# 57 – outubro 2015
Boca no trombone
Gigante Otelo
“Grande Otelo nunca soube em que dia exato
ele nasceu”, explica o jornalista e crítico
musical Sérgio Cabral em seu livro “Grande
Otelo, uma biografia” (Editora 34, 2007).
“Escolheu a data de 18 de outubro de 1915
porque foi a do seu batizado. Sabia, sim, que
nasceu na cidade de Uberlândia (MG), que na
época se chamava São Pedro do Uberabinha ou simplesmente Uberabinha- e que era filho
de Maria Abadia de Souza, empregada
doméstica, e de Francisco Bernardo da Costa,
conhecido na cidade como Chico dos Prata
por ser empregado da fazenda da família
Prata. Seu nome também foi escolhido por
ele. Primeiramente, foi Sebastião Bernardo
da Costa, mas quando procurou o cartório
para ter a certidão de idade, já na década de
1930, não só escolheu uma nova data de
nascimento como o próprio nome.”
N
o mês do centenário do nascimento
de Grande Otelo, pseudônimo de
Sebastião Bernardes de Souza Prata,
a Casa do Brasil celebrou a este “Memorável
Brasileiro”, que foi ator, comediante, cantor,
escritor e compositor. “Um duende encantado
e encantador", como o definiu o ator Paulo
José. Um artista maior que viveu sempre na
fronteira entre o profissionalismo e a boêmia,
e fez de seu talento uma estratégia de
sobrevivência para toda a vida.
Grande artista de cassinos cariocas e do
chamado teatro de revista, Grande Otelo
participou em mais de uma centena de
filmes, entre os quais as famosas comédias
nas décadas de 1940 e 1950, que estrelou
em parceria com o cômico Oscarito, e a
versão cinematográfica de Macunaíma,
realizada em 1969.
Manteve o Sebastião original, que a mãe lhe
dera em homenagem ao filho da patroa,
Sebastião, nascido dois meses antes dele,
mudou o Bernardo para Bernardes em
homenagem
ao
ex-presidente
Artur
Bernardes, de quem era admirador, manteve
o Souza da mãe e acrescentou o Prata:
Sebastião Bernardes de Souza Prata.
Grande Otelo foi alimentado pelos seios da
patroa, Augusta Maia de Freitas, porque
Maria Abadia não tinha leite. Considerava sua
infância igual à de qualquer garoto: começou
a estudar na escola Bueno Brandão, soltava
papagaio, jogava bola, catava gabiroba e
tinha medo de passar em frente ao cemitério.
E, desde cedo, revelava a desinibição que
abriria caminho para a carreira de artista:
metia-se na conversa dos mais velhos e
cantava para eles -principalmente para os
hóspedes do Grande Hotel de Uberabinhamediante o pagamento de um tostão por
música.
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# 57 – outubro 2015
Aos oito anos de idade, três fatos não
deixaram dúvidas sobre sua vocação: viu o
filme O garoto, de Charles Chaplin, e ficou
fascinado com a atuação do menino Jacques
Cougan; a passagem do circo Serrano na
cidade, quando foi convidado a representar a
mulher do palhaço numa pantomima, e ao
fazer o papel de um filho de alemão numa
peça apresentada por uma companhia de
comédias vinda de São Paulo. Isabel e Abigail
Parecis, mãe e filha, responsáveis pela
companhia, gostaram tanto dele que pediram
à Maria Abadia para adotá-lo. E Otelo foi
entregue a elas, com papel passado, e levado
para São Paulo.
O pequeno Sebastião Prata estreou,
profissionalmente, no teatro com a peça Nhá
Moça, em 1926, na cidade de Campinas
(SP). No ano seguinte, já estava fazendo
sucesso no Rio de Janeiro com a Companhia
Negra de Revistas, no Teatro República. O
espetáculo era Café Torrado, de Rubem Gil,
muito elogiado pela imprensa que destacava
a grande performance do Pequeno Otelo,
nome artístico na época. "Um pequeno artista
negro, de seis anos que tem assombrado
todas as plateias com a precocidade de seu
talento", dizia o Correio da Manhã, no dia da
estreia. O Globo informou que ele “é tenor, é
preto, muito preto, da cor do smoking que
vestia, é prodigioso quando recita e canta,
como é engraçadíssimo quando palestra”.
