Romance Urbano – com descrições regionais –
Século XX: ±1910 a ±1970
Preâmbulo + 12 Capítulos
Ambiente:
Manaus (Porto dos Remédios, Centro comercial)
Líbano, São Paulo, Miami (apenas citadas)
Tempo: Presente x Passado
(do futuro para o passado)
Vocabulário:
Manauara – referente a Manaus (nascido em Manaus)
Cunhatã : termo indígena para o diminutiva de mulher.
Arak – bebida alcoólica de origem árabe, destilada da
tâmara ou uva, aromatizada com anis dentre outras
especiarias. Parecida com licor e consumida após as
refeições)
Narguilé – cachimbo de água utilizado para fumar.
Maná – o livro bíblico de Êxodo o descreve como um
alimento produzido milagrosamente, sendo fornecido
por Deus ao povo hebreu, liberado por Moisés, durante
sua estada no deserto rumo à terra prometida.
Gazais – gênero de poesia amorosa árabe, cuja
tradução é “conversando com as mulheres”
Paxá – denominação dada entre os turcos,aos títulos
dos governadores de províncias do Império Otomano.
Sufi – termo árabe, que se refere aos praticantes de
uma corrente mística e contemplativa do Islã, onde se
procura uma conexão direta com Deus através dos
Cânticos
Ramêni – órgão genital masculino, em árabe.
Curumim – palavra de origem tupi que designa as
crianças indígenas
Nheengatu – também conhecido como nhengatu,
língua geral da Amazônia, ou ainda pelo nome latino
lingua brasílica, é uma língua do Tronco tupi, da família
Tupi-Guarani. É a língua materna de parte da
população cabocla do interior amazônico, além de
manter o caráter de língua de comunicação entre
índios e não-[índios, ou entre índios de diferentes
línguas.
Dois irmãos, romance de Milton Hatoum, tematiza o
incesto, a rivalidade, a revolta, o ciúme e as tantas
nuanças que desajustam a vida de uma família de
imigrantes libaneses residente em Manaus. O seu
diálogo com o presente e o passado fez-nos resgatar
histórias bíblicas, histórias clássicas e contemporâneas
para mostrar que seus temas são tão antigos, como
atuais, eternos como a própria impossibilidade de
harmonia terrena.
Escrito em estilo enxuto e ao mesmo tempo repleto de
sutilezas, o romance narra a tumultuada relação de
ódio entre dois irmãos gêmeos, numa família de origem
libanesa que vive em Manaus. Além da busca do pai/da
identidade do narrador (Nael).
Galib
Zana
Lívia
Halim
Yaqub
Domingas
Omar
Agregada índia
Caçula
Nael
Narrador
Rânia
Dália
Pau Mulato
Preâmbulo que abre os capítulos
A MORTE DE ZANA -O romance começa com alguém
descrevendo a morte de Zana. Antes de morrer, ela
delirava pela casa, chegava a ver o marido e o pai
andando pela casa: "Eles andam por aqui, meu pai e
Halim vieram me visitar... eles estão nesta casa".
Acreditava também que o filho caçula iria voltar: "Sei
que um dia ele vai voltar". O narrador não quis vê-la
morrer. Mas contaram-lhe que ela, antes da morte,
ergueu a cabeça e perguntou em árabe: "Meus filhos já
fizeram as pazes?"
Capítulo 1
A VOLTA DE YAQUB -Yaqub chegou do Líbano. O pai foi buscálo no Rio de Janeiro. Não era mais o menino, mas o rapaz que
passara cinco dos seus dezoito anos no sul do Líbano. O
encontro de pai e filho foi emocionante. O pai falou da penúria
em Manaus por causa da guerra. No farnel do filho, não havia
roupa, nem presente. Em plena Cinelândia, Halim viu o filho
virar-se para uma parede e mijar. O pai reclamou, mas Yaqub
não entendeu, ou fingiu que não entendeu.
A SEPARAÇÃO -Yaqub e Omar eram gêmeos idênticos. Omar
nasceu um pouquinho depois. Até treze anos, viveram na
mesma casa. A ideia de Halim era mandar os dois filhos para o
sul do Líbano, mas a esposa, Zana, persuadiu o marido a
mandar apenas Yaqub. Assim, durante anos, Omar foi tratado
como filho único.
VIAGEM E SERMÃO - Na viagem de volta a Manaus, Halim fez
um longo sermão sobre educação doméstica: que não se deve
mijar na rua, nem comer como uma anta, nem cuspir no chão. O
filho concordava, a cabeça baixa.
LEMBRANÇAS DE YAQUB -No caminho do aeroporto para casa,
Yaqub dava asas às lembranças. "Ele e o irmão entravam
correndo na casa, zigue-zagueavam pelo quintal, caçavam
calangos com uma baladeira. Quando chovia, os dois trepavam
na seringueira do quintal da casa, e o Caçula trepava mais alto,
se arriscava, mangava do irmão, que se equilibrava no meio da
árvore, escondido na folhagem, agarrado ao galho mais grosso,
tremendo de medo, temendo perder o equilíbrio."
IGUAIS E DIFERENTES - O caçula era corajoso, brigão,
audacioso. Corria descalço, sem medo de queimar os pés,
saltava para pegar a linha ou a rabiola de um papagaio, soltando
um grito de guerra e mostrando as mãos estriadas. "Yaqub
recuava ao ver as mãos do irmão cheias de sangue, cortadas
pelo vidro do cerol."
CARNAVAL E TRAGÉDIA -Veio à lembrança de Yaqub o baile de
Carnaval no casarão de Sultana Benemou. "Seria a primeira
noite de Lívia na festa dos adultos, a primeira noite que ele,
Yaqub, viu-a com os lábios pintados". Yaqub tinha treze anos.
Lívia, da mesma idade, já parecia adulta. Quando ia aproximarse dela, Zana ordenou: "Leva tua irmã para casa. Podes voltar
depois". Ele obedeceu. Quando Zânia dormiu, "voltou correndo
ao casarão dos Benemou." A cena que viu deixou-o trêmulo:
Lívia e Omar dançavam num canto da sala.
CHEGADA AO LAR -Já em casa, Yaqub abraçou longamente a
irmã, agora moça completa, e dedicou uma atenção especial a
Domingas.
FACE A FACE COM O IRMÃO -A recepção entre os gêmeos foi
fria. Omar chegou quase à meia-noite. Apesar do incentivo, os
dois trocaram apenas um tímido aperto de mãos.
A HISTÓRIA DA CICATRIZ -Um narrador ainda não identificado fala da
cicatriz no rosto de Yaqub. "Foi Domingas quem me contou a história da
cicatriz". Depois do Carnaval, os gêmeos foram com Domingas à casa
dos Reinoso: iam passar a tarde lá, atraídos pela notícia de um
cinematógrafo ambulante. Lívia dava confiança aos dois, e Omar ficou
enciumado. A sala ficou escura, e as cenas em preto-e-branco surgiram
da escuridão. Uns vinte minutos depois, a projeção foi interrompida.
Quando alguém abriu uma janela, "a platéia viu os lábios de Lívia
grudados no rosto de Yaqub. Depois, o barulho de cadeiras atiradas no
chão e o estouro de uma garrafa estilhaçada, e a estocada certeira, rápida
e furiosa do Caçula. O silêncio durou uns segundos. E então o grito de
pânico de Lívia ao olhar o rosto rasgado de Yaqub. O Caçula, apoiado na
parede branca, ofegava, o caco de vidro escuro na mão direita, o olhar
aceso no rosto ensanguentado do irmão."Vieram, depois, os apelidos:
"Cara de lacrau", "bochecha de foice." Yaqub engolia os insultos, não
reagia. "Então Halim decidiu: a viagem, a separação. A distância que
promete apagar o ódio, o ciúme e o ato que os engendrou.”
ADAPTAÇÃO -Depois de voltar do Líbano, Yaqub tentou
recuperar o tempo perdido. Era tímido, tinha vergonha de falar
(trocava o pê pelo bê), era alvo de chacota dos colegas e de
certos mestres que o tinham como um rapaz rude, esquisito:
vaso mal moldado.
