Apostila de
Sociologia 3º ano
do Ensino Médio
Professor: Douglas Fernando Blanco
Colégio CEC
Cianorte
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velhos ficam nos ―incentivando‖ a casar? ―Não vá ficar pra titia, heim!‖, ―Onde já
Sociologia
se viu! Todo mundo, um dia, tem que se casar!‖. Com certeza você já ouviu alguém
dizendo isso.
Os fatos sociais
Durkheim acreditava que os acontecimentos sociais – como os crimes, os
Pois é. Esses dizeres nos levam a crer que o casamento também é
suícidios, a família, a escola, as leis – poderiam ser observados como coisas
coercitivo, pois nos vemos ―obrigados‖ a fazer as mesmas coisas que fazem os
(objetos), pois assim, seria mais fácil de estudá-los.
demais membros do grupo ou da sociedade a que pertencemos.
Então ele propôs algumas das regras que identificam que tipo de fenômeno
Todo fato que reuna essas três características (generalização, exterioridade e
poderia ser estudado pela Sociologia. A esses fenômenos que poderiam ser
coerção) é denominado social, segundo Durkheim, e pode ser estudado pela
estudados por uma ciência da sociedade ele denominou de fatos sociais.
Sociologia. Quanto ao casamento, poderíamos estudar e descobrir, por exemplo,
As características dos fatos sociais são: Coletivo ou geral ( generalidade) –
quais fatores influem na decisão das pessoas em se casarem e se divorciarem para
significa que o fenômeno é comum a todos os membros de um grupo; Exterior ao
depois se casarem novamente.
indivíduo (exterioridade) – ele acontece independente da vontade individual;
Coercitivo (coercitividade) – os indivíduos são ―obrigados‖ a seguir o
O que é fato social?
comportamento estabelecido pelo grupo.
Faça o exercício de localizar os fatos sociais a partir das características que
Para entender:
exemplo de um fato social: o casamento
Durkheim percebeu neles. Recorte de jornais e revistas e traga para que a turma
As pessoas pensam, em um dia, se casar. Salvo algumas exceções, pois não
discuta se os fatos que você encontrou são sociais e podem ser estudados pela
pensamos todos da mesma forma, certo? Mas se fizermos uma pesquisa, veremos
Sociologia.
que a grande maioria das pessoas deseja se unir a alguém. Então podemos dizer que
o casamento é um fato coletivo ou geral, pois existe pela vontade da maioria de um
O Suicídio = Fato Social
grupo ou de uma sociedade.
O que leva uma pessoa a se suicidar? Loucura?
Mas ainda que alguém não queira se casar, a grande maioria das pessoas vai
continuar querendo, não é mesmo? - Isso significa que o fato social ―casamento‖ é
Durkheim utilizou sua teoria para explicar, por exemplo, o suicídio. O que
exterior ao indivíduo. O que quer dizer que ele se constitui não como resultado das
aparentemente seria um ato individual, para ele, estava ligado com aquilo que
intenções particulares dos indivíduos, mas como resposta às necessidades ou
ocorria na sociedade. Esse pensador compreende a sociedade como um corpo
influências do grupo, da comunidade ou da sociedade.Não é verdade que os mais
organizado, um organismo. Assim como a Biologia que compreende o corpo
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humano e todas suas partes em pleno funcionamento, é de maneira semelhante que
consiga realizar os seus desejos, a frustração poderia levá-la a um suicídio.
Durkheim entende a sociedade: com suas partes em operação e cumprindo suas
Suicídio Anômico: este tipo pode acontecer quando as partes do corpo
funções. E, caso a família, a igreja, o Estado, a escola, o trabalho, os partidos
social
deixam
de
funcionar
e
as
normas
ou
laços
que
poderiam
políticos, etc., que são elementos da sociedade com funções específicas, venham a
―abraçar‖(solidarizar) os indivíduos perdem sua eficácia, deixando-os viver de
falhar no cumprimento delas, surge no corpo da sociedade aquilo que Durkheim
forma desregrada ou em crise. Um exemplo disso pode ser pensado quando, na
chamou de anomia, ou seja, uma patologia (doença). Assim, como no corpo
nossa sociedade, uma família abandona o filho, ou o idoso, ou o doente.
humano, se algo não funcionar bem, em ―ordem‖, significa que está doente.
A propósito desse tema, Durkheim verificou que existem três categorias de
Max Weber
suicídios:
Suicídio Altruísta: ocorre quando um indivíduo valoriza a sociedade mais
O pensamento deste sociólogo Alemão segue diretrizes diferentes das dos
do que a ele mesmo, ou seja, os laços que o unem à sociedade são muito fortes.
dois autores que vimos anteriormente. Max Weber (1864-1920), ao contrário de
Lembre-se do ocorrido em 11 de Setembro de 2001. Homens, em atos
Durkheim e Comte, acreditou na possibilidade da interpretação da sociedade
aparentemente ―loucos‖, pilotavam aviões que se chocaram contra o World Trade
partindo não dos fatos sociais já consolidados e suas características externas (leis,
Center em Nova York. Para Durkheim, os agentes dessa aparente ―loucura‖
instituições, normas, regras, etc), ele propôs começar pelo indivíduo que nela vive,
poderiam ser classificados como suicidas altruístas, pois se identificavam de tal
ou melhor, pela verificação das ―intenções‖, ―motivações‖, ―valores‖ e
forma com o grupo Al Qaeda, ao qual pertenciam, que se dispuseram a morrer por
―expectativas‖ que orientam as ações do indivíduo na sociedade.
ele. Da mesma maneira aconteceu com os kamikases japoneses durante a 2º Guerra
Sua proposta é a de que os indivíduos podem conviver, relacionar-se e até
Mundial (1939-1945) e que, de certa forma, continua acontecendo com os ―homens-
mesmo constituir juntos algumas instituições (como a família, a igreja, a justiça),
bomba‖ de hoje. Se você assistir ao filme ―O Patriota‖, com Mel Gibson, poderá ver
exatamente porque quando agem eles o fazem partilhando, comungando uma pauta
um exemplo de alguém que se dispôs a morrer por uma causa que acreditava em
bem parecida de valores, motivações e expectativas quanto aos objetivos e
relação ao seu país.
resultados de suas ações. E mais, seriam as ações recíprocas (repetidas e
Suicídio Egoísta: se alguém se desvinculasse das instituições sociais
―combinadas‖) dos indivíduos que permitiriam a constituição daquelas formas
(família, igreja, escola, partido político, etc.) por conta própria, para viver de
duráveis (Estado, Igreja, casamento, etc.) de organização social. Weber desenvolve
maneira livre, sem regras, qual seria o limite para essa pessoa, uma vez que ninguém
a teoria da Sociologia Compreensiva, ou seja, uma teoria que vai entender a
a controlaria? Pois é, segundo Durkheim, a falta de redes de convívio ou limites para
sociedade a partir da compreensão dos ‗motivos‘ visados subjetivamente pelas
a ação poderia levar a pessoa a desejar ilimitadas coisas. Mas caso tal pessoa não
ações dos indivíduos.
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Uma crítica de Weber aos positivistas, entre os quais se encontrariam Comte
prever, com algum acerto, como as pessoas votarão numa eleição, pesquisando sua
e Durkheim, deve-se ao fato de que eles pretendiam fazer da Sociologia uma ciência
―subjetividade‖, ou seja, levantando qual é, naquela ocasião dada, o conjunto de
positiva, isto é , baseada nos mesmos métodos de investigação das ciências naturais.
valores, motivações, intenções e expectativas compartilhadas pelo grupo de
Segundo Weber, as ciências naturais (biologia, física, por exemplo) conseguiriam
eleitores em foco, e que servirão para orientar sua escolha eleitoral. Esses
explicar aquilo que estudam (a natureza) em termos de descobrir e revelar relações
pressupostos estão por detrás das conhecidas ―pesquisas de intenção de voto‖,
causais diretas e exclusivas, que permitiriam a formulação de leis de funcionamento
bastante frequentes em vésperas de eleições. Segundo Weber, as pessoas podem
de seus eventos, como as leis químicas e físicas que explicam o fenômeno da chuva.
atuar, em geral, mesclando quatro tipos básicos de ação social. São eles:
Mas a ciência social não poderia fazer exatamente o mesmo. Segundo Weber, não
A ação racional com relação a fins: o indivíduo age para obter um fim
haveria como garantir que uma ação ou fenômeno social ocorreria sempre de
objetivo previamente definido.
determinada forma, como resposta direta a esta ou aquela causa exclusiva.
E para tanto, seleciona e faz uso dos meios necessários e mais adequados do
No caso das Ciências Humanas, isso ocorre porque o ser humano possui
ponto de vista da avaliação. O que se destaca, aqui, é o esforço em adequar,
―subjetividade‖, que aparece na sua ação na forma de valores, motivações,
racionalmente, os fins e os meios de atingir o objetivo. Na ação de um político, por
intenções, interesses e expectativas. Embora esses elementos que compõem a
exemplo, podemos ver um foco: o de obter o cargo com o poder que deseja com
subjetividade humana sejam produtos culturais, quer dizer, produtos comuns
fins que dependem do político, de seu caráter.
acolhidos e assumidos coletivamente pelos membros da sociedade, ou do grupo,
O que Weber pensa sobre a política: ele nos fala no livro Ciência e Política
– Duas vocações (2002), que há dois tipos de políticos que por nós são eleitos:
ainda assim se vê que os indivíduos vivenciam esses valores, motivações e
expectativas de modos particulares. Às vezes com aceitação e reprodução dos
a) Os políticos que exercem essa profissão por vocação, ou seja, os que têm
valores e normas propostas pela cultura comum do grupo; outras vezes, com
o poder como meta para trabalhar arduamente em prol da sociedade que os elegeu.
questionamentos e reelaboração dessas indicações e até rejeição das mesmas.
estes são os que vivem para a política.
Decorre dessa característica (de certa autonomia, criatividade e inventividade do ser
b) E os que são políticos sem vocação, ou seja, que olham para a política
humano diante das obrigações e constrangimentos da sociedade) a dificuldade de se
como se fosse um ―emprego‖ apenas. São aqueles que, uma vez eleitos, geralmente
definir leis de funcionamento da ação social que sejam definitivas e precisas. Por
se esquecem dos compromissos sociais que assumiram, pouco fazem pelo social,
isso, o que a Sociologia poderia fazer, seria desenvolver procedimentos de
trabalham apenas para manter-se no poder a fim de continuar ganhando o salário.
investigação que permitissem verificar que conjunto de ―motivações‖, valores e
Weber diz que estes são os que vivem da política.
expectativas compartilhadas, estaria orientando a ação dos indivíduos envolvidos no
A ação racional com relação a valores, ocorreria porque, muitas vezes, os
fenômeno que se quer compreender. Tomando como exemplo eleições, seria possível
fins últimos de ação respondem a convicções, ao apego fiel a certos valores (honra,
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justiça, honestidade...). Neste tipo, o sentido da ação está inscrito na própria
resumidos numa tipologia.
conduta, nos valores que a motivaram e não na busca de algum resultado previa e
Por exemplo, se há alguém apaixonado que você conheça, qual seria o tipo
racionalmente proposto. Por esse tipo de ação podemos pensar as religiões.
ideal de ação desta pessoa? A afetiva! Assim sendo, seria ―fácil‖ prever quais
Ninguém vai a uma igreja ou pertence a determinada religião, de livre vontade, se
seriam as possíveis atitudes desta pessoa: mandar flores e presentes, querer que a
não acredita nos valores que lá são pregados. Certo?
hora passe logo para estar com ela(e), sonhar acordado e coisas do tipo. E assim
Na ação afetiva a pessoa age pelo afeto que possui por alguém ou algo.
poderíamos entender, em parte, como se forma a instituição família. Uma coisa liga
Uma serenata pode ser vista como uma ação afetiva para quem ama.
a outra.
A ação social tradicional é um tipo de ação que nos leva a pensar na
Outro exemplo. Pode ser que alguém perto de você nem pense em querer se
existência de um costume. O ato de tomar chimarrão ou pedir a benção dos pais na
apaixonar para não atrapalhar os estudos. Sua meta é a universidade e uma ótima
hora de dormir são ações que podem ser pensadas pela ação tradicional.
profissão. Então, temos uma ação racional! Para esta pessoa nem adiantaria mandar
A idéia de Weber para se entender a sociedade é a seguinte: se quisermos
flores ou ―torpedos‖, a opção por não manter um relacionamento afetivo poderia ser
compreender a instituição igreja, por exemplo, vamos ter que olhar os indivíduos
considerada uma ação racional com relação a um objetivo. Quanto ao sistema
que a compõem e suas ações. Provavelmente haverá um grupo significativo de
capitalista e o mundo moderno:
pessoas que agem do mesmo modo, quer dizer, partilhando valores, desejos e
O que pensa Weber? Uma contribuição relevante de Weber, neste caso, é
expectativas quanto à religião, o que resultaria no que Weber chama de relação
demonstrar que o mecanismo do modo de produção capitalista, no ocidente
social.
europeu, principalmente, contou com a existência, em alguns países, de um
A existência da relação social dos indivíduos, ou seja, uma combinação de
conjunto de valores de fundo religioso que ajudou a criar entre certos indivíduos,
ações que se orientam para objetivos parecidos, é que faz compreender o ‗porquê‘ da
predisposições morais e motivações para se envolverem na produção e no comércio
existência do todo, como neste próprio exemplo da igreja. É assim que, as normas,
de tipo capitalista. Na crença dos calvinistas, os homens já nasceriam predestinados
as leis e as instituições são formas de relações sociais duráveis e consolidadas.
à salvação ou ao inferno, embora não pudessem saber, exatamente, seu destino
Os tipos de ação, para Weber, sempre serão construções do pensamento, isto
particular. Assim sendo, e para fugir da acusação de pecadores e desmerecedores do
é, suposições teóricas baseadas no conhecimento acumulado, que o sociólogo fará
melhor destino, dedicavam-se a glorificar Deus por meio do trabalho e da busca do
para se aproximar ao máximo daquilo que seria a ação real do indivíduo nas
sucesso na profissão.
circunstâncias ou no grupo em que vive. Com esse instrumento, o sociólogo pode
Com o passar dos tempos, essa idéia de que a predestinação e o sucesso
avaliar, na análise de um fenômeno, o que se repete, com que intensidade, e o que é
profissional seriam indícios de salvação da alma foi perdendo força. Mas o
novo ou singular, comparando-o com outros casos parecidos, já conhecidos e
interessante é que a ética estimuladora do trabalho disciplinado e da busca do
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sucesso nos negócios ganhou certa autonomia e continuou a existir independente da
SEED-PR, 2ª edição, Governo do Estado do Paraná, 2006.)
motivação religiosa.
Para Weber, ser capitalista é sinônimo de ser disciplinado no que se faz.
IDENTIDADES NACIONAIS - ÉTNICO-RACIAIS E DIFERENÇAS CULTURAIS
Seria da grande dedicação ao trabalho que resultaria o sucesso e o enriquecimento.
Herança da ética protestante, válida também para os trabalhadores. Mas por que os
Quando falamos em ―identidade‖ ou identidades‖ devemos sempre estar
católicos e as outras religiões orientais não tiveram parte nesta construção capitalista
bastante atentos (as), pois trata-se de um tema que envolve comportamentos,
analisada por Weber? Porque a ética católica privilegiava o discurso da pobreza, do
sentimentos, o modo de ser, de viver e de amar de cada um, e tudo isso é
desapego, reprovando a pura busca do lucro e da usura e não viam o sucesso no
―carregado‖ de uma história de vida, ocorrida dentro de um determinado contexto
trabalho como indícios de salvação e nem como forma de glorificar a Deus, como
social, com laços familiares e afetivos específicos, recheada de crenças e valores
faziam os calvinistas. Assim sendo, sem motivos divinos para dedicarem- se tanto ao
peculiares.
trabalho, não fizeram parte da lista weberiana dos primeiros capitalistas. Quanto às
A identidade de um indivíduo é única, ―identidade designa algo como uma
religiões do mundo oriental, a explicação seria de que essas tinham uma imagem de
compreensão de quem somos, nossas características definitórias fundamentais como
Deus como sendo parte do mundo secular, ao contrário da ética protestante ocidental
seres humanos.‖ TAYLOR, Charles. ―A política do reconhecimento‖. In.
que o concebia como estando fora do mundo e puro. Assim sendo, os orientais
Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 241.
valorizavam o mundo, pois Deus estaria nele. O Budismo e o Confucionismo são
Aprenderemos aqui um pouco mais sobre essas características que nos
exemplos do que falamos. E daí a idéia e a prática de não se viver apenas para o
definem, em primeiro lugar vamos falar sobre identidade nacional. A caracterização
trabalho, mas sim de poder aproveitar tudo o que se ganha pelo trabalho com as
da identidade nacional une-se, primeiramente à existência da identidade cultural,
coisas desta vida. Em relação ao mundo moderno (científico), Weber demonstrava
bem, já sabemos o que é cultura, mas vale lembrar que a cultura é nossa herança
um certo pessimismo e não encontrava saída para os problemas culturais que nele
social, nesse sentido, como brasileiros e brasileiros que somos, sofremos influências
surgiam, assim como para a ―prisão‖ na qual o homem se encontrava por causa do
dos portugueses, negros, índios e imigrantes de vários países como os italianos.
sistema capitalista. Antes da sociedade moderna, a religião era o que motivava a
Temos uma identidade cultural forte, baseada em uma língua comum, na
vida das pessoas e dava sentido para suas ações, inclusive ao trabalho. Mas com o
miscigenação, comidas típicas, a arte barroca, a natureza exuberante, nossa música
pensamento científico tomando espaço como referencial de mundo, certos apegos
etc.
culturais – crenças, formas de agir – vindos da religiosidade foram confrontados. O
Para que exista uma identidade nacional é necessário que o povo possua a
problema que Weber via era que a ciência não poderia ocupar por completo o lugar
consciência de nação, a nação é uma construção coletiva a partir de uma identidade
que a religião tinha ao dar sentido ao mundo. Sociologia / vários autores. – Curitiba:
nacional. Desta forma, é imperioso que, além da identidade cultural, exista um
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projeto nacional de desenvolvimento, a compreensão de identidade nacional também
As mulheres a partir do século XIX, e os jovens e as minorias sexuais, a
envolve aspectos geográficos, jurídicos ou diplomáticos. Temos exemplos de países
partir dos anos de 1960, passaram a demonstrar sua revolta de forma coletiva. No
que possuem uma forte identidade cultural, como o Brasil, e outros detentores de
século XX os negros e outras etnias demonstraram sua força, nas lutas pelos direitos
uma elevada consciência de nação, apesar de não ter um grau elevado de identidade
civis nos EUA, pelo fim do apartheid na África do Sul e pelo fim do racismo, no
cultural.
renascimento do movimento negro no Brasil e na luta dos palestinos.
Assim, podemos definir identidade nacional como o somatório de valores
Apesar da força social dos movimentos construídos pelos oprimidos, dos
culturais resultante da vivência, que, apesar de incluir as diferenças regionais e
milhões de vidas sacrificadas em nome da igualdade de direitos e da liberdade, a
peculiaridades grupais, é passível de caracterização por um traço que permita a
história desses grupos não é animadora. Sabemos que as condições de trabalho
definição de um perfil diversificado, contudo hegemônico baseado em habitante
melhoraram, mas as melhorias foram limitadas aos países imperialistas centrais, e a
(homem), território, instituições, língua, costumes, religiões e história comuns.
grande maioria dos trabalhadores ainda é explorada, de forma semelhante ao século
XIX.A cada dia morre mais seres humanos de fome que no tempo da escravidão. Os
oprimidos ajudaram a fundar partidos, sindicatos e associações, mas a maioria
MARCADORES SOCIAIS DE DIFERENÇA
destas entidades ainda não conseguiu reverter as condições sub-humanas dos
Quando examinamos, fazemos uma análise das sociedades, identificamos
subjugados da história.
imediatamente a existência de diversidades e desigualdades sociais. Muitas das
Muitos indivíduos são submetidos a uma série de discriminações e
diferenças entre os indivíduos são de natureza humana como por exemplo, gênero,
preconceitos só pelo fato de pertencerem a uma determinada categoria de pessoas. A
cor da pele, idade, altura etc. Contudo as desigualdades sociais são produto das
opressão, para se justificar, faz uso de um sistema de ideias a que chamamos de
relações estabelecidas entre os indivíduos, como vimos anteriormente ao estudarmos
ideologia.
classes sociais e o sistema capitalista, estas refletem os conflitos de interesses de
Existem ao menos cinco situações de desigualdade e opressão: de classe, de
grupos ou indivíduos em relação aos outros grupos ou indivíduos que, geralmente,
gênero, de geração, de raça/etnia e de orientação sexual.
