IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
A EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA VIOLÊNCIA
SEXUAL INFANTO-JUVENIL
Flávio Corsini Lirio
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
A Educação no Contexto da Violência Sexual Infanto-Juvenil
A EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTOJUVENIL
Flávio Corsini Lirio
RESUMO: O texto apresentado tem como objetivo discutir a inserção da educação no
contexto da violência sexual contra criança e adolescente através da reflexão de
questões relativas ao currículo. Ele é fruto de uma pesquisa bibliográfica que reúne
estudiosos do fenômeno da violência sexual infanto-juvenil e estudiosos da área de
educação. A idéia é descrever algumas categorias conceituais discutidas por estes dois
blocos de pesquisadores e buscar as questões pertinentes aos dois objetos de estudos.
Categorias de análise como violência doméstica infanto-juvenil; exploração sexual;
abuso sexual; educação neoliberal; currículo, entre outras, são as bases para uma
reflexão crítica acerca do fenômeno da VSIJ e a participação da educação no
enfrentamento. O detalhamento por parte dos estudiosos aponta para uma fragilidade da
educação nesse contexto. A proposta é promover uma reflexão aproximando a temática
da VSIJ e as teorias da educação com ênfase na questão curricular com destaque para a
concepção de uma proposta curricular que tem como objetivo romper com a uma
formação “bancária” e estabelecer uma formação cidadã por meio de um “projeto
curricular emancipador”.
PALAVRAS-CHAVE: Educação – Violência Sexual – Criança e Adolescente.
A violência sexual infanto-juvenil (VSIJ) é considerada uma das piores formas
de sofrimento vivido pela infância e juventude na contemporaneidade. Apesar dos
Parâmetros Curriculares Nacionais de 1996 que estabelece a sexualidade como temática
transversal a discussão via currículo sobre VSIJ não é comum, como tem sido comum a
ocorrência deste fenômeno com crianças e adolescentes entre sete e quatorze anos de
idade, revelado pelos dados de atendimento do Centro de Referência Especializado –
CREAS. Santomé (1998, p. 131) aponta que em relação ao currículo o que há são às
“vozes ausentes na seleção da cultura escolar.”
O diálogo é proposto a partir de uma pesquisa bibliográfica que envolve
questões pertinentes ao fenômeno da VSIJ trabalhadas por pesquisadores como: Leal
(2007), Ferrari (2002), Azevedo (1995) e questões relativas à educação/currículo
apresentadas por autores como: Santomé (1998); Saviani (2007); Pacheco (2006); Melo
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A Educação no Contexto da Violência Sexual Infanto-Juvenil
(2007) entre outros. A articulação entre essas duas questões é o que será apresentado ao
longo do texto.
Pesquisas no campo da educação que tem como objeto de estudo as instituições
escolares afirmam que o seu papel e consequentemente dos docentes tem se tornado
cada vez mais complexo. Pois, o volume de responsabilidades transferidas para a escola
é crescente. Santomé (1998, p. 129) aponta que “o processo de intensificação ao qual
está sujeito o papel docente [...] Aumentam cada vez mais as finalidades educacionais
que a sociedade pretende deixar a cargo da instituição escolar.” É o que se constata no
caso da VSIJ em que o Estatuto das Crianças e Adolescentes, aprovado em 1990,
determina responsabilidade e obrigatoriedade específicas para a área da saúde e
educação quanto à identificação e notificação de suspeita de casos.
A VSIJ com destaque para a questão do abuso sexual é uma problemática
mundial comum a todas as sociedades e presente em todas as classes sociais 1. Sua
concepção é complexa e tem implicações de gênero, poder, cultura, entre outras. Alguns
estudos creditam à VSIJ como uma questão de saúde pública. Um levantamento prévio 2
de dissertações e teses sobre o assunto aponta para uma concentração das pesquisas na
área de saúde e assistência social e pouca coisa produzida na área de educação.
O texto será entremeado por questões relacionadas à educação – o seu papel e as
suas limitações relativas à VSIJ – a partir de uma perspectiva crítica 3 questionando a
educação liberal que para Meszáros (2005, p. 35) serviu apenas para: “nos últimos 150
anos, serviu – no seu todo – ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o
pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como
também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes
[...]”. A idéia é apresentar algumas questões sobre a VSIJ e em seguida algumas
questões pertinentes à educação com ênfase no currículo e ao final buscar algumas
considerações que possam suscitar outras questões além de demarcar uma análise crítica
do fenômeno da VSIJ e a educação.