OLHAR SEDUTOR -Yaqub despertava desejo nas mulheres.
Tinha olhar de conquistador. Domingas também se deixava
encantar por aquele olhar. Dizia: "Esse gêmeo tem olhão de
boto; se deixar, ele leva todo mundo para o fundo do rio".
UM MATEMÁTICO
Matemática.
-Na
escola,
Yaqub
sobressaía-se
em
JUVENTUDE ESQUISITA -Yaqub passava dias e noites no
quarto, em total isolamento.
ATITUDES OPOSTAS -Enquanto Yaqub ganhava fama de
estudioso e esquisitão, Omar "gazeava lições de latim,
subornava porteiros sisudos do colégio dos padres e saía para
a noite, fardado, transgressor dos pés ao gogó, rondando os
salões da Maloca dos Barés, do Acapulco, do Cheik Clube, do
Shangri-Lá."
LUTA VÃ -O pai não sabia o que fazer diante de um filho que
chegava, todas as noites, ébrio. Ameaça castigo, dava o
exemplo do outro filho, mas nada adiantava. Omar foi reprovado
dois anos seguidos no colégio dos padres.
EXPULSO DO COLÉGIO - No dia em que foi expulso, Omar
"gritou várias vezes na presença do pai, desafiando-o, rasgando
a farda azul, a voz impertinente dizendo: "Acertei em cheio o
professor de matemática (Bolislau, o padre polonês), o mestre
do teu filho querido, o que só tem cabeça".
GALINHEIRO DOS VÂNDALOS -"O Caçula, expulso pelos
padres, só encontrou abrigo numa escola de Manaus onde eu
estudaria anos depois. O nome do colégio era pomposo -Liceu
Rui Barbosa, o Águia de Haia -, mas o apelido era bem menos
edificante: Galinheiro dos Vândalos."
IDENTIDADE DO NARRADOR -Aqui, o narrador começa a
aparecer mais nitidamente. "Quando ele (Yaqub) viajou para São
Paulo, eu tinha uns quatro anos de idade, mas a roupa dele me
esperou crescer e foi se ajustando ao meu corpo; as calças,
frouxas, pareciam sacos; e os sapatos, que mais tarde ficaram
um pouco apertados, entravam meio na marra nos pés: em
parte por teimosia, e muito por necessidade."
PARTIDA PARA SÃO PAULO -Terminados os estudos no colégio
dos padres, Yaqub decidiu: ia embora para São Paulo, seguir
sua vocação para os números.
LÍVIA REAPARECE -No dia da partida, Lívia reapareceu.
Arrastou Yaqub para o quintal, depois os dois sumiram no mato.
Como demorassem, Domingas foi atrás. "Estavam espichados
no mato, e Yaqub acariciava o ventre e os seios da mulher,
adiando a despedida."
MARCAS DO AMOR -Depois do encontro com Lívia, "Yaqub
entrou sozinho na sala, o pescoço com arranhões e marcas de
mordidas, a expressão ainda incendiada. Viajou assim mesmo:
a roupa amarrotada, o rosto úmido, o cabelo aninhando talos,
folhinhas e fios de cabelo amarelados. Viajou calado. Deixou na
casa a lembrança forte de duas cenas ousadas: o desfile com
farda de gala e o encontro com a mulher que ele amava."
Capítulo 2
HALIM E GALIB - O pai de Zana, Galib, inaugurou o
restaurante Biblos no térreo da própria casa. O próprio Galib,
ajudado pela filha, levava comida à mesa dos fregueses:
mascateiros, comandantes de embarcação, regatões,
trabalhadores do Manaus Harbour; imigrantes libaneses,
sírios e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa
Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a rodeavam.
Halim começou a frequentar o restaurante menos pela
comida e mais para apreciar a beleza de Zana. "Passou meses
assim: sozinho num canto da sala, agitado ao ver a filha de Galib,
acompanhando com o olhar os passos da gazela."
O EFEITO DOS GAZAIS -Halim estava apaixonado por Zana,
mas era tímido, não tinha coragem de lhe fazer uma
declaração de amor. Pediu ajuda a Abbas, um poeta boêmio
para compor um gazal, espécie de poema amoroso, e Halim,
encharcado de vinho, recitou-o a Zana dentro do restaurante
cheio de gente. Dois meses depois, estavam casados. Tudo
isso Halim contou ao narrador.
INTRIGAS -Houve muitas intrigas para atrapalhar o namoro
de Zana e Halim. Galib não se intrometia, e Zana ganhava
liberdade para decidir sozinha. Terminaram casando-se na
Igreja dos Remédios.
SOB O COMANDO DE ZANA - Depois de casados, Zana dava
as ordens, tomava as decisões. Halim vivia para satisfazê-la,
para adorá-la, para fazê-la feliz. Ele parecia passivo, "mas era
um demônio na cama e na rede. Ele me contou cenas de
amor com a maior naturalidade, a voz pastosa, pausada, a
expressão libidinosa no rosto estriado, molhado de suor".
A MORTE DE GALIB -Logo depois de casados, Zana sugeriu
ao pai "que viajasse para o Líbano, revisse os parentes, a
terra, tudo. Era o que Galib queria ouvir. E partiu, a bordo do
Hildebrand, um colosso de navio que tantos imigrantes
trouxe para a Amazônia." Em Biblos, dormindo na casa perto
do mar, Galib morreu. Quando Zana soube, trancou-se no
quarto do pai. Depois balbuciou para o esposo: "Agora sou
órfã de pai e mãe. Quero filhos, pelo menos três".
Capítulo 3
CARTA DE YAQUB -No fim de cada mês, Halim e Zana
recebiam uma carta de Yaqub. Para espantar a tristeza,
"Halim convidava os vizinhos e a leitura era pretexto para um
jantar festivo. Sem festa, Zana ficaria deprimida, pensando
no frio que o filho sentia".
YAQUB PROFESSOR -Seis meses depois, Yaqub tornou-se
professor de Matemática em São Paulo. Tempos depois,
informou seu ingresso na Universidade de São Paulo: ia ser
engenheiro. "Os pais mandaram-lhe dinheiro e um telegrama;
ele agradeceu as belas palavras e devolveu o dinheiro.
Entenderam que o filho nunca mais precisaria de um vintém.
Mesmo se precisasse, não lhes pediria."
YAQUB OFICIAL DO EXÉRCITO - "Cresci vendo as fotos de
Yaqub e ouvindo a mãe dele ler suas cartas. Numa das fotos,
posou com a farda do Exército; outra vez uma espada,(...)
Durante anos, essa imagem do galã fardado me
impressionou. "
A SITUAÇÃO DE OMAR -Omar levava a vida "entre a inércia
da ressaca e a euforia da farra noturna." Não participava da
leitura das cartas mandadas pelo irmão, ignorava o oficial da
reserva e futuro politécnico.
COMO SURGIU DOMINGAS -Antes dos filhos, Halim e Zana
receberam de uma freira uma indiazinha. Zana gostou dela.
As duas rezavam juntas as orações que uma aprendeu em
Biblos e a outra no orfanato das freiras, aqui em Manaus."
O NASCIMENTO DOS GÊMEOS -Halim não queria filhos.
Temia que eles atrapalhassem a tara que sentia por Zana.
"Yaqub e Omar nasceram dois anos depois da chegada de
Domingas à casa." Daí em diante, acabou-se o sossego de
Halim: à medida que os meninos cresciam, ia perdendo
terreno no coração da esposa.
O NASCIMENTO DE RÂNIA -Quando Rânia nasceu, Halim já
se tinha conformado com a intromissão dos filhos na sua
vida íntima. Nunca aprovou o excesso de mimo que Zana
dispensava ao caçula (Omar).
Capítulo 4
ANGÚSTIAS DO NARRADOR - Neste capítulo, o narrador
questiona o seu próprio passado. Fica-se sabendo que ele
é filho de Domingas. E o pai? "Anos depois, desconfiei:
um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando
eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez
pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade. Eu
sofria com o silêncio dela".