As desigualdades de classe – Como aprendemos, as desigualdades sociais
colocam todos na condição de opressores e oprimidos.
Historicamente vimos que o capitalismo apresenta um grande conflito: a luta
se formaram em consequência da distribuição desigual de renda, do excedente de
entre burgueses e proletários. No entanto, a história do século XX apresenta outros
riqueza produzido pelas sociedades. As sociedades agrícolas antigas eram capazes
conflitos de interesses que vão muito além da divisão da sociedade em classes:
de produzir uma quantidade de alimentos superior as necessidades, isso
conflitos entre os gêneros (homens e mulheres), adultos e jovens, brancos e não-
proporcionou a uma pequena camada da população o privilégio de deixar de
brancos, minorias étnicas, heterossexuais e homossexuais.
trabalhar e viver do trabalho alheio.
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As várias classes sociais dominantes se caracterizaram por apropriarem-se,
de raros e relevantes momentos. Esta é a exclusão mais sistemática já praticada na
em modo e em tempos diversos, do excedente de riqueza produzida pelas classes
história da humanidade. A herança desta história de dominação masculina se
subalternas. O sistema econômico dominante em cada época se esforça em manter
expressa hoje de diversas formas, entre elas: o uso da violência institucionalizada e
separadas as classes sociais e reduzir ao mínimo as possibilidades de ascensão
doméstica, a legislação discriminante, dependência econômica ao marido e ao pai,
social. Isso ocorre através do sistema escolar, à separação territorial de classes
além é claro da coisificação da mulher etc.
sociais: Rio de janeiro – Zona Oeste, favelas, subúrbios, zona norte e zona sul, à
Chamamos machismo à ideologia que, através de diversas formas, os
ideologia etc.
homens justificam a opressão que exercem. Entretanto as características do sistema
Contudo o sistema capitalista fez da ilusão da ascensão social ou da
capitalista favorecem a inserção da mulher no mercado de trabalho e isso fez com
mobilidade social um dos pilares de sua ideologia. Hoje, haveriam três classes
que elas pudessem sair em parte é claro, do próprio isolamento.
fundamentais nos países imperialistas e no Brasil se seguirmos as teorias de Marx: o
As primeiras revoltas contra a opressão feminina ocorreram no final do
proletariado, a burguesia e a pequena burguesia. Mas com a realidade imposta pelo
século XIX, a partir dos movimentos pelo voto universal (sufragistas) e daqueles
neoliberalismo1, encontramos também milhões de indivíduos totalmente excluídos
ligados ao movimento operário. Não podemos esquecer que durante a Revolução
de qualquer relação social, política e econômica.
francesa as mulheres foram de extrema importância para o movimento, inclusive
As desigualdades de gênero – Desde a antiguidade várias sociedades
foram as peixeiras de Paris, em marcha para Versalhes que retiraram rei e rainha do
mantiveram a supremacia masculina, esta dominação provocou a exclusão
palácio a força, e também foram as mulheres que foram as ruas reclamando do
sistemática das mulheres da política, do governo, da literatura, da arte, com exceção
preço do pão e muitas outras atrocidades cometidas pelos monarcas deste período
Luís XVI e Maria Antonieta.
1
Essas lutas ganharam maior impulso nos anos de 1960, quando os espaços
Podemos definir o neoliberalismo como um conjunto de ideias políticas e econômicas capitalistas que
defende a não participação do estado na economia. De acordo com esta doutrina, deve haver total
liberdade de comércio (livre mercado), pois este princípio garante o crescimento econômico e o
desenvolvimento social de um país. Surgiu na década de 1970, através da Escola Monetarista
do economista Milton Friedman, como uma solução para a crise que atingiu a economia mundial em
1973, provocada pelo aumento excessivo no preço do petróleo. Características do Neoliberalismo
(princípios básicos): - mínima participação estatal nos rumos da economia de um país; - pouca
intervenção do governo no mercado de trabalho; - política de privatização de empresas estatais; - livre
circulação de capitais internacionais e ênfase na globalização; - abertura da economia para a entrada de
multinacionais; - adoção de medidas contra o protecionismo econômico; - desburocratização do estado:
leis e regras econômicas mais simplificadas para facilitar o funcionamento das atividades econômicas; diminuição do tamanho do estado, tornando-o mais eficiente; - posição contrária aos impostos e
tributos excessivos; - aumento da produção, como objetivo básico para atingir o desenvolvimento
econômico; - contra o controle de preços dos produtos e serviços por parte do estado, ou seja, a lei da
oferta e demanda é suficiente para regular os preços; - a base da economia deve ser formada por
empresas privadas;
conquistados pelas mulheres representaram uma transformação sem precedentes na
própria condição feminina. Mas infelizmente a discriminação persiste e se
manifesta desde piadas até mesmo na legislação contrária ao divórcio que ainda
sobrevive em muitos países, na violência doméstica, na discriminação no local de
trabalho etc. Mas as mulheres aqui no Brasil tiveram uma conquista recente e muito
8
importante: a Lei Maria da Penha 2- a lei número 11.340 decretada pelo Congresso
emprego, a situação dos estagiários etc.
Nacional e sancionada pelo então presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da
A desigualdade racial – Esse tipo de opressão é bem antigo, quando
Silva em 7 de agosto de 2006; dentre as várias mudanças promovidas pela lei está o
haviam diversas etnias que guerreavam entre si. Entretanto estes conflitos não
aumento no rigor das punições das agressões contra a mulher quando ocorridas no
ocasionavam grandes tragédias, como as que ocorreram e ocorrem ainda hoje. Além
âmbito doméstico ou familiar. A lei entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006,
disso não tinham como consequência a dominação de uma etnia pela outra.Com a
e já no dia seguinte o primeiro agressor foi preso, no Rio de Janeiro, após tentar
divisão da sociedade em classes, verificou-se o estabelecimento da condição de
estrangular a ex-esposa.
escravos para os derrotados. A palavra escravo tem origem no nome do povo
As desigualdades de geração – A especificidade da opressão sobre os
Eslavo, entre o qual na antiguidade se recrutava o maior número de escravos. Após
jovens é sua transitoriedade. Uma vez adulto, o jovem poderá se transformar em
os grandes impérios submeteram povos inteiros à escravidão ou ao pagamento de
opressor, esquecendo as próprias condições nas quais viveu como oprimido. Apesar
tributos para sustentar os governos dominadores.
disso os jovens sempre se rebelaram diante das regras sociais impostas. A sua luta,
A luta dos povos e etnias oprimidas em determinadas sociedades marcou
contudo, foi, até pouco tempo, escondida e isolada no espaço doméstico. O advento
épocas e não há perspectivas de sua eliminação no atual sistema capitalista. Em
do sistema escolar de massa fez com que eles se encontrassem, criando espaços
épocas passadas eram nações dominadas pelo centro econômico europeu ( chineses,
coletivos como manifestações, ocupações, contestações, greves, expressões culturais
indianos, africanos).
alternativas.
Esta opressão consiste frequentemente em sufocar costumes, hábitos sociais
Habitualmente, os jovens se organizam em associações bem estruturadas,
e, por conseguinte, a língua, a religião, a cultura e a história. Em determinadas
como grêmios escolares, DCEs, DCAs, centros sociais etc. caracterizadas por um
situações, a exploração econômica de uma etnia sobre outra se expressa através de
baixo grau de formalismo ( larga participação etc.). A opressão contra jovens se
discriminações no mercado de trabalho. Esta opressão sempre provocou reações,
manifesta hoje na sociedade através da discriminação no trabalho ( baixos salários,
como lutas por um autogoverno ou pela autodeterminação dos povos. Nações e
desemprego, exploração), na limitação dos direitos civis (violência doméstica, etc.).
etnias oprimidas como os palestinos e os negros no Brasil, têm obviamente culturas
Felizmente este quadro já vem se modificando a bastante tempo, embora ainda
próprias, elaborando, assim, suas próprias ideias.
existam algumas questões a serem examinadas amplamente, como o primeiro
O nacionalismo dos povos oprimidos e a autoestima dos negros brasileiros
não podem ser confundidos com aquele nacionalismo que oprime ou com o racismo
2
A introdução da lei diz: Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher,
nos termos do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá
outras providências.
às avessas, pois estes são também opressores, já que significam, no fundo, a
dominação de um grupo, ou nação sobre os outros.
A desigualdade de orientação sexual - A opressão contra gays e lésbicas
9
se expressa sob todas as formas socioeconômicas, em todas as sociedades, através da
orientação sexual. Porém, se há oprimidos, existem também os opressores. Estes se
obrigação de seus membros de aderir a heterossexualidade. Quem se opõe ao padrão
encontram geralmente nos heterossexuais, eles encontram uma série de falsas
de ―normalidade‖ estabelecido, ou seja, a heterossexualidade sempre é punido ou
vantagens de natureza quase exclusivamente psicológica para contribuir com a
considerado portador de uma doença, vítima de discriminação.
opressão.
Esta discriminação variou de intensidade nas diferentes épocas, mantendo
Tornar os homossexuais alvo de chacota e mostrar, em público, o desprezo
porém, uma absoluta continuidade, o famoso escritor Oscar Wilde sofreu com a
para com eles, assegura a própria identidade heterossexual para si mesmo e para os
condenação a partir do parágrafo 175 3foi julgado culpado de "práticas estranhas à
outros, mantendo assim a participação na ―normalidade‖ sexual dominante.
natureza" e condenado a dois anos de trabalhos forçados pelo tribunal de Old Baley.
Concluindo, alguns indivíduos recebem salários menores que outros mesmo
A condição de gay ou lésbica é atacada de forma sistemática pela sociedade. Só o
tendo a mesma qualificação profissional, pois os fatores que determinam essa
fato de haver grupos sociais que colocam em discussão a heterossexualidade é visto
situação estão nas diversidades de etnia, gênero, orientação sexual e de geração. Ou
por muitos como um atentado.
seja, essas diferenças entre os indivíduos são transformadas, nas relações sociais,
A discriminação não é obviamente operativa se gays e lésbicas mantiverem
em desigualdades. Portanto, quando ouvimos piadas, frases discriminatórias sobre
na clandestinidade a própria orientação sexual. É no momento em que se assumem
mulheres, judeus, adolescentes, jovens, homossexuais e negros, elas reforçam e
publicamente que começa a guerra contra eles. Essa discriminação atua em todos os
refletem as desigualdades sociais.
setores: no local de trabalho, onde, além de correrem o risco de demissão, são
Negros e negras não são ―incapazes‖, ―ignorantes‖, ―primitivos‖,
molestados pelos outros trabalhadores (as); na sociedade, que os impede de ter
―bandidos‖, etc., e que por isso recebem menores salários que os brancos. É o
qualquer posto de comando; na família, em que a declaração de homossexualidade
modelo capitalista que se aproveita da ideologia da inferioridade racial para
chega a gerar crises e chantagens de várias naturezas.
explorar ainda mais os trabalhadores e trabalhadoras e extrair mais-valia maior. As
A discriminação opera com tal violência, física e psicológica, que o
mulheres não são inferiores intelectualmente aos homens, não são apenas objetos,
indivíduo não tem coragem de reconhecer nele mesmo a própria essência de sua
nem todas são fúteis e desatentas, afinal existem homens com as mesmas
características, portanto essas não são características exclusivas das mulheres e não
3
O Parágrafo 175, conhecido formalmente como §175 StGB e também como "Section 175" na língua
inglesa, foi uma medida do Código Criminal Germânico em vigor de 15 de maio de 1871 a 10 de
março de 1994. O Parágrafo 175 considerava as relações homossexuais como crime, sendo que nas
primeiras edições também criminalizava as relações sexuais humanas com animais, conhecidas
como bestialidade. O dispositivo legal sofreu várias emendas ao longo do tempo. Quando
os nazistas assumiram o poder em 1935, as condenações através do Parágrafo 175 aumentaram na
ordem de magnitude de 10 vezes.
10
são gerais, as mulheres possuem raciocínio lógico, senso de direção, essas
afirmações infundadas só servem para reforçar a dominação masculina. Enfim, no
mundo do trabalho, em qualquer profissão, além das desigualdades de classe, certos
indivíduos podem sofrer duas, três, quatro ou cinco vezes mais exploração e as
desigualdades sociais.
reinado de Luís XIV (16381715). A concentração de poderes no Estado absolutista
é bem expressa pela frase atribuída a esse rei: "O Estado sou eu!" (L'etat c'est moi!).
COMO SURGIU O ESTADO MODERNO
Assumindo o controle das atividades econômicas, o Estado intervinha nas
O Estado moderno surgiu da desintegração do mundo feudal e das relações
concessões dos monopólios, fixava preços e tarifas, administrava a moeda e os
políticas até então dominantes na Europa. No período medieval, o poder estava nas
metais preciosos. O acúmulo desses "bens" era a expressão máxima da riqueza de
mãos dos senhores feudais, que mantinham o controle sobre a maior parte das terras
um país. O Estado absolutista assumia também a responsabilidade de centralizar e
e sobre toda a sociedade.
praticar a justiça e de cuidar do contingente militar, criando exércitos profissionais.
Esse tipo de dominação foi pouco a pouco sendo minado pelas revoltas sociais
Para financiar essas atividades, foram criados os impostos gerais.
dos camponeses, pela recusa ao pagamento de impostos feudais e pelo crescimento
O absolutismo colocou frente a frente os interesses dos estamentos feudais
das cidades e do comércio, que apressou a desagregação dos feudos. Paralelamente,
dominantes (a nobreza e o clero) e os da burguesia, a classe em ascensão naquela
a partir do século XIV, ocorreu um processo de centralização e concentração:
época. Tais interesses eram referentes à justiça, à administração do patrimônio
● Das Forças Armadas e do monopólio da violência;
público e à administração econômica.
● Da estrutura jurídica, isto é, dos Juízes e dos tribunais em várias instâncias;
● Da cobrança de impostos - um signo do poder e, ao mesmo tempo, o meio de
O Estado liberal
assegurar a manutenção das Forças Armadas, da burocracia e do corpo jurídico;
● De um corpo burocrático para administrar o patrimônio público, como as
O liberalismo emergiu no século XVIII como reação ao absolutismo, tendo
estradas, os portos, o sistema educacional, a saúde, o transporte, as comunicações
como valores primordiais o individualismo, a liberdade e a propriedade privada.
e outros tantos setores.
Ganhou projeção como adversário da concentração do poder pelo Estado, prin-
A centralização e a concentração desses poderes e instituições caracterizam o
cipalmente no que dizia respeito às atividades econômicas, no contexto do chamado
Estado moderno, que assumiu diferentes formas até hoje.
capitalismo concorrencial. Nessa fase do capitalismo, os resquícios feudais foram
sendo extintos, enquanto o capital industrial se implantava e o trabalho assalariado
tornava-se fundamental para o desenvolvimento da indústria.
O Estado absolutista
O Estado liberal apresentava-se como representante de toda a sociedade, tendo o
Surgido no contexto da expansão do mercantilismo, o Estado absolutista foi
papel de "guardião da ordem": não lhe caberia intervir nas relações entre os
implantado primeiro em Portugal, no final do século XIV; com a Revolução de Avis.
indivíduos, mas manter a segurança para que todos pudessem desenvolver
Adotado depois em vários lugares da Europa, teve seu ponto alto na França, no
livremente suas atividades. Com o Estado liberal, estabeleceu-se a separação entre o
11
público e o privado.
Politicamente, o Estado liberal se fundamenta na ideia de soberania popular. A
O Estado fascista e o Estado soviético: No começo do século XX, esgotado pelas
expressão mais clara dessa idéia se encontra nas constituições liberais, como a do
próprias condições sociais e econômicas que o geraram, o Estado liberal não dava
Brasil, na qual se lê, no artigo: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
mais conta da realidade e das interesses da burguesia. A partir da Primeira Guerra
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Isso
Mundial, surgiram duas novas formas de organização estatal: o Estado fascista e o
significa que, numa eleição, os votantes se pronunciam elegendo os representantes
Estado soviético.
da vontade popular. O Parlamento é, assim, a instituição central do Estado liberal.
O Estado fascista foi organizado nas décadas de 1920 e 1930, primeiro na Itália
De acordo com o pensamento liberal, o Estado não deve intervir nas atividades
e depois na Alemanha (com o nazismo) e em vários países europeus, com pequenas
econômicas. A famosa fórmula laissez-faire, laissez-passer ("deixai fazer, deixai
diferenças. O Estado soviético decorreu da primeira experiência socialista, iniciada
passar") expressa bem a concepção de que as atividades econômicas não devem ser
em 1917, na Rússia. Por meio dela procurava-se fazer frente às condições precárias
reguladas pelo Estado, mas por si mesmas, ou seja, pelo mercado - a mão invisível,
de vida das classes trabalhadoras. É bom lembrar que as idéias socialistas já
de acordo com Adam Smith (1723-1790). A plena liberdade para a produção e a
estavam presentes em toda a Europa havia mais de meio século e se concretizavam
circulação de mercadorias garantiria, conforme o pensamento liberal, o progresso
naquele momento com a Revolução Russa. '
das empresas e das nações, contribuindo até para a paz mundial.
O que distinguia basicamente os regimes fascista e soviético, no início, era o
Essas concepções do pensamento liberal começaram a ruir no final do século
projeto político que cada um apresentava. No Estado fascista, a participação política
XIX e caíram definitivamente por terra com a Primeira Guerra Mundial (19141918).
significava plena adesão ao regime e a seu líder máximo, ou seja, ninguém podia
Isso aconteceu porque a intensa concorrência entre as empresas foi provocando o
fazer qualquer crítica ou oposição ao governo. Na Rússia pós-revolucionária, o
desaparecimento das pequenas firmas, que faliam ou eram compradas pelas maiores.
desafio era criar mecanismos efetivos de participação dos camponeses, operários e
A concentração ficou tão grande e o capital na mão de tão poucos que a concorrência
soldados, desde que fossem organizados no interior do Partido Comunista, que era a
passou a ser entre países, e não mais só entre empresas.
estrutura política dominante.
A "guerra" de mercado chegou às vias de fato, ou seja, transformou-se numa
Essas duas forças políticas se confrontaram durante a Segunda Guerra Mundial
guerra de verdade entre os países. As crises econômicas se tornaram freqüentes e a
(1939-1945). No final do conflito, os vitoriosos dividiram-se em dois blocos: o
competição entre as nações ficou ainda maior. A eclosão da Primeira Guerra teve
socialista, liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e o
origem nessas disputas entre as nações européias.
capitalista, sob o comando dos Estados Unidos. Os dois haviam se aliado para
participar da guerra e da derrocada do fascismo-nazismo.
A URSS organizava-se como um Estado planificado e centralizado, cujos órgãos
Os Estados nacionais no século XX
12
estavam ligados ao Partido Comunista. Não havia possibilidade de participar
para sair da profunda depressão desencadeada pela crise de 1929. No período
politicamente se não fosse nesse partido, pois somente ele era permitido.
posterior à Segunda Guerra Mundial, ela se consolidou nos Estados Unidos e em
Vários outros países da Europa adotaram essa forma de organização do poder:
boa parte dos países da Europa.
Polônia, Hungria, Iugoslávia, Tchecoslováquia e a chamada Alemanha Oriental.
