que pouco a pouco estão criando uma nova paisagem de descontroles no globo terrestre. Sendo assim, através das decisões antrópicas presentes, têm-se gerido perigos globais incertos, podendo ou não, desencadear consequências imprevisíveis, incontroláveis e certamente até incomunicáveis que ameaçam o equilíbrio do meio ambiente, colocando em jogo a sadia qualidade de vida. Esta preocupação para com os riscos das escolhas da atual sociedade se dá uma vez que, “São riscos cujas consequências, em geral de alta gravidade, são desconhecidas a longo prazo e não podem ser avaliadas com precisão”.3 Fortes responsáveis por tantas incertezas, a ciência e a tecnologia, ao colocarem de lado as indagações a respeito de seus fundamentos e seus alcances, traduziram-se em uma máquina cega, apresentando uma relação paradoxal: a ciência que colaborou sobremaneira para compreender os cosmos, as estrelas e as bactérias é a mesma que encontra-se totalmente cega sobre si mesma e sobre seus poderes e, assim, “já não sabemos onde ela nos conduz”.4 GUIVANT, J. S. Reflexividade na sociedade de risco: conflitos entre leigos e peritos sobre os agrotóxicos. In: HERCULANO, S. C.; FREITAS, C. M.; PORTO, M. F.S. (Org.). Qualidade de vida e riscos ambientais. Niterói: EdUFF, 2000, p. 287. 4 MORIN, Edgar. Epistemologia da Complexidade In Fried – Schnitmam. Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p. 278. 3 68 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. É neste caminho de incertezas, traçado para o futuro que os mandamentos nucleares do direito agroambiental se postam como mecanismos capazes de diluir grande parte dos riscos e das consequências nefastas que a ação antrópica tem gerido de forma incontrolada em desfavor do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Tal possibilidade surge porque os mandamentos nucleares do direito agroambiental são instrumentos de proteção à vida em suas múltiplas formas, a ponto de garantirem a dignidade existencial dos seres humanos das gerações presentes e futuras e também viabilizarem o desenvolvimento econômico ambientalmente sustentável. Sendo assim, usando das incertezas da sociedade de risco e das certezas éticas dos mandamentos nucleares, neste trabalho buscar-se-á enfatizar aqueles mandamentos que estão direcionados [...] a construir um perfil embrionário indispensável para um Estado de justiça ou equidade ambiental e de caráter relevante, para alicerçar uma política ambiental.5 Nessa vereda, serão examinados os seguintes princípios: precaução, prevenção, poluidor-pagador, desenvolvimento sustentável e função socioambiental da propriedade. 1. 1. A Sociedade de Risco e os Mandamentos Nucleares do Direito Agroambiental Vivemos a era de grandes celeridades e avanços nas mais diferentes áreas do conhecimento, na tecnologia, nos meios de comunicação, na saúde, na educação, entre outros. Tais inovações prescindem de uma rápida inserção no meio ambiente, ocasionando, na maioria das vezes, uma interação exploratória, gasosa, poluente, inorgânica e devastadora, ao ponto de disseminar incertezas, medos, desigualdades e riscos. Essa nova sociedade em construção, é lida por Ulrich Beck como “sociedade de risco”, sociedade vitimada pelo seu próprio progresso, em que o medo deixa de ser atribuído a Deus ou à Natureza, e passa a ser resultado da ação antrópica. LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2000. p. 46. 5 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 69 Habitar a “sociedade de risco” significa dizer que vive-se em um mundo fora de controle, onde as únicas certezas existentes são das incertezas6. Com isso, “Essas verdadeiras incertezas, reforçadas por rápidas inovações tecnológicas e respostas sociais aceleradas estão criando uma nova paisagem de risco global7.” A grande novidade da sociedade de risco encontra-se na globalização das incertezas fabricadas pela própria ação humana, pois em suas decisões civilizacionais decidiram assumir consequências e perigos globais. Neste entendimento, afirma Beck: Com nossas decisões passadas sobre energia atômica e nossas decisões presentes sobre o uso de tecnologia genética, genética humana, nanotecnologia e ciência informática, desencadeamos conseqüências imprevisíveis, incontroláveis e certamente até incomunicáveis que ameaçam a vida na Terra8. Como se observa, os riscos desta nova sociedade ganham proporções globais e já não atingem só um determinado espaço físico, temporal e geográfico, mas reflete em todo o planeta, afetando positiva ou negativamente não apenas as gerações presentes, mas, também, às futuras. Referente à originalidade da sociedade de risco, afiança Ulrich Beck que “Não são as mudanças climáticas, os desastres ecológicos, ameaças de terrorismo internacional, o mal da vaca louca etc. que criam a originalidade da sociedade de risco, mas a crescente percepção de que vivemos em um mundo interconectado que está se descontrolando.”9 Devido à amplitude do problema e na impossibilidade de se delimitálo espacial, temporal ou socialmente, Beck afirma que o descontrole está tão generalizado na sociedade que uma de suas principais características é a irresponsabilidade geral organizada. E, nestes termos, assevera: Id. BECK, Ulrich. Incertezas fabricadas. Sociedade de Risco: o medo contemporâneo. In Revista IHU Online. Revista da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 22. mai. 2006, p.5-12. Disponível em <http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/1158345309.26pdf. pdf>. Acesso em: 11. Jun. 2010. 8 Id. 9 BECK, Ulrich. Op. Cit. 6 7 70 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Políticos dizem que não estão no comando, que eles no máximo regulam a estrutura para o mercado. Especialistas científicos dizem que meramente criam oportunidades tecnológicas: eles não decidem como elas serão implementadas. Gente de negócios diz que está simplesmente respondendo a uma demanda dos consumidores. A sociedade tornou-se um laboratório sem nenhum responsável pelos resultados do experimento10. Dessa sombria realidade, pode-se concluir que há uma falência das instituições em que a “cultura do medo vem do paradoxo de que as instituições feitas para controlar o medo produzem exatamente o seu descontrole”11. Convém assinalar que quanto mais se instala a irresponsabilidade organizada mais se intensifica o medo, as incertezas e as catástrofes vividas uma vez que a complexidade do problema provoca rejeição e omissão daqueles responsáveis para conter ou minimizar os medos. Frente a tantos riscos e incertezas gerados por este novo tipo de sociedade que tem se implantado, os mandamentos nucleares do direito agroambiental, postos no ordenamento jurídico pátrio apresentam-se como mecanismos capazes de remediar e controlar as consequências imprevisíveis, incontroláveis e certamente até incomunicáveis que vem ameaçando a vida na Terra, fruto dessa sociedade de risco. Uma vez que os mandamentos nucleares do Direito Agroambiental buscam tutelar a proteção da vida digna e a garantia plena em todos os seus aspectos, para as presentes e futuras gerações. Tais mandamentos representam “a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins”, dando “unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas”.12 Celso Antônio Bandeira de Mello descreve os mandamentos nucleares de um País como: [...] verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por Idem. Idem. 12 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico. Ano I, vol. I – n º. 6, Baia: Salvador, 2001, p. 20. 10 11 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 71 definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.13 O mandamento nuclear é um “enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam”.14 Quando se trata do Direito Agroambiental, ainda que o despertar da preocupação jurídica internacional com o meio ambiente seja fruto da segunda metade do século XX e, por conseguinte, não seja um ramo antigo dentro do Direito, pode-se afiançar, entretanto, que seus princípios se encontram em estágios avançados de sistematização, capaz de conter os riscos gerados por esse novo modelo de sociedade. 2. O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO Na legislação pátria, o princípio da precaução encontra guarida no artigo 225, inciso V, da Constituição Federal, e no artigo 4°, inciso I e IV e, ainda, no artigo 9°, inciso III, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente. Em âmbito internacional, esse é o princípio n. 15 pressagiado na Declaração do Rio de Janeiro, previsto também no preâmbulo da Convenção da Diversidade Biológica e na Convenção Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima , como princípio n.3. Nesses instrumentos jurídicos, o princípio da precaução é tratado como: [...] uma espécie de princípios “in dubio pro ambiente”: na dúvida sobre o perigo de uma certa atividade para o ambiente, decide-se a favor do ambiente e contra o potencial poluidor, isto é, o ônus da prova da inocuidade de uma ação em relação ao ambiente é transferido do Estado ou do potencial poluído para o potencial poluidor.15 MELLO, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. 24 ed. São Paulo: Malheiros. 2007, p. 931. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.33. 15 CANOTILHO, Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito Constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 41. 13 14 72 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Pelo princípio da precaução, a responsabilidade do ônus da prova de que um acidente ecológico não vai ocorrer e de que adotou medidas de precaução específicas é do potencial poluidor. No mesmo entendimento, sustenta Cristiane Derani que precaução está intimidante ligada ao cuidado; portanto: O princípio da precaução está ligado aos conceitos de afastamento de perigo e segurança das gerações futuras, como também de sustentabilidade ambiental das atividades humanas. Este princípio é a tradução da busca da proteção da existência humana, seja pela proteção de seu ambiente como pelo asseguramento da integridade da vida humana. A partir desta premissa, deve-se também considerar não só o risco eminente de uma determinada atividade, como também os riscos futuros decorrentes de empreendimentos humanos, os quais nossa compreensão e o atual estágio de desenvolvimento da ciência jamais conseguem captar em toda densidade16 Como destaca Solange Teles Silva, o princípio da precaução fundamenta-se: Numa ética das relações entre o homem, o meio ambiente, os riscos e a vida, encontra seu fundamento na consciência da ambigüidade da tecnologia e do limite necessário do saber científico. Se, por um lado, a pesquisa científica e as inovações tecnológicas trazem promessas, por outro, trazem também ameaças ou, pelo menos, um perigo potencial. Nesse sentido, algumas indagações podem ser feitas: tudo que é tecnicamente possível deve ser realizado? Há necessidade de se refletir sobre os caminhos da pesquisa científica e das inovações tecnológicas. O princípio da precaução surge, assim, para nortear as ações, possibilitando a proteção e a gestão ambiental, em face das incertezas científicas17 O princípio da precaução atua em tempo preciso, ou seja, hoje. Só assim não se venha desprender lágrimas e lastimar-se no futuro. Enfim, tal mandamento não atua apenas para evitar o prejuízo ambiental, mas opera para sua oportuna precaução.18 DERANI, Cristiane. Prefácio. In: Transgênicos no Brasil e Biossegurança / Cristiane Derani [Org]. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2005. p.167. 17 SILVA, Solange Teles da. Princípio da Precaução: Uma nova postura em face dos riscos e incertezas científicas. VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros [Orgs.]. Princípio da Precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 78-79. 18 MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 58. 16 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 73 A utilização do princípio da precaução funda-se na imposição de uma obrigação de cautela e na responsabilidade ambiental das ações antrópicas. Nesse sentido, Morato Leite e Patryck Ayala sustentam que os requisitos impostos pelo princípio da precaução não buscam “[...] um divórcio com a atividade científica nem pretende superar ou substituir a investigação, mas, antes, reforça a sua importância, situando-a em uma abordagem em benefício da proteção dos direitos fundamentais.19 Em razão disso, o princípio da precaução traz maturidade à ação humana, exigindo que ela só se realize quando vencidas as incertezas cientificas acerca da degradação do meio ambiente. 3. O PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO O princípio da prevenção encontra-se tutelado no ordenamento pátrio no artigo 225, caput, § 1°, inciso III e § 6,° da Constituição Federal; no artigo 2°, I, IV e IX e no artigo 9°, inciso III, da lei da Política Nacional do Meio Ambiente. Rotulado por Marcelo Abelha Rodrigues como um dos mais importantes axiomas do direito ambiental. Fundamenta seu argumento na tese de que a lesão ao meio ambiente é irreparável. E tal irreparabilidade deve-se à impossibilidade de se devolver a vida a um ecossistema degradado, a uma espécie extinta, a uma floresta desmatada20. Portanto, o princípio da prevenção ganha status de preceito fundamental na proteção do meio ambiente, a ponto de: Em sede principiológica de Direito Ambiental, não há como escapar do preceito fundamental da prevenção. Esta é e deve ser a palavra de ordem, já que os danos ambientais, tecnicamente falando, são irreversíveis ou irreparáveis. Por exemplo, como recuperar uma espécie extinta. Como erradicar os efeitos de Chernoboyl E as gerações futuras que serão afetadas; ou uma floresta milenar que é devasta que abriga milhares de ecossistemas diferentes, com cada um possuindo o seu potencial papel na natureza. Assim, diante da impotência do sistema em face da impossibilidade lógico-jurídica LEITE, José Rubens Morato & AYALA, Patryck de Araujo Ayala. Direito Ambiental na sociedade de risco. 2. ed. Rio de Janeiro: Universitária, 2004, p. 80. 20 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo Civil Ambiental. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 32. 19 74 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. de voltar a uma situação igual a que teria sido criada pela própria natureza, adota-se, com inteligência e absoluta necessidade o princípio da prevenção do dano ao meio ambiente como verdadeira chave-mestra, pilar e sustentáculo da disciplina ambiental, dado o objetivo fundamental preventivo do direito ambiental.21 O princípio da prevenção encontra-se intrinsecamente ligado ao dito popular: “mais vale prevenir do que remediar”. Por três motivos: primeiro, pela irreparabilidade natural da situação anterior; segundo, porque ainda que possível a reparação, ela é economicamente onerosa; terceiro, porque financeiramente é mais viável prevenir e mais custoso remediar.22 O ponto mais formidável da adoção tanto do princípio da precaução quanto da prevenção está na possibilidade de se utilizar medidas cautelares e liminares, ou seja, a antecipação da tutela em ações que busquem prevenir de riscos conhecidos, ou não. Assim, enquanto em muitas áreas do Direito as medidas de urgências são exceções, no Direito Ambiental, em especial, pelo princípio da precaução e da prevenção, a adoção de medidas antecipatórias transforma-se em regras. Deste modo, a precaução e a prevenção instrumentalizam-se por meio de tutelas ambientais, que podem ser administrativas (licenciamento ambiental, zoneamento industrial, tombamento administrativo, manejo ecológico entre outros) e jurisdicionais (liminares antecipatórias, medidas cautelares, através da ação civil pública, ação popular, mandado de segurança e ação de injunção).23 Como se pode ver, ambos os princípios buscam impedir que riscos certos e incertos que militem em desfavor do meio ambiente, e impeçam que no futuro o risco se apresente como resultado das ações antrópicas.24 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo Abelha & NERY, Rosa Maria. O princípio da prevenção e a utilização de liminares no direito ambiental brasileiro. Aspectos polêmicos da antecipação de tutela. [Coord] Teresa Arrruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos tribunais, 1997, p. 109. 22 CANOTILHO, Joaquim Gomes & LEITE, José Rubens Morato. Direito Constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 43. 23 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo Civil Ambiental. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 33. 24 Idem. 21 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 75 4. O PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR Este mandamento nuclear encontra-se acolhido no artigo 225, § 2° e § 3°, da Constituição Federal, e artigo 4°, inciso VII, da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, e também consta da Declaração do Rio de Janeiro, implicitamente, no princípio n° 7 e, explicitamente, no princípio n° 16. Para Cristiane Derani, o princípio do poluidor-pagador pretende proteger a sociedade e o meio ambiente, ao responsabilizar aqueles que, por ações, causam “externalidades negativas”, como afirma: São chamadas externalidades porque, embora resultante da produção, são recebidas pela coletividade, ao contrário do lucro, que é percebido pelo produtor privado. Daí a expressão “privatização de lucros e socialização de perdas”, quando identificadas as externalidades negativas. Com a aplicação do princípio do poluidorpagador, procura-se corrigir este custo adicionado à sociedade, impondo-se sua internacionalização.25 A partir do entendimento de Cristiane Derani, fica claro que o princípio do poluidor-pagador em nenhum momento pactua com a permissão à poluição, ou, tampouco, com a possibilidade de se pagar para poluir. Pelo contrário, se as “externalidades negativas” são frutos das ações antrópicas, e seus efeitos negativos são previamente sabidos, então, esse princípio procura antecipadamente prevenir, controlar e reprimir. O princípio do poluidor-pagador vem romper com a lógica imperfeita do ideário “privatização de lucros e socialização de perdas”, e, com isso, fazer com que as consequências negativas das ações antrópicas recaiam sobre aqueles que realmente deram causas, de modo que o causador da poluição deve arcar com os custos necessários à mitigação, eliminação ou neutralização do dano ambiental, e nesta perspectiva, o causador poderá repassar o custo para o produto final. Como se pode notar, o princípio do poluidor-pagador restabelece a capacidade de “realizar-se a equidade social, ao impedir que a internacionalização 25 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva. 2008, p. 142-143. 76 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. privada dos lucros decorrentes do mau uso dos bens ambientais resulte na externalização social dos custos advindos da destruição do meio ambiente”.26 O princípio do poluidor-pagador deve ser interpretado a partir da ótica do poluidor como primeiro pagador, uma vez que o pagamento antecedente à poluição visa justamente evitar que a ação poluente ocorra. No entanto, ao pretender o operador econômico exercer a prática ilegal, sobre ele recairá a obrigação de ressarcir as externalidade negativas antes que se materializem. 27 Este mandamento nuclear não se vincula a um princípio de responsabilidade, que atua a posteriore, tão somente se requerendo do poluidor o pagamento de indenizações de danos passados. Ao contrário, o princípio do poluidor pagador entra em cena antes e independente de as externalidades negativas terem ocorrido.28 Assim, o objetivo central deste princípio, além de criar um regime de responsabilidade jurídica pelos danos ambientais, busca induzir e fortalecer mecanismos de mercado que freiem as ações antrópicas que causam danos ao meio ambiente.29 Desta forma, a importância irrefutável deste princípio está não apenas em normatizar a produção ou consumo subjetivo, mas, sobretudo, instigar a concretização de políticas econômicas específicas.30 5. O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL O princípio do desenvolvimento sustentável nutre-se do ideário de que o meio ambiente é um dos fatores fundamentais para a viabilização do processo global de desenvolvimento dos países, a ponto de: “[...] incluir a proteção do meio ambiente, não como um aspecto isolado, setorial, OLIVEIRA, Maria Cristina Cesar de Oliveira. Princípios Jurídicos e Jurisprudência socioambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 113. 27 LEITE, José Rubens Morato & AYALA, Patryck de Araujo Ayala. Op. Cit. p. 98. 28 CANOTILHO, Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. op. Cit. p. 49. 29 RIOS, Aurélio Virgílio Veigas; DERANI, Cristiane Derani. Princípio Gerais do Direito internacional ambiental. RIOS, Aurélio Virgílio Veigas; IRIGARAY, Carlos Teodoro Hugueney [Orgs.]. O direito e o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Fundação Petrópolis, 2005, p. 107. 30 DERANI, Cristiane. Op. cit. p. 145. 26 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 77 das políticas públicas, mas como parte integrante do processo global de desenvolvimento dos países”.31 Cristiane Derani assevera que a meta do princípio do desenvolvimento sustentável está na harmonização entre economia e ecologia; logo, sustenta uma “correlação de valores em que o máximo econômico reflita igualmente um máximo ecológico”.32 Nesse entendimento, pode-se afirmar que o princípio do desenvolvimento sustentável busca superar a divergência existente entre economia e meio ambiente. Envolto dessa complexa missão, o princípio do desenvolvimento sustentável “norteia hoje a chamada nova economia global e é uma resposta conceitual, de cunho ideológico, à escassez provocada pela apropriação hegemônica, milenar, unilateral e destrutiva dos recursos naturais do nosso Planeta”.33 Portanto, tal princípio não “renuncia ao velho paradigma do desenvolvimento pelo crescimento econômico; pelo contrário, ele é ajustado a uma dimensão ecológica. Assim, a disseminação de uma nova política neoliberal, que enfatiza o mercado como cenário privilegiado das relações sociais, também está gerando sua própria política ambiental”.34 Envolto de tal relevância, o princípio do desenvolvimento sustentável é acolhido no artigo 170, inciso VI e artigo 225 caput, da Constituição Federal, e ainda no artigo 4º, inciso I, da Lei n. 6.938/81, Lei da Política Nacional do Meio Ambiente. Para que se materialize o princípio do desenvolvimento sustentável apresentado nos dispositivos legais acima, faz-se necessário uma mudança paradigmática por meio de “uma visão holística e sistêmica inserida no complexo indissociável que une homem e natureza, concretizando entre ambos um convívio sóbrio e saudável, ecologicamente equilibrado, propiciando ao homem de hoje e ao de amanhã uma sadia qualidade de vida. MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Princípios fundamentais do direito ambiental. . MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso Leme [Orgs]. Direito Ambiental: fundamentos do direito ambiental. São Paulo: RT. 2011, p. 350. 32 DERANI, Cristiane. Op. cit., p. 113. 33 PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro. Princípios do Direito Ambiental. LANFREDI, Geraldo Ferreira. [Coord.]. Novos Rumos do Direito Ambiental: Nas áreas civil e penal. Campinas – SP: Milennium. 2006, p. 4. 34 GUDYNAS, Eduardo. Ética, ambiente e ecologia: uma crise entrelaçada. Revista Eclesiástica Brasileira. Petrópolis: Vozes, nº. 52, fasc. 205, mar., 1992, p. 68 – 69. 31 78 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. O imperativo deste mandamento nuclear é proporcionar um desenvolvimento pautado sempre na sustentabilidade. Para isso, necessário se faz que o homem e o meio ambiente façam as pazes, e, aquele, com mudanças paradigmáticas, passe a satisfazer as necessidades das gerações presentes sem comprometer, no entanto, as necessidades das futuras gerações. 6. O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE Toda propriedade, seja urbana ou rural, necessariamente deve atender ao princípio da função socioambiental uma vez que tal mandamento nuclear nega os interesses subjetivos limitados e afirma os benefícios da coletividade. A função socioambiental não é uma intervenção sobre o direito de propriedade, mas sim um de seus requisitos intrínsecos que impulsionam o proprietário a exercer um conjunto de ações a fim de que haja a “[...] exploração racional do bem, com a finalidade de satisfazer seus anseios econômicos sem aviltar direitos coletivos, e promover desenvolvimento econômico e social, de modo a alcançar o valor supremo no ordenamento jurídico: a Justiça.”35 A Constituição da República Federativa do Brasil, reservou um capítulo exclusivamente à Política Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrária, ao trazer, em seu artigo 186, os requisitos necessários para sua implementação, tais como o aproveitamento racional e adequado, a utilização dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, a observância das disposições que regulam as relações trabalhistas e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores, de modo geral. Todos estes incisos, se conjugados, dão conta de que a função da propriedade não é somente social, mas socioambiental. O mesmo diploma legal traz no artigo 170 os princípios da ordem econômica, com a observância de que a propriedade deve também proteger e defender o meio ambiente, consolidado assim o disposto no artigo 225. 35 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. Pág. 628. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 79 Nesse sentido, as disposições legais referentes à função socioambiental da propriedade guardam relação direta com a proteção de todas as formas de vida, e garantem, sim, o desenvolvimento, mas de forma sustentável, preservando a vida para as futuras gerações. A este respeito, vale trazer os ensinamentos de Paulo Guilherme de Almeida, in verbis: Obviamente, a sustentação de uma função social a ser cumprida implica restrições à faculdade de gozo e disposição do proprietário em relação ao seu bem. E dá validade a tais restrições, pois decorrem estas da necessidade de tutelar a pacífica coexistência na vida em sociedade, para que o interesse público deve prevalecer sobre o interesse particular.36 Muito mais que a sobreposição do interesse público sobre o particular, a função socioambiental da propriedade protege a vida humana integrada à biodiversidade, ou seja, a vida em todas as suas formas. Nesse sentido, a função socioambiental da propriedade rural é requisito indispensável para a manutenção da posse e propriedade, haja vista a preponderância do interesse social, sobretudo a proteção ambiental natural da propriedade. Vale dizer: a função socioambiental da propriedade não se analisa somente pela utilização da terra em percentuais exigidos pela legislação, mas que a utilização respeite os aspectos naturais da terra, ou seja, sua agrobiodiversidade. Caso contrario, a desapropriação para fins da reforma agrária é a medida que se deve impor para garantir o acesso de todos à terra e às dignas condições de vida. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS A sociedade de risco não é um processo internacional ou previsto, quiçá um sistema que pode ser recusado ou escolhido. É fruto de um processo de modernização autônomo, sem muitas responsabilidades e preocupações para com suas gerações presentes e futuras. Quanto mais a sociedade tecnológica e cientifica se afirma mais é encoberta pelo manto dos riscos, incertezas e medos. 36 ALMEIDA, Paulo Guilherme de. Temas de direito agrário. São Paulo: LTr, 1988, p. 19. 80 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Nesta leitura, é valido destacar que a utilização da sociedade de risco no presente artigo não busca demonizar ou rechaçar a ciência ou a tecnologia, até porque, em pleno século XXI, seriam afirmações levianas e pífias. Ao apropriarse da teoria do risco, do sociólogo alemão Ulrich Beck, o artigo em tela teve como objetivo central impulsionar uma atenção aos mandamentos nucleares do direito agroambiental, como meios de coibir os riscos que hoje se intensificam de forma vertiginosa. Tal afirmativa se estabelece, uma vez que os mandamentos nucleares do direito agroambiental são instrumentos democráticos de proteção à vida em suas múltiplas formas, a ponto de garantirem a dignidade existencial dos seres humanos das gerações ambientalmente sustentável, rechaçando, assim, uma parcela dos riscos nitidamente visíveis na atual sociedade. Neste sentido, o princípio da precaução, reveste-se da armadura do in dubio pro ambiente: na suspeita sobre o risco, ainda que incerto, decide-se a favor do ambiente e contra o potencial poluidor, recaindo, o ônus da prova ao Estado ou ao suspeito poluidor. Referente o princípio da prevenção, vincula-se ao momento anterior à consumação do dano, ou do mero risco. Ou seja, diante da complexa reparabilidade do dano causado ao meio ambiente, sempre incerta, e, quando possível, excessivamente onerosa, a prevenção se firma como mecanismo viável, quando não a única solução. Quanto o princípio do poluidor-pagador, este princípio redistribui de forma imparcial as externalidades ambientais. Em sendo os efeitos externos negativos do mercado suportados pela sociedade, a favor do lucro do produtor ou causador do dano, nada mais justo que este arque com os danos que ocasionou ao bem ambiental, no sentido de custear a prevenção, as medidas de precaução, assim como a responsabilização nas esferas civil, penal e administrativa, de forma a suportar todas as externalidades negativas ambientais. Já o princípio do desenvolvimento sustentável busca acoplar a proteção do meio ambiente, não como um fator isolado, mas como parte relevante do processo de desenvolvimento dos países, ao ponto de atender as necessidades Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 81 atuais sem comprometer as possibilidades de as gerações futuras atenderem suas próprias necessidades. Por fim, o princípio da função socioambiental da propriedade, sobretudo da propriedade rural, deve atender aos preceitos de uma atividade que respeite a vida em todas as suas formas. Não se proíbe o desenvolvimento de uma atividade, econômica ou não, mas sim que esteja em conformidade com a preservação ambiental. Eis aí o alicerce para que o ambiente de trabalho seja sadio, a relação social e bem-estar sejam equânimes para proprietários e trabalhadores, assim como deve haver o uso racional dos recursos naturais, renováveis ou não, mas ligados harmonicamente com a proteção da agrobiodiversidade. Somente assim se garante qualidade de vida para as gerações atuais e vindouras. Nota-se que como um mosaico, os mandamentos nucleares do direito agroambiental, fundam um cenário onde o risco deixa de ser a regra e, passa, então, a ser a exceção. Mas para isso, as pequenas peças deste embutido precisam estarem dispostas de forma harmônica e integral. 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Paulo Guilherme de. Temas de direito agrário. São Paulo: LTr, 1988, p. 19. BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico. Ano I, vol. I – n º. 6, Baia: Salvador, 2001, p. 20. BECK, Ulrich. Incertezas fabricadas. Sociedade de Risco: o medo contemporâneo. In: Revista IHU Online. Revista da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 22. mai. 2006, p.5-12. Disponível em <http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/ edicoes/1158345309.26pdf.pdf>. Acesso em: 11. Jun. 2010. CANOTILHO, Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito Constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 41. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.33. DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva. 2008, p. 113. 82 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. DERANI, Cristiane. Prefácio. In: Transgênicos no Brasil e Biossegurança / Cristiane Derani [Org]. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2005. p.167. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. Pág. 628. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo Abelha & NERY, Rosa Maria. O princípio da prevenção e a utilização de liminares no direito ambiental brasileiro. Aspectos polêmicos da antecipação de tutela. [Coord] Teresa Arrruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos tribunais, 1997, p. 109. GUDYNAS, Eduardo. Ética, ambiente e ecologia: uma crise entrelaçada. Revista Eclesiástica Brasileira. Petrópolis: Vozes, nº. 52, fasc. 205, mar., 1992, p. 68 – 69. LEITE, José Rubens Morato & AYALA, Patryck de Araujo Ayala. Direito Ambiental na sociedade de risco. 2. ed. Rio de Janeiro: Universitária, 2004, p. 80. MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 58. MELLO, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. 24 ed. São Paulo: Malheiros. 2007, p. 931. MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Princípios fundamentais do direito ambiental. MILARÉ, Édis; OLIVEIRA, Maria Cristina Cesar de Oliveira. Princípios Jurídicos e Jurisprudência socioambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 113. PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro. Princípios do Direito Ambiental. LANFREDI, Geraldo Ferreira. [Coord.]. Novos Rumos do Direito Ambiental: Nas áreas civil e penal. Campinas – SP: Milennium. 2006, p. 4. RIOS, Aurélio Virgílio Veigas; DERANI, Cristiane Derani. Princípio Gerais do Direito internacional ambiental. RIOS, Aurélio Virgílio Veigas; IRIGARAY, Carlos Teodoro Hugueney [Orgs.]. O direito e o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Fundação Petrópolis, 2005, p. 107. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo Civil Ambiental. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 32. SILVA, Solange Teles da. Princípio da Precaução: Uma nova postura em face dos riscos e incertezas científicas. VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros [Orgs.]. Princípio da Precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 78-79. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 83 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Direito agrário e meio ambiente. LARANJEIRA, Raymundo [Coord.]. Direito agrário brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 54. VIANA, José Ricardo Alvarez. Responsabilidade civil por danos ao meio ambiente. Juruá: Curitiba. 2009. p. 54. Recebido em: 30/05/2012. Aceito em: 10/07/2012. 84 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. O ÉBRIO E O DOLO EVENTUAL Felipe Cazuo AZUMA1 Resumo: Esse artigo tem por finalidade abordar o assunto da embriaguez e o dolo eventual nos casos de acidentes de trânsito, o objetivo é demonstrar a impossibilidade de dedução direta de que houve crime doloso quando o autor do fato encontrava-se embriagado no momento dos fatos. A metodologia utilizada foi a da pesquisa bibliográfica, consultando-se livros, artigos de revistas e artigos da internet. Palavras-chave: direito penal, embriaguez, dolo eventual, culpa consciente. Abstract: This article aims to address the issue of drunkenness and the eventual intention in cases of traffic accidents, aims to demonstrate the impossibility of direct deduction that there was a serious crime when the perpetrator is found drunk at the time of the facts. The methodology used was literature research, consulting books, magazine articles and Internet articles. Keywords: criminal law, drunkenness, eventual intention, conscious guilt. 1 INTRODUÇÃO Nos dias de hoje, mesmo após o avanço de boa parte da doutrina e alguma parte da jurisprudência nacional, ainda persistem alguns questionamentos a respeito da temática do dolo eventual, em especial nos casos de homicídios cometidos no trânsito por motorista que dirige embriagado. A polêmica sempre vem à tona quando algum caso famoso (ou de famoso) ocorre e a mídia fica a insuflar a população para pedir um rigor maior do Estado, um aumento das penas para casos desse jaez. Nessas horas não faltam delegados Advogado, professor de Criminologia e Prática Processual Penal da Unigran. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Federal do Paraná em convênio com o Instituto de Criminologia e Política Criminal. Membro da Associação Internacional de Direito Penal, Grupo Brasileiro. 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 85 de polícia que buscando os holofotes midiáticos já sentenciam que irão indiciar o autor do fato por homicídio doloso porque o agente assumiu o risco de produzir o resultado. Alguns ao interpretar a questão utilizam de um raciocínio simplista, com uma matemática rasteira possuindo a seguinte fórmula: direção + álcool + alta velocidade + resultado morte = homicídio doloso, por dolo eventual. O presente artigo tem por finalidade lançar um pouco de luz sobre essa temática tão apaixonante quanto desconhecida do grande público e de alguns especialistas de plantão em direito, para isso será abordado inicialmente o surgimento da teoria dos crimes imprudentes (ou culposos como mais tradicionalmente conhecidos), passando-se depois para diferenciação entre dolo direto, dolo eventual e imprudência/culpa consciente. Será abordada logo em seguida a teoria da actio libera in causa e sua má interpretação pela doutrina e jurisprudência nacional2, sendo essa, basicamente a causa da fórmula acima. Por fim, será ponderado sobre a (im)possibilidade de dedução direta de existência de dolo eventual em casos de homicídios no trânsito quando existente a embriaguez. Nas considerações finais serão apontadas sinteticamente as consequências dessa interpretação mais repressiva, bem como será indicada uma opção legislativa para os anseios sociais quanto a esses casos, sem ferir, contudo, a teoria dos crimes imprudentes/culposos. 2 SURGIMENTO DA TEORIA DOS CRIMES IMPRUDENTES/CULPOSOS No direito romano a morte ocasionada de forma não intencional era tida como um delito privado, uma vez que somente a morte ocasionada de forma Cf. BITENCOURT: “No entanto, os tribunais pátrios não têm realizado uma reflexão adequada desses aspectos, decidindo quase que mecanicamente: se a embriaguez não é acidental, pune-se o agente simplesmente. Se houve ou não previsibilidade do fato no estágio anterior à embriaguez não tem sido objeto de análise. É muito fácil: o Código diz que a embriaguez voluntária ou culposa não isenta de pena, ponto final, condena-se o autor ébrio. O moderno Direito Penal da culpabilidade há muito está a exigir uma nova e profunda reflexão sobre esse aspecto, que nossos tribunais não têm realizado. Desafortunadamente, muitas decisões criminais são proferidas por juízes pouco afeitos à dogmática penal e à política criminal, vindos de outras áreas do Direito, que se limitam a repetir decisões de outros julgados, sem a preocupação com uma análise mais acurada, recomendada pela Ciência Penal, com uma elaboração cuidadosa da fundamentação exigida. Não raro, encontram-se acórdãos onde se percebe a completa ausência do toque de um cientista criminal, de uma penalista, com conhecimento profundo da teoria do delito. Por isso, em razão das composições heterogêneas dos tribunais, vemos repetidas aquelas decisões que vêm desde o surgimento do Código, sem qualquer elaboração, em total descompasso com o atual estágio das ciências penais, quando a doutrina moderna oferece os elementos e o estudo para soluções melhores, mais humanas e mais justas.” BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. 14.ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.396/397. 2 86 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. intencional era passível de ser classificada como um delito público. Desse modo, àquele que praticava um homicídio involuntário, não era aplicada a pena de morte, cabendo uma expiação religiosa.3 Não havia, portanto, grande interesse nessa época no estudo dos crimes culposos. Na idade média o artesanato era a forma de produção, enquanto na idade moderna com a revolução industrial priorizou-se, dentro da lógica capitalista, produzir mais, com menos tempo e menos gastos. O Avanço tecnológico permitiu isso. Com a modernização dos transportes e mecanização dos meios de produção, nesse agitado binômio produzir mais em menos tempo, evidentemente, aumentaram também os acidentes tanto de trabalho como os de trânsito. Surgiu então, a necessidade de se pensar numa forma de punição para aqueles que descumprissem regras mínimas de segurança no trabalho e no trânsito. Àqueles que fossem imprudentes ou negligentes nesse âmbito de ação, passariam então a ter um tratamento distinto dos demais, diga-se: nem tão rigoroso quanto os que praticam crimes com intenção, e nem tão ínfimo a ponto de não se ter um tratamento penal. Dessa forma, foi após a revolução industrial no início do século XVIII, que surgiu para a teoria do crime, no que tange ao elemento subjetivo do autor, a necessidade de se aprimorar o estudo dos fatos danosos onde não houve a intenção do agente, ou seja, nos fatos não dolosos, mas ocorridos por imprudência ou negligência4. Em breves linhas, foi assim que surgiu a teoria dos delitos imprudentes. Verifica-se então, desde logo, que os crimes de trânsito estão umbilicalmente ligados à ontologia dos crimes imprudentes/culposos e não dos crimes dolosos. Por isso, a regra de tratamento nesses casos é etiquetá-los como culposos. LEITE, Ricardo Savignani Alvares. Delito público e delito privado: um breve estudo do homicídio culposo e da lesão corporal no direito romano. Disponível em http://www.revistaliberdades.org.br/ site/outrasEdicoes /outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=109, acessado em 28/04/2012 as 14h36minhs 4 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 96. 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 87 3 ELEMENTOS E DIFERENCIAÇÕES DO DOLO EVENTUAL E DA CULPA/IMPRUDÊNCIA CONSCIENTE Dispõe o Código Penal em seu art. 18, I que o crime é doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. Nessa segunda figura do inciso I do artigo 18 do CPB – assunção do risco - está descrita segundo a literalidade da lei a figura do dolo eventual. É certo que ao assumir o risco de produzir o resultado não se exaure na literalidade da lei, mas recebe da doutrina e dos modernos ensinamentos pretorianos uma acepção mais correta. Se fosse assim, em todo e qualquer acidente haveria a presença do dolo eventual, posto que, todos os dias quando as pessoas saem de suas casas para o trabalho elas assumem o risco de se envolver em um acidente. Aliás, viver é correr riscos, além de não ser preciso (parafraseando Fernando Pessoa)... Hungria5 já advertia que “Assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso venha este, realmente a ocorrer.” Já no inciso II do mesmo artigo, dispõe-se que o crime é culposo quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Questiona-se então, quais são os elementos do dolo eventual? Antes disso, quando existe a imprudência/culpa, como ela se caracteriza? Os requisitos da culpa são: a) concentração na análise da conduta voluntária do agente; b) ausência do dever de cuidado objetivo; c) resultado danoso involuntário; d) previsibilidade (na culpa consciente); e) ausência de previsão (na culpa inconsciente); tipicidade; e f) nexo causal6 A culpa pode ser inconsciente e consciente. Nessa há o elemento da previsibilidade do resultado, naquela não. Assim, percebe-se uma forte semelhança entre a culpa consciente e o dolo eventual, posto que em ambos existem o elemento da previsibilidade, ao mesmo tempo em que, o tratamento penal entre ambos é muito distante. 5 6 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, 4. ed., volume I, tomo II, Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 122. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal - Parte Geral Parte Especial, São Paulo: RT, 2005, p. 201. 88 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Existe o dolo direto quando a consciência (elemento intelectivo) e a vontade (elemento volitivo) do autor apontam a um fim determinado: o resultado. Já o dolo eventual caracteriza-se quando a consciência e a vontade do autor estão ligadas à aquiescência do resultado como fato possível, ou melhor, provável. Há uma aproximação entre o dolo eventual e a culpa consciente em razão da previsibilidade do resultado que existe nas duas figuras, como já dito alhures. A diferenciação reside no fato de que no dolo eventual o resultado é admitido, há o assentimento do sujeito ativo do delito. Dessa forma, admitir o resultado como provável e ainda assim persistir na conduta é igual a querêlo. Já na culpa consciente, conquanto previsível o resultado, ele não é admitido pelo autor, diferentemente disso, ele espera ou imagina que não aconteça, não o aceita, ou seja, no plano do autor, o resultado não é querido. A verificação do dolo eventual não é adstrita à presciência do resultado, mas tem que ser unida ao elemento intelectual que se traduz no conhecimento da possibilidade do resultado lesivo e ao elemento volitivo traduzido na aceitação da ocorrência do resultado7. Destarte, é insuficiente que o autor possua consciência de que sua ação poderá originar um dano, é necessário ainda, tendo esse conhecimento, que ele permaneça no escopo de atuar, olvidando-se das consequências desse atuar. “Pela teoria do consenso, do assentimento ou do consentimento, há a crítica à teoria da representação, afirmando-se que não basta a previsão da possibilidade ou probabilidade concreta, mas um quid pluris, devendo existir uma atitude interior de aprovação ou consentimento em relação à concretização do resultado previsto como possível (aceitação do risco - teoria da aceitação do risco). (...) Nota-se, desta forma, a dificuldade em se caracterizar o dolo eventual nos crimes de trânsito. Numa situação normal, o agente que conduz o veículo e provoca a morte de outra pessoa, por mais intensa reprovação social que exista, não se pode falar, a priori, que o mesmo assumiu o risco de causar a fatalidade. Existe, assim, uma prevalência inicial da culpa (às vezes inconsciente) em detrimento do dolo eventual nos delitos de trânsito.”8 D’URSO, Luiz Flávio Borges (Coord.). Dolo eventual e culpa consciente, in, Direito Criminal Contemporâneo: estudos em homenagem ao Ministro Francisco de Assis Toledo. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 391. 8 ARAÚJO, Marcelo Cunha. Crimes de trânsito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 23. 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 89 Sob um enfoque empírico, em regra, não é crível pensar, em se tratando de acidente de trânsito que, o autor prevendo o resultado ainda assim anua a ele, posto que nessas situações (acidentes de trânsito) o autor coloca em risco real não somente a vida de outrem, mas também a sua própria. Veja-se que essa diferenciação é crucial no momento de opção pela tipificação do delito, seja pela polícia no ato do indiciamento, seja pelo Ministério Público ao ofertar a denúncia, ou pelo juiz quando deve decidir em um caso em concreto. 4 A TEORIA DA ACTIO LIBERA IN CAUSA E A IMPOSSIBILIDADE DE DEDUÇÃO DIRETA ENTRE EMBRIAGUÊS E DOLO EVENTUAL O art. 28, II do Código Penal estatui que a imputabilidade penal não é excluída pela embriaguez voluntária ou culposa. Nesse dispositivo, segundo boa parte da doutrina nacional, está inserida a teoria da actio libera in causa, que, em uma tradução livre significa ação livre na causa. Ou seja, o agente quando se embriaga voluntariamente deve responder pelos atos praticados após o estado de embriaguez. Diante dessa disposição do código, alguns autores têm interpretado esse dispositivo de forma açodada, afirmando que quando houver um fato típico precedido de embriaguez voluntária o agente que o praticou deverá ser responsabilizado a título de dolo, sob o anêmico argumento de que se o agente quis embriagar-se, quis o resultado9. Essa não é a melhor interpretação do dispositivo. Ora, querer embriagarse é diferente de querer um resultado criminoso. Quando o código determina a responsabilização do ébrio pelos crimes praticados, ele não determina a que título o autor deverá responder, se a título de dolo ou culpa. Ele na verdade só esclarece que a imputabilidade – o terceiro elemento da culpabilidade – não pode ser excluída sob a justificativa de que o agente estava embriagado. Assim, a lei só está a expressar que haverá juízo Vide por exemplo CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 295/296 e Hungria, apud, JESUS, Damásio. Direito Penal Parte Geral . São Paulo: Saraiva, 2008, p. 510. 9 90 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. de reprovação (culpabilidade) sobre o ato, pois caso a lei assim não o fizesse, poderiam existir situações onde o autor poderia tentar se (des)culpar de seus atos, isentando-se totalmente de pena, sob a alegação de estar embriagado. Conforme Juarez Tavares10, a actio libera in causa, só serve como fundamento para uma imputação a título de dolo nos casos de embriaguez préordenada, ou seja, naquela situação onde o sujeito se embriaga para cometer o crime. Já para os casos de embriaguez culposa ou voluntária, não há como se aplicar a teoria para a responsabilização por crime doloso. Pois bem, já que a teoria da actio libera in causa, não serve de critério determinante da existência do dolo, como então, v.g, em um homicídio praticado por um agente embriagado, dirigindo um veículo em alta velocidade determinar se o ato praticado foi doloso ou imprudente/culposo? Se houve dolo eventual ou culpa consciente? O prof. Juarez Cirino dos Santos,11 em obra que o laureou com o título de pós-doutor em filosofia do direito penal, na Alemanha, ensina que: “Aqui, é necessário um esclarecimento da maior significação prática: se o autor, na ação precedente, não tem o propósito (dolo direto) ou não admite a possibilidade (dolo eventual) de realizar determinado crime em estado de incapacidade de culpabilidade, então o resultado típico na ação posterior não ser atribuído por dolo, independentemente de ser intencional (o sujeito quer se embriagar) ou imprudente (o sujeito se embriaga, progressiva mas inadvertidamente) o ato de se embriagar. Por isso, o princípio da culpabilidade determina a seguinte interpretação do art. 28, II, do Código Penal: a embriaguez, voluntária ou culposa, não exclui a imputabilidade penal, mas a imputação do resultado por dolo ou por imprudência depende, necessariamente da existência real (nunca presumida) dos elementos do tipo subjetivo respectivo no comportamento do autor.” Grifou-se Uma indagação de ordem axiológica há que ser feita, para que se possa aclarar o tamanho da incoerência, ou quiçá, teratologia do reconhecimento automático do dolo eventual em fatos que envolvam embriaguez e morte. A 10 11 TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 388-390. Ibid, p. 221. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 91 indagação consiste em saber em qual situação há maior reprovabilidade do fato se é quando alguém tendo plena consciência de seus atos, mas não querendo diretamente um resultado pratica um ato, não cumprindo seu dever objetivo de cuidado, ou, se quando alguém sem ter plena consciência de seus atos em razão de estar ébrio, provoca os mesmo resultados? Evidente que na primeira situação nós temos uma reprovabilidade maior, pois há que se exigir mais de quem pode mais. Contudo, a se aplicar o raciocínio utilizado de dedução direta da existência de dolo eventual nos casos de embriaguez, pelo simples fato da embriaguez somada à velocidade, estar-se-á exigindo mais (dando-se o fato como doloso) de quem podia menos. A incoerência pode ser percebida nos seguintes exemplos: indivíduo X, embriagado dirige em alta velocidade, vindo a ocasionar um acidente com vítima fatal. Tem-se o fato como doloso. Indivíduo Y, sóbrio dirige um veículo em alta velocidade, vindo a ocasionar um acidente também com vítima fatal. Tem-se o caso como culposo. Pergunta-se: quem tem maior dirigibilidade normativa,12 quem está sóbrio ou quem se encontra embriagado? Evidentemente que tem maior dirigibilidade normativa (tem o querer o e poder de agir conforme a norma) a pessoa que está sóbria. No entanto, a se aplicar o entendimento que ora se combate, o indivíduo sóbrio, terá uma aplicação da sanção penal mais amena, ainda que possuísse no momento da ação maior dirigibilidade normativa e tenha produzido os mesmos resultados. Criticou-se nesse artigo que a jurisprudência brasileira tem tido uma inclinação para se tratar casos como os dos exemplos acima citados como sendo casos de dolo eventual, em uma dedução direta, todavia, por justiça, há também de se dizer também que há setores pretorianos mais abalizados que vêm adotando o entendimento aqui esboçado. Observe-se alguns deles: “Em delitos de trânsito, não é possível a conclusão automática de ocorrência de dolo eventual apenas com base em embriaguez do agente. Sendo os crimes de trânsito em regra culposos, impõe-se a 12 O trocadilho foi acidental…SIC 92 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. indicação de elementos concretos dos autos que indiquem o oposto, demonstrando que o agente tenha assumido o risco do advento do dano, em flagrante indiferença ao bem jurídico tutelado.”13 “Inexistente qualquer elemento mínimo a apontar para a prática de homicídio, em acidente de trânsito, na modalidade dolo eventual, impõe-se a desclassificação da conduta para a forma culposa.” 14 “A EMBRIAGUEZ, SEJA VOLUNTARIA OU CULPOSA, POR SI SÓ NÃO CARACTERIZA O DOLO EVENTUAL.”15 Em recente julgado16 o Supremo Tribunal Federal firmou esse posicionamento: “Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA. 1. A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus. 2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual. 3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo. 4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte. HC 58826 / RS HABEAS CORPUS 2006/0099967-9, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (1131), SEXTA TURMA, DJe 08/09/2009. 14 RE.,nsp 705416 / SC RECURSO ESPECIAL, 2004/0155660-5, Relator Ministro PAULO MEDINA, T6 - SEXTA TURMA, DJ 20/08/2007 p. 311. 15 HC 46791 / RS - RIO GRANDE DO SUL, HABEAS CORPUS, Relator(a): Min. ALIOMAR BALEEIRO Julgamento: 20/05/1969 Órgão Julgador: Primeira Turma. 16 HC 107801/SP, Relator para o acórdão Min. Luiz Fux, Julgamento: 06/09/2011, Órgão Julgador: Primeira Turma. 13 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 93 5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que “O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: ‘A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é punível o fato”. (Guilherme Souza Nucci, Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: RT, 2005, p. 243) 6. Omissis... 7. Omissis... 8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP.” Como visto, o que deve ser levado em conta para a imputação a título de dolo ou culpa, é o momento anterior ao do fato típico em si, ou seja, o momento quando o autor começa a beber,17 se houver imprevisibilidade (elemento intelectivo) do resultado ou inexistência de aquiescência (elemento volitivo) a ele , não é o caso de se aplicar a teoria da actio libera in causa, dando o caso como doloso, pois a formação da vontade do sujeito, em seu estado normal de discernimento, não era contrária ao Direito. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Consoante a explanação acima realizada, pode-se chegar às seguintes conclusões: 01) A teoria penal moderna dos crimes culposos teve um desenvolvimento maior justamente em razão dos acidentes de trânsito e de trabalho, após a revolução industrial, razão pela qual, em regra, ontologicamente os crimes de trânsito devem ter o tratamento como delitos imprudentes/culposos; 17 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 396/397 94 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 02) Tanto no dolo eventual como na culpa consciente, há o elemento intelectivo da previsibilidade do resultado, todavia na culpa consciente o elemento volitivo que se traduz na aquiescência com o resultado não existe, pois o agente espera que o resultado não ocorrerá, diferentemente do que ocorre no dolo eventual; 03) A teoria da actio libera in causa não leva a um juízo de responsabilização por crime doloso fora dos casos de embriaguez pré-ordenada; 04) Não é possível utilizar de uma raciocínio matemático de que a embriaguez somada a alta velocidade do autor, vindo a ocorrer um acidente de trânsito com vítima fatal, chegando à conclusão de que o fato foi doloso; 05) Nesses casos, é necessário verificar a conduta (por meio das circunstâncias) anterior à embriaguez, para sopesar se houve ou não aquiescência com o resultado e, portanto, se houve dolo eventual. É certo que para configurar o comportamento doloso, é imperativa a exposição dos embasamentos concretos, com apoio no conjunto probatório, de quais fatores conduzem à conclusão de que o agente, inteiramente cônscio dos riscos de dirigir ébrio, tenha aquiescido com relação ao possível dano oriundo de sua conduta, tarefa essa das mais difíceis e, quando houver dúvida, essa deve ser interpretada a favor do réu – in dubio pro reo. Por fim, há de se dizer que é indubitável que os índices de acidentes de trânsito são alarmantes em todo o Brasil e é certo também que há um reclamo social a respeito dessa conjuntura. Todavia, não se pode a título de querer modificar essa situação, transformar algo (culpa) naquilo que ele não é (dolo). Quando isso ocorre, ferese o princípio da legalidade, além de décadas de evolução nos estudos da teoria do crime. Infringe-se também o princípio da razoabilidade, pois não é razoável, a pretexto de saciar um reclamo social, dar o mesmo tratamento – de homicídio doloso – àquele que se envolveu de forma mais incisiva, com a embriaguez e alta velocidade em um acidente de trânsito, em razão de um apócrifo dolo eventual e, àquele que puxou o gatilho de um revólver e ceifou a vida de outrem como dolo direto. Essas são situações distintas que, a toda evidência, merecem tratamentos distintos. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 95 O que fazer então? A resposta é fácil. Os critérios utilizados para se fixar o mínimo e o máximo das penas in abstrato são os do desvalor do resultado e o desvalor da conduta. Desse modo, um homicídio, seja o culposo ou doloso, em seu resultado, tem um mesmo desvalor: a morte da vítima. Já em sua conduta quando o homicídio é culposo, o desvalor da ação é menor do que na forma dolosa, por isso, o apenamento do homicídio doloso é maior que o culposo, mesmo que em ambos o resultado morte seja igual. Nos casos onde houver o homicídio resultante de acidente de trânsito, onde o motorista se encontrava embriagado e dirigindo de forma imprudente, a proposta é que haja um apenamento de forma diferente, com uma pena, nem tão alta como a do homicídio doloso (de 6 a 20 anos) e nem de tão baixa como no homicídio culposo previsto no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro (de 2 a 4 anos). Com essa alteração legislativa, os profissionais do direito, delegados de polícia, promotores de justiça e juízes ao aplicarem o direito, não precisarão, para atender a um reclamo social, vilipendiar a legalidade, a razoabilidade e nem décadas de construção doutrinária sobre os crimes culposos. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Marcelo Cunha. Crimes de trânsito, Belo Horizonte, Mandamentos, 2004. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. 14.ed., São Paulo: Saraiva, 2009. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 2004. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Moderna Teoria do Fato Punível. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. D’URSO, Luiz Flávio Borges. Dolo eventual e culpa consciente. In: D’URSO, Luiz Flávio Borges. (Coord.). Direito Criminal Contemporâneo: estudos em homenagem ao Ministro Francisco de Assis Toledo. São Paulo, Juarez de Oliveira, 2004. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 4. ed., volume I, tomo II, Rio de Janeiro, Forense, 1958. 96 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. JESUS, Damásio. Direito Penal Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2008. LEITE, Ricardo Savignani Alvares. Delito público e delito privado: um breve estudo do homicídio culposo e da lesão corporal no direito romano. Disponível em http://www. revistaliberda des.org.br/site/outrasEdicoes /outrasEdicoesExibir.php?rcon_ id=109, acessado em 28/04/2012 as 14h36minhs. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal - Parte Geral Parte Especial, São Paulo: RT, 2005. TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. Recebido em: 14/05/2012. Aceito em: 19/07/2012. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 97 98 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. FATOR ACIDENTÁRIO DE PREVENÇÃO - FAP CONSTITUCIONAL, MAS VICIADO DE ILEGALIDADE? Ana Paula VASKEVICZ1 Valkiria BRIANCINI2 Resumo: O presente artigo trata da Aplicação do Fator Acidentário de Prevenção – FAP, instituído pela Lei nº 10.666/2003. Sendo que, o FAP consiste num multiplicador variável num intervalo de cinco décimos (0,5000) a dois inteiros (2,0000), que incidirá sobre a alíquota do Seguro de Acidentes do Trabalho – SAT/Riscos Ambientais do Trabalho – RAT. Diante disso, possibilita a Previdência Social aumentar em até 100% (cem por cento) ou diminuir em até 50% (cinquenta por cento) os tributos pagos para financiar o SAT/ RAT. Neste contexto, objetiva-se demonstrar as ilegalidades/ constitucionalidade da nova metodologia adotada pelo FAP, que veio com intuito de bonificar as empresas. A metodologia de pesquisa utilizada foi hipotético-dedutiva, baseando-se na pesquisa bibliográfica/documental. Conclui-se que a nova metodologia adotada é constitucional, pois não beneficia apenas o empregador com pagamento de menos tributos, bem como o trabalhador, pois é no seu local de trabalho que haverá mais prevenção com a diminuição dos riscos, menos acidentes ocorrerão, prevenindo assim um direito constitucional do empregado: a saúde. Palavras-chave: Constitucionalidade. Ilegalidades. Fator Acidentário de Prevenção. Abstract: This article discusses the application of Accident Prevention Factor - FAP, established by Law No. 10.666/2003. Since the FAP consists of a multiplier variable within five tenths (0.5000) two integers (2.0000), which will focus on the rate of the Accident Insurance - SAT/Environmental Risks of Labor - RAT. Thus, it allows the Social Security increase by 100% (hundred percent) or decrease by up to 50% (fifty percent) of the taxes paid Bacharel em Direito pela Faculdade Meridional – IMED de Passo Fundo/RS. E-mail: [email protected] Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul/RS (UCS). Especialista em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade Anhanguera – Uniderp. Professora de Direito da Faculdade Meridional (IMED), Passo Fundo/RS e Professora do Instituto Desenvolvimento Educacional do Alto Uruguai (IDEAU), Getúlio Vargas/RS. E-mail: [email protected] 1 2 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 99 to finance the SAT/RAT. In this context, the objective is to demonstrate the illegality/constitutionality of the new methodology adopted by the FAP, which came with the intention to bonus companies. The research methodology used was hypothetico-deductive, based on literature/documents. It is concluded that the new methodology adopted is constitutional because it not only benefits the employer to pay less taxes, as well as the worker as it is in his/her workplace that more prevention with reduced risk, fewer accidents occur, preventing thus an employee’s constitutional right: health. Keywords: Constitutionality. Illegalities. Accident Prevention Factor. 1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem por objeto demonstrar a constitucionalidade do Fator Acidentário de Prevenção - FAP, multiplicador este que foi instituído pela Lei nº 10.666 de 2003, que ressalva as alíquotas que irão incidir sobre o Seguro de Acidentes do Trabalho – SAT/Riscos Ambientais do Trabalho – RAT. Diante disso, se dá ênfase a metodologia utilizada para o cálculo do FAP, pois há indícios de ilegalidade, conforme será abordado. Desta forma, como objetivo principal buscou-se demonstrar as ilegalidades que apresentam a nova metodologia do Fator Acidentário de Prevenção, para tanto foram analisados casos práticos julgados pelos Tribunais Regionais Federais. Por conseguinte, focaliza-se o estudo sobre o Seguro de Acidentes do Trabalho (SAT), assegurado pelo artigo 7º, inciso XXVIII da Constituição Federal, atualmente conhecido como Risco de Acidente de Trabalho (RAT), cujas alíquotas aplicadas, conforme a graduação de risco (1% - leve, 2% - médio ou 3% - grave), são apresentadas no Anexo V, do Decreto nº 3.048/99. Considerando que com o decorrer do tempo surgiram normas, portarias e decretos com intuito de buscar uma constitucional aplicação da metodologia do FAP. Para tanto, em 2003 surgiu a Lei nº 10.666 criando o Fator Acidentário de Prevenção, o qual nada mais é do que um fator variável entre 0,5000 e 2,0000, que multiplicado pelo valor da alíquota do SAT/RAT, permite uma redução ou um aumento no seu valor final. 100 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Destarte, significa que o FAP pode variar de forma significativa, visto que sua função é bonificar as empresas com menores riscos de acidentes de trabalho com alíquotas baixas. Nisso, as empresas que investirem na prevenção dos riscos serão bonificadas com a nova metodologia. 2 FATOR ACIDENTÁRIO DE PREVENÇÃO – FAP E SEGURO DE ACIDENTE DO TRABALHO – SAT/RISCOS AMBIENTAIS DO TRABALHO – RAT A implementação do Fator Acidentário de Prevenção - FAP surgiu com a finalidade de ampliar a prevenção dos acidentes e doenças que ocorrem nas empresas, o Plano Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador – PNSST em conjunto com o Ministério da Previdência Social – MPS, Ministério do Trabalho e Emprego – MTE e Ministério da Saúde – MS, vem fortalecendo políticas no sentido de demonstrar ao empregado e ao empregador melhorias que podem ocorrer no ambiente de trabalho, para que sejam menores possíveis os índices de acidentes de trabalho. O Fator Acidentário de Prevenção caracteriza-se por ser um mecanismo que possibilita a Previdência Social aumentar em até 100% (cem por cento) ou diminuir em até 50% (cinquenta por cento) os tributos pagos para financiar o Seguro de Acidentes do Trabalho (SAT)/Riscos do Ambiente de Trabalho (RAT), regulado o FAP pela Lei nº 10.666/2003, com suas alíquotas descritas no artigo 103, sendo elas de 1% (risco leve), 2% (risco médio) e 3% (risco grave). Considerando que a Resolução MPS/CNPS nº 1.316 de 2010, elenca as etapas de cálculo do FAP, onde se utilizam os índices de frequência, gravidade, custo. O Seguro de Acidente do Trabalho, elencado na Constituição Federal Brasileira em seu artigo 7º, inciso XXVIII4, garante aos trabalhadores o seguinte: Art. 10, da Lei 10.666/2003. A alíquota de contribuição de um, dois ou três por cento, destinada ao financiamento do benefício de aposentadoria especial ou daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, poderá ser reduzida, em até cinqüenta por cento, ou aumentada, em até cem por cento, conforme dispuser o regulamento, em razão do desempenho da empresa em relação à respectiva atividade econômica, apurado em conformidade com os resultados obtidos a partir dos índices de freqüência, gravidade e custo, calculados segundo metodologia aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social. 4 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 45. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 101 “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.” Neste contexto, podemos afirmar que o trabalhador possui seguro de qualquer acidente que possa vir a sofrer em seu emprego assegurado constitucionalmente. Enfatizando, que esta contribuição possui duas finalidades, sendo uma delas o financiamento das prestações decorrentes de acidente do trabalho e a outra o financiamento da aposentadoria especial. Sendo que a base para a contribuição é a remuneração mensal paga aos segurados empregados e aos trabalhadores avulsos da empresa. O Decreto nº 3.048/99 – Regulamento da Previdência, em seu Anexo V, ressalva a relação das atividades preponderantes e correspondentes ao grau de risco, como por exemplo: criação de bicho-de-seda – risco leve (1%); cultivo de espécies madeireiras, exceto eucalipto, acácia-negra, pinus e teca – risco médio (2%); extração de minérios de cobre, chumbo, zinco e outros minerais metálicos não-ferrosos – risco grave (3%), dentre outros. Os níveis de risco explanados no Anexo V, do Decreto nº. 3.048/99 são calculados com base na função que cada empresa exerce, desta forma cabe a cada empresa o enquadramento de sua atividade e assim analisar em qual grau de risco se enquadra, objetivando a aplicação da referida alíquota. Estes enquadramentos eram realizados considerando todos os estabelecimentos da empresa, ou seja, todas as filiais, exemplificando: se uma das filiais se enquadra no risco leve (1%), tendo 100 empregados e outra filial apresenta risco grave (3%), possuindo 400 empregados. Destarte, haveria incidência sobre a remuneração dos 500 empregados com alíquota de 3% do SAT, diante de muitas discussões o Superior Tribunal de Justiça determinou que o enquadramento ocorra de forma individualizada a cada Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica – CNPJ, editando a Súmula 351: “A alíquota de contribuição para o Seguro de Acidente do Trabalho (SAT) é aferida pelo grau de risco desenvolvido em cada empresa, individualizada pelo seu CNPJ, ou pelo grau de risco da atividade preponderante quando houver apenas um registro”. Considerando que esta contribuição é obrigação específica da empresa e jamais do segurado. 102 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Discorrendo sobre a prova da existência do fato gerador, por ser de alta complexidade a comprovação, para a aplicação do tributo, ocorre o ônus da prova, ou seja, passa a responsabilidade de comprovar a não existência do risco ao empregado para o contribuinte/empresa. Ocorrendo a inversão do ônus da prova, cabendo assim também a empresa comprovar a efetividade do uso dos equipamentos de proteção dos seus funcionários, bem como o fornecimento destes pela empresa. 3 APLICAÇÃO DO FAP: LESÃO A PRINCÍPIOS, ILEGALIDADES No que se refere aos princípios, primeiramente elencamos o princípio da legalidade tributária assim a Constituição Federal o aprimora em seu artigo 150, inciso I5, onde o legislador regula as limitações do poder de tributar. Nesse sentido, Luciano Amaro6 enfatiza: O princípio é informado pelos ideais de justiça e de segurança jurídica, valores que poderiam ser solapados se à administração pública fosse permitido, livremente, decidir quando, como e de quem cobrar impostos. Em suma, a legalidade tributária não se conforma com a mera autorização de lei para cobrança de tributos; requer-se que a própria lei defina todos os aspectos pertinentes ao fato gerador, necessários à quantificação do tributo devido em cada situação concreta que venha a espelhar a situação hipotética descrita na lei. Assevera Hugo de Brito Machado7: Pelo princípio da legalidade têm-se a garantia de que nenhum tributo será instituído, nem aumentado, a não ser através de lei (CF, art.150, inc. I). A Constituição é explícita. Tanto a criação como o aumento dependem de lei. Para bem compreender o princípio da legalidade é importante ter presente o significado das palavras lei e criar. Aliás, dizer que só é válida a criação do tributo por lei nada significa se não se sabe o que é lei, o que significa criar. Art. 150, Código Tributário Nacional. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; 6 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 14. ed. São Paulo: Saraiva: 2008, p. 111-112. 7 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 29. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 33- 34. 5 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 103 Por conseguinte, o legislador nos termos do artigo 153, parágrafo 1º , da Carta Magna, ressalva apenas as alíquotas que poderão serão alteradas, levando em consideração os limites da lei, sendo elas, imposto sobre: importação de produtos estrangeiros; exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; produtos industrializados; operação de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários. Ainda, o Código Tributário Nacional – CTN, em seu artigo 999, identifica 8 o poder dos decretos que objetivam impor tributos. Eis que, há de considerar que qualquer legislação que não expõe de forma cristalina as regras de aplicação do tributo, será considerada ilegal, como por exemplo, a nova metodologia do FAP. Visto que, a Lei nº 10.666 de 2003, em seu artigo 1010 concerne ao regulamento o poder de aumento ou redução das alíquotas. Diante disso, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Especial – nº. RE 343.446, analisou a constitucionalidade do SAT, e assim enfatiza: Constitucional. Tributário. Contribuição: Seguro de Acidente do Trabalho – SAT. Lei 7.787/89, arts. 3º e 4º; Lei 8.212/91, art. 22, II, redação da Lei 9.732/98. Decretos 612/92, 2.173/97 e 3.048/99. C.F., artigo 195, § 4º; art. 154, II; art. 5º, II; art. 150, I. I – Contribuição para o custeio do Seguro de Acidente do Trabalho – SAT: Lei 7.787/89, art. 3º, II; Lei 8.212/91, art. 22, II: alegação no sentido de que são ofensivos ao art. 195, § 4º, c/c art. 154, I, da Constituição Federal: improcedência. Desnecessidade de observância da técnica da competência residual da União, C.F., art. 154, I. Desnecessidade de lei complementar para a instituição da contribuição para o SAT. II – O art. 3º, II, da Lei 7.787/89, não é ofensivo ao princípio da igualdade, por isso que o art. 4º da mencionada Lei 7.787/89 cuidou de tratar desigualmente aos desiguais. III – As Leis 7.787/89, art. 3º, II, e 8.212/91, art. 22, II, definem, Art. 153. [...] - § 1º - É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V. 9 Art. 99, Código Tributário Nacional. O conteúdo e o alcance dos decretos restringem-se aos das leis em função das quais sejam expedidos, determinados com observância das regras de interpretação estabelecidas nesta Lei. 10 Art. 10, Lei 10.666/2003. [...] poderá ser reduzida, em até cinquenta por cento, ou aumentada, em até cem por cento, conforme dispuser o regulamento. [...] 8 104 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. satisfatoriamente, todos os elementos capazes de fazer nascer a obrigação tributária válida. O fato de a lei deixar para o regulamento a complementação dos conceitos de “atividade preponderante” e “grau de risco leve, médio e grave”, não implica ofensa ao princípio da legalidade genérica, C.F., art. 5º, II, e da legalidade tributária, C.F., art. 150, I. IV – Se o regulamento vai além do conteúdo da lei, a questão não é de inconstitucionalidade, mas de ilegalidade, matéria que não integra o contencioso constitucional. V – Recurso extraordinário não conhecido. (STF – RE 343.446. Julgado em 26/07/2000) (grifo nosso) Perante este entendimento, o STF entende pela constitucionalidade do Fator Acidentário de Prevenção, não acarretando vício nas alíquotas utilizadas no SAT, visto que o inciso II11, do art. 3º, da Lei 7.787/89, e o inciso II, do art 2212, da Lei 8.212/91, expressam os elementos necessários para validez da obrigação tributária. Todavia, se o regulamento que elenca as atividades preponderantes atribui ofensa à legalidade, a questão trata-se de ilegalidade e não de inconstitucionalidade. Desta forma, elencam-se as possíveis ilegalidades: a) Quanto aos acidentes considerados para o cálculo do FAP: a Lei nº 10.666 de 2003, regula em específico o FAP, neste contexto ao levar em consideração os acidentes de trajeto, explanado pelo artigo 21, inciso IV, alínea “d”13 da Lei nº 8.213 de 1991, eis que estes tipos de acidentes são considerados apenas para a Lei de Benefícios da Previdência Social, conclui-se que para o FAP somente serão considerados aqueles ocorridos no ambiente de trabalho, visto que a Lei nº 10.666 de 2003, não elenca em nenhum momento sobre todos os tipos de acidente que estão citados na Lei nº 8.213 de 1991. Lei nº. 7.787/99. Art. 3º. A contribuição das empresas em geral e das entidades ou órgãos a ela equiparados, destinada à Previdência Social, incidente sobre a folha de salários, será: II – de 2% sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, no decorrer do mês, aos segurados empregados e avulsos, para o financiamento da complementação das prestações por acidente do trabalho. 12 Lei nº. 8.212/91. Art. 22. [...] II – para o financiamento do benefício previsto nos arts. 57 e 58 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, e daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, no decorrer do mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos. 13 Lei nº. 8.213/91. Art. 21. [...] IV – o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de trabalho. [...] d) no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado. 11 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 105 b) Quanto às ocorrências e benefícios contestados de forma administrativa pela empresa: no momento em que a empresa contesta administrativamente qualquer ocorrência acidentária ou benefício, eis que muitas decisões ficam pendentes, diante disso não poderiam integrar o cálculo do FAP, mas destarte estão, e com isso alteram os índices (citados anteriormente) que são considerados, em consequência disso altera-se também o cálculo final, do mesmo modo que aumenta a arrecadação. c) Quanto aos benefícios concedidos sem acidente correspondente: no campo “número de registro de doenças do trabalho”, que se inserem no FAP, consideram-se os acidentes que tiverem referência com o nexo ou que exista a Comunicação de Acidente de Trabalho - CAT. Ocorre que, em alguns extratos é concedido auxílio-doença sem a identificação da Comunicação de Acidente de Trabalho ou se houve o nexo, assim não há identificação quanto ao benefício que foi concedido, ou seja, sua natureza acidentária. No entanto, estes benefícios também não podem integrar o cálculo, pois haverá alteração nos índices considerados. d) Quanto à inexistência do programa de reabilitação profissional: a Lei nº 8.213 de 1991, em seu artigo 6214, afirma que o segurado deverá se submeter a reabilitação, suja finalidade deste programa é tornar o incapacitado, capacitado para outra atividade, ou seja, uma readaptação do profissional. Todavia, não há eficiência perante este serviço público, ou seja, não ocorre a reabilitação na prática, com isso acaba lesando o coeficiente de custo, visto que é considerado a duração do benefício. e) Quanto às empresas que não possuem registro de acidentes: o artigo 10, da Lei nº 10.666 de 2003, apresenta que as mesmas serão bonificadas com 50% (cinquenta por cento) de desconto, ocorre que na prática se a empresa não tiver acidentes o valor de benefício será de R$ 0,00, assim considerando todos os índices aplicados na metodologia do FAP, torna-se impossível qualquer empresa apresentar acidentalidade zero, consequentemente estes 50% de bonificação para nada serve. Lei nº 8.213/91. Art. 62. O segurado em gozo de auxílio-doença, insusceptível de recuperação para sua atividade habitual, deverá submeter-se a processo de reabilitação profissional para o exercício de outra atividade. Não cessará o benefício até que seja dado como habilitado para o desempenho de nova atividade que lhe garanta a subsistência ou, quando considerado não-recuperável, for aposentado por invalidez. 14 106 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Diante das irregularidades, no que se refere ao arredondamento de valores, a metodologia adotada considera que nos índices utilizados, deve ter arredondamentos, com isso prejudicando as empresas no momento de se beneficiar, visto que quando se realizar os cálculos dos índices sempre terminará com casas decimais, sendo que estas irão influenciar no cálculo final, diante disso o Ministério da Previdência Social não consegue elencar de forma correta a posição de cada empresa, visto que muitas acabam ficando na mesma posição pela não consideração das casas decimais. Ainda, o cálculo do coeficiente de custo, o Ministério da Previdência Social considera para apuração do FAP no caso de auxílio-doença-acidentário, o valor que a previdência gasta com tal prestação. Todavia, para os benefícios de aposentadoria por invalidez ou auxílio-acidente utiliza-se uma projeção que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE realiza anualmente sobre expectativa de vida. Diante disso, perante esta projeção ocorre que não houve o efetivo gasto da previdência, ainda não se tem absoluta certeza que o segurado viverá o tempo que o IBGE indica. Assim, não se pode responsabilizar a empresa por um episódio incerto, incidindo no cálculo de um tributo. Destarte, considerando que o cálculo da metodologia do Fator Acidentário de Prevenção, é realizado com base nos acidentes ocorridos na empresa, passou-se a ter como alvo principal a prevenção de acidentes e doenças que ocorrem nas empresas, desse modo utiliza-se de políticas públicas, com a finalidade de demonstrar ao laborando e ao empregador melhorias que podem ser feitas no ambiente de trabalho, para que o grau de acidentalidade sejam os menores possíveis. De outro lado, demonstrou-se que a lei tem intenção de punir as empresas que apresentam um maior número de acidentalidade, enfatizando o benefício para as que se destacam com menor número de acidentes, ou para aquelas que tiverem o FAP menor do que 1,0 obtenham um desconto de 50%. Entretanto, deve-se observar que a preocupação com a saúde do trabalhador esta crescendo a cada dia, e juntamente com ela surge a discussão sobre qual seria o meio ambiente do trabalho adequado, visto que muitas doenças Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 107 se originam do insustentável local de trabalho que laboram e, como consequência diversos benefícios acidentários vem se acumulando. Diante disso a Constituição Federal Brasileira elenca o princípio do risco mínimo regressivo, fundado no artigo 7º, inciso XXII, onde elenca que um dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, sendo a redução dos riscos no ambiente de trabalho, através de normas de saúde, higiene e segurança. Objetivando assim, a diminuição dos riscos encontrados nas empresas, para que se possa chegar cada vez mais próximo do grau de acidentalidade mínimo, existindo de tal modo a preocupação com a prevenção, para que não ocorra os acidentes. E de tal modo, ajustar o trabalhador a um meio ambiente do trabalho adequado e seguro, visto que podemos considerar um dos mais importantes e fundamentais direitos do trabalhador. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS No que se refere, a constitucionalidade quanto à metodologia do FAP, entende-se que não há violação no princípio da legalidade, visto que a Lei 10.666/2003 instituiu suas alíquotas e o seu cálculo, enquanto que o Decreto nº 6.957/2009 somente atribui execução ao elencado na Lei citada. Considerando que, quanto ao uso de dados ocorridos anteriormente para o cálculo, não há violação nos princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei tributária, visto que a utilização dos dados não constitui a incidência destes sobre o tributo. Perante tais alegações, destacou-se que as empresas devem investir na prevenção dos acidentes e se adequar conforme a Lei, assim as mesmas irão diminuir seus tributos e a Previdência Social gastará menos com o pagamento de prestações acidentárias. Ressalvando que o bem mais importante a ser preservado é a vida e a saúde do trabalhador, através de um meio ambiente do trabalho adequado e seguro, prolongando a vida do trabalhador e evitando que venha a padecer com facilidade, tendo em vista que, muitas vezes, o que influência para o empregado 108 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. é a insatisfação com local de trabalho, nessa circunstância cabe ao empregador a prevenção, oportunizando ao trabalhador uma maior qualidade de vida. 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 14. ed. São Paulo: Saraiva: 2008. BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 45. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. ______. Código Tributário Nacional. 45. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. ______. Lei nº 7.787, de 30 de junho de 1989. Dispõe sobre alterações na legislação de custeio da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 30 jul. 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/L7787.htm. Acesso em: 8 jul. 2011. ______. Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 24 jul. 1991. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Leis/L8212cons.htm. Acesso em: 8 jul. 2011. ______. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 24 jul. 1991. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/ L8213cons.htm. Acesso em: 8 jul. 2011. ______. Lei nº 10.666, de 8 de maio de 2003. Dispõe sobre a concessão da aposentadoria especial ao cooperado de cooperativa de trabalho ou de produção e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 9 maio 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.666.htm. Acesso em: 8 jul. 2011. ______. Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 6 maio 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/ d3048.htm. Acesso em: 8 jul. 2011. ______. Decreto nº 6.957, de 09 de setembro de 2009. Altera o Regulamento Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 109 da Previdência Social, aprovado pelo Decreto no 3.048, de 6 de maio de 1999, no tocante à aplicação, acompanhamento e avaliação do Fator Acidentário de Prevenção - FAP. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 9 set. 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6957. htm. Acesso em: 12 jul. 2011. ______. PREVIDÊNCIA SOCIAL. Resolução nº 1.316, de 31 de maio de 2010. Disponível em: http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/72/MPSCNPS/2010/1316.htm. Acesso em: 3 ago. 2011. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 29. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. Recebido em: 18/05/2012. Aceito em: 19/06/2012. 110 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. A PROBLEMÁTICA ACERCA DA JORNADA DE TRABALHO NAS USINAS DE AÇÚCAR E ÁLCOOL DO ESTADO DO PARANÁ Angélica Guerra RAPHAEL1 Luís Otávio de Oliveira GOULART2 Resumo: A jornada de trabalho e a remuneração sempre foram os temas mais polêmicos no tocante às relações de trabalho. O presente estudo trata da jornada de trabalho nas Usinas de Açúcar e Álcool do Estado do Paraná. As usinas dividem o ano em dois períodos, quais sejam a safra e a entressafra. Durante a entressafra, os trabalhadores laboram no “horário comercial” fazendo manutenção nos maquinários. Já no período de safra, a jornada diária é alterada para o sistema “5 por 1” ou para o “6 por 2”. Como as usinas normalmente são localizadas em lugares afastados das zonas urbanas e desprovidas de fácil acesso ou transporte coletivo, e o empregador geralmente fornece a condução, os empregados têm direito a perceber horas in itinere, pois, se for somado o tempo de deslocamento, o tempo normal da jornada de trabalho e o horário de almoço, que normalmente é passado na usina em função de sua localização fora dos centros urbanos, nota-se que facilmente o tempo máximo de 8h diárias é extrapolado. Tal excesso, que muitas vezes passa despercebido pelas pessoas que não têm convivência com este meio, causa prejuízos para os trabalhadores. O cansaço físico e mental, a falta de tempo fixo para o descanso, uma vez que os dias de folga são alternados, o trabalho indiscriminado em domingos e feriados, o afastamento do convívio social que tal jornada causa nos trabalhadores, são questões que merecem ser discutidas, tendo em vista que o setor sucroalcooleiro impulsiona a economia brasileira. Palavras-chave: Usinas de açúcar e álcool; jornada de trabalho; “5 por 1”; “6 por 2”. Abstract: The working hours and pay have always been the most contentious issues in relation to employment. The present study deals with the day’s work in the Sugar and Alcohol of the State of Parana. The plants divide the year into 1 Estudante do 5º ano de Direito pela Universidade Estadual de Maringá. O presente texto trata-se do Relatório Final do Projeto de Iniciação Científica desenvolvido pela graduanda, durante o ano de 2011. 2 Professor Mestre da Universidade Estadual de Maringá, lotado no Departamento de Direito Público, orientador do presente projeto. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 111 two periods, namely the crop and season. During the off season, workers labor in “business hours” doing maintenance on machinery. In the harvest season, the workday is changed to the system “for a 5” or 6 “by 2”. As the plants are usually located in places away from urban areas and lack of easy access or public transport, and the employer generally provides the driving, employees are entitled to notice commuting hours, as if the added travel time, time normal working hoursand lunch break, which is usually spent at the plant due to its location outside of urban centers, easily noticed that the maximum daily 8h is extrapolated. Such excess, which often goes unnoticed by people who have no interaction with the environment, cause harm to workers. The physical and mental fatigue, lack of time fixed for the rest, since the days off are rotated, the indiscriminate work on Sundays and holidays, the removal of social causes such a journey in which workers are issues that deserve discussed, in order that the alcohol sector drive the Brazilian economy. Keywords: Sugar and alcohol; working hours; “5 for 1”; “2 by 6”. 1 INTRODUÇÃO 1.1 Evolução Histórica e Surgimento do Direito do Trabalho no Mundo Desde os primórdios da humanidade o homem trabalhou, seja para obter alimentos, caçar, se defender de animais ferozes e de outros homens, seus inimigos. Nos tempos mais antigos, findos os combates, os inimigos que restavam eram mortos, tanto para servir de alimento, quanto para pôr fim definitivo à rivalidade. Porém, com o passar do tempo, o homem percebeu que lhe era mais vantajoso manter seus rivais vivos e escravizá-los, tirando proveito da sua força de trabalho. Devido ao grande número de prisioneiros, começaram a surgir vendas, trocas, transformando a escravidão em uma espécie de comércio. Os escravos só eram libertados por gratidão, liberalidade ou última vontade de seus donos e, quando livres, vendiam ou alugavam seu trabalho, que era, basicamente, o que faziam quando eram escravos.3 O escravo não era considerado sujeito de direito, tendo em vista que era propriedade de seu dono. Seu único direito era o de trabalhar.4 SUSSEKIND, Arnaldo. MARANHÃO, Délio. VIANNA, Segadas. TEIXEIRA, Lima. Instituições de Direito do Trabalho. Volume 1. 21. ed. São Paulo: LTR. 2003. p. 27/29. 4 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 23. ed., São Paulo: Atlas, 2007. p. 4. 3 112 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Durante o período feudalista, prevalecia o regime de servidão, no qual, apesar de o indivíduo não ser escravo, ele não era senhor de sua liberdade. O governo era descentralizado, e cada senhor feudal era governante de seu território. Os servos eram obrigados a ser submissos e a pagar diversos tipos de impostos aos donos das terras, sendo que lhes eram assegurados apenas os direitos de herança de animais, objetos pessoais e, em alguns casos, o direito de uso de pastos.5 Neste período, os senhores feudais cediam terras e proteção militar e política aos seus servos, desde que estes trabalhassem nelas e dessem a maior parte da produção para seus senhores.6 Outra forma de trabalho encontrada na história foram as corporações de ofício, compostas por mestres, companheiros e aprendizes. Os mestres eram os proprietários das oficinas e já haviam passado pela obra-mestra, que era uma prova muito difícil, e era necessário o pagamento de uma taxa para poder realizá-la. Os companheiros trabalhavam para os mestres em troca de salários, e só passariam à condição de mestres quando fossem aprovados no exame da obra-mestra. Os aprendizes eram menores a partir de 12 ou 14 anos, que recebiam dos mestres o ensino do ofício. Os pais dos menores pagavam taxas elevadas para que os mestres ensinassem seus filhos, podendo, inclusive, aplicar-lhes castigos corporais. Se os aprendizes conseguissem superar as dificuldades dos ensinamentos, eram elevados à categoria de companheiros. As corporações de ofício, além de garantir maior liberdade aos trabalhadores, tinham como características a hierarquia, regular a capacidade produtiva e a regulamentação da técnica de produção.7 O Direito do Trabalho teve sua origem com a necessidade social de regulamentação das relações de trabalho. A Revolução Francesa trouxe consigo o ideal de liberdade do homem, a liberdade de comércio e os primórdios de liberdade contratual, e reconheceu o primeiro dos direitos econômicos e sociais, qual seja o direito ao trabalho. O pensamento liberal suprimiu a intervenção estatal na economia. A Revolução Industrial transformou o trabalho em emprego SUSSEKIND, Arnaldo. MARANHÃO, Délio. VIANNA, Segadas. TEIXEIRA, Lima. Op. Cit., p. 29/30. MARTINS, Sérgio Pinto. Op. cit., p. 4. 7 MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit. p. 4/5. 5 6 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 113 remunerado, impulsionando o desenvolvimento do Direito do Trabalho e do contrato de trabalho.8 Nesse sentido, traz a doutrina: O direito do trabalho surgiu como consequência da questão social que foi precedida pela Revolução Industrial do século XVIII e da reação humanista que se propôs a garantir ou preservar a dignidade do ser humano ocupado no trabalho das indústrias, que, com o desenvolvimento da ciência, deram nova fisionomia ao processo de produção de bens na Europa e em outros continentes.9 Com o advento do pensamento liberal e dos ideais iluministas, o Estado passou a não intervir diretamente na economia. Os detentores do capital regiam as relações de comércio e movimentavam a economia. A população, sofrendo com o desemprego rural e atraídas pelo desenvolvimento das indústrias, passou a migrar dos campos para as grandes aglomerações urbanas em busca de melhores condições de vida, e este fenômeno foi tão intenso que as cidades começaram a inchar e a aumentar a disparidade social. Como havia muita oferta de mão-de-obra, para conseguir um emprego as pessoas precisavam se sujeitar a todo e qualquer tipo de condição degradante de vida. Surge o conceito de proletário, que nos dizeres de Amauri Mascaro Nascimento, era aquele trabalhador “que presta serviços em jornadas que variam de 14 a 16 horas, não tem oportunidades de desenvolvimento intelectual, habita em condições desumanas, em geral nas adjacências do próprio local da atividade, tem prole numerosa e ganha salário em troca disso tudo”.10 Os detentores do capital controlavam as relações de emprego, e o Estado não interferia devido ao pensamento liberal que reinava. O mercado consumidor e o empregatício eram regidos pela lei da oferta e da procura. Os industriais preconizavam a máxima duração da jornada de trabalho ofertada, em detrimento da dignidade humana dos operários.11 Idem. p. 5. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 25. ed., São Paulo: Saraiva, 2010. p. 32 10 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Op. Cit. 36 11 SUSSEKIND, Arnaldo. MARANHÃO, Délio. VIANNA, Segadas. TEIXEIRA, Lima. Op. Cit. p. 34. 8 9 114 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Sem nenhum tipo de regulamentação, os comerciantes, que eram os donos das fábricas e os senhores dos empregos, tratavam seus empregados da maneira que mais lhes conviesse e maiores lucros lhe proporcionasse. Os empregados, independentemente de idade, sexo ou condições físicas eram equiparados e trabalhavam mediante as mesmas condições. Não havia aquele pensamento de que os desiguais devem ser tratados de maneira desigual na proporção de suas desigualdades. As jornadas de trabalho variavam, podendo, facilmente, extrapolar 14 horas diárias. As fábricas eram precárias nas condições de higiene e segurança. Os trabalhadores precisavam trabalhar curvados sobre as máquinas porque os tetos das fábricas eram demasiado baixos. As pausas para alimentação e descanso eram de poucos minutos. Os acidentes de trabalho eram constantes e deixavam milhares de empregados aleijados e/ou incapacitados para continuar a trabalhar ou arranjar outro tipo de emprego. Mulheres e crianças eram submetidas à mesma jornada e ao mesmo tipo de serviço que os homens. Esclarece Amauri Mascaro Nascimento: Até a invenção do lampião a gás, devida a William Murdock, em 1792, trabalhava-se enquanto a luz o permitisse. [...] Com a iluminação artificial, houve uma tendência de aumento da jornada de trabalho. Vários estabelecimentos passaram, então, a funcionar no período noturno.12 Os salários eram ínfimos, reduzidos ao mínimo que a concorrência do mercado permitia, e mal dava para sustentar uma pessoa. Por este motivo, as mulheres e os filhos pequenos eram obrigados a trabalhar para aumentar a renda familiar e, apesar de laborarem nos mesmos serviços que os homens, seus salários eram sempre menores. As crianças eram privadas de sua infância e trancadas em fábricas escuras e úmidas para, desde cedo, ajudarem no sustento da casa. Os horrores desta situação são expostos na doutrina moderna: A família viu-se atingida pela mobilização da mão de obra feminina e 12 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Op. Cit. p. 43 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 115 dos menores pelas fábricas. Os desníveis entre classes sociais fizeramse sentir de tal modo que o pensamento humano não relutou em afirmar a existência de uma séria perturbação ou problema social.13 [...] O industrial de algodão Samuel Oldknow contratou, em 1796, com uma paróquia a aquisição de um lote de 70 menores, mesmo contra a vontade dos pais. Yarranton tinha, a seu serviço, 200 meninas que fiavam em absoluto silêncio e eram açoitadas se trabalhavam mal ou demasiado lentamente. Daniel Defoe pregava que não havia nenhum ser humano de mais de quatro anos que não podia ganhar a vida trabalhando. Se os menores não cumpriam as suas obrigações na fábrica, os vigilantes aplicavam-lhes brutalidades, o que não era geral, mas, de certo modo, tinha alguma aprovação dos costumes contemporâneos.14 Esta situação piorou com a invenção da máquina, a qual trouxe consigo o desemprego, como trata a doutrina: A invenção da máquina e sua aplicação à indústria iriam provocar a revolução nos métodos de trabalho e, consequentemente, nas relações entre patrões e trabalhadores: primeiramente a máquina de fiar, o método de pudlagem (que permitiu preparar o ferro de modo a transformá-lo em aço), o tear mecânico, a máquina a vapor multiplicando a força de trabalho, tudo isso iria importar na redução da mão-de-obra porque, mesmo com o aparecimento das grandes oficinas e fábricas, para obter determinado resultado na produção não era necessário tão grande número de operários.15 Uma máquina sozinha fazia o serviço de várias pessoas, não precisava receber remuneração e nem parar para descansar. Ela poderia funcionar 24 horas por dia, independente de dias úteis, domingos e feriados religiosos. A máquina substituía os trabalhadores, aumentava o número de desempregos, causava acidentes e mutilações. O Estado não intervinha e não havia a menor segurança para a vida e a saúde dos empregados. Para competir com as máquinas, os trabalhadores precisavam trabalhar mais, por mais tempo, recebendo salários mais baixos. Ibidem, p. 33 Idem. p. 40 15 SUSSEKIND, Arnaldo. MARANHÃO, Délio. VIANNA, Segadas. TEIXEIRA, Lima. Op. Cit. p. 32. 