ORIGENS DE DOMINGAS -Domingas era órfã. Por isso, foi
trazida do interior por uma freira para um orfanato de
Manaus. Ali aprendeu a rezar e a escrever,
experimentando a palmatória da irmã Damasceno. Saiu do
internato para viver na casa de Zana e Halim. "Viu os
gêmeos nascerem, cuidou do Yaqub, brincaram
juntinhos...
VIAGEM A ACAJATUBA -O narrador e Domingas fizeram
uma única viagem de barco juntos: foram a Acajatuba, vila
natal de Domingas. Na volta, um temporal provocou
pânico e vômitos, aumentando a tristeza dela. Por alguma
razão, ela não falava nos gêmeos, muito menos em Yaqub.
E isso aumentava as desconfianças do narrador.
MENINO DE RECADOS - O narrador tinha total liberdade
na casa de Halim e Zana. Dificilmente se sentava à mesa
com os donos da casa, mas alimentava-se da mesma
comida, andava por todos os ambientes, eles não se
importavam. Os vizinhos, por meio de Zana, pediam-lhe
favores: que fosse ali, acolá, ele ia. Às vezes, nem
agradeciam nem davam dinheiro para o transporte.
A PIOR VIZINHA -A pior vizinha do narrador era Estelita
Reinoso. Vivia pedindo a Zana que mandasse o filho da
Domingas fazer isso ou aquilo. Demorou, mas um dia o
narrador deu o seu grito de independência: não serviria
mais de mensageiro para Estelita. Halim concordou com
ele.
AS FILHAS DE TALIB -Eram duas, cada uma mais bonita
que a outra: Zahia e Nahda, a primeira mais assanhada
que a segunda. O narrador, quando ia à casa de Talib,
faltava engolir Zahia com os olhos. Não perdia uma noite
em que elas dançavam em casa, onde eram rivais de
Rânia e rebolavam como nunca.
SURRA NO PAI -Certa vez, as filhas de Talib flagraram-no com
uma cunhatã atrás do balcão da Taberna Flores do Minho. Ele
não esperava por isso, não acreditava que as filhas voltariam
mais cedo da escola. "Deram uma sova no pai, (...)Só estava me
divertindo um pouquinho, filhas...".
ATRITOS COM OMAR -Omar discriminava o narrador. "Um dia,
eu estava almoçando quando ele se aproximou e deu a ordem:
que eu saísse, fosse comer na cozinha. Halim estava por perto,
me disse: "Não, come aí mesmo, essa mesa é de todos nós". O Caçula
bufava, depois se vingava de mim.
VONTADE DE FUGIR - Omar, quando chegava bêbado,
desrespeitava Domingas. O narrador pulava sobre ele e levava
safanões e pesadas. Halim defendia-o, mas Zana ficava do lado
do filho e contra o filho da empregada. A ideia de fugir não lhe
saía da cabeça
ALÉM DOS LIMITES -Omar chegava bêbado todas as
noites e dava trabalho para a mãe e para Domingas. Certa
noite entrou em casa com uma moça do cortiço da rua dos
fundos, irmã do Calisto. Fizeram uma festinha a dois. De
manhãzinha, Halim viu o filho e a moça, nus, dormindo no
sofá cinzento. Depois que a moça se vestiu e saiu, ele "se
aproximou do filho, que fingia dormir, ergueu-o pelo cabelo, arrastouo até a borda da mesa e então eu vi o Omar , já homem feito, levar
uma bofetada, uma só, a mãozona do pai girando e caindo pesada
como um remo no rosto do filho."
YAQUB CASADO -Yaqub, quando foi casar-se, noticiou o
evento apenas com um telegrama. Não revelou o nome da
mulher. "Zana mordeu os lábios. Para ela, um filho casado era um
filho perdido ou sequestrado. Fingiu-se desinteressada do nome da
nora e cercou ainda mais o Caçula, que ela atraía para si como um
imenso ímã atrai limalhas.”
RÂNIA, aos poucos, tornou-se arredia, retraída,
enclausurada. Depois das oito horas da noite,
resguardava-se do mundo. Não saía: não ia ao cinema, às
praças, às casas vizinhas. Ninguém sabia por quê. Com o
tempo, tornou-se ótima negociante, uma vendedora
arguta. Rasgava as cartas de todos os pretendentes. Só
se mostrava numa única noite do ano: no aniversário da
mãe.
OMAR E DÁLIA -Tudo aconteceu no aniversário de Zana.
Omar apareceu com uma mulher nunca vista por ali.
Chamava-se Dália e tinha uma beleza incomum. Tão logo a
viram, mãe, filha e as duas Talib ficaram enciumadas. Rânia,
humilhada, nem esperou o momento do parabéns: retirouse para o quarto sem os costumeiros elogios de outros
anos. As Talib dançaram, mas tiveram os movimentos
sensuais obscurecidos pela dança inesperada de Dália,
com direito a beijo teatral de Omar no final. Zana não quis
parabéns, não se importou com o bolo. Todos se retiraram,
e as duas rivais começaram a recolher as coisas da mesa.
Omar estava deitado na rede, lá fora. De repente, Zana
cochichou alguma coisa no ouvido de Dália. Foi a gota
d`água. Ela se retirou batendo a porta, e Omar foi atrás dela.
PLANO DE ZANA -Para separa Omar de Dália, Zana tentou
convencer o filho doutor a hospedar o filho farrista. "Ele quer
se enganchar com uma sirigaita da Maloca, uma dançarina que se
exibiu na noite do meu aniversário. Se ele não passar um tempo em São
Paulo, vai abandonar tudo: os estudos, a casa, a família", escreveu
ao engenheiro. Mas Yaqub negou abrigo ao irmão: não ia
permitir que o irmão dormisse sob o seu teto. "Que ele
encontre o caminho dele, mas longe de mim, muito longe da minha
seara."
VINGANÇA DE ZANA - Por intermédio do narrador, Zana
ofertou dinheiro às tias de Dália, e a moça desapareceu de
Manaus. "Dália sumiu da Maloca dos Barés, da casa na Vila Saturnino,
da cidade. Só assim o caçula retornou ao lar: sem camisa e bêbado.”
VIAGEM PARA SÃO PAULO -Omar foi obrigado a viajar para
São Paulo. "Ele viajou dando coices no ar, rebelde, enraivecido.
Foram seis meses de quietude na casa, de alívio para Halim. Os livros
do Caçula, romances e poemas que ele lia na rede, caíram nas minhas
mãos. Os livros, os cadernos, as canetas, tudo, menos o quarto, que era
só dele, só para ele."
DOMINGAS SAUDOSA -Domingas, todos os dias, limpava
os quartos vazios dos gêmeos. Detinha-se em ambos,
admirando o excesso de trastes de um e a falta de objetos
supérfluos de outro. O narrador achava que a mãe admirava
aquele contraste.
O NARRADOR NO GALINHEIRO -Graças à ajuda de Halim, o
narrador ingressou no Galinheiro dos Vândalos. "No liceu
havia vestígios do Caçula: ex-namoradas, histórias de algazarra, de
cenas heróicas, duelos, desafios. Nas paredes do banheiro havia
inscrições de sua autoria. Por onde passava, deixava um gesto ousado,
de valentia, ou um epigrama qualquer, palavras de humor e ironia."
OMAR SUMIU? - Este capítulo termina com o
desaparecimento de Omar da pensão onde morava, em São
Paulo. Depois de comprovar que o irmão desaparecera
misteriosamente, Yaqub decidiu não informar logo os
familiares de Manaus. Havia a esperança de que ele
reaparecesse de repente.
Capítulo 5
VISITA DE YAQUB - Pela primeira vez, desde que se fora
para São Paulo, Yaqub vinha visitar a família. Quando o
narrador soube que ele ia chegar, sentiu uma coisa
estranha. Se ele fosse seu pai, então seria filho de um
homem quase perfeito. Foram quatro dias de visita que
aumentaram as dúvidas do narrador. Ele e Yaqub
passearam pela cidade, visitaram lugares que acendiam a
memória do visitante, mas ele nada de substancial revelou
sobre o relacionamento com Domingas.
A VERDADE SOBRE OMAR - Yaqub não contou a verdade
para todos. Contou-a só para o pai, sentados à mesa de um
boteco. "O Caçula enviou o primeiro cartão-postal de
Miami; depois enviou outros, de Tampa, Mobile e Nova
Orleans, contando suas farras e peripécias em cada cidade.