1
Ver Saviani, 2007, p. 247
2
Banco de teses e dissertações da Capes. Disponível em: http://servicos.capes.gov.br/capesdw
3
Utilização de referenciais marxistas.
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A Educação no Contexto da Violência Sexual Infanto-Juvenil
A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Chauí (1998, p.33) considera violência: “tudo o que age usando a força para ir
contra a natureza de algum ser (desnaturar) [...] é um ato de brutalidade, sevícia e abuso
físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza as relações intersubjetivas e sociais
definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror”.
Através dessa concepção básica de violência é que passo as especificidades
sobre a VSIJ. Uma discussão de fundo acerca da VSIJ é a definição e distinção entre
exploração sexual e abuso sexual. Estudiosos da temática como Leal (2007); Ferrari
(2002); Azevedo (1995) destacam a importância desse demarcatório conceitual que
marca inclusive uma diferenciação crucial na elaboração e execução de ações públicas
de enfrentamento e/ou de atendimento às vítimas e demais envolvidos.
De Antoni & Koller (2002) e Azambuja (2004) caracterizam o abuso sexual
infanto-juvenil como atos de natureza sexual impostos a uma criança ou adolescente por
um adulto que explora o seu poder hierarquicamente superior. Também enfocam a idéia
de um “jogo” em que um adulto se aproveita de uma criança ou adolescente para obter
satisfação sexual, para si, ou para outra pessoa, visando à obtenção de algo em troca
(lucro). É nesse aspecto da satisfação sexual para si e da lucratividade com a prática
sexual de outrem (nesse caso crianças e adolescentes) que se estabelece a diferença
entre o abuso sexual e a exploração sexual cometido contra crianças e adolescentes.
Enquanto o abuso sexual infanto-juvenil se caracteriza principalmente pela
imposição da autoridade (seja ela física, familiar, financeira) que o adulto, ou mesmo
um adolescente exerce sobre a vítima (criança ou adolescente) para obter a satisfação
sexual para si, no caso da exploração sexual o abuso ocorre podendo ter a satisfação
sexual pessoal, mas o objeto é a obtenção de lucro por meio do uso/exploração sexual
do outro. Para Taquette (2007, p. 59) a exploração sexual é:
[...] algum tipo de transação comercial ou alguma troca e/ou benefício em
dinheiro, ofertas ou bens por intermédio da exploração sexual de menores de
18 anos. Ocorre uma relação de mercantilização e abuso de poder do corpo
de crianças e adolescentes por exploradores sexuais (mercadores)
organizados em redes de comercialização local ou global (mercado) e por
consumidores de serviços sexuais pagos (demanda).
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A Educação no Contexto da Violência Sexual Infanto-Juvenil
Uma das formas de exploração sexual é o tráfico de pessoas com fins sexual
comercial que Leal (2007, p. 18) defini como:
No tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, o valor de uso da
mercadoria se baseia na qualidade, na utilidade e na necessidade do
consumidor e do próprio mercado, e neste caso, trata-se do prazer
proporcionado por meio dos serviços sexuais, elementos que determinam a
demanda crescente por este comércio de sexo em nível transnacional.
Ela continua sua análise crítica do fenômeno da violência sexual tentando situar
de forma particular o tráfico de pessoas com fins sexual comercial e as bases
ideológicas que o sustentam. Para situar o seu esforço Leal busca na análise de Marx
sobre a sociedade capitalista a compreensão da gênese do tráfico de pessoas. Segundo
ela:
(...) na fonte marxiana que respalda a crítica da sociedade do capital,
poderíamos inferir a seguinte questão: quando a mulher é traficada para fins
de exploração sexual é uma mercadoria para o seu traficante, como é a
maconha para o traficante de drogas. Ao contrário da maconha, não é
consumida toda de uma vez, por isso trabalha para aquele que a adquire,
tornando-se força de trabalho. (p. 19)
Essa reflexão nos permite perceber a lógica perversa do capital que “coisifica” o
humano, torna o corpo um objeto de troca, uma mercadoria. O corpo é à força de
trabalho4 e ao mesmo tempo o meio de produção. O patrão, ou patroa é dono/a do meio
de produção (uma pessoa que tem como a sua força de trabalho – o corpo) e o produto
de seu trabalho que é a prática sexual. Quando se trata de pessoa adulta a exploração
sexual ocorre quando a pessoa é obrigada a desempenhar tal atividade e no caso de
criança e adolescente é considerado criminoso independente da vontade da vítima, por
ser considerada uma prática danosa à criança e ao adolescente pela condição peculiar de
desenvolvimento físico e intelectual.