13 14 116 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Posto isto: O emprego da máquina, que era generalizado, trouxe problemas desconhecidos, principalmente pelos riscos de acidente que comportava. A prevenção e a reparação de acidentes, a proteção de certas pessoas (mulheres e menores), constituíam uma parte importante da regulamentação do trabalho.16 As pessoas que abandonavam suas casas no campo e vinham para a cidade na esperança de encontrar melhores condições de vida se deparavam com as miseráveis condições das cidades e não podiam voltar porque já tinham vendido ou perdido o que tinham. Viam-se, então, obrigadas a se adaptar à vida precária e desumana que as cidades proporcionavam. Os trabalhadores eram tratados de forma indigna, humilhante, degradante, em desacordo com as mínimas condições para uma vida justa, humana e digna, e os empregadores os viam apenas como meio de produção de riquezas e, assim, a desigualdade social se alastrava. Indignados com as condições a que eram submetidos, os trabalhadores timidamente começaram a se rebelar, exigindo melhores condições de trabalho e melhores salários. Poucos eram os que se revoltavam ou tentavam organizar grupos e greves, pois os envolvidos eram despedidos e, apesar da miserabilidade dos salários, ficar sem o emprego obrigaria o trabalhador a buscar outro, sujeitandose a piores condições para driblar a concorrência de outros trabalhadores e das próprias máquinas. Aos poucos os trabalhadores perceberam que sozinhos eram impotentes, mas que unidos eram mais fortes e poderiam causar prejuízos significativos ao empregador. Organizados, eles causavam maior impacto à economia e o empregador não poderia despedir todos, senão se veria obrigado a fechar as portas de seu estabelecimento e o prejuízo econômico seria imensurável e de difícil reparação. Neste contexto surgiram também os sindicatos, que eram grupos que representavam os trabalhadores e seus interesses perante os empregadores. 16 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Op. Cit. p. 35 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 117 A ocorrência de greves aumentou e, com ela, os entraves travados entre empregados e empregadores, que sempre terminavam com a morte de grande número de operários, Diante desta realidade, o Estado não podia permanecer inerte, abstendo-se de intervir nas relações econômicas e sociais. Fazia-se indispensável a instituição de regras mínimas que regulassem as relações de trabalho e limitassem a autonomia dos particulares. E foi com este intervencionismo humanista, que visava criar regras que deveriam ser obedecidas pelos empregadores, e que contribuiriam para a melhoria da condição social dos trabalhadores, que surgiu o Direito do Trabalho, para evitar que abusos de grandes proporções continuassem a existir, como trata a doutrina: Georges Duveu escreve que no século XIX, na França, os mineiros passavam 12 horas no fundo das minas; nas fábricas de alfinetes o normal era o trabalho durante 14 ou 15 horas; nas tecelagens também. É conhecida a luta, na Inglaterra, pelas 8 horas, inspirando, mesmo, as letras de uma canção de protesto social: Eight hours to work/ eight hours to play/ eight hours to sleep/ eight shillings a day.17 A situação estava fora de controle. O Estado não poderia mais permanecer inerte, fingindo não ver que dos constantes confrontos entre empregados e empregadores poderiam advir consequências catastróficas. Era preciso um mínimo regramento estatal nas relações de trabalho. Neste contexto, surge o Direito do Trabalho. 2 DESENVOLVIMENTO 2.1 Jornada de Trabalho: Conceito Para definir jornada de trabalho, três aspectos são levados em consideração: o tempo à disposição do empregador, o tempo efetivamente trabalhado e o tempo in itinere.18 Daí que surgiram três teorias para definir o tema. A primeira teoria diz que se considera jornada de trabalho o tempo em que o empregado está efetivamente trabalhando, ou seja, prestando serviços 17 18 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 33. ed., São Paulo: LTR, 2007. p. 271 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 5.ed., São Paulo: LTR, 2006. p. 837. 118 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. para o empregador. Assim, enquanto realiza trabalho, conta-se como jornada. Entretanto, as paralisações feitas pelo empregado para, por exemplo, almoçar e descansar, e o tempo em que o empregado permanece na empresa, mas não presta serviços, não é computado para fins de jornada de trabalho.19 A segunda teoria estabelece que jornada de trabalho é o tempo em que o empregado está a disposição do empregador. Desta forma, não é apenas o período em que está efetivamente trabalhando, mas também quando se encontra na empresa, aguardando ordens do empregador. Jornada de trabalho é, pois, o período deste a chegada até a saída da empresa pelo trabalhador.20 A terceira teoria diz que jornada de trabalho é o tempo in itinere, ou seja, conta-se como jornada de trabalho a partir do momento em que o trabalhador sai de sua residência com destino à empresa, o tempo em que lá permanece aguardando e/ou executando ordens do empregador, e o tempo que gasta para retornar até sua residência no final do dia. Jornada de trabalho é, pois, o tempo de deslocamento casa – empresa – casa.21 O nosso ordenamento jurídico adota a teoria do tempo à disposição do empregador, conforme disposto no art. 4º, da CLT: “Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada”. Excepcionalmente, a teoria do tempo in itinere é adotada quando presentes os requisitos do art. 58, §2º, da CLT, quais sejam “O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução”. Tal teoria também encontra respaldo nas Súmulas nos 90 e 320, ambas do Tribunal Superior do Trabalho. É o que nos ensina a doutrina: A terceira teoria explica o tempo in itinere, considerado como jornada de trabalho desde o momento em que o empregado sai de sua residência até quando a ela regressa. Não se poderia considerar o MARTINS, Op. Cit. p. 489. DELGADO, Maurício Godinho. Op. Cit. p. 838. 21 Idem. p. 839. 19 20 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 119 tempo in itinere em todos os casos, pois o empregado pode residir muito distante da empresa e o empregador nada tem com isso, ou o empregado ficar parado horas no trânsito da cidade no trajeto de sua residência para o trabalho, ou vice-versa. Haveria dificuldade em controlar a citada jornada e o empregador não poderia ser responsabilizado em todas as hipóteses pelo pagamento de tais horas. A jornada in itinere depende de que o empregador forneça a condução e o local de trabalho seja de difícil acesso ou não servido por transporte regular público (§2º do art. 58 da CLT), como ocorre com os trabalhadores rurais que se dirigem à plantação no interior da fazenda. Nesse caso, a jornada de trabalho inicia-se com o ingresso na condução fornecida pelo empregador e termina com a saída do empregado da referida condução ao regressar ao ponto de partida. Essa orientação é acolhida pela Lei nº 8.213/91 no que diz respeito ao acidente do trabalho ocorrido no trajeto residência-empresa, e vice-versa (art. 21, IV, d).22 Esta teoria encontra respaldo jurisprudencial no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região: HORAS IN ITINERE. REQUISITOS. Pode ser incluído na jornada de trabalho o tempo gasto pelo empregado para ir de sua casa ao trabalho e vice-versa (horas in itinere), desde que sejam cumpridos três requisitos cumulativos: o local seja de difícil acesso, não servido por transporte público regular e a condução seja fornecida pelo empregador. Não se vislumbra, no caso em tela, o cumprimento de tais exigências. (RO. Processo nº 01161001720095020301 (01161200930102007). Ano: 2010. Acórdão nº 20111228667. Relatora: Soraya Galassi Lambert. Revisora: Susete Mendes Barbosa de Azevedo. Data de publicação: 23/09/2011. TRT 2ª Região, 17ª Turma). HORAS EXTRAS “IN ITINERE”. Ao ingressar na portaria da Reclamada, o trabalhador coloca-se à disposição da empresa, tendo direito ao recebimento das verbas daí decorrentes, notadamente pelas dimensões da empresa. Aplica-se ao caso a inteligência da Súmula nº 429 do TST. Trata-se de uma nova formulação jurisprudencial em relação às horas extras in itinere, as quais podem ser aplicadas aos autos, desde que haja a identidade fática. No mesmo sentido, temos a Orientação Jurisprudencial Transitória 368, da SDI-I, do TST. É público e notório as dimensões espaciais do estabelecimento da Reclamada, havendo a necessidade de um tempo entre a portaria e o posto de trabalho. A rigor, o tempo gasto nos deslocamentos havidos entre a portaria e os locais efetivos de trabalho devem ser computados na jornada de trabalho. Recurso do Reclamante provido. HORAS EXTRAS PELA JORNADA QUE ANTECEDE 22 MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit. p. 489. 120 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. O HORÁRIO CONTRATUAL. Os minutos que antecedem a jornada de trabalho, quando o Reclamante já se encontra dentro da unidade fabril caracteriza o direito às horas extras in itinere. Recurso do Reclamante provido para garantir o direito à percepção de horas extras pelos minutos que antecedem a jornada de trabalho. (RO. Processo nº 01608003420105020466. Ano: 2011. Acórdão nº 20110936927. Relator: Francisco Ferreira Jorge Neto. Revisor: Benedito Valentini. Data de publicação: 29/07/2011. TRT 2ª Região, 12ª Turma). No mesmo sentido decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região: NULIDADE. OPORTUNIDADE PROCESSUAL PARA SUA ARGUIÇÃO. (...) HORAS IN ITINERE. CARACTERIZAÇÃO. Fazendo uma análise do § 2º do art. 58 da CLT, conclui-se que serão consideradas horas in itinere aquelas despendidas pelo obreiro em condução fornecida pelo empregador até ao local de labor de difícil acesso ou não servido por transporte regular público e para o seu regresso, por estar o empregado à disposição do empregador. Saliente-se que as horas destinadas ao transporte do trabalhador dentro das dependências da empresa não são consideradas horas de percurso. No mesmo sentido, a primeira parte da Súmula nº 90 do Col. TST. Além disso, nos termos da mesma Súmula 90, II, do mesmo Tribunal, a incompatibilidade entre os horários de início e término da jornada do empregado e os do transporte público regular é circunstância que também gera o direito às horas in itinere. Recurso do reclamante ao qual se nega provimento. (RO. Processo nº 0000200-76.2011.5.15.0002. Decisão nº 071993/2011-PATR. Relator: Manuel Soares Ferreira Carradit. Data da Publicação: 27/10/2011. TRT 15ª Região. 7ª Câmara, 4ª Turma). HORAS IN ITINERE. ADICIONAL DE HORAS EXTRAS. REFLEXOS. O tempo despendido a título de horas in itinere deve ser computado na jornada de trabalho, sendo que o excesso da jornada diária legal, deverá ser pago como extra, acrescido do adicional extraordinário, gerando, ainda, reflexos nas demais verbas contratuais. (RO. Processo nº 0003421-32.2010.5.15.0025. Decisão nº 068221/2011-PATR. Relator: Luiz Roberto Nunes. Data de publicação: 10/10/2011. TRT 15ª Região. 7ª Câmara, 4ª Turma). Ainda neste sentido, encontra-se posicionamento semelhante no Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região: Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 121 HORAS IN ITINERE. TEMPO GASTO ENTRE A SEDE DA RECLAMADA E O LOCAL DO SERVIÇO. APLICAÇÃO DO ARTIGO 58, § 2º DA CLT. SÚMULA Nº 90, IV DO TST. Para que o trajeto do empregado até o local de trabalho seja computado na jornada de trabalho como tempo à disposição do empregador (art. 4º da CLT), é necessário que se trate de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, e que seja a condução fornecida pelo empregador (art. 58, § 2º, da CLT). Caso em que não havia transporte público regular da BR 476 até a portaria da empresa, sendo, quanto a este trajeto, fornecida condução pela empresa Reclamada. Aplica-se, com relação a este percurso, o disposto no artigo 58, §2º, da CLT, na Súmula nº 90, IV, do C. TST, e analogicamente a OJ nº 36, da SDI-1 (transitória), com o reconhecimento de horas in itinere, que integram a jornada de trabalho do Autor. (TRT-PR-00990-2011-594-09-00-0ACO-39922-2011 – 4ª Turma. Relator: Luiz Celso Napp. Publicado no DEJT em 04-10-2011). HORAS IN ITINERE. INCOMPATIBILIDADE ENTRE OS HORÁRIOS DE INÍCIO E TÉRMINO DA JORNADA E OS DE TRANSPORTE PÚBLICO. SÚMULA 90, II, DO C. TST. A incompatibilidade entre os horários de início e término da jornada do empregado e os do transporte público regular dá direito ao pagamento de horas in itinere. Inteligência da Súmula 90, II, do C. TST. Recurso ordinário conhecido e provido no particular. (TRTPR-04971-2009-069-09-00-7-ACO-34824-2011 – 4ª Turma. Relator: Luiz Celso Napp. Publicado no DEJT em 30-08-2011). Como regra, portanto, adota-se a teoria do tempo à disposição do empregador, e apenas nos casos em que o local da prestação de trabalho for de difícil acesso ou não possuir transporte público regular, e o empregador fornecer a condução para seus empregados, a jornada de trabalho será respaldada pela teoria do tempo in itinere. 2.2 Limitações da Jornada de Trabalho Nem sempre houve limitação para a jornada de trabalho. Como exposto, preconizava-se o trabalho exacerbado em função da obtenção de maiores lucros. As primeiras limitações, estabelecendo um dia de descanso semanal, remontam aos tempos antigos: 122 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. O repouso semanal provém de uma tradição religiosa – dos sábados entre os hebreus e primeiros cristãos e, depois, dos domingos para recordar a Ressurreição de Jesus Cristo, num domingo. [...] Já em 321 o imperador Constantino proibiu nos domingos toda espécie de trabalho, exceto na agricultura.23 A Encíclica Rerum Novarum previa a limitação da jornada de trabalho à duração que não excedesse a capacidade física dos trabalhadores, a saber: O Papa Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum, de 1891, já se preocupava com a limitação da jornada de trabalho, de modo que o trabalho não fosse prolongado por tempo superior ao que as forças do homem permitissem. Prevê a Encíclica que “o número de horas de trabalho diário não deve exceder a força dos trabalhadores, e a quantidade do repouso deve ser proporcional à qualidade do trabalho, às circunstâncias do tempo e do lugar, à compleição e saúde dos operários”.24 Em todos os países, as primeiras preocupações da legislação operária eram com a proteção do trabalho das crianças e das mulheres, que persistem até hoje em países como a Índia e o Japão. Na maioria dos estados europeus, o trabalho noturno fora proibido para as mulheres e limitado para os jovens. Buscou-se assegurar o descanso dominical e criar instituições de proteção contra o desemprego e inspetores do trabalho, estes últimos para assegurar o cumprimento das leis. Foram criadas repartições representativas do proletariado. A jornada diária de trabalho foi limitada. Nova Zelândia, na Austrália, tornou-se a “terra sem greves”, pois a legislação social foi mais radical, com destaque para a arbitragem obrigatória e a reforma agrária, a qual visava evitar a concentração de grandes propriedades nas mãos de poucas pessoas.25 Em 1º de maio de 1866, aconteceu um fato marcante para a história do Direito do Trabalho, a saber: NASCIMENTO. Amauri Mascaro. Direito do trabalho na Constituição de 1.988. São Paulo: Editora Saraiva. 1.989. p. 180. MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit. p. 486. 25 JUNIOR, A. J. Cesarino. Direito Social Brasileiro. 1º Volume. São Paulo: Saraiva, 1970. p. 54/55. 23 24 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 123 Em 1º de maio de 1886, em Chicago, nos Estados Unidos, os trabalhadores não tinham garantias trabalhistas. Organizaram greves e manifestações, visando melhores condições de trabalho, especialmente redução da jornada de 13 para 8 horas. Nesse dia, a polícia entrou em choque com os grevistas. Uma pessoa não identificada jogou uma bomba na multidão, matando quatro manifestantes e três policiais. Oito líderes trabalhistas foram presos e julgados responsáveis. Um deles suicidou-se na prisão. Quatro foram enforcados e três foram liberados depois de sete anos de prisão. Posteriormente, os governos e os sindicatos resolveram escolher o dia 1º de maio como o dia do trabalho.26 Com o surgimento do Direito do Trabalho, os proletários passaram a ser mais valorizados, e a busca incessante pelo lucro começou a perder espaço em favor da dignidade humana dos empregados. “Foi, porém, o Tratado de Versalhes (1919) a cristalização da jornada diária de oito horas, com a criação da Organização Internacional do Trabalho e a promulgação da Convenção n. 1, pela Conferência de Washington.” 27 A Constituição Brasileira de 1934 foi a primeira a tratar do direito ao descanso, prevendo trabalho diário não excedente de oito horas, reduzíveis, mas só prorrogáveis nos casos previstos em lei (art. 121, §1º, c), repouso hebdomadário, de preferência aos domingos (art. 121, §1º, e) e férias anuais remuneradas (art. 121, §1º, f). A Constituição Federal de 1988 estabelece que a duração normal da jornada de trabalho não pode ser superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, salvo compensação de horários e redução de jornada, feitas por acordo ou convenção coletiva de trabalho (art. 7º, XIII). Mesma limitação temporal está prevista na Consolidação das Leis do Trabalho, desde que não seja fixado expressamente outro limite (art. 58). A duração normal do trabalho pode ser acrescida de horas suplementares, não excedentes a duas, mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou acordo ou convenção coletiva de trabalho (art. 59). Entre duas jornadas de trabalho, é exigível um período mínimo de onze horas consecutivas com fim de descanso ao trabalhador (art. 66). 26 27 MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit. p. 7. Ibidem, p. 171. 124 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Como ensina a doutrina, Os períodos de descanso conceituam-se como lapsos temporais regulares, remunerados ou não, situados intra ou intermódulos diários, semanais ou anuais do período de labor, em que o empregado pode sustar a prestação de serviços e sua disponibilidade perante o empregador, com o objetivo de recuperação e implementação de suas energias ou de sua inserção familiar, comunitária e política.28 A limitação do tempo de trabalho tem, principalmente, três fundamentos: biológico, social e econômico. A limitação biológica tem por fim combater problemas psicofisiológicos que podem advir da fadiga e do cansaço excessivo. O ser humano precisa descansar para que possa trabalhar melhor e produzir mais. A limitação social visa permitir que o trabalhador tenha vida social, seja convivendo com a comunidade a qual pertence, passando mais tempo com familiares e amigos, praticando esportes, fazendo cursos universitários ou de especialização, viajando, ou realizando qualquer atividade que lhe proporcione prazer no tempo em que estiver afastado de suas atividades de trabalho. A limitação econômica diminui o desemprego, pois permite a contratação de maior número de empregados, e também aumenta a produção, uma vez que empregados descansados rendem mais e o número de acidentes de trabalho é menor.29 O direito ao descanso é, pois, um direito fundamental do trabalhador e deve ser respeitado. A inobservância dos preceitos legais, além de violação constitucional e celetista, é uma violação da dignidade do empregado, que deve ser tratado como ser humano, e não como objeto fornecedor de lucro e enriquecimento. 2.3 Direito Comparado O Direito do Trabalho na Inglaterra, semelhantemente ao restante do mundo, passou por diversas modificações e limitações até chegar aos dias atuais. A doutrina nos traz que as maiores preocupações da legislação surgida com a Revolução Industrial eram a proteção do trabalho dos menores e das mulheres, bem como a limitação da jornada de trabalho, sendo que a primeira lei de influência 28 29 DELGADO, Maurício Godinho. Op. Cit. p. 918. SUSSEKIND, Arnaldo. MARANHÃO, Délio. VIANNA, Segadas. TEIXEIRA, Lima. Op. Cit. p. 803 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 125 mundial neste sentido foi a denominada Lei de Amparo aos Pobres, promulgada pela Inglaterra, no ano de 160130. Esta lei visava a proteção dos mais fracos, determinando que os menos favorecidos tinham direito de receber auxílio das autoridades públicas. Assim, as paróquias ficaram responsáveis pela administração da lei de amparo aos pobres, e cada unidade paroquial era responsável pelo auxílio e proteção das pessoas carentes que lhe fossem afetas. Foi estabelecido pelos juízes das comarcas um imposto que deveria ser pago pelos proprietários de terras e seus usuários, e os valores arrecadados seriam destinados às paróquias, que por sua vez, os reverteriam em favor dos indigentes dos quais cuidava.31 Os filhos destes menos desfavorecidos se tornavam aprendizes de profissões que poderiam lhes garantir o futuro. Os idosos e doentes eram atendidos em suas próprias residências. Aos desempregados, os párocos arranjavam trabalho e os vagabundos inveterados eram levados às casas de correção. Contudo, este sistema apresentava falhas. As paróquias, para se livrarem dos aprendizes, começaram a traficar os menores para trabalharem em indústrias.32 Em função disto, foi editada a Lei de Peel, em 1802, com o intuito de proteger os menores trabalhadores, limitando a jornada de trabalho das crianças a doze horas diárias, e estabelecendo deveres quanto à educação, higiene dos locais de trabalho e dos dormitórios. Porém, esta lei só passou a ter força a partir do ano de 1819, com a edição de outra lei no mesmo sentido, que proibia o emprego dos menores de nove anos e restringia a doze horas o trabalho dos adolescentes de até dezesseis anos.33 Ainda, a lei de 1833 proibiu o emprego de menores de nove anos, limitou em nove horas diárias o trabalho dos menores de treze anos, e em doze horas o trabalho dos menores de dezoito anos, proibiu o trabalho noturno e estabeleceu que deveriam ser nomeados quatro inspetores de fábricas para fiscalizar o cumprimento da lei. A lei de 1844 limitou o trabalho da mulher a dez NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Op. Cit. p. 55. Idem. p. 55/56. 32 Idem, p. 56. 33 Idem. p. 56. 30 31 126 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. horas diárias, as leis de 1850 e 1853 limitaram a jornada diária de trabalho dos homens a doze horas diárias, dentre outras.34 Nos países de língua inglesa, havia uma canção que demonstrava o descontentamento dos trabalhadores e o protesto para fixação da jornada diária em oito horas, que dizia o seguinte: “Eight hours to work; eight hours to play; eight hours to sleep; eithg shiilings a day”35. Na França não foi diferente. No ano de 1813, foi editada uma lei que proibia o trabalho dos menores em minas. Em 1814, passou a ser proibido o trabalho em domingos e feriados. No ano de 1841, ficou proibido o emprego de menores de oito anos, a jornada máxima diária dos menores de doze anos foi fixada em oito horas, e a dos menores de dezesseis anos foi fixada em doze horas. Em 1848, foi fixada a jornada máxima diária, generalizada, em doze horas. 36 Hoje, com a evolução do direito do trabalho e o desenvolvimento científico, mecânico e tecnológico, o que se vê nos países capitalistas é uma constante diminuição da jornada de trabalho e maiores investimentos em tecnologia, em uma tentativa de compensar as limitações trabalhistas quanto à utilização da mão de obra humana37. Como a doutrina ensina, diferentemente do Brasil, que adota a jornada de trabalho inflexível, atualmente vigora, nos países de língua inglesa, a jornada flexível, ou seja, flex time, que consiste em: (...) o trabalhador faz seu horário diário, havendo um limite semanal ou anual que é obrigado a cumprir. Assim, o operário pode chegar cedo em determinado dia e sair cedo ou chegar tarde e sair também mais tarde. O horário flexível muitas vezes ajuda na produção, que fica mais concentrada em certo período, como também no próprio trânsito, pois as pessoas podem organizar-se no sentido de não enfrentarem a hora do rush38. Idem. p. 57. MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit. p. 41. 36 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Op. Cit.p. 56/57. 37 DELGADO, Maurício Godinho. Op. Cit. 2006. 38 MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit. p. 501 e 502. 34 35 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 127 Analisando a jornada de trabalho semanal de alguns países, tem-se o seguinte: Tabela 1: Jornada de trabalho semanal na indústria de transformação39 Jornada de trabalho semanal na indústria de transformação Países selecionados - 1994 HORAS Brasil (1) 44,0 México 44,8 Uruguai (2) 43,1 Chile 44,6 EUA (3) 42,0 Japão (2) 37,7 Dinamarca (2) 31,5 Canadá (2) 38,6 Alemanha, RF (3) 38,0 França 38,6 Em outra disposição, tem-se o seguinte: Tabela 2: Jornada semanal de trabalho legal e/ou convencional40 Países Alemanha Áustria Bélgica Dinamarca Espanha Finlândia França Grã-Bretanha Grécia Irlanda 39 40 Jornada semanal de trabalho legal e/ou convencional Países selecionados - 1996 (em horas) Lei Convenções coletivas 37,5 40 37 a 40 40 36 a 38 35 a 37 40 38,5 39 35 a 39 35 a 40 41 37,5 a 40 48 39 Disponível em http://www.sindipetro.org.br/extra/cjuago97.htm Disponível em http://www.sindipetro.org.br/extra/cjuago97.htm 128 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Islândia Itália Luxemburgo Holanda Noruega Portugal Suécia Suíça 40 40 40 48 40 40 40 46 a 50 37 a 40 36 a 40 36 a 40 35 a 40 37,5 35 a 40 35 a 40 40,4 Tendo em vista o disposto na tabela 2, vê-se que a jornada de trabalho na Inglaterra (Grã-Bretanha) pode variar entre 35 (trinta e cinco) e 40 (quarenta) horas semanais, fixadas por convenção coletiva. Ainda, na França, a legislação prevê a jornada semanal de 39 (trinta e nove) horas, sendo que este número pode ser modificado por convenção coletiva, e variar entre 35 (trinta e cinco) e 39 (trinta e nove) horas. Analisando os dados fornecidos pelas tabelas, nota-se que a jornada semanal, na maioria dos países em questão, é inferior à prevista pelo ordenamento jurídico brasileiro, qual seja 44 (quarenta e quatro) horas, conforme estabelecido no art. 7º, XIII da Constituição Federal. Com exceção da Grécia, Irlanda, Holanda e Suíça, os demais países em comento têm jornada semanal igual ou inferior a 40 (quarenta) horas, sendo que este número tem a prerrogativa de ser diminuído através de convenções coletivas. No Brasil, além de a jornada semanal ser elevada quando comparada a dos países selecionados, a Consolidação das Leis do Trabalho prevê a hipótese de aumentar o tempo de labor diário, mediante a prestação de horas extraordinárias: Art. 59 - A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho. Enquanto no Brasil a legislação prevê uma possibilidade de aumentar ainda mais o tempo de prestação de serviço, nota-se que nos países desenvolvidos Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 129 há uma tendência para a diminuição da jornada máxima, uma vez que com a diminuição da jornada e sem a prestação de horas extraordinárias, abre-se espaço para a criação de novos turnos de trabalho, contribuindo para a criação de vagas de emprego, e a consequente diminuição do desemprego 2.4 Turnos Ininterruptos de Revezamento Os turnos ininterruptos de revezamentos correspondem àquele tipo de jornada de trabalho na qual os trabalhadores se revezam para trabalhar na mesma função e usando os mesmos equipamentos.41 Aqueles que trabalham neste tipo de jornada obedecem à limitação constitucional de seis horas por dia (art. 7º, XIV), visto que a característica principal deste regime é o revezamento do turno trabalhado, que muda geralmente a cada semana ou quinzena, entre os períodos diurno, noturno e misto. Interessante revelar a origem dos turnos ininterruptos de revezamento: O inciso XIV do art. 7º da Constituição teve origem histórica na Lei nº 5.811/72, que trata do regime de trabalho dos empregados nas atividades de exploração, perfuração, produção e refinação de petróleo, industrialização do xisto, indústria petroquímica e transporte de petróleo e seus derivados por meio de dutos, que prestavam serviços em regime de turnos de revezamento. Pretendeu o constituinte acabar com esse sistema, que se tinha generalizado para outras atividades, estabelecendo jornada de seis horas.42 A jornada é limitada em seis horas diárias, justamente porque esta constante mudança de horário de trabalho prejudica o organismo e a vida dos trabalhadores. Como o empregado não tem jornada fixa, não pode assumir compromissos que exijam rotina, pois não poderá honrá-los. Se fizer um curso universitário, várias semanas por ano não poderá frequentar as aulas porque o horário de trabalho estará coincidindo com o das aulas. Se praticar academia, terá que trocar de horário sempre que seu turno coincidir com o horário agendado para se exercitar. Se jogar no time de futebol do bairro, terá que faltar aos treinos 41 42 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Op. Cit.p. 771. MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit.. p. 516 130 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. que coincidirem com seu turno. Assim, nunca terá um tempo livre fixo para poder se dedicar a sua vida pessoal e aos seus próprios interesses. Nesse sentido: A ocupação do empregado nas condições resultantes do trabalho por turnos o impede, primeiramente, de participar normalmente das suas atividades recreativas, educativas, culturais e mesmo sindicais, uma vez que não poderá sempre manter os mesmos horários livres e terá de condicionar as suas disponibilidades às viradas semanais da jornada diária de trabalho, em prejuízo do seu desenvolvimento integral, como chefe de família, como membro de uma comunidade esportiva, como participante de uma coletividade religiosa etc.43 Ainda, seu organismo estará sempre desgastado e fragilizado, pois o horário de descanso, refeições e sono sofrerão constantes mudanças e serão sempre em períodos diferentes, o que dificulta a sua adaptação à rotina variável e facilita o adoecimento. Tal entendimento é estudado na doutrina: A jornada de trabalho reduzida nos turnos ininterruptos de revezamento, assegurada pela Constituição Federal de 1988, art. 7º, XIV, justifica-se porque leva em consideração a forma excepcional de trabalho no regime de revezamento de horários, pouco importando a concessão de intervalos dentro ou entre as jornadas, visto que afeta diretamente o relógio biológico do ser humano.44 Neste sentido, eis julgados recentes do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região: TURNO ININTERRUPTO DE REVEZAMENTO. CARACTERIZAÇÃO. A solução de continuidade da atividade da empresa ao longo do dia ou a ocorrência de intervalos interjornadas ou intrajornadas são irrelevantes, para efeitos da redução do tempo de trabalho previsto no art. 7º, XIV, da CF. São requisitos, apenas, a alternância de turnos pelo trabalhador, a frequência de alternância e, pela constante mudança horária, que essa sucessão de turnos gere a 43 44 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Op. Cit., 2007. p. 287. MARQUES, Christiani. A proteção ao trabalho penoso. São Paulo: Editora LTR, 2007. p. 75. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 131 ele adversidade, com desgastes, especialmente físicos pela adaptação do relógio biológico. Presentes esses requisitos, por imperativo da norma constitucional e como mecanismo de redução dos riscos a que o trabalhador encontra-se exposto é indispensável a redução horária. Recurso ordinário da ré não provido. CUMULAÇÃO DE ADICIONAIS. HORAS EXTRAS E TRABALHO NOTURNO. A opção do legislador pela remuneração da hora noturna com adicional de 20% tem o claro objetivo de oferecer contraprestação justa pelo trabalho prestado à noite, indiscutivelmente mais penoso. Ainda, quando extraordinárias, as horas trabalhadas à noite deverão ser acrescidas do adicional pelo trabalho extraordinário, que tem fato gerador diverso (trabalho além do tempo normal). É o que se infere da Orientação Jurisprudencial 97 da Seção de Dissídios Individuais - 1 do Tribunal Superior do Trabalho. Deve-se, portanto, incluir o adicional noturno na base de cálculo das horas extras noturnas. Recurso ordinário não provido. (TRT-PR-00552-2010-411-0900-5-ACO-31692-2011 – 2ª Turma. Relatora: Marlene T. Fuverki Suguimatsu. Publicado no DEJT em 05-08-2011). TRT-PR-13-09-2011 Turno ininterrupto de revezamento. Não importa se as atividades da empresa são ou não ininterruptas; a questão é: se para o empregado, em vários meses, os turnos aconteciam em revezamento, não tendo uma seqüência de horário livre que possibilitasse o descanso e convívio social necessários, configurado está o turno ininterrupto de revezamento. (TRT-PR00586-2010-659-09-00-6-ACO-36788-2011 – 2ª Turma. Relator: Márcio Dionísio Gapski. Publicado no DEJT em 13-09-2011). TRT-PR-05-03-2010 TURNOS ININTERRUPTOS DE REVEZAMENTO. AMPLIAÇÃO DA JORNADA DE SEIS HORAS. NECESSIDADE DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA. A frequente alternância de horário de trabalho, ora durante o dia, ora durante a noite, caracteriza turno ininterrupto de revezamento, o que gera evidentes desgastes físicos para o trabalhador e contraria seu relógio biológico, sem permitir-lhe a adaptação a ritmos cadenciais estáveis. Ante a situação mais gravosa imposta ao empregado que trabalha nesse regime, somente por negociação coletiva torna-se possível a majoração da jornada constitucional de seis horas prevista no artigo 7º, inciso XIV, da Constituição Federal. Recurso ordinário da reclamada conhecido e desprovido. (TRT-PR-00715-2008-66909-00-9-ACO-06667-2010 – 3ª Turma. Relator: Altino Pedrozo dos Santos. Publicado no DJPR em 05-03-2010). A ininterruptividade não é característica da jornada, e sim do revezamento. Os intervalos para descanso e alimentação são garantias constitucionais, e a sua concessão não descaracteriza o turno ininterrupto de revezamento. Neste 132 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. sentido estabelece a Súmula nº 675, do STF, que diz que “os intervalos fixados para descanso e alimentação durante a jornada de seis horas não descaracterizam o sistema de turnos ininterruptos de revezamento para o efeito do art. 7º, XIV, da Constituição” e a Súmula nº 360, do TST, que diz que “a interrupção do trabalho destinada a repouso e alimentação, dentro de cada turno, ou o intervalo para repouso semanal, não descaracteriza o turno de revezamento com jornada de 6 (seis) horas previsto no art. 7º, XIV, da CF/1988”. Seguindo o entendimento sumulado, nos ensina Sérgio Pinto Martins: A ininterruptividade diz respeito à operacionalização da empresa, ao revezamento, à alternância de turnos, e não ao intervalo para repouso ou alimentação concedido na jornada de trabalho; caso contrário, também se entenderia que, se a empresa concede o intervalo de 11 horas entre um turno e outro (intervalo interjornadas), também estaria descaracterizado o turno.45 A empresa onde se realiza este tipo de turno pode parar de funcionar completamente por algum tempo diário, como entre as 00h00min e as 06h00min. O que não pode parar é o revezamento de turnos entre os trabalhadores, pois se a jornada diária de trabalho for de seis horas, mas o turno de cada funcionário for fixo, não estará caracterizado o turno ininterrupto de revezamento. Este tipo de regime de trabalho é muitas vezes preconizado pelas empresas por proporcionar maiores vantagens econômicas, uma vez que eliminadas as paralisações do estabelecimento, maiores serão os lucros, a produção e o desenvolvimento econômico do mesmo. 2.5 Horas In Itinere As horas in itinere abrangem todo o tempo gasto pelo trabalhador para se locomover de sua residência até o local onde presta trabalho, o tempo que permanecer à disposição do empregador e o tempo despendido para retornar à sua casa no final do dia. É, em suma, o período gasto no trajeto casa – trabalho – casa. 46 45 46 MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit. p. 519. DELGADO, Maurício Godinho. Op. Cit. p. 839. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 133 Para que as horas in itinere sejam computadas na jornada de trabalho, alguns requisitos devem estar presentes, quais sejam: o local da prestação de serviço deve ser de difícil acesso ou não servido de transporte público regular, e o empregador deve fornecer a condução. Necessário lembrar que o transporte público pode existir para uma parte ou todo o trajeto. O que caracterizará as horas in itinere é o fato de este transporte não ser regular, e o empregador fornecer a condução. Vejamos, se o trabalhador começa seu expediente às 06h00min, e os ônibus de transporte público que passam pelo local são excessivamente anteriores ao seu horário de entrada, ele teria que sair de casa mais cedo e aguardar o relógio marcar 06h00min para poder entrar na empresa. Por outro lado, se são excessivamente mais tarde, isto faria com que o empregado chegasse atrasado todos os dias, tendo que repor o tempo perdido no final de seu expediente. A mesma incompatibilidade pode se dar no fim do dia, fazendo com que o empregado permaneça grande tempo aguardando a passagem do transporte público para retornar à sua casa. Não é razoável exigir dos empregados que desperdicem tanto de seu tempo no percurso casa – empresa – casa. Portanto, se o empregador fornecer condução, e o transporte público existir, mas seus horários forem incompatíveis com o do empregado, como dito acima, tal situação enseja o pagamento das horas in itinere, uma vez que estão atendidos os requisitos do art. 58, §2º da CLT. Ainda, se o empregador cobrar parcialmente ou não pelo transporte oferecido, mesmo assim terá obrigação de pagar as respectivas horas in itinere aos empregados, computando-as como horas extraordinárias se extrapolarem a jornada normal, devendo pagá-las com o respectivo adicional de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor da hora normal. Tais entendimentos foram sumulados pelo Egrégio Tribunal Superior do Trabalho, a saber: TST Súmula nº 90 I - O tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador, até o local de trabalho de difícil acesso ou não 134 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. servido por transporte regular público, e para o seu retorno, é computável na jornada de trabalho. II - A incompatibilidade entre os horários de início e término da jornada do empregado e os do transporte público regular é circunstância que também gera o direito às horas “in itinere”. (ex-OJ nº 50 da SBDI-1 - inserida em 01.02.1995). III - A mera insuficiência de transporte público não enseja o pagamento de horas “in itinere”. (ex-Súmula nº 324 - Res. 16/1993, DJ 21.12.1993). IV - Se houver transporte público regular em parte do trajeto percorrido em condução da empresa, as horas “in itinere” remuneradas limitam-se ao trecho não alcançado pelo transporte público. (ex-Súmula nº 325 - Res. 17/1993, DJ 21.12.1993) V - Considerando que as horas “in itinere” são computáveis na jornada de trabalho, o tempo que extrapola a jornada legal é considerado como extraordinário e sobre ele deve incidir o adicional respectivo. (ex-OJ nº 236 da SBDI-1 - inserida em 20.06.2001). TST Súmula nº 320 O fato de o empregador cobrar, parcialmente ou não, importância pelo transporte fornecido, para local de difícil acesso, ou não servido por transporte regular, não afasta o direito à percepção do pagamento das horas “In itinere”. Tal entendimento tem sido consubstanciado na jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região: HORAS “IN ITINERE”. TEMPO À DISPOSIÇÃO DO EMPREGADOR. Pouco importa a nomenclatura utilizada no pedido inicial, se horas “in itinere” ou se tempo à disposição, porque a primeira deságua na segunda, em face do que dispõe o § 2º do art. 58 da CLT, caracterizando-se os pressupostos para tanto. E se preenchidos os requisitos para configuração de tempo itinerente é tempo à disposição do empregador, porque o empregado não tem como dele se distanciar. Noutro giro, nem todo tempo à disposição do empregador é horas “in itinere”. Se o empregado tem como atividade o transporte de empregados dentro do ambiente de trabalho, como nos canaviais, esse trabalhador pode fazer jus às horas extras decorrentes da extrapolação da sua jornada de trabalho, o que não se confunde com horas “in itinere”, tratadas pelo § 2º do art. 58 da CLT. Tempo extra itinerante é aquele gasto pelo empregado até o seu local de trabalho e para o seu retorno, quando o transporte é fornecido pelo empregador e o local for difícil acesso ou não serviço por transporte público. (Processo nº 0177800-50.2009.5.03.0047 RO – RO. Décima Turma do TRT da 3ª Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 135 Região. Relator Márcio Flávio Salem Vidigal. Data de Publicação: 1003-2010 - DEJT - Página: 160). HORAS IN ITINERE – TEMPO À DISPOSIÇÃO DO EMPREGADOR - REMUNERAÇÃO - SALÁRIO POR PRODUÇÃO - LOCAL DE TRABALHO NÃO SERVIDO POR TRANSPORTE PÚBLICO E REGULAR - ACORDO COLETIVO QUE LIMITA VANTAGEM LEGAL- Quanto à inexistência de adicional sobre as horas de transporte e seus reflexos, aspectos inseridos em instrumento normativo, sua validade é questionável, pois nesse interregno, o trabalhador está à disposição do empregador, como previa inicialmente a Súmula 90 do TST e mais recentemente o texto celetizado no art. 58, § 2º. É inerente a todo contrato laboral que o trabalhador seja remunerado por todo o tempo que estiver à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, em função da onerosidade, não estando legitimada a agremiação sindical a promover renúncia coletiva que reduza ou suprima o referido tempo, sua remuneração ou ambos, protraindo direitos situados no patamar mínimo legal conferido ao laborista. (Processo nº 000036923.2010.5.03.0070 RO. Sétima Turma do TRT da 3ª Região. Relator Mauro César Silva. Data da Publicação: 30-09-2010). Tal entendimento também prevalece no Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região: Horas “in itinere”. Veículo disponibilizado ao empregado. Veículo disponibilizado ao empregado para ida e retorno do trabalho se insere no conceito de condução fornecida pelo empregador do §2º, do Art. 58 celetário e Súmula 90, do TST (para fins de eventual caracterização de horas “in itinere”). (TRT-PR-11356-2010-08409-00-3-ACO-18069-2011 - 2A. TURMA. Relator Márcio Dionísio Gapski. Publicado no DEJT em 13-05-2011). HORAS IN ITINERE - EXTRAORDINÁRIAS - Ao traçar o regramento das horas in itinere, no § 2º do artigo 58 da CLT, quis dizer, o Legislador, que o tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, quando o empregador fornecer a condução, será computado na jornada de trabalho. Não estando computado na jornada de trabalho, tal interregno constitui labor extraordinário e deverá ser remunerado, inclusive com o correspondente adicional. (TRT-PR-00974-2010-026-09-00-7-ACO-12388-2011 4A. TURMA. Relatora Sueli Gil El-Rafihi. Publicado no DEJT em 0804-2011). 136 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Cumpre salientar que, para todos os efeitos legais, os acidentes sofridos pelos segurados do INSS – Instituto Nacional do Seguro Social no percurso da residência para o local de trabalho ou vice-versa, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado, equiparam-se a acidentes de trabalho nos termos do art. 21, IV, d da Lei nº 8.213/91. 2.6 A Jornada de trabalho nas usinas de açúcar e álcool: horário de entressafra e de safra As usinas de açúcar e álcool têm um funcionamento diferenciado em relação à maioria das outras empresas, uma vez que o ano sucroalcooleiro é dividido em dois períodos distintos: o período de entressafra e o período de safra. O período de entressafra é aquele durante o qual a usina pára a produção de açúcar e de álcool em razão de não existir cana-de-açúcar para “puxar”, de modo que os trabalhadores se voltam a realizar a manutenção de todos os equipamentos e maquinários, preparando-se para o período de safra. De acordo com informações fornecidas por um trabalhador que labora há aproximadamente quatro anos em uma Usina Sucroalcooleira da região de Maringá/PR, durante a entressafra, o horário de trabalho dos empregados normalmente é de segunda a sexta-feira, das 08h00min às 18h00min, com uma hora de almoço, perfazendo as 44 (quarenta e quatro) horas semanais, ocorrendo compensação de jornada, em face de não haver expediente durante os finais de semana, e as horas laboradas aos sábados e domingos são horas extras, devendo ser pagas com o respectivo adicional de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor da hora normal. O período entressafra geralmente corresponde aos meses de dezembro a março de cada ano, sendo que os meses de abril a novembro correspondem ao período de safra. Quando tem início a safra, o horário dos empregados é modificado. São formados três turnos: o turno A, que labora das 07h00min às 15h00min; o turno B, das 15h00min às 23h00min; e, por fim, o turno C, que trabalha das 23h00min às 07h00min, sendo que em todos os turnos os empregados têm uma hora de Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 137 intervalo intrajornada. Deste modo, as usinas funcionam vinte e quatro horas por dia, todos os dias da semana. Ainda, não são os trabalhadores que escolhem em qual turno querem trabalhar, A, B ou C. Pelo contrário, o empregador designa cada trabalhador para um turno, de modo que o número de funcionários desempenhando a mesma função seja equivalente nos três turnos. Existem, porém, privilégios para os funcionários que estudam. Normalmente, as usinas incentivam seus trabalhadores a buscarem sua capacitação profissional em cursos superiores, como o curso técnico de Tecnologia em Produção Sucroalcooleira e o curso superior de Química. Nestas situações, além de escalar o funcionário estudante para um turno que permita com que ele frequente as aulas, as usinas pagam uma porcentagem do valor da mensalidade como um modo de incentivo ao estudo. Nos meses de abril a novembro, ou seja, durante a safra, a usina começa a produzir açúcar e álcool, e o trabalho tende a ser mais intenso e penoso, pois os trabalhadores têm que se esforçar ao máximo para que a empresa possa atingir sua meta de produção. Como a produção se realiza em série, todos os setores precisam acompanhar o mesmo ritmo, a fim de que, no final do dia, o rendimento tenha sido o mesmo para todos os setores de produção. O período de safra possui, ainda, uma peculiaridade no que diz respeito à jornada de trabalho, que se passará a expor. 2.7 OS SISTEMAS “5 POR 1” E “6 POR 2” Durante o período de safra, de acordo com informações obtidas em determinada Usina Sucroalcooleira do estado do Paraná, o horário de trabalho dos usineiros, bem como os dias em que a prestação de serviços é realizada, são alterados a fim de que seja aplicado um dos dois sistemas mais comuns neste tipo de atividade: o sistema “5 por 1” ou o sistema “6 por 2”. No sistema “5 por 1”, os trabalhadores laboram cinco dias seguidos, para então folgar durante um dia, ou seja, vinte e quatro horas seguidas. Assim, se a safra começar em uma segunda-feira, o primeiro dia de folga do trabalhador 138 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. será no sábado da mesma semana, e depois de mais cinco dias trabalhados, a próxima folga será na sexta-feira da semana seguinte, sendo que os dias de folga “voltam para trás”. Já no sistema “6 por 2”, os trabalhadores laboram seis dias seguidos, e em contrapartida têm quarenta e oito horas seguidas de descanso. Desta forma, se a safra começar em uma segunda-feira, os primeiros dois dias de folga do trabalhador corresponderão aos dias de domingo e segunda-feira, e laborando mais seis dias, as próximas folgas serão na segunda-feira e terça-feira da semana seguinte, de modo que os dias de folga “vão para frente”. Com a aplicação destes sistemas, os empregados trabalham, indiscriminadamente, durante sábados, domingos e feriados que não corresponderem aos seus respectivos dias de folga. Porém, o trabalho prestado em domingos e feriados deve ser pago em dobro, nos termos da Súmula nº 146, do Tribunal Superior do Trabalho que diz que “O trabalho prestado em domingos e feriados, não compensado, deve ser pago em dobro, sem prejuízo da remuneração relativa ao repouso semanal”. Apesar de a Constituição Federal prever, em seu art. 7º, XVI, que as horas extraordinárias devem ser pagas com o adicional de, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) sobre o valor da hora normal, previsto no art. 7º, XVI da CF, as usinas funcionam com o chamado “banco de horas”. O “banco de horas” é uma forma de armazenamento das horas extraordinárias prestadas por cada trabalhador que, ao invés de serem remuneradas, serão acumuladas, para serem compensadas com folgas no período máximo de um ano. O limite para prestação de horas extraordinárias não pode ultrapassar de duas por dia ou, sendo a jornada inferior a oito horas diárias, não pode ultrapassar dez horas diárias. Este meio de compensação de jornada deve ser estabelecido através de negociação coletiva47, e está disposto no art. 59, §2º da CLT: § 2o Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, 47 DELGADO, Maurício Godinho. Op. Cit. p. 868/869. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 139 de maneira que não exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias. A escala de folgas é projetada pela usina para que em cada turno permaneçam trabalhadores que executem a mesma função daquele funcionário que está de folga, para que não haja desfalque em nenhum dos setores da usina. Da mesma forma ocorre com a compensação das horas extras acumuladas no banco de horas, uma vez que depende da liberação da usina para que os empregados possam compensá-las. 2.8 Vantagens e desvantagens do horário diferenciado de trabalho nas usinas de açúcar e álcool Apesar de o ramo sucroalcooleiro ser de grande importância para a economia do Brasil, e em diversos estados a produção de açúcar e álcool ter tido gradativas elevações nos últimos anos, com ênfase para o estado do Paraná48, este setor ainda está esquecido pela legislação brasileira. De acordo com dados fornecidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento49, em março de 2009 o número de usinas de açúcar e álcool existentes no Brasil era de 420 (quatrocentos e vinte), sendo distribuídas no território nacional da seguinte maneira: Figura 1: Distribuição de usinas de açúcar e álcool por estado brasileiro Usinas do Brasil Distribuição por Estado 200 37 33 29 24 24 14 11 9 7 6 6 4 4 3 2 2 1 1 1 1 1 SP MG PR GO AL PE MS MT PB RJ ES SE RN MA BA CE TO AM PA PI RO RS 48 49 Informações disponíveis em http://www.unica.com.br Disponível em http://agribizz.blogspot.com/2009/03/usinas-de-acucar-e-alcool-no-brasil.html 140 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Em outra distribuição, tem-se o seguinte: Usinas do Brasil Nordeste 77 Norte 5 Sul 34 CentroOeste 54 Sudeste 250 Distribição por Região Açúcar 15 Álcool 157 Mistas 248 Fonte: MAPA Figura 2: Distribuição das usinas de açúcar e álcool no Brasil por região e por Ɵpo de indústria Conforme exposto, as usinas de açúcar e álcool têm um horário de funcionamento diferenciado e característico, porém não há uma regulamentação específica que atenda a todas as suas peculiaridades, bem como não há a fiscalização do devido cumprimento das disposições da Consolidação das Leis do Trabalho e da Constituição da República Federativa do Brasil, para que os trabalhadores não sofram abusos no ambiente de trabalho. As usinas de açúcar e álcool produzem muito ruído em função dos equipamentos e máquinas, o que obriga os trabalhadores a utilizarem proteção nos ouvidos para não desenvolverem problemas auditivos e/ou perderem parte da audição. Capacetes são indispensáveis para evitar acidentes. O mau cheiro da vinhaça impregna em todos os lugares, inclusive nas roupas, cabelos e acessórios dos trabalhadores. Os canos, motores e equipamentos absurdamente quentes causam queimaduras nos trabalhadores que precisam fazer alguma manutenção urgente em alguma máquina que quebrou e desencadeou a paralisação de toda a usina. Explosões de caldeiras podem ferir, e até mesmo matar, trabalhadores em qualquer parte do complexo. Quedas de locais excessivamente altos, durante manutenção ou fiscalização de funcionamento de equipamentos, causam fraturas em funcionários. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 141 Os trabalhadores acordam demasiadamente cedo, fazem longa viagem em conduções que não oferecem o mínimo de conforto e, como as usinas sucroalcooleiras são geralmente afastadas dos centros urbanos, os empregados almoçam e fazem seu horário de descanso no próprio local de trabalho. Muitas vezes, como estão ali “sem fazer nada” no intervalo intrajornada, são chamados a voltar ao trabalho logo após o término da refeição, laborando a jornada diária de oito horas com menos de 20 (vinte) minutos de intervalo. Como estão cansados, empregam menos atenção ao que estão fazendo, ficando mais suscetíveis a cometer falhas e a sofrer acidentes de trabalho. Todas as partes de uma usina de açúcar e álcool oferecem algum tipo de perigo ou insalubridade para os trabalhadores, e o fato de eles laborarem com pequenas pausas para a refeição e sem cumprir seu intervalo garantido pela Consolidação das Leis do Trabalho, faz com que estes empregados exaustos se tornem um perigo para eles próprios e para os que estão laborando no mesmo ambiente em que eles estão. Não raro os noticiários informam sobre acidentes fatais nestes locais, como a comovente história de um operário terceirizado, que estava prestando serviços em uma usina na cidade de Marialva/PR, e foi vítima fatal de um soterramento50. Em recente decisão do Tribunal Superior do Trabalho, a Usina Central do Paraná foi condenada ao pagamento de indenização por danos morais, bem como pensão mensal vitalícia, aos pais e irmão de um trabalhador de 18 anos que morreu eletrocutado em seu vigésimo segundo dia de trabalho (Processo: RR-9950100-88.2005.5.09.0562 ).51 Uma regulamentação mais rígida para esta jornada diferenciada de trabalho, bem como uma maior fiscalização nos locais de trabalho, com a imposição de penalidades, como multas, para os empregadores que desrespeitarem as garantias constitucionais, celetistas e os direitos fundamentais dos trabalhadores, se faz indispensável. O trabalho realizado durante o período de entressafra se torna penoso para os trabalhadores por exigir maior força física e trabalho braçal, uma vez que 50 51 Disponível em http://maringa.odiario.com/parana/noticia/412603/operario-morre-soterrado-em-usina-de-marialva/ Disponível em http://dev.coad.com.br/home/noticias-detalhe/36242/tragedia-acidente-fatal-de-empregado-eletrocutado-gera-indenizacao 142 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. é dirigido à manutenção dos maquinários, que são intensamente utilizados para a produção de açúcar e álcool na safra. Já durante a safra, os problemas que afetam os trabalhadores são outros. Com o regime diferenciado de jornada de trabalho, laborando nos sistemas “5 por 1” ou “6 por 2”, os funcionários trabalham indiscriminadamente durante sábados, domingos e feriados. Aqueles que são escalados para o turno A acordam demasiadamente cedo, enquanto que os escalados para o turno C trabalham de madrugada e dormem durante o dia. Não existe dia fixo para folga, o que impede que os trabalhadores tenham algum tipo de rotina ou frequentem um curso ou clube. Os salários geralmente são baixos, em vista do montante de trabalho, de periculosidade e insalubridade características do ambiente de trabalho. Para o desenvolvimento deste trabalho, foi realizada uma pesquisa com 19 (dezenove) trabalhadores de uma determinada usina sucroalcooleira do estado do Paraná, com o intuito de descobrir qual o grau de contentamento dos funcionários com sua jornada de trabalho, bem como sugestões de melhorias que eles gostariam que fossem implantadas na empresa. O modelo da Pesquisa sobre Jornada de Trabalho em Usinas de Açúcar e Álcool realizada corresponde ao Anexo I. A pesquisa foi realizada com 14 (catorze) trabalhadores do turno A, 3 (três) do turno B e 2 (dois) do turno C. Quanto à questão “2. Você estuda?”, 10 (dez) responderam que não, e 9 (nove) responderam que sim. Dos trabalhadores que estudam, 4 (quatro) fazem curso universitário, e 4 (quatro) estudam, mas não em curso universitário. Apenas um trabalhador estuda no período da manhã, enquanto que 7 (sete) estudam no período da noite, e 8 (oito) afirmaram que a usina não custeia nenhuma porcentagem da mensalidade do curso. Em relação à questão “4. Você gosta de trabalhar em regime de safra?”, 16 (dezesseis) trabalhadores responderam que sim e 3 (três) responderam que não, sendo que 17 (dezessete) estão satisfeitos com o turno que trabalham, e 2 (dois) não estão satisfeitos. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 143 Quanto à questão “5. Para você, quais as vantagens de trabalhar em regime de safra? (Pode assinalar mais de uma)”, 10 (dez) trabalhadores assinalaram a opção mais tempo livre, 8 (oito) a opção ter folgas alternadas, 5 (cinco) a opção mais tempo para lazer, 4 (quatro) a opção passar mais tempo com a família, 2 (dois) a opção mais tempo para passar com familiares e amigos e 2 (dois) a opção mais tempo para se dedicar aos estudos. Na questão “6. Em sua opinião, quais as desvantagens de trabalhar em regime de safra? (Pode assinalar mais de uma)”, 15 (quinze) trabalhadores assinalaram a opção trabalhar em sábados, domingos e feriados, 5 (cinco) a opção não ter dias de descanso fixos, 4 (quatro) a opção acordar muito cedo, 3 (três) a opção passar menos tempo com familiares e amigos, 3 (três) a opção ter menos tempo para lazer, 1 (um) a opção ter menos tempo para se dedicar aos estudos e 1 (um) a opção dormir muito tarde. Na questão “7. Se a usina oferecesse a opção de trabalhar durante a safra, das 08h00min às 18h00min de segunda a sexta-feira, ou no turno em que você trabalha hoje, qual opção você escolheria?”, 13 (treze) trabalhadores responderam que escolheriam trabalhar das 08h00min às 18h00min, e 6 (seis) escolheriam trabalhar no turno em que trabalha hoje. Ainda, 5 (cinco) trabalhadores sugeriram aumento salarial, 1 (um) sugeriu ter folga fixa em domingos e feriados e 1 (um) sugeriu que fosse cumprida a carga horária de segunda a sexta-feira para não trabalhar aos sábados e domingos. Ademais, apesar de 16 (dezesseis) trabalhadores afirmarem gostar de trabalhar em regime de safra, 13 (treze) trabalhadores escolheriam trabalhar das 08h00min às 18h00min durante a safra se a usina oferecesse tal opção. Por mais que os sistemas “5 por 1” e “6 por 2” aparentem ser benéficos aos trabalhadores, pelo fato de a jornada de trabalho acabar mais cedo para o turno A, e começar mais tarde para os turnos B e C, permitindo uma fração do dia de liberdade para que os empregados possam se dedicar às suas atividades pessoais, e o rodízio do dia de folga parecer convidativo, uma vez que uma pessoa que labora no chamado horário comercial não tem a possibilidade de folgar em um dia útil da semana, estes fatos são apenas ilusões que mascaram a dureza e rigidez deste sistema. 144 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Em conversa com um trabalhador do turno A de uma usina sucroalcooleira do interior do estado do Paraná, ele relatou como é sua rotina diária. O dia começa cedo, pois é preciso acordar às 5h10min para tomar café da manhã e se dirigir ao ponto onde o ônibus da firma recolhe os trabalhadores por volta das 6h00min. O percurso até o estabelecimento de trabalho demora, aproximadamente, uma hora, sendo que é feita uma parada em uma cidade no meio do caminho para que mais trabalhadores embarquem. O expediente começa às 7h00min, e o horário de almoço varia, podendo ser feito entre as 10h00min e as 13h00min, dependendo da quantidade de trabalho. Quando a usina está funcionando, ou seja, está sendo “puxada” cana de açúcar, o trabalho é mais intenso, e o intervalo intrajornada tende a ser realizado por volta das 13h00min, sendo que o trabalhador apenas faz sua refeição e já retorna ao labor. Porém, quando a usina está parada por falta de cana de açúcar ou para solução de algum problema mecânico, o almoço é realizado mais cedo, e o intervalo intrajornada tende a ser cumprido integralmente. Ao final da jornada diária, aproximadamente às 15h15min, os trabalhadores se dirigem à entrada da usina, e embarcam no mesmo ônibus, que sai do local por volta das 15h30min, e a viagem de volta para casa também dura cerca de uma hora. Dá para notar como é cansativo o dia de um trabalhador de usina sucroalcooleira, pois enquanto a grande maioria das pessoas está acordando para dar início ao seu dia de trabalho e/ou estudo, a usina já está recebendo seus empregados do primeiro turno, aguardando o início da jornada com muito trabalho para ser realizado. Ocorre esta desproporção também em relação aos finais de semana e feriados. Enquanto grande parte das pessoas aproveita tais dias para descansar, dormir até mais tarde, resolver pendências particulares, em suma, investir em si mesmos, os trabalhadores de usina estão em seu trabalho, laborando normalmente, para que o estabelecimento sucroalcooleiro não pare de funcionar. O regime de safra é cruel com os trabalhadores, pois a falta de rotina prejudica não apenas o organismo, pois o corpo não tem um tempo fixo para Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 145 relaxar, tendo que se adaptar a momentos esparsos de descanso, mas também a vida social dos funcionários, uma vez que sábados, domingos e feriados são os dias em que normalmente as famílias se reúnem, amigos se encontram, eventos e festas acontecem. Como estão laborando, os trabalhadores ficam alienados dos eventos sociais e do convívio de seus familiares e amigos. Com o sistema de “5 por 1”, a folga de um trabalhador coincide com o dia de domingo a cada, aproximadamente, 40 (quarenta) dias, ou seja, um pai de família, que é funcionário de uma usina sucroalcooleira e está trabalhando em regime de safra, tem um domingo a cada 40 (quarenta) dias para passar com sua família, levar sua esposa e filhos ao cinema, à piscina, jogar futebol com as crianças, encontrar os amigos, enfim, para levar uma vida considerada pelo homem médio como normal. A Lei de Deus determina que o sétimo dia seja resguardado ao descanso: Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR teu Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto abençoou o SENHOR o dia do sábado, e o santificou.52 Depois da morte de Cristo, o descanso aos sábados foi substituído pelo descanso aos domingos, o dies domini, e o Imperador Constantino, no ano de 321, foi o primeiro a proibir qualquer tipo de trabalho aos domingos, com exceção das atividades agrícolas53. Hoje, o terceiro Mandamento da Igreja Católica diz que se devem guardar domingos e festas de guarda. A família é um ente sagrado, amplamente protegido pela legislação brasileira. Contudo, o Direito parece não notar que este tipo de regime de trabalho é demasiado prejudicial à entidade familiar, uma vez que afasta um membro do convívio dos outros, e do aconchego do lar. 52 53 Êxodo 20, 10-11 MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit. p. 543. 146 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. O trabalhador deixa sua família em segundo plano para poder se dedicar à louca rotina do período da safra. Durante os finais de semana e feriados, enquanto normalmente as famílias aproveitam o tempo para viajar, sair e se descontrair, os familiares de um empregado de uma usina se vêem privados de tal prerrogativa, uma vez que um de seus membros está laborando neste período. A família, como se viu, estará reunida, em média, em um domingo a cada 40 (quarenta) dias. Ainda, como a jornada de trabalho é cansativa, e o serviço é demasiadamente esgotante, no período em que se encontra em seu recanto familiar, o trabalhador precisa descansar para poder repor suas energias, perdendo, assim, oportunidades de gastar tempo precioso com os entes queridos. E mais, há que se ressaltar que este tipo de rotina é passível de acabar com a intimidade do casal, haja vista que o empregado do turno C trabalha todas as noites e madrugadas, sendo que apenas uma vez a cada cinco dias, ou duas vezes a cada seis dias, passará a noite em sua casa, ao lado de seu cônjuge. Diante do exposto, é possível aferir que apesar de a jornada de trabalho diferenciada da usina trazer alguma vantagem para os trabalhadores, como maior tempo livre e folgas alternadas, tais benefícios não são suficientes para compensar todas as desvantagens trazidas para os empregados, bem como para seus familiares. O horário de safra e os sistemas “5 por 1” e “6 por 2” são extremamente prejudiciais para o bem estar físico e psicológico dos trabalhadores, e os deixa alienados de todo o resto, uma vez que o trabalho aos finais de semana e feriados os afasta do convívio social. Com a criação de um novo turno, ou seja, um turno D, os trabalhadores passariam a laborar seis horas por dia. Esta atitude traria resultados positivos tanto para os trabalhadores quanto para os empregadores. De um lado, diminuiria a sobrecarga do trabalho, aumentaria o tempo de descanso dos trabalhadores, além de gerar mais empregos. Por outro lado, com a diminuição da jornada diária de trabalho e a criação de outro turno, o labor se tornaria mais rentável, visto que trabalhador descansado é sinônimo de maior produtividade e menor índice de acidentes de trabalho. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 147 Assim, não haveria necessidade de redução salarial, uma vez que esta situação, ou seja, maior produtividade e menor índice de acidentes, proporcionaria maior rentabilidade para as usinas, ou seja, a criação de outro turno aumentaria a lucratividade das usinas, pois o serviço dos empregados renderia mais, tendo em vista que estando mais descansados, os trabalhadores empregam maior atenção às suas atividades. Ainda, com relação ao trabalho em domingos e feriados, o ideal é que fosse estabelecido um rodízio entre os funcionários, de modo que para cada domingo e cada feriado, fosse escalado um grupo de trabalhadores diferente do que trabalhou no domingo ou feriado passado, aumentado, assim, o número de folgas dos trabalhadores em domingos e feriados. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como nos ensina a doutrina, as primeiras regulamentações nas relações trabalhistas foram conquistadas com muito suor e muito sangue. Um grande número de trabalhadores perdeu suas vidas em ambientes hostis e degradantes, laborando horas a fio, para ganhar salários tão baixos, que obrigavam as mulheres e crianças a enfrentar o trabalho pesado e ajudar no sustento da casa. O Direito do Trabalho foi, portanto, uma grande conquista, uma vez que o Estado se manifestou com o intuito de acabar com o abuso e exploração que os mais fracos, detentores da mão de obra, estavam sofrendo dos mais fortes, detentores das fábricas, dos empregos e do capital. Contudo, atualmente, o setor sucroalcooleiro, tão significativo para a economia nacional, não goza de uma proteção específica. Apesar de receber proteção constitucional e celetista, a jornada de trabalho diferenciada, dividida entre os períodos de safra e de entressafra, não possui uma lei especial que atenda a todas as peculiaridades deste horário que se faz tão prejudicial aos trabalhadores e aos seus familiares. Ademais, em conversa com alguns trabalhadores de uma Usina Sucroalcooleira da região de Maringá/PR, muitos deles disseram não contestar 148 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. perante os empregadores direitos que lhes são suprimidos por falta de conhecimento, tendo em vista que o empregador não fornece nem a cópia do contrato de trabalho deles, bem como não recorrem ao Poder Judiciário para não “ficarem queimados” e correrem o risco de não conseguir emprego em outro local. Os trabalhadores de usinas laboram durante sábados, domingos e feriados, têm uma folga coincidente com o dia de domingo a cada, aproximadamente, 40 (quarenta) dias, dependendo do turno começam o dia muito cedo, ou trabalham durante a madrugada, enfim, levam uma vida difícil, árdua, e certamente cansativa. Vale ressaltar que muitos são os trabalhadores descontentes com seu tipo de jornada de trabalho. Este setor, tão representativo para a economia brasileira, não pode, de maneira alguma, permanecer na situação em que se encontra, ou seja, desprotegido, carente de uma legislação especial que atenda a todas as suas nuances. Levando em consideração os conceitos doutrinários do tema jornada de trabalho, pode-se concluir que a jornada de trabalho de um colaborador de uma usina de açúcar e álcool compreende o tempo despendido no percurso ida/volta, o tempo efetivamente trabalhado, o tempo no estabelecimento sem realizar trabalho e o intervalo de almoço, realizado no próprio local de trabalho. Assim sendo, o limite legalmente previsto é facilmente extrapolado no dia-a-dia dos trabalhadores das usinas, e eles muitas vezes nem percebem a violação de seus direitos, seja por falta de conhecimento, falta de informação ou mesmo falta de atenção. Diante do exposto, faz-se, portanto, necessário que esta parcela de trabalhadores de usinas seja vista, e não apenas vista, mas também enxergada, para que receba a devida proteção, e seja extirpado todo tipo de ranço prejudicial aos empregados. Os regimes de trabalhos “5 por 1” e “6 por 2” são extremamente prejudiciais aos trabalhadores. Não é possível ao trabalhador estabelecer qualquer tipo de rotina ou assumir compromissos, e o organismo precisa constantemente se adaptar ao período que tem para repor suas energias, uma vez que não há tempo fixo de descanso. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 149 Através da pesquisa realizada com funcionários de determinada Usina Sucroalcooleira do estado do Paraná, foi possível perceber que a maioria dos trabalhadores está descontente com o regime de trabalho adotado no estabelecimento, sendo que, se pudessem, escolheriam trabalhar no “horário comercial”. A usina sucroalcooleira é uma indústria que deve permanecer funcionando vinte e quatro horas por dia, tendo em vista que a produção de açúcar e álcool é contínua, e pára apenas durante a entressafra ou, no período de safra, por fatores externos, como problema em algum equipamento, ou chuvas excessivas que impedem que os caminhões tenham acesso aos canaviais. Contudo, visto a necessidade de funcionamento contínuo, a criação de um novo turno, ou seja, um turno D, faria com que cada turno trabalhasse seis horas, diminuindo a sobrecarga do trabalho, além de gerar mais empregos. A criação de mais um turno permitiria que os trabalhadores tivessem maior tempo para descanso, tendo em vista que o labor nas usinas de açúcar e álcool é penoso, cansativo e perigoso, o que permitiria que eles levassem uma vida mais próxima da dos empregados de outros setores da economia. Os trabalhadores do turno C não seriam obrigados a permanecer madrugadas inteiras acordados, trabalhando, uma vez que a jornada diminuiria, e o revezamento de funcionários aumentaria. Ademais, com a diminuição da jornada diária de trabalho e a criação de outro turno, os trabalhadores teriam maior tempo de descanso, o que tornaria o labor mais rentável, visto que trabalhador descansado é sinônimo de maior produtividade e menor índice de acidentes de trabalho. Assim, não haveria necessidade de redução salarial, uma vez que esta situação, ou seja, maior produtividade e menor índice de acidentes, proporcionaria maior rentabilidade para as usinas. Em outras palavras, a criação de outro turno aumentaria a lucratividade das usinas, permitindo que, apesar de ocorrer redução da jornada de trabalho, o salário dos funcionários não sofresse redução. Em relação ao trabalho em domingos e feriados, o ideal seria a criação de uma escala de revezamento especial para tais dias, de forma que para cada domingo e para cada feriado fosse escalado um grupo de funcionários, sempre diferente do que trabalhou no domingo e/ou feriado passado, fazendo um rodízio 150 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. de funcionários para laborar nos dias em questão, pois, assim, os trabalhadores não seriam obrigados a laborar em todos os domingos e feriados que não coincidissem com suas folgas, mas sim, dentro da escala de revezamento, trabalhariam apenas nos dias em que fossem escalados, tendo, portanto, mais de um domingo de folga a cada quarenta dias. Assim, os trabalhadores teriam mais tempo para descanso, lazer e para passar com suas famílias, pois revezariam o trabalho em domingos e feriados com todos os outros trabalhadores. Por fim, sendo necessária a fixação de turnos durante o período de safra, nada mais justo do que, ao invés de impor o turno ao empregado, permitir que ele escolha qual lhe seja mais conveniente, diminuindo o descontentamento dos trabalhadores, uma vez que eles poderiam escolher trabalhar no horário que mais lhes agradasse e que lhes permitisse maior disposição para o labor, o que também contribuiria para uma maior produtividade nas usinas. Outrossim, é indispensável a criação de regulamentação específica para o trabalho nas usinas sucroalcooleiras e a fiscalização de seu devido cumprimento pelos empregadores, impondo-lhes medidas punitivas, como multa, em uma tentativa de acabar com as irregularidades. É inconcebível que em pleno século XXI ainda exista um grupo de trabalhadores que não tem proteção legislativa para seu trabalho. As leis trabalhistas foram uma grande conquista para a humanidade, e, portanto, não podem ficar esquecidas. Pelo contrário, precisam ter aplicação plena e específica para todos os trabalhadores. Afinal, a violação aos direitos do trabalhador constitui também um atentado à dignidade da pessoa humana. 4. REFERÊNCIAS APOLINÁRIO, Marcelo Nunes. A jornada de trabalho no direito brasileiro, en Contribuciones a lãs Ciencias Sociales, septiembre 2009. www.eumed.net/rev/ cccss/05/mna.htm CALVETE, Cássio da Silva. Redução da jornada de trabalho: uma análise econômica para o Brasil. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas. 2006. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 151 CHEN, Daniel. Regime Jurídico Brasileiro da duração do trabalho na relação de emprego. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da USP. 2008. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Editora LTR. 5. ed. 2ª Tiragem. 2006. FILHO, José Bouzas Araújo. Estudantes trabalhadores e queixas de sonolência – uma avaliação da dupla jornada e sobrecarga de trabalho. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia. 2009. JUNIOR, A. J. Cesarino. Direito Social Brasileiro. 1º Volume. Edição Saraiva. São Paulo. 1970 MARQUES, Christiani. A proteção ao trabalho penoso. Editora LTR. São Paulo. 2007. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 23ª Edição. Editora Atlas S.A. São Paulo. 2007. NASCIMENTO, Amauri Mascaru. Curso de direito do trabalho. 21 ed. MORAES, Márcia Azanha Ferraz Dias de. Indicadores do Mercado de Trabalho do Sistema Agroindustrial da Cana-de-Açúcar do Brasil no Período 1992-2005. EST. ECON., SÃO PAULO, V. 37, N. 4, P. 875-902, OUTUBRO-DEZEMBRO 2007. MORAES, Márcia Azanha Ferraz Dias de. Os Indicadores de trabalho da agroindústria canavieira: desafios e oportunidades. Econ. aplic., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 605619, OU TUBRO-DEZEMBRO 2007. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. Editora Saraiva. 25ª Ed. 2010. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. Editora LTR. 33ª Edição. São Paulo. 2007. NASCIMENTO. Amauri Mascaro. Direito do trabalho na Constituição de 1.988. Editora Saraiva. 1.989. PRADO, Claudio Gonçalves. Investigando a saúde mental de trabalhadores: as relações entre suporte organizacional, satisfação e sentimentos de prazer e sofrimento no trabalho. Dissertação de mestrado. Universidade Federal de Uberlândia. 2005. SILVEIRA, Leonardo José e CARVALHO, Natalya Dayrell de. Expansão do setor sucroalcooleiro no Brasil: algumas considerações. Rev. Triang.: Ens. Pesq. Ext. Uberaba – MG, v.1. n.1, p. 81-95, jul./dez. 2008. 152 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. SUSSEKIND, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. Rio de Janeiro. Editora Renovar. 1999. ___________. MARANHÃO, Délio. VIANNA, Segadas. TEIXEIRA, Lima. Instituições de Direito do Trabalho. Volume 1. 21ª Ed. Editora LTR. 2003 __________. Instituições de Direito do Trabalho. Volume 2. 22ª Ed. Editora LTR. 2005. <http://profmarcelodaetr.blogspot.com/search/label/usina> <http://www.paranaonline.com.br/editoria/cidades/news/317654/?noticia= OPERACAO+CONTRA+TRABALHO+ESCRAVO+RESGATA+228+NA +USINA+CENTRAL> <http://www.mst.org.br/node/1072> <http://www.biodieselbr.com/energia/alcool/etanol.htm> <http://www.jusbrasil.com.br/noticias/1159554/a-importancia-do-etanolpara-a-economia-brasileira> <http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1> <http://maringa.odiario.com/parana/noticia/412603/operario-morresoterrado-em-usina-de-marialva/ > <http://www.bemparana.com.br/index.php?n=81841&t=jornal-do-estado> <http://dev.coad.com.br/home/noticias-detalhe/36242/tragedia-acidentefatal-de-empregado-eletrocutado-gera-indenizacao> <http://www.unica.com.br> <http://agribizz.blogspot.com/2009/03/usinas-de-acucar-e-alcool-no-brasil.html> <http://www.sindipetro.org.br/extra/cjuago97.htm> ANEXO I Pesquisa sobre jornada de trabalho em usinas de açúcar e álcool Qual o seu turno de trabalho na safra? ( )A ( )B ( )C Você estuda? ( ) Sim ( ) Não Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 153 Se você estuda, faz curso universitário? ( ) Sim ( ) Não Em qual período? ( ) Manhã ( ) Noite A usina paga alguma porcentagem da mensalidade? ( ) Sim ( ) Não Você gosta de trabalhar em regime de safra? ( ) Sim ( ) Não Está contente com seu turno de trabalho? ( ) Sim ( ) Não Para você, quais as vantagens de trabalhar em regime de safra? (Pode assinalar mais de uma) ( ) Mais tempo livre ( ) Mais tempo para passar com familiares e amigos ( ) Mais tempo para se dedicar aos estudos ( ) Mais tempo para lazer ( ) Passar mais tempo com a família ( ) Ter folgas alternadas ( ) Outras: ____________________________________________ ______________________________________________________________ Em sua opinião, quais as desvantagens de trabalhar em regime de safra? (Pode assinalar mais de uma) ( ) Acordar muito cedo ( ) Dormir muito tarde ( ) Trabalhar em sábados, domingos e feriados 154 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. ( ) Passar menos tempo com familiares e amigos ( ) Ter menos tempo para se dedicar aos estudos ( ) Ter menos tempo para lazer ( ) Não ter dias de descanso fixos ( ) Outras: _____________________________________________ ______________________________________________________________ Se a usina oferecesse a opção de trabalhar durante a safra, das 08h00min às 18h00min de segunda a sexta-feira, ou no turno em que você trabalha hoje, qual opção você escolheria? ( ) Trabalhar das 08h00min às 18h00min ( ) Trabalhar no turno em que trabalha hoje Sugestões: ______________________________________________ ______________________________________________________________ ______________________________________________________________ ______________________________________________________________ As informações fornecidas nesta pesquisa servirão apenas para que seja feita uma estatística das vantagens e desvantagens, para os trabalhadores, do trabalho em horário de safra. nem o nome do trabalhador e nem o da empresa serão divulgados Recebido em: 14/04/2012. Aceito em: 01/07/2012. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 155 156 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. LITISPENDÊNCIA E CONEXÃO NO PROCESSO COLETIVO BRASILEIRO Marcelo Henrique Matos OLIVEIRA1 Resumo: O presente trabalho tem por objetivo o estudo dos efeitos da litispendência e da conexão no âmbito do processo coletivo. Ocorre que esses institutos foram criados à luz do processo civil clássico, de cunho eminentemente individualista, o que gera controvérsias e torna seu estudo complexo, especialmente por não estarem de acordo com os princípios específicos e a necessidade de um processo efetivo. Após a analise da doutrina e jurisprudência, foi demonstrado a necessidade da reunião das ações para o aproveitamento das provas colidas e da situação jurídica apresentada, possibilitando um amplo acesso à justiça. Palavras-chave: Ações Coletivas. Litispendência. Conexão. Abstract: This paper aims to study the effects of lis pendens and connection within the collective process. But these institutes were created in the light of civil classic, eminently individualistic, which is controversial and its study becomes complex, especially because they are not in accordance with specific principles and the need for an effective process. After the analysis of doctrine and jurisprudence, was shown the necessity of meeting of the shares to the use of evidence and voided of the legal situation, providing extensive access to justice. Keywords: Collective Action. Lis pendens. Connection. 1. INTRODUÇÃO Ao estudar os contornos para a conceituação e compreensão dos institutos da litispendência e conexão é necessário buscar fundamentação teórica no processo civil clássico. Todavia, sua aplicação no âmbito coletivo deve ser Mestre em Direito Coletivo, Cidadania e Função Social pela Universidade de Ribeirão Preto. Membro do Instituto Brasileiro de Processo. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-UNIDERP. Bacharel em Direito pela Universidade de Uberaba (UNIUBE). Advogado. [email protected]. 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 157 interpretada cum granum salis, na medida em que esses institutos foram idealizados apenas no século passado, influenciados pelo liberalismo. O presente trabalho, ao analisar as teorias existentes, busca a solução que mais se coaduna com os aspectos fundamentais da efetividade do processo coletivo, recorrendo à pesquisa bibliográfica doutrinária em revistas e livros jurídicos, além da inclusão de material jurisprudencial, com o escopo de estabelecer a pesquisa acadêmica no âmbito da prática judiciária. 2. LITISPENDÊNCIA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O termo litispendência indica “a situação jurídica em que encontra-se uma causa ao estar submetida ao julgamento e resolução dos tribunais”.2 Esse instituto processual está previsto no artigo 301, §§1º, 2º e 3º, do Código de Processo Civil. Ocorrerá sempre que dois ou mais processos idênticos existirem concomitantemente, caracterizando-se a identidade pela verificação no caso concreto da tríplice identidade (mesmas partes, mesma causa de pedir e mesmo pedido)3. A litispendência nada mais é que uma defesa processual peremptória, fundada em dois importantes princípios: economia processual e harmonização de julgados. Sobre o tema lecionam Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini: A existência de um processo pendente entre A e B, baseado numa determinada causa de pedir, que resulta no pedido X, desempenha o papel de pressuposto processual negativo para um outro processo entre A e B, que tenha a mesma causa de pedir e em que se formule o mesmo pedido. O fundamento desse pressuposto processual negativo está no principio da economia processual e na necessidade de se evitarem julgamentos conflitantes.4 GOLDSCHIMIDT, James. Direito processual civil. Tradução de Lisa Pary Scarpa. Campinas: Brookseler, 2003. Tomo I, p. 384. PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – CONTRIBUIÇÃO SOCIAL - FINSOCIAL - AUMENTOS DA ALÍQUOTA - INCONSTITUCIONALIDADE - COMPENSAÇÃO - LITISPENDÊNCIA - INOCORRÊNCIA PRECEDENTES. - A existência de litispendência pressupõe a tríplice identidade entre as partes, a causa de pedir e o pedido, pelo que não se há que falar nesse instituto se houver distinção em qualquer desses elementos. (...) - Recurso conhecido e provido para afastar a decretada litispendência e determinar o julgamento do mérito na instância de origem.” (REsp. 397.186/RS, Rel. Min. FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJ 07/11/2005). 4 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento, 11 edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 212. 2 3 158 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. É conveniente transcrever as palavras de Chiovenda sobre a litispendência: “em geral, indica a pendência de uma relação processual na plenitude de seus efeitos.”5 Observe que não há qualquer razão para a manutenção de dois processos idênticos, onde será despendida energia desnecessária com a duplicação de atos. Além disso, a manutenção de processos idênticos poderá levar a decisões contraditórias, o que acarreta insegurança jurídica e desprestigio ao Poder Judiciário. A consequência processual é a extinção de um dos processos, sem resolução de mérito. Para determinar qual será extinto, aplica-se a regra do artigo 219 ou do artigo 106, ambos do CPC. Assim, caso as ações tramitem em comarcas diferentes, a ação que será extinta é aquela em que ocorreu por último a citação válida, regra do artigo 219. Por outro lado, se tramitarem na mesma comarca, será extinta a ação que tenha sido despachada6 em último lugar. O réu deverá alegar a litispendência na contestação ou na primeira oportunidade em que falar nos autos, sob pena de responder pelas custas, a que seu retardamento der causa. O juiz também poderá conhecer de ofício tais matérias, conforme o artigo 267, §3, do Código de Processo Civil. Por se tratar de extinção sem resolução do mérito, o reconhecimento da litispendência impede que o autor reproponha a ação. Segundo Humberto Theodoro Júnior, “embora não se trate de sentença de mérito, sua força é equivalente à da coisa julgada material.”7 Ressalte-se que pouco importa o nome que tenha sido dado à ação. Segundo José Miguel Garcia Medina, “podem as ações ter nomes ou ritos diferentes ou iguais, mas o que importará será a presença dos três elementos, acima referidos.” Assim, por exemplo, mesmo entre embargos à execução e ação de conhecimento movida autonomamente pelo devedor contra o credor pode darse a litispendência: TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. 5 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 2 ed. Tradução de Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 2000. V. 1, p. 282 6 Despachar em primeiro lugar significa pronunciamento judicial positivo que determina a citação, não terá o mesmo efeito o despacho que busque emendar a inicial. 7 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 42 ed. Volume1. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 288. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 159 OMISSÃO NÃO CONFIGURADA. MENOR ONEROSIDADE. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. EXECUÇÃO FISCAL E AÇÃO ANULATÓRIA DO DÉBITO. CONEXÃO. REUNIÃO DOS PROCESSOS. (...) 3. Se é certo que a propositura de qualquer ação relativa ao débito constante do título não inibe o direito do credor de promover-lhe a execução (CPC, art. 585, § 1º), o inverso também é verdadeiro: o ajuizamento da ação executiva não impede que o devedor exerça o direito constitucional de ação para ver declarada a nulidade do título ou a inexistência da obrigação, seja por meio de embargos (CPC, art. 736), seja por outra ação declaratória ou desconstitutiva. Nada impede, outrossim, que o devedor se antecipe à execução e promova, em caráter preventivo, pedido de nulidade do título ou a declaração de inexistência da relação obrigacional. 4. Ações dessa espécie têm natureza idêntica à dos embargos do devedor, e quando os antecedem, podem até substituir tais embargos, já que repetir seus fundamentos e causa de pedir importaria litispendência.8 Outro ponto importante é que, segundo a doutrina majoritária, a existência de um processo estrangeiro não obsta a existência de um processo idêntico em território nacional e vice-versa. Nesse sentido é a lição de Humberto Theodoro Júnior: “a litispendência é fenômeno típico da competência interna, de sorte que nunca ocorre entre causas ajuizadas no País e no exterior.” Por fim, revela destacar qual é o momento em que se configura a litispendência. Para Cândido Rangel Dinamarco, ela ocorre com a propositura da demanda, ou seja, considera-se o processo pendente a partir do momento em que a petição inicial é entregue ao judiciário até o momento em que não é mais cabível qualquer recurso.9 José Frederico Marques, no mesmo sentido, argumenta: “com a propositura da ação o litígio adquire tonalidade processual e, em torno da área demarcada pelo pedido do autor, forma-se a litispendência.”10 No entanto, a doutrina majoritária afirma que a litispendência ocorre com a realização da citação válida do réu, pois é nesse momento que se vislumbra a formação da relação processual. André de Luizi Correia salienta que antes desse STJ, REsp 899.979/SP, 1º T., j. 23.09.2008, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Dje 01.10.2008. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. V2., p. 49 10 MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Vol. III, Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 212 8 9 160 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. momento não há relação jurídica processual, “mas apenas início de processo, que não se presta a produzir nenhum dos efeitos encartados no art. 219, nem com relação ao autor, nem com relação ao réu.”11 3. A CONEXÃO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL A conexão está prevista no artigo 103 do Código de Processo Civil: “Reputam-se conexas duas ou mais ações, quando lhes for comum o objeto ou a causa de pedir”. Não se deve confundir o fenômeno da conexão com a sua consequência, ou seja, com o seu efeito, que será a reunião dos processos perante um só juízo para julgamento conjunto. Como se sabe, “o conteúdo não se confunde com o efeito, até mesmo porque o efeito de um instituto é fenômeno externo a ele, enquanto o conteúdo pertence ao seu interior”.12 O objetivo do processo é a composição dos conflitos de interesse, cujos elementos essenciais são os sujeitos, o objeto e a causa de pedir. O que evidencia a conexão entre as demandas é a identidade parcial dos elementos da lide deduzida nos diversos processos. Segundo Humberto Theodoro Júnior, o código admite duas modalidades de conexão: pelo objeto comum e pela mesma causa de pedir. A primeira forma ocorre quando nas diversas lides se disputa o mesmo objeto, como, por exemplo, no caso de duas ações voltadas, separadamente, contra dois coobrigados por uma mesma dívida. A segunda forma se baseia na identidade de causa petendi que ocorre quando as várias ações tenham por fundamento o mesmo fato jurídico.13 O objetivo da norma inserta no artigo 103 é evitar contradições nas decisões proferidas pelo Poder Judiciário, por isso, a indagação sobre o objeto ou a causa de pedir deve ser interpretada de modo a permitir a decisão unificada. A existência de decisões conflitantes em litígios que tratem de situações semelhantes é, naturalmente, motivo de descrédito e causa insegurança jurídica. 11 12 13 CORREIA, André de Luizi. A citação no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Revista dos tribunais, 2001. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de processo civil. 2 ed.. São Paulo: Método, 2010, p. 151. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 42 ed. V. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 168-169. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 161 Em outras palavras, Rodolfo de Camargo Mancuso argumenta que “os pleitos iguais, dentro de um mesmo contexto social e histórico, não devem ter soluções diferentes. A opinião leiga não compreende a contrariedade dos julgados, nem o comércio jurídico a tolera, pelo seu natural anseio de segurança.”14 Além de evitar decisões contraditórias, essa norma tem o escopo de acolher o Princípio da Economia Processual, tornando possível resolver, de uma única vez, várias lides, inclusive podendo utilizar o mesmo material probatório.15 Outra questão refere-se à obrigatoriedade ou facultatividade na reunião de processos em razão da conexão. Segundo o artigo 105 do Código de Processo civil, “o juiz, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, pode ordenar a reunião de ações propostas em separado, a fim de que sejam decididas simultaneamente”. Observa que, em análise literal do dispositivo legal, trata-se de opção do magistrado a reunião ou não dos processos. Essa é a lição de Hélio Tornaghi,16 que assevera ser da conveniência do julgador a adoção de tal providência. Todavia, Luiz Manoel Gomes Júnior17 afirma que ainda que não exista necessidade de reunião dos processos, sob o aspecto fático, a distribuição por dependência é obrigatória, sem qualquer margem para decisão em sentido contrário. Em que pese celeuma, a reunião que não possa alcançar o objetivo traçado para o instituto não deve ocorrer, repudia-se, dessa forma, a reunião automática. Esse parece ser o escopo da súmula 235 do Superior Tribunal de Justiça18, que veda a reunião de processos quando um deles estiver no tribunal, vez que em um deles a prova já foi produzida e a decisão já foi prolatada, não havendo economia ou harmonização dos julgados que favoreça a reunião. Dessa forma, foram traçadas as principais características dos institutos da litispendência e da conexão, à luz do Processo Civil Clássico, que servirão para uma melhor análise de sua aplicação no processo coletivo, sobretudo diante da 14 15 16 17 18 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. São Paulo: RT, 1999, p. 18. GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de direito processual civil coletivo. 2. ed. São Paulo: Srs, 2008,p. 186. TORNAGHI, HÉLIO. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: RT, 1974, p.347. GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de direito processual civil coletivo. 2. ed. SãoPaulo: Srs, 2008, p. 188. Súmula 235 do Superior Tribunal de Justiça: A conexão não determina a reunião dos processos, se um deles já foi julgado. 162 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. autonomia principiológica existente, sempre em busca da economia processual e efetividade dos julgados. 4. LEGITIMIDADE ATIVA NAS AÇÕES COLETIVAS Segundo Liebman, a legitimidade é a individualização da pessoa a quem pertence o interesse de agir e da pessoa em relação à qual esse interesse existe: “decorre da distinção entre a existência objetiva do interesse de agir e a sua pertinência subjetiva.”19 Isto é, quando a lei processual exige a presença do interesse de agir como condição para o exercício do direito de ação, exige também que ele exista na pessoa daquele que pode formular uma pretensão. Em que pese esse posicionamento ainda ser sustentável no âmbito do processo individual, não deve ser aplicado de forma ampla à tutela coletiva. Em outras palavras, o conceito de legitimidade apresentado pela teoria eclética de Liebman não deve ser aplicado de forma ampla por não contemplar a legitimidade para as ações coletivas, uma vez que só reconhece a legitimidade quando o titular da ação for o mesmo do direito material. Isso porque nas ações em que se pleiteiam direitos transindividuais, por vezes, o ente legitimado age como substituto processual, ou seja, em nome próprio na defesa de direito alheio. O artigo 82, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor estabelece o seguinte rol: Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995) I - o Ministério Público, II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código; IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear. LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. 3 ed. Tradução de Cândido Rangel Dinamarco. São Paulo: Malheiros, 2005. V. I, p. 208. p. 157. 19 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 163 De igual modo, o artigo 5º da Lei de Ação Civil Pública arrola os legitimados para a propositura da Ação Civil Pública: Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007). I - o Ministério Público; II - a Defensoria Pública; III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V - a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Em 15 de janeiro de 2007, a lei nº 11.448 alterou o artigo 5 da lei de Ação Civil Pública para acrescentar a legitimidade da Defensoria Pública. Essa alteração veio para consolidar o entendimento jurisprudência que há tempos já previa tal possibilidade. A legitimação nas demandas coletivas é exclusiva, pois só são legitimados à propositura dessas ações aqueles indicados na lei ou no ordenamento jurídico. Essa legitimação é autônoma, vez que não depende de qualquer autorização dos titulares do direito material posto em causa. Também é concorrente, na medida em que possibilita qualquer co-legitimado a propositura dessas ações, ou até mesmo a ingressar como assistente em litisconsórcio. E, por fim, é disjuntiva ou simples, já que os co-legitimados poderão figurar sozinhos na demanda, não sendo necessário o ajuizamento em conjunto da ação. 5. LITISPENDÊNCIA E CONEXÃO NO ÂMBITO DO PROCESSO COLETIVO A possibilidade de serem instaurados vários processos coletivos que veiculam a mesma matéria tem se tornado cada vez mais frequente e problemático. 164 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Por exemplo, duas ações civis públicas, sendo uma delas movidas pelo Ministério Público e a outra por uma associação, onde se pleiteiam a defesa dos consumidores lesados por uma determinada empresa. A ausência de norma que disciplina os institutos da litispendência e conexão no âmbito coletivo obriga os operadores do direito a buscarem embasamento legal no processo individual. José Miguel Garcia Medina nota que, por um lado, a relação entre demandas coletivas se aproxima do instituto da conexão, vez que não há identidade de partes processuais, embora estejam presentes os mesmos pedidos e as causas de pedir das duas ações. Por outro lado, parece ajustar-se melhor ao instituto da litispendência, pois, a titularidade do direito material posto em juízo é a mesma nas duas ações.20 De qualquer forma, é afirmado que não há um regramento específico que contorne adequadamente o problema do relacionamento entre essas demandas, principalmente por se tratar de direitos transindividuais que, por vezes, não comporta as soluções encontradas pelo legislador ao processo individual. Em outras palavras, a adaptação criativa do processo individual ao coletivo funciona até certo ponto, porque é indispensável a perseguição do ideal de se obter uma sistemática processual exclusiva para os processos coletivos, dadas as suas atuais singularidades, tanto em sua natureza como na finalidade, e que os afasta dos processos individuais em temas fundamentais como a coisa julgada, execução, procedimento, litispendência, conexão, dentre outros. Corroborando assevera Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart: A sociedade moderna abre oportunidade a situações em que determinadas atividades podem trazer prejuízos ao interesses de grande número de pessoas, fazendo surgir problemas ignorados nas demandas individuais. O risco de tais lesões, que afetam simultaneamente inúmeros indivíduos ou categorias inteiras de pessoas, constitui fenômeno cada vez mais amplo e frequente na sociedade contemporânea. Ora, se a sociedade atual é caracterizada por ser de produção e consumo de massa, é natural que passem MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo civil moderno: Parte Geral e Processo de Conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 113. 20 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 165 a surgir conflitos de massa e que os processualistas estejam cada vez mais preocupados em configurar um adequado “processo civil coletivo” para tutelar os conflitos emergentes. (...) É preciso, pois, para bem operar com as ações coletivas, despir-se de velhos preconceitos (ou pré-conceitos), evitando recorrer a raciocínios aplicáveis apenas à “tutela individual” para solucionar questões atinentes à tutela coletiva, que não é, e não pode ser, pensado sob a perspectiva da teoria da ação individual. Os institutos que presidem essa ação (ao menos em sua grande maioria) são incompatíveis e inaplicáveis à tutela coletiva, simplesmente porque foram concebidos para operar em outro ambiente.21 Diante dessas peculiaridades, parcela da doutrina que tenta superar esses problemas argumenta que o melhor caminho seria a reunião das ações para privilegiar os princípios da economia processual, do acesso à justiça, dentre outros. Todavia, ainda há aqueles que defendem a extinção de tais processos, entendendo tratar-se de litispendência, como se verá adiante. 