Yaqub rasgara todos os postais menos um, que entregou
ao pai: "Queridos mano e cunhada, Louisiana é a América em estado
bruto e mesmo brutal, e o Mississipi é o Amazonas desta paragem. Por
que não dão uma voltinha por aqui? Mesmo selvagem, Louisiana é mais
civilizada que vocês dois juntos. Se vierem, tratem de pintar o cabelo de
loiro, assim vão ser superiores em tudo. Mano, a tua mulher, que já foi
bonita, pode rejuvenescer com o cabelo dourado. E tu podes enriquecer
muito, aqui na América. Abraços do mano e cunhado Omar".
FUGA ESPETACULAR -Omar roubara o passaporte do
irmão, roupas e algum dinheiro (820 dólares) e partira para
os EUA. Quem facilitou a entrada do irmão em casa foi a
empregada. Mais ainda: Omar descobriu que a esposa
secreta do irmão era Lívia, aquela que provocara a primeira
briga séria entre os gêmeos. Aproveitou a ausência do
irmão e desenhou obscenidades no álbum de casamento.
A AJUDA DE YAQUB -Em São Paulo, as coisas melhoraram
muito para Yaqub. Ele mandou móveis novos para os pais e
dinheiro para reformar a casa e a loja. O narrador e Rânia
participaram ativamente das reformas, trabalhando de
verdade. "Depois da reforma, Rânia tomou mais gosto pela loja.
Mandava e desmandava, cuidava do caixa, do estoque e das dívidas
dos caloteiros. Acabou de vez com a venda a fiado, "uma filantropia que
não combina com o comércio".
INDIFERENÇA DE OMAR -Omar mostrava-se indiferente à
revolução que o dinheiro do irmão vinha operando na casa
e nos negócios dos pais. Continuava boêmio e malandro,
tendo a ajuda velada da mãe.
MUDANÇA BRUSCA - Omar, misteriosamente, mudou de
vida: dormia regularmente, acordava cedo e ia trabalhar.
Bem vestido, ganhou ares de executivo. A mudança
provocou comentários e desconfianças em casa e fora dela.
Alguns apostavam em amor novo. A mãe dele não
acreditava na hipótese. O Caçula dizia que estava
trabalhando num banco britânico.
MÃE-DETETIVE -Zana, desconfiada do comportamento de
Omar, partiu para a pesquisa. O emprego no banco era uma
farsa. O inglês com quem o filho andava, um
contrabandista. E havia uma mulher. Com a ajuda de Zanuri,
a mãe descobriu tudo. Ela tinha o apelido de Pau-Mulato
porque era grande e escura.
DESPEDIDA GROSSEIRA -Omar preparou-se para deixar a
casa dos pais e viver com a Pau-Mulato. A despedida foi
agressiva: "A senhora tem o outro filho, que só dá gosto e
tem bom posto. Agora é a minha vez de viver... Eu e a minha
mulher, longe da senhora..." Ergueu a cabeça e gritou para
o pai: "Longe do senhor também, longe dessa casa... de todos. Não
venham atrás de mim, não adianta...".
Capítulo 6
HALIM x AZAZ - Azaz, um desocupado, andou espalhando
calúnias sobre Halim: que ele tinha filhos com as índias, com
a de casa (Domingas). Halim marcou um duelo em praça
pública - era moda na época. A luta foi sangrenta: Azaz com
uma navalha, Halim com uma corrente. Os dois saíram
feridos, mas Halim venceu.
BUSCA INCESSANTE -Omar e a Pau-Mulato sumiram de vez.
Primeiro, a procura da mãe; depois, de Halim. Todos os
esforços fracassaram. O casal desapareceu. O faro do
Perna-de-Sapo desfez o mistério. Os dois moravam em um
barquinho, no porto da Escadaria, viviam da pesca e dos
donativos dos ribeirinhos.
FÚRIA DE OMAR -Quando Omar descobriu que o pai, por meio
do Perna-de-Sapo, conseguiu localizá-lo, ficou furioso. Com
uma corrente nas mãos, destruiu espelhos, quebrou móveis,
rasgou fotografias. Acusava o pai e mãe de culpados. Halim
não estava em casa. Omar xingou a mãe, a irmã, o narrador
(filho duma égua, interesseiro, puxa-saco de Halim). O narrador,
já adulto, preparou-se para uma briga de vida ou morte, mas
Omar foi amolecendo até ser totalmente dominado por Zana.
DESABAFO DE HALIM -Halim desabafou todas as mágoas ao
narrador. Punha a culpa de tudo que aconteceu à esposa. Zana,
aos poucos, foi dominando Omar, sugando-lhe alma e coração,
deixando-o dependente dela. Até o amor pelo marido e os
momentos de prazer foram substituídos por essa atenção
doentia dedicada ao Caçula. Omar tornara-se, com o passar do
tempo, o arqui-rival de Halim.
Capítulo 7
PRISÃO E MORTE DE LAVAL -O professor Laval (poeta cujos
versos estavam espalhados pelas mãos dos alunos do Liceu
Rui Barbosa) foi preso por soldados do Exército em plena
praça pública. "Foi humilhado no centro da praça das Acácias,
esbofeteado como se fosse um cão vadio à mercê da sanha de uma
gangue feroz". Dois dias depois, o professor estava morto.
O RETORNO INESPERADO DE YAQUB -Sem prévio aviso,
Yaqub retornou a Manaus. Domingas foi acolhê-lo e, na visão
do narrador, o abraço entre os dois foi o mais demorado
daquela casa. Ele estava expansivo, cheio de intimidades
com Domingas, e várias vezes pronunciou o nome do
narrador.
DOIS DOENTES: ATENÇÕES DIVIDIDAS -Omar e o narrador
adoeceram a um só tempo por causa da morte do professor
Laval. Zana dedicou atenções ao Caçula; Domingas, Yaqub e
Halim ficaram à cabeceira do narrador que, naquela época,
alcançava a maioridade. Quando a doença cedeu, Yaqub já
tinha viajado para São Paulo.
RÂNIA E O NARRADOR -Certo sábado, Rânia convocou o
narrador para uma faxina geral no depósito da loja. Ele atendeu
prontamente. Coisas velhas pertencentes ao pai foram jogadas
fora. "Ela agia com uma determinação feroz, consciente de que
estava enterrando um passado." Já era tarde da noite, e os dois
continuavam trabalhando. "Quando Rânia se curvou para abrir uma
caixa de lençóis, vi os seios dela, morenos e suados, soltos na blusa
branca sem mangas. Rânia demorou nessa posição, e eu fiquei
paralisado ao vê-Ia assim, recurvada, os ombros, os seios e os braços
nus. Quando ela se ergueu, me olhou por uns segundos. Os lábios se
moveram e a voz manhosa sussurrou, lentamente: "Vamos parar?". Ela
ofegava. E não se esquivou do meu corpo nem evitou meu abraço, meus
afagos, os beijos que eu desejava fazia tanto tempo. Pediu que eu
apagasse a luz, e passamos horas juntos naquele suadouro. Aquela
noite foi uma das mais desejadas da minha vida.”
OMAR COM GONORRÉIA - O caçula agora demonstrava
traços de sandice. Passava os dias no quintal, catando
folhas e frutas podres, podando galhos de árvores,
arrancando ervas-daninhas. Certa vez, quando foi urinar,
soltou urros aterradores. Descobriram que estava com
gonorréia.
OS PASSEIOS DE HALIM -Halim saía por aí, sem rumo certo,
andando de rua em rua, de bar em bar, e o narrador tinha que
lhe seguir os passos a pedido de Zana. Halim não se
escondia: queria apenas andar. Quando voltava, contava
histórias desencontradas: confundia quem se mudara com
quem já morrera.