O Estado do bem-estar tinha como finalidade e característica básica a
Fora da Europa, outros Estados socialistas foram criados mediante processos
intervenção estatal nas atividades econômicas, regulando-as, subsidiando-as,
revolucionários, como a China continental (1949) e Cuba (1959), adotando o regime
executando grandes investimentos e obras, redistribuindo rendimentos, visando
socialista proposto pelo modelo de Estado soviético.
sempre, pelo menos teoricamente, ao bem-estar da maioria da população. A idéia
Com o processo de globalização crescente e em decorrência de problemas
era romper com o centenário princípio do liberalismo, que rejeitava qualquer função
internos, a partir de 1985 a URSS entrou em processo de dissolução. O Estado
intervencionista do Estado. Com base nesse conceito, os capitalistas modernos
soviético começou a ruir nos países que o adotavam. A queda do Muro de Berlim,
propunham moradia digna, educação básica pública, assistência à saúde, transporte
em 1989, assinalou de modo emblemático o fim do Estado soviético e o
coletivo, lazer, trabalho e salário, seguro-desemprego, enfim, um mínimo de bem-
questionamento do poder concentrado num só partido. Essa forma de organização
estar econômico e social. Isso foi feito com investimentos maciços por parte do
estatal continua vigente, com variações, em Cuba, no Vietnã, na Coréia do Norte e
Estado, que redimensionava suas prioridades para proporcionar trabalho e algum
na China, com a manutenção de um partido único e a planificação central da
rendimento à maior parte da população, a fim de que ela se tornasse consumidora e,
economia.
assim, possibilitasse a manutenção da produção sempre elevada. Configurou-se o
O Estado do Bem-estar social. O bloco dos países capitalistas, após a Segunda
Guerra Mundial, tentou reconstruir a economia ocidental com novas bases. Dis-
que alguns chamam de "cidadania do consumidor", ou seja, a cidadania entendida
como um mecanismo de mercado.
seminou-se então a forma de organização estatal chamada de Estado do bem-estar
Enquanto isso, nos países periféricos, como os da América Latina, o que se viu
social ou simplesmente Estado social. Esse modelo permitia enfrentar, por um lado,
foi uma variedade de formas governamentais, entre as quais as ditaduras que se
os movimentos de trabalhadores que exigiam melhores condições de vida e, por
implantaram por meio de golpes militares. Esses golpes eram deflagrados como se
outro, as necessidades do capital, que buscava alternativas para a construção de uma
fossem constitucionais, isto é, como se estivessem de acordo com a lei. Uma vez no
nova ordem econômica mundial diante do bloco socialista.
poder, os golpistas exerciam todo o controle sobre os indivíduos e os grupos
As bases teóricas do Estado do bem-estar foram apresentadas na década de 1930
organizados da sociedade.
pelo economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946), em seu livro Teoria
geral do emprego, do juro e da moeda (1936). Como forma de organização estatal, a
teoria começou a ser esboçada quando o governo estadunidense estabeleceu políticas
13
O chamado Estado neoliberal
A partir da década de 1970, após a crise do petróleo, houve nova necessidade de
Os neoliberais diziam que era necessário ter mais rapidez para tomar decisões no
mudança na organização estatal. O capitalismo enfrentava então vários desafios. As
mundo dos negócios e que o capital privado precisava de mais espaço para crescer.
empresas multinacionais precisavam expandir-se, ao mesmo tempo em que havia um
Reforçavam assim os valores e o modo de vida capitalistas, o individualismo como
desemprego crescente nos Estados Unidos e nos países europeus; os movimentos
elemento fundamental, a livre iniciativa, o livre mercado, a empresa privada e o
grevistas se intensificavam em quase toda a Europa e aumentava o endividamento
poder de consumo como forma de realização pessoal.
dos países em desenvolvimento.
Com essas propostas, o que se viu foi a presença cada vez maior das grandes
Os analistas, tendo como referência os economistas Friedrich Von Hayek (1899-
corporações produtivas e financeiras na definição dos atos do Estado, fazendo com
1992) e Milton Friedman (1912-2006), atribuíam a crise aos gastos dos Estados com
que as questões políticas passassem a ser dominadas pela economia. Além disso, o
políticas sociais, o que gerava déficits orçamentários, mais impostos e, portanto,
que era público (e, portanto, comum a todos) passou a ser determinado pelos
aumento da inflação. Diziam que a política social estava comprometendo a liberdade
interesses privados (ou seja, por aquilo que era particular).
do mercado e até mesmo a liberdade individual, valores básicos do capitalismo. Por
causa disso, o bem-estar dos cidadãos deveria ficar por conta deles mesmos, já que
O neoliberalismo e o Estado neoliberal
se gastava muito com saúde e educação públicas, com previdência e apoio aos
O neoliberalismo compreende a liberação crescente e generalizada
desempregados idosos. Ou seja, os serviços públicos deveriam ser privatizados e
das atividades econômicas, compreendendo a produção, distribuição,
pagos por quem os utilizasse. Defendia-se assim o Estado mínimo, o que significava
troca e consumo. Funda-se no reconhecimento da primazia das
voltar ao que propunha o liberalismo antigo, com o mínimo de intervenção estatal na
liberdades relativas às atividades econômicas como pré-requisito e
vida das pessoas.
fundamento da organização e funcionamento das mais diversas
Nasceu dessa maneira o que se convencionou chamar de Estado neoliberal. As
formas de sociabilidade; compreendendo não só as empresas,
expressões mais claras da atuação dessa forma estatal foram os governos de
corporações e conglomerados, mas também as mais diferentes
Margareth Thatcher, na Inglaterra, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos. Mas
instituições sociais. "Neo" liberalismo porque se impõe e generaliza
mesmo no período desses governos o Estado não deixou de intervir em vários
em escala mundial, alcançando inclusive os países nos quais se havia
aspectos, mantendo orçamentos militares altíssimos e muitos gastos para amparar as
experimentado ou continua a experimentar-se o regime socialista ou o
grandes empresas e o sistema financeiro. Os setores mais atingidos por essa "nova"
planejamento econômico centralizado. Sob o neoliberalismo, reforma-
forma de liberalismo foram aqueles que beneficiavam mais diretamente os
se o Estado. O poder estatal é liberado de todo e qualquer empreen-
trabalhadores e os setores marginalizados da sociedade, como assistência social,
dimento econômico ou social que possa interessar ao capital privado
habitação, transportes, saúde pública, previdência e direitos trabalhistas.
racional e transnacional. Trata-se de criar o "Estado mínimo", que
14
apenas estabelece e fiscaliza as regras do jogo econômico, mas não
O PODER E O ESTADO
joga. Tudo isso baseado no pressuposto de que a gestão pública ou
estatal de atividades direta e indiretamente econômicas é pouco eficaz,
Norbert Elias diz, em seu livro A sociedade dos indivíduos, que há uma
ou simplesmente ineficaz. O que está em causa é a busca de maior e
tendência nas ciências sociais de não considerar o Estado como objeto da So-
crescente produtividade, competitividade e lucratividade, tendo em
ciologia. Ele afirma que isso vem de uma antiga tradição intelectual que vê o Estado
conta os mercados nacionais, regionais e mundiais. Daí a impressão
como algo extra-social ou até oposto à sociedade. Desde o século XVIII, o termo
de que o mundo se transforma no território de uma vasta e complexa
"sociedade" - ou "sociedade civil" - era usado como contraposição a "Estado", pois
fábrica global, ao mesmo tempo em que shopping center global e
havia interesse da classe em ascensão, a burguesia, em acentuar essa separação.
Disneylândia global.
Com isso, procurava-se destacar a idéia de que uma classe apenas, a nobreza,
IANNI,
Octávio.
Capitalismo,
violência e terrorismo.
detinha o monopólio do poder do Estado.
Essa idéia de separação entre sociedade e Estado dominou por muito tempo e
prejudicou a compreensão de que o Estado é uma organização encarregada de
Estado e liberdade
determinadas funções e que sua constituição é um processo histórico como tantos
Depois que nos livrarmos do preconceito de que tudo o que faz o
outros. Vamos verificar como os grandes autores da Sociologia abordaram essa
Estado e a sua burocracia é errado, malfeito e contrário à liberdade, e
questão:
de que tudo o que é feito pelos indivíduos particulares é eficiente e
As teorias sociológicas clássicas sobre o Estado
sinônimo de liberdade - poderemos enfrentar adequadamente o
verdadeiro problema. Reduzido a uma só frase, o problema consiste em
Marx, Durkheim e Weber, os três autores clássicos da Sociologia, tiveram, cada
que, em nosso mundo moderno, tudo é político, o Estado está em toda
um a seu modo, uma vida política intensa e fizeram reflexões importantes sobre o
parte e a responsabilidade política acha-se entrelaçada em toda a
Estado e a democracia de seu tempo. Vamos ver o que pensavam sobre esses temas.
estrutura da sociedade. A liberdade consiste não em negar essa
Karl Marx: Tendo escrito sobre as questões que envolvem o Estado num período
interpenetração, mas em definir seus usos legítimos em todas as
em que o capitalismo ainda estava em formação, Marx não formulou uma teoria
esferas, demarcando limites e decidindo qual deve ser o caminho da
específica sobre o Estado e o poder. Num primeiro momento, ele se aproximou da
penetração, e, em última análise, em salvaguardar a responsabilidade
concepção anarquista, definindo o Estado como uma entidade abstrata, em
pública e a participação de todos no controle das decisões.
contradição com a sociedade. Seria uma comunidade ilusória, que procuraria
conciliar os interesses de todos, mas principalmente daqueles que dominavam
15
economicamente a sociedade.
Estado e burguesia
No livro A ideologia alemã, escrito em 1847 em parceria com Friedrich Engels,
Marx identificou a divisão do trabalho e a propriedade privada, geradoras das
“Cada
etapa
da
evolução
percorrida
pela
burguesia
foi
classes sociais, como a base do surgimento do Estado, que seria a expressão
acompanhada de um progresso político correspondente. Classe oprimida
jurídico-política da sociedade burguesa. A organização estatal apenas garantiria as
pelo despotismo feudal, associação armada e autônoma na comuna, aqui
condições gerais da produção capitalista, não interferindo nas relações econômicas.
república urbana independente, ali terceiro estado tributário da
Em 1848, no Manifesto comunista, Marx e Engels afirmaram que os dirigentes do
monarquia; depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da
Estado moderno funcionavam como um comitê executivo da classe dominante
nobreza na monarquia feudal ou absoluta, base principal das grandes
(burguesia).
monarquias, a burguesia, com o estabelecimento da grande indústria e do
Nos livros escritos entre 1848 e 1852, ―As lutas de classe na França” e ―O de-
mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva
zoito brumário de Luís Bonaparte”, analisando uma situação histórica específica,
no Estado representativo moderno. O executivo no Estado moderno não é
Marx declara que o Estado nasceu para refrear os antagonismos de classe, e, por
senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe
isso, é o Estado da classe dominante. Mas existem momentos em que a luta de
burguesa.” (MARX, Karl - Manifesto comunista).
classes é equilibrada e o Estado se apresenta com independência entre as classes em
conflito, como se fosse um mediador.
Para Karl Marx o Estado é, portanto, uma organização cujos interesses são
os da classe dominante na sociedade capitalista: a burguesia.
Analisando a burocracia estatal, Marx afirma que o Estado pode estar acima da
Émile Durkheim. Ao analisar a questão da política e do Estado, Durkheim
luta de classes, separado da sociedade, como se fosse autônomo. É nesse sentido que
teve como referência fundamental a sociedade francesa de seu tempo. Como sempre
pode haver um poder que não seja exercido diretamente pela burguesia. Mesmo
esteve preocupado com a coesão social, inseriu-a de forma clara na questão. Para
dessa forma, o Estado continua criando as condições necessárias para o de-
ele, o Estado é fundamental numa sociedade que fica cada dia maior e mais
senvolvimento das relações capitalistas, principalmente o trabalho assalariado e a
complexa, devendo estar acima das organizações comunitárias.
propriedade privada.
Durkheim dizia que o Estado "concentrava e expressava a vida social". Sua
No livro A guerra civil na França, escrito em 1871, Marx analisa a Comuna de
função seria eminentemente moral, pois ele deveria realizar e organizar o ideário do
Paris e volta a olhar a questão do Estado de uma perspectiva que se aproxima da
indivíduo e assegurar-lhe pleno desenvolvimento. E isso se faria por meio da
anarquista. O desaparecimento do Estado seria resultante da transferência do poder
educação pública voltada para uma formação moral sem fins conceituais ou reli-
para a federação de associações dos trabalhadores.
giosos. De acordo com o filósofo, o Estado não é antagônico ao indivíduo. Foi o
Estado que emancipou o indivíduo do controle despótico e imediato dos grupos
16
secundários, como a família, a Igreja e as corporações profissionais, dando-lhe um
juntos, e nós mesmos empregamos a palavra nesse sentido. Eis o que
espaço mais amplo para o desenvolvimento de sua liberdade.
define o Estado. É um grupo de funcionários sui generis, no seio do qual
Para Durkheim, na relação entre o Estado e os indivíduos, é importante
se elaboram representações e volições que envolvem a coletividade,
saber como os governantes se comunicam com os cidadãos, para que estes
embora não sejam obra da coletividade. Não é correto dizer que o
acompanhem as ações do governo. A intermediação deve ser feita por canais como
Estado encarna a consciência coletiva, pois esta o transborda por todos
os jornais e a educação cívica ou pelos órgãos secundários que estabelecem a ponte
os lados. É em grande parte difusa; a cada instante há uma infinidade de
entre governantes e governados, principalmente os grupos profissionais organizados,
sentimentos sociais, de estados sociais de todo o tipo de que o Estado só
que são a base da representação política e da organização social.
percebe o eco enfraquecido. Ele só é a sede de uma consciência
Quando se refere aos sistemas eleitorais, Durkheim critica os aspectos
numéricos do que se entende por democracia. Tomando como exemplo as eleições
especial, restrita, porém mais elevada, mais clara, que tem de si mesma
um sentimento mais vivo.” (DURKHEIM, Émile. Lições de sociologia).
de 1893 na França, declara que havia no país, naquele ano, 38 milhões de habitantes.
Tirando as mulheres, as crianças, os adolescentes, todos os que eram impedidos de
votar por alguma razão, apenas 10 milhões eram eleitores. Desses 10 milhões, foram
Para Durkheim, portanto, o Estado é uma organização com um conteúdo
inerente, ou seja, os interesses coletivos.
votar em torno de 7 milhões. Os deputados eleitos, ou seja, os vencedores das
Max Weber: Cinquenta anos depois da publicação do Manifesto comunista, por
eleições, somaram 4.592.000 de votos e os que não venceram tiveram 5.930.000 de
Marx e Engels, num momento em que o capitalismo estava mais desenvolvido e
votos, número superior ao dos vencedores. Conclui Durkheim: ―se nos ativermos às
burocratizado, Weber escreveu sobre as questões do poder e da política.
considerações numéricas, será preciso dizer que nunca houve democracia‖.
Questionava: como será possível o indivíduo manter sua independência diante dessa
total burocratização da vida? Esse foi o tema central da Sociologia política
weberiana.
Estado e interesses coletivos
Se Durkheim tinha como foco a sociedade francesa, Weber manifestava uma
“Como é necessário haver uma palavra para designar o grupo
preocupação específica com a estrutura política alemã, mas levava em conta
especial de funcionários encarregados de representar essa autoridade [a
também o sistema político dos Estados Unidos e da Inglaterra. Além disso, estava
"autoridade soberana" a cuja ação os indivíduos estão submetidos],
atento ao que acontecia na Rússia, principalmente após a revolução de 1905.
conviremos em reservar para esse uso a palavra Estado. Sem dúvida é
Para ele, na Alemanha unificada por Otto Von Bismarck, o Estado era fun-
muito freqüente chamar-se de Estado não o órgão governamental, mas a
damentado nos seguintes setores da sociedade: o Exército, os junkers (grandes
sociedade política em seu conjunto, o povo governado e seu governo
proprietários de terras), os grandes industriais e a elite do serviço público (alta
17
burocracia). Em 1917, escrevendo sobre Bismarck, dizia que este havia deixado uma
eliminado, e surgiria uma situação que poderíamos designar como
nação sem educação e sem vontade política, acostumada a aceitar que o grande líder
"anarquia", no sentido específico da palavra. Hoje, porém, temos de
decidisse por ela.
dizer que o Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o
Ao analisar o Estado alemão, Weber afirma que o verdadeiro poder estatal está
monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado
nas mãos da burocracia militar e civil. Portanto, para ele, o "Estado é uma relação de
território. O Estado é considerado como a única fonte do "direito" de
homens dominando homens" mediante a violência, considerada legítima, e "uma
usar a violência. Daí „política‟, para nós, significar a participação no
associação compulsória que organiza a dominação". Para que essa relação exista, é
poder ou a luta para influir na distribuição de poder, seja entre Estados
necessário que os dominados obedeçam à autoridade dos que detêm o poder. Mas o
ou entre grupos dentro de um Estado.” (WEBER, Max. Ensaios de
que legitima esse domínio? Para Weber há três formas de dominação legítima: a
sociologia.)
tradicional, a carismática e a legal.
A dominação tradicional é legitimada pelos costumes, normas e valores
tradicionais e pela "orientação habitual para o conformismo". É exercida pelo
Para Max Weber, portanto, o Estado é uma organização sem conteúdo inerente;
apenas mais uma das muitas organizações burocráticas da sociedade.
patriarca ou pelos príncipes patrimoniais.
Democracia, representação e partidos políticos
A dominação carismática está fundada na autoridade do carisma pessoal (o
"dom da graça"), da confiança na revelação, do heroísmo ou de qualquer qualidade
As diversas formas que o Estado assumiu na sociedade capitalista estiveram
de liderança individual. É exercida pelos profetas das religiões, líderes militares,
ligadas à concepção de soberania popular, que é a base da democracia. Mas tal
heróis revolucionários e líderes de um partido.
soberania só se torna efetiva com a representação pelo voto. Para ampliar o número
A dominação legal é legitimada pela legalidade que decorre de um estatuto, da
de pessoas com direito de votar e ser votadas foram necessárias muitas lutas. Isso
competência funcional e de regras racionalmente criadas. Está presente no compor-
significa que o liberalismo só se tornou democrático porque foi forçado a isso. Na
tamento dos ―servidores do Estado‖.
época do liberalismo clássico, somente o homem adulto economicamente
independente tinha instrução e era considerado capaz de discernimento para tomar
decisões políticas. Desse modo, a representação durante muito tempo foi bastante
Estado e política
restrita.
“„Todo o Estado se funda na força‟, disse Trotski em Brest-Litovsk.
Tomemos como exemplo a Inglaterra, a pátria do parlamentarismo e da
Isso é realmente certo. Se não existissem instituições sociais que
democracia moderna. Logo após a chamada Revolução Gloriosa (1688), que
conhecessem o uso da violência, então o conceito de „Estado‟ seria
limitou os poderes do rei e atribuiu ao Parlamento autoridade sobre o governo,
18
somente 2 % da população tinha direito de voto. Em 1832, quase 150 anos depois,
senador ou mesmo presidente da República são necessários determinados atributos
após uma reforma eleitoral, esse índice subiu para 5%. As mulheres só
que, normalmente, só os membros das classes proprietárias possuem, como nível
conquistariam o direito de votar em 1928.
universitário, experiência administrativa, etc. A ação e o discurso contra a presença
Podemos entender muito melhor a "igualdade política" defendida pelo
de trabalhadores, ou daqueles que defendem seus direitos, no Parlamento ou em
pensamento liberal, que é a base ideológica do sistema capitalista, quando lemos o
cargos executivos, é algo muito antigo, mas está presente na sociedade
que disseram grandes pensadores liberais, como Benjamin Constant (1787-1874),
contemporânea em geral, e muito claramente no Brasil.
Immanuel Kant (1724-1804) e Edmund Burke (1729-1797).