A VSIJ é uma das formas de expressão da violência doméstica infanto-juvenil.
Dados de atendimento dos Centros de Referência Especializado de Atendimento a
Vítimas de Violência Sexual – CREAS - Boa Vista-RR e Belém-PA apontam que a
maioria dos crimes de VSIJ ocorrem no âmbito doméstico e por pessoas da família (pai,
padrastos, tios). Azevedo (1995, p. 36) defini violência doméstica infanto-juvenil como:
4
Esforço físico (intelectual ou manual) que o trabalhador imprime para produzir algo.
Flávio Corsini Lírio
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A Educação no Contexto da Violência Sexual Infanto-Juvenil
Todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis, contra
crianças e adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e ou
psicológico à vítima – implica de um lado uma transgressão do poder/dever
de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma
negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como
sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.
Outra questão importante a ser pensada são as formas de ocorrência da VSIJ que
para Ferrari (2002, p. 84) a VSIJ se caracteriza a partir de três ações básicas:
- Não envolvendo contato físico: abuso verbal, telefonemas obscenos,
vídeos/filmes obscenos, voyeurismo.
- Envolvendo contato físico: atos fiscos-genitais que incluem passar a mão,
coito (ou tentativa de), manipulação de genitais, contato oral-genital e uso
sexual do ânus; pornografia, prostituição infantil (ou seja, exploração sexual
da criança para fins econômicos) e incesto (enquanto atividade sexual entre
criança e seus parentes mais próximos, tanto de sangue quanto de afinidade).
- Envolvendo contato físico com violência: estupro, brutalização e assassinato
(crianças emasculadas) – no qual estão presentes a força, ameaça ou
intimidação.
Todas as formas de maus-tratos à criança e ao adolescente são consideradas
crimes e estão previstas na legislação brasileira. A Constituição Federal – CF/1988 e o
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8069/1990) prevê as
responsabilidades dos agentes de violência contra crianças e adolescentes e da
sociedade como um todo, respectivamente no Caput do Artigo 227 e em seu §4º da CF e
no Artigo 5º do ECA:
Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direto à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
§4º : A lei punirá severamente o abuso,a violência e a exploração sexual da
criança e do adolescente. (Brasil, 1988, p. 107-108)
Art. 5º – Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,
punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais. (Brasil, 2001, p. 16)
Ferrari (2002, p. 46-49) faz um balanço de como crianças e adolescentes são
tratadas desde a antiguidade. Como sujeitos de direitos é uma realidade recente. No
Brasil essa condição foi alcançada a partir da Constituição de 1988 e o ECA/1990.
Flávio Corsini Lírio
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A Educação no Contexto da Violência Sexual Infanto-Juvenil
Na época dos fenícios, em Tiro e Sidron, moravitas e amonitas sacrificavam
crianças para acalmar os deuses.
A matança na China chegou quase aos nossos dias.
Em alguns povos pagãos iniciou-se um movimento de piedade pelas crianças,
porém a verdadeira obra de redenção se deve ao Cristianismo:
- A condenação do infanticídio e do aborto por Santo Barnabé. [...]
- Justiniano – em 530, deu liberdade aos enjeitados e ordenou que fossem
educados com fundos públicos. [...]
- Brasil – desde os primeiros momentos da colonização, na então colônia
de Santa Cruz, observa-se a tentativa de adestramento físico e mental a
que foram submetidas as crianças indígenas pelos jesuítas. [...] Na Bahia,
nos mesmo período, a Lei do Ventre Livre modificava as relações
parentais e o destino das crianças filhas de escravos. [...]