O Jornal do Brasil resumiu o espetáculo: “O
clou [clímax] foi a apresentação do Pequeno
Otelo, um crioulinho vivo e inteligente, que
canta e declama com expressão e
desenvoltura”. O Jornal descreveu o Pequeno
Otelo como “um pretinho interessantíssimo
que pisa no palco como um artista já feito”.
No mesmo ano, a Companhia Negra de
Revistas se dissolveu, interrompendo a
carreira de Otelo que só voltaria aos palcos
do Rio, em 1935, com a peça Goal, do
empresário Jardel Jércoles. No programa, ele
foi apresentado pela primeira vez como
Grande Otelo, assumindo assim o nome com
o qual se tornou célebre. Na Companhia de
Jardel Jércoles, Grande Otelo viajou em turnê
pela América Latina e se apresentou em
Portugal e na Espanha. De volta ao Brasil,
passou a brilhar nos palcos dos principais
cassinos brasileiros e dos mais importantes
teatros do Rio e de São Paulo. Em especial,
no Cassino da Urca, onde Otelo foi a grande
estrela, desde a criação até o fechamento da
casa, em 1946. Seu trabalho no palco
contribuiu decisivamente para a criação de
uma linguagem nacional de teatro musical,
que ficou expressa através do brasileiríssimo
teatro de revista.
Grande Otelo estreou no cinema, em 1935,
com Noites Cariocas, uma co-produção
Brasil/Argentina, filmada nos estúdios da
Cinédia e dirigida por Henrique Cadicamo. Foi
o início de uma gloriosa carreira de 118
filmes e de uma série de personagens que
ficaram na história do cinema brasileiro. Nos
estúdios da Atlântida, onde participou de 29
produções, Otelo foi a prata da casa. Criador
de sucessos e de cenas antológicas - como a
do balcão de Romeu e Julieta, em dupla com
Oscarito, na comédia Carnaval de Fogo de
Watson Macedo.
A carreira de Grande Otelo no cinema foi
muito além das chanchadas. Em 1957, com o
filme de Nelson Pereira dos Santos - Rio Zona
Norte, ele interpretou um dos seus grandes
papéis, participando do início de um novo
ciclo da história do cinema brasileiro.
Naquela fase, fez outros bons personagens
em filmes dramáticos, como o Assalto ao
Trem Pagador (1962), que reafirmaram seu
grande talento como ator. Mas foi em
Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de
Andrade, que Grande Otelo encontrou o
grande sucesso de sua carreira e o
reconhecimento de sua genialidade, ao criar,
em sua pequena aparição, uma das mais
notáveis cenas do cinema nacional.
No início da década de 40, Grande Otelo,
fascinado pelo samba, começou a compor.
Naquela década ele criou vários clássicos,
como o samba Praça Onze, uma inspiração
que desenvolveu com seu compadre e
principal parceiro Herivelto Martins. Assim
como Espírito - o compositor popular que
interpretou genialmente no filme Rio - Zona
Norte, ele tinha muito orgulho de ser
sambista. Orgulho testemunhado pelo
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cineasta Roberto Moura no seu livro sobre o
artista: - "Ser sambista, para ele, era mesmo
uma coisa tão maravilhosa como ser artista
de cinema".
Sua primeira composição, Vou pra Orgia, foi
gravada na Odeon por Nuno Roland, em
1940. Daí até o final dos anos 70, ele
compôs dezenas de sambas, fazendo
parcerias também com Haroldo Lobo,
Alvarenga, Wilson Moreira, Blecaute, e outros
mais. Muitos desses sambas foram cantados
no cinema e gravados na sua voz ou por
grandes intérpretes como Linda e Dircinha
Batista, Trio de Ouro, Chico Alves e Jorge
Goulart. Grande Otelo atuou também como
intérprete e gravou composições de Ary
Barroso, Carvalhinho, Carlos Gardel, entre
outros artistas populares de seu tempo.