5.1 Identidade entre pedidos e/ou causa de pedir em Ações Coletivas – Litispendência e extinção da ação A doutrina majoritária reconhece que em causas coletivas não é exigida a identidade da parte autora para a configuração da litispendência, bastando que haja identidade de pedido e da causa de pedir. Entretanto, nem todos que a defendem reconhecem os mesmos efeitos aplicados ao processo individual, ou seja, a extinção do processo litispendente. Dentre os autores que asseveram a necessidade de extinção da ação estão Fredie Didier Júnior e Hermes Zaneti Júnior. Segundo eles, a litispendência no plano coletivo é igual ao que ocorre no plano individual: “não pode haver dúvidas de que a identificação dos elementos da ação, entre ações coletivas, impede o prosseguimento da ação coletiva ulterior”.22 Também é a opinião de Antônio Gidi, que assegura: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 2 ed. São Paulo:RT, 2003, p. 749-751. 22 DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil: Processocoletivo. 3. ed. Bahia: Podivm, 2008, p. 177. 21 166 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. É preciso ressaltar que, se entre uma ação coletiva do CDC e uma ação civil pública, uma ação popular, um mandado de segurança coletivo ou qualquer outra ação coletiva, ocorrer a identidade de causa de pedir e de pedido, haverá litispendência entre essas duas ações. Serão a mesma e única ação coletiva, apenas propostas com base em leis processuais diferentes.23 Adiante o mesmo autor afirma que, no caso de tramite concomitante de duas ações coletivas, o conflito é evidente, podendo apenas uma prosperar. No caso, poderia a parte autora do processo extinto intervir no processo remanescente como assistente litisconsorcial: É preciso, pois, encontrar, no sistema do direito positivo brasileiro, solução para esse inconveniente: a) de lege lata, a interpretação mais correta do sistema, para a solução do impasse criado pela existência de “duas” ações coletivas “idênticas” (com mesmas partes, no sentido acima, mesma causa de pedir e mesmo pedido), contemporaneamente em curso (rectius: é a mesma ação, e não duas idênticas), é a aplicação dos dispositivos do CPC no que toca à matéria, mesmo porque assim dispõe, expressamente, o próprio CDC (art. 93, II, in fine ). [...] No caso de duas ações coletivas, o potencial conflito é evidente, pelo que somente uma dessas ações deve prosperar. E nem seria de se esperar o prosseguimento de duas ações coletivas exatamente com o mesmo fim. [...] Desse modo, impõe-se que seja extinto o segundo processo, naquilo que coincidir com o primeiro, prosseguindo o feito no juízo prevento. À entidade autora do processo extinto resta, apenas, a possibilidade de intervir no processo remanescente como assistente litisconsorcial.24 Kazuo Watanabe dispõe que é suficiente uma só demanda coletiva para a proteção de todas as pessoas titulares de direitos coletivos: Se o que expõe o autor da demanda coletiva como causa de pedir, no aspecto ativo, são os interesses ou direitos ‘difusos’ ou ‘coletivos’, cujas notas características são as acima ressaltadas, dentre as quais sobressaem a natureza transindividual e o caráter indivisível e, no aspecto passivo, a violação desses mesmos 23 24 GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p.219. Ibid.,, p. 223-224. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 167 interesses ou direitos, e se formula ele o pedido de tutela coletiva desses interesses ou direitos transindividuais e indivisíveis, é suficiente uma só demanda coletiva para a proteção de todas as pessoas titulares desses interesses ou direitos, ‘indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato’, em se tratando dos ‘difusos’ e de todas as pessoas pertencentes a um mesmo grupo, categoria ou classe ‘ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base’, em se cuidando dos ‘coletivos’. O mesmo se pode dizer em relação a ‘interesses ou direitos individuais homogêneos’, quanto ao processo de conhecimento da demanda coletiva (art. 95, CDC), tanto que a sentença procedência fará coisa julgada erga omnes, como às expressas dispõe o art. 103, III, do CDC.25 Para Elton Venturi, que também mantém a mesma linha de pensamento dos autores supramencionados, o ajuizamento de inúmeras ações coletivas, ainda que de espécies diferentes (Ação Popular, Ação Civil Pública, etc.), onde se pleiteiam pretensões idênticas, não poderá afastar a realidade de serem, antes e mais que conexas, essencialmente idênticas, ensejando a extinção da ação pelo reconhecimento da litispendência.26 Ressalte-se, ainda, o posicionamento de Teresa Arruda Alvim Wambier, para quem: “proposta a mesma ação coletiva perante juízo prevento, este deverá verificar se está diante de causas conexas – hipótese em que as ações deverão ser reunidas, para julgamento conjunto – ou se há litispendência, e neste caso a segunda ação deverá ser extinta”.27 O entendimento apresentado é coerente com o processo civil clássico de onde se busca embasamento, mas, como salientado, em alguns pontos não poderá ser transportado para o processo coletivo, principalmente diante da importância, complexidade e dos princípios específicos que o regem. É por isso que a tendência moderna refuta a extinção da ação litispendente, não só pela possibilidade de gerar prejuízos à coletividade, mas também pela busca da tutela jurisdicional adequada. WATANABE, Kazuo. Demandas coletivas e os problemas da práxis forense. Repro. São Paulo, n. 67, jul-set. 1992, p. 18-19. VENTURI, Elton. Processo civil coletivo: A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 334. 27 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Litispendência em Ações Coletivas. In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita Dias (Coord). Processo civil coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 287. 25 26 168 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 5.2 Identidade entre pedidos e/ou causa de pedir em Ações Coletivas – conexão e reunião da ação Parcela minoritária da doutrina não vislumbra a possibilidade de se aplicar o instituto da litispendência, já que não existe a presença de todos os elementos da ação, tais como as partes, a causa de pedir e o pedido. Dentre eles, encontra-se José dos Santos Carvalho Filho que dispõe: A litispendência é repetição de ação idêntica e exige as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido (art. 301. §§1º e 2º, do CP Civil). São, pois, pressupostos da litispendência a repetição de ação idêntica e a circunstância de estar ainda pendente o processo anterior. Ora, não havendo essa identidade, não se configura a litispendência, mas sim a conexão, devendo os feitos reunir-se para um só julgamento.28 Através desse entendimento jamais poderá haver litispendência entre a ação civil pública e a ação popular porque os autores são diversos. A rigor, só ocorrerá em relação a duas ações civis públicas ou duas ações populares, assim mesmo com pouca probabilidade. Exemplo seria a de um cidadão propor duas ações populares idênticas ou determinada associação propor duas ações civis públicas em face do mesmo réu e com causa de pedir e pedidos idênticos. Entretanto, é possível ocorrer o fenômeno da conexão entre a ação civil pública e a ação popular, mesmo que possuam pedidos diversos, desde que haja identidade da causa petendi. Nos moldes do artigo 103 do Código de Processo Civil, é suficiente a identidade de causa de pedir ou de pedido para que seja reconhecida a conexão, cuja consequência será a reunião das ações. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou a respeito no seguinte aresto: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AÇÃO POPULAR. Inexistentes os pressupostos necessários à caracterização da litispendência, impõe-se afastá-la (CPC art. 301, §2º). Caracteriza-se, na hipótese, o instituto da conexão, já que as ações têm a mesma finalidade, o que as torna semelhantes e passíveis de decisões unificadas, devendo-se evitar julgamentos conflitantes sobre o mesmo tema, objeto das lides.29 28 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública: Comentários por artigo (Lei nº 7.347, de 24/7/85). 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 60. 29 REsp 208.680, 2ª Turma, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, julg. Em 6.4.2004, Dj de 31/05/2004. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 169 Outro argumento relevante utilizado por aqueles que defendem tal entendimento é que a extinção do processo litispendente ofenderia o direito fundamental de acesso ao judiciário, como estabelecido no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, visto que o autor, fora das hipóteses expressas contidas na lei processual, tem direito de ver seu problema solucionado pelo Poder Judiciário. Esse posicionamento é criticável principalmente por restringir o conceito de parte. Não há dúvidas que em se tratando de demanda onde se pleiteia Direito Coletivo não há que ser levado em conta a figura do autor para fins de reconhecimento de identidade de ações, pois o autor, em tais casos, atua como verdadeiro substituto processual, pleiteando não direito próprio, mas direito alheio, de toda a coletividade. Nesse sentido é a posição de Antônio Gidi: Poder-se-ia argumentar que não haveria litispendência entre duas ações coletivas em defesa de um mesmo direito material, se interpostas por diferentes legitimados (dentre aqueles constantes no art. 5° da LACP ou art. 82 do CDC). Afinal, dir-se-ia, ainda que a causa de pedir e o pedido sejam os mesmos, as partes não o seriam. Em que pese o fato de as pessoas não serem empiricamente as mesmas, entendemos que, para efeito de legitimidade, litispendência, efeitos da sentença e sua imutabilidade (autoridade da coisa julgada), juridicamente, trata-se da mesma parte. Por outro giro, as partes são consideradas as mesmas pelo direito positivo, muito embora, empiricamente, no mundo naturalístico, não o sejam.30 Pedro da Silva Dinamarco, de igual forma, assevera: Os co-legitimados que figuram na relação jurídica processual para proteger interesses alheios (substituto processual) são as partes apenas no aspecto formal. A parte material, na realidade, são todos os substituídos, geralmente ausentes na relação processual.31 Assim, para fins de determinação dos elementos da demanda que verse sobre Direitos transindividuais, pouco importa quem seja a pessoa que a propõe, uma vez que jamais será suficiente para converter um direito coletivo em individual. GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 218-219. DINAMARCO, Pedro da Silva. Competência, conexão e prevenção nas ações coletivas. Ação civil pública. Após 20 anos: efetividade e desafios. In: MILARÉ, Edis (Coord.). Op. cit., 2005, p. 513. 30 31 170 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Luiz Manoel Gomes Júnior, na primeira edição de sua obra Curso de Direito Processual Civil Coletivo, posicionava-se a favor da conexão quando os entes legitimados fossem diversos. Todavia, atualmente, reconhece a existência de litispendência: No passado, entendíamos que não haveria litispendência na espécie, mas a posição externada em debates com a doutrinadora Patrícia Pizzol convenceu-nos de que há sim litispendência (...).32 A diferença quanto às pessoas dos autores não impede o reconhecimento da identidade de demandas e, por conseguinte, não traduzem qualquer impedimento ao reconhecimento da litispendência, sendo o pólo passivo o mesmo. 5.3 Identidade entre pedidos e/ou causa de pedir em Ações Coletivas – litispendência e reunião da ação Ao contrário da parcela da doutrina que entende pela necessidade de extinção da ação litispendente com fulcro no processo civil clássico, outros autores, por sua vez, defendem a necessidade da reunião das ações, mesmo estando presentes os elementos identificadores nas duas demandas, o que evidencia a litispendência. Fundamentam tal posição na finalidade social do processo coletivo, bem como nos princípios que o regem. Luiz Manoel Gomes Júnior, com razão, argumenta que “é impossível ignorar a existência de uma “fobia” com relação às Ações Coletivas, contudo, os tempos são outros e tais tipos de demandas não podem ser analisados como se fossem demandas de natureza individual”.33 Quando ocorrer a litispendência com partes diversas, a resolução da questão não pode ser a extinção de um dos processos, mas a reunião deles para processamento simultâneo. Afinal, “de nada adiantaria extinguir um dos processos, pois a parte autora, como co-legitimada, poderia intervir no processo supérstite, na qualidade de assistente litisconsorcial.”34 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de direito processual civil coletivo. 2. ed. São Paulo: Srs, 2008,p. 193. GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de direito processual civil coletivo. 2. ed. São Paulo: Srs, 2008, p. 190. 34 DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil: Processo coletivo. 3. ed. Bahia: Podivm, 2008, p. 180. 32 33 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 171 Luiz Manoel Gomes Júnior também afirma que havendo identidade de pedidos e causa de pedir entre ação popular e ação Civil Pública os processos devem ser reunidos para decisão conjunta, não justificando a extinção pelo fenômeno da litispendência. Além disso, traz uma razão de ordem prática para aconselhar a adoção desse entendimento: Poderia haver o ajuizamento de uma demanda mal proposta, o que impediria os demais legitimados de agir, enquanto não exista aquela apresentada em primeiro lugar, com inegáveis reflexos para os possíveis beneficiários com relação ao fator tempo. Em alguns casos, nem seria possível o aditamento, pois há o limite temporal (até a citação) [...] Seria até mesmo admissível, em tese, a criação de associações ad hoc justamente com tal finalidade e, ajuizada determinada demanda, ficariam os demais legitimados impedidos de agir..35 José Miguel Garcia Medina e Teresa Arruda Alvim Wambier, ao enfrentarem o tema, reconhecem que as causas deverão ser reunidas para julgamento conjunto: De qualquer forma, em casos como o ora analisado, notando-se que as sentenças a serem proferidas nas duas ações coletivas terão a mesma abrangência, deverão necessariamente as causas ser reunidas, para julgamento conjunto, nos termos acima referidos, sob pena de se criar um conflito prático intransponível.36 Marcelo Abelha Rodrigues questiona a possibilidade de ação popular proposta pelo cidadão ser extinta quando seus elementos forem rigorosamente idênticos aos de uma ação civil pública proposta por qualquer dos legitimados previsto da lei, vez que ambas estão constitucionalmente previstas. Além disso, questiona-se a viabilidade, pois existe a necessidade de se prestigiar o amplo acesso à justiça: Seria justo que a ação popular proposta pelo cidadão (ou assumida pelo MP, art. 9° da Lei 4.717/65) fosse extinta caso todos os GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Op. Cit., p. 195. MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo civil moderno: Parte Geral e Processo de Conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010,p. 113. 35 36 172 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. elementos da demanda fossem rigorosamente idênticos aos de uma ação civil pública proposta por qualquer legitimado do art. 5° da Lei 7.347/85? Poderia a lei impedir a participação política do cidadão, prevista no art. 5°, LXXIII, da CF/88, ou, em sentido inverso, poderia a ação popular impedir a ação civil pública também prevista constitucionalmente (art. 129, § 3°)? Afinal de contas, se a tutela jurisdicional coletiva deve ser a forma mais ampla de acesso à justiça, abrindo canais e portas de ingresso em juízo é justo, ou válido, ou legítimo, que se aplique para casos tais a extinção de uma das formas de participação da sociedade na tutela de direitos supra-individuais?37 Em casos tais, Teresa de Arruda Alvim Wambier leciona que o modelo articulado no Código de Processo Civil para a constatação de conexão e litispendência não serve para regular o confronto entre duas demandas coletivas, salvo se for aplicado de outro modo, observando as peculiaridades dessas ações. Com razão, afirma que “não é adequado aplicar integralmente e acriticamente critérios estabelecidos pelo CPC para a solução de ações individuais para dirimir dilemas relativos às ações coletivas.”38 No mesmo sentido é a lição de Gregório Assagra de Almeida: Com a devida vênia aos entendimentos em sentido contrário, entendemos que o fato de ser possível a ocorrência de litispendência (identidade) entre ação civil pública e ação popular ou entre outras ações coletivas não impõe e não pode impor a aplicabilidade fria e rígida do estabelecido no art. 267, V, do CPC. A extinção pura e simples com base nos efeitos negativos da litispendência de uma das ações coletivas poderá causar risco à efetiva tutela jurisdicional de direito coletivo. Imagine que a extinção venha a recair em relação a uma ação civil repleta de provas colhidas durante o inquérito civil. Nessas situações de ocorrência de litispendência entre ação civil pública e ação popular, o mais lógico e razoável é a aplicabilidade do que dispõe o CPC em seu artigo 105, com a reunião das respectivas ações coletivas para julgamento simultâneo em uma mesma sentença.39 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública e meio ambiente. 2 ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p.142. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Litispendência em Ações Coletivas. In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita Dias (Coord). Processo civil coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005,p. 289. 39 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das ações constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 198. 37 38 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 173 Esse posicionamento funda-se no fato da sociedade de massa exigir do interprete uma nova visão, posto que os instrumentos disponíveis surgissem em um momento em que o fenômeno dos conflitos de massa eram socialmente menos incidente e, portanto, tornaram-se hoje insuficientes.40 Ademais, a distância que existe entre o resultado do processo e o aumento da valorização jurídica da cidadania, motiva o surgimento de movimentos doutrinários que incentivam o aplicador das normas a visualizálas com características que retratem o verdadeiro valor da tutela jurisdicional almejada pelo cidadão nas demandas postas em juízo.41 Cândido Rangel Dinamarco salienta que a efetividade do processo é evidenciada pela capacidade do sistema de produzir as situações de justiça realmente desejadas pela ordem social, política e jurídica. A tendência do direito processual moderna posiciona-se no sentido de conferir maior utilidade aos provimentos jurisdicionais.42 Ada Pellegrini Grinover anota com propriedade que é preciso repensar os institutos: É preciso, antes de mais nada, que o processualista tenha a coragem intelectual de admitir que hoje aflora no processo situações diversas daquelas que constituíam o suporte dos institutos tradicionais. A tradição doutrinária não pode significar um obstáculo para repensar institutos. Que hão de ser moldados às novas situações. É preciso proceder, dentro de cada sistema, a uma análise funcional, ressaltando os tipos de interesses que devem ser protegidos e os tipos de provimentos idôneos à sua tutela, de modo a adaptar os mecanismos internos do processo à melhor consecução desses objetivos. Somente com essa mentalidade, poderá o processualista afeiçoar os velhos institutos às necessidades atuais, impulsionando, ao mesmo tempo, as reformas legislativas necessárias à tutela jurisdicional dos interesses difusos.43 RUFFOLO, Ugo. Interessi collettivi o difussi e tutela del consumatore. Milão: Giuffrè, 1985, p. 106. DELGADO, José Augusto. Interesses difusos e coletivos: Evolução Conceitual Doutrina e Jurisprudência do STF – São Paulo: RT, RePro 98, p. 61-62. 42 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do processo. São Paulo:RT, 1990, p. 458. 43 GRINOVER, Ada Pellegrini. A problemática dos interesses difusos. In: GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord.). A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Max Limonad, 1984. p. 42-43 40 41 174 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. É por isso que a reunião dos processos de natureza coletiva para serem julgados conjuntamente demonstra-se mais adequado, principalmente por propiciar o fortalecimento da proteção do interesse social contido nessas ações, e não, a simples aplicação das normas estabelecidas no processo individual. Além disso, não restringe a possibilidade de defesa dos interesses em jogo por aquele que foi mais rápido na propositura da demanda, até porque nem sempre aquele que propõe primeiramente o fez de forma adequada e com densidade probatória para futura sentença de procedência. Tudo isso evidencia a possibilidade de, não reunindo os processos, acarretar sérios prejuízos à coletividade. A reunião das demandas deve ocorrer ainda quando se almeja a tutela para direitos coletivos de diferentes espécies, ou seja, quando o mesmo caso ultrapassar a órbita dos direitos patrimoniais da população diretamente afetada e atingir interesses metaindividuais, como o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a uma vida saudável. Nesse caso, ainda que presentes direitos individuais homogêneos, a relevância social dos interesses em jogo é suficiente para autorizar o manejo concomitante de ação civil pública pelo legitimado ativo44. As relações causais estão tão intimamente ligadas que um único fato pode provocar consequências de diferentes ordens, de modo que é presumível que dele advenham interesses múltiplos. É o caso, por exemplo, de um desastre ecológico que resulta em danos difusos ao meio ambiente, à saúde pública e, ao mesmo tempo, em danos individuais homogêneos aos residentes da região. Dessa forma, as lides coletivas em que se pleiteiam direitos coletivos de diferentes espécies devem ser reunidas para evitar que a sentença proferida em uma delas não implique em contradição às outras. O Superior Tribunal de Justiça solucionou conflito de competência suscitado pela BRASIL TELECOM S/A (concessionária de serviço público de telefonia, que objetivava a definição do juízo competente para o julgamento de treze ações coletivas ajuizadas em diferentes seções judiciárias, relativas à tutela do mesmo bem jurídico) reunindo as ações: 44 REsp 555.111/RJ, Rel. Min. Castro Filho, Terceira Turma, julgado em 5.9.2006, DJ 18.12.2006.) Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 175 PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. DEMANDAS COLETIVAS PROMOVIDAS CONTRA A ANATEL E EMPRESAS CONCESSIONÁRIAS DE SERVIÇO TELEFÔNICO FIXO COMUTADO. PRORROGAÇÃO DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. 1. Ações coletivas principais e cautelares e ação popular, cujo escopo último é de ação transindividual nas quais se discutem cláusulas contratuais e a possibilidade de prorrogação do contrato de concessão, todas emergentes do contrato-base, consoante as regras da Anatel, aplicáveis a todos os concessionários. 2. Decisões conflitantes exaradas com grave violação à uniformidade das decisões, bem como aos princípios constitucionais da isonomia e da segurança jurídica. 3. A potencialidade de decisões finais contraditórias, posto conexas as ações, viabilizando a repetição incalculável de ações com regramentos díspares para as mesmas situações jurídicas, recomendam a reunião das ações. 4. As decisões conflitantes proferidas são fatores suficientes a determinar a reunião das ações, porquanto os juízes, quando proferem decisões inconciliáveis, firmam as suas competências, fazendo exsurgir a conexão e a necessidade de reunião num só juízo, caracterizando o conflito de competência do artigo 115, III, do CPC. (precedentes) 5. O dano tem natureza nacional, por isso que incide na hipótese o artigo 93, II, do Código de Defesa do Consumidor (CC 39.590 RJ, Rel. Ministro Castro Meira, DJ 15.09.2003). 6. O ideal jurisdicional é a função preventiva do Judiciário em evitar a multiplicação das ações conducentes a resultados inconciliáveis, o que ocorre in casu, em que se verifica que em cada ação há infirmação das regras básicas da Anatel, aplicáveis a todas as concessionárias, por isso que imperioso que em unum et idem judex dê-se uma única solução para todas, tanto mais que o que caracteriza a conexão é a comunhão do objeto mediato do pedido, no caso sub judice, o modelo contratual de concessão em si, por isso que as ações revelam os seguintes pedidos a saber: [...] 7. A Corte Especial, percorrendo o mesmo raciocínio diante de ações individuais e coletivas que se voltavam contra a prorrogação dos contratos de concessão com a Anatel, decidiu em suspensão de segurança confirmada pelo AgRg na SLS 250-MS, que antevendo a conexão e a possibilidade de decisões contraditórias deve haver a reunião das ações no foro do Distrito Federal se o suposto dano é nacional. 8. A continência é uma espécie de conexão por que a infirmação do contrato no seu todo ou de algumas cláusulas implica assentar que a pretensão se volta contra a prorrogação total ou parcial do vínculo. 9. Por fim, a decisão que altera contratos de concessão com a Anatel apenas em relação a algumas operadoras, restando incólume o vínculo em relação às demais, viola o princípio constitucional da isonomia, além de propiciar decisões contraditórias e repetição avassaladora de ações. 10. O conflito de competência, em 176 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. regra, não ostenta caráter prospectivo para incluir no Juízo conexo, eventuais ações futuras. 11. Ressalva do ponto de vista do Relator porquanto à luz do entendimento a contrario sensu, as ações instauradas após o conflito e ainda não julgadas devem ser submetidas ao unum et idem judex, cumprindo as finalidades do instituto que é a de evitar, a qualquer tempo, decisões contraditórias. Deveras, na Reclamação 2.259-PA, no voto-vista proferido pelo E. Ministro João Otávio de Noronha, assentou-se que nas ações com escopos transindividuais, o Juízo deve ser sempre universal. 12. Inviabilidade do atendimento da pretensão da suscitante relativamente às eventuais ações conexas a serem propostas, já que o referido pleito não se subsume ao disposto no art. 115 do CPC, razão pela qual nesta parte vencido o E. Relator, que admite a prevenção do juízo para as ações futuras até que o juízo prevento mantenha a sua competência. 13. Conflito de competência conhecido para firmar a competência do Juízo Federal prevento pela propositura da segunda ação, o Juízo da 6.ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, tendo em vista a extinção sem resolução do mérito da primeira ação (Súmula 235 do STJ), na forma do disposto nos artigos 109, I, da CF 1988 c.c. artigo 93, II, do CDC c.c. artigo 2.º, § único da Lei 7.347 85, excluídas as ações conexas que venham a ser propostas. (precedentes: CC 39.063PE, Rel. Min. LUIZ FUX, DJ 29.03.2004; AgRg no CC 58.229RJ, Rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJ 05.06.2006; EDcl no CC 403-BA, Rel. Min. ANTÔNIO TORREÃO BRAZ, DJ 13.12.1993; CC 41.444-AM, Rel. Min. LUIZ FUX, DJ 16.02.2004; CC 39.590-RJ, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJ 15.09.2003.45 Perceba-se que as múltiplas ações coletivas mencionadas nesse aresto foram tratadas como conexas, decidindo-se, assim, pela reunião de tais demandas em um só juízo. Observe que, em todas as demandas envolvidas se buscavam a tutela de direitos do consumidor, diante da insurgência contra a assinatura da prorrogação dos contratos de telefonia fixa comutada e das disposições ali contidas. Tal fato justifica a reunião das ações, principalmente perante do risco de decisões contraditórias se julgadas separadamente. Importante destacar os argumentos do Ministro Luiz Fux, que em seu voto enfatizou: 45 STJ. C.C. Nº 57.558 - DF (2005.0215616-5). Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, j. 12/09/2007, DJ. 03/03/2008. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 177 A grande realidade é saber se podemos conviver com nossa função, tal como prevista na Constituição Federal, assistindo passivamente, chegarem aqui cem mil ações com decisões diferentes sobre a mesma matéria. Isso significa abdicar do dever de velar pela cláusula máxima consectária da tutela da dignidade da pessoa humana, que é a igualdade. Sabemos que um dos fatores que levou o Poder Judiciário a um profundo descrédito perante a opinião pública foi a falta de sintonia nas decisões. Citei uma vez um exemplo: um leigo pergunta para um outro, qual é o juiz dele, pensando que poderia ir ao juiz do outro e conseguir o mesmo que o outro conseguiu, porque não conhece o princípio do juízo natural. No meu modo de ver, a conexão é inegável. Aliás, o Sr. Ministro Teori Albino Zavascki entende que elas são conexas. Além do mais, não estamos julgando litígios individuais, mas uma discussão relativa a um atobase genérico, que é o ato da agência que intervém quando instituiu a tarifa básica, sem considerarmos alguns aspectos práticos de que, se isso eventualmente vier a surpreender as partes em conflito, certamente essas empresas - e temos assistido a isso com constância na Corte Especial - reclamarão na Corte Especial para fazer valer a condição originária da concessão, sob pena de repassar para o consumidor, num tiro às avessas, a onerosidade pela impossibilidade de cobrar a tarifa básica que a agência reguladora autorizou (...) Esta é uma ação coletiva, que versa e que interessa a todos. Uma ação dessa tem gerado a repetição de inúmeras ações. Nossa opção na vida é: ira ou amor. Temos que fazer uma opção. Vamos receber cem mil ações, cada uma com uma decisão diferente e vamos bater no peito que somos um tribunal da cidadania, mas violando a isonomia, ou daremos uma solução para essa questão, que é nacional? Diante desse panorama, reformulando meu voto, já que entendo que não podem permanecer nos juizados especiais, assento que a ratio essendi da conexão das ações coletivas é manter a uniformidade das decisões, do contrário, estaremos criando, com as ações coletivas, a possibilidade de decisões contraditórias, isto é, estamos indo na contramão da finalidade do instituto. Sugiro que todas as ações sejam reunidas no juízo federal para uma decisão única, porque, mesmo aquela primeira solução de grupos ficarem em locais diferentes, gera a possibilidade de essas decisões serem contraditórias nesses grupos. Essa é a complementação da minha sugestão de voto.46 Essa decisão leva em conta o princípio da segurança jurídica, o respeito ou desrespeito aos contratos, e até mesmo o risco de descontinuar serviço público essencial a todos os brasileiros, como é o caso da telefonia fixa. 46 STJ. C.C. Nº 57.558 - DF (2005.0215616-5). Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, j. 12/09/2007,DJ. 03/03/2008. 178 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. José Roberto dos Santos Bedaque leciona que: “a natureza instrumental do direito processual impõem sejam seus institutos concebidos em conformidade com as necessidades do direito substancial”. E continua, “a eficácia do sistema processual será medida em função de sua utilidade para o ordenamento jurídico material e para a pacificação social”47. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A evolução da sociedade e a massificação dos conflitos evidenciaram a necessidade de inovações no direito processual brasileiro, sob pena de perder sua eficácia social. As regras contidas no processo civil clássico para tutelar os direitos individuais não se mostraram adequadas quando estiveram em disputa direitos transindividuais, entendidos como aqueles que repercutem na esfera individual de um grande número de pessoas, muitas vezes não identificáveis, como no caso do direito a um meio ambiente sadio. Os institutos da litispendência e conexão no âmbito coletivo, foco principal desse estudo, tiveram seus conceitos extraídos do processo individual, diante da omissão do microssistema coletivo. A doutrina se divide ao apresentar soluções. Alguns entendem que, se ocorrer identidade entre as partes, causa de pedir e pedidos, deve ser reconhecida a litispendência, com a consequente extinção do processo ajuizado posteriormente. Todavia, assegura que esse posicionamento não tem validade se as partes forem diversas. Esse posicionamento recebe severas críticas, pois não há dúvidas que em se tratando de demanda onde se pleiteia Direito Coletivo não há que ser levado em conta a figura do autor para fins de reconhecimento de identidade de ações, já que o autor, em tais casos, atua como verdadeiro substituto processual, pleiteando não em direito próprio, mas direito alheio, direito de toda a coletividade. Outra parcela da doutrina assevera que as ações coletivas ajuizadas com igualdade de elementos, ainda que por entes diversos, deve ser extinta BEDAQUE, José dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 2 ed. 2 tir. São Paulo: Malheiros Ed. 2001, p. 16. 47 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 179 com fundamento na litispendência, vez que a coletividade já está sendo representada em juízo. No entanto, a extinção do processo litispendente ofenderia o direito fundamental de acesso ao judiciário, como estabelecido no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal. Ademais, há uma razão de ordem prática, evitar o ajuizamento de uma demanda mal proposta com o escopo de impedir os demais legitimados de agir. Ao contrário das correntes que exigem a extinção da ação litispendente com fulcro no processo civil clássico, a posição doutrinaria que mais se coaduna com a finalidade social do processo coletivo é aquela que permite a reunião das ações para julgamento conjunto, aproveitando as provas e argumentos apresentados nas diversas ações. Esse posicionamento não busca unicamente perfeição científica, mas também a máxima eficiência e facilidade de aplicação. Além disso, as peculiaridades situadas no plano substancial impõem a adoção de técnicas diversas, sem o que não é possível atingir os resultados desejados pelo sistema. 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das ações constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. BEDAQUE, José dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 2 ed. 2 tir. São Paulo: Malheiros Ed. 2001. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública: Comentários por artigo (Lei nº 7.347, de 24/7/85). 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 2 ed. Tradução de Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 2000. V. 1. CORREIA, André de Luizi. A citação no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Revista dos tribunais, 2001. DELGADO, José Augusto. Interesses difusos e coletivos: Evolução Conceitual Doutrina e Jurisprudência do STF – São Paulo: RT, RePro 98. 180 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil: Processo coletivo. 3. ed. Bahia: Podivm, 2008. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do processo. São Paulo:RT, 1990. DINAMARCO, Pedro da Silva. Competência, conexão e prevenção nas ações coletivas. Ação civil pública. Após 20 anos: efetividade e desafios, 2005. GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995. GRINOVER, Ada Pellegrini. A problemática dos interesses difusos. In: GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord.). A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Max Limonad, 1984. GOLDSCHIMIDT, James. Direito processual civil. Tradução de Lisa Pary Scarpa. Campinas: Brookseler, 2003. Tomo I. LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. 3 ed. Tradução de Cândido Rangel Dinamarco. São Paulo: Malheiros, 2005. V. I. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. São Paulo: RT, 1999. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 2 ed. São Paulo:RT, 2003. MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Vol. III, Rio de Janeiro: Forense, 1958. MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo civil moderno: Parte Geral e Processo de Conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de processo civil. 2 ed.. São Paulo: Método, 2010. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública e meio ambiente. 2 ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. RUFFOLO, Ugo. Interessi collettivi o difussi e tutela del consumatore. Milão: Giuffrè, 1985. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 42 ed. V. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2005. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 181 TORNAGHI, HÉLIO. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: RT, 1974. VENTURI, Elton. Processo civil coletivo: A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Malheiros, 2007. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Litispendência em Ações Coletivas. In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita Dias (Coord). Processo civil coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005. WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento, 11 edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. WATANABE, Kazuo. Demandas coletivas e os problemas da práxis forense. Repro. São Paulo, n. 67, jul-set. 1992. Recebido em: 04/03/2012. Aceito em: 19/06/2012. 182 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. ESTÁGIO E SUA RELEVÂNCIA PARA O BACHAREL DE DIREITO Taciana Mara Corrêa MAIA1 Maria Cecília Gonçalves SILVEIRA2 Resumo: Mediante análise da Lei 11.788/2008, bem como do Estatuto da OAB, buscou-se analisar os aspectos fundamentais do estágio no Curso de Direito. O instituto mencionado é demasiadamente importante na vida do bacharel, imprescindível para que o estudante possa apreender, verdadeiramente, todas as lições que lhe foram passadas em sala de aula. A relevância do estágio impõe a necessidade de investimento em políticas públicas de conscientização da sociedade sobre o assunto. Palavras-chaves: estágio, Direito, bacharel, relevância. Abstract: Through analysis of Law 11,788, as well as the Statute of the OAB, it aimed to examine the fundamental aspects of the stage in the Course of Law. The institute is mentioned too important in the life of the bachelor, indispensable to the student can understand, truly, all the lessons that have been spent in the classroom. The relevance of the stage imposes the need for investment in public policies of the society awareness on the subject. Keywords: stage, law, lawyer, relevance. 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho visa desenvolver as problemáticas existentes na Lei 11.788/2008; bem como informar aos estagiários os direitos que possuem e analisar os reflexos na vida profissional. Mestre em Direito Público – PUC/MG, Especialista em Direito Público – Unifenas/MG, Especialista em Direito Tributário – Anhanguera - Uniderp , Procuradora da Fazenda Nacional, Professora no Curso de Direito da Unigran/MS. 2 Especialista em Direito Público – Fadivale/MG, Assessora Jurídica do IEF na Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais em Governador Valadares/MG. 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 183 No desenvolvimento da pesquisa utilizar-se-á a metodologia bibliográfica, uma vez que abarcar-se-á posicionamentos jurídicos averiguados na doutrina, jurisprudência, periódicos e sites jurídicos. 2. HISTÓRICO Há poucas décadas atrás não havia lei regulamentando o estágio. Em decorrência dessa lacuna, foi baixada a Portaria n° 1.002 de 29 de setembro de 1967, na qual o Ministro do Trabalho e Previdência Social, Jarbas Passarinho, dispôs que “os estagiários contratados através de Bolsas de Complementação Educacional não terão, para quaisquer efeitos, vínculo empregatício com as empresas, cabendo a estas apenas o pagamento da Bolsa, durante o período do estágio” (MARTINS, 2009, p. 4, grifo nosso). Não existia, portanto, relação de emprego entre as partes, no entanto, ao estagiário seria fornecida Carteira Profissional de Estagiário, expedida pelo Ministério do Trabalho, mediante declaração firmada pelo diretor do estabelecimento de ensino interessado. Não obstante a edição dessa Portaria, que introduzia o instituto no mundo jurídico, verifica-se que a mesma violava o princípio da legalidade, tendo em vista estabelecer obrigações e criar direitos não previstos em lei até então. Daí, a análise de relação empregatícia entre as partes deveria ser analisada em cada caso. Anos após, foi editado o Decreto n° 69.927, de 13 de janeiro de 1972, no qual criou o Programa Bolsa de Trabalho e estabeleceu a necessária relação entre a formação escolar seguida pelo estudante e as tarefas que lhe fossem cometidas no órgão ou entidade onde presta serviços, para que fosse considerado estágio, sem vínculo de emprego. Assim, tal regulamentação significou grande avanço para os estudantes que fossem contratados como estagiários. Entretanto, somente em 1977 foi editada uma lei, a de n° 6.494, disciplinando mais profundamente as peculiaridades do assunto, porém, era falha no sentido de não exigir uma relação entre curso graduando do estudante com o estágio respectivo. Assim dava brecha para as empresas mascararem um subemprego. 184 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Em 1996 houve uma inovação nesse instituto. A Lei n° 9.394 permitiu às instituições de ensino o direito de editarem normas disciplinadoras do estágio, no ensino médio ou superior. Ademais, dispôs que poderia haver a bolsa, seguro contra acidente e cobertura previdenciária, prevista na legislação específica. Após, em 2001, o artigo 6º da Medida Provisória n° 2.164-41 alterou o parágrafo 1º do artigo 1° da Lei n° 6.494 para constar a necessidade de presença do aluno no curso de educação superior, de ensino médio, de educação profissional de nível médio ou superior ou escolas de educação especial, proibindo, entretanto, o estágio nos casos de cursos supletivos. A recém editada Lei n° 11.788, intitulada “Nova Lei de Estágio” no vocábulo popular, revogou expressamente as Leis anteriores, n° 6.494/77 e 8.859/94 e o artigo 6° da Medida Provisória n° 2.164-41. Atualmente, o estágio é considerado um negócio jurídico celebrado entre o estagiário e o concedente, sob a supervisão da instituição de ensino, mediante subordinação ao primeiro, visando a sua educação profissional. É, portanto, considerado ato educativo escolar; uma forma de integração entre o que a pessoa aprende na escola e aplica na prática. É importante ressaltar as diferenças entre as legislações: a Lei n° 6.494/77 dividia o estágio em curricular e comunitário, onde o primeiro compreendia as atividades de aprendizagem social, profissional e cultural, proporcionadas ao estudante pela participação em situações reais de vida e de trabalho em seu meio; já o comunitário tinha como objetivo o combate às enchentes ou a promoção de alfabetização de populações carentes. Diferentemente dos dias atuais, de acordo com Oliveira (2009), que diferencia o ramo entre obrigatório ou não obrigatório, no qual o primeiro é aquele definido como tal no projeto do curso; sua carga horária é uma exigência imprescindível para aprovação e obtenção do diploma, enquanto que o outro é aquele desenvolvido por livre escolha ou como atividade opcional, acrescida à carga horária regular e obrigatória. 3. DEFINIÇÃO DE ESTÁGIO Pode-se definir o estágio como Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 185 ato educativo escolar supervisionado voltado para a preparação para o trabalho produtivo de educandos, desenvolvido no ambiente de trabalho. O estágio deve fazer parte do projeto pedagógico do curso, além de integrar o itinerário formativo do educando, e visa o aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização curricular. O estágio pode ser obrigatório, quando estiver incluído no projeto acadêmico do curso, inclusive como requisito prévio para a aprovação do aluno e a obtenção do correspondente diploma, ou não-obrigatório, quando puder ser desenvolvido como atividade opcional. Eventualmente, atividades de extensão, de monitorias e de iniciação científica na educação superior poderão ser equiparadas ao estágio, se previstas no projeto pedagógico do curso. Qualquer que seja a modalidade, todavia, o estágio não gera vínculo empregatício, nem vinculação previdenciária, podendo o estagiário, por ato volitivo, inscrever-se como segurado facultativo na Previdência Social. (SCHWARZ, 2009, p. 30, grifo nosso). De acordo com a Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008, podem celebrar contrato, como estagiários, os estudantes regularmente matriculados e freqüentando o ensino regular, inclusive a modalidade à distância (EAD), em instituições de ensino superior, de educação profissional, de ensino médio, de educação especial (aquela oferecida para portadores de necessidades especiais) e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos (aquela oferecida com o propósito de desenvolver o ensino fundamental e médio para aqueles que não estão mais em idade escolar). A realização de estágios aplica-se também aos estudante estrangeiros regularmente matriculados em cursos superiores no País, autorizados ou reconhecidos, observado o prazo do visto temporário de estudante, na forma da legislação aplicável. Entretanto, não há referência na lei à idade mínima (tampouco máxima) para estagiar, mas, segundo a Constituição Brasileira e o Estatuto da Criança e do Adolescente, é proibido o exercício de atividade profissional antes do dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz (contrato especial regido pelo artigo 428 da CLT). Assim, conclui-se que o estagiário deve estar, pelo menos, com dezesseis anos completos para o exercício dessa função. Nesse caso, (sendo relativamente ou absolutamente incapazes, como os menores de dezoito e portadores de deficiência mental, por exemplo), o contrato será firmado com seu representante ou assistente legal. 186 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 4. REQUISITOS Há obrigações de natureza principal, que são imprescindíveis, como a necessidade do contrato do termo de compromisso ser estabelecido por escrito (formal), etc. E também há as obrigações acessórias, como o pagamento de bolsa, auxílio-transporte, concessão de recesso e seguro contra acidentes pessoais. Coincidentemente, do mesmo modo que o contrato de trabalho, o contrato de estágio tem característica pessoal (intuitu personae), pois é firmado com o estudante, não podendo ser substituído por outra pessoa. No entanto, esse instituto, diferentemente do outro, é triangular ou tripartite, pois há uma relação entre três pessoas, o estudante, o concedente e a instituição de ensino. É de trato sucessivo, pois abrange prestações periódicas, não se exaurindo numa única prestação, ou seja, deve ser diário. Além disso, há a subordinação, no qual o estudante deve obedecer às ordens de serviço do tomador. A essa subordinação, pode-se dizer que é uma situação atípica, pois não configura o vínculo de emprego entre as partes, como já dito anteriormente. Mas uma característica diferencial é a necessidade do estudante possuir freqüência na escola, bem como o local de realização do estágio ser adequado para o mesmo, com condições próprias para sua formação. Se assim não o for, pode haver a caracterização de vínculo empregatício, gerando conseguinte, direitos trabalhistas e previdenciários. Veja uma jurisprudência nesse sentido: EMENTA: CONTRATO DE ESTÁGIO. CARACTERIZAÇÃO DO VÍNCULO DE EMPREGO. Não basta o atendimento às exigências formais da Lei 6.494/77 e do Decreto 87.497/82, para a configuração do contrato de estágio. Havendo nos autos elementos fáticos que levam a concluir pela intenção de fraude à legislação trabalhista, uma vez que o estágio serviu apenas para atender à atividade empresarial desenvolvida pela reclamada, tendo o autor laborado nas mesmas condições dos demais empregados do setor, sem que tenha sido atendido o objetivo legal de proporcionar ao estudante-estagiário a complementação efetiva para sua formação educacional e profissional, impõese o reconhecimento do vínculo empregatício, sendo devidas as parcelas trabalhistas postuladas. (BRASIL, 2010, grifo nosso) Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 187 Não obstante referido julgado ser do ano de 2003, tal posicionamento continua sendo firmado nas decisões atuais, observando, contudo, a legislação recente. No entanto, no serviço público há um obstáculo para o reconhecimento da condição de empregado do estágio feito em desacordo com a lei, que é a existência do concurso público. Inexistindo este, não há que se falar na condição de empregado, conforme a Constituição Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Ademais, é de grande valia ressaltar que o estágio possui como requisito objetivo a matrícula e a freqüência, termo de compromisso, compatibilidade nas atividades desenvolvidas, acompanhamento do estagiário por professororientador e prazo máximo de dois anos. Já o requisito subjetivo é formado pelas partes da relação triangular supracitada. O termo de compromisso é celebrado entre o estudante, a parte concedente e a instituição de ensino. Ele deve ser, obrigatoriamente, escrito, sendo vedada a atuação dos agentes de integração como representante de quaisquer das partes (BRASIL, 2009, Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008). Estes (últimos) devem, no exercício de suas funções, identificar oportunidades de estágio; ajustar suas condições de realização; fazer o acompanhamento administrativo; encaminhar negociação de seguros contra acidentes pessoais e cadastrar os estudantes. Também é acessório, conforme Martins (2009), devendo haver um contrato originário (entre a instituição de ensino e a pessoa física ou jurídica), denominado convênio ou acordo de cooperação. No entanto, a lei 11.788 dispõe que Art. 8º É facultado às instituições de ensino celebrar com entes públicos e privados convênio de concessão de estágio, nos quais se explicitem o processo educativo compreendido nas atividades programadas para seus educandos e as condições de que tratam os arts. 6º a 14 desta Lei. Parágrafo único. A celebração de convênio de concessão de estágio entre a instituição de ensino e a parte concedente não dispensa a celebração do termo de compromisso de que trata o inciso II do caput do art. 3o desta Lei. (BRASIL, 2009, p. 1.300, grifo nosso) Com isso, verifica-se a imprescindibilidade da realização do termo de compromisso e a faculdade de celebração do convênio, diante de imposição do 188 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. artigo 8º acima mencionado. Informa, ainda, que mesmo na hipótese de existência do convênio não será dispensada a celebração de termo de compromisso. Além disso, o estágio, como ato educativo escolar supervisionado, deverá ter acompanhamento efetivo pelo professor orientador da instituição de ensino e por supervisor da parte concedente, comprovado por vistos nos relatórios e por menção de aprovação final (BRASIL, 2009, Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008). 