A MORTE DE HALIM -Os passeios eram rotineiros, mas
Halim sempre voltava para casa. Numa noite de dezembro,
véspera de Natal, ele sumiu de verdade. O narrador esgotou
todas as opções para encontrá-lo e voltou sozinho. Naquela
noite, ninguém dormiu, todos preocupados com o sumiço de
Halim. De manhã cedo, ele estava no sofá da sala, "calado,
para sempre". A reação mais estranha diante do morto foi de
Omar. Gritava com o pai, queria enfrentá-lo, humilhava-o
com palavras, o dedo em riste apontado para o rosto do
morto. O narrador teve que arrastar o filho possesso para o
quintal.
Capítulo 8
O APARECIMENTO DE ROCHIRAM -Omar apareceu em casa
com um indiano. Chamava-se Rochiram. Dizia-se construtor de
hotéis pelo mundo. Domingas antipatizou com ele à primeira
vista. Zana, aos poucos, foi ficando íntima do amigo do filho.
CARTA PEDINDO PERDÃO -Zana viu no indiano a oportunidade
de aproximar os dois gêmeos. Era o que ela mais queria na
vida. Rochiram ia construir um hotel, Yaqub podia participar do
projeto e Omar ajudá-lo-ia. Por intermédio do narrador, fez uma
carta para o filho de São Paulo: pedia-lhe perdão e
compreensão. Queria que ele fizesse as pazes com Omar. A
resposta veio, mas não deixou Zana animada. Yaqub
interessou-se pela construção do hotel, mas não se mostrou
interessado em fazer as pazes com Omar. Quando o caçula
soube do plano, ficou colérico
A AGRESSÃO DE OMAR -Yaqub retornou a Manaus, mas
ficou hospedado em um hotel. Certo dia, foi a casa rever
Domingas e o narrador. Omar voltou de repente e, sem aviso,
começou a esmurrar o rosto de Yaqub e a dar-lhe chutes. O
narrador interveio, mas não conseguiu evitar a agressão.
Antes de sair, Omar rasgou o projeto que o irmão deixou
sobre a mesa.
O ESTRAGO DA AGRESSÃO -Domingas acompanhou Yaqub
até o hospital. "Disse que o estado de Yaqub não era grave:
a mão esquerda, sim, em frangalhos, dois dedos fraturados.
Ia perder uns três dentes, o rosto estava irreconhecível, ele
sentia dores terríveis nas costas e nos ombros. Pedira a
Domingas que calasse o bico, que inventasse, dissesse a
Zana: "O teu filho teve de viajar às pressas para São Paulo".
Capítulo 9
CENAS DO PASSADO - Domingas resolve contar ao narrador
detalhes do nascimento dele. "Quando tu nasceste", ela disse,
"seu Halim me ajudou, não quis me tirar da casa... Me prometeu que ias
estudar. Tu eras neto dele, não ia te deixar na rua. Ele foi ao teu batismo,
só ele me acompanhou. E ainda me pediu para escolher teu nome. Nael,
ele me disse, o nome do pai dele. Eu achava um nome estranho, mas ele
queria muito, eu deixei..." Domingas revelou ao filho que, numa
determinada noite, Omar chegara bêbado, entrara no quarto
dela e estuprara-a.
A SEMIDEMÊNCIA DE ZANA -Depois que Omar sumiu, Zana
passou a confundir as coisas. Vivia uma semidemência de dar
tristeza. Desafiava os amigos, incitava-os a ir procurar o seu
Caçula.
A MORTE DE DOMINGAS -Certa vez, a mãe do narrador não
estava no quarto. Ele foi encontrá-la no quarto de Omar,
embrulhada com a própria rede. "Vi o corpo que oscilava
lentamente, comecei a chorar. Sentei no chão ao lado dela e
fiquei ali, aturdido, sufocado. Durante o tempo que a
contemplei, no vaivém da rede, rememorei as noites que
dormimos abraçados no mesmo quartinho que fedia a
barata." O corpo de Domingas foi enterrado ao lado do de
Halim, no jazigo da família.
Capítulo 10
O AMOR PELA CASA -Rânia comprou um bangalô em um dos
bairros ao norte de Manaus. Zana resistiu: "nunca sairia da
casa dela, nem morta deixaria as plantas, a sala com o altar da
santa, o passeio matutino pelo quintal. Não queria abandonar o
bairro, a rua, a paisagem que contemplava do balcão do quarto.
Quando Rânia chegava da loja, a mãe se precipitava em dizer:
"Podes ir para o teu bangalô, eu não arredo pé daqui".
MUDANÇA DEFINITIVA -Um dia, Rânia partiu, "deixou a casa e
seu quarto. Toda manhã, a caminho da rua dos Barés, visitava a
mãe. Dizia-lhe: "O bangalô está um brinco, mama. O teu quarto é o
mais espaçoso, tem um quintalzinho para os animais, as plantas, e uma
varandinha para estender a rede...".
AS CONFISSÕES DE ZANA -Agora, moravam no casarão
apenas o narrador e Zana. Ela, aos poucos, foi-lhe
confidenciando segredos que poucos sabiam. Antes de vir
para o Brasil, o nome dela era Zeina. Às vezes, delirava,
falando do filho ausente: "Por que essa demora, querido?
Por quê? Os outros já foram embora, agora só estamos nós
em casa, nós dois...".
A PERDA DA CASA -Rochiram reapareceu e fez a proposta
final: "a dívida dos dois irmãos em troca da casa de Zana. No
entanto, surpreendeu-se quando ele acrescentou: "Seu
irmão, o engenheiro, está plenamente de acordo". As coisas
foram tiradas, e a casa ficou vazia. Zana mudou-se para o
bangalô da filha, e o narrador ficou sozinho.
ADEUS TRISTE -Zana, braço engessado, voltou à casa vazia
onde restava apenas o narrador. A filha trouxe-a, pedindo a
Nael que cuidasse dela na sua ausência. Nael distraiu-se, e
Zana sumiu. Encontraram-na deitada no galinheiro, o braço
doente meio arroxeado. Foi uma luta para colocá-la num carro:
não queria abandonar a casa. "Ela chorou, como se sentisse
uma dor terrível. Nunca mais voltou. Deitou-se em outro quarto,
longe do porto, no lar que não era para ela."
MORTE DE ZANA -"Depois eu soube da hemorragia interna, e
ainda a visitei numa clínica no bairro de Rânia. Ela me
reconheceu, ficou me olhando. Então soprou nomes e palavras
em árabe que eu conhecia: a vida, Halim, meus filhos, Omar.
Notei no seu rosto o esforço, a força para murmurar uma frase
em português, como se a partir daquele momento apenas a
língua materna fosse sobreviver. Mas quando Zana procurou
minhas mãos, conseguiu balbuciar: Nael... querido...”
Capítulo 11
CASA
ROCHIRAM
-O
casarão
foi
reformado
e
descaracterizado. A noite de inauguração da Casa Rochiram
"foi uma festa de estrondo, e na rua uma fila de carros
pretos despejava políticos e militares de alta patente. Diz que
veio gente importante de Brasília e de outras cidades,
íntimos de Rochiram."
HERANÇA PARA NAEL -"No projeto da reforma, o arquiteto
deixou uma passagem lateral, um corredorzinho que conduz
aos fundos da casa. A área que me coube, pequena, colada
ao cortiço, é este quadrado no quintal. `Tua herança`,
murmurou Rânia."
PERSEGUIÇÃO A OMAR -"Rânia, aos poucos, foi
descobrindo que o irmão distante havia calculado o
momento adequado para agir. Yaqub esperou a mãe morrer.
Então, com truz de pantera, atacou." Omar tentava fugir ao
cerco da justiça e ia contraindo dívidas para a irmã pagar.
Até que sumiu de vez.
Capítulo 12
REENCONTRO COM OMAR -Depois de muitas buscas vãs,
Rânia avistou Omar na praça das Acácias. "Ficou paralisada.
Estava magro, meio amarelão, barba de uma semana, o cabelo crespo
com jeito de juba. Os braços cheios de arranhões, a testa avolumada por
calombos. Os olhos fundos e acesos davam a impressão de um ser à
deriva, mesmo sem ter perdido totalmente a vontade ou a força de
recuperar uma coisa perdida."
PRISÃO VIOLENTA -"Rânia não teve tempo de se aproximar dele.“
Ouviu estampidos, viu pessoas correrem: eram três policiais, e
logo cinco, muitos. Uma caçada. Viu o Caçula levar uma
coronhada no rosto, cair de costas e ser arrastado até a viatura.