Na década de 50, Grande Otelo começou a
trabalhar em televisão, na TV Tupi. Lá,
apresentou programas de shows, como o
Tonelux, ao lado de Diana Morell, e chegou a
participar da novela Gabriela, Cravo e Canela,
grande sucesso de 1960. Ele trabalhou
depois na Excelsior, na Record, na TV
Educativa e, em 1966, foi contratado pela TV
Globo, onde atuou em diversas novelas,
musicais e programas humorísticos, até
1993.
Grande Otelo também brilhou nas comédias
da rádio durante os anos 50. Foi quando
trabalhou com Chico Anísio, na Escolinha do
Professor Raimundo, da Rádio Mayrink Veiga,
dividindo a cena com Zé Trindade, Brandão
Filho e outros bambas do humor daquela
época. Antes disso, já havia trabalhado na
rádio Guanabara, de 1948 a 1949,
contracenando com atrizes como Fernanda
Montenegro, no Rádio-Teatro e em programas
de variedades.
Poucos sabem que Grande Otelo, além de
ator, cantor e compositor, foi também poeta.
Bom dia, manhã –seu único livro de poesias
publicado– foi lançado em 1993, com noite
de autógrafos em Brasília, pouco antes de
sua última viagem a Paris. O livro era um
antigo projeto do artista, que conseguiu
realizá-lo ainda em vida.
Grande Otelo escrevia sobre tudo e mantinha
um extenso arquivo de manuscritos anotações
pessoais,
correspondências,
projetos, roteiros e poesias- que hoje fazem
parte do acervo da memória do artista.
Conta a lenda que Grande Otelo não gostava
de ser homenageado. Na ocasião da
homenagem especial que recebeu do
INACEN, em 1986, Otelo, muito emocionado,
disse que ia em casa trocar de roupa e
desapareceu do teatro. Deixou o professor
Eduardo Portela esperando quarenta minutos
antes de lhe entregar o troféu. Quando foi
encontrado, ele simplesmente disse: “Não
gosto dessas homenagens”.
Talvez porque já soubesse que seu coração,
um dia, não agüentaria tantas emoções,
Grande Otelo costumava mesmo fugir das
homenagens. Mas, em novembro de 1993,
Otelo enfrentou todas elas e esteve presente
no Festival de Brasília, onde mais uma vez foi
homenageado e lançou seu livro de poesias Bom dia, manhã, uma velha aspiração sua.
De Brasília, seguiu direto para França, onde
seria novamente homenageado em Nantes,
no Festival de Trois Continants. Emoção
demais para quem já tinha sofrido três
infartes. A homenagem aconteceu, com a
exibição do filme Rio Zona Norte em um
imenso telão. Mas Otelo dessa vez não
conseguiu chegar ao palco. Ao desembarcar
no aeroporto Charles de Gaule, ele passou
mal e morreu a caminho do hospital.
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Ao pé da letra
Começar de novo
por Patti Austin e Sarah Vaughan, com o título
“Island”. Ao ouvir “Começar de novo” na voz
de Simone, Maria Bethânia confessou aos
autores que, a partir de então, “jurava jamais
considerar fechado o repertório de um disco
seu”.
C
onvidados a criar um tema musical
para a série “Malu Mulher”, estrelada
por Regina Duarte, na TV Globo, Vitor
Martins (na foto, à esquerda) e Ivan Lins (à
direita; ver JornalDaCasa #17) compuseram
“Começar de novo”, uma grande canção. O
assunto liberação, vida nova de uma mulher
recém-separada que tenta sair de uma
condição de dependência, foi habilmente
desenvolvido por Vitor, podendo ser aplicado
a qualquer pessoa, independendo de sexo.