Muitas pessoas também pensam que só se pode fazer política institucional
O pensador francês Benjamin Constant afirmava que as pessoas condenadas
por meio dos partidos políticos. Mas os partidos nasceram por causa da pressão
pela penúria ao trabalho diário e a uma situação de eterna dependência não estavam
exercida por quem não tinha acesso ao Parlamento. No início do Estado liberal, a
mais bem informadas acerca dos assuntos públicos que uma criança; por isso, não
idéia de partido era inaceitável, pois se considerava que o Parlamento devia ter
podiam desfrutar o direito eleitoral. Era necessário ter o tempo livre indispensável
unidade de formação e pensamento, não comportando divisões ou "partes" (o que a
para adquirir os conhecimentos e os critérios justos. Só a propriedade proporcionava
palavra partido expressa) . Votavam e eram votados, na prática, apenas os que
esse tempo livre e deixava os indivíduos em condições de exercitar os direitos
possuíam propriedades e riqueza, ou seja, aqueles que podiam viver para a política,
políticos.
já que não precisavam se preocupar com seu sustento. Assim, o Parlamento reunia
Immanuel Kant, filósofo alemão, afirmava que para exercer os direitos
políticos era necessário não ser criança ou mulher. Mas não bastava a condição de
os proprietários. Estes discutiam as leis que regeriam a sociedade como um todo
com base na visão deles.
homem; era preciso ser senhor de uma propriedade que lhe desse sustento. O
Somente quando outros setores da sociedade começaram a lutar por par-
dependente, o criado e o operário não podiam ser membros do Estado e não estavam
ticipação na vida política institucional, principalmente os trabalhadores or-
qualificados para ser cidadãos.
ganizados, os partidos políticos começaram a aparecer e a defender interesses
Edmund Burke, pensador inglês de visão conservadora, ao analisar os perigos da Revolução Francesa para a sociedade burguesa, afirmava que somente uma
diferentes: de um lado, o daqueles que queriam mudar a situação e, de outro, o
daqueles que queriam mantê-la.
elite tinha o grau de racionalidade e de capacidade analítica necessário para
Pelas razões expostas, o pensador francês Claude Lefort, em seu livro A in-
compreender o que convinha ao bem comum. Afirmava ainda que a propriedade
venção democrática (1983), afirma que é uma aberração considerar a democracia
garantia a liberdade, mas exigia a desigualdade.
uma criação da burguesia. Essa classe sempre procurou impedir que o liberalismo
Essas idéias ainda estão presentes nos dias de hoje, expressando-se, por
se tornasse democrático, limitando o sufrágio universal e a ampliação de direitos,
exemplo, quando se afirma que o povo não sabe votar, que para ser deputado,
como os de associação e de greve, e criando outras tantas artimanhas para excluir a
19
maior parte da população da participação nas decisões políticas. Por isso, para ele, a
últimos vinte anos, traíram as expectativas da maioria da população, principalmente
democracia é a criação contínua de novos direitos. Não é apenas consenso, mas
das classes populares.
principalmente a existência de dissenso.
As revelações mais freqüentes de corrupção permitem concluir que os go-
Alguns autores procuram analisar os aspectos institucionais da questão
vernantes legitimamente eleitos usam o mandato para enriquecer à custa do povo e
democrática. Para Joseph Schumpeter, Giovani Sartori, Robert Dahl, Adam
dos contribuintes. Há também o desrespeito dos partidos por seus programas
Przeworski, Guillermo O'Donnell, entre outros, há a necessidade de serem
eleitorais logo após as eleições, o que faz os cidadãos sentirem-se pessimamente
preenchidos alguns critérios para haver democracia num país:
representados e acreditarem cada vez menos na democracia representativa.
● Eleições competitivas, livres e limpas para o Legislativo e o Executivo;
● Direito de voto, que deve ser extensivo à maioria da população adulta, ou seja,
A sociedade disciplinar e a sociedade do controle
cidadania abrangente no processo de escolha dos candidatos;
● Proteção e garantia das liberdades civis e dos direitos políticos mediante
Até aqui vimos análises sobre o poder e a política que privilegiam suas relações
instituições sólidas, isto é, liberdade de imprensa, liberdade de expressão e
com o Estado. Mas existem pensadores que analisam a questão do poder e da
organização, direito ao habeas corpus e outros que compreendem o componente
política de modo diferente: não dão primazia às relações com o Estado, mas a
liberal da democracia;
elementos que estão presentes em todos os momentos de nossa vida. Entre eles,
● Controle efetivo das instituições legais e de segurança e repressão - Poder
Judiciário, Forças Armadas e Forças Policiais. Isso possibilitaria avaliar o genuíno
destacamos os franceses Michel Foucault (1926-1984) e Gilles Deleuze (19251995).
poder de governar das autoridades eleitas, sem que estas fossem ofuscadas por
Foucault se propôs analisar a sociedade com base na disciplina no cotidiano.
atores políticos não eleitos, como as instituições apontadas, que muitas vezes
Para ele, todas as instituições procuram disciplinar os indivíduos desde que nascem.
dominam nos bastidores.
Assim acontece na família, na escola, nos quartéis, nos hospitais, nas prisões, etc.,
Essas condições institucionais garantiriam a efetivação da democracia
representativa.
pois o fundamental é distribuir, vigiar e adestrar os indivíduos em espaços
determinados. Diz ele que, além dos aspectos institucionais ou até jurídicos dessas
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos propõe outros elementos para
instituições, esse poder desenvolve-se por meio de gestos, atitudes e saberes. É o
analisar a questão da democracia e da representação. Ele afirma que a democracia no
que chama de "arte de governar", entendida como a racionalidade política que
mundo contemporâneo nos oferece duas imagens muito contrastantes. Por um lado,
determina a forma de gestão das condutas dos indivíduos de uma sociedade. Nesse
a democracia representativa é considerada internacionalmente o único regime
sentido, ele afirma: "nada é político, tudo é politizável, tudo pode tornar-se
político legítimo. Por outro, existem sinais de que os regimes democráticos, nos
político".
20
Seguindo as pistas de Foucault, Deleuze declara que vivemos ainda numa
manhã ou pela tarde, desta ou daquela maneira, para ter uma vida mais saudável.
sociedade disciplinar, mas já estamos percebendo a emergência de uma sociedade de
Tome tal remédio para isso, mas não tome para aquilo". Os controles nos alcançam
controle.
em todos os momentos e lugares. Não há possibilidade de fuga.
A sociedade disciplinar é a que conhecemos desde o século XVIII. Ela procura
Se na sociedade disciplinar o elemento central de produção é a fábrica, na de
organizar grandes meios de confinamento: a família, a escola, a fábrica, o exército e,
controle é a empresa, algo mais fluido. Se a fábrica já conhecia o sistema de
em alguns casos, o hospital e a prisão. O indivíduo passa de um espaço fechado para
prêmios, a empresa o aperfeiçoou como uma modulação para cada salário,
outro e não pára de recomeçar, pois em cada instituição deve aprender alguma coisa,
instaurando um estado de eterna instabilidade e desafios. Se a linha de produção é o
principalmente a disciplina específica do lugar.
coração da fábrica, o serviço de vendas é a alma da empresa. O marketing é agora o
Na sociedade disciplinar, a fábrica, por exemplo, é um espaço fixo e confinado
instrumento de controle social por excelência - possui natureza de curto prazo e
onde se produzem bens. A fábrica concebe os indivíduos como um só corpo, com a
rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina é de
dupla vantagem de facilitar a vigilância por parte dos patrões, que controlam cada
longa duração, infinita e descontínua.
elemento na massa, e de facilitar a tarefa dos sindicatos, que mobilizam uma massa
de resistência.
O lugar do marketing em nossa sociedade é evidente, uma vez que'somos todos
vistos como consumidores. O convencimento é ao mesmo tempo externo (pela
O que nos identifica, na escola, no exército, no hospital, na prisão ou nos bancos,
recepção da mensagem) e interno (pela própria natureza do convencimento). Ao ser
é a assinatura e o número na carteira de identidade e na carteira profissional, além de
interiorizada, a coerção afinal aparece como um imperativo. Se tudo pode ser
diversos outros documentos.
comprado e vendido, por que não as consciências, os votos e outras coisas mais? A
A sociedade do controle está aparecendo lentamente, e alguns de seus indícios já
corrupção em todos os níveis ganhou nova potência.
são perceptíveis. Nela são usadas formas ultra-rápidas de controle, quase como
O que nos identifica cada vez mais é a senha. Cada um de nós é apenas um
prisões ao ar livre, na expressão de Theodor Adorno. Os métodos são de curto prazo
número, parte de um banco de dados de amostragem. A quantidade de senhas de
e de rotação rápida, mas contínuos e ilimitados. São permanentes e de comunicação
que necessitamos para nos relacionar virtualmente com as pessoas ou com
instantânea. Como não têm um espaço definido, podem ser exercidos em qualquer
instituições é enorme e, sem elas, ficamos isolados.
lugar. Exemplos de modos de controlar as pessoas constantemente são as avaliações
permanentes e a formação continuada.
Se na sociedade disciplinar há sempre um indivíduo vigiando os outros em
várias direções num lugar confinado, na sociedade do controle todos olham para o
Outra forma de controle contínuo são os "conselhos" a respeito da saúde que
mesmo lugar. A televisão é um bom exemplo disso, pois milhares de pessoas estão
estão presentes em todas as publicações, na televisão e na internet: "Não coma isso
sempre diante do aparelho. Na final do campeonato mundial de futebol em 2006,
porque pode engordar ou aumentar o nível de colesterol ruim. Faça exercícios pela
cerca de um bilhão e meio de pessoas estavam conectadas ao jogo.
21
é que essas câmeras, que capturam imagens a até dois quilômetros,
intimidam os bandidos e auxiliam a polícia.
Estado de exceção
Giorgio Agamben chama de Estado de exceção o tipo de governo
Giorgio Agamben, filósofo italiano, era professor convidado da
dominante na política contemporânea, que transforma o que deveria ser
universidade de Nova York. Depois do ataque às torres gêmeas do World
uma medida provisória e excepcional em técnica permanente de governo.
Trade Center, em Nova York, nos Estados Unidos, em 11 de setembro de
Para Agamben, o Estado de exceção significa simplesmente a
2001, ao voltar de suas férias na Itália, Aganiben desistiu de lecionar
suspensão do ordenamento jurídico: a anulação dos direitos civis do
naquela universidade, porque lhe foram impostas várias Condições, no
cidadão e seu estatuto jurídico corno indivíduo. Ele defende a idéia de que
aeroporto, para que entrasse no país: fichamento, coleta de impressões
o paradigma político do Ocidente não é mais a cidade, mas o campo de
digitais, revista e outras exigências. Ele disse que não se submeteria às
concentração.
imposições, pois eram procedimentos aplicados a criminosos na prisão, e
contemporâneas, engendradas por um Estado policial protetor, fazem da
não a cidadãos livres. Esse fato teve grande repercussão internacional,
política do terror e da insegurança o princípio gestor, estimulando, cada
pois com sua postura Agamben questionava o que estavam fazendo com
vez mais, a privatização dos espaços e o confinamento no interior deles.
Vistas
por
essa
ótica,
as
práticas
de
exceção
cidadãos em todo o mundo.
O filósofo observa que hoje os cidadãos são continuamente controlados
PODER, POLÍTICA E ESTADO NO BRASIL
e consideram isso normal. É o primeiro passo para que os regimes
democráticos se tornem autoritários, com a carapaça de democracia.
Por mais de 300 anos, enquanto na Europa constituíam-se Estados
Olhe a sua volta e observe que está sendo filmado em todos os lugares.
absolutistas e depois liberais, o Brasil permaneceu como colônia de Portugal —
Há câmeras nas entradas e elevadores dos edifícios residenciais e
portanto, submetido ao Estado portugês. Com a independência, em 1822, instituiu-
comerciais, nos bancos, nas ruas e também nos corredores das
se no Brasil um Estado monárquico do tipo liberal, mas com uma contradição
universidades.
imensa, que perduaria por mais 66 anos: a escravidão. Após a proclamação da
Você sabia que somente na Inglaterra foram instalados 4,5 milhões de
República, em 1889, o Estado brasileiro assumiu diferentes feições ao longo do
câmeras de vigilância na última década e que um habitante de Londres é
tempo, caracterizando-se como oligárquico, ditorial ou liberal, sempre à sombra do
filmado trezentas vezes por dia? Mas não é só lá. Em Clementina, uma
poder dos militares, cujas intervenções e golpes foram frequentes. Só a partir da
cidade de 6 mil habitantes no interior de São Paulo, foram montadas torres
Constituição de 1988 o país passou a conviver com a perspectiva de um Estado
de 25 metros com câmeras para fazer a vigilância da cidade. A justificativa
22
democrático duradouro, mas também com uma política econômica neoliberal, sem
Dom Pedro tinha o poder absoluto com uma maquiagem liberal, já que havia uma
ter efetivamente passado por um Estado de bem-estar social.
constituição no país. Parecia que existia um parlamentarismo, mas, de fato, quem
exercia
o
poder
era
o
imperador.
Depois da abdicação de Dom Pedro I, com as Regências e o governo de Dom Pedro
O Estado até o fim do século XIX
II, a estrutura política do Brasil manteve-se igual.
Podemos dizer que o Brasil conheceu várias formas de organização do
Estado, de acordo com os caminhos que a história política do país traçou.
Talvez o Brasil tenha sido o único país do mundo em que uma constituição
liberal coexistiu com a escravidão. Isso é uma grande contradição, pois a
Entre 1500 e 1822. Todas as decisões políticas relacionadas à colônia de
constituição liberal dispõe que todos os indivíduos são iguais perante a lei, e a
Portugal na América eram tomadas pelo soberano português, que mantinham um
escravidão é a negação disso. A permanência dessa contradição se explica pelo fato
Estado absolutista; os moradores da colônia só cumpriam decisões. Foi assim que
de a escravidão ser um dos elementos estruturais do Império. Ela foi abolida, em
aconteceu com praticamente todas as iniciativas políticas daquela época, desde a
1888,
e
a
monarquia
caiu
em
seguida.
implantação das capitanias hereditárias — que, conforme o próprio nome diz,
passavam de pai para filho — até a instituição do Governo Geral. Ou seja, toda a
O Estado republicano
estrutura de poder na colônia estava ligada diretamente ao rei de Portugal. Isso ficou
mais claro quando, em 1808, Dom João VI foi obrigado por Napoleão a vir para o
O Estado que nasceu com a implantação da República no Brasil , resultante
Brasil, transplantando para cá forma de Estado vigente em Portugal. Esse período
der mais uma tentativa da classe dominante para manter seu poder; caracterizou-se
durou
independência.
como liberal conservador. Desde sua implantação, os militares tiveram sempre uma
Entre 1822 e 1889. Da independência à República, havia no país um Estado
presença marcante na estruturação política nacional e estiveram no posto máximo
imperial constitucional com os poderes Executivo (Conselho de Estado), Legislativo
de comando— a Presidência da República — ou nos bastidores, influindo nas
(assembleia Geral, composta do Senado e da Câmera dos Deputados) e Judiciário
principais
(Supremo Tribunal de Justiça). No entanto, havia algo diferente no Brasil de Dom
Tivemos, nesse londo período de República, diferentes momentos de poder: o do
Pedro I: o poder Moderador, exercido pelo imperador.
poder oligárquico (um governo de grupos), exercido pelos grandes proprietários de
pouco,
pois
logo
veio
a
decisões
políticas.
O poder Moderador ficava acima dos outros três, pois o imperador nomeava
terras, as ditaduras explícitas, os momentos de governos democráticos liberais com
os integrantes do Conselho de Estado (o Executivo) e do Senado, escolhia os
restrições, etc. Enfim, vivemos situações em que a democracia esteve sempre por
membros do Supremo Tribunal, podia dissolver a Câmera dos Deputados e utilizar
um fio.
as Forças Armadas quando achasse conveniente para manter a segurança do Império.
23
República Velha: o Estado oligárquico (de1889 a 1930). Enquanto na
Europa e nos Estados Unidos já havia um desenvolvimento industrial significativo e
um Estado liberal democrático estruturado, o Brasil era um país essencialmente
agrário, com um Estado oligárquico que excluía a participação popular.
marcante a chamada política do café com leite, que expressou a presença dominante
dos estados de São Paulo e Minas Gerais no executivo federal.
O coronelismo era uma forma de poder econômico, social e político
encarando pelo proprietário rural, que controlava os meios de produção, e os
A República no Brasil surgiu de um movimento da cúpula militar, sem a
moradores da zona rural e das pequenas cidades do interior. A prática político-social
participação da população. Segundo o jornalista republicano Aristide Lobo, em sua
dos coronéis mantinha uma articulação local-regional e regional-federal, como nos
coluna "Cartas do Rio", escrita no dia da proclamação publicada no Diário
tempos de Império.
Popular do dia 18 de novembro de 1889, "o povo assistiu bestializado, atônito,
surpreso sem conhecer oque significava", ao movimento que derrubou a monarquia.
O período Vargas (de 1930 e 1945). Dois golpes de Estados delimitam
esse período: um para colocar Getúlio Vargas no poder e outro para derrubá-lo.
Após um período de governo provisório, entre 1889 e 1891, houve a
A atuação parlamentar praticamente não existiu no período Vargas e,
promulgação de uma constituição, em 1891, que criava a República Federativa do
quando houve, sempre esteve atrelada ao governo central. O Brasil teve duas
Brasil. Isso significava que o Brasil era um conjunto de províncias (os atuais
constituições: a de1934 (que tinha um fundamento liberal e durou muito pouco) e a
estados), as quais tinham autonomia e uma constituição própria que definia o
de 1937 (que foi imposta por Getúlio Vargas, com inspiração fascista e autoritária).
Judiciário, as Forças Armadas, os códigos eleitorais e a capacidade de criar
Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder estabeleceu-se o que a
impostos. Mas o poder da União ficava resguardado, pois ela podia intervir nas
Sociologia chamou de populismo: uma relação de poder em que o governo buscava
províncias para assegurar a ordem, a estabilidade e o pacto federativo.
o apoio dos trabalhadores e também da burguesia industrial (setor que de fato
O poder nesse período caracterizava-se por duas práticas: a política dos
governadores e o coronelismo.
representava). Com isso, Getúlio criou uma divergência com o setor agrário
dominante, já que seu objetivo era implantar uma nova ordem industrial.
À exceção do período 1889-1894, quando os militares estiveram no
Para alguns autores brasileiros, como Helio Jaguaribe e Guerreiro Ramos, o
comando da República, a chamada política dos governadores procurava evitar
traço marcante do populismo de Vargas foi a liderança carismática. Para outros
disputas entre o governo central e os estaduais, garantindo assim a manutenção e o
estudiosos, como Francisco Weffort, tratava-se de um fenômeno de massas e de
predomínio da máquina administrativas federal. Essa política expressava um acordo
classes, com certo traço manipulador. Já de acordo com Octávio Ianni, foi um
entre o governo federal e as mais fortes oligarquias regionais, através da destinação
fenômeno ideologicamente baseado no nacionalismo, com uma política que
de verbas da União para obras públicas estaduais; em troca recebia o apoio dos
envolvia todas as classes sociais, portanto, um movimento policlassista.
deputados e senadores para aprovação dos projetos de interesses do Executivo. Foi
Em termos econômicos, havia um compromisso entr o governo e as elites
urbanas de industrializar o país, utilizando para isso a modernização da estrutura
24
estatal e também a incorporação, de modo controlado e subordinado, das emergentes
Siderúrgica Nacional (CSN) e a Companhia Vale do Rio Doce, e nacionalizou a
massas urbanas. O Estado aparecia como o principal agente investidor na
produção e o refino de petróleo com a criação da Petróleo Brasileiro S.A
infraestrutura
processo.