5 DIREITOS E DEVERES 5.1 Número máximo de estagiários O limite de estagiários em relação aos empregados da empresa é apresentado no artigo 17 da Lei do Estágio. Visa evitar a transformação de empregos em estágios a fim de não ter vínculo trabalhista e assim, diminuir os gastos da empresa com a folha de pagamentos. Porém, essa disposição não se aplica para estudantes de nível superior ou de nível médio profissional. Logo, só se aplica para as demais modalidades de estágio: educação profissional, educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, no qual a lei não especificou as séries, mas por razoabilidade pode-se concluir se tratar da 5ª à 9ª séries. No mesmo artigo consta a necessidade de preenchimento de 10% das vagas por deficientes. Entretanto, tal obrigação também não se aplica aos estudantes de nível superior ou de nível médio profissional. 5.2 Agente de integração Sobre referido tema a Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008, reza que: as instituições de ensino e as partes cedentes de estágio podem, a seu critério, recorrer a serviços de agentes de integração públicos e privados, mediante condições acordadas em instrumento jurídico apropriado, devendo ser observada, no caso de contratação com recursos públicos, a legislação que estabelece as normas gerais de licitação. Não existe, portanto, obrigação de recorrer aos agentes de integração, mas apenas a faculdade. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 189 Eles funcionam como meros auxiliares/intermediários entre as escolas e as entidades interessadas em conceder o estágio, indicando o estagiário apropriado para as necessidades do órgão/empresa contratante. Ademais, contribuem para o aperfeiçoamento do instituto na medida em que identificam oportunidades de estágio; ajustam suas condições de realização; fazem o acompanhamento administrativo; encaminham negociação de seguros contra acidentes pessoais e cadastram os estudantes. No mesmo artigo supramencionado existe a proibição de cobrança de valores dos estudantes, no entanto, não há previsão legal vedando tal cobrança das instituições de ensino ou mesmo dos concedentes do estágio, tornando-a lícita, portanto, para esses sujeitos. Insta salientar que quando a contratação for realizada por recursos públicos, deve-se levar em conta o disposto na Lei 8.666/96 que trata de licitação. Usado em demasia, os agentes de integração serão responsabilizados civilmente se indicarem estagiários para a realização de atividades não compatíveis com a programação curricular estabelecida para cada curso, assim como estagiários matriculados em cursos ou instituições para as quais não há previsão de estágio curricular. 5.3 Prazo De acordo com a Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008, a duração do estágio, na mesma parte concedente, não pode exceder a dois anos, exceto quando se tratar de portador de deficiência. Este tempo é considerado um prazo razoável para a qualificação do estagiário. Portanto, caso supere esse lapso temporal, haverá a configuração de vínculo de emprego, pois estará descumprindo um dos requisitos essenciais, previsto em lei, para a validade do negócio jurídico. Mesmo se houver a prorrogação do contrato de estágio, esse limite de dois anos também deve ser observado. Assim, o contrato pode ser feito por 16 (dezesseis) meses e prorrogado por 8 (oito), totalizando 24 (vinte e quatro). Já os deficientes poderão fazer o estágio por mais de dois anos, visto que a lei não estabeleceu limite máximo de duração neste caso específico, porém, deve durar enquanto estiver estudando, afinal, findado o curso, não há que se falar em estágio. 190 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Quanto ao prazo mínimo, por não ter sido fixado em lei, entende-se que é de seis meses, afinal é este o período exigido para a apresentação dos relatórios das atividades (BRASIL, 2009, Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008). Analisando bem, percebe-se que a lei tem o fator positivo de limitar o estágio no máximo de dois anos, visando evitar fraudes. Entretanto, tem o fator negativo que impede a continuidade do estágio por mais de dois anos no mesmo concedente, necessitando o estagiário fazer vários estágios se quiser se preparar melhor para exercer sua profissão desde o primeiro ano. Terminando o contrato de estágio, é possível ser feito em seguida um contrato de trabalho, sem que seja preciso observar nenhum prazo entre o término de um pacto e o início do outro. Ou seja, se o estudante continua trabalhando na empresa depois de terminado o prazo de estágio, presume-se que ele o faz na condição de empregado, já que o estágio terminou. 5.4 Bolsa A Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008 dispõe que: “O estagiário poderá receber bolsa ou outra forma de contraprestação que venha a ser acordada, sendo compulsória a sua concessão, bem como a do auxílio-transporte, na hipótese de estágio não obrigatório.” No entanto, esse trecho é ambíguo e contraditório, levando-se em consideração a obrigação ou não da bolsa, pois, inicia dizendo que o estagiário poderá receber, mas ao final escreve que é compulsória a sua concessão. No entanto, a melhor interpretação da norma é no sentido que a concessão da bolsa é obrigatória apenas na hipótese de estágio não obrigatório, pois a lei emprega a palavra compulsória para esse caso. E no estágio obrigatório, a mesma será facultativa. Mas, ao ater-se para a condição sócio-econômica dos estudantes, ir-se-á confrontar com tal disposição. Afinal, esse estagiário que o é por obrigação do curso, também deve precisar de dinheiro para o pagamento de seu ensino. Insta esclarecer que a bolsa não tem natureza salarial. Sobre ela não incide contribuição previdenciária nem tampouco de FGTS, entretanto, é rendimento e poderá ter tributação pelo Imposto de Renda, desde que seja excedido pelo limite máximo de isenção. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 191 Por não existir limite mínimo nem máximo, será o que for acordado entre as partes. Agora, havendo falta injustificada, a mesma poderá ser descontada da bolsa respectiva. Caso contrário, se o estudante justificar sua ausência, pode o concedente aboná-la, desde que isso tenha sido acordado entre as partes, ou seja decorrente do costume habitual, no entanto, o ideal seria aplicar o art. 473 da CLT para considerar as faltas justificadas. A eventual concessão de benefícios relacionados a transporte, alimentação e saúde, entre outros, não caracteriza vínculo empregatício. O que caracteriza vínculo de emprego é o descumprimento das determinações da Lei. Excetuando o auxílio-transporte, que é imprescindível para os estágios não obrigatórios, esses benefícios tratam-se apenas de vantagens ao estudante, um plus. A bolsa também poderá ser concedida sob forma de utilidades, como pagamento de moradia do estudante. Mas não será aplicável o art. 82 da CLT, por falta de previsão em lei nesse sentido. Portanto, fica excluída a necessidade de se pagar 30% da bolsa em dinheiro e o restante em utilidades. 5.5 Jornada Jornada é o período diário que o empregado fica à disposição do empregador para prestar o trabalho. Horário é o espaço de tempo entre o início e o término do trabalho. De acordo com a Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008: Art. 10 - A jornada de atividade em estágio será definida de comum acordo entre a instituição de ensino, a parte concedente e o aluno estagiário ou seu representante legal, devendo constar do termo de compromisso ser compatível com as atividades escolares e não ultrapassar: I – 4 (quatro) horas diárias e 20 (vinte) horas semanais, no caso de estudantes de educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional de educação de jovens e adultos; II – 6 (seis) horas diárias e 30 (trinta) horas semanais, no caso de estudantes do ensino superior, da educação profissional de nível médio e do ensino médio regular. (...) 192 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Referido texto legal compreende a jornada de atividade máxima dos estudantes, ficando a jornada mínima, ou seja, a que efetivamente se cumprirá, de acordo com a vontade das partes. Antes, quando vigia a Lei anterior (n° 6.494/77), não havia previsão da jornada de trabalho do estagiário. Apenas estabelecia que a mesma deveria se compatibilizar com o horário escolar. Ainda não há previsão legal em relação à horas extras, nem tampouco à compensação de hora, no entanto, devem as partes observar o que foi pactuado para que não haja o reconhecimento de vínculo de emprego pelo trabalho além da jornada. Caso haja o descumprimento, restará caracterizado o disposto no art. 15 da Lei 11.788, penalizando, portanto, o concedente de estágio. Ao revés, se a instituição de ensino adotar verificações de aprendizagem periódicas ou finais, nos períodos de avaliação, a carga horária do estagiário será reduzida pela metade, para garantir o bom desempenho do estudante (BRASIL, 2009, p. 1.301, Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008). Isso ocorrerá nos períodos de provas. Não há previsão para pagamento do adicional noturno e de redução da hora para este turno. No entanto, para que o estudante trabalhe depois das 22 (vinte e duas) horas, deverá possuir mais de 18 (dezoito) anos, diante de expressa disposição constotucional. 5.6 Recesso O estágio com duração igual ou superior a 1(um) ano, concede ao estudante um recesso de 30 (trinta) dias, a ser gozado preferencialmente durante as suas férias escolares, conforme Brasil (2009, Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008). A lei passa a determinar o recesso como o período em que o estagiário não irá trabalhar, pois as férias são concedidas apenas à empregados. Ele se justifica pela mesma razão das férias, ou seja, fundamento de ordem biológica, social e econômica. O estagiário, depois de certo tempo, também está cansado e precisa repor as suas energias. Esse direito é indisponível. Portanto, não poderá ser renunciado, pois é questão de ordem pública, concernente ao descanso do estagiário. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 193 A palavra preferencialmente descrita no artigo, diz respeito à possibilidade de escolha do estagiário da data em que desejo gozar do recesso. Assim, conclui-se que o mesmo não será fixado por ato unilateral do concedente do estágio. O interesse deve ser do estagiário, de forma que haja um melhor aprendizado e aproveitamento na escola. O recesso será remunerado apenas quando o estudante receber bolsa ou outra forma de contraprestação. Caso contrário, haverá somente a obrigação de concessão do recesso. O mesmo pode ser proporcional ao período trabalhado (BRASIL, 2009, Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008), mas em qualquer caso, não haverá o pagamento de 1/3, por não haver previsão legal. 5.7 Auxílio-transporte O estagiário terá direito a auxílio-transporte na hipótese de estágio não obrigatório (BRASIL, 2009, Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008). No entanto, o concedente não poderá descontar 6% do valor da bolsa, eis que não observase a Lei n° 7.418/86. Ou seja, esse caso não se trata de vale-transporte, mas de auxílio-transporte. Logo, não se aplicam as regras da Lei n° 7.418/86. Esse auxílio não tem natureza de contraprestação do trabalho, mas de ressarcimento pelo transporte utilizado e pelo deslocamento feito pelo estagiário para ir e voltar da empresa. 5.8 Seguro Na Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008, existe a necessidade do concedente de estágio contratar, em favor do estagiário, seguro contra acidentes pessoais, cuja apólice seja compatível com valores de mercado, conforme fique estabelecido no termo de compromisso. Não se trata de faculdade, mas de obrigação. Ademais, não diferencia os estagiários, em obrigatórios e não obrigatórios. Nos dois haverá a necessidade de ser feito o seguro contra acidentes pessoais. Outra peculariedade é que o seguro diz respeito a acidentes pessoais e não acidentes de trabalho, pois o estagiário não é empregado para se falar em acidente de trablaho. 194 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. O seu objetivo é cobrir a morte ou invalidez permanente do segurado. No entanto, o valor da indenização será conforme o concedente achar razoável, mas deve ficar atento que este valor deve ser compatível com o valor de mercado. 5.9 Segurança e saúde no trabalho Observa-se ao estagiário a legislação relacionada à saúde e à segurança do trabalho, sendo sua implementação de responsabilidade da parte concedente do estágio (BRASIL, 2009, Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008). A Constituição Federativa do Brasil prevê que a saúde é um direito social e é dever do Estado. Logo, também é um direito do estagiário. Devem, portanto, serem observadas as regras de segurança e medicina do trabalho, como as contidas nos artigos 154 a 201 da CLT e na Portaria 3.214/78 do Ministério do Trabalho. Haverá, dessa maneira, necessidade de exame médico admissional, periódico e demissional. Além disso, deve haver o fornecimento de EPI (equipamento de proteção individual). Nada obstante, a aplicação dessas normas de saúde e segurança não implicam no pagamento de adicional de insalubridade e de periculosidade, pois o adicional tem natureza de salário. O estagiário menor de 18 (dezoito) anos, fica proibido de trabalhar em ambiente insalubre ou perigoso, em razão da previsão do inciso XXXIII do art. 7° da Carta Magna, já citado anteriormente. 6. VANTAGENS E DESVANTAGENS O estágio, quando visto como uma atividade que pode trazer imensos benefícios para a aprendizagem, para a melhoria do ensino e para o estagiário, no que diz respeito à sua formação, certamente trará resultados positivos. Esses resultados são ainda mais importantes quando se tem consciência de que a maior beneficiada será a sociedade e, em especial, a comunidade a que se destinam os profissionais egressos da universidades. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 195 Estagiar é tarefa do aluno; supervisionar é incumbência da faculdade, que está representada pelo professor. Acompanhar, fisicamente se possível, tornando essa atividade incomum, produtiva, é tarefa do professor que visualiza com o aluno situações de trabalho passíveis de orientação. Compete ao aluno estar atento, demonstrar seu conhecimento pela teoria aprendida, realizar seu trabalho com dignidade, procurando, em sua área de atuação, demonstrar que tem competência, com simplicidade, humildade e firmeza, lembrando-se que ser humilde é saber ouvir para aprender, e ser simples é ter conceitos claros e saber demonstrá-los de maneira cordial. É necessário que os professores incentivem seus alunos a se valorizarem, assim, não se sujeitarão a estágios que tenham que exercer funções não condizentes com sua condição de universitários, de futuros profissionais a que se destinam. Insta salientar que bons estagiários costumam, muitas das vezes, serem contratados pela empresa a que prestam serviços, tornando-se empregados efetivos. Compete às instituições, sob a nova visão de ensino, dedicar-se também à comunidade e, neste caso, oferecer subsídios para que as organizações recebam condignamente os estagiários. Importante, ético e moral é entender o que é válido no estágio. Certamente, não é a nota ou o conceito obtido após sua realização, nem tampouco a carga horária cumprida, mas saber que foi realizado um trabalho cuja aplicação demonstrou o cumprimento de seu dever de preparar o aluno para uma profissão. É necessário que alunos e professores coloquem a escola atual à frente das necessidades da comunidade e do mercado de trabalho. A parceria teoria/ prática é capaz de formar cidadãos e profissionais competentes, aptos para um trabalho digno do papel que desempenharão na sociedade. Finalmente, espera-se que todos os envolvidos no estágio façam dessa atividade, que pode ser marcante na profissionalização do estudante e na melhoria da qualidade do ensino, um auxiliar importante e certamente indispensável para que se atinjam os objetivos da escola e da comunidade. Ainda que de curial importância, existem dificuldades no processo e no acesso do aluno ao estágio, tais como a restrição de informações, pela organização 196 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. concedente, por receio de divulgação de informações importantes ou outro motivo. A recompensa para o estagiário na realização de um bom estágio, seguro e bem orientado se dará nos resultados positivos na carreira que pretende seguir. É importante frisar que a legislação, referente ao estágio curricular supervisionado deve ser acompanhada pelas instituições, para proporcionar aos acadêmicos um melhor aproveitamento das oportunidades que lhe são oferecidas por ocasião de sua atuação na empresa. Assim, conclui-se que inúmeras são as vantagens existentes na elaboração do contrato de estágio, sendo uma delas a experiência adquirida na prática, antes de terminar o curso, podendo, como já dito, posteriormente, este estudante ser contratado como profissional pela empresa concedente. Além disso, a empresa possui um trabalhador em formação da área respectiva a um baixo custo e sem serem reconhecidos vínculos empregatícios e a bolsa auxilia o estudante a pagar a faculdade ou mesmo no seu orçamento familiar. Não obstante, ao revés das vantagens, existem também desvantagens, sendo a primordial o fato do “trabalhador” ser muitas das vezes explorado pelo concedente. Além disso, quando dura oito horas, afeta no rendimento escolar, afinal não há tempo para estudar. 7. DISTINÇÃO ENTRE O ESTAGIÁRIO E O APRENDIZ A diferença entre o estágio e o contrato de trabalho encontra-se no fato de que no primeiro o objetivo é a formação profissional do estagiário, tendo, portanto, finalidade pedagógica, embora haja pessoalidade, subordinação, continuidade e uma forma de contraprestação. Assim, para haver estágio, é preciso a observância dos requisitos formais previstos na “Nova Lei”. É necessária a elaboração de termo de compromisso entre o estudante e a parte cedente e a intervenção da instituição de ensino para supervisionar tal situação. Faz-se necessário observar que o estágio também se distingue do aprendizado. O primeiro tem característica escolar, enquanto que no outro o Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 197 objetivo é a formação da mão-de-obra. Assim, o aprendiz sempre será empregado, porém trata-se de um contrato de trabalho especial. A natureza do estágio é a de formação, de educação, mas também compreende o aspecto do trabalho, não de emprego. Assim, não pode ser considerado o primeiro emprego, mas pode ser compreendido como o primeiro trabalho. Têm natureza civil, pois é celebrado entre pessoas civis e é um procedimento de integração de jovens junto à comunidade a que pertencem. 8 ESTÁGIO NO CURSO DE DIREITO Os graduandos do curso de Direito possuem como legislação especial o Estatuto da OAB (Lei 8.906/94). Nele está disposto, em seu parágrafo 1º do art. 9º, que: o estágio profissional de advocacia, com duração de dois anos, realizado nos últimos anos do curso jurídico, pode ser mantido pelas respectivas instituições de ensino superior, pelos Conselhos da OAB, ou por setores, órgãos jurídicos e escritórios de advocacia credenciados pela OAB, sendo obrigatório o estudo deste Estatuto e do Código de Ética e Disciplina. Insta esclarecer que a Lei 11.788 trata do estágio em geral, enquanto que a Lei 8.906/94 estabelece os requisitos específicos para os estagiários em Direito. Assim, esse graduado pode fazer o estágio, após ter se formado, como preparação para ingressar na Ordem dos Advogados (parágrafo 4° do artigo 9º da Lei 8.906/94), ao contrário do que dispõe a Lei 11.788/08 (que caracterizaria, em regra, relação empregatícia). Mas isso tem a finalidade de ingresso na condição de advogado, eis que será avaliado por uma prova objetiva e outra dissertativa. Conforme Acquaviva (2009, p.368, grifo nosso): o estágio de prática jurídica tornou-se obrigatório, por determinação da Portaria n° 1.886, de 30.12.1994, do Ministério da Educação e do Desporto, cujo art. 10, caput, determina : “O estágio de prática jurídica, supervisionado pela instituição de ensino superior, será obrigatório e integrante do currículo pleno, em um total mínimo de 300 (trezentas) horas de atividades práticas simuladas e reais desenvolvidas pelo aluno sob controle e orientação do núcleo 198 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. correspondente.” O núcleo de prática jurídica, coordenado por professores do curso, disporá de instalações adequadas para treinamento das atividades profissionais de advocacia magistratura, Ministério Público, demais profissões jurídicas e para atendimento ao público. As atividades de prática jurídica poderão ser complementadas mediante convênio com a Defensoria Pública e outras entidades públicas, judiciárias, empresariais, comunitárias e sindicais que possibilitem a participação dos alunos na prestação de serviços jurídicos e em assistência jurídica, ou em juizados especiais que venham a ser instalados em dependência da própria instituição de ensino superior. As atividades de estágio supervisionado serão exclusivamente práticas, incluindo redação de peças processuais e profissionais, rotinas processuais, assistência e atuação em audiências e sessões, visitas aos órgãos do poder judiciário, prestação de serviços jurídicos e técnicas de negociação coletiva, arbitragens e conciliação, sob o controle, orientação e avaliação do núcleo de prática jurídica. Assim, nota-se atividades que deveriam ser exercidas por todos os estagiários de Direito, com a finalidade de atuarem, concretamente, como um futuro advogado. Mesmo que assim não seja (que esse estagiário (a) não queira/venha exercer a profissão de advogado), tal experiência é primordial para o aprendizado jurídico prático até mesmo para atuar como um membro do Ministério Público, ou da Magistratura, ou como servidor do Tribunal de Justiça ou de outro Tribunal, ou como Defensor Público, ou mesmo Procurador, ou outro cargo privativo aos bacharéis de Direito. Nota-se, por conseguinte, que a ausência do aprendizado prático pode gerar uma defasagem ao egresso, pois as leis estão em constante mutação e se não souberem como aplicá-las, se formarão, pegarão o diploma, mas ficarão com conhecimentos teóricos ultrapassados. Em 2002, por exemplo, quem se formou teve que se adequar, no ano seguinte, às novas normas disciplinadas no Código Civil, que passaram a viger somente em 2003, ou seja, toda a teoria aprendida na instituição de ensino foi modificada, mas para quem sabia a aplicação prática daquela teoria, soube se adequar, com mais facilidade, aos ditames legais. Com isso, conclui-se que o estágio de Direito é demasiadamente importante na vida de um bacharel do referido curso; imprescindível para Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 199 que o estudante possa apreender, verdadeiramente, todas as lições que lhe foram passadas em sala de aula. O desvio da sua função, por sua vez, influirá, gradativamente, em seus conhecimentos jurídicos e assim, conseqüentemente, no futuro profissional que virá. 9. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008 ao regular o ato educativo escolar supervisionado, tem por finalidade a tutela da preparação para o trabalho produtivo. Os graduandos do curso de Direito possuem como legislação especial o Estatuto da OAB (Lei 8.906/94). Insta esclarecer que a Lei 11.788 trata do estágio em geral, enquanto que a Lei 8.906/94 estabelece os requisitos específicos para os estagiários em Direito. O estágio de Direito é demasiadamente importante na vida de um bacharel do referido curso; imprescindível para que o estudante possa apreender, verdadeiramente, todas as lições que lhe foram passadas em sala de aula. A relevância do estágio impõe a necessidade de investimento em políticas públicas de conscientização da sociedade sobre o instituto. A efetivação da medida supracitada irá fortalecer, demasiadamente, o instituto que só tem a agregar a carreira de um futuro graduado num curso que visa a busca incessante pela Justiça. 10. REFERÊNCIAS ALMEIDA, André Luiz Paes de. Direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: Rideel, 2009. ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Acquaviva. 3. ed. São Paulo: Rideel, 2009. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2009. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988: atualizada até a Emenda Constitucional n. 57, de 18.12.2008. In: Vade Mecum Rideel. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 200 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. ______. Decreto Lei n. 5.452, de 01 de maio de 1943. Consolidação das Leis do Trabalho. In: Vade Mecum Rideel. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. ______. Lei 4.657, de 04 de setembro de 1942. Institui o Código Civil. . In: Vade Mecum Rideel. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. ______. Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008. Dispõe sobre o estágio de estudantes e dá outras providências. In: Vade Mecum Rideel. 8. ed. São Paulo: Rideel, 2009. ______. Lei 8.906, de 04 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB. In: Vade Mecum Rideel. 8. ed. São Paulo: Rideel, 2009. ______. Orientações Jurisprudenciais da Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho. In: Vade Mecum Rideel. 8. ed. São Paulo: Rideel, 2009. ______. Tribunal Regional do Trabalho. Recurso Ordinário. Contrato de estágio. Caracaterização do vínculo de emprego. Recurso Ordinário n° 00007-2003-008-0300-7 RO da Primeira Turma, Rel. Des. Maria Laura Franco Lima de Faria, 23 de maio de 2003. Disponível em <http://as1.trt3.jus.br/jurisprudencia/ementa.do?evento =Detalhe&idAcordao=330891&codProcesso=326522&datPublicacao=23/05/20 03&index=11> Acesso em: 14 abril 2010. CASSAR, Volia Bomfim. Direito do trabalho. Niterói: Impetrus, 2008. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 8. ed. São Paulo: LTr, 2009. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese dos Indicadores Sociais de 2007. Disponível em <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_ impressao.php?id_noticia=987> Acesso em: 14 maio 2010. ______. População Brasileira: Demografia do Brasil, dados, etnias, taxas de natalidade e mortalidade, crescimento populacional. 2007. Disponível em: <http://www. suapesquisa.com/geografia/populacao_brasileira.htm>. Acesso: 14 maio 2010. INSTITUTO LOBO. Será que você vai se formar? 2007. Disponível em: <http://www. universia.com.br/universitario/materia.jsp?materia=13072>. Acesso em: 14 maio 2010. MARTINEZ, Wladimir Novaes. Estágio Profissional: 1.420 perguntas e respostas. São Paulo: LTr, 2009. MARTINS, Sérgio Pinto. Estágio e relação de emprego. Revista IOB – Trabalhista e Previdenciária, São Paulo, SP, ano XX, n 235, p. 07-52, jan. 2009. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 201 ______, Sérgio Pinto. Estágio e Relação de Emprego. Revista IOB - Trabalhista e Previdenciária, São Paulo, SP, ano XX, n. 235, p. 07-28, jan. 2009. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Evolução da Educação Superior: Graduação. 2007. Disponível em: <http://www.inep.gov.br/superior/censosuperior/evolucao/ evolucao.htm>. Acesso: 14 maio 2010. ______. Relatórios Técnicos. 2008. Disponível em: <http://www.inep.gov.br/download/ censo/2008/resumo_tecnico_2008_15_12_09.pdf> Acesso em: 14 maio 2010. ______. Sinopses Estatísticas da Educação Superior: Graduação. 2008. Disponível em: <http://www.inep.gov.br/superior/censosuperior/sinopse/default.asp> Acesso em: 14 maio 2010. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Classificação das faculdades de direito de Minas Gerais no Exame de Ordem no período de 2002 à 2007. 2007. Disponível em: <http://www.oabmg.org.br/exame_oab/INDICE02_07.pdf>. Acesso em: 14 maio 2010. ______. Código de Ética e Disciplina da OAB. Brasília, DF. 1995. Disponível em: <http:// www.oabmg.org.br/pdf/CodEticaDisciplina.pdf>. Acesso em: 14 maio 2010. OLIVEIRA, Aristeu de. Estágio, trabalho temporário e trabalho de tempo parcial. São Paulo: Atlas, 2009. TESTA, LUCIANO. Estágio na faculdade é a chance de começar a carreira. 2010. Disponível em: <http://www.universia.com.br/universitario/materia.jsp?id=19616>. Acesso em: 14 maio 2010. SCHWARZ, Rodrigo Garcia. A Nova Lei de Estágio e os Seus Desdobramentos. Revista IOB - Trabalhista e Previdenciária, São Paulo, SP, ano XX, n. 235, p. 29-52, jan. 2009. Recebido em: 19/05/2012. Aceito em: 19/06/2012. 202 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. HOMOCONJUGALIDADE & JUSTIÇA: DA POSSIBILIDADE JURÍDICA DO CASAMENTO HOMOAFETIVO À IGUALDADE VIRTUAL? Aparecido Januário JÚNIOR1 Fábio Jun CAPUCHO2 José MANFROI3 RESUMO: neste artigo são reunidas reflexões sobre os aspectos sóciojurídicos da homoconjugalidade. O ponto de partida é a questão da impossibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo, que nega direitos conjugais de gays, lésbicas, travestis e transexuais, sendo, por conseguinte, uma expressa negação de sua condição de cidadãos. Em princípio, algumas teses são elencadas para a constitucionalidade desse direito. Por fim, advoga-se pela equiparação de direitos, respeitando o princípio da igualdade como princípio da anti-subjugação para que o debate da conjugalidade homoafetiva não advenha numa igualdade virtual. PALAVRAS-CHAVE: União homoafetiva; Cidadania sexual; Igualdade virtual. Abstract: in this article there are reflections on the socio-legal aspects of homoconjugality. The starting point is the question of the legal impossibility of homoaffective marriage, denying conjugal rights of gays, lesbians, transvestites and transsexuals, that are a explicit denial of their citizenship. In principle, some theses are listed for the constitutionality of that law. Finally, there is a advocacy for the equality of rights, respecting the principle of equality as a principle of anti-subjection for the discussion of homoaffective conjugality doesn’t become a virtual equality. Keywords: Homoaffective union; Sexual citizenship; Virtual equality. 1. INTRODUÇÃO O século XX é marcado por um processo de crescente intervenção estatal por meio de legislação infraconstitucional, o que é uma característica do Acadêmico do curso de Direito da Universidade Católica Dom Bosco. E-mail: [email protected]. Doutorando em Direito pela USP e professor orientador da UCDB. E-mail: [email protected]. 3 Doutor em Educação pela UNESP e professor orientador da UCDB. E-mail: [email protected]. 1 2 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 203 Estado Social. Esse processo é denominado de publicização do direito privado e não se confunde com a constitucionalização que tem por fito “submeter o direito positivo aos fundamentos de validade constitucionalmente estabelecidos”.4 Essa ação intervencionista e dirigista do legislador foi uma reação à tradição patrimonialista e individualista, que garantia apenas uma igualdade formal e uma liberdade jurídica sem a liberdade fática e sem os elementos materiais necessários ao exercício da cidadania, consumando o chamado darwinismo jurídico. A codificação civil liberal ligada à tradição patrimonialista do direito civil tinha a propriedade como valor necessário da realização da pessoa. Entretanto, o paradigma do Estado Social forçou um deslocamento nas dimensões materiais do direito civil, repondo “a pessoa humana como centro do direito civil, passando o patrimônio ao papel de coadjuvante, nem sempre necessário”5. Essa repersonalização, aliada à afetividade, à pluralidade e ao eudemonismo, impingiu nova roupagem axiológica ao Direito das Famílias6. Verifica-se, assim, a substituição da tradição patrimonialista do direito civil pelas tendências de repersonalização e constitucionalização, como decorrência lógica dos princípios da cidadania, da dignidade da pessoa humana, do Estado Democrático de Direito, da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, livre de preconceitos e de quaisquer outras formas de discriminação, dentre outros. Repensar as relações familiares e redefinir os lugares ocupados pelos sujeitos dessas relações foram estratégias para problematizar a tradição centenária que negava direito às relações concubinárias; à igualdade entre irmãos biológicos e adotivos; à liberdade de constituição, vivência e dissolução da entidade familiar; bem como, à igualdade de direitos entre os componentes dessas relações. O paradigma do Estado Social, por meio de uma atuação fortemente intervencionista, tem, no entanto, obstaculizado a geração de cidadania, conduzindo 4 LÔBO, Paulo Luiz Netto. . Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 36 n. 141 jan./mar. 1999, p. 101. 5 Ibidem, p. 103. 6 A pluralização do vocábulo família é sugestão de Maria Berenice Dias para quem a expressão “direito de família” já perdeu o significado, ante a pluralidade de entidades familiares. Na apresentação de sua primeira edição, a autora recomenda que “na busca do conceito de entidade familiar, é necessário ter uma visão pluralista, que albergue os mais diversos arranjos vivenciais”. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 9-10. 204 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. à hipertrofia da atuação estatal, haja vista que a redução da esfera de autonomia privada impossibilitou a espontaneidade societária, a auto-afirmação de diferenças e, consequentemente, a participação no processo de construção de cidadania. Dessa forma, o Estado Democrático de Direito reconstrói a visão ignominiosa de uma cidadania como bem a ser consumido pelas vias do mercado ou como concessão estatal, possuindo, nas palavras de Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros, “a pretensão de permitir a conciliação entre o respeito a garantias individuais e a possibilidade de participação pública do cidadão, e superar uma leitura de necessária oposição entre liberdade e igualdade”7. E é somente nesse cenário, que se vislumbra o reconhecimento estatal da homoconjugalidade. Nesse ínterim, este trabalho oferece algumas reflexões a respeito da homoafetividade. Na primeira seção, advoga-se pela constitucionalidade do casamento civil homoafetivo. Já na segunda seção, fazem-se críticas sobre os poderes de normalização do Estado, quando sexualidades não-normativas o procura para reconhecer suas conjugalidades, e críticas sobre as possibilidades de legitimação dos relacionamentos LGBT à luz de um Estado Democrático de Direito que garanta aos cidadãos não só a compreensão de si, mas a autonomia de deliberação sobre os direitos aos quais se submete. 2. A CONSTITUCIONALIDADE DO CASAMENTO HOMOAFETIVO Consagrada a teoria eclética da ação em nosso ordenamento jurídico, percebe-se uma autonomia e independência do direito de ação em relação ao direito material. Entretanto, alguns requisitos precisam ser preenchidos para que o autor tenha o direito a um julgamento de mérito; logo, o direito de ação não é incondicional e genérico, dependendo, portanto, do preenchimento das “condições da ação”. Atribui-se ao processualista Enrico Tullio Liebman a criação da teoria eclética, que em seus primeiros estudos entendia existirem três espécies de condições da ação: possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de. Estado Democrático de Direito, Igualdade e Inclusão: a constitucionalidade do casamento homossexual, 164 fls. Dissertação (Mestrado em Direito) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, Brasília. 2007. p. 49. 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 205 legitimidade - sendo essa construção consagrada em nosso ordenamento processual. Conforme Daniel Amorim Assumpção Neves8, “o próprio Liebman reformulou seu entendimento original, passando a defender que a possibilidade jurídica estaria contida no interesse de agir”, concluindo, que “é nesse sentido o art. 17 do PLNCPC9 ao prever que ‘para propor a ação é necessário ter interesse e legitimidade’10”. Na ausência das condições da ação, haverá sentença meramente terminativa, sem a geração de coisa julgada material. Tal explanação deve-se ao fato de que muitos dos argumentos para coibir o reconhecimento de seu status sócio-jurídico aos relacionamentos LGBT, e, por conseguinte, de seu direito ao casamento civil e à união estável são de natureza procedimental. Ora se alega a impossibilidade jurídica do pedido, ora se recusa a deslocar a competência das varas cíveis para as varas de família. Entende-se superada a definição da competência das ações que buscam o reconhecimento das uniões homoafetivas e a questão da possibilidade jurídica do pedido no que tange à união estável, uma vez que o STF, no julgamento da ADI n. 4277 e da ADPF n. 132, com efeito vinculante e erga omnes, reconheceu as uniões homoafetivas como entidades familiares e esclareceu o equívoco em decorrência da classificação das uniões homoafetivas como meras “sociedades de fato”, dando um passo significativo contra a forma mais radical de excluir direitos11 e consolidando a competência dos juízos de família como foro para propositura dessas ações. O julgamento da ADI n. 4277 e da ADPF n. 132, de acordo com o pedido formulado nas petições iniciais de ambas as ações, objetivou a interpretação conforme à Constituição sem redução do texto do art. 1.723 do Código Civil12, NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil, São Paulo: Método, 2011, p. 93. Trata-se do Novo Código de Processo Civil. 10 Cf. relatório de 2009 da Comissão de Juristas encarregada de elaborar Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, haverá “exclusão da possibilidade jurídica do pedido como condição da ação, tornando-a matéria de mérito”. 11 “A forma mais radical de excluir direitos é quando o juiz declara o autor carecedor de ação, excluindo o processo sem resolução do mérito, por falta de uma das chamadas condições da ação: a possibilidade jurídica do pedido. Tal linha de argumentação, inclusive, autoriza o indeferimento da petição inicial, por inépcia. Ou seja, no nascedouro, o processo é fulminado. Este é o resultado de enorme quantidade de ações. Ao negar-se aos homossexuais o direito de ação, se está inibindo o acesso à justiça”. (DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva: o preconceito & a justiça, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 170). 12 Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. (BRASIL. Código Civil, 2002.) 8 9 206 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. excluindo, porém, da norma impugnada uma interpretação que lhe acarretaria a inconstitucionalidade. Nesse sentido o voto do Ministro Relator Ayres Britto: Pelo que dou ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar” [...].13 Nas lições de Alexandre de Morais, “somente será possível [a aludida interpretação] quando a norma apresentar vários significados, uns compatíveis com as normas constitucionais e outros não”14. Portanto, vê-se incabível a interpretação conforme à Constituição quando texto expresso da lei não permitir qualquer interpretação em conformidade a ela. Nessas hipóteses, completa Morais, “o Judiciário deverá declarar a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo incompatível com a Constituição”15. É, por conseguinte, somente neste ponto que se pode alegar que o Poder Judiciário não deve atuar como legislador positivo, de forma a criar novo texto legal. O que não se aduz do mencionado julgamento do STF, haja vista a possibilidade de compatibilização da norma impugnada com o texto constitucional, mediante redução de seu alcance valorativo, adequando-se à Carta Magna. Ou seja, excluiu-se o sentido que impedia o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar. Além da interpretação conforme à Constituição, alguns ministros (no julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132), argumentaram em seus votos que o reconhecimento das uniões homoafetivas dá-se mediante seu enquadramento no conceito de entidade familiar por meio de interpretação extensiva ou analogia; e ainda, que os princípios e direitos fundamentais é que impunham o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares. Concluindo Marianna Chaves, que “todos os entendimentos, com a sua variedade de fundamentações, levaram a um mesmo resultado: a submissão da união homoafetiva ao regime jurídico da união estável”16. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 4277/DF e ADPF nº 132/ RJ. Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011.. 14 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, São Paulo: Atlas, 2008, p.17. 15 Ibidem, p.17. 16 CHAVES, Marianna. União Homoafetiva: breves notas após o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277 pelo STF, Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2896, 6 jun. 2011. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/19274>. Acesso em: 4 ago. 2011., p. 1. 13 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 207 Tal julgamento, porém, não esclareceu a possibilidade jurídica quanto ao pedido de conversão da união estável em casamento e quanto ao pedido de habilitação para casamento civil homoafetivo. Porém, alguns pedidos de habilitação para casamento e algumas ações de conversão de união estável homoafetiva em casamento foram julgadas procedentes - sendo todas embasadas na decisão das mencionadas ações diretas de inconstitucionalidade -, além do julgamento do Recurso Especial n. 1.183.378/RS pelo Superior Tribunal de Justiça que, apesar de não ter efeito vinculante, cria precedente. Nesse REsp, duas mulheres que se relacionavam há três anos de maneira estável, requereram habilitação para casamento junto a dois Cartórios de Registros Civis de Porto Alegre-RS, sendo os pedidos negados pelos respectivos titulares. Em seguida, ajuizaram habilitação para o casamento perante a Vara de Registros Públicos e de Ações Especiais da Fazenda Pública da Comarca de Porto Alegre/ RS, que foi julgada improcedente. Em grau de apelação, o Tribunal manteve a impossibilidade jurídica do pedido de habilitação. Sobreveio, então, o recurso especial com base na alínea “a”, inciso III, art. 105 da Constituição Federal, no qual se alegava ofensa ao art. 1.521 do Código Civil de 2002. Por fim, o STJ deu provimento ao recurso, afastando o óbice relativo à diversidade de sexos para o processo de habilitação de casamento. Voltando ao julgamento das ações de inconstitucionalidade pelo STF, entende-se que, embora o julgamento tenha sido delimitado ao pedido, o de reconhecer a união estável entre casais homoafetivos, é imperioso o seguinte questionamento: diante do reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar, compreendida esta como sinônimo perfeito de família, haveria fundamento lógico-racional que justificasse a negativa ao direito de casais homoafetivos consagrarem sua união pelo casamento civil? Primeiramente, deve-se esclarecer que o Código Civil e a Constituição não trazem uma definição de casamento como sendo a união entre homem e mulher, tampouco que a diversidade de sexos seja pressuposto fático essencial à existência desse negócio jurídico. Ressaltem-se as sábias palavras no voto do Ministro Ayres Britto, ao analisar a necessidade de se aclarar os vocábulos “homem 208 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. e mulher” no art. 226, parágrafo 3º, da CF/1988: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”: I. que essa referência à dualidade básica homem/mulher tem uma lógica inicial: dar imediata seqüência àquela vertente constitucional de incentivo ao casamento como forma de reverência à tradição sóciocultural-religiosa do mundo ocidental de que o Brasil faz parte (§1º do art. 226 da CF), sabido que o casamento civil brasileiro tem sido protagonizado por pessoas de sexos diferentes, até hoje. Casamento civil, aliás, regrado pela Constituição Federal sem a menor referência aos substantivos “homem” e “mulher”. II. que a normação desse novo tipo de união, agora expressamente referida à dualidade do homem e da mulher, também se deve ao propósito constitucional de não perder a menor oportunidade de estabelecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero humano, sabido que a mulher que se une ao homem em regime de companheirismo ou sem papel passado ainda é vítima de comentários desairosos de sua honra objetiva, tal a renitência desse ranço do patriarcalismo entre nós.17 Assim sendo, nas palavras de Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, conclui-se que “a referência a homem e mulher significa tão-somente a regulamentação do fato heteroafetivo, sem que isso signifique a proibição do fato homoafetivo para a mesma finalidade, por interpretação extensiva ou analogia”18. Ou seja, ante o teor do art. 5º, II, da CF/1988, segundo o qual as pessoas só estão proibidas de fazer algo em virtude de lei, é imperativo que a proibição jurídica esteja expressamente em lei. Considerando que o Código Civil e a Constituição não proíbem o casamento civil homoafetivo, há apenas ausência total de norma prevista para o determinado caso; portanto, lacuna normativa, e não, proibição implícita. No mesmo sentido argumenta Vecchiatti: Caso a lei se limite a regulamentar um fato e deixar outro sem regulamentação e sem proibição, isso significa a existência de uma lacuna na lei, não de uma proibição implícita. Afinal, a legalidade estrita não se aplica a particulares, mas apenas à Administração Pública, donde, considerando que não está proibido o casamento civil entre cidadãos do mesmo sexo, tem-se que tal situação configura uma lacuna da lei.19 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 4277/DF e ADPF nº 132/ RJ. Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011. 18 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade, São Paulo: Método, 2008, p. 258. 19 Ibidem, p. 261. 17 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 209 Logo, como as normas são sempre insuficientes para solucionar os infinitos problemas da vida, Maria Helena Diniz esclarece que “o direito apresenta lacunas, porém é, concomitante, sem lacunas, o que poderia parecer paradoxal se se captasse o direito estaticamente”20. Quer isso dizer, que é impossível a regulamentação de todo comportamento por normas jurídicas, já que o direito abrange experiências históricas, sociológicas, axiológicas, que se complementam. No entanto, é sem lacunas, porque o próprio direito supre seus vazios, mediante aplicação e criação de normas. Concluindo a civilista: O direito é lacunoso, sob o prisma dinâmico, já que se encontra em constante mutação, pois vive com a sociedade, sofre com ela, recebendo a cada momento o influxo de novos fatos; não há possibilidade lógica de conter, em si, prescrições normativas para todos os casos.21. Destarte, pode-se afirmar que as lacunas são sempre provisórias, porque o dinamismo do direito apresentará solução para colmatá-la, e completáveis, pois haverá alternativas para integrá-la às modificações sociais. Portanto, como a lei foi omissa no que tange ao casamento civil homoafetivo, deve-se observar se a normação existente referente ao casamento civil heteroafetivo pode ser estendida àquela. Isso se faz pela interpretação teleológica, verificando se o fato não regulamentado pelo texto normativo tem o mesmo elemento valorativo protegido pelo fato expressamente citado. Pois bem, qual seria o elemento protegido pelos textos normativos em relação ao casamento civil? A resposta está no caput do art. 226 da CF/88. O elemento protegido é a família, porque esta é a base da sociedade. Aliás, família formada pelo amor que vise à comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura. Assim, como o STF por meio de interpretação conforme à Constituição reconheceu as uniões homoafetivas como entidades familiares, é plenamente aplicável o preenchimento do vazio normativo, pela analogia legis22. Também o DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 69. Idem, p. 68. 22 A analogia legis diferencia-se da analogia iuris, enquanto nesta há aplicação de um conjunto de normas próximas, extraindo elementos que possibilitem sua aplicabilidade ao caso concreto não previsto, naquela há aplicação de uma norma existente, destinada a reger caso semelhante ao previsto. 20 21 210 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. é, pela interpretação extensiva, ampliando o sentido dos artigos que contenham a locução “homem e mulher”. Note que interpretação extensiva e analogia não se assemelham; no primeiro, amplia-se o sentido da norma, havendo subsunção da norma jurídica. No segundo, rompe-se com os limites do que está previsto na norma, havendo integração. Outro óbice que surge na defesa ao casamento civil homoafetivo é a teoria da inexistência do ato jurídico, que reputa como inexistente o casamento realizado entre pessoas do mesmo sexo. Essa tese, embora tradicional na teoria dos negócios jurídicos, trata-se de mera construção doutrinária discriminatória e fundamentada em presunção acrítica de que o legislador teria proibido o casamento entre pessoas do mesmo sexo, quando apenas explicitou o casamento entre o homem e a mulher. Por fim, ante o exposto e tendo em consideração que extraído do art. 126 do Código de Processo Civil23, cabe ao juiz, no julgamento da lide, aplicar as normas legais, não se eximindo de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei e, ainda, considerando que somente a vedação legal constitui a impossibilidade jurídica do pedido, advoga-se pela possibilidade jurídica do pedido e pela constitucionalidade do casamento civil homoafetivo por meio de 1) interpretação conforme à Constituição, 2) sua sustentação nos princípios e direitos fundamentais, ou ainda, diante do não acolhimento das teses anteriores, 3) interpretação extensiva ou analogia, pois não se avista fundamento lógicoracional que justifique o contrário. 