Ivan completou a música em menos de duas
horas, sobre uma letra que o parceiro ainda
pretendia alongar, mas teve que deixar como
estava, em virtude da data de estreia da
série. Faltava então escolher a cantora. Nana
Caymmi acabara de gravar “Velas içadas”,
Elis Regina pretendia gravar “Moças” (o que
acabou não acontecendo) e Simone gravara
“Saindo de mim”, num disco praticamente
concluído, sendo todas essas músicas de
Ivan e Vitor. Ao ser procurada, Maria Bethânia
não quis nem ouvir “Começar de novo”, pois,
estando com o repertório de seu novo disco
definido, “não podia se arriscar à tentação de
ter que muda-lo”. O jeito foi retornar a Simone
e convencê-la a gravar às vésperas da estreia
de “Malu Mulher”. Graças à mencionada
sutileza do tratamento dado por Vitor
Martins, a canção teve êxito tanto na
interpretação de Simone como na do próprio
Ivan
Lins,
gravadas
quase
que
simultaneamente, com arranjos diferentes de
um mesmo músico, o tecladista Gilson
Peranzzetta. Foi também gravada no exterior
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Ter me rebelado, ter me debatido
Ter me machucado, ter sobrevivido
Ter virado a mesa, ter me conhecido
Ter virado o barco, ter me socorrido
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Sem as tuas garras sempre tão seguras
Sem o teu fantasma, sem tua moldura
Sem tuas escoras, sem o teu domínio
Sem tuas esporas, sem o teu fascínio
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena já ter te esquecido
Começar de novo
Discos onde ouvir:
Simone – Pedaços (1979)
Ivan Lins – A noite (1979)
Elis Regina - Trem azul (1982)
Gilson Peranzzetta Trio – Alegria de viver (1997)
Veja também:
https://youtu.be/mQYUDvYVjUo
# 57 – outubro 2015
Presentes
Espaço Liso Cia. de Dança
N
o marco do 4º Festival Internacional
de Artes Escénicas, a Espaço Liso Cia.
de Dança apresentará Devir, nos dias
10 e 11 de outubro na Sala Campodónico do
Teatro El Galpón.
Com a concepção, coreografia e direção de
Ewertton Nunes, o espetáculo aproxima a
linguagem da dança contemporânea do
universo estético do cineasta espanhol Pedro
Almodóvar e do pensamento do filósofo
francês Gilles Deleuze sobre o devir.
Devir significa a mudança constante que o
ser humano passa na sua história. A palavra
foi utilizada primeiramente por Heráclito e
seus seguidores. A metáfora das águas de
um rio, que continua sempre o mesmo,
mesmo
que
suas
águas
mudem
constantemente, explicaria o devir. É a eterna
mudança do homem, o qual todo dia é um
novo ser, todo dia é diferente do dia anterior.
Criado em 2013, o projeto tenciona dar
continuidade à pesquisa da companhia em
aproximar a dança contemporânea de outras
linguagens tais como o teatro e o audiovisual.
Esteticamente inspirado na obra de Pedro
Almodóvar, o espetáculo extrai das narrativas
dos seus filmes a essência de personagens
complexas que agem impulsionadas pelos
desejos e que por eles são modificadas o
tempo inteiro, num devir constante da vida
onde a morte seria o limite desse processo.
Nessa perspectiva, as transformações
aconteceram dentro e fora das personagens,
trazendo à tona reflexões sobre gênero,
condutas morais, violências e limites éticos.
Em Almodóvar o ser e não ser alternam-se na
mesma aparição, de forma que é impossível
fixá-los através da contradição, pois eles
dançam, sem parar, na margem “entre a
delícia e a desgraça, entre o monstruoso e o
sublime”. Devir busca o paradoxo dessa
coexistência de realidades contraditórias,
sem que nenhuma delas reivindique o ser de
sua verdade. O espetáculo deixa no ar
algumas provocações: Vale tudo pelo desejo?
Eu serei o mesmo no instante seguinte? Até
que ponto a liberdade não é violenta?