"Rânia correu ao encontro do irmão, viu no rosto dele um fio vermelho e
grosso que a água não apagava. Discutiu com os policiais, quis saber
aonde iam levá-lo, foi repelida brutalmente. No presídio, ele passou
algumas semanas incomunicável."
A CONDENAÇÃO -"Omar foi condenado a dois anos e sete
meses de reclusão. Não podia sair, não teve direito à
liberdade condicional. "Só osso e pelanca... Meu irmão não
parece humano", contou Rânia, chorando.
ROMPIMENTO COM YAQUB -Rânia escreveu a Yaqub para
dizer-lhe o que ninguém ousara dizer. "Lembrou-lhe que a
vingança é mais patética do que o perdão. Já não se vingara
ao soterrar o sonho da mãe? Escreveu que ele, Yaqub, o
ressentido, o rejeitado, era também o mais bruto, o mais
violento, e por isso podia ser julgado. Ameaçou desprezá-lo
para sempre, queimar todas as suas fotografias e devolver
as jóias e roupas que ganhara, caso ele não
renunciasse à perseguição de Omar. Cumpriu à risca as
ameaças, porque Yaqub calculou que o silêncio seria mais
eficaz do que uma resposta escrita."
NAEL SOZINHO -O narrador afastou-se de Rânia. "Eu não
queria. Gostava dela, era atraído pelo contraste de uma mulher assim,
tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa ao mesmo
tempo. As lembranças da noite que passamos juntos, o ardor daquele
encontro ainda me davam arrepios. Mas ela se ressentiu de mim,
ofendeu-se com a minha omissão, com o meu desprezo pelo irmão
encarcerado. No fundo, sabia o que eu remoía, o que me comia por
dentro. Devia ter conhecimento do que Omar fizera com a minha mãe, de
todos os agravos a nós dois. Parei de trabalhar com ela, nunca mais
escrevi cartas comerciais, nem saí correndo para limpar boca-de-lobo,
empilhar caixas, vender coisas de porta em porta. Me distanciei do
mundo das mercadorias, que não era o meu, nunca tinha sido."
OMAR LIVRE -"Omar deixou o presídio um pouco antes de cumprir a
pena. Saiu à custa dos níqueis acumulados por Rânia. Talib o encontrou
uma vez, e diz que só falava na mãe. Chorou, com desespero, quando o
viúvo quis acompanhá-lo até o cemitério para visitar o túmulo de Zana."
TENTATIVAS INÚTEIS - Rânia fez de tudo para se aproximar
de Omar, mas ele fugia da irmã e de todos os vizinhos.
"Durante uns meses ainda foi visto aqui e ali, perambulando à noite pela
cidade. Os malabarismos que Rânia fez para enviar-lhe dinheiro,
tentando atraí-lo, reconquistá-lo. Sonhava com a presença do irmão em
sua casa, o quarto onde a mãe dormira seria destinado a ele."
AS CARTAS DE YAQUB PARA NAEL -As cartas de Yaqub
nunca falavam de Omar e de Rânia. Cobravam a visita de
Nael a São Paulo. "Por mais de vinte anos adiei a visita. Não quis ver
o mar tão prometido. Lembrava -ainda me lembro -dos poucos
momentos em que eu e Yaqub estivemos juntos, da presença dele no
meu quarto, quando adoeci. Mas bem antes de sua morte, há uns cinco
ou seis anos, a vontade de me distanciar dos dois irmãos foi muito mais
forte do que essas lembranças."
PATERNIDADE -"Hoje, penso: sou e não sou filho de Yaqub, e talvez
ele tenha compartilhado comigo essa dúvida. O que Halim havia
desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos.
Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos
pertencem a nós mesmos."
ÚLTIMO ENCONTRO -Depois que Omar saiu do presídio,
houve um último encontro entre ele e Nael, o narrador. O
Caçula foi procurá-lo no quartinho, o mesmo quarto dos
fundos da casa de outrora. "Omar veio avançando, os pés
descalços no aguaçal. Um homem de meia-idade, o Caçula. E já quase
velho. Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse a
desonra, a humilhação. Uma palavra bastava, uma só. O perdão." "Omar
titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar
cortando a chuva e a janela, para além de qualquer ângulo ou ponto fixo.
Era um olhar à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi
embora."
ESTUDO DA OBRA
Dois Irmãos, romance de Milton Hatoum, narra história de
ódio familiar.
Escrito em estilo enxuto e ao mesmo tempo repleto de
sutilezas, a obra vale-se das frases curtas, ligeiras, com
pouca fantasia ou adjetivação, imprimindo clareza e
sobriedade. O vocabulário é comum, condizendo com a
literatura contemporânea. Isso garante inteira identidade
entre o autor e o leitor.
ESCOLA LITERÁRIA: LITERATURA CONTEMPORÂNEA Dois irmãos foi publicado em 2000; pertence, pois, ao
Modernismo brasileiro. É obra da literatura contemporânea,
do Pós-Modernismo como querem alguns, seguindo a linha
da literatura que valoriza a linguagem simples, mas com
elevado grau de arte e de correção gramatical.
O ROMANCE MODERNO EM DOIS IRMÃOS (literatura contemporânea)
Romance memorialístico: o tempo sustenta a narração,
com suas idas e vindas cronológicas. Uma narrativa
dramática que está sempre a anunciar a tragédia que virá e
o anúncio do segredo que tanto atormenta Nael: a
identidade paterna.
Busca do pai/ da identidade (característica da literatura contemporânea)
Através das lembranças deste narrador-testemunha, sem
nome (só no capítulo 9 é que se revela esse nome), com
raízes incertas, sem pai, tentando ajuntar os retalhos de
outras histórias para chegar a sua, busca-se definir uma
identidade onde já não restam muitas coisas: estão quase
todos mortos.
Através da epígrafe da obra já antevemos um futuro nada
glorioso, o retrato de um mundo degradado: Domingas era “a
cunhatã mirrada, meio escrava, meio ama”, “louca para ser
livre”. Nunca teve coragem de ser livre, enfeitiçada pela família e
pelos gêmeos. A relação com Yaqub foi mais forte, um amor
maternal, se preocupava com ele, mas sofria com os
desamparos de Omar.
Um pouco antes da morte, Domingas revelou que foi violentada
por Omar: “ com o Omar eu não queria.. uma noite ele entrou no
meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... Ele
me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão”
(p.180)
Com Omar ela não queria, e com Yaqub? Sim. Mas nunca fica
claro se algum contato com Yaqub aconteceu. Domingas acaba
sendo enterrada no jazigo da família por desejo do filho.
PERSONAGENS:
Os personagens masculinos emergem quase como
dependentes do clã feminino, no sentido de parecerem
mais frágeis que estes personagens: Halim, que sem as
atenções de Zana perde o ânimo; Omar, que sempre foi
cercado do amor materno e dependente financeiramente,
e Yaqub, que é marcado pela preferência da mãe pelo
Caçula. Mas, mesmo as figuras femininas sendo dotadas
de mais força, estão à mercê dos conflitos entre os
irmãos. Com o diferencial de Nael, o narrador, que se
mostra dependente apenas de sua dúvida.
As personagens criadas por Milton Hatoum, em Dois
irmãos, são todas PLANAS, LINEARES ou estereotipadas,
isto é, não evoluem psicologicamente nem mudam de
caráter ou de personalidade.
GALERIA - Vamos à galeria de personagens do livro com suas
respectivas características e/ou atuação:
Zana -Mãe dos gêmeos Yaqub e Omar; esposa de Halim. O
romance começa com a descrição da morte de Zana. Era filha
de Galib, dono do restaurante Biblos. À medida que a história
evolui, ela vai-se mostrando dominadora, moldando o destino
do marido e dos filhos.
Halim -Pai dos gêmeos Yaqub e Omar; esposo de Zana. Quando
jovem, era mascate nas ruas de Manaus. Melhorou de vida ao
casar-se com Zana. Aos poucos, foi perdendo o amor da esposa
para o Caçula (Omar), o gêmeo que nasceu logo depois de
Yaqub.