- Século XX – A legislação espanhola neste século evolui muito com a
lei de 1904 de Proteção à Infância. No Brasil, nota-se a presença de
crianças no trabalho fabril, sofrendo acidentes e distantes de qualquer
proteção da lei.
Este relato de Ferrari sintetiza algumas situações de tratamento da infância ao
longo da história. Também segundo ela a questão do abuso sexual contra crianças e
adolescentes começou a ser tratada a partir da década de 1960 quando um número
expressivo de casos começaram a chegar ao serviço de pediatria nos Estados Unidos.
Essas lesões não foram consideradas acidentais. Em 1962 foi realizado o Simpósio
sobre o Abuso Infantil quando apresentaram a “síndrome da criança maltratada5”. No
Brasil o reconhecimento oficial da problemática da VSIJ ocorre no início do século
XXI, quando em 2000 foi elaborado o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência
Sexual.
A EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTOJUVENIL
Um levantamento realizado na cidade de Boa Vista-RR em 2006 com
profissionais da educação sobre a participação da escola no enfrentamento à VSIJ 6, que
culminou com a realização de atividades voltadas para formação de educadores e
demais membros da rede da infância e juventude sobre a temática, apontou que os
profissionais da educação possuem dificuldades em detectar, encaminhar e tratar o
fenômeno da VSIJ no ambiente escolar.
5
6
Ver Ferrari (2002, p. 50).
Relatório técnico do Projeto Escola que Protege – MEC (2007).
Flávio Corsini Lírio
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A Educação no Contexto da Violência Sexual Infanto-Juvenil
Os dados apresentados pelo CREAS-Belém indicam que a maioria dos registros
de casos de VSIJ são feitos pela família e com pouca incidência, ou participação da
escola no processo de rompimento do ciclo de VISJ. Miranda & Yunes (2007, p. 168)
afirmam que:
A denúncia ou notificação de uma situação de abuso sexual em qualquer
contexto requer ações e intervenções interdisciplinares que não dependem,
em sua eficácia, de atitudes isoladas. É preciso haver comunicação e
colaboração entre um conjunto de segmentos que compõe a rede de apoio
social de crianças, adolescentes e famílias. Entretanto, há que se considerar
uma etapa prioritária neste processo que envolve a participação de pessoaschave, que devem estar preparadas para identificar, reconhecer e
compreender os indícios da existência de uma situação abusiva. Isso
pressupõe um conhecimento específico que raramente é tratado nos cursos de
graduação das diferentes áreas das ciências humanas e sociais nas
Universidades (Almeida, 1998) e, tampouco, integra a formação de
professores nos cursos de magistério.
Esses apontamentos acima corroboram a situação de fragilidade da educação no
enfrentamento à VSIJ. Que se expressa também na discussão curricular, pois segundo
Santomé (1998, p. 130) muitas “propostas de escolarização” estão vinculadas a um
modelo “fordista” que trata a escola como espaço fabril “os estudantes ficam
permanentemente em suas carteiras e pela sua frente vão passando disciplinas e
professores a um ritmo determinado [...] o menos importante é o sentido, utilidade e
domínio real daquilo que devem aprender”.
As políticas educacionais no final do século XX na análise de Melo (2007, p.
190) conservam essa perspectiva à medida que:
Na ótica do capital, o binômio industrialismo/democracia se traduz na
necessidade de sua reprodução ampliada e na manutenção das relações
sociais de produção. Assim, o capital requer da escola a formação de técnicos
e de dirigentes voltados para a produção por ele controlada. Requer
igualmente a construção de referências comuns no que se refere a sistemas de
valores de conduta, dentro da lógica utilitarista da sociedade capitalista. A
socialização do saber para o capital é uma decorrência do processo de
intensificação de racionalização do trabalho, e a abrangência dos sistemas
educacionais está condicionada ao nível de produtividade do trabalho
exigido.