A predominância de cores fortes no cenário,
figurino e iluminação faz alusão ao estado
bruto dos sentimentos humanos, dos desejos
intensos. Projeções e elementos de cena dão
poesia à encenação. A ideia de “corposlíquidos” foi aplicada na concepção
coreográfica com finalidade de comunicar o
transitório, o adaptável dos corpos no contato
com o espaço e com outros corpos e outras
sensibilidades.
A interpretação de Devir se enquadra na
modalidade de “dança teatro”, conceito que
surgiu na Alemanha no final da década de 20
e ganhou força a partir dos anos 70. Por meio
dela, as coreografias incorporam movimentos
do cotidiano e os movimentos abstratos
ganham forma de narrativa. A dança permite
transitar por várias ambientações, dando ao
artista a possibilidade de dialogar com todos
os elementos.
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Maiúsculas
Macunaíma - O herói sem nenhum caráter
D
esde a Semana de 1922, a primeira
fase do modernismo brasileiro (ver
JornalDaCasa #52) aguardava sua
obra maior. Seria natural que seu principal
mentor, o paulistano Mário de Andrade
(1893-1945), produzisse o romance mais
expressivo do período: Macunaíma – O herói
sem nenhum caráter (1928). Estudioso da
música e do folclore brasileiro e pensador
sério da cultura do país, tinha publicado até
então Há uma gota de sangue em cada
poema (1917), Pauliceia desvairada (1922),
A escrava que não é Isaura (1925), Losango
cáqui (1926), Amar, verbo intransitivo (1927)
e Clã de jabuti (1927).
Macunaíma foi escrito como um passatempo
de férias. Mário isolou-se com um tio doente
e a companhia de alguns livros, entre eles a
obra etnográfica do antropólogo alemão
Theodor
Koch-Grünberg,
que
havia
pesquisado as lendas e os mitos do Norte
brasileiro, e o ensaio Retrato do Brasil,
escrito por Paulo Prado também em 1928.
Tomado de entusiasmo, Mário redigiu em
seis dias a obra.
O livro anuncia logo na primeira linha a
função maior do protagonista: “No fundo do
mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de
nossa gente”. Assim como a obra de Prado, o
personagem foi criado para retratar seres
lascivos,
malandros,
preguiçosos
e
sonhadores. Macunaíma sai da selva
amazônica, onde vivia preguiçosamente de
comida e sexo, e vai para São Paulo a fim de
recuperar a muiraquitã –um talismã que dele
foi furtado e se encontra com o mascate
peruano Venceslau Pietro Pietra, na verdade
o gigante Piaimã. Consegue reavê-la, mas,
descuidado, logo a perde novamente.
Aborrecido por tanto penar na “terra sem
saúde e sem saúva”, é transformado na
constelação da Ursa Maior. São muitas as
metamorfoses
por
que
passam
o
protagonista e outros seres folclóricos do
livro. O “herói sem nenhum caráter”
transforma-se (em príncipe, estrela, francesa
etc.) e transforma (São Paulo em um bichopreguiça de pedra) de acordo com a
desfaçatez das conveniências.
Além do uso inusitado de lendas indígenas,
sobretudo quando Macunaíma se encontra
em plena São Paulo desenvolvimentista,
outro estranhamento da obra está nos estilos
narrativos que o autor mesclou. Segundo o
escritor e poeta Haroldo de Campos, Mário
misturou os coloquialismos e construiu uma
“fantasia estrutural” que rompe com o tempo
e o espaço dos romances tradicionais. A
solenidade do tom épico-lírico, a leveza da
crônica cômica e a sem-cerimônia e os
atrevimentos da paródia –todos identificados
pelo crítico Alfredo Bosi– devem ser vistos em
conjunto, como uma das mais ousadas e
eficientes experiências formais da primeira
geração do modernismo brasileiro.