(Petrobras). O objetivo era diminuir as importações que, na época, ainda abrangiam
Sem perder de vista seu caráter autoritário e a repressão que desencadeou
os bens de consumo duráveis, como as geladeiras, os fogões e os eletrodoméstico de
necessária
a
esse
no Estado Novo, Getúlio Vargas deixou um legado de leis trabalhistas e a concepção
de um país com um projeto nacional que continuou nos anos seguintes.
todos os tipos.
Com Juscelino Kubitscheck, finalmente se implantou a indústria nacional
A República com a marca Vargas: o Estado liberal (de 1945 a
de bens duráveis, graças à estruturação da tríplice aliança, a conjugação entre o
1964). Terminada a Segunda Guerra Mundial, iniciava-se no Brasil um período de
Estado, o capital nacional e o capital estrangeiro, que possibilitou um grande
19 anos de democracia liberal, delimitado por golpes militares. O primeiro deles foi
desenvolvimento econômico e industrial no Brasil. O exemplo mais claro dessa
o que derrubou Getúlio Vargas, em 1945, e o último, o que depôs João Goulart, seu
aliança foi a implantação da indústria automobilística nacional, com a ainda das
seguidor político, em 1964.
grandes montadoras de veículos, como a Volkswagem, a Ford e a General Motors.
 1946 a 1950. Governo do general Eurico Gaspar Dutra, eleito pelo voto
popular.
Essas empresas instalaram-se no Brasil com o apoio do governo federal, que
desenvolveu uma indústria siderúrgica, ampliava a produção de petróleo e construía
 1951 a 1954. Governo de Vargas, eleito pelo voto popular.
estradas, enquanto o capital nacional participava com as indústrias subsidiárias,
 1954. Suicídio de Vargas.
produzindo peças, equipamentos e acessórios para os automóveis e caminhões.
 1954 a 1955. Governo de transição. tentativa de golpe para impedir a posse
de Kubitschek.
O final dessa fase chegou com o golpe militar de 1964, que derrubou João
Goulart. O golpe estava sendo tomado havia tempo, desde a renúncia de Jânio
 1956 a 1960. Governo de Kubitschek, eleito pelo voto popular.
Quadros, em 1961; só demorou para ser posto em prática por causa das divergências
 1961. Governo e renúncia de Jânio Quadros. Posse de João Goulart.
entre os militares mais guardados e também entre os líderes civis. Um novo período
Implantação do parlamentarismo.
ditatorial se iniciava no Brasil.
 1963. Volta do presidencialismo, com Goulart no comando.
A República dos generais (de 1964 e 1985). Por que houve o golpe militar
 1964. Deposição de Goulart por golpe militar em 1º de abril.
em 1964? Segundo os golpistas, o objetivo era acabar com a anarquia e a
O Estado estruturou-se com uma nova constituição em 1964, considerada
insegurança que levariam o país ao comunismo; os militares argumentavam também
politicamente liberal, mas que permitia a intervenção na economia, principalmente
que era a única maneira de deter a inflação, que estava absurdamente alta, e de
na infraestrutura necessária ao processo de industrialização. No esforço de
avançar no processo de industrialização já em curso.
industrialização, o governo investiu em empresas siderúrgicas, como a Companhia
25
Politicamente, podemos dizer que essa fase divide-se em três momentos: de
1964 a 1968, de 1969 a 1973 e de 1974 a 1984.
ascensão, tanto no plano eleitoral quando no dos movimentos populares, com a
emergência de manifestações reivindicatórias, principalmente nas grandes cidades,
No primeiro momento, os militares editaram o Ato Institucional nº 1 (AI-1),
que suspendeu os direitos políticos de centenas de pessoas. Foram extintos os
por melhores condições de vida e de trabalhadores, com nova configuração,
reestruturou-se gradativamente.
partidos políticos e criado o bipartidarismo, com a Aliança Renovadora Nacional
Diante dessa situação, no governo do general Ernesto Geisel (1974 a 1979)
(Arena), de apoio ao governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de
foram dados os primeiros passos para a "abertura" do país. Inicialmente, Geisel
oposição consentida. Todas as eleições diretas para cargos executivos foram
precisou conter os vários setores das Forças Armadas que queriam a continuidade
suspensas.
do regime militar; depois, iniciou uma longa trajetória pra promover uma transição
Nesses primeiros aos de golpe, ocorreram muitos atos públicos,
principalmente de estudantes e trabalhadores, contra o regime militar. Os
lenta e gradual para a democracia representativa, sob a vigilância dos militares,
tentando conter as manifestações políticas das ruas.
movimentos foram permitidos inicialmente, mas depois passaram a ser reprimidos
Nessa última fase da ditadura aconteceu alguns fatos importantes que
com violência. A edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5)), em 13 de dezembro de
merecem ser lembradas. Em 1978 foi extinto o AI-5, o ato institucional dos
1969, marcou o endurecimento do regime anulou a Constituição.
militares que tolhera radicalmente a liberdade no país. Em 1979 foi aprovada a lei
O segundo momento correspondeu aos chamados "anos de chumbo", pois
da anistia, e centenas de exilados voltaram ao Brasil. Também nesse ano foi
nessa fase houve intensa representação aos movimentos organizados e às
restabelecido o pluripartidarismo, o que abriu a vida política para outros partidos. O
manifestações públicas e censura prévia à imprensa. O endurecimento aumentou a
Partido Democrático Social (PDS) substituiu a Arena, e o MDB transformou-se no
oposição ao regime, com a organização de movimentos guerrilheiros na cidade e no
Partido Democrático Brasileiro (PMDB). Nasceram o Partido Democrático
campo. Os militares reagiram com violência, colocando em prática as torturas,
Trabalhista (PDT) e Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Em 1982, o Partido dos
assassinatos e desaparecimentos de ativistas de esquerda e de pessoas que eles
Trabalhadores (PT) teve seu registro aceito.
diziam conspirar contra a segurança nacional.
No último governo militar, o do general João Baptista Figueiredo, agravou-
Também nesse segundo momento o país iniciou um processo que foi
se a crise econômica e intensificaram-se os mivimentos grevistas e as manifestações
designado de "milagre econômico", pois houve um crescimento expressivo da
de protesto. Em 1984, uma campanha por eleições diretas para preidente da
produção nacional.
República, conhecida como Diretas Já, agitou o país, e uma emenda à constituição
Os últimos dez anos do regime militar (1974-1984) foram críticos para sua
foi votada comesse objetivo, mas não conseguiu ser aprovada no Congresso. Os
manutenção, pois em termos econômicos iniciava-se uma crise internacional
militares decidiram que o governo deveria ter um civil na liderança, mas eleito
decorrente internamente. E, politicamente, a oposição ao regime iniciava sua
indiretamente pelo Congresso Nacional, isso ocorreu.
26
Como vimo até aqui, o Estado brasileiroteve poucos momentos de efetica
Durante o mandato de Sarney, em 1988, foi promulgada a nova
democracia representativa, mesmo com a existência de uma constituiçã que
Constituição brasileira, chamada de Constituição cidadã, fato considerado
sepropunha definir os direitos dos cidadãos. Na prática, essa constituição estava
fundamental para o desenvolvimento de uma democracia estável no Brasil.
sempre a serviço daqueles que ocupavam o poder e de quem os sustentava.
Os governantes seguintes, eleitos pelo voto popular, puderam atuar sem a
O retorno à democracia (de 1985 a nossos dias). Após abertura, o Brasil
viveua fase do Estado liberal democrático, que procurou definir as bases
vigilância das Forças Armadas. O Executivo, o Legislativo e o Judiciário
desenvolveram suas atividades plenamente.
democráticas de convivência política. Essa fase se iniciou com a eleição indireta,
Numa situação de alta inflação, concentração de renda e desigualdade
pelo Colégio Eleitoral, do primeiro presidente civil que deveria substituir os
social, a preocupação fundamental do Estado nesse período foi a redução e o
militares no governo.
controle da inflação. Para isso, muitos planos econômicos foram criados, como o
1985 a 1990. Governo de José Sarney, eleito indiretamente como vice-
Plano Cruzado, o Plano Collor, o Plano Bresser e o Plano Real, mas somente o
presidente de Tancredo Neves.
último, criado no governo Itamar Franco pelo então ministro da Fazenda, Fernando
 1990 a 1992. Governo de Fernando Collor de Melo, eleito pelo voto popular
e cassado pelo Congresso por corrupção.
Henrique Cardoso, alcançou os objetivos proposto.
Sem ter havido no Brasil um Estado do bem-estar social, o Estado
 1992 a 1995. Governo de Itamar Franco, vice de Collor.
neoliberal que se implantou a partir do governo Collor-Itamar criou, pelas políticas
 1995 a 2003. Governo de Fernando Henrique Cardoso, eleito pelo voto
que desenvolveu, um "Estado do mal-estar social". Vamos examinar as políticas
popular.
implantadas.
 2003 a 2010. Governo de Luiz Inacio Lula da Silva, eleito pelo voto
 Na tentativa de integrar a economia do país à globalização, o
popular.
Estado neoliberal promoveu a privatização de empresas estatais
O candidato eleito, Tancredo Neves, procurou demonstrar que formaria um
(nos setores de siderurgia, energia e comunicações) e abriu o
governo novo, mas na verdade ele era um político de confiança dos militares, ou
mercado nacional a produtos estrangeiros, derrubando barreiras às
seja, era a garantia de que não haveria revanchismo contra eles. No entanto Tancredo
economias mais poderosas do mundo.
morreu antes de tomar posse; quem assumiu foi o vice, José Sarney. Ex-presidente e
 No sistema financeiro, foi permitida a livre atuação dos bancos e o
depois dissidente do PDS (partido governista), Sarney criara a Frente Liberal (mais
movimento de capitais no mercado inteiro; renunciou-se ao
tarde PFL), partido pelo qual se tornou vice-presidente na chapa de Tancredo
controle da moeda nacional e da política cambial, atrelando a
Neves.
moeda nacional ao dólar, para facilitar as transações no mercado
financeiro.
27
 Foram tirados dos trabalhadores direitos que tinham resultado de
sociedade. o alargamento do poder econômico do Estado implica a
muitas lutas. Alteraram-se os contratos de trabalhos, o limite de
expansão de Executivo; implica o alargamento do poder político e
horas na jornada de trabalho, as férias remuneradas, além do sistema
cultura, por suas implicações não só econômicas, mas também
de aposentadorias. Também foram criadas aposentadorias privadas,
políticas e culturais [...].
que muito beneficiaram o setor financeiro.
À medida que se alarga o poder estatal, redefine-se e modifica-se a
 Incentivou-se criação de escolas particulares e, com isso, houve uma
relação do Estado com a sociedade, compreendendo as diversidades e
proliferação de faculdades e universidades particulares no Brasil.
as desigualdades sociais, econômicas e outras. Na prática, dissocia-se
Essa expansão só foi possível porque foi financiada pelo Estado em
o poder estatal de amplos setores da sociedade civil. Operários,
detrimento das universidades públicas.
camponeses, empregados, funcionários e outros, compreendendo
 Ampliou-se a presença das empresas que administram planos de
saúde, ficando o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para os
mais pobres.
negros, mulatos, índios, cablocos, imigrantes e outros, sentem-se
deslocados, não representados, alienados do poder.
___________________________________________________________________
No governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que sucedeu ao Fernando
Henrique Cardoso, foi nesessário manter e ampliar políticas de compensação à
_____
IANNI, Octávio. Estado e capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 259-60.
concentração de renda e às desigualdades sociais, quecontinuavam muito grandes.
Assim, criaram-se políticas sociais visando amenizar a situação precária da maior
CAPÍTULO 13
parte da população brasileira. Essas políticas compensatórias, como o Bolsa Família
A DEMOCRACIA NO BRASIL
e o aumento do salário mínimo acima da inflação, entre outras, lentamente estão
provocando uma diminuição, ainda que pequena, da desigualdade social no Brasil.
Analisar a questão da democracia no Brasil significa examinar não somente as
instituições políticas e as regras existentes, mas também a maneira de se viver a
Cenário Do Estado no Brasil
democracia. Pode-se dizer que ela é ainda uma possibilidade, pois as forças de
Estado, capital e sociedade
manutenção de práticas antigas são muito grandes. Vejamos alguns aspectos dessa
O forte comprometimento do Estado com o capital implica a expansão
questão no Brasil.
do Poder Executivo, em determinado do Legislativo. Em um país de
tradição política autoritária, no qual predominam o pensamento e a
Democracia e representação política
prática que privilegiam a missão "civilizatória" do Estado na
28
Como vimos, a democracia pode ser entendida de várias maneiras. Vamos
destacar duas delas para examinar como a democracia desenvolveu-se no Brasil.
A luta por direitos civis, políticos e sociais. Após a proclamação da
República surgiram vários movimentos que procuravam criar espaços de
As regras institucionais. No Brasil, a ampliação da participação política é
participação política.
um processo recente. Os detentores do pode, a serviço de uma minoria, por muito
Os movimentos de trabalhadores sempre estiveram à frente dese processo,
tempo mantiveram a maioria da população fora do processo eleitoral. Só para termos
principalmente na luta por melhores salários e condições de trabalho. Outras lutas
uma ideia, da proclamação da República, em 1889, até 1945, o número de eleitores
foram desenvolvidas, mas sempre eram reprimidas, pois a questão dos direitos, por
foi somente de 5% da população aproximadamente, com pequenas variações. Em
muito tempo, foi vista como um caso de polícia ou uma concessão por parte dos
1960, esse índice havia subido para 18%. Em 1980, 47% da população podia
poderosos ou do Estado. Somente nos últimos anos os movimentos sociais tiveram
participar das eleições. Sempre houve um percentual significativo (de 15% a 20%)
espaços institucionais, quer por meio de leis, quer mediante organizações que lutam
de ausências. Ou seja, cem anos se passaram para que a população pudesse
pela garantia dos direitos.
participar majoritariamente das eleições no Brasil.
A maior participação institucional nas decisões políticas foi uma conquista
Houve evolução também na consciência do eleitor, em relação ao tempo em
da população, que se mobilizou organizadamente em diversas instituições, e não
que se comprava voto dos mais pobres. Essa prática diminuiu gradativamente, à
uma concessão dos poderosos. Pode-se dizer que no Brasil existem muitas leis que
medida que se intensificou o processo de urbanização e diminuiu a pressão dos
geram direitos, mas estes com frequência não são garantidos. Assim, os grupos que
"coronéis" e seus comandados sobre a população rural, que ainda era maioria em
reclama, lutam e exigem que seus direitos sejam observados são vistos pormuitos
1960. Contribuiu para essa evolução o desenvolvimento das regras eleitorais e das
governantes e por setores conservadores da população como baderneiros e
técnicas de votar, principalmente o voto secreto com cédulas únicas imprenssas pelo
insensíveis aos esforços do governo em fazer o melhor.
governo central e a introdução de urnas eletrOnicas. Colaboraram ainda a fixação de
regras mais claras e a fiscalização da Justiça Eleitoral.
A democracia no Brasil é algo muito recente e ainda está consolidando. Ela
continuará crescendo se as regras institucionais para as eleições e o exercício do
No entanto, essas mudanças não foram suficientes para acabar com as
práticas clientelísticas ainda presentes no cotidiano político dos brasileiros.
poder forem ampliadas, para possibilitar a participação da população, e se os
movimentos sociais tiverem mais liberdade para lutar pela manutenção dos direitos
Sobre a capacidade de governar, o que podemos observar é que,
fundamentais e a criação de novos direitos. Somente quando a maioria da população
recentemente, depois da Constituição de 1988, poder político civil deixou de ser
tiver educação de qualidade, condições de se alimentar adequadamente e condições
vigiado pelos militares, que, desde o início da República, estiveram à frente dos
decentes de vda social, poderemos ter democracia no Brasil. Enquanto isso, temos
governos ou ficaram nos bastidores influindo diretamente na condução da política
uma democracia "capenga".
nacional.
29
voto, com uma estruturação burocrática na qual aparecem os administradores
Os partidos políticos no Brasil
partidários, os técnicos de marketing, os institutos de pesquisa e os elaboradores de
Os partidos políticos no Brasil foram, em sua maioria, representantes dos
programas de governo que, muitas vezes, são contrataddos para fazer o partido
setores dominantes da economia na sociedade. Até 1930, os partidos eram apenas
ganhar eleições. Em artigo publicado na revista Política Democrática em março de
agregados de oligarquias locais e regionais que se organizavam para tirar vantagens
2007, Ricci diz que "grande parte dos brasileiro que assistiram aos depoimentos de
do Estado. Havia apenas uma exceção: o Partido Comunista do Brasil (PCB), criado
dirigentes partidários envolvidos diretamente nos inúmeros casos de corrupção que
em 1922, que se propunha ser a voz dos trabalhadores.
assolaram a política nacional nunca havia sequer visto de relance as figuras de
Pode-se dizer que só depois da ditadura de Vargas formaram-se partidos
administração que, de fato, movimentam fotunas, articulam negociações e acordos,
nacionais. Os principais eram a União Democrática Nacional (UDN), que
definem e conduzem empresas de marketing político, comandam o cotidiano
representava a burguesia industrial e as classes médias urbanas, o Partido Social
partidário".
Democrático (PSD), que representava os setores rurais e semirurais, e o Partido
Assim, os partidos perderam a capacidade de politizar a sociedade, ou seja,
Trabalhista Brasileira (PTB), que representava o sindicalismo e o movimento
não alimentsm debates políticos que possibilitem à população identificar as
trabalhista. O PCB permanecia ativo, mas cassado em 1947, passou a atuar
diferenças nos projetos para a sociedade brasileira. O PT talvez tenha sido o último
clandestinamente.
a tentar, mas, ao assumir o governo, também abandonou esse caminho.
Em 1966, entretanto, com a nova ditadura mlitar, todos os partidos foram
No plano interno, quando observamos a tomada de decisões para a escolha
cassados e, em seu lugar, foi imposta uma estrutura bipartidária, como vimos —
dos candidatos de um partido, o que constatamos é a falta de democracia e a pouca
com a Arena, que apoiava e defendia o regime militar, e o MDB, de oposição, ainda
vontade para promover a alternância entre diversas facções.
que controlava pelos militares.
Os partidos políticos caracterizam-se cada vez menos como representantes
Com as mudanças econômicas e política — pricipalmente a emergência dos
de determinados setores e interesses, apresentando-se sem uma definição muito
movimentos sociais e a luta pela redemocratização — e o fim do período autoritário,
clara. As diferenças entre um e outro são praticamente dissolvidas, pois há uma
desenvolveu-se uma nova estrutura partidária no Brasil. Diversos partidos se
fragmentação de interesses internos que os limites dos partidos não comportam.
organizaram, além dos já mencionados (PMDB, PT, PDT e PTB), como o Partido da
Assim, no cotidiano do Parlamento brasileiro, o que se vê são grupos que se reúnem
Frente Liberal (PFL) — hoje Democratas — e o Partido da Social Democracia
em torno de corporações de interesses — os grupos (bancadas) ruralista,
Brasileira (PSDB), registrados, respectivamente, em 1986 e 1988.
evangélicos, sindicalista ou grupos regionais, como os dos paulista, mineiros,
O sociólogo brasileiro Rudá Ricci, analisando os atuais partidos políticos,
afirma que eles se transformaram em imensas máquinas empresariais em busca do
30
gaúchos, nordestinos. Ou seja, são grupos que geram verdadeiras oligarquia
setoriais.
O Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmeras de
restante da populção. Para esclarecer essas característica das relações entre o Estado
Vereadores — o Legislativo brasileiro em seus vários níveis — são as instituições
e a sociedade no Brasil, vamos examinar a relação entre o que é público e o que é
políticas com o mais baixo índice de credibilidade nacional. As instituições da
privado.
democracia representativa, portanto, ainda são vistas como espaços para conchavos,
Privativação do público. Podemos dizer que houve no Brasil uma
corrupção e negocatas, e poucos de seus membros têm credibilidade perante a
apropiação privada do que é público, ou seja, quem chegava ao poder tomava conta
população.
do público como se fosse seu. Dessa forma, a instituição que deveria proteger a
Além disso, a erosão progressiva dos poderes do Parlamento se estabelece
maioria da população — o Estado — adotou como princípio o favorecimento dos
quando sua função, na maioria das vezes, se limita a ratificar o que o Poder
setores privados, que dominaram economicamente a sociedade. O Estado
Executivo envia para ser analisado, por meio de projetos de lei ou, atualmente, de
beneficiava esses setores e também era beneficiado por eles, que lhe davam
medidas provisórias. A pauta de discussçoes fica na dependência da maior ou menor
sustentação.
sensibilidade do governante em relação às questões que afetam a maioria da
população brasileira.