Yaqub -É um dos heróis da história. Rapaz vistoso e alto, rosto
anguloso, olhos castanhos e graúdos, cabelo ondulado e preto.
Aos treze anos, foi mandado para o sul do Líbano, tentativa dos
pais de separá-lo de Omar, seu irmão gêmeo. Voltou para o
Brasil, tornou-se engenheiro e casou-se com Lívia.
Omar -O outro herói da história. Tem os mesmos traços físicos
do irmão, mas caráter e comportamento opostos. Desde
criança, mostrava-se mais arrojado e corajoso. Com o excesso
de proteção da mãe, tornou-se vadio e arqui-rival do pai e do
irmão gêmeo. Lívia -Moça que provocou a primeira briga séria
entre os gêmeos. Por causa dela, Omar cortou a face de Yaqub
com uma garrafa quebrada. Lívia foi embora para São Paulo e,
às escondidas, casou-se com Yaqub.
Galib -Pai de Zana. Tinha um restaurante no térreo da própria
casa. Quando a filha se casou com Halim, voltou para o Líbano
e lá morreu.
Abbas -Poeta boêmio que ajudou Halim, por meio de versos, a
conquistar Zana.
Domingas -Órfã que veio do interior trazida por uma freira.
Enfrentou dois anos de orfanato. Depois, foi morar na casa de
Halim e Zana, tornando-se empregada. Mãe de Nael, o narrador
da história. O próprio narrador diz que Domingas não teve a
liberdade de escolher nada na vida.
Irmã Damasceno -Alta, carrancuda, toda de preto, palmatória
na mão, amedrontava a todos no orfanato. Foi quem doou
Domingas ao casal Halim e Zana.
Estelita -Estilista rica, vizinha de Halim, esposa de Abelardo.
Devez em quando, batia no marido por causa da irmã dela.
Atazanava a vida do narrador, arranjando coisas para ele
fazer, embora tivesse um batalhão de serventes.
Abelardo -Esposo de Estelita. Quando era castigado pela
esposa,ficava no aposento dos macacos, fora de casa.
Talib -Vizinho e amigo de Halim e Zana. Tinha duas filhas
muito bonitas: Zahia e Nahda. Quando era flagrado em cenas
libidinosas com alguma caboclinha, apanhava das filhas.
Dália -Dançarina que conquistou o coração de Omar. Zana,
por intermédio do narrador, fez que ela desaparecesse.
Zanuri -Ganhava dinheiro para vigiar e delatar casais
apaixonados. Trabalhou para Zana, vigiando Omar.
Adamor, o Perna-de-Sapo -Tinha faro especial para encontrar
coisas (e pessoas) perdidas. Foi quem localizou Omar
quando este sumiu com a Pau-Mulato.
Pau-Mulato -Mulher alta, forte, bem escura, por quem Omar
se apaixonou e com quem fugiu de casa. O romance foi
desfeito por Zana, e o Caçula voltou a ser mimado pela mãe e
pela irmã.
Prof. Antenor Laval -Professor de Francês no Liceu Rui
Barbosa (Galinheiro dos Vândalos). Foi preso em praça
pública pelos soldados do Exército e morto dois dias depois.
Além de professor, era poeta e crítico ferrenho da política.
Nael -Narrador-personagem. Filho de Domingas, empregada
da família. O nome aparece quase no fim da história. Ele
próprio não tem certeza, mas tudo indica que o pai dele é
Yaqub.
Bolislau - Professor do colégio dos padres que Omar agrediu
com um soco no queixo e um chute no saco.
TEMÁTICA
CASA DEMOLIDA - O tema principal do romance é o drama
familiar demolindo as vidas e, por consequência, o lar. O
enredo é centrado na história de dois irmãos gêmeos Yaqub e Omar - e suas relações com a mãe, o pai e a irmã.
Moram na mesma casa Domingas, empregada da família, e
o filho dela (que, mais tarde, se torna o narrador), um
menino cuja infância é moldada justamente por esta
condição: ser o filho da empregada.
AMOR INCESTUOSO -Apesar de não está escrito com
todas as letras, deduz-se que o amor doentio da mãe
(Zana) pelo filho mais novo (Omar) tem muito de incesto:
ela o quer só para si, ignorando, a partir de certo
momento, a relação com o próprio marido. Na mesma
linha, classifica-se o amor de Rânia pelos irmãos gêmeos.
FOCO NARRATIVO
NARRADOR-PERSONAGEM- A história é narrada na
primeira pessoa, mas o narrador não é o herói principal.
Nael (o nome só é revelado quase no fim da história) valeuse do que viu, do que ouviu e, principalmente, do que lhe
contaram sobre a família de que fez parte. A função do
narrador é olhar para o passado e tentar juntar pedaços do
que lhe foram contando até formar a história como um
todo.
Novamente tomando como base de análise a figura do
narrador, é preciso salientar que além de um narrador
próximo da família, o modo pelo qual ele se utiliza para
contar a história assume grande importância, tanto que é
justamente um dos tópicos mais explorados acerca de
Hatoum: a memória.
Faz uso das memórias de outros personagens ao retratar
suas vidas, como o episódio do casamento de Halim e as
origens de sua mãe: “a mãe dela... Domingas não se
lembrava, mas o pai dizia: tua mãe nasceu em Santa
Isabel, era bonita, dava risadas alegres” (HATOUM, 2006,
p.55).
ESPAÇO (AMBIENTE - CENÁRIO)
Milton Hatoum aborda os vários conflitos familiares, tais
como o confronto entre pai e filho, a figura materna como
o símbolo de acolhimento e ternura, a figura da irmã
solitária e abandonada, além de fazer um retrato
representativo de suas memórias pessoais da infância em
Manaus e um belo retrato das tradições amazonenses no
pós-guerra.
A partir desse pressuposto, é necessário dividir a
questões em dois pontos:
* a análise da casa (microcosmo) como cenário importante
para o desenvolvimento do enredo e de todos os conflitos
psicológicos e familiares das personagens e a forma como
o autor retrata o espaço da cidade de Manaus
(macrocosmo), suas ruas, assim como a presença
constante do rio Amazonas na obra.
* No segundo momento, será observada a relação das
personagens com o ambiente externo, a Manaus do pósguerra e suas transformações (macrocosmo). Não
podemos esquecer o fato de as personagens do núcleo
familiar central da trama serem imigrantes libaneses, que
tentam melhorar de vida durante o ciclo da borracha em
Manaus, durante o final do século 19. Estes personagens,
ao mesmo tempo que tentam valorizar a sua cultura, sua
tradição, sua religião, deparam-se com um novo universo,
um mundo degradante, selvagem, exótico, fazendo com
que a memória e a referência ao exílio, aos países de
origem e ao isolamento sejam constantes nos relatos das
personagens da obra, principalmente por parte de Zana e
Halim.
Outro elemento reincidente dentro do espaço manauara da
obra de Hatoum que não pode deixar de ser analisado é a
presença constante do rio Amazonas como uma espécie
de personagem atuante dentro do enredo. O rio Amazonas
aparece representativamente durante as descrições de
todo o ambiente e de todo o progresso social e econômico
de Manaus. Este fato está reforçado, principalmente, no
momento em que Omar mostra-se desiludido com a
instituição família. O filho, em uma espécie de histeria,
foge ao longo do rio já mencionado, dando, assim, um
novo rumo à trama, reiterando ainda mais o declínio da
casa de Zana e Halim.
Há uma forte simbologia do rio Amazonas, representando
a fonte da vida, o fluir de tudo, a mudança de ciclos, muito
presente dentro da obra. Como é perceptível, o lado
psicológico, a memória, o tempo estão plenamente
subordinados aos espaços da obra.
MANAUS - O cenário principal do livro é a cidade de Manaus,
valorizando o porto dos Remédios, o Centro, os bairros e as praças
mais antigos, com especial destaque para as atividades do comércio.
LÍBANO - O autor faz referência ao sul do Líbano, de onde provieram
os chefes de família e para onde foi Yaqub contra sua vontade.
SÃO PAULO - A cidade de São Paulo também é cenário de referência:
lá, Yakub formou-se em Engenharia, constituiu família e fixou
residência.