Em 1969, Macunaíma foi adaptado para o
cinema por Joaquim Pedro de Andrade e
protagonizado por Grande Otelo. Também foi
feita uma premiada peça de teatro, por
Antunes Filho, encenada pela primeira vez na
década de 1970 e que chegou a ser montada
em vários países. Em 2008, a cantora Iara
Rennó gravou o CD Macunaó.peraí.matupi ou
Macunaíma Ópera Tupi, com 13 canções
inspiradas no livro.
# 57 – outubro 2015
Telinhas e telonas
Quando os opostos se encontram
na cidade onde vive, no interior de São Paulo,
foram descobertas recentemente várias
ossadas de animais pré-históricos de 90
milhões de anos. Os olhos de Júlia brilham e
ela vê nesta oportunidade a chance de
realizar o maior feito de qualquer
pesquisador: descobrir uma nova espécie de
dinossauro.
E
m qualquer tempo, os sonhos são
combustível
para
as
grandes
realizações. No passado, buscamos as
origens da nossa existência. No presente,
lutamos pelo nosso espaço. Para o futuro,
almejamos o inconquistável, às vezes até o
impossível. Levar estas questões a uma
comédia romântica foi o desafio de Walcyr
Carrasco em Morde & Assopra (Dinosaurios
& Robots, título provisório da novela, que
ficou definitivo para o mercado latino), a
novela das sete da Rede Globo, que o Canal
12 continua exibindo, de segunda a sextafeira às 19 horas.
Na trama, a paleontóloga Júlia (Adriana
Esteves, na foto à direita) está no Japão à
procura de fósseis de uma nova espécie préhistórica para finalizar sua tese de doutorado,
e assim se casar com seu chefe e noivo, o
inglês John Lewis (Michel Bercovitch). Depois
de sofrer um acidente onde perde quase toda
sua pesquisa, Júlia conhece Ícaro (Mateus
Solano), um inventor, que está na “terra do
sol nascente” em busca de métodos
tecnológicos para criar um robô com as
características de Naomi (Flávia Alessandra),
sua amada esposa que desapareceu e foi
dada como morta há alguns anos atrás em
um acidente. Ícaro revela para a jovem que
Ao chegar na pequena cidade de Preciosa,
Júlia conhece Abner (Marcos Pasquim, na
foto à esquerda), viúvo rude, dono de uma
fazenda e pai da pequena Tonica (Klara
Castanho). Os fósseis descobertos estão
exatamente no cafezal da fazenda, e Abner é
contra as pesquisas em suas terras, vivendo
aos tapas e beijos com Júlia. Os dois
engatarão um romance, mas, naturalmente,
terão que vencer alguns obstáculos para
viverem esse amor. O maior deles é Celeste
(Vanessa Giácomo), irmã da falecida esposa
de Abner, loucamente apaixonada por ele.
Quem também não facilitará em nada o
romance de Júlia e Abner serão dois
pretendentes de Júlia muito próximos a ela,
seus auxiliares de pesquisa Tiago (André
Bankoff) e Cristiano (Paulo Vilhena).
.
Enquanto isso, Preciosa vive às voltas com
moradores pitorescos. Como Dona Salomé
(Jandira Martini), mãe de Celeste, uma
mulher sovina e ardilosa que não sossegará
enquanto não separar o filho Marcos (Sérgio
Marone) da mulher dele, Natália (Carol
Castro). O prefeito corrupto Isaías (Ary
Fontoura) e a primeira-dama Minerva
(Elizabeth Savalla), que aguardam a volta do
filho Áureo (André Gonçalves), que já
abandonara Celeste no altar, e que vai deixar
a cidade mais “colorida”. E Dulce (Cássia Kis
Magro), a humilde e simplória vendedora de
cocadas, orgulhosa do filho Guilherme
(Klebber Toledo), que acredita ter se formado
médico, mas que na verdade torrou toda a
grana que a mãe mandava para custear seus
estudos na capital. Guilherme, além de iludir
a mãe sustentando a mentira de que é
médico recém formado, tentará enganar Alice
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(Marina Ruy Barbosa), filha do prefeito,
dizendo que é rico, e não um “viralata”, como
a moça arrogantemente se refere às pessoas
mais pobres.