Para o restante da sociedade, as políticas públicas foram sendo
desenvolvidas na forma de "doação" ou de dominação, em nome da tranquilidade
social. Isso não significa que a população tenha sido sempre passiva. Ao contrário,
muitas ações do Estado resultaram da pressão dos movimentos sociais no país.
Algumas reflexões sobre o Estado e a sociedade no Brasil
A política do favor, o clientelismo. A relação entre público e privado no
Como vimos, o Estado é uma organização criada pela sociedade por
Brasil também pode ser caracterizada como uma política do favor. Ela se
diferentes percursos. A estrutura estatal criada após a independência se manteve até a
desenvolveu desde o período colonial e apresenta-se hoje como um dos suportes das
proclamação da República, em 1889. Depois disso, muitas transformações
relações políticas nacionais entre os que têm o poder político e os que têm o poder
ocorreram, mas algumas característica permaneceram, tornando a estrutura estatal do
econômico.
Brasil a expressão da articulação do novo com o velho.
Essa troca de favores políticos por benefícios econômicos é também
O Estado no Brasil sempre se sobrepôs à sociedade, como se fosse algo fora
conhecida como clientelismo. Ela pode ser observada, por exemplo, na distribuição
dela. Nós aprendemos desde cedo que tudo depende do Estado e que nada podemos
pelo poder público de concessões de emissoras de rádio e canais de televisão ou
fazer sem a presença dele, matribuindo-lhe a responsabilidade pelos problemas da
financiamentos para empresas, sempre em busca de apoio e sustentação de um
sociedade e por suas soluções. Assim, se culpamos o estado pelas dificuldades que
partido, de uma organização ou de uma família no poder. Isso não ocorre somente
enfrentamos, também dele esperamos socorro e proteção — o que vale tanto para os
nos setores considerados da sociedade; é uma prática utilizada também pelos setores
proprietários de terras, os empresários indusstriais e os banqueiros quanto para o
considerados modernos, que sempre encontraram no Estado um aliado nos
31
momentos de crise. Quantas vezes ouvimos dizer que o governo socorreu
Quando ocorrem atos de corrupção na administração pública, a reação
determinadas empresas e bancos que estavam em situação precária ? Quantas vezes
costuma ser marcada pel moralismo, que se caracteriza por atribuir ao caráter
assistimos ao Estado oferecer financiamento com juros baixíssimos para grandes
pessoal do funcionário ou político envolvido a responsabilidade pela malversação
empresários que estavam quase falindo ?
dos recursos públicos. Não se procura evidenciar as relações políticas, econômicas,
Instalou-se no Brasil um capitalismo sem riscos, pois o poder público
sempre esteve pronto para salvar aqueles que se punham em perigo.
sociais e culturais que estão na raiz das práticas de favorecimento e tráfico de
influência. Assim, há uma simplificação desse fato, pois se acredita que bastaria
São os setores envolvidos na troca de favores os primeiros a questionar o
Estado quando este procura aplicar recursos em educação, saúde, habitação ou
fazer um governo com os homens e mulheres "de bem" para que tudo fosse
resolvido.
transporte para beneficiar a maioria da população. A economia e muitos outros
A corrupção existe em todos os países do mundo, tanto nas estruturas
setores da sociedade se modernizaram, mas as práticas políticas no Brasil, com
estatais como nas empresas privadas. No Brasil, ela se mantém no sistema de poder
raríssimas exceções, continuam a reproduzir as velhas relações políticas, cm poucas
porque, como vimos, o favor e o clientelismo continuam presentes. O combate à
modificações.
corrupção requer a criação de mecanismo que a coíbam, garantindo que os
A política do favor aparece também no cotidiano, na relação dos indivíduos
envolvidos sejam julgados e condenados por seus atos. E isso tem sido feito com a
com o poder público. Ela acontece na busca de ajuda para resolver problemas,
ajuda de funcionários públicos, promotores e juízes que não aceitam mais velhas
emergências de trabalho, saúde, etc. Expressa-se ainda na distribuição de verbas
práticas.
assistenciais e nas promessas de construção de escolas, de posto de saúde e de
A despolitização e a economia como foco.: Com a ampliação das
doação de ambulâncias, feitas às pessoas ou às instituições por vereadores,
transformações produtivas e financeiras no mundo, principalmente depois da
deputados e senadores. Tudo para render votos futuros.
década de 1980, a questão política no Brasil está cada vez mais dependente das
Nepotismo e corrupção: Muita coisa mudou na administração pública
questões financeiras. Conforme o sociólogo Marco Aurélio Nogueira, a política
desde as reformas administrativas de Getúlio Vargas e de outros governos, que
brasileira, nos últimos anos, resume-se uma tentativa de estabilização monetária, na
instituíram gradativamente concursos públicos para a maioria dos postos de trabalho
qual o mercado está acima do Estado, o econômico acima do político, o
e procuram implantar uma administração com certo grau de profissionalização, no
especulativo acima do produtivo e o particular acima do geral.
sentido definido por Max Weber, com a impessoalidade da função pública. Mesmo
Além das condições anteriormente mencionadas (clientelismo e favor), isso
assim, sabemos que ainda há casos de manipulação nos concursos públicos e a
também gera uma despolitização crescente, pois a política estaria neutralizada e
prática do nepotismo, ou seja, o emprego ou o favorecimento de parentes em cargos
esvaziada como instrumento de mediação entre o individual e o coletivo, campo de
públicos, ainda que isso seja proibido por lei.
discussão das ideias e de projetos políticos divergentes e em conflito. Novamente
32
aparece um paradoxo no Brasil: foi o país onde houve nos últimos anos o maior
tema, reuniu os diferentes significados de "cultura" em três grupos, por ele
crescimento do eleitorado e, ao mesmo tempo, uma despolitização enorme.
designados cultura-valor, cultura-alma coletiva e cultura-mercadoria.
Cultura-valor é o sentido mais antigo e aparece claramente na ideia de
CULTURA E IDEOLOGIA
É comum ouvirmos dizer que um indivíduo é culto porque fala vários
idiomas ou conhece muitas obras de literatura e de arte. Costuma-se dizer, ainda, que
uma pessoa não é culta se não domina determinados conhecimentos. Indo além do
plano individual, há quem compare diferentes povos e afirme que a cultura de um é
mais sofisticada e complexa que a de outro. Esse tipo de avaliação, baseada no senso
comum, comporta elementos ideológicos que nos levam a pensar na possível
superioridade de alguns indivíduos ou de determinados povos em relação a
outros.Afinal, o que significam cultura e ideologia, termos tão usados em nosso
"cultivar o espirito". É o que permite estabelecer a diferença entre quem tem cultura
e quem não tem ou determinar se o indivíduo pertence a um meio culto ou inculto,
definindo um julgamento de valor sobre essa situação. Nesse grupo inclui-se o uso
do termo para indentificar, por exemplo, quem tem ou não cultura clássica, artística
ou cientifica.
O segundo significado, designado cultura-alma coletiva, é sinônimo de
"civilização". Ele expressa a ideia de que todas as pessoas, grupos e povos têm
cultura e identidade cultural. Nessa acepção, pode-se falar de cultura negra, cultura
chinesa, cultura marginal, etc. Tal expressão presta-se assim aos mais diversos usos
cotidiano e nas ciências humanas ?
por aqueles que querem dar um sentido para a ação dos grupos aos quais pertencem,
com a intenção de caracterizá-los ou identificá-los.
Dois conceitos e suas definições
O terceiro sentido, o de cultura-mercadoria, corresponde à "cultura de
massa". Ele não comporta julgamento de valor, como o primeiro significado, nem
Cultura e ideologia talvez sejam os conceitos mais amplos da ciências sociais, com
diferentes definições. Neste capítulo, vamos examinar os significados e usos desses
conceitos de acordo com diferentes autores.
delimitação de um território específico, como o segundo. Nessa concepção, cultura
compreende bens ou equipamentos - como os centros culturais, os cinemas, as
bibliotecas -, as pessoas que trabalham nesses estabelecimento, e os conteúdos
teóricos e ideológicos de produtos - como filmes, disco e livros - que estão à
Os significados de cultura
disposição de quem quer e pode comprá-los, ou seja, que estão disponíveis no
mercado.
O emprego da palavra cultura, no cotidiano, é objeto de estudo de diversas
ciências sociais. Felix Guattari, pensador frânces (1930-1992) interessado nesse
As três concepções de cultura estão presentes em nosso dia a dia, marcando
sempre uma diferença bastante clara entre as pessoas - seja no sentido mais elitista
(entre as que têm e as que não têm uma cultura clássica e erudita, por exemplo),
33
seja no sentido de identificação com algum grupo específico, seja ainda em relação à
sem preocupações com suas origens. Concebia as culturas como sistemas funcionais
possibilidade de consumir bens culturais. Todas essas concepções trazem uma carga
e equilibrados, formados por elementos interdependentes que lhes davam
valorativa, dividindo indivíduos, grupos e povos entre os que têm e os que não têm
características próprias, principalmente no tocante às necessidades básicas, como
cultura ou, mesmo, entre os que têm uma cultura superior e os que têm uma cultura
alimento, proteção e reprodução. Por ser interdependentes, esses elementos nao
inferior.
poderiam ser examinados isoladamente.
Duas antropólogas estadunidenses, Ruth Benedict (1887-1948) e Margareth
Mead (1901-1978), procuraram investigar as relações entre cultura e personalidade.
Cultura segundo a Antropologia
Benedict desenvolveu o conceito de padrão cultural, destacando a
O conceito de cultura com frequência é vinculado à Antropologia, como se
prevalência de uma homogeneidade e coerência em cada cultura. Em suas
fosse específico dessa área do conhecimento. Por isso, vamos verificar como os
pesquisas, identificou dois tipos culturais extremos: o apolínico, representado por
antropólogos, partindo de uma visão universalista para uma visão particularista,
indivíduos conformistas, tranquilos, solidários, respeitadores e comedidos na
definiram esse conceito.
expressão de seus sentimentos, e odionisíaco, que reunia os ambiciosos, agressivos,
Uma das primeiras definições de cultura apareceu na obra do antropólogo inglês
individualistas, com uma tendência ao exagero afetivo. De acordo com ela, entre os
Edward B. Tylor (1832-1917). De acordo com esse autor, cultura é o conjunto
apolínicos e os dionisíacos haveria tipos intermediários que mesclariam algumas
complexo de conhecimento, crenças, arte, moral e direito, além de costumes e
características dos dois tipos extremos.
hábitos adquiridos pelos indivíduos em uma sociedade. Trata-se de uma definição
Mead, por sua vez, investigou o modo como os indivíduos recebiam os
universalista, ou seja, muito ampla, com a qual se procura expressar a totalidade da
elementos de sua cultura e a maneira como isso formava sua personalidade. Suas
vida social humana, a cultura universal.
pesquisas tinham como objeto as condições de socialização da personalidade
Já o antropólogo alemão Franz Boas (1858-1942), que desenvolveu a maior
feminina e da masculina. Ao analisar os Arapesh, os Mundugumor e os Chambuli,
parte de seus trabalhos nos Estados Unidos, tinha uma visão particularista. Ele
três povos da Nova Guiné, na Oceania, Mead percebeu diferenças significativas.
pesquisou as diferentes formas culturais e demonstrou que as diferenças entre o
Entre os Arapesh não havia diferenciação entre homens e mulheres, pois ambos
grupos e sociedades humanas eram culturais, e não biológicas. Por isso, recusou
eram educados para ser dóceis e sensíveis e para servir aos outros. Também entre os
qualquer generalização que nçao pudesse ser demonstrada por meio da pesquisa
Mundugumor não havia diferenciação: indivíduos de ambos os sexos eram
concreta.
treinados para a agressividade, caracterizando-se por relações de rivalidade, e não
Bronislaw Malinowski (1884-1942), antropólogo inglês, afirmava que, para
de afeição. Entre os Chambuli, finalmente, havia diferença entre homens e
fazer uma análise objetiva, era necessário examinar as culturas em seu estado atual,
mulheres, mas de modo distinto do padrão que conhecemos: a mulher era educada
34
para ser extrovertida, empreendora, dinâmica e solidária com os membros de seu
O homem é como um jogador quem tem nas mãos, ao se instalar à mesa,
sexo. Já os homens eram educados para ser sensíveis, preocupados com a aparência
cartas que ele não inventou, pois o jogo de cartas é um dado da história e da
e invejosos, oque os tornava inseguros. Isso resultava em uma sociedade em que as
civilização [...]. Cada repartição das cartas resulta de uma distinção contingente
mulheres detinham o poder econômico e garantiam o necessário para a sustentação
entre os jogadores e se faz à sua revelia. Quando se dão as cartas, cada sociedade
do grupo, ao passo que os homens se dedicavam às atividades cerimoniais e
assim como cada jogador as interpreta nos termos de diversos sistemas, que podem
estéticas.
ser comuns ou particulares: regras de um jogo ou regras de uma tática. E sabe-se
Baseada em seus achados, Mead afirmou que a diferença das personalidades
bem que, com as mesma cartas, jogadores diferentes farão partidas diferentes, ainda
não está vinculada a característica biológicas, como o sexo, mas à maneira como em
que, limitados pelas regras, não possam fazer qualquer partida com determinadas
cada sociedade a cultura define a educação das crianças.
cartas.
Para Claude Lévi-Strauss (1908-2009), antropólogo que nasceu na Bélgica,
____________________________________________________________
mas desenvolveu a maior parte de seu trabalho na França, a cultura deve ser
Lévi-Strauss, Claude. Antropologia estrutural. In: Cuche, Denys. A noção de cultura
considerada como u conjunto de sistemas simbólicos, entre os quais se incluem a
nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 1999. p. 98.
linguagem, as regras matrimoniais, a arte, a ciência, a relegião eas normas
econômicas. Esses sistemas se relacionam e influenciam a realidade social e física
Convivência com a diferença: o etnocentrismo
das diferentes sociedades.
A grande preocupação de Lévi-Strauss foi analisar o que era comum e
Ter uma visão de mundo, avaliar determinado assunto sob certa ótica,
constante em todas as sociedades, ou seja, as regras universais e os
nascer e conviver em uma classe social, pertencer a uma etnia, ser homem ou
elementos indispensáveis para a vida social. Um desses elementos seria a proibição
mulher são algumas das condições que nos levam a pensar na diversidade humana,
do incesto (relações sexuais entre irmãos ou entre pais e filhos), presente em todas
cultural e ideológica, e, consequentemente, na alteridade, isto é, no outro ser
as sociedades. Partindo dessa preocupação, ele desenvolveu amplos estudos sobre
humano, que é igual a cada um de nós e, ao mesmo tempo, diferente.
mitos, demonstrando que os elementosessenciais da maioria deles se encontram em
todas as sociedades ditas primitivas.
Observa-se, no entanto, grande dificuldade na aceitação das diversidade em
uma sociedade ou entre sociedades diferentes, pois os sere humanos tendem a tomar
seu grupo ou sociedade como medida para avaliar os demais. Em outras palavras,
cada grupo ou sociedade considera-se superior e olha com desprezo e desdém os
Universalidade e particularidade das culturas
outros, tidos como estranhos ou estrangeiros. Para designar essa tendência, o
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sociólogo estadunidense William G. Summer (1840-1910) criou em 1906 o
cultura identificada com os segmentos populares e outra, superior, identificada com
termo etnocentrismo.
as
elites.
Manifestações de etnocentrismo podem ser facilmente observadas em nosso
A cultura erudita abrangeria expressões artística como a música clássica de padrão
cotidiano. Quando lemos notícias sobre crises enfrentadas por povos de outros
europeu, as artes plásticas — escultura e pintura — , o teatro e a literatura de
países, por exemplo, com frequência estabelecemo comparações entre a
cunho universal. Esses produtos culturais, como qualquer mercadoria, podem ser
cultura deles e a nossa, considerando a nossa superior, principalmente se as
comprados e, em alguns casos, até deixados de herança como bens físicos.
diferenças forem muito grandes. Na história não faltam exemplos desse tipo de
A chamada cultura popular encontra expressão nos mitos e contos, danças,
comparação: na Antiguidade os romanos chamavam de "bárbaros" aqueles que não
músicas — de sertaneja a cabloca —, artesanato rústico de cerâmica ou de madeira
eram de sua cultura; no Renascimento, após os contatos com culturas diversas
e pintura; corresponde, enfim, à manifestação genuína de um povo. Mas não se
propriciadas pela expansão marítima, os europeus passaram a chamar os povos
restringe ao que é tradicionalmente produzido no meio rural. Inclui também
americanos de "selvagens", e assim por diante.
expressões urbanas recentes, como os grafites, o hip-hop e os sincretismos musicais
O etnocentrismo foi um dos responsáveis pela geração de intolerância e
oriundos do interior ou das grandes cidades, o que demonstra haver constante
preconceito - cultural, religioso, étnico e político -, assumindo diferentes expressões
criação e recriação no universo cultural de base popular. Nesse universo quem cria é
no decorrer da história. Em nossos dias ele se manifesta, por exemplo, na ideologia
o povo, nas condições possíveis. A palavra folclore (do inglês folklore, junção
racista da supremacia do branco sobre o negro ou de uma etnia sobre as outras.
de folk, "povo", e lore, "saber") significa "discurso do povo", "sabedoria do povo"
Manifesta-se também, num mundo que é globalizado, na ideia de que a cultura
ou "conhecimento do povo".
ocidental é superior, e os povos de culturas diferentes devem assumi-la, modificando
Para examinar criticamente essa diferenciação, voltemos ao termo cultura,
suas crenças, normas e valores. Essa forma de etnocentrismo pode levar a
agora segundo a análise do pensador brasileiro Alfredo Bosi. De acordo com Bosi,
consequências séries em nossa convivência com os outros e nas relações entre os
não há no grego uma palavra específica para cultura; há, sim, uma palavra que se
povos.
aproxima desse conceito, que é paideia, "aquilo que se ensina à criança", "aquilo
que deve ser trabalhado na criança até que ela se transforme em adulta". A
palavra cultura vem do latim e designa "o ato de cultivar a terra", "de cuidar do que
Cultura erudita e cultura popular
se planta", ou seja, é o trabalho de preparar o solo, semear e fazer tudo para que
A separação entre cultura popular e erudita, com a atribuição de maior valor
uma planta cresça e dê frutos.
à segunda, está relacionada à divisão da sociedade em classes, ou seja, é resultado e
Cultura está assim vinculada ao ato de trabalhar, a determinada ação, seja a
manifestação das diferenças sociais. Há, de acordo com essa classificação, uma
de ensinar uma criança, seja a de cuidar de um plantio. Se pensarmos nesse sentido
36
original, todos têm acesso à cultura, pois todos podem trabalhar. Para escrever um
Para Bosi, a cultura é alguma coisa que se faz, e não apenas um produto que
romance, é preciso trabalhar uma narrativa; para fazer uma toalha de renda, uma
se adquire. E por isso que não tem sentido comparar cultura popular com cultura
música, uma mesa de madeira ou uma peça de mármore, é necessário trabalhar. Para
erudita. Quando afirmamos que ter cultura significa ser superior e não ter cultura
Bosi, isso é cultura. E é por essa razão que os produtos culturais gerados pelo
significa ser inferior, utilizamos a condição de posse de cultura como elemento para
trabalho chamam-seobras, que vem de opus, derivado do verbo operar, ou seja, é o
diferenciação social e imposição de uma superioridade que não existe. Isso
processo de fazer, de criar algo.