Na medida em que a cidade de Manaus vai assumindo
contornos novos, os personagens também se veem
envolvidos nessa mudança, que os atinge e influencia no
seu caráter, como na passagem em que as tias de Dália,
um dos casos de Omar, acabam aceitando dinheiro
enviado por Zana em troca de informações, pois “as
encomendas de doces e vestidos rareavam àquela época.
A outra extremidade do Brasil crescia vertiginosamente,
como Yaqub queria. No marasmo de Manaus, dinheiro
dado era maná enviado do céu” (HATOUM, 2006, p.78).
INTERTEXTUALIDADE
O diálogo com o presente e o passado fez-nos resgatar
histórias bíblicas, histórias clássicas e contemporâneas
para mostrar que seus temas são tão antigos, como atuais,
eternos como a própria impossibilidade de harmonia
terrena.
A história da família de Dois Irmãos intertextualiza,
inicialmente, a de duas famílias bíblicas: a de Adão e Eva e
a de Isaac e Rebeca, ambas extraídas do Gênesis, livro
primeiro da Bíblia Sagrada. A primeira história de
rivalidade entre irmãos se dá com Caim e Abel. Caim, o
irmão mais velho, é lavrador; Abel é pastor de ovelhas. O
despeito entre um e outro se dá quando Deus não aceita a
oferta de Caim, que Lhe oferece produtos de sua lavoura e
aceita a de Abel que lhe oferece uma ovelhinha.
Já Esaú e Jacó, filhos de Isaac e Rebeca nascem a pedido
do pai que clama a Deus a dádiva dos filhos, já que a
esposa era estéril. Ainda na barriga, as duas crianças
brigam e Rebeca tem a revelação, pela boca de Javé, de
que eles representam a briga entre duas nações que se
separam em suas entranhas. Um povo vencerá o outro, e o
mais velho servirá ao mais novo. Esaú se tornou um
caçador e Jacó preferia a tranquilidade, vivendo sob
tendas. Isaac se identificava com Esaú; Rebeca preferia
Jacó. Jacó ambicionava ser o primogênito, direito que
dava a Esaú, como o primeiro a sair da barriga da mãe, ter
a autoridade patriarcal sobre os irmãos. Esaú, voltando do
campo esgotado de fome, só recebe a comida de Jacó
quando lhe concede o direito à primogenitura.
Zana parece a recriação de Rebeca que, ao privilegiar o filho
Jacó, em detrimento do outro filho, Esaú, faze-os inimigos
irreconciliáveis. Quando Zana escolhe mandar Yakub para o
Líbano e fica com Omar, só acentua a rivalidade entre os
dois.
Já o romance Esaú e Jacó, Machado de Assis deixa clara, a
partir do título, a intertextualidade com o Gênesis, quando já
carrega no próprio título o nome dos gêmeos bíblicos.
Pedro e Paulo, filhos tão desejados como os de Isaac e
Rebeca, são também gêmeos, têm personalidades
diferentes e desenvolvem, desde cedo, uma rivalidade sem
explicação. Quando Natividade vai à ´Cabocla´ para saber
sobre o destino deles, ela pergunta se eles brigaram em seu
ventre. A mãe então lembra que não teve uma gestação
sossegada, tinha movimentos extraordinários, repetidos, e
dores, e insônias...
Segundo o narrador, o Conselheiro Aires, os dois irmãos
representavam os dois lados da verdade. Paulo é
extremamente impulsivo, age sempre de forma arrebatada;
já Pedro é dissimulado e tem uma mente conservadora.
Quando se tornam adultos, assumem posições políticas
diferentes: Paulo é republicano e Pedro monarquista. A
mãe e o pai sofrem com a constante competição, mas não
conseguem aplacar o desejo que um tem de contrariar o
outro. Os dois se apaixonam pela mesma mulher, uma
moça retraída, simples, de nome Flora. Ela, não
conseguindo encontrar em um só deles a completude do
seu desejo, deixa entrever que um completaria o outro. Na
impossibilidade de ter os dois, ela morre. Eles juram
reconciliação junto ao túmulo dela, mas, ao elegerem-se
deputados, continuam a brigar na tribuna. Novo juramento
de paz é feito no leito de morte da mãe.
Zana igualmente sonhou morrer vendo os filhos, Yakub e
Omar, reconciliados; sua última tentativa de uni-los no projeto
do Hotel a ser construído em Manaus, resultou no estopim da
intriga: Yakub exclui o irmão, e este, revoltado, o agride
fisicamente. Após a morte da mãe, Yakub vinga-se das
agressões que recebeu, mandando-o para a prisão. Na
verdade, vinga-se de toda uma vida de preterição por parte da
mãe. Halim sentia a possibilidade de um desfecho trágico e
advertia a mulher: Dá um pouco de atenção ao outro filho. Faz
anos que não vemos o Yakub (113). Zana morreu aflita,
perguntado: meus filhos já fizeram as pazes? (p.12). Como
Esaú e Jacó, os dois também nasceram perdidos (P.237). Como
Caim e Abel, eles ficaram vulneráveis ao desejo de que um não
vivesse; numa carta à mãe, Yakub escreve Oxalá seja resolvido
com civilidade; se houver violência, será uma cena bíblica
(p.228). Não há assassinato, é certo, mas há violência e plano
sórdido de vingança. Há destruição de vidas pelo ódio.
A menção de Hatoum a Esaú e Jacó ultrapassa, contudo, o
âmbito da escolha temática. O autor manauara também
acompanha Machado na crítica que este faz à história do
nosso país e na forma como esta crítica é enunciada, por
meio da criação de alegorias para o Brasil e para os
antagonismos que o dividem. Porém, se Machado trabalha
alegoricamente a passagem da Monarquia para a
República, Hatoum focaliza um outro acontecimento
político, pertencente ao seu tempo: o regime militar
instaurado em 1964.
REGIONALISMO
Milton Hatoum, em entrevista ao Jornal Folha de S. Paulo,
faz a seguinte afirmação em relação ao regionalismo
literário: A literatura regionalista esgotou-se há muito
tempo. O regionalismo é uma visão muito estreita da
geografia do lugar, da linguagem. É uma camisa de força
que encerra valores locais. Minha ideia é penetrar em
questões locais, em dramas familiares, e dar um alcance
universal para eles. (2005, p. 12)
Hatoum parece refletir sobre o regionalismo na literatura
brasileira na época em que este era associado à falta de
universalidade, ou seja, na fase de pré-consciência de
atraso. Entretanto, Dois irmãos configura-se como uma
obra universal, mas sem deixar de ser regionalista, já que
Hatoum consegue situar o drama familiar narrado na cidade
de Manaus e, dessa forma, consegue aproximar o leitor
(independentemente de sua naturalidade) do mundo
amazonense.
Esse regionalismo revisitado de Hatoum consiste, portanto,
numa mescla de elementos que brotam de todos os matizes
de uma matéria dada por uma região específica, com outros
advindos de matrizes narrativas de inspiração europeia e
urbana, formadoras da nossa literatura, tudo filtrado por um
olhar que contém horizontes perdidos num certo oriente e
num outro tempo. Com isso, o autor revitaliza o gênero,
num momento da história da ficção brasileira em que ele
parecia aos poucos estar se esgotando. (2004, p. 129)
Dessa forma, observa-se que o regionalismo, apesar de ser
ter sido considerado por muitos como uma tendência morta
e redutiva da literatura, reaparece, contemporaneamente na
obra Dois irmãos. Hatoum trabalha o regionalismo de
maneira própria e coloca a cidade de Manaus e suas
particularidades como cenário onde acontecem os fatos
narrados.
Hatoum contribui para a quebra do mito de que a obra
regionalista é algo pasteurizado e redutivo. Dessa maneira,
apesar de ter recorrido à intertextualidade, ou seja, de ter
escrito uma história acerca do difícil relacionamento entre
gêmeos, tema já antes explorado em outras narrativas
clássicas, consegue inovar e compor uma narrativa
interessante situando-a em sua terra natal, a qual o autor
tem toda propriedade para abordar.
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dois irmãos - slide aula