De acordo com o autor Walcyr Carrasco, a
ideia para escrever Morde e Assopra surgiu
quando descobriu que Marília, cidade do
interior de São Paulo onde foi criado, é um
local onde se encontram ossadas de
dinossauros. E como Marília tem forte
influência da colônia japonesa, e o Japão é o
país da robótica, o autor uniu estes dois
mundos extremos na novela.
Além, de Marília, a equipe de produção se
deslocou para o Japão para gravar as
primeiras cenas. O Monte Fuji, a montanha
mais alta do país, serviu de cenário para um
grande terremoto que aconteceu em um sítio
paleontológico. A cena foi gravada meses
antes da estreia da novela, em março de
2011.
Duas semanas antes de ir ao ar o primeiro
capítulo, um dos maiores terremotos que já
se teve notícia devastou uma região do
Japão. Mesmo em se tratando de um
momento delicado e de apreensão em todo o
mundo, a Globo afirmou que novelas não têm
compromisso com a realidade e que o
terremoto ficcional iria ao ar de maneira
respeitosa, do jeito que foi concebida, sem a
preocupação de se era ou não de mau gosto
para aquele momento atual. No primeiro
capítulo, uma mensagem lida pelo ator
Mateus Solano dedicou a novela à terra do
sol nascente.
Além do Monte Fuji, a Globo gravou por 15
dias em plantações de arroz, templos e
restaurantes no Japão. Foram quase dois
dias de viagem, incluindo o fuso horário de
doze horas, mas não há quem diga que não
valeu a pena. “Gravamos em locações
maravilhosas. O Japão reúne o contraste do
moderno com o antigo e a novela pede
exatamente isso”, opinou o diretor Rogério
Gomes.
Morde e Assopra não escapou das nuances
próprias da obra de Carrasco em novelas
anteriores: sequências de pastelão com
direito a torta na cara e gente sendo
arremessada, casamentos desfeitos no altar,
núcleo caipira pra lá de caricato, com algum
animal de estimação (uma mini vaca, no
caso) e humor ingênuo e infantil. E
dramalhão folhetinesco, que o público do
horário gosta tanto.
Um dos personagens mais inusitados da
trama, o robô Zariguim era amigo de Ícaro e
teve participação importante na criação da
robô Naomi. Fabricado na França, Zariguim
foi descoberto pela equipe da novela no
Japão, em uma feira de pesquisas em
tecnologia. “Foi o que atendeu melhor a
nossa necessidade, porque anda sem cabo
nenhum e está pronto para receber várias
funções. Já veio com alguns programas
instalados e, como possui wi-fi e bluetooth,
comandamos ele por um laptop durante as
gravações”, explicou o produtor de efeitos
especiais Vitor Quintella.
Feito com motores de alta tecnologia, o
robozinho tinha sensores táteis no corpo
inteiro e respondia ao toque dos atores em
cena. “Ele tem um sonar para não cair e é
ativado pelo ator que estiver em cena, que
toca em determinadas partes do seu corpo,
acionando as ações programadas pela nossa
equipe. Se o Zariguim tiver que pegar uma
pinça no chão, ensinamos esse movimento e
estabelecemos que ele fará essa ação se for
tocado na cabeça, por exemplo. Além disso,
ele escaneia o rosto dos atores e consegue
acompanhar todos os movimentos”, revelou.
Com voz própria, o robô foi programado
originalmente para falar em inglês, francês
ou chinês. Por isso Zariguim era dublado.
Recebia as falas junto com a programação do
movimento e falava ao vivo durante a
gravação, respondendo ao comando da
equipe de efeitos especiais.
Morde e Assopra foi a primeira novela do
horário das sete da Globo a ser transmitida
com closed caption – embora as novelas das
18 e 21 horas já usassem este recurso
anteriormente. O processo permite a
deficientes auditivos captarem em forma de
legendas o que não se ouve na tela.
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Jornal da Casa / Casa do Brasil