é ideologia.
Se uma pessoa compra um livro, um disco, um quadro ou uma escultura, vai
ao teatro ou a exposições, adquire, mas não produz cultura, ou seja, ela pode possuir
A ideologia, suas origens e perspectivas
ou ter acesso aos bens culturais gerados pelo trabalho, sem produzilo-los. Esses bens
servem para proporcionar deleite e prazer, e são usados por algumas pessoas para
A ideia de cultura nasce da análise das sociedades antigas, mas o conceito
afirmar e mostrar que "possuem cultura", quando são apenas consumidores de uma
de ideologis é um produto essencialmente moderno, pois antes da Idade Moderna as
mercadoria como qualquer outra. Não ter acesso a esses bens não significa, portanto,
explicações da realidade eram dadas pelos mitos ou pelo pensamento religioso.
não ter cultura.
Uma das primeiras ideias sobre ideologia foi expressa por Francis Bacon
Bosi chama a atenção para o fato de haver em muitos países órgãos públicos
(1561-1626), em seu livro Novum organum (1620). Ele não utilizava o termo
que procuram desenvolver ações para "conservar a cultura popular original", com
ideologia, mas, ao recomendar um estudo baseado na observação, declarava que, até
certo receio de que ela não resista ao avanço da indústria cultural. Ora, os produtos
aquele momento, o entendimento da verdade estava obcurecido por ídolos, ou seja,
são criados em determinadas condições, remodelando-se continuamente, como
por ideias erradas e irracionais.
ocorre com as festa, as músicas, as danças, o artesanato e outras tantas
O termo ideologia foi utilizado inicialmente pelo pensador francês Destutt
manifestações. Nesse sentido, é necessário analisar a cultura como processo, como
de Tracy (1754-1836), em seu livro Elementos de ideologia (1801), no sentido de
ato de trabalho no tempo que não se extingue. A criação cultural não morre com seus
"ciência da gênese das ideias". Tracy procurou elaborar uma explicação para os
autores, e basta que o povo exista para que ela sobreviva. Entenda-se aqui povo não
fenômenos sensíveis que interferem na formação das ideias, ou seja, a vontade, a
como uma massa amorfa e homogênea de oprimidos submissos, mas como um
razão,
conjunto de indivíduos, com ideias próprias e capacidade criativa e produtiva, que
Um segundo sentido de ideologia, o de "ideia falsa" ou "ilusão", foi utilizado por
resiste muitas vezes silenciosamente, sobretudo por meio da produção cultural,
Napoleão Bonaparte num discurso perante Conselho de Estado, em 1812. Napoleão
como seus cantos e festa.
afirmou nesse discurso que seus adversários, que questionavam e perturbavam a sua
37
a
percepção
e
a
memória.
ação governamental, eram apenas metafísicos, pois o que pensavam não tinha
só se afogavam porque estava possuídos pela ideia de gravidade. Se abandonassem
conexão com o que estava acontecendo na realidade, na história.
essa ideia, estariam livres de qualquer afogamento. Mark não diz se esse homem foi
Auguste Comte (1798-1857), em seu Curso de filosofia positiva (1830-
bemsucedido na luta contra a ilusão de gravidade nem se trntou testar sua teoria.
1842), retomou o sentido de ideologia utilizado por Tracy — o de estudo da
Émile Durkheim, ao discutir a questão da objetividade científica em seu
formação das ideias, partindo das sensações (relação do corpo com o meio) — e
livroAs regras do método sociólogico (1895), afirma que, para ser o mais
acrescentou outro, o de conjunto de ideias de determinada época.
precisopossível, o cientista deve deixar de lado todas as pré-noções, as noções
Karl Marx também não apresentou uma única definição de ideologia. No
livro A ideologia alemã (1846), ele se referiu à ideologia como um sistema
vulgares, as ideias antigas e pré-científicas e as subjetivas. São essas ideias que ele
entende por ideologia, ou seja, o contrário de ciência.
elaborado de representações e de ideias que correspondem a formas de consciência
Karl Mannheim (1893-1947) talvez seja o sociólogo depois de Marx que
que os homens têm em determinada época. Ele afirmou ainda que as ideias
mais tenha influenciado a discussão sobre ideologia. No livro Ideologia e
dominantes em qualquer época são sempre as de quem domina a vida material e,
utopia (1929), ele conceitua duas formas de ideologia: a particular e a total. A
portanto,
intelectual.
particular corresponde à ocultação da realidade, incluindo mentiras conscientes e
Marx desenvolveu a concepção de que a ideologia é a inversão da realidade, no
ocultamentos subconscientes e inconscientes, que provocam enganos ou mesmo
sentido de reflexo, como na câmera fotográfica, em que a imagem aparece
autoenganos. A ideologia total é a visão de mundo (consmovisão) de uma classe
"invertida". Contrapondo-se a muitos autores que acreditavam que as ideias
socialou de uma época. Nesse caso, não há ocultamento ou engano, apenas a
transformavam e definiam a realidade, Marx afirmava que a existência socail
reprodução das ideias próprias de uma classe ou ideias gerais que permeiam toda a
condicionavam a consciência dos indivíduoas sobre a situação em que viviam.
sociedade.
a
vida
Assim, para Marx, as ideologias não são meras ilusões e aparências — e muito
menos o fundamento da história —, mas são uma realidade objetiva e atuante.
Para Mannheim, as ideologias são sempre conservadoras, pois expressam o
pensamento das classes dominantes, que visam à estabilização da ordem. Em
No mesmo livro de Marx, pode-se encontrar a explicação de que a ideologia
é resultante da divisão entre o trabalho manual e o intelectual. O trabalho intelectual
contraposição, ele chama de utopia o que pensam as classes oprimidas, que buscam
a transformação.
esteve nas mãos da classe dominante e , assim à medida que pôde "emancipar-se" da
realidade concreta em que foi produzido e se transformar em teoria pura, pôde
A ideologia e o grupo social
tembém transformar-se em teoria geral para todas as sociedades, sem levar em conta
a história de cada uma delas. Essa emancipação das ideias é muito bem
Todos nós participamos de certos grupos de ideias [...]. São espécies de
exemplificada por Marx. Ele se refere a um indivíduo que afirmava que os homens
"bolsões" ideológicos, onde há pessoas que dizem coisas em que nós também
38
acreditamos, pelas quais também lutamos, que têm opiniões muito parecidas com as
sociais ou sentimentais. Podemos dizer que há um modo capitalistade viver, de
nossas. Há alguns autores que dizem que na verdade nós não falamos de fato o que
sentir e de pensar.
acreditamos dizer, haveria certos mecanismos, certas estruturas que "falariam por
nós".
A expressão de ideologia na sociedade capitalista pressupõe a elaboração de
um discurso homogêneo, pretensamente universal, que, buscando identificar a
Ou seja, quando damos nossas opiniões, quando participamos de algum
acontecimento, de alguma manifestação, temos muito pouco de nosso aí, conceitos
realidade social com o que as classes dominantes pensam sobe ela, oculta as
contradições existentes e silencia outros discursos e representações contrárias.
que já circulam nesses grupos. Ideologia não é , portanto um fato individual, não
Esse discurso não leva em conta a história e destaca categorias genéricas
atua inclusive de forma consciente na maioria dos casos. Quando pretendemos
— a família ou juventude, por exemplo —, passando, em cada caso, uma ideia de
alguma coisa, quando defendemos uma ideia, um interesse, uma aspiração, uma
unidade, de uniformidade. Ora, existem famílias com constituições diferentes e em
vontade, um desejo, normalmente não sabemos, não temos consciência de que isso
situações econômicas e sociais diversas. Há jovens que vivem nas periferias das
ocorre dentro de um esquema maior, [...] do qual somos apenas representantes —
cidades ou zona rural, enfrentando dificuldades, bem como jovens que moram em
repetimos conceitos e vontades, que já existiam anteriormente.
bairros luxuosos ou condomínios fechados, desfrutando de privilegiada situação
____________________________________________________________
econômica ou educacional. Portanto, não existe a família e a juventude, mas
Marcondes Filho, Ciro. Ideologia: o que todo cidadão precisa saber sobre. São
famílias e jovens diversos, cada qual com sua história.
Paulo: Global, 1985. p. 20.
Outra manifestação ideológica na sociedade capitalista é a ideia de que
Depois de Mannheim, muitos outros pensadores estudaram e utilizaram o
vivemos em uma comunidade sem muitos conflitos e contradições. As expressões
conceito de ideologia, mas todos eles tiveram como referência os autores que
mais claras disso são as concepções de nação ou de região como determinado país
citamos.
ou dado espaço geográfico. Essas concepções passavam a visão de que há uma
comunidade de interesses e propósitos partilhados por todos os que vivem num país
A ideologia cotidiano
ou num espaço específico. Ficam assim obscurecidas as diferenças sociais,
econômicas e culturais, os conflitos entre os vários grupos e classes, enfatizando-se
Em nosso cotidian, ao nos relacionarmos com as outras pessoas, exprimimos
uma unidade que não existe. Um exemplo disso é a atribuição de determinadas
por meio de ações, palavras e sentimentos uma série de elementos ideológicos.
características a toda uma região que tem em seu interior uma diversidade muito
Como vivemos em uma sociedade capitalista, a lógica que a estrutura, a da
grande.
mercadoria, permeia todas as nossas relações, sejam elas econômicas, políticas,
Mas existem outras formas ideológicas que são desenvolvidas sem muito
alarde e quem penetram nosso cotidiano. Uma delas é a ideia de felicidade.
39
Felicidade, para muitos, é um estado relacionado ao amor, mas também significa
como inferiores e oxóticos, como o conhecimento das civilizações ameríndias,
estabilidade financeira e profissional, bem-estar existencial e material. É um
orientais e árabe.
conjunto de situações, mas normalmente a mais focalizada é a amorosa. E os filmes,
as novelas, as revista, apesar de todas as condições adversas que um indivíduo possa
SOCIOLOGIA NO BRASIL
enfrentar, estão sempre reforçando o lema: "o amor vence todas as dificuldades".
Talvez a maior de todas as expressõesideológicas que encontramos em nosso
Podemos dizer que a Sociologia brasileira começa a ―engatinhar‖ a partir da
cotidiano seja a ideia de que o conhecimento científico é verdade inquestionável.
década de 1930, vindo a se fortalecer nas décadas seguintes. Apesar de alguns
Muitas pessoas podem não acreditar em uma explicação oferecida por campos do
autores da sociologia dizerem que não há uma data correta que marca o seu começo
conhecimento que não são considerados científicos, mas basta dizer que se trata de
em solo brasileiro, essa época parece ser a mais adequada para se falar em início
resultado de pesquisa ou informação de um cientista para que a tomem como
dos estudos sociológicos no Brasil.
verdade e passem a orientar suas práticas cotidianas por ela. Isso aparece
Fases da sua implantação
principalmente quando as informações e notícias são veiculadas pelos meios de
Dividindo os acontecimentos da implantação da Sociologia no Brasil como
comunicação e se referem à saúde. Da busca do sentido da vida às possibilidades de
ciência, em fases, ou em geração de autores, de acordo com o sociólogo brasileiro
sucesso, a ciência é vista como uma grande solução para todos os problemas, males
Otávio Ianni (1926-2003), destacamos aqui três delas, as quais se complementam:
e enigmas.
A fase “A” da implantação da Sociologia no Brasil
Ora, nada está mais distante do conhecimento científico do que a ideia de
A primeira geração da Sociologia brasileira seria composta por aqueles
verdade absoluta e apretensão de explicar todas as coisas. A ciência nasceu e se
autores que se preocuparam em fazer estudos históricos sobre a nossa realidade,
desenvolveu questionando as explicações dadas a situações e fenômenos, e continua
com um caráter mais voltado à Literatura do que para a Sociologia. Desta geração
se desenvolvendo com base no questionamento de seus próprio resultados. O
de autores, queremos destacar Euclides da Cunha (1866-1909). Cunha nasceu
pensamento científico é histórico e tem sua validade temporária, sendo a dúvida seu
no Rio de Janeiro, foi militar engenheiro, além de ter estudado Matemática e
valor maior.
Ciências Físicas e Naturais. Porém, o que gostava de fazer, como profissional, era o
Mas o conhecimento científico, quando analisado da perspectiva de um
jornalismo.
pensamento hegemônico ocidental, torna-se colonialista, pois o que é particular
Em 1895, abandonou o Exército e começou a trabalhar como
(ocidental) se universaliza e se transforma em um paradigma que nega outras formas
correspondente do jornal ―O Estado de São Paulo‖. Nessa função foi enviado para a
de explicar e conhecer o mundo. Assim, desqualifica outras culturas e saberes, tidos
Guerra de Canudos, no interior da Bahia, de onde surgiu sua maior contribuição à
Sociologia brasileira: o livro Os Sertões.
40
Olhando mais pelo lado sociológico, podemos perceber que Cunha estava
atraso para o desenvolvimento da nação.
fazendo revelações quanto à organização da República que estava sendo
Freyre propõe um caminho inverso. Em Casa Grande & Senzala ele começa
consolidada. Canudos era um retrato de uma sociedade republicana que não
justamente valorizando as características do negro, do índio e do mestiço
conseguia suprir as necessidades básicas de seu povo. A observação de Euclides da
acrescentando, ainda, a ideia de que a mistura dessas raças seria a ―força‖, o ponto
Cunha e as revelações que faz quanto à sociedade brasileira em Os Sertões,
positivo, da nossa cultura.
transforma esta obra em um dos referenciais de início do pensamento sociológico no
Este autor forneceu, para o seu tempo, uma nova maneira de ver a
Brasil.
constituição da nacionalidade brasileira, isto é, o Brasil feito por uma harmoniosa
A fase “B” da implantação da Sociologia no Brasil
união entre o branco (de origem europeia), o negro (de origem africana), o índio (de
Numa segunda fase de geração de autores, a preocupação em se fazer
origem americana) e o mestiço, ressaltando que essa ―mistura‖ contribuiu, em
pesquisas de campo, que é uma característica das pesquisas sociológicas, começa a
termos de ricos valores, para a formação da nossa cultura.
ser levada em conta. Existem vários autores desta geração que poderíamos
E a fase “C” da implantação da Sociologia no Brasil
referenciar, como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda,
Já a partir dos anos de 1940 novos sociólogos começam a aparecer no
Fernando de Azevedo, Nelson Wernek Sodré, Raymundo Faoro, etc. No entanto,
cenário brasileiro. Esta terceira geração é formada por sociólogos que vieram de
vamos nos fixar em um deles, o qual pode ser visto como um exemplo clássico do
diferentes instituições universitárias, fundadas a partir de 1930 e inauguram estilos
pensamento social brasileiro: Gilberto Freyre.
mais ou menos independentes de fazer Sociologia.
Dessa forma, e
Gilberto Freyre foi o autor de Casa Grande & Senzala (1933), livro no qual
progressivamente, a intelectualidade sociológica no Brasil começa a ganhar corpo.
demonstrou as características da colonização portuguesa, a formação da sociedade
Também começam a surgir estilos ou tendências, o que fez com que surgissem
agrária, o uso do trabalho escravo e, ainda, como a mistura das raças ajudou a
diferentes ―escolas‖ de Sociologia em São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, Salvador,
compor a sociedade brasileira.
Belo Horizonte e em outros lugares.
Freyre foi um sociólogo que nasceu em Pernambuco no ano de 1900 e,
Dos autores que fazem parte dessa terceira geração, podemos citar Oliveira
no desenvolver de sua profissão, criou várias cátedras de Sociologia, como na
Viana, Florestan Fernandes, Guerreiro Ramos, dentre vários outros. Mas
Universidade do Distrito Federal, fundada em 1935. Freyre faleceu em 1987.
vamos nos deter na obra do sociólogo paulista Florestan Fernandes (1920-
Quando escreveu Casa Grande & Senzala tinha 33 anos e, anti-racista que
era, inaugurou uma teoria que combatia a visão elitista existe-te na época, importada
1995), importante nome da Sociologia crítica no Brasil.Qual é a proposta de
Sociologia que ele apresenta?
da Europa, a qual privilegiava a cor branca. Segundo tal visão racista, a mistura de
Florestan Fernandes foi um sociólogo que fez um contínuo questionamento
raças seria a causa de uma formação ―defeituosa‖ da sociedade brasileira, e um
sobre a realidade social e das teorias que tentavam explicar essa realidade. O
41
objetivo deste autor foi de, numa intensa busca investigativa e crítica, ir além das
AUTOR 1 –
reflexões já existentes. Florestan Fernandes tinha como metodologia ―dialogar‖, de
SENZALA”
GILBERTO FREYRE – LIVRO “CASA GRANDE E
maneira muito crítica, com a produção sociológica clássica, como com as obras de
Durkheim, Weber e Marx. Mas veja, o diálogo não se dava somente com aqueles
autores, pois a lista de clássicos, principalmente modernos, é bem extensa. Florestan
Casa-Grande & Senzala é um livro escrito pelo autor brasileiro Gilberto
Freyre, e publicado em 1 de dezembro de 1933.
também mantinha contínuo diálogo com o pensamento crítico brasileiro. Autores
Até pouco antes do período em que o livro foi escrito, a Antropologia
como Euclides da Cunha e Caio Prado Júnior, fazem parte de sua lista de
européia tendo como preceito as idéias evolucionistas de Charles Darwin, atribuia a
interlocutores. O diálogo com esses autores foi fundamental para o seu trabalho de
humanidade uma escala evolucionista, na qual as características raciais
análise dos movimentos e lutas existentes na sociedade, principalmente aquelas
expressavam o garu de evolução de cada grupo. Assim, as tribos selvagens mais
travadas pelos setores populares.
atrasadas da Australia, África e Américas, representavam o mais baixo grau na
Um outro aspecto de sua maneira crítica de fazer Sociologia foi a sua
afinidade com o pensamento marxista, principalmente sobre o modo de analisar a
sociedade, o que se constituiu numa espécie de ―norte‖ crítico orientador de seu
escala evolutiva. Já o europeu branco e civilizado, e instruído, representava o mais
alto grau de desnvolvimento que o homem pode alcançar.
Também se acreditava que questões climáticas e ambientais fossem
pensamento. As transformações sociais que ocorreram a partir de 1930 no Brasil
determinantes
para o desenvolvimento de um povo. Nos países tropicais, por
foram, também, uma espécie de ―motor‖ para os trabalhos de Florestan. Mas não
exemplo, o calor, a humidade, as matas, e as doenças, tornariam a população
apenas para ele, pois serviram de impulso para os trabalhos sociológicos no Brasil
preguiçosa e indolente.
como um todo. E isso se deu principalmente a partir de 1940, pois essas
Era necessário, portanto, que os povos mais evoluidos, levassem até os
transformações se intensificaram muito por causa do aumento da industrialização e
selvagens as noções básicas de civilidade, cultura, religião e desenvolvimento, para
da urbanização.
que estes compreendessem e incorporassem (mesmo que a força), as noções
Para finalizar, vale ressaltar que a Sociologia crítica que Florestan inaugura
essênciais de evolução, que os europeus preconizavam e defendiam.
também tinha o ―olhar‖ voltado aos mais diversos grupos e classes existentes na
Essas idéias tiveram grande repercussão no Brasil, pois a maior parte dos
sociedade. Algumas de suas pesquisas com grupos indígenas e sobre as relações
intelectuais da época, explicavam o atraso brasileiro a partir da degradação
raciais em São Paulo, por exemplo, tiveram o mérito de fornecer explicações que se
promovida pela mistura da raça européia – trazida pelos portugueses, que se
contrapunham às explicações dadas pelas classes dominantes da sociedade
miscigenaram – com raças menos evoluidas, como o índio e o negro. Gilberto
brasileira.