3. O CASAMENTO, QUEM DIRIA, É O GRANDE TESOURO EMBAIXO DO ARCO-ÍRIS?24 Para uma crítica da legitimação do casal homoafetivo, toma-se como base o ensaio O parentesco é sempre tido como heterossexual? de Judith Butler, que é atualmente Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. (BRASIL. Código de Processo Civil, 1973.) 24 Pergunta feita pelo sociólogo Luiz Mello. (Novas Famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. p. 23.) 23 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 211 uma das autoras mais importantes na reflexão sobre a heteronormatividade. A autora argumenta que a procura pelo reconhecimento estatal das relações não-heterossexuais, garante ao Estado um poder de normalização sobre as comunidades gays e lésbicas, condicionando e limitando os debates sobre novos arranjos de parentesco e casamento. Assim, o debate sobre o casamento gay reduz-se à questão sobre se o casamento deve ser legitimamente ampliado a homossexuais, delimitando o campo sexual, levando a um pensar a sexualidade somente em termos de casamento e o casamento somente em termos de aquisição de legitimidade. Então, nas palavras de Lorea, “ela [Butler] propõe que se adote uma postura crítica relativamente às soluções decorrentes dessa conformidade ao modelo legal que estabelece o casamento como única maneira de legitimar a sexualidade”25. Aqui Lorea contextualiza a crítica, pois Butler fala em casamento como única maneira de legitimação, já que o foco de sua crítica são os modelos francês e norteamericano, onde a constituição da família acontece basicamente por meio do casamento. Há, porém, nesses países algumas alternativas, como o Pacto Civil de Solidariedade – PACS, criado em 13.10.1999 na França, autorizando duas pessoas, independentemente da orientação sexual, a firmarem contrato para ‘organizar sua vida em comum’ ou as ‘parcerias registradas’ de certas cidades americanas. No Brasil, há variações quanto à constituição da família, que além do casamento civil, constitui-se mediante união estável, família monoparental, família anaparental, entre outras, que conquistaram esse status precipuamente a partir da construção jurisprudencial. Porém, ainda considerando o contexto, pode-se pensar sobre como o reconhecimento estatal levaria a uma delimitação das relações aceitáveis como sendo apenas aquelas que pudessem resultar em “casamento” ou “união estável” ou, conforme Miskolci, como “a redução da luta política ao léxico socialmente oferecido torna seus componentes reféns de formas coletivamente 25 LOREA, Roberto Arriada. Cidadania sexual e Laicidade: um estudo sobre a influência religiosa no Poder Judiciário do Rio Grande do Sul, 209 fls. Dissertação (Doutorado em Antropologia Social) – Curso de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2008, p. 55. 212 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. prescritas de comportamento”26. Não se está a dizer que a luta pela visibilidade e reconhecimento é inválida, mas ao contrário, ela é justa e precisa ser levada adiante; no entanto, conforme Eribon, “é preciso libertar o movimento gay de seus velhos demônios e de suas sempiternas querelas em torno da questão de saber qual é a ‘boa’ atitude”27, cada indivíduo ou grupo só pode reinventar-se na multiplicidade e na pluralidade. Butler vai além e questiona: Não existem outras maneiras de sentimento possíveis, inteligíveis ou mesmo reais, além da esfera do reconhecimento do Estado? Não deveriam existir outras maneiras? Faz sentido que o movimento lésbico e gay se volte para o Estado, dada sua história recente: a tendência recente para o casamento gay é, de certo modo, uma resposta à AIDS e, em particular, uma resposta envergonhada, uma resposta na qual a comunidade gay busca desautorizar sua chamada promiscuidade, uma resposta na qual parecemos saudáveis e normais e capazes de manter relações monogâmicas ao longo do tempo.28 Este é o ponto crucial deste trabalho, Roberto Lorea diz que Butler tenta neste momento sugerir que há um modelo de identidade gay, cujo pertencimento sexual poderia ser medido pelo número de parceiros ou, dito de outra forma, ele acrescenta, o argumento parece sugerir que eventual engajamento em uma relação estável e duradoura descaracterizaria a identidade sexual gay. Primeiramente, deve-se esclarecer que Butler é uma crítica das políticas de identidade do movimento feminista norteamericano, porque entende que os processos de construção de identidades delimitam a inclusão e exclusão de potenciais beneficiários da ação de um movimento. Ela afirma que “as categorias de identidade nunca são meramente descritivas, mas sempre normativas e como tal, exclusivistas”29. A autora não recusa a política representacional (“como se pudéssemos fazê-lo”, diz), mas vê como tarefa, formular uma crítica às categorias de identidades que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam.30 MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o casamento gay, cadernos pagu (28), janeiro-junho de 2007, p. 123. 27 ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008, p. 410. 28 BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual? ? cadernos pagu (21), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2003, p. 239. 29 BUTLER apud FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas?, 2005, p. 32. 30 BUTLER, Judith. Problemas de Gênero, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 26 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 213 Portanto, não parece lógico afirmar que Butler tenta sugerir um modelo universal, único e estável de identidade gay (essa incapaz de manter relações monogâmicas), porque ela mesma adverte que “a luta por cidadania baseada na ‘identidade como ponto de partida’ tende a minar a solidariedade e a produzir uma disposição à facciosidade e à normatização”31. Mais sensato seria pensar em como os casais homoafetivos são organizados a partir de uma cultura gay, a partir das especificidades de cada casal (homossexuais masculinos, homossexuais femininos, travestis, transexuais etc.), e mais ainda, a partir de experiências próprias vividas por pessoas que questionam as normas sexuais. É imprescindível ainda ter em mente que a união estável só se constitui mediante a comprovação de convivência pública (no sentido de notória), contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família, assim como preceitua o art. 1.723, caput, do CC/2002. Pode-se pensar, com razão, diante de tal regulamentação para o acesso ao instituto da união estável, que muitos casais no Brasil não conseguirão provar tais requisitos dentro de uma lógica ou contexto heterossexual, pois notoriedade, continuidade, durabilidade e animus familae muitas vezes não apresentam necessariamente o mesmo sentido para sexualidades não-normativas, ou seja, dissidentes da heterossexualidade. O que não está a dizer é que homossexuais não conseguirão provar a união estável, o objetivo é reforçar que as expressões (pública, contínua, duradoura e constituição de família) são abertas e genéricas, que demandam análise caso a caso. Por isso se diz que há uma verdadeira cláusula geral na constituição da união estável. Eis que o aplicador da norma deverá ter plena consciência do aspecto social que circunda a lide. Assim, a publicidade, o requisito de natureza temporal e o objetivo de constituir uma família devem estar fora do que Judith Butler chama de matriz heterossexual32, sob pena de se consagrar uma liberdade homoafetiva pela metade. BUTLER apud FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas?, 2005, p. 272. A autora usa o termo matriz heterossexual para “designar a grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, gêneros e desejos são naturalizados. Busquei minha referência na noção de Monique Witting de ‘contrato heterossexual’ e, em menor medida, naquela de Adrienne Rich de ‘heterossexualidade compulsória’ para caracterizar o modelo discursivo/epistemológico hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um gênero estável, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade”. (BUTLER, Judith. op. Cit., p. 216). 31 32 214 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Estar fora da matriz heterossexual é o mesmo que dizer que os requisitos para o conjunto probatório devem estar dentro de uma ordem aliada à cultura e às experiências individuais das pessoas LGBT, ou seja, é nesse sentido que no Estado Democrático de Direito os cidadãos precisam ser também autores do direito ao qual se submetem. Talvez seja nesse sentido que o Ministro Ricardo Lewandowski esclareceu que no julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade não se estava a reconhecer a união estável homoafetiva, por interpretação extensiva, mas uma união homoafetiva estável, mediante um processo de interpretação analógica. Finalmente, também não se está a dizer que o reconhecimento da união estável homoafetiva como família deve ser feito segundo regras e consequências diversas da união estável heteroafetiva. Mas apenas que as regras devem ser pensadas dentro de uma lógica homoafetiva. A publicidade, mais que qualquer outro requisito, terá características próprias nos casais homoafetivos, porque as identidades homossexuais são construídas basicamente por meio de institutos homofóbicos que as fazem optar muitas vezes por uma vivência clandestina, nesse sentido Eribon escreve: “a norma e as instituições são homófobas (como a interdição do casamento aos gays e às lésbicas está aí para lembrar e, como todos os discursos que procuram justificar essa interdição, costumam ter a ingênua franqueza de confessá-la)”33. Para enfrentar Butler, Lorea cita Miguel de Almeida, que não aceita o argumento da “domesticação heterossexista”, pois justamente por parecer integracionista é que a exigência de acesso ao casamento, percebido como uma instituição conservadora e patriarcal, resulta numa dinâmica transformadora. Porém, nesse sentido, Butler também fala em “redescrever as possibilidades que já existem” e que “a tarefa não consiste em repetir ou não, mas em como repetir”. Assim, advoga-se não apenas pela reivindicação do direito ao casamento civil homoafetivo, mas pela reinvenção desse direito, afirmando a homossexualidade não só como identidade, mas como força criadora. Pois do contrário, cairíamos no que a advogada e ativista lésbica Urvashi Vaid chama de igualdade virtual, pois, conquanto os homossexuais conquistem direitos perante a lei e a sociedade, atualmente eles ainda desfrutam de uma aceitação frágil e superficial. É o que se extrai das palavras da autora: 33 ERIBON, Didier. Op. cit, p. 142. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 215 In the high-technology world of computers, the simulation of events and situations produced through computer and video technology is called virtual reality. Most often used to train airline pilots in flight simulation, or by the Defense Department to play “war games”, virtual reality has, till now, been mostly the fascination of cyberjunkies. But the technology of virtual reality may one day be as common as earplugs, headphones, and portable television. In virtual reality, the “virtual” or simulated reality can be made to seem as believable as the “real” experience. In virtual reality, nothing is real, but we experience it as if it were. So, too, with virtual equality. The irony of gay and lesbian mainstreaming is that more that fifty years of active effort to challenge homophobia and heterosexism have yielded us not freedom but “virtual equality”, which simulates genuine civic equality but cannot transcend the simulation. In this state, gay and lesbian people possess some of the trappings of full equality but are denied all of its benefits. We proceed as if we enjoy real freedom, real acceptance, as if we have won lasting changes in the laws and mores of our nation. Some of us even believe that the simulation of equality we have won represents the real thing. But the actual facts and conditions that define gay and lesbian life demonstrate that we have won “virtual” freedom and “virtual” equal treatment under “virtually” the same laws as straight people.34 Os direitos civis para os homossexuais não servirão para eliminar a homofobia inata que ainda prejudica vastos setores da população heterossexual; contudo, acrescenta Castañeda, “é verdade que os preconceitos perdem um pouco de sua virulência quando se conhecem as pessoas visadas”35. Porém, “os homossexuais mais bem tolerados são aqueles que aderem aos valores da sociedade heterossexual”36, de preferência aqueles gentis homossexuais integrados, branqueados, classe média urbana, monogâmicos, disciplinarizados e psicologizados. Também alerta Gayle Rubin sobre os perigos de uma opressão sexual construída por uma ideologia de valoração hierárquica dos atos sexuais: No mundo de alta tecnologia dos computadores, as simulações de eventos e situações produzidas por meio de computadores e tecnologias de vídeo são chamadas de realidade virtual. Na maioria das vezes é usada realidade virtual para treinar pilotos de avião em simuladores de voo ou pelo Departamento de Defesa para jogar “jogos de guerra”, assim a realidade virtual tem, até agora, sido quase sempre o fascínio da cyberjunkies. Porém, a tecnologia da realidade virtual pode um dia ser tão comum como protetores de ouvido, fones de ouvido e televisão portátil. Na realidade virtual, o “virtual” ou a simulação da realidade pode ser feita para parecer tão crível como a experiência real. Na realidade virtual, nada é real, mas nós a experimentamos como se fosse. Assim, também, com igualdade virtual. A ironia da normalização gay e lésbica é que mais de cinquenta anos de esforço ativo para desafiar a homofobia e o heterossexismo renderamnos não a liberdade, mas a “igualdade virtual”, que simula igualdade genuína, mas não pode transcender a simulação. Procedemos como se gozássemos de liberdade real, de aceitação real, como se tivéssemos ganhado mudanças duradouras nas leis e costumes de nossa nação. Alguns de nós ainda acreditam que a simulação da igualdade que temos, representa a coisa real. Mas os fatos reais e as condições que definem a vida de gays e lésbicas demonstram que nós ganhamos a liberdade “virtual” e tratamento “virtual” igual em “virtualmente” as mesmas leis que as pessoas heterossexuais. (VAID, Urvashi. Virtual Equality, The Mainstreaming of Gay and Lesbian Liberation. New York: Anchor Books,1995, p. 4, tradução livre do autor.) 35 CASTAÑEDA, Marina. A Experiência Homossexual, São Paulo: A Girafa Editora, 2007, p. 311. 36 Ibidem, p. 312. 34 216 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. [...] De acordo com esse sistema [de valor sexual], a sexualidade que é “boa”, “normal”, e “natural” deve idealmente ser heterossexual, marital, monogâmica, reprodutiva e não-comercial. Deveria ser em casal, relacional, na mesma geração, e acontecer em casa. Não deveria envolver pornografia, objetos fetichistas, brinquedos sexuais de qualquer tipo, ou outros papéis que não o masculino e feminino. Qualquer sexo que viole as regras é “mal”, “anormal” ou “não natural”. O sexo mal pode ser o homossexual, fora do casamento, promíscuo, não-procriativo, ou comercial. Pode ser masturbatório ou se localizar em orgias, pode ser casual, pode cruzar linhas geracionais, e pode se localizar em lugares “públicos”, ou ao menos em moitas ou saunas. Pode envolver o uso de pornografia, objetos fetichistas, brinquedos sexuais, ou papéis pouco usuais.37 Por fim, um exemplo notório da dicotomia dessa igualdade virtual foi o veto presidencial à distribuição de material didático de combate à homofobia nas escolas de ensino médio com a justificativa de que “não vai ser permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais” ou, ainda, as dificuldades na aprovação de uma lei que criminalize a homofobia. Diante disso, Castañeda propõe que “o grande desafio para os homossexuais (e heterossexuais) de nossa época é o de redefinir em que são parecidos e em que divergem do resto da sociedade e o de decidir quais similaridades, e quais diferenças, eles querem guardar”38. Assim, conclui-se o advocacy a uma união homoafetiva possível que garanta a cidadania sexual e não crie uma hierarquia de valor sexual. Finalmente, responde-se positivamente a pergunta de Luiz Mello que intitula esta seção, sobre o casamento ser o grande tesouro embaixo do arco-íris, com outra pergunta, essa de Luiz Mott: “por que negar aos gays e lésbicas tentarem a sorte nessa loteria?”39. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A ação de reivindicação ao casamento homoafetivo, que à primeira vista pode sugerir um fenômeno revolucionário, torna-se, se pensada de forma acrítica, uma RUBIN, Gayle. Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade. Tradução de Felipe Bruno Martins Fernandes, Disponível em: < http://www.miriamgrossi.cfh.prof.ufsc.br/pdf/rubin_pensando_o_sexo.pdf ?>. Acesso em: 20 nov. 2011. p. 15. 38 CASTAÑEDA, Marina. Op. Cit., p. 312. 39 MOTT, Luiz. Homo-afetividade e Direitos Humanos, Florianópolis, 14(2): 509-521, maio-agosto/2006, p. 518. 37 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 217 instância repressiva, onde muros erguer-se-ão para separar as sexualidades “boas”, “normais” e “naturais”. Por isso, o termo igualdade virtual expressa de maneira exata a dicotomia entre o acesso a campos culturais preexistentes (nesse caso, o casamento) e a crescente discriminação sofrida por pessoas LGBT no espaço público. Deste modo, o presente trabalho apresentou-se como uma alternativa crítica à conquista de direitos e à possibilidade da população LGBT de ter acesso a modos de vida já estabelecidos. Não se tratou de ocupar apenas a posição “a favor” do casamento, mas, segundo Butler, de interrogar-se e empenhar-se em saber se o campo sexual não se restringiria violentamente pela aceitação de retratos preexistentes. Ao discutir a questão do casamento civil homoafetivo, este trabalho defendeu sua constitucionalidade, e, como consequência, sua possibilidade jurídica por meio da interpretação conforme à Constituição, da sua sustentação nos princípios e direitos fundamentais e, ainda, da interpretação extensiva ou analogia. Pretendeu um posicionamento crítico em relação a esse direito, pois na luta limitada à parceria civil, sem questionar e reinventar o direito ao qual se submete, poder-se-á entender que a sexualidade de gays e lésbicas só pode ser reconhecida como uma questão privada e dentro dos limites de uma sociedade heterossexista. Assim, nas palavras de Miskolci, “ignora-se o destino daqueles para os quais o casamento não representará avanço nem proteção, pois é na esfera pública que sofrem as sanções sociais, onde são insultados, agredidos e até assassinados”40. A discussão, portanto, deve-se pautar também dentro da significação dos direitos que serão e foram adquiridos pela população LGBT até o momento. O princípio da igualdade não deve se limitar ao princípio da antidiscriminação, Roger Raupp Rios diz que “precisamos ir além e interpretar o princípio da igualdade também como princípio da anti-subjugação estabelecendo que se deve conferir igual reconhecimento, igual valor às pessoas, independentemente de sua condição”41, sem partir do pressuposto de que há um padrão dominante, ao qual os outros devem ser conformados. MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o casamento gay, cadernos pagu (28), janeiro-junho de 2007:101-128., p. 123. 41 RIOS, Roger Raupp; PIOVESAN, Flávia. A Discriminação por gênero e por orientação sexual, 2003, p. 157. 40 218 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Ao demandar apenas o casamento civil homoafetivo ou a união homoafetiva, sem discuti-los dentro de uma lógica ou de uma cultura LGBT, elegese um padrão ao qual os dessemelhantes devam ser equiparados para que sejam considerados “normais”. É também atribuir um caráter apenas “reivindicativo” ao movimento LGBT, distanciando-o da missão que sempre teve de “mudar a gramática da vida”, já que a interferência nos lugares que não lhes são, por costume, destinados socialmente caberá apenas àqueles homossexuais que mais se aproximarem de um estilo de vida heterossexual, deixando de acrescer novas alternativas e outros modelos de conjugalidade ao direito das famílias. É nesse sentido que ecoa o verso de René Char: “Desenvolvei vossa estranheza legítima”. 5. REFERÊNCIAS BRASIL. Código Civil, Brasília, DF: Senado Federal, 2002. BRASIL. Código de Processo Civil, Brasília, DF: Senado Federal, 1973. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 4277/DF e ADPF nº 132/ RJ. Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. ______. O parentesco é sempre tido como heterossexual? cadernos pagu (21), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2003. CASTAÑEDA, Marina. A Experiência Homossexual. São Paulo: A Girafa Editora, 2007. CHAVES, Marianna. União Homoafetiva: breves notas após o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277 pelo STF. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2896, 6 jun. 2011. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/19274>. Acesso em: 4 ago. 2011. DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva: o preconceito & a justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. ______. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004. ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 219 FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas?. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 36 n. 141 jan./mar. 1999. LOREA, Roberto Arriada. Cidadania sexual e Laicidade: um estudo sobre a influência religiosa no Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. 209 fls. Dissertação (Doutorado em Antropologia Social) – Curso de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2008. MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de. Estado Democrático de Direito, Igualdade e Inclusão: a constitucionalidade do casamento homossexual. 164 fls. Dissertação (Mestrado em Direito) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, Brasília. 2007. MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o casamento gay. cadernos pagu (28), janeiro-junho de 2007:101-128. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2008. MOTT, Luiz. Homo-afetividade e Direitos Humanos. Estudos Feministas, Florianópolis, 14(2): 509-521, maio-agosto/2006. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Método, 2011. RIOS, Roger Raupp; PIOVESAN, Flávia. A Discriminação por gênero e por orientação sexual. Série Cadernos do CEJ. n. 24, 2003. RUBIN, Gayle. “Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade”. Tradução de Felipe Bruno Martins Fernandes. Disponível em: < http://www.miriamgrossi.cfh.prof.ufsc.br/pdf/rubin_pensando_o_sexo.pdf?>. Acesso em: 20 nov. 2011. VAID, Urvashi. Virtual Equality: The Mainstreaming of Gay and Lesbian Liberation. New York: Anchor Books, 1995. VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade. São Paulo: Método, 2008. Recebido em: 29/04/2012. Aceito em: 12/07/2012. 220 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. A EQUIPARAÇÃO DO MENOR SOB GUARDA JUDICIAL A FILHO E O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DE VONTADE NOS CONTRATOS DE SEGURO. Vinicius de Almeida GONÇALVES1 Resumo: Com base no princípio da autonomia de vontade e na lei n. 8.2143/91, as Seguradoras começaram a elaborar seus contratos, regulamentos no sentido de considerar o menor sob guarda judicial como um dependente diverso que a do filho para o Segurado. Tendo como base as constantes evoluções no Direito de Família e os princípios constitucionais, em especial na proteção da criança e do adolescente, o presente artigo analisa a validade jurídica dessa liberdade contratual feita nos contratos de seguro. Palavras-chaves: Menor sob guarda judicial. Equiparação. Autonomia de Vontade. Isonomia. Contrato de seguro. Abstract: Based on the principle of autonomy of will and the law n. 8.2143/91, insurance companies began drafting their contracts, regulations in order to consider the lower court under guard as a dependent differently than the child to the Insured. Based on the constant developments in family law and constitutional principles, especially in the protection of children and adolescents, this article analyzes the legal validity of freedom of contract made in the insurance contracts. Keywords: Lower court under guard. Assimilation. Autonomy of the Will. Equality. Insurance contract. 1. INTRODUÇÃO. Como o Direito é uma ciência social, aquele é obrigado acompanhar as evoluções que ocorrem dentro de um meio social, com isso, consequentemente, tem-se no Direito um ramo em constantes alterações em sua essencial, para então atingir seus objetivos como regulador das relações sociais. 1 Advogado. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 221 Dentre essas evoluções no campo jurídico é possivel observar as tendências atuais da prevalência do princípio da dignidade humana e igualdade como fundamentos de um Estado Democrático de Direito, desdobrando-se tais princípios a diversas formas, dentre as quais destacamos a proteção do menor e a autonomia de vontade nas relações contratuais. Atualmente, no Brasil, luta-se pelo sadio desenvolvimento do menor e atribui tal responsabilidade a todos que compõem um Estado. Dentre as diversas formas de proteção ao menor, surge a ideia de igualdade entre as crianças e aos adolescentes, dentro dessa ideia de igualdade tem-se da equiparação do menor sob guarda a filho. Por outro lado, há também a elevação de um dos princípios basilares nas relações contratuais, que é a da autonomia de vontade. Por meio de uma evolução doutrinária, aquele princípio tomou novos rumos. Tais exemplos é uma forma de mostrar o que muitos dizem serem novos caminhos que devem ser tomados para a concretização de um moderno conceito de justiça. Entretanto, há um ponto que se deve observar. Atualmente, com base no princípio da autonomia da vontade nas relações contratuais, muitas Seguradoras tem – tendo também como “fonte de inspiração” certas leis esparsas – admitido que seus Segurados incluam o menor sob guarda como seu dependente em seus contratos (como, por exemplo, plano de saúde, seguro de vida e etc.), alegando que, se este – o menor sob guarda – esta sob os cuidados do Segurado, poderá ser incluído aos benefícios trazidos pela relação de contrato. Todavia, a inclusão como dependente é diferente daquela que se faz quando o Segurado inclui o próprio filho. O que se passa a analisar seria sobre a validade jurídica dessa diferenciação dada pelas Seguradoras em suas relações contratuais. Estariam estas exercendo livre e corretamente um dos princípios de direito civil ou estariam confrontando uma visão moderna do menor sob guarda? 222 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 2. DESDOBRAMENTO DA PROBLEMÁTICA. ANÁLISE A EQUIPARAÇÃO DO MENOR SOB GUARDA JUDICIAL A FILHO E O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE. Apresentado, então, na introdução desse presente artigo a problemática a qual passasse a trabalhar, será necessário, para fins didáticos, inicialmente, dividir a mesma em tópicos para o melhor aproveitamento da leitura. Como foi apontado acima, existem dois parâmetros que deveram ser estudados (mesmo que de forma sucinta) para melhor alusão a questão, a saber: a equiparação do menor sob guarda a filho e o princípio da autonomia da vontade nas relações contratuais. A qual passasse a expor. 2.1 Menor sob guarda judicial equiparado a filho. Inicialmente, vale tecer alguns comentários sobre a equiparação do menor sob guarda judicial a figura de filho em nosso direito pátrio. Ao se tratar sobre a proteção do menor no direito brasileiro deve-se lembrar do artigo 227 da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei n. 8069/90), a qual estabelecem os princípios basilares na defesa da criança e do adolescente. Dentre os princípios norteadores da defesa da criança e do adolescente, aponta-se o princípio da proteção integral como o mais importante nessa relação, previsto no caput do artigo 227, CF/88: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, À liberdade e à conveniência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão2. É notório o reconhecimento de que tal dispositivo teve como influência a Convenção sobre Direitos das Crianças (1989) em seu artigo 3°: “Art. 3. (...): 2. Os Estados-Partes comprometem-se a garantir à criança a proteção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os direitos e deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a tenham legalmente a seu cargo e, para este efeito, tomam todas as medidas legislativas e administrativas adequadas”. 2 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 223 Sobre o princípio da proteção integral da criança e do adolescente, aponta Fábio Luiz Gomes: Tal princípio se submete a uma norma de um direito a prestações fáticas ou normativas, portanto, assegura à criança e ao adolescente, dentre outros: o direito a igualdade dos filhos perante a lei, o direito à educação, à cultura, a uma família3. O Estado e a sociedade têm como prioridade absoluta garantir o sadio desenvolvimento físico e mental da criança e do adolescente. Uma das formas de se atingir tal fim é por meio do instituto da guarda judicial, disciplinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 33 e seguintes. A partir do momento em que uma pessoa requer e é concedida a guarda judicial de um menor, a mesma assume para si o múnus de prestar assistência material, moral e educacional à criança e do adolescente, conferindo até àquele o direito de se opor a terceiro, inclusive os pais (artigo 33, caput, ECA). No procedimento da guarda, falasse em posse do menor (artigo 33, 1°, ECA). Normalmente, na prática, o Requerente busca o Poder Judiciário para regularizar a posse de fato – que seja, em linhas gerais, dar uma moradia ao menor e garantir seu desenvolvimento – para posse de direito – reconhecimento judicial do encargo exercido. A melhor opção, de fato, seria o procedimento de adoção, a qual o menor adotado, por base no nosso sistema civil-constitucional, é considerado filho4, entretanto, muitas pessoas, dotadas por uma visão cultural e com receio de extinguir esse vínculo jurídico de parentesco biológico do menor com seus pais acabam por optar por esse procedimento judicial mais simplificado, qual seja, a guarda. Como se sabe, um terceiro (diverso dos pais) assumindo a posse de direito do menor estará suspendendo ou extinguindo o poder familiar de seus pais biológicos, como demonstram os artigos 1.635 e artigo 1.637, § único ambos do Código Civil. Contudo, não estará cessando – numa visão jurídica – com o vínculo sanguíneo deles, GOMES, Fábio Luis. Princípio da proteção integral da criança e do adolescente e o princípio da transitoriedade dos abrigos. in. Revista Direitos Fundamentais e Democracia. vol. 6. Ano 2.009. Disponível em: www.revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br. Acesso em: 04 de maio de 2.012. 4 Tem-se aqui a visão da família sócioafetiva. 3 224 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. assim podendo, requerer até a ajuda na subsistência do menor, como, por exemplo, na estipulação de alimentos e regulamentação do direito de visitas. Portanto, quando alguém exerce a guarda judicial de um menor, normalmente, estará fornecendo uma moradia a este, dirigindo a educação básica necessária, fornecendo os métodos necessários para preservar sua saúde, respeitando a dignidade da pessoa humana naquele incapaz, reunindo-se sob a mesma mesa para as refeições, dividindo a televisão e etc., ou seja, deixando o menor ser parte de sua família. Tanto é que o Estatuto da Criança e do Adolescente denomina o procedimento de guarda como uma das formas de configuração de “família substituta”5. Não há qualquer sombra de dúvida de que, quando o menor é encaminhado a uma família substituta, mesmo sendo caso de guarda, estará se tornando membro desta. Eis uma das classificações das denominadas famílias sócioafetivas. Família substituta é aquela que se propõe trazer para dentro dos umbrais da própria casa, uma criança ou adolescente que por qualquer circunstância foi desprovido da família natural, para que faça parte integrante dela, nela se desenvolva e seja. Portanto, esta criança (ou adolescente) vai passar a ser membro desta família que generosamente a acolhe, que livremente a quer entre os seus, dispensando-lhe tudo de que precisa sobretudo, amor6/7. Visualizando tal situação, de um menor sob guarda judicial ingressar no seio de uma nova família (ou família substituta), fica mais fácil aceitar a sua equiparação a figura de filho. Tem-se aqui, portanto, a aplicação do princípio da isonomia. O princípio da isonomia é sempre associado a célebre definição feita por Rui Barbosa, a qual consiste em “tratar desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades”. Mas, aqui, se faz necessário ver tal princípio no campo do direito de família: “Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela e adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou do adolescente, nos termos da Lei”. (ECA). 6 DAHER, Marlusse Pestana. Família substituta. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: http://jus.com. br/revista/texto/1655. Acesso em: 4 maio 2012. 7 Essa mesma visão também é vista na jurisprudência nacional, v.g., TJMS; AC 2012.001616-5/0000-00; Nova Andradina; Terceira Câmara Cível; Rel. Des. Fernando Mauro Moreira Marinho; DJEMS 20/03/2012, e, TJDF; Rec 2011.00.2.014080-1; Ac. 563.220; Primeira Turma Cível; Rel. Des. Teófilo Caetano; DJDFTE 07/02/2012, dentre outros julgados. 5 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 225 A adoção constitucional do princípio da igualdade prepara, de certa forma, o ordenamento jurídico para a recepção de novas doutrinas. É que, prevendo o conceito de igualdade uma abertura do sistema para que os membros da família sejam considerados de forma isônoma como sujeitos de direito, permite, de outra parte, o reconhecimento de suas individualizações e de um maior respeito a seus direitos fundamentais. Em outras palavras, autoriza que se comece a enfrentar a matéria de direito de família a partir de um resgate do “sentimento”, da busca de um maior humanismo na resolução dos desafios jurídicos que se apresentam8. Se o menor esta dentro de uma família substituta, dependendo não apenas economicamente como também moralmente, recebendo o carinho, a atenção e educação que aquela possa oferecer deve se falar que tal família aceitou aquele menor como um novo membro, como um novo filho. Aprofundando-se um pouco, poderia até se afirmar que tal hipótese de equiparação pode ser uma exteriorização do sub-princípio da igualdade de filiação - previsto no § 6° do artigo 227 da Constituição Federal9 ao dispor a não discriminação entre os filhos havidos dentro ou fora do casamento, como os adotados, além também de igualar os direitos entre si – revestindo a este uma ampla interpretação. Qualquer designação discriminatória também não deve ocorrer na figura do menor sob guarda judicial, pois, numa realidade fática, age e é tratado como um filho, por mais que, de fato, existam certas distinções em razão de direitos comparados aos filhos e aos adotados. 2.2 O princípio da autonomia de vontade no direito contratual. Adiante com o desdobramento da problemática apresentada, tem-se o princípio da autonomia de vontade no direito contratual, “que, genericamente, pode enunciar-se como a faculdade que têm as pessoas de concluir livremente os seus contratos”10. LIMA MARQUES, Cláudia. CACHAPUZ, Maria Cláudia. VITÓRIA, Ana Paula da Silva. Igualdade entre filhos no direito brasileiro atual – direito pós-moderno?. in. Revista Igualdade. ed. XXVI. ano 2.009. Disponível em: www.mp.pr.gov.br. Acesso em: 04 de maio de 2.012. 9 Vale apontar que foi dado redação idêntica ao artigo 20 do Estatuto da Criança e do Adolescente e no artigo 1.596 do Código Civil. 10 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, volume III, contratos. 13. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2.009. p. 22. 8 226 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Por meio desse princípio nosso sistema jurídico entrega aos particulares a faculdade de estabelecer relações que envolvam direitos e obrigações entre si, ou seja, a liberdade de contratar. Tal liberdade de contratar configura-se em diversos momentos de uma relação contratual, iniciando-se pela livre manifestação em estabelecer um contrato ou não, por conveniência e oportunidade. Os particulares são livres em escolher se desejam contratar ou não. Entretanto essa livre manifestação, como se sabe, atualmente não pode ser visto como absoluta, haverá momentos, estipulados por lei que deverá ocorrer por força de contrato anterior, v.g., citase o artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor ao proibir atos de nãofazer pelo fornecedor ao consumidor que origina uma nova relação contratual, mesmo que dependente da anterior. Tem-se aqui o que alguns doutrinadores denominam de limitações à liberdade contratual, diferenciando esta com a liberdade de contratar. A liberdade também ocorre quando se escolhe com quem irá manter uma relação contratual, sendo certo que também aqui não se trata de uma visão absoluta, podendo haver situações em que não há como manter uma escolha com quem contratar. Adiante, também se encontra presente a liberdade de contratar na elaboração do conteúdo do contrato, podendo as partes ter o livre exercício de estipular seus termos, conforme interpretação do artigo 425 do Código Civil, a qual dispõe da possibilidade de criação de contratos atípicos. Até nos contratos denominados típicos – cujo as regras são disciplinados por lei – que, normativamente, já oferecem aos particulares uma estrutura legal de determinado tipo contratual, as partes perfilham, como de sua própria redação, os dispositivos legais existentes11. E por fim, a liberdade de contratar também se encontra presente na fase pós-contratual, onde a parte poderá se valer do Poder Judiciário para requerer o cumprimento da relação contratual estabelecida. Um ponto interessante sobre o princípio da autonomia de vontade é debatido por Flávio Tartuci, em sua obra Manual de direito civil, a qual trata da 11 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op cit.. p. 20. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 227 necessidade de substituição de tal princípio pelo princípio da autonomia privada, pois assim haveria um respeito maior ao princípio da função social dos contratos12. A distinção entre a autonomia de vontade com a autonomia privada se dá no sentido de que esta abrangeria aquela. Fundamentando por meio de doutrina estrangeira, Flávio Tartuci e por base da personalização do Direito Privado, seria equivocado afirmar que a autonomia decorre da vontade, mas da própria pessoa. Ao se utilizar a expressão “vontade” estaria adentrando em um campo subjetivo, diferentemente da expressão “privada” a qual dota-se de uma visão objetiva e concreta. Ademais, adotar o princípio da autonomia privada estará mais visível sua limitação frente a função social dos contratos. Atualmente, os contratos já não são formados pela vontade pura das partes, mas a soma desta com outros fatores. Já não há que se falar de vontade como determinante na relação contratual, exemplo prático para se visualizar, seriam os contratos de adesão, a qual a “vontade” do oblato se resume em aceitar ou não um contrato já determinado. Por tais razões, Flávio Tartuci, conclui sua visão sobre a necessidade de tal substituição principiológica e por fim conceitua o princípio da autonomia privada como: (...) sendo um regramento básico, de ordem particular – mas influenciado por normas de ordem pública – pelo qual na formação do contrato, além da vontade das partes, entram em cena outros fatores: psicológicos, políticos, econômicos e sociais. Trata-se do direito indeclinável da parte de autorregulamentar aos seus interesses, decorrente da dignidade humana, mas que encontra limitações em normas de ordem pública, particularmente nos princípios sociais contratuais13. Independente da escolha da nomenclatura do princípio em tela, a liberdade individual de contratar será sempre limitada pela ordem pública, prevalecendo esta sobre aquela. Tal limitação é denominada como dirigismo contratual ou intervenção estatal, vista claramente em leis como Código de Defesa do Consumidor (como ao determinar a nulidade de cláusulas abusivas – artigo 39), no Código Civil (como ao determinar abusiva e nula a cláusula, em contrato de adesão, a renúncia antecipada – artigo 423) e em leis esparsas (como 12 13 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil – volume único. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método. 2.011. p. 490. TARTUCE, Flávio. Op. cit. p. 493. 228 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. na lei 8.245/91 – lei de locação – ao determinar a existência de um direito de preferência pelo locatário – artigo 27). Em razão aos contratos de seguro, podem as Seguradoras elaborar seus contratos, regulamentos e etc. por meio dessa liberdade contratual dada pelo Direito Civil, desde que, conforme apontado acima, não confronte com a ordem pública. Portanto, exemplificando, pode muito bem uma Seguradora ofertar um plano de saúde em que limita o número de dependentes do segurado, porém, de outro lado, uma Seguradora que forneça seguro de automóveis não poderá se negar de pagar o prêmio para o Segurado que teve seu veículo, comprovadamente, extraviado por terceiros. Por fim, vale apontar que, por ordem pública, deve-se entender – na lição de Silvio Rodrigues – como “o conjunto de interesses jurídicos e morais que incumbe à sociedade preservar”14. 3. APRESENTAÇÃO DA PROBLEMÁTICA EM UMA VISÃO PRÁTICA. ANÁLISE DE JULGADOS PROFERIDOS PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL. Para um melhor aproveitamento deste artigo, trabalhará a problemática apresentada através da apresentação de casos práticos a qual foram julgados por Tribunais de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, por meio das ementas dos casos abaixo apresentados, será realizado um desmembramento para melhor conclusão deste presente artigo. O Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul já teve que confrontar com tal problemática em diversos casos, a qual se destaca dois julgados, cuja ementas seguem abaixo: APELAÇÃO CÍVEL. COMINATÓRIA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA. PREJUDICIAL DE MÉRITO RELATIVA À DECADÊNCIA. AFASTADA. MÉRITO. INCLUSÃO DE MENOR, SOB A GUARDA DA AVÓ, COMO DEPENDENTE NATURAL DESTA NO PLANO DE RODRIGUES, Silvio. Direito civil. volume 3: dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. 28. ed. São Paulo: Saraiva. 2.002. p. 16. 14 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 229 SAÚDE. EQUIPARAÇÃO A FILHO. Condição de dependente para todos os fins e efeitos de direito em decorrência do estado de guarda- Art. 33, §3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente - Proteção ao menor – Desnecessidade de prequestionamento expresso - Recurso conhecido e improvido15. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. MENOR SOB GUARDA JUDICIAL. PRETENSÃO DE INCLUSÃO EM PLANO DE SAÚDE SUPLEMENTAR COMO DEPENDENTE NATURAL INAPLICABILIDADE DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ECA. PREVALÊNCIA DA NORMA PREVIDENCIÁRIA E DO REGULAMENTO DO PLANO CONTRATADO. DEPENDENTE AGREGADO. CONTRAPRESTAÇÃO MENSAL DEVIDA. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO. A Lei n.º 9.528/97, dando nova redação ao art. 16 da Lei de Benefícios da Previdência Social, suprimiu a hipótese de guarda judicial do rol de dependentes do segurado. Nos termos do regulamento da CASSEMS, a menor que se encontra sob a guarda judicial da titular do plano de saúde é considerada dependente agregada e, sendo a filiação facultativa, seus associados estão sujeitos aos requisitos previstos em seu estatuto, não havendo como se exigir a prestação do serviço de saúde sem a devida contraprestação, pois não se trata de previdência (filiação obrigatória16. Como bem se observa, é visível a divergência entre as decisões, sendo que a Quinta Turma Cível daquele Egrégio Tribunal equiparou o menor sob guarda judical a filho e considerou como dependente natural para o plano de saúde, enquanto a Quarta Turma Cível do mesmo Tribunal não considerou a equiparação e manteve o menor sob guarda como dependente agregado. Para fins didáticos a qual esse artigo se destina, será apresentado uma breve síntese dos acórdãos proferidos acima. 3.1 Síntese do acórdão proferido pela Quinta Turma Cível. A discussão desses autos era em razão da Autora, segurada, ter requerida que a Ré, empresa-seguradora, inclui-se seu neto – a quem detêm a guarda judicial – como dependente natural, independente de qualquer contribuição. TJMS; AC-Or 2011.001598-8/0000-00; Campo Grande; Quinta Turma Cível; Rel. Des. Júlio Roberto Siqueira Cardoso; DJEMS 28/02/2011; Pág. 35. 16 TJMS; AC-Or 2010.036788-4/0000-00; Nova Andradina; Quarta Turma Cível; Rel. Des. Rêmolo Letteriello; DJEMS 22/02/2011; Pág. 42 15 230 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Segundo o regulamento da Requerida, quem enquadra-se no conceito de dependente natural (por exemplo, o filho) seria considerado dependente do segurado sem ser necessário a cobrança de contribuição, por outro lado, se caso enquadra-se no conceito de dependente agregado (por exemplo, terceiro que não fosse cônjuge ou filho) poderia ser incluído como dependente do segurado mediante contribuição específica. O relator do acórdão, desembargador Júlio Roberto Siqueira Cardoso, em seu voto, fundamentou-se com base no artigo 33, § 3° do Estatuto da Criança e do Adolescente, a qual dispões que a guarda confere ao menor a condição de dependente, para todos os fins, inclusive previdenciários. O voto foi seguido pelos demais desembargadores, o que, por unanimidade manteve o entendimento da equiparação prevalecendo sobre a autonomia de vontade. 3.2 Síntese do acórdão proferido pela Quarta Turma Cível. Em caso análogo, inclusive envolvendo a mesma Requerida, a Quarta Turma Cível do Tribunal de Mato Grosso do Sul, por meio de decisão monocrática proferida em recurso especial pelo desembargador Hildebrando Coelho Neto, manteve entendimento contrário ao da Quinta Turma Cível do mesmo Tribunal. Como se observa na fundamentação proferida pelo eminente desembargador, sua decisão teve como base o artigo 16, § 2° da lei n. 9.528/97 (lei de benefícios previdenciários)17, a qual, por meio de nova redação dada pela lei. 9.528/97, a qual, retirou, para fins de Previdência Social, a antiga equiparação legal do menor sob guarda a condição de filho, também se baseou no entendimento do STJ sobre a aplicação da nova redação do artigo 16 da lei de benefícios previdenciários. 4. A PREVALÊNCIA DA EQUIPARAÇÃO SOBRE O PRINCÍPIO CONTRATUAL. A equiparação do menor sob guarda judicial a filho deve prevalecer sobre o princípio da autonomia de vontade nos contratos de seguro. “Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado: § 2°. O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento”. 17 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 231 Como pôde se observar na apresentação prática da problemática, alguns contratos de seguro, influenciadas tanto no princípio em tela como na lei de benefícios previdenciários, vem adotando a visão de que o menor sob guarda deve ser visto como um dependente especial do segurado. A consequência de tal posicionamento se dá pelo fato de tornar a relação contratual mais gravosa ao segurado, que, terá que pagar uma contribuição a mais para inserir o menor como dependente. De fato as seguradoras tem o direito de regulamentar seus contratos com base no princípio da autonomia de vontade, desde que este não contrarie a ordem pública. Muitas se basearam na nova redação dada ao artigo 16, § 2° da lei de benefícios previdenciários que retirou a equiparação antes existente. Se apenas tomar como base essas informações, é correto afirmar que as seguradoras estão agindo em conformidade com o direito, inclusive até tendo como base norma infraconstitucional. Porém, vale apontar que a “fonte de inspiração” das seguradoras, ou seja, a nova redação do artigo 16,§ 2° da lei de benefícios previdenciários é extremamente apontada pela doutrina e jurisprudência pátria como inconstitucional. Em excelente parecer elaborado em fevereiro de 2.011, o procurador regional da República, Brasilino Pereira dos Santos, conclui que, de fato, o dispositivo da lei de benefícios previdenciários que excluiu a equiparação do menor sob guarda judicial a figura de filho deve ser visto como norma inconstitucional, pois estaria em confronto com o artigo 227, caput, da Constituição Federal de 1.988 e o princípio da proteção integral da criança e do adolescente, também seria visto como prática legislativa de discriminação e desrespeito ao princípio da isonomia, uma vez que, em sua nova redação retirou a figura do menor sob guarda, mas manteve a do menor sob tutela, tratando-se portanto de lamentável retrocesso cometido pelo legislador18. Não há nexo em se a Carta Magna estabelecer “prioridade absoluta” à criança e ao adolescente e se, atualmente, vigora, tanto em relação a seguridade social como privada uma discriminação na imagem do menor. A permanência desse dês-avanço jurídico só retira mais e mais o significado de isonomia, igualdade em um Estado Democrático de Direito. SANTOS, Brasilino Pereira dos. Menor sob guarda judicial é dependente previdenciário. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2786, 16 fev. 2011. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/18505. Acesso em: 6 maio 2012. 18 232 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Em ação civil pública n. 1998.37.00.001311-0/MA que tramitou na TRT da primeira região, já pôde a corte especial daquele tribunal apontar o desrespeito constitucional contra o menor sobre o artigo 16 da lei de benefícios previdenciários, a qual se apresenta trecho da ementa abaixo: Ademais, a discriminação trazida pela nova redação do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91 - ao excluir o menor sob guarda judicial da condição de dependente do segurado -, afronta, também, o princípio constitucional da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da CF/88, pois, do ponto de vista essencial - não do nomen iuris do instituto jurídico sob cuja tutela vivem -, os menores sujeitos à guarda judicial de outrem necessitam dos mesmos cuidados e da mesma proteção estatal dispensada aos tutelados, diante do infortúnio da morte do guardião ou tutor, conforme o caso. 19. Conforme exposto anteriormente, o menor sob guarda judicial, atualmente deve ser equiparado como filho em respeito ao princípio da isonomia. Uma vez que, a criança ou o adolescente, comprovadamente, dependa economicamente da família (família esta “substituta”), assim como o filho, reside na mesma residência, assim como o filho, e recebe o zelo em seu desenvolvimento físico-intelectual pela família, assim como o filho, nada mais é que, numa visão social, membro daquela família, mesmo sem vínculo sanguíneo, mas apenas social. E se uma das atuais mudanças no direito de família é a proteção da família e/ou de seus novos membros para além de apenas um vínculo biológico, o menor nessas condições deve ser inserido nesse novo conceito. O princípio da autonomia de vontade confere ao contratante a liberdade em contratar, mas desde que não ofenda a ordem pública. Essa discriminação sendo realizada na pessoa do menor sob guarda é, claramente, uma questão de ordem pública, afinal, é o que se prevê no artigo 227 da Constituição Federal, pois é dever da família, da sociedade e do Estado às questões pertinentes a criança e ao adolescente, com absoluta prioridade. Por fim vale apontar que, tal equiparação só poderá ocorrer se estiver regularizada a situação do menor, não há como se admitir essa visão caso INREO 1998.37.00.001311-0/MA, Rel.: Desembargadora Federal Assusete Magalhães, Corte Especial, publicado no e-DJF1 de 21/09/2009, p. 222. 19 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 233 alguém exerce apenas a posse de fato do menor, sendo necessária a busca do Poder Judiciário para conferir a posse de direito, pois, concedida esta fica mais concretizado o encargo dado a família, como a proteção do menor. Ademais, aponta o Estatuto da Criança e do Adolescente que só é possível auferir dos benefícios que o menor teria direito se for concedida a guarda (leia-se, guarda judicial)20, a posse de fato, mesmo que ficar comprovado a dependência econômica do menor à família substituta não é o suficiente, pois, deve-se evitar o máximo a permanência do menor em situação irregular. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O direito, como ciência social, é um ramo em constantes mudanças, pois segue a sociedade em que rege, com isso, por vezes, acaba tendo que presidir a colisão entre institutos próprios, em busca do bem social. O sistema jurídico pátrio, preza pelo livre e sadio desenvolvimento nas relações entre particulares como também pela proteção à criança e adolescente. Em razão à criança e ao adolescente, a Constituição Federal determinou “prioridade absoluta” a estes, sendo assim, é constante as evoluções jurídicas nesse campo a fim de atender tal meta. Dentre essas evoluções, surgiram o conceito moderno de família, não mais vista em um campo biológico, mas agora também social. Diante de toda essa interpretação, não haveria por que excluir a figura do menor sob guarda judicial entregue a família substituta, que, diante da comunidade em que convive, é visto como membro daquela família, logo, deve se defender a equiparação desse menor a imagem de filho, abrangendo seu campo de direitos e obrigações. Influenciados, negativamente, pela seguridade social, Seguradoras privadas vem estabelecendo uma certa distinção nessa visão moderna que envolva a família, discriminando assim a imagem do menor sob guarda judicial e gravando também a situação do segurado, obrigando a contribuir onerosamente mais para inserir aquele como dependente. “Art. 33. (...): § 3°. A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários”. 20 234 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Deve prevalecer o entendimento que a autonomia de vontade concedida às Seguradoras não podem atingir a figura do menor sob guarda judicial, uma vez que este, deve ser equiparado a filho, por uma questão de ordem pública, como bem disciplina a Constituição Federal em seu artigo 227, caput. Essa limitação contratual e equiparação do menor estaria em completa conformidade com o sistema jurídico interno e contribuindo para o respeito ao princípio constitucional da isonomia. 6. REFERENCIAS DAHER, Marlusse Pestana. Família substituta. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/1655. Acesso em: 4 maio 2012. GOMES, Fábio Luis. Princípio da proteção integral da criança e do adolescente e o princípio da transitoriedade dos abrigos. in. Revista Direitos Fundamentais e Democracia. vol. 6. Ano 2.009. Disponível em: www.revistaeletronicardfd.unibrasil. com.br. Acesso em: 04 de maio de 2.012. LIMA MARQUES, Cláudia. CACHAPUZ, Maria Cláudia. VITÓRIA, Ana Paula da Silva. Igualdade entre filhos no direito brasileiro atual – direito pós-moderno?. in. Revista Igualdade. ed. XXVI. ano 2.009. Disponível em: www.mp.pr.gov.br. Acesso em: 04 de maio de 2.012. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, volume III, contratos. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2.009. p. 22. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. volume 3: dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. 28. ed. São Paulo: Saraiva. 2.002. SANTOS, Brasilino Pereira dos. Menor sob guarda judicial é dependente previdenciário. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2786, 16 fev. 2011. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/18505. Acesso em: 6 maio 2012. TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil – volume único. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método. 2.011. p. 490. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 235 6.1 JURISPRUDENCIAS UTIIZADAS. TJDF; Rec 2011.00.2.014080-1; Ac. 563.220; Primeira Turma Cível; Rel. Des. Teófilo Caetano; DJDFTE 07/02/2012. TJDF, INREO 1998.37.00.001311-0/MA, Rel.: Desembargadora Federal Assusete Magalhães, Corte Especial, publicado no e-DJF1 de 21/09/2009; TJMS; AC-Or 2010.036788-4/0000-00; Nova Andradina; Quarta Turma Cível; Rel. Des. Rêmolo Letteriello; DJEMS 22/02/2011; TJMS; AC-Or 2011.001598-8/0000-00; Campo Grande; Quinta Turma Cível; Rel. Des. Júlio Roberto Siqueira Cardoso; DJEMS 28/02/2011; TJMS; AC 2012.001616-5/0000-00; Nova Andradina; Terceira Câmara Cível; Rel. Des. Fernando Mauro Moreira Marinho; DJEMS 20/03/2012. Recebido em: 08/05/2012. Aceito em: 01/07/2012. 236 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. COMENTÁRIO A ACÓRDÃO Paulo César Nunes da SILVA1 JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA E ANOTADA EMENTA: INQUÉRITO. CRIME DE AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. INCISO II DO ART. 1º DO DECRETOLEI 201/67. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. DENÚNCIA. REQUISITOS DO ART. 41 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA DA AÇÃO PENAL (INCISO III DO ART. 395 DO CPP). FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DO DOLO ESPECÍFICO DO TIPO. DENÚNCIA REJEITADA. 1. A indiciada está no exercício de mandato de Senadora da República pelo Estado do Rio Grande do Norte. Do que resulta a competência do Supremo Tribunal Federal para o processamento e julgamento da causa, nos termos do § 1º do art. 53 da Constituição Federal. 2. O exame prefacial da denúncia é restrito às balizas dos arts. 41 e 395 do Código de Processo Penal. É falar: a admissibilidade da acusação se afere quando satisfeitos os requisitos do art. 41, sem que ela, denúncia, incorra nas impropriedades do art. 395 do Código de Processo Penal. 3. No caso, as peças que instruem este inquérito dão conta de que o protocolo de intenções firmado pelos denunciados incorpora finalidade social. Finalidade inscrita nas competências materiais de toda pessoa estatal-federada (“organizar o abastecimento alimentar” - inciso VIII do art. 23 da CF/88). Mais: o “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no país” chega a ser princípio regente de toda a ordem econômica nacional (inciso IX do art. 170 da Carta Magna). Tudo sem considerar que a abertura do estabelecimento comercial objeto da denúncia gerou, aproximadamente, 154 empregos diretos para os habitantes do Município de Mossoró/RN. 4. A incidência da norma que se extrai do inciso II do art. 1º do DL 201/67 depende da presença de um claro elemento subjetivo do agente político: a vontade livre e consciente (dolo) de lesar o Erário. Pois é assim que se garante a necessária distinção entre atos próprios do cotidiano político-administrativo e atos que revelam o cometimento de ilícitos penais. No caso, o órgão ministerial público não se desincumbiu do seu dever processual de demonstrar, minimamente que fosse, a vontade livre e consciente do agente em lesar o Erário. Ausência de demonstração do dolo Mestrando em Direito Processual e Cidadania pela Universidade Paranaense – Unipar. Bolsista do Programa Institucional de Treinamento Docente e Técnico-Científico – PIT, da Unipar. 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 237 específico do delito que impossibilita o recebimento da denúncia, por falta de tipicidade da conduta do agente denunciado (inciso III, do art. 395 do CPP). 5. Denúncia rejeitada. Resumo: Este trabalho tem por objetivo verificar a aplicação do princípio da insignificância aos agentes políticos, mesmo que de forma indireta e/ou não nominada, por eventuais ilícitos previstos no Decreto-Lei n. 201/67. Palavras chave: Decreto-Lei n. 201/1967 – Agentes políticos – Princípio da insignificância. Abstract: Keywords: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM AUTOS DE INQUÉRITO N. 2646/RN - RIO GRANDE DO NORTE Origem: AP - 106050079292 - JUIZ DE DIREITO. Relator: Ministro Carlos AYRES BRITTO. Julgamento: 25/02/2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno do STF. Autor: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Indiciada: Rosalba Ciarlini Rosado. Advogado: Valentim Marinho de Oliveira Neto. Indiciado: José Junior Maia Rebouças. Advogado: Wilson Flávio Queiroz de Lima. RELATÓRIO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator) ... Com base em informações constantes do Procedimento Administrativo nº 1.192/2000, da ProcuradoriaGeral de Justiça de Natal/RN, o Ministério Público potiguar ofereceu denúncia contra Rosalba Ciarlini Rosado e José Júnior Maia Rebouças. Isso para imputar 238 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. aos denunciados o delito do inciso II do art. 1º do Decreto-Leu 201/67, o que fez nos termos seguintes (fls. 03-12): “No dia 13 de julho de 2000, a primeira denunciada, na qualidade de Prefeitura do Município de Mossoró/RN, celebrou um ‘Protocolo de Intenções’ com o segundo denunciado, este na qualidade de sócio-gerente do supermercado ‘Mercantil Rebouças’, objetivando estabelecer relações obrigacionais entre os signatários para a melhoria da infra-estrutura de apoio ao funcionamento do referido estabelecimento comercial, Comercial Rebouças Ltda, localizado na Avenida Alberto Maranhão, 2.537, Centro, Mossoró/RN. Consta do “Protocolo de Intenções’ caber ao Município de Mossoró/ RN executar os serviços de pavimentação asfáltica da área de estacionamento lateral da loja do supermercado Mercantil Rebouças e promover, mediante solicitação da Empresa, a realização de cursos de capacitação e treinamento de mão-de-obra necessária à operação do empreendimento; e à Comercial Rebouças o compromisso de colocar em funcionamento o estabelecimento comercial (loja de supermercado) num prazo de noventa dias; gerar 120 (cento e vinte) empregos diretos contratando, preferencialmente, mão-de-obra recrutada no Município de Mossoró-RN; e cumprir todas as obrigações tributárias previstas nas legislações municipal, estadual e federal. Conforme informação do Gerente Executivo da obra, Engenheiro Yuri Tasso Duarte Queiroz Pinto, foram executados, pela Prefeitura Municipal de Mossoró-RN, 1.050m² (hum mil e cinqüenta metros quadrados) de pavimentação asfáltica, com espessura de 3cm (três centímetros), orçada no valor de R$ 3.832,50 (três mil, oitocentos e trinta e dois reais e cinqüenta centavos), tendo consumido 16,54m³ de brita ‘0’; 9,54m³ de areia média e 3,65 toneladas de CR 250 (fls. 27). A contraprestação do particular em relação à Municipalidade, constante no ‘Protocolo de Intenções’, não importou em qualquer benefício para o Poder Público Municipal já que o compromisso de terminar a obra de construção do empreendimento, em noventa dias, apenas beneficia o empresário que obterá o retorno do investimento com maior rapidez; o pagamento de tributos constitui obrigação legal da pessoa jurídica independentemente de condição ou termo; e a geração de empregos, preferencialmente entre os municípios, representa uma vantagem econômica para o empresário que não precisa arcar com gastos adicionais decorrentes de empregados residentes em outras localidades. Portanto, da assinatura e da execução do Protocolo de Intenções pelo Município de Mossoró-RN decorreu evident4e prejuízo para a municipalidade com a utilização indevida, em proveito exclusivo e discriminatório o particular (José Júnior Maia Rebouças, sócio-gerente da Comercial Rebouças – Mercantil Rebouças), de bens e de serviços Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 239 públicos consistentes em maquinário, mão de obra e matéria prima. Ante a utilização indevida, pela Srª Rosalba Ciarlini Rosado, ExPrefeito do Município de Mossoró-RN, de bens e serviços públicos em proveito da Comercial Rebouças Ltda. (Mercantil Rebouças), e o enriquecimento ilícito do Sr. José Júnior Maia Rebouças, seu sóciogerente, encontra-se os denunciados incursos no artigo 1º, inciso II do Decreto-Lei nº 201/67.” Pois bem, nos termos do inciso I do art. 2º do Decreto-Lei 201/672, o Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Mossoró/RN determinou a notificação dos denunciados para apresentarem defesa prévia. Prossigo neste relato para anotar que a defesa de José Júnior Maia Rebouças aduziu que o denunciado “não cometeu o crime de forma prescrita na denúncia”. Deu-se que, na sequência, o Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Mossoró/RN remeteu os autos ao Supremo Tribunal Federal. O que fez ante a diplomação e posse da primeira denunciada no cargo de Senadora da República. A mim distribuídos os autos, abri vista à Procuradoria-Geral da República. Procuradoria que ratificou a denúncia ajuizada e requereu o seguinte do feito. Pelo que determinei a notificação da Senadora para apresentar sua resposta prévia. Resposta em que pugnou a rejeição da denúncia, sob os fundamentos seguintes: a) não tem vinculação política com o segundo denunciado; b) a construção do estacionamento é de serventia pública; c) o incentivo à atividade econômica é dever do Estado; d) o valor da obra questionada pelo Ministério Público não ultrapassa R$ 3.832,50 (três mil, oitocentos e trinta e dois reais e cinquenta centavos). À derradeira, averbo que dei vista dos autos à Procuradoria-Geral da República. Órgão que requereu o recebimento da denúncia, in verbis (fls. 195/196): “(...) No caso em tela, evidencia-se a indevida utilização de bens e serviços públicos em favor de um único empresário, sem qualquer critério objetivo de escolha, como se somente ele tivesse interesse e “Art. 2º O processo dos crimes definidos no artigo anterior é o comum do juízo singular, estabelecido pelo Código de Processo Penal, com as seguintes modificações: I – Antes de receber a denúncia, o Juiz ordenará a notificação do acusado para apresentar defesa prévia, no prazo de cinco dias. Se o acusado não for encontrado para a notificação, ser-lhe-á nomeado defensor, a quem caberá apresentar a defesa, dentro do mesmo prazo”. 2 240 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. condições de instalar um estabelecimento comercial no município. Note-se que a empresa em questão já dispunha de dois outros estabelecimentos em Mossoró e a abertura de uma terceira loja certamente não teria condão de influir de maneira significativa no comércio local. Ademais, se o objetivo da então Prefeita era desenvolver a economia municipal, poderia fazê-lo por meio de programas transparente e impessoais, dirigidos a todos os comerciantes indistintamente.” É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator) ... Feito o relatório, passo ao voto. Ao fazê-lo, anoto, de saída, que denunciada Rosalba Ciarlini Rosado está no exercício de mandato de Senadora da República pelo Estado do Rio Grande do Norte; do que resulta a competência desta nossa Corte para processá-la e julgá-la, nos temos do § 1º do9 art. 53 da Constituição Federal. Passo ao exame da inicial acusatória. Exame que, nesta fase preliminar, é balizado pelos arts. 41 e 395 do Código de Processo Penal. No art. 41, a lei adjetiva penal indica um necessário conteúdo positivo para a denúncia. É dizer: ela, denúncia, deve conter a exposição do fato criminoso – com suas circunstâncias, de par com a qualificação do acuso -, a classificação do crime e o rol de testemunhas (quando necessário). Aporte factual, esse, que viabiliza a plena defesa do acusado, incorporante da garantia processual do contraditório. Já no art. 395, o mesmo diploma processual impõe à peça acusatória um conteúdo negativo. Se, pelo art. 395, há uma obrigação de não fazer; ou seja, a peça de acusação não pode incorrer nas seguintes impropriedades: “Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeita quando: I – for manifestamente inepta; II – faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou III – falta justa causa para o exercício da ação penal”. Pois bem, aos denunciados é increpado o delito do inciso II do art. 1º Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 241 do Decreto-Lei 201/67. Crime, esse, punido com pena máxima de reclusão de 12 anos. O que diz a denúncia? Fala que os crimes supostamente ocorreram no ano de 2000, pelo que não há que se falar em extinção da punibilidade pela prescrição3. Prossigo para pontuar que, na analise que nos é permitida nesta fase, a denúncia se me afigura embasada em elementos fático-probatórios que sinalizam a ocorrência dos fatos narrados pelo titular da ação penal. Fatos, todavia, que não me parecem subsumíveis ao tipo penal do inciso II do art. 1º do Decreto-Lei 201/67, in verbis: “Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores: II – utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou serviços públicos”. Com efeito, a documentação que instrui este inquérito dá conta de que, em 2000, os denunciados firmaram um protocolo de intenções em que o Município de Mossoró contraiu as seguintes obrigações (fls. 31): “1. Executar os serviços de pavimentação asfáltica da área do estacionamento lateral da loja de supermercado, utilizando para isso 32 metros cúbicos de asfalto PMF; 2. Promover, mediante solicitação da Empresa, a realização de cursos de capacitação e treinamento de mão de obra necessária }à operação do empreendimento”. Pois bem, tenho que a área de estacionamento de veículos automotores, construída na lateral do supermercado, mas não de serventia exclusiva dos clientes dessa unidade empresarial (é o que deduzo dos autos), incorpora finalidade social preponderante sobre o aspecto focadamente mercantil-privado do empreendimento. É que se inscreve, nas competências matérias de toda pessoa estatal-federada, “organizar o abastecimento alimentar” (inciso VIII do art. 23 da CF), setor de atividade que tenho por abarcante da atuação dos pequenos mercados de produtos alimentícios, como no caso. Não menos certo, ainda, que o “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as Isso porque, no caso do crime do inciso II do art. 1º do Decreto-Lei 201/67, a prescrição opera em 16 anos, considerada a pena máxima de 12 anos. 3 242 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. leis brasileiras e que tenham sede no país” chega a ser princípio regente de toda a ordem econômica nacional (inciso IX do art. 170 da Carta Magna de 1988), parecendo-me que a parceria objeto da denúncia não desborda dos quadrantes da legítima ação estatal de apoio a pequena unidade mercantil. Com a mencionada particularmente de que a área do estacionamento em foco se prestabiliza também para outros fins coletivos. Não é só: a abertura do referido estabelecimento comercial gerou, aproximadamente, 154 empregos diretos para os habitantes do Município, além de outros empregos indiretos. A sinalizar que subjaz ao protocolo de intenções um interesse coletivo que não é de ser ignorado ou tido como desprezível. Sem falar que o valor da obra sequer alcançou R$ 4.000,00 (quatro mil reais), também a sinalizar proporcionalidade entre o gasto público e o interesse coletivo afinal satisfeito. Já me encaminhando para o final deste voto, averbo que não desconheço ser probidade administrativa o mais importante conteúdo do princípio da moralidade pública. Daí o modo particularmente severo com a Constituição, em seu § 4º do art. 37, reage à violação dela, probidade administrativa, in verbis: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízos da ação penal cabível”. Todavia, esse regramento constitucional não tem a força de transformar em ilícitos penais práticas que eventualmente ofendam o cumprimento de deveres simplesmente administrativos. Daí por que a incidência da normal penal referida pelo Ministério Público está a depender da presença de um claro elemento subjetivo que não enxergo neste caso: a vontade livre e consciente (dolo) de lesar o Erário. Pois é assim, que se garante a distinção, a meu sentir necessária, entre atos próprios do cotidiano político-administrativo (controlados, portanto, administrativa e judicialmente nas instâncias competentes) e atos que revelam o cometimento de ilícitos penais. E de outra forma não é de ser, pena de se transferir para a esfera penal a resolução de questões que envolvem a ineficiência, a incompetência gerencial e a responsabilidade político-administrativa. Questões Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 243 que se resolvem no âmbito das ações de improbidade administrativa, portanto. Hely Lopes Meirelles, em seu clássico Direito Municipal Brasileiro (RT, 1985, p. 587/588), no mesmo tom, sustenta que as figuras típicas do art. 1º do Decreto Lei 201/67: “[...] só se torna puníveis quando o Prefeito busca intencionalmente o resultado, ou assume o risco de produzi-lo. Por isso, além da materialidade do ato, exige-se a intenção de praticá-lo contra as normas legais que o regem [...] Mas em se tratando de crime contra Administração Municipal, é sempre possível e conveniente perquirir se o agente atuou em prol do interesse público, ou para satisfazer interesse pessoal ou de terceiro. Se o procedimento do acusado, embora irregular, foi inspirado no interesse público não há crime a punir”. É o quanto me basta para encaminha meu voto pelo não-recebimento da denúncia. Mas estou aberto, como sempre faço, ao aprofundamento deste debate. É como voto. DECISÃO Após o voto do Senhor Ministro Carlos Britto (Relator), rejeitando a denúncia, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Joaquim Barbosa, estando ausente, justificadamente, o Senhor Ministro Menezes Direito. Falaram, pelo Ministério Público Federal, o Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, Procurador-Geral da República, e, pelos acusados, o Dr. Paulo de Tarso Fernandes. Na Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes. Plenário do STF, dia 06.08.2009. Após os votos dos Senhores Ministros Ayres Britto (Relator), Dias Toffoli, Ellen Gracie e Gilmar Mendes (Presidente), rejeitando a denúncia, e os votos dos Senhores Ministros Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Cezar Peluso e Marco Aurélio, recebendo-a, o julgamento foi adiado para colher os votos dos Senhores Ministros Celso de Mello (licenciado), Eros Grau e Ricardo Lewandowski, ausentes justificadamente. Plenário do STF, dia 18.02.2010. O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator Ministro Ayres 244 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. Britto, rejeitou a denúncia, vencidos os Senhores Ministros Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Cezar Peluso e Marco Aurélio. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausentes, licenciado, o Senhor Ministro Celso de Mello e, justificadamente, a Senhora Ministra Ellen Gracie, que proferiu voto em assentada anterior. Plenário do STF, dia 25.02.2010. COMENTÁRIOS A construção de Estacionamento de Supermercado por Município e a aplicação do Art. 1º, II, do Decreto-lei 201/67, foi o objeto do julgado ora comentado, que foi julgado pelo STF em virtude do foro por prerrogativa de função da Indiciada Rosalba Ciarlini, depois de eleita Senadora da República, mesmo que na data dos supostos fatops delitivos estava na condição de prefeita municipal. Em conclusão, o Supremo Tribunal, por maioria de seus membros, rejeitou denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral de Justiça do Rio Grande do Norte-RN, pela qual se imputava a Senadora e outro pessoa, a suposta prática do crime descrito no art. 1º, II, do Decreto-lei 201/67. No caso, a primeira denunciada, então Prefeita do Município de Mossoró/ RN, celebrara um “Protocolo de Intenções” com o segundo denunciado, sóciogerente de supermercado, por meio do qual a denunciada se obrigara a executar os serviços de pavimentação asfáltica da área de estacionamento lateral da loja desse estabelecimento comercial, bem como promover, mediante solicitação da empresa, a realização de cursos de capacitação e treinamento de mão-de-obra necessária à operação do empreendimento. Entendeu-se não haver o apontado ilícito, salientando que o estacionamento construído não seria de serventia exclusiva dos clientes do supermercado, considerando-se que, no caso, existiria um aspecto social preponderante sobre o aspecto puramente mercantil ou econômico do empreendimento, mitigador da pretensãp punitiva estatal. Afirmou-se que se estaria diante de empresa beneficiária de pequeno Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 245 porte, e que a atividade estaria inserida na organização do abastecimento alimentar, para a qual o Estado teria competências materiais explícitas. Enfatizou-se, ademais, que o fato de o supermercado criar centenas de empregos diretos no Município teria grande significado social e que seria ínfimo o valor do dispêndio público, qual seja, inferior a quatro mil reais, não estando caracterizada nenhuma discrepância, nenhum superfaturamento entre esse valor e a área construída. Concluiu-se, por derradeiro, que, se ilícito houvesse, seria mais de caráter administrativo, tendo sido vencidos no julgamento os Ministros Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Cezar Peluso e Marco Aurélio, que recebiam a denúncia. Apesar de não estar claramente reconhecido na decisão a aplicação do princípio da insignificância, a atenta leitura desta nos leva a crer nisso, principalmente em passagens como, por exemplo, “a quantia realmente não tem expressão...”, ou “... o valor da obra sequer alcançou R$ 4.000,00 ...”. Então, claramente verifica-se a aplicação do referido princípio no ilícito previsto no Decreto-Lei n. 201/67 em comento, decisão esta que contraria a até então doutrina majoritária especializada no tema, pois segundo estes, basta que haja o dano ao erário, independentemente do valor, este deve ser punido exemplarmente, diferente do que se sopesou no julgado em análise. Logo dessa leitura e conclusão, não podemos perder de mira que o Direito Penal, também aplicável à espécie penal do Decreto-Lei n. 201/67, deve funcionar como a ultima ratio, pondo em movimento as estruturas burocráticas do aparato repressivo apenas em medida extrema, quando se deve coibir aqueles comportamentos que coloquem em efetivo risco o pacto social. Inclusive, esse aspecto de último argumento foi enfatizado no julgado quando se tratou de que se ilícito tivesse ocorrido, este seria de caráter administrativo. Logo, se a punição de caráter administrativo mostra-se suficiente para coibir e reprimir uma conduta ilícita, guardando proporcionalidade entre a conduta perpetrada e a pena imposta, pouco importando seja ela de natureza civil, temos concretizado o princípio constitucional da individualização da pena, da proporcionalidade, e finalmente da insignificância. Portanto, o julgador, principalmente das instâncias singelas, devem 246 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. sempre levar em consideração em seus veredictos tais princípios, pois administrar a “res publica” é algo muito difícil, e levando-se em consideração a demanda reprimida em face da insuficiência de meios e recursos, ao administrador cabe a criatividade no gerir, e por vezes nem sempre se está amparado legalmente, no entanto o ato não está eivado de má-fé, dolo ou danos ao erário, mas sim de aspectos sociais muito valorosos, conforme viu-se no julgado comentado. Logo, o Direito Penal moderno bem concebe o seu papel de soldado de reserva, visto que a imposição de sanções da maior gravidade num Estado Democrático de Direito deve ficar reservada para situações que efetivamente criem uma desestabilização na paz social, em outras palavras, que coíbam condutas revestidas de maior gravidade ou periculosidade. Preceitua o professor Luiz Flávio Gomes, que na atualidade o Direito penal continua ainda sendo visto sob duas perspectivas: a legalista (do século XX) e a constitucionalista (do século XXI). O STF, na atualidade, e no caso específico em comentário, constitui a máxima expressão desta segunda visão (que nos permitiu desenvolver a teoria constitucionalista do delito no Brasil). Apesar da força da ideologia punitivista ser muito grande, temos de progredir em matéria penal constitucional, e “abrirmos nossos horizontes” a fim de não “rasgarmos” a CF/88, tão sonhada e glorificada em tempos pretéritos. A adoção das teses constitucionalistas no âmbito penal exige estudos e coragem, o “povão” (opinião popular), ou a democracia crítica nas palavras do Ministro Gilmar Mendes, em regra, não legitima tais teses, sobretudo pelo desconhecimento, já que a criminalidade que assola o Brasil é fruto da inoperância do Estado em setores pontuais da política social falida (saúde, educação e segurança pública principalmente), daí o que lhes satisfazem é o populismo penal (em geral), por isso o “ir às ruas” é uma atitude altamente perigosa para a preservação dos direitos e garantias fundamentais, tema muito discutido e combatido (famigerado e malfadado direito penal promocional). Não diferentemente, a comoção popular, em tempos de ampla divulgação de dados e atos da administração em geral, os ilícitos dos agentes políticos não podem sofrer tais restrições, como o da não aplicação do princípio Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 247 da insignificância nos delitos previstos no Decreto-Lei n. 201/67, sob pena de se cometer injustiças. O princípio da insignificância já é amplamente utilizado no Brasil, senão vejamos o exemplo no tocante ao crime de descaminho: Acusada por descaminho obtém suspensão de ação penal por insignificância do débito. O ministro Celso de Mello aplicou o princípio da insignificância para conceder liminar no Habeas Corpus (HC) 99739, impetrado no Supremo Tribunal Federal (STF) por V.L.R., suspendendo processo-crime em curso contra ela na Vara Federal de Carazinho (RS), pelo crime de descaminho (artigo 334 do Código Penal – CP). Tal crime consiste na importação ou exportação de mercadorias sem o devido recolhimento de tributos. A defesa alega que o valor sonegado é inferior a R$ 10 mil e, portanto, conforme o artigo 20 da Lei nº 10.522/200 - que considera dispensável a cobrança de débitos tributários de valor abaixo de R$ 10 mil -, deve ser aplicado o princípio da insignificância. No pedido, V.L.R. questiona decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, em Recurso Especial (RESP) lá interposto, manteve o recebimento da denúncia, assim como o Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Indo mais adiante, utilizando os ensinamentos de Claus Roxin4, a conduta, para ser penalmente típica considerada em face do Direito Penal, deve oferecer um risco ao bem jurídico. Se não há risco, não existe imputação objetiva. Trata-se de ausência de imputação objetiva da conduta, conduzindo à atipicidade do fato. Não basta verificar se o comportamento tem idoneidade para ameaçar o direito protegido pela normal penal, condutas inofensivas não podem ser punidas, porque a função do direito penal é proteger valores sociais que estejam expostos a risco. Desta feita, irrefragável é o acertamento da posição adotada pelo STF, com base no garantismo jurídico e princípios norteadores do direito penal no presente caso, mudando, ou pelo menos alterando no presente caso o entendimento de outros Tribunais, inclusive o do STJ: PRINCÍPIO. INSIGNIFICÂNCIA. PREFEITO. O tribunal a quo condenou o paciente à pena de reclusão de cinco anos, em regime semiaberto, pela prática da conduta prevista no art. 1º, I, do DL ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña; Miguel Díaz y García Conlledo; Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. I, p. 373. 4 248 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. n. 201/1967, porque, no exercício do cargo de prefeito, concordou com a emissão de documento fiscal apto a justificar despesa que, atualmente, seria cerca de R$ 600, referente a uma festa oferecida a convidados especiais. A Turma, entre outras questões, entendeu ser inaplicável o princípio da insignificância aos crimes praticados por prefeito, em razão de sua responsabilidade na condução dos interesses da coletividade. A conduta esperada de um chefe da Administração municipal é a obediência aos mandamentos legais, com a obrigatoriedade de agir sempre pautado em valores éticos e morais, respeitando os compromissos funcionais firmados quando da aceitação do cargo. Quanto à questão da dosimetria da pena, a Turma verificou que o decreto condenatório carece de motivação apta a justificar a fixação da pena-base no patamar aplicado e, tendo sido reconhecida a inexistência de qualquer característica judicial desfavorável, reformou a sanção-base aplicando o mínimo legal, qual seja, dois anos de reclusão. Não havendo circunstâncias atenuante e agravante ou causas de diminuição e aumento de pena, fixou a pena definitiva naquele patamar. O teor do art. 33, § 2º, c, e § 3º, do CP fixou o regime aberto para início do cumprimento da sanção reclusiva. Contudo, concedeu habeas corpus de ofício para declarar extinta a punibilidade do paciente em razão da prescrição da pretensão punitiva estatal, na modalidade retroativa, nos termos dos arts. 107, IV, e 109, V, do CP. HC 145.114-GO, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 17/8/2010. Portanto, o STF, segundo nosso modesto entender, levando como norte para isso o posicionamento de insignes doutrinadores estrangeiros, tais como, Zaffaroni e Pierangeli5, que afirmam: “para que uma conduta seja penalmente típica é necessário que tenha afetado o bem jurídico”, configurando “a afetação jurídica um requisito da tipicidade penal”, acertaram em não restringir neste particular a aplicação dos dogmas garantistas em eventuais delitos cometidos por agentes políticos. Recebido em: 18/03/2012. Aceito em: 19/06/2012. 5 Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: RT, 1997. p. 563. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 249 250 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. RESENHA Ana Cristina BARUFFI1 CORBI, Enrique Lonzano y. LA LEGITIMACIÓN POPULAR EN EL PROCESO ROMANO CLASICO. Bosch, Casa Editorial. Barcelona: Espanha, 1982. 361p. Enrique Lonzano y Corbi é Professor de Direito Romano e Sujeito de Direito e Instituições Familiares Romanas na Faculdade de Direito da Universidade de Zaragoza/Espanha. A obra em análise é a Tese de Doutorado de Enrique Lonzano y Corbi, defendida em 19/01/1981, elaborada nas Universidades de Roma e Zaragoza. Uma obra clássica que nos remete ao Direito Romano para apresentar, de forma clara, o funcionamento da legitimação popular romano clássico. A legitimação popular é uma das instituições processuais mais tipicamente romanas. Exatamente por essa característica, serviu de base para que o autor pudesse averiguar quem – e de que maneira – são – estão – legitimados para propor interdictos e ações populares no Direito Romano Clássico (lembrando que esta é a segunda fase do Direito Romano, ocorrendo de 130 a.C a 230 d.C - fase de muitas realizações literárias e práticas dos juristas romanos, verificável também pelos elementos apresentados pelo autor na obra elencando Cícero, Tito Livio, Gayo, Augusto, etc.). A obra é dividida em cinco capítulos, incluindo introdução e conclusão. No primeiro capítulo (Introdução) o autor identifica quem é o legitimado ativo Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. Especialista em Metodologia do Ensino Superior pelo Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN. Mestre em Direito Processual Civil, subárea Processo e Cidadania, Linha de Pesquisa Relações Negociais pela Universidade Paranaense – UNIPAR. Advogada. 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 251 para ajuizar as vias processuais populares, ou seja, aquele que vai atuar em nome do populus. Porém, antes de defini-lo, desvenda o significado do termo populus que, a depender da obra clássica (e das traduções adquiridas com o tempo) adquire diversos significados, desde ditador à ideia de Estado, como ente abstrato. E é em Cícero que o autor encontra seu ponto de partida para definir o termo. Populus não se resume a um grupo de homens reunidos de qualquer forma. É preciso a existência de 3 elementos: 1) que haja uma pluralidade de pessoas, 2) que estejam reunidas por um voluntário consenso jurídico (vínculo jurídico) e 3) que essa reunião seja para a busca/concretização de um bem superior comum. Assim, atribui-se uma ideia de legitimação ativa aberta, ou seja, qualquer cidadão podia iniciar o procedimento e, se tornaria o legitimado a executá-lo na eventualidade de procedente a ação (o que já diferencia o processo popular de outras vias processuais da época). Cabe destacar que no Direito Romano a representação, como nós conhecemos hoje, não existia. O legitimado ativo escolhido para ajuizar uma das vias processuais de caráter popular, não atuava apenas em nome do populus, mas em seu próprio nome também (há um interesse individual sendo preservado ao lado do interesse público), como cidadão integrante deste populus, motivo pelo qual não se pode falar em representação. No segundo capítulo ele apresenta as características da legitimação processual popular, identifica quem são os legitimados ativos e passivos e quem está impossibilitado, seu regime, tipo de ações possíveis – ação popular e interditos populares. No terceiro e quarto, identifica detalhadamente os interditos populares as ações populares respectivamente. Sua evolução histórica, suas diferenças, objetos, quando sua utilização, procedimento e penas. Traça uma diferenciação entre as ações privadas, populares e públicas (espécies existentes na época). Seja no caso do interdito popular, seja no caso da ação popular, uma vez que esse direito coletivo fosse violado, por não existirem órgãos representativos como já destacado, era escolhido um cidadão dentre os que integravam o populus. Assim, o legitimado ativo é todo o indivíduo que compunha a parte integradora 252 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. de uma massa comum da civitas2 e atuava tanto por seu interesse particular, como em favor da sociedade como um todo. A máxima “Para o bem geral da nação.” O seu interesse particular coincidia com o interesse dos restantes cidadãos da civitas. E por coincidir, sua defesa era como cidadão e não como particular. Em havendo situações de diversas pessoas intentarem a mesma ação, o pretor iria identificar quem possui um interesse mais direto para exercitá-la, e se não houvesse, quem seria o mais idóneo para assumir a posição de legitimado processual. Este se tornaria o legitimado ativo para agir em nome do populus, em seu nome e de todos os demais integrantes da civitas. Sua atuação em prol da sociedade era uma das mais altas demonstrações de civismo. Hoje temos resquícios desta legitimidade popular no processo. Apresenta-se pelas ações coletivas, possíveis na defesa dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, devendo o legitimado demonstrar a existência do interesse social e, quando se tratar de direitos coletivos e individuais homogêneos, a coincidência entre os interesses do grupo, categoria ou classe e, o objeto da demanda. Porém, não se limita a elas. Existem situações que abrangem direitos coletivos lato sensu, aqueles que têm como sujeito de direito não apenas o indivíduo “encastelado no direito real erga omnes, mas também a coletividade; os bens não são de propriedade do Estado com seu direito administrativo, mas de todos os cidadãos”3 para os quais não pode ser proporcionado o mesmo tratamento daqueles. Para esses, o retorno aos clássicos, como à obra analisada, se faz necessário para responder as perguntas e preencher as lacunas que surgem deste processo de participação democrática, a nova face da jurisdição pós-moderna. Recebido em: 18/06/2012. Aceito em: 19/07/2012. 2 Vale recordar que, em Roma, os capazes juridicamente eram os cidadãos romanos, homens, púberes com plena faculdade mental. Estavam excluídos deste rol: os plebeus, até a promulgação da leges Valeriae Horatiae (que equiparou plebeus aos patrícios, tornando-os desta forma, cidadãos romanos) , mulheres, menores de 25 anos, enfermos, pródigos, infames e os em exercício militar (estes deviam se preocupar com a proteção e segurança da urbs e não com as questões políticas). 3 PILATI, José Isaac. Propriedade e função social na pós-modernidade. 2.ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2012. P. 134. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 253 254 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. REVISTA JURÍDICA UNIGRAN Normas Gerais Para A Publicação De Trabalhos A Revista Jurídica Unigran é uma publicação de divulgação científica da Faculdade de Direito do Centro Universitário de Dourados. Esta publicação incentiva a investigação e procura o envolvimento de seus professores e alunos em pesquisas e cogitações de interesse social, educacional, científico e tecnológico. A Revista Jurídica aceita artigos de seus docentes, discentes, bem como de autores da comunidade científica nacional e internacional, mesmo que já tenham sido publicados em outro periódico científico. Publica artigos, notas científicas, relatos de pesquisa, estudos teóricos, relatos de experiência profissional, revisões de literatura, resenhas, nas diversas áreas do conhecimento científico, sempre a critério de sua Comissão Editorial. Solicita-se observar as instruções a seguir para o preparo dos trabalhos, os quais devem seguir o formato dos artigos aqui publicados. 1. Endereço para envio dos artigos: [email protected]. Os originais devem ser encaminhados completos, definitivamente revistos, com o máximo 15 páginas, digitadas em espaço 1,5 entre as linhas. Recomenda-se o uso de caracteres Times New Roman, tamanho 12. Somente em casos muito especiais serão aceitos trabalhos com mais de 15 páginas. Os títulos das seções devem ser em maiúsculas, numerados seqüencialmente, destacados com negrito. Não se recomenda subdivisões excessivas dos títulos das Seções. 2. Língua. Os artigos deverão ser escritos preferencialmente em Português, aceitando-se textos em Inglês e Espanhol. 3. Os trabalhos devem obedecer à seguinte ordem: - Título (e subtítulo, se houver). Deve estar de acordo com o conteúdo do trabalho, conforme os artigos aqui apresentados. - Autor(es). Logo abaixo do título, apresentar nome(s) do(s) autor(es) por extenso, sem abreviaturas. Com numeração, colocado logo após o nome completo do autor ou autores, remeter a uma nota de rodapé, Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 255 relativa às informações referentes às instituições a que pertence(m) e às qualificações, títulos, cargos ou outros atributos do(s) autor(es). O Orientador, co-orientador de Trabalhos de Graduação, Dissertações e Teses passam a ser co-autores em textos originados destes trabalhos. - Resumo. Com o máximo de 250 palavras, o resumo deve apresentar o objeto estudado, seu objetivo, como foi feito (metodologia), apresentando os resultados, conclusões ou reflexões sobre o tema, de modo que o leitor possa avaliar o conteúdo do texto. - Abstract. Versão do resumo para a língua Inglesa. Caso o trabalho seja escrito em Inglês, o Abstract deverá ser traduzido para o Português (Resumo). - Palavras-chave (Keywords). Apresentar duas a cinco palavras-chave sobre o tema. - Texto. Deve ser distribuído de acordo com as características próprias de cada trabalho. De um modo geral, contém: 1. Introdução; 2. Desenvolvimento; 3. Considerações finais; 4. Referências. - Citações dentro do texto. As citações textuais longas (mais de três linhas) devem constituir um parágrafo independente, apresentadas em bloco. As menções a autores no decorrer do texto devem subordinar-se ao esquema numérico (referência de rodapé), com a primeira referência completa e as demais podem vir abreviadas (op. cit. p. ou Ibidem, p. ). - Referências Bibliográficas. Elas devem ser apresentadas ao final do trabalho, em ordem alfabética de sobrenome do(s) autor(es), como nos seguintes exemplos: a)Livro: SOBRENOME, Nome. Título da Obra. Local de publicação: Editora, data. Exemplo: PÉCORA, Alcir. Problemas de Redação. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. b) Capítulo de Livro : SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome (org.). Título do Livro, Local de publicação: Editora, data. Página inicial-final. c) Artigo de periódico: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico, local de publicação, volume do periódico, número do fascículo, página inicial-página final, mês(es).ano. Exemplo: ALMEIDA JÚNIOR, Mário. A economia brasileira. Revista Brasileira de Economia, São Paulo, v. 11, n.1, p.26-28, jan./ fev.1995. 256 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. d) Teses e Dissertações: Sobrenome, nome. Título da Dissertação (ou tese). Local. Número de páginas (Categoria, grau e área de concentração). Instituição em que foi defendida. Data. Exemplo: BARCELOS, M.F.P. Ensaio tecnológico, bioquímico e sensorial de soja e guandu enlatados no estádio verde e maturação de colheita. 1998. 160 f. Tese (Doutorado em Nutrição) – Faculdade de Engenharia de Alimentso, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. e) Outros: Consultar as Normas da ABNT para Referências Bibliográficas. 4. As Figuras (desenhos, gráficos, ilustrações, fotos) e tabelas devem apresentar boa qualidade e serem acompanhados de legendas breves e claras. Indicar no verso das ilustrações, escritos a lápis, o sentido da figura, o nome do autor e o título abreviado do trabalho. As figuras devem ser numeradas seqüencialmente com números arábicos e iniciadas pelo termo Figura, devendo ficar na parte inferior da figura. Exemplo: Figura 4 - Gráfico de controle de custo. No caso das tabelas, elas também devem ser numeradas seqüencialmente, com números arábicos, e colocadas na parte superior da tabela. Exemplo: Tabela 5 – Cronograma da Pesquisa. As figuras e tabelas devem ser impressas juntamente com o original e quando geradas no computador deverão estar gravadas no mesmo arquivo do texto original. No caso de fotografias, desenho artístico, mapas, etc., estes devem ser de boa qualidade e em preto e branco. 5. O Conselho Editorial avaliará sobre a conveniência ou não da publicação do trabalho enviado, bem como poderá indicar correções ou sugerir modificações. A cada edição, o Conselho Editorial selecionará, dentre os trabalhos considerados favoráveis para publicação, aqueles que serão publicados imediatamente. Os não selecionados serão novamente apreciados na ocasião das edições seguintes. 6. Os conteúdos e os pontos de vista expressos nos textos são de responsabilidade de seus autores e não apresentam necessariamente as posições do Corpo Editorial da Revista de Direito do Curso de Direito do Centro Universitário de Dourados- UNIGRAN. 7. Aos autores serão remetidos gratuitamente, três exemplares do número em que forem publicados. 8. O Conselho Editorial se reserva o direito de introduzir alterações nos originais, com o objetivo de manter a homogeneidade e a qualidade da publicação, respeitando, porém, o estilo e a opinião dos autores. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012. 257 9. Endereços. Deverá ser enviado o endereço completo de um dos autores para correspondência. Os trabalhos deverão ser enviados para: [email protected]. UNIGRAN - Centro Universitário de Dourados. Rua Balbina de Matos, 2121 79.824-900 - Dourados - Mato Grosso do Sul - MS. 258 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 14 | n. 27 | Jan./Jun.2012.