Freyre, entretano, ao viajar para Europa e América do Norte, toma contacto com
novas tendências da Antropologia, em que os antropólogos modernos (como por
42
exemplo, Levi-Staruss e Radcliff-Brown), defendiam que não havia uma diferença
CRÍTICAS
entre as raças, em termos de escala evolutiva – raças mais e menos desenvolvidas –
apenas diferenças culturais e econômicas, a serem respeitas e compreendidas.
Entretanto, na opinião de outros sociólogos contemporâneos, alguns deles
Através de seu livro, Freyre destaca a importância da casa grande na
ligados à esquerda do movimento negro e de uma linha mais marxista e menos
formação sociocultural brasileira bem como a da senzala que complementaria a
culturalista, o ideal da miscigenação adquiriria uma nova roupagem na obra ―Casa
primeira. Alem disso em Casa Grande E Senzala enfatiza a questão da formação da
Grande e Senzala‖, passando a ser vista como mecanismo de um processo, o qual
sociedade brasileira, tendo em vista a miscigenação que ocorreu principalmente
teria como fim a democracia racial (expressão usada por Gilberto Freyre só muito
entre: Branco, os negros e os indígenas. Destacando a importância da predisposição
mais tarde).
dos portuguese de, ao contrário dos ingleses e espanhóis, em prociar com a
população local.
Segundo Clóvis Moura, "Gilberto Freyre caracterizou a escravidão no
Brasil como composta de senhores bons e escravos submissos". O mito do bom
Na opinião de Freyre, a própria estrutura arquitetônica da Casa-Grande
senhor de Freyre seria uma tentativa no sentido de interpretar as contradições do
expressaria o modo de organização social e política que se instaurou no Brasil, qual
escravismo como simples episódio sem importância, e que não teria o poder de
seja o do patriarcalismo. Isto posto que tal estrutura seria capaz de incorporar os
desfazer a harmonia entre exploradores e explorados durante aquele período.
vários elementos que comporiam a propriedade funciária do Brasil colônia. Do
mesmo modo, o patriarca da terra era tido como o dono de tudo que nela se
Tais criticas vieram em especial da chamada Escola Paulista da Sociologia,
que acusavam Freyre de ―mascarar‖ o preconceito racial no Brasil.
encontrasse como escravos, parentes, filhos, esposa, etc. Este domínio se estabelece
de maneira a incorporar tais elementos e não de excluí-los. Tal padrão se expressa na
AUTOR 2 – SERGIO BUARQUE DE HOLANDA – LIVRO RAÍZES DO
Casa-Grande que é capaz de abrigar desde escravos até os filhos do patriarca e suas
BRASIL
respectivas famílias.
Neste livro o autor tenta também desmistificar a noção de determinação
Raízes do Brasil marcou profundamente a historiografia brasileira, pela
racial na formação de um povo no que dá maior importância àqueles culturais e
ousadia e tenacidade do autor em empregar conceitos, à época, inovadores da
ambientais. Com isso refuta a ideia de que no Brasil se teria uma raça inferior dada a
sociologia contemporânea para analizar a formação da Nação.
miscigenação que aqui se estabeleceu. Antes, aponta para os elementos positivos que
Defende que a formação da economia colonial, caracterizada pelas grandes
perpassam a formação cultural brasileira composta por tal miscigenação
fazendas de engenho, criou traços de autossuficiência, similares a organização
(notadamente entre portugueses, índios e negros).
feudal da Idade Média, quando cada feudo era autônomo e isolado, sem
interferência de um governo central, que à época, muitas vezes sequer existia. Isto
43
teria dificuldader a centralização político-administrativa do Brasil, favorecendo as
encaradas com desconfiança e antipatia pelos espanhóis e portugueses. Nunca eles
diferenças regionais e a fragilidade do Governo Central.
se sentiram muito à vontade em um mundo onde o mérito e a responsabilidade
Além disso, outra questão importante é a criação do conceito do homem cordial,
individuais não encontrassem pleno reconhecimento.
que provocou muita polêmica ao defender que o Brasil, pelas características pouco
Nas nações ibéricas, à falta dessa racionalização da vida, que tão cedo
―preconceituosas‖ do português ―aventureiro‖ (conceito famoso, desenvolvido por
experimentaram algumas terras protestantes, o princípio unificador foi sempre
Holanda), teria uma forma de orgaqnização social ―aberta‖ a aceitação de idéias e
representado pelos governos. Nelas predominou, incessantemente, o tipo de
tendências exógenas (externas).
organização política artificialmente mantida por uma força exterior, que nos
Além disso, o autor utilza-se pioneiramente de aspestos teórico e modelos da obra de
tempos modernos, encontrou uma das suas formas características nas ditaduras
Max Weber para analisar o Brasil.
militares.
Trecho de Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda:
Um fato que não se pode deixar de tomar em consideração no exame da psicologia
“...somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.... Toda hierarquia funda-se
desses povos é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no
necessariamente em privilégios. E a verdade é que, bem antes de triunfarem no
culto ao trabalho. ... Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até
mundo as chamadas ideias revolucionárias, portugueses e espanhóis parecem ter
mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo
sentido vivamente a irracionalidade específica, a injustiça social de certos
pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor,
privilégios, sobretudo dos privilégios hereditários.
exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação. E assim, enquanto povos
O prestígio pessoal, independente do nome herdado, manteve-se continuamente nas
protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se
épocas mais gloriosas da história das nações ibéricas. Um dos pesquisadores mais
ainda largamente no ponto de vista da antiguidade clássica. O que entre elas
notáveis da história antiga de Portugal salientou, com apoio em ampla
predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que
documentação, que a nobreza, por maior que fosse a sua preponderância em certo
a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor.
tempo, jamais logrou constituir ali uma aristocracia fechada; a generalização dos
Também se compreende que a carência dessa moral do trabalho se ajustasse bem a
mesmos nomes a pessoas das mais diversas condições- observa- não é um fato novo
uma reduzida capacidade de organização social. O certo é que, entre espanhóis e
na sociedade portuguesa; explica-o assaz a troca constante de indivíduos, de uns
portugueses, a moral do trabalho representou sempre fruto exótico. Não admira
que se ilustram de outros que voltam à massa popular donde haviam saído.
que fossem precárias, nessa gente, as ideias de solidariedade.
A verdadeira, a autêntica nobreza já não precisa transcender ao indivíduo; há de
Raízes do Brasil, obra símbolo de uma época, foi publicada em 1936 sob a
depender das suas forças e capacidades, pois mais vale a eminência própria do que
autoria de Sérgio Buarque de Holanda. O livro, curto, claro, discreto e objetivo,
a herdada. Efetivamente, as teorias negadoras do livre arbítrio foram sempre
divide-se em sete capítulos que, juntos, teorizam sobre nossa formação histórica e
44
social.
Herança colonial, o capítulo 3, tematiza a estrutura rural da sociedade
colonial. O declínio da mesma se deu a partir de 1850 em função do fim do tráfico
escravo, que era sua base de sustentação desde o século XVI. Nesse contexto, se
RESUMO DO LIVRO
estabelece uma nova dicotomia, a relação rural-urbano, que se manifesta igualmente
O capítulo 1 caracteriza a Península Ibérica assinalando que o seu
no universo mental, onde a visão de mundo tradicional entra em conflito com
desenvolvimento, por se dar em um território fronteiriço, não ocorreu da mesma
valores modernos. O malogro de Mauá, em tempos onde o patriarcalismo e o
forma que em outros países europeus. Esse fato deu à região uma série de
personalismo eram hegemônicos, aponta para a incompatibilidade das estruturas
características peculiares, que seriam trazidas ao Brasil no bojo das grandes
nacionais com as práticas mais ―industrializantes‖. Aqui, a fazenda, vinculada a
conquistas marítimas. Entre esses aspectos singulares estava a cultura da
uma idéia de nobreza, ainda predomina sobre a cidade. Estreitamente ligado ao
personalidade, na qual o apego pelo prestígio pessoal resultava na ausência de uma
capítulo anterior, ―O semeador e o ladrilhador‖, um dos mais brilhantes do livro,
moral de culto ao trabalho, diferente dos países protestantes. Daí teria origem uma
estabelece uma nova oposição. O espanhol, ou o ladrilhador, se caracterizava por
outra característica importante: a fraqueza das instituições e falta de organização
tornar suas cidades um exemplo de racionalidade, onde a linha reta obtinha o
social. Em contrapartida, o fato de os hispânicos não conceberem uma disciplina
triunfo. O semeador, ao contrário, representava o português, aferrado ao litoral, que
baseada em consentimento coletivo, gerava entre eles um paradoxal senso de
construía cidades irregulares, nascidas e crescidas sem o mínimo planejamento. A
obediência.
origem desses traços lusitanos era explicada pelo seu desejo de fazer fortuna rápida,
No capítulo 2, seguindo o paradigma das tipologias weberianas, são
dispensando o trabalho regular.
construídos os modelos do trabalhador e do aventureiro. O primeiro, único que
O quinto capítulo, um dos mais discutidos, aborda alguns elementos que
poderia colonizar o Brasil justamente por possuir uma excepcional adaptabilidade,
definiriam (não de forma absoluta) a identidade nacional. Apropriando-se de um
caracterizava-se por buscar novas experiências, ignorar fronteiras e viver de
conceito de Ribeiro Couto[1], Sérgio Buarque afirma que o "homem cordial" é
horizontes distantes. Já o segundo era marcado pelo esforço persistente, por
resultado da cultura patrimonialista e personalista própria da sociedade brasileira. A
conseguir tirar proveito das insignificâncias e ver antes a parte que o todo. A grande
nossa cordialidade enfatizava o predomínio de relações humanas mais simples e
lavoura, principal unidade produtiva da colônia, se constituiu não com base em um
diretas que rejeitavam a polidez e a padronização, características da civilidade. A
plano preconcebido pelos portugueses, mas sim ao sabor das condições primitivas
dificuldade de constituição de um Estado ―civil‖ brasileiro se expressava no fato de
do meio. O uso de escravos foi a forma escolhida para o trabalho, o que também se
que essa instituição não era (e não é) um prolongamento da família. A hegemonia de
adequava à repulsa lusitana pela atividade manual e contribuía para diminuir ainda
valores familiares e patriarcais, vinculadas também ao homem cordial, impedem
mais a necessidade de cooperação entre os conquistadores.
uma distinção clara entre a noção de público e privado.
45
O sexto capítulo debate as consequências da presença lusitana na
na nossa política?
configuração da sociedade brasileira, a partir da vinda da família real para o Brasil.
No campo da historiografia, apesar de empreender uma análise histórico-
Apesar do choque causado aos velhos padrões coloniais, a permanência do
psicológica, o autor consegue captar um aspecto típico da chamada história das
personalismo português determina alguns traços da nossa intelectualidade, ou seja, o
mentalidades, que ganhará destaque nos anos sessenta, ou seja, um elemento que
conhecimento (superficial) era importante apenas na medida em que dava prestígio e
pertence ao campo do estrutural, da longa duração: ―A influencia dessa colonização
diferenciação. O apego às idéias fixas e simplórias facilitava o trânsito do
litorânea, que praticavam, de preferência, os portugueses, ainda persiste até nossos
positivismo entre nossos pensadores. A decorrência disso na vida política
dias. Quando hoje se fala em ―interior‖, pensa-se, como no século XVI, em região
correspondeu à ausência de um espírito democrático, demonstrando a necessidade
escassamente povoada e apenas atingida pela cultura urbana‖ (p. 101).
de transformar o paradigma dos movimentos reformistas, feitos, até então, somente
de cima pra baixo.
Um segundo ponto que considero de extrema relevância na obra é a
utilização do conceito weberiano de tipo ideal, que, de forma geral, seria a
O sentido marcadamente político da obra aparece em ―Nossa revolução‖,
construção ideal de como se desenvolveria uma forma particular de ação social se
onde o autor demonstra a diferença das revoluções ocorridas aqui na América em
ela fosse feita racionalmente em direção a um fim. Nesse sentido, o tipo ideal é um
comparação com os movimentos europeus. E no caso brasileiro, apesar do urbano ir
conceito vazio de conteúdo real que procura servir de horizonte para uma
assumindo a sua independência em face do rural, esse processo ainda não está
comparação com os fenômenos históricos. Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque
completo. Somente quando aniquilarmos as raízes ibéricas de nossa cultura e
traduz essa metodologia através de um mapeamento dos pares antagônicos como,
propiciarmos a emergência das outras camadas sociais, aí sim teríamos finalmente
por exemplo, o trabalhador e o aventureiro, o rural e o urbano, o impessoal e o
concluído a nossa ―revolução‖. É evidente, nos alerta Sérgio Buarque, que ao
afetivo, etc. Como foi afirmado, essas tipificações são ideais. O autor nos alerta que
ocorrer esse processo, as resistências conservadoras poderão surgir, no entanto,
elas não ―possuem existência real fora do mundo das idéias‖ (p. 44/45).
ainda podemos acreditar que uma democracia efetiva se concretize na América
Outro elemento levantado, ainda dentro da ótica weberiana, é a utilização,
Latina. E é pela defesa desse ideal que o caráter político de Raízes do Brasil salta
por meio de uma metodologia comparativa, dos conceitos de patrimonialismo e
aos olhos em seu último capítulo, finalizando um trabalho de peso na nossa
burocracia para analisar o Estado brasileiro e constatar que este não se enquadra no
historiografia. Tais traços, afirma Sérgio, ainda não foram superados, pois essas
modelo estatal elaborado pelo sociólogo alemão: ―para o funcionário patrimonial, a
―sobrevivências arcaicas, o nosso estatuto de país independente até hoje não
própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as
conseguiu extirpar‖ (p. 180). A argúcia dessa percepção pode ser utilizada até o
funções, os empregos e os benefícios que deles aufere-se relacionam-se a direitos
presente, pois certamente ainda convivemos com essa realidade. O que dizer de
pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro
casos de nepotismo ou de uso de dinheiro público em benefício pessoal, tão banais
Estado burocrático, em que prevalecem as especializações das funções e o esforço
46
para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos‖ (p. 146).
Ao que parece, muito mais inovador que o uso desses instrumentos para a
análise de nossa formação histórica e social, é o fato de, até os anos trinta, Sérgio
Buarque ter sido o primeiro a empreender uma tentativa de aplicar os conceitos de
Max Weber dentro da historiografia brasileira. Mais uma grande questão que se
evidencia em Raízes do Brasil é a presença de elementos modernistas na obra. A
crítica ferrenha elaborada por Sérgio à intelectualidade brasileira, é produto do
contexto literário modernista em que estava inserido. Quando ele afirma que: ―é
freqüente, entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que se
alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que
sustentam, simultaneamente, as convicções mais díspares‖ (p. 155), coloca em
questão o próprio exercício da atividade intelectual, que até então se preocupava
apenas com as reflexões vindas de fora, sem pensar o Brasil a partir da sua própria
cultura. E essa aproximação com a nossa nacionalidade, exigência dos ―modernos‖,
estava relacionada com a busca por uma identificação do novo intelectual com a
cultura popular. No que tange à necessidade moderna de construir um sentimento de
brasilidade, desligado da visão de mundo puramente européia, Sérgio Buarque foi
um dos primeiros a dizer claramente que ―o próprio povo brasileiro tinha de assumir
as rédeas do seu destino‖, aniquilando as suas raízes ibéricas, exacerbando assim um
claro traço nacionalista.
QUADRO RESUMO DAS PRINCIPAIS INTERPRETAÇÕES SOBRE O BRASIL SEGUNDO BERNARDO RICÚPERO
AUTOR
LIVRO
AVALIADO
CONTEXTO
HISTÓRICO EM
QUE A OBRA FOI
INFLUÊNCIA TEÓRICA
RELEVANTE
PRINCIPAL
PERÍODO
HISTÓRICO
ELEMENTOS
ESTRUTURANTES DA
TEORIA DO AUTOR
47
MUDANÇAS NA
HISTÓRIA
BRASILEIRA /
PRINCIPAIS CRÍTICAS
OUTROS
ASPECTOS
RELEVANTES
ESCRITA
GILBERTO
FREYRE
CASA
GRANDE E
SENZALA
(1900-1987)
(1933)
SERGIO
BUARQUE
DE
HOLANDA
(1902 -1982)
RAIZES DO
BRASIL
(1936)
ANALISADO
ESCRITO LOGO
APÓS O GOLPE DE
GETULIO EM 1930,
TRANSIÇÃO DO
PODER RURALISTA
PARA A BURGUESIA
INDUSTRIAL.
NOVAS ESCOLAS DA
ANTROPOLOGIA
EUROPÉIA E
AMERICANA, QUE
VALORIZAVAM A
CULTURA LOCAL,
CONTRA O MODELO
EVOLUCIONISTA
RADICAL QUE INDICAVA
OS EUROPEUS COMO OS
MAIS DESENVOLVIDOS
BRASIL
COLONIA /
IMPÉRIO
PRIMEIRO
GOVERNO VARGAS
PERDENDO AS
CONQUISTAS
DEMOCRÁTICAS, E
SE SUBMENTENDO
AS DITADURAS QUE
VIERAM ANTES DA
2ª. GUERRA
SOCIOLOGIA DE MAX
WEBER /MOVIMENTO
MODERNISTA QUE
VALORIZAVA A CULTURA
POPULAR BRASILEIRA /
BRASIL COLONIAL
COMO UMA REALIDADE
PRÓXIMA AO
FEUDALISMO. FAZENDA
DE ENGENHO ERA UMA
UNIDADE
INDEPENDENTE DENTRO
DA NAÇÃO, SEM
CONEXÃO COM O PODER
POLÍTICO.
BRASIL
COLONIA
CONSEQUÊNCIAS
MISCIGENAÇÃO COMO
FORMA DE APRIMORAÇÃO
DA RAÇA /
CONTRA O PRECONCEITO
RACIAL E A APOLOGIA DAS
RAÇAS PURAS /
COLONIZAÇÃO DE
OCUPAÇÃO (EUA) X
COLONIZAÇÃO DE
EXPLORAÇÃO (BRASIL)
AS RELAÇÕES FAMILIARES E
PATRIARCALISTAS
IMPEDIRAM UM
DESENVOLVIMENTO DAS
INSTITUIÇÕES, COMO
GOVERNO, DEMOCRACIA,
ETC / O BRASIL ASSUME
CARACTERÍSTICAS TÍPICAS
DO FEUDALISMO, ONDE A
AUTO-SUFICIENCIA
ECONÔMICA ―ENGESSA‖ AS
RELAÇÕES SOCIAIS MAIS
AMPLAS, AS CLASSES
SOCIAIS E A LUTA
IDEOLÓGICA PELO ESTADO.
VALORIZAÇÃO DAS
RAÍZES ÉTNICAS E
CULTURAIS
BRASILEIRAS /
ARGUMENTOS
CONTRA O
PRECONCEITO
RACIAL.
TRECHOS EM QUE O
PRÓPRIO AUTOR
DEMONSTRA
PRECONCEITO /
ENFRAQUECE A LUTA
CONTRA O
PRECONCEITO RACIAL
É SEM DÚVIDA
O PRIMEIRO
GRANDE
ESTUDO
BRASILEIRO
CONTRA O
PRECONCEITO
RACIAL.
DEMONSTRA QUE O
BRASIL POSSUI UMA
PERSONILIDADE
CUTURAL PRÓPRIA /
JUSTIFICA A
FRAGILIDADE DO
ESTADO E DAS
INSTITUIÇÕES
POLÍTICAS NO BRASIL
A PARTIR DE
ELEMENTOS
HISTÓRICOS.
ANÁLISE
EXCESSIVAMENTE
CULTURALISTA,
DESCONSTRÓI A IDEIA
DA UNIDADE DA
CLASSE DOMINANTE
QUE APESAR DE
AUTOSSUFICIENTE NAS
FAZENDAS DEPENDIA
DA COROA E DA
DOMINAÇÃO
PORTUGUESA
DEFINIU AS
RAÍZES DA
CULTURA
BRASILEIRA, E A
FRAGILIDADE
DE NOSSAS
INSTITUIÇÕES
POLÍTICAS.
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Apostila de Sociologia 3º ano do Ensino Médio