Melo continua sua análise em relação ao caso brasileiro que na década de 1990
implementou as reformas educacionais com o intuito de consolidar a política
Flávio Corsini Lírio
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A Educação no Contexto da Violência Sexual Infanto-Juvenil
educacional neoliberal7 que tem como reflexo “uma dissociação cada vez mais profunda
entre uma educação voltada para a cidadania e a formação científico-tecnológica
voltada para o trabalho.” (p. 191)
A fragilidade do setor educacional no enfrentamento à VSIJ não esta restrita à
formação dos profissionais da educação. Como vimos anteriormente ela tem um
enraizamento na concepção e finalidade da educação que tem como prioridade absoluta
a perpetuação do modelo capitalista. Portanto, como afirma Saviani (2007, p. 241)
“todos os problemas que enfrentamos na situação atual são problemas do capitalismo.”
Os estudos curriculares apontam para essa fragmentação do saber que colabora
para desempoderamento dos/as educandos/as. Ele ocorre na forma como o currículo é
pensado/organizado de maneira “disciplinar” e as conseqüências disto na visão de
Pacheco (2005, p. 151) é “fragmentação da aprendizagem, pendor excessivo das
competências cognitivas, exclusão do afecto, desarticulação com a problemática do
quotidiano dos alunos, incoerência curricular, desvalorização do comportamento cívico
e moral do aluno enquanto cidadão.” O autor continua sua análise apresentando a
seguinte crítica:
[...] os temas transversais, ou as componentes curriculares transicionais, são
as soluções de reforma administrativa que, para além de pretenderem
introduzir o método de projecto e a globalização ou a integração do
conhecimento, funcionam como medidas de legitimação compensatória, ou
como formas de desculpabilização curricular, visto que não questionam o
espaço hegemônico co currículo de índole disciplinar. (p. 152)
Para viabilizar uma educação que possa contribuir no enfrentamento à VSIJ é
preciso superar a formação dicotômica e possibilitar uma articulação entre teoria e
prática. Isso só é possível segundo Saviani (2007, p. 263) a partir de uma nova
“formulação teórica”.
Nessa nova formulação a educação é entendida como mediações no seio da
prática social global. A prática social se põe, portanto, como o ponto de
partida e o ponto de chegada da prática educativa. Daí decorre um método
pedagógico que parte da prática social em que professor e aluno se encontram
igualmente inseridos ocupando, porém, posições distintas, condição para que
travem uma relação fecunda na compreensão e encaminhamento da solução
dos problemas postos pela prática social, cabendo aos momentos
7
O prefixo 'neo-' quer indicar um novo florescimento do liberalismo em termos mais presentes, potentes,
realizadores de um objetivo harmonioso, direto, final e espontâneo da própria ordem social. Seria o fim
dos conflitos, das contradições, da própria luta de classes e da história. (Melo, 2007, p. 191)
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1071
A Educação no Contexto da Violência Sexual Infanto-Juvenil
intermediários do método identificar as questões suscitadas pela prática
social (problematização), dispor os intrumentos teóricos e práticos para a sua
compreensão e solução (instrumentalização) e viabilizar sua incorporação
como elementos integrantes da própria vida dos alunos (catarse).
A educação pode ser inserida nesse contexto de VSIJ por duas vias - uma
relacionada ao que é próprio dela a constituição e a promoção de conhecimento a cerca
do assunto e a outra é relacionada à escola que atende diretamente às vítimas de VS e
que tem a responsabilidade de denunciar qualquer tipo de maus-tratos contra criança e
adolescente, sendo punidos caso não cumpram essa determinação estabelecida pelo
ECA/1990 no art. 245.
Considerações Finais
Como sujeitos de direitos crianças e adolescentes são de responsabilidade de
toda a sociedade, como preconiza o ECA no artigo 5º. Os profissionais da educação,
assim como os profissionais de saúde tem uma responsabilidade demarcada legalmente
como vimos anteriormente. O ECA garante, ainda, à criança e ao adolescente a
absoluta prioridade na formulação e implementação de políticas públicas de base como:
saúde e educação. Mesmo assim, a problemática da violência sexual refletida neste
estudo indicou que estes mesmos sujeitos (principalmente as meninas) continuam sendo
as principais vítimas do sistema social capitalista sejam por questões econômicas;
culturais; ou familiares.
Não há intenção aqui de esgotar a temática, mas suscitar questões que podem ser
pertinentes ao estudo da temática a partir dos recortes estabelecidos na área da educação
- o papel da escola no enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil.
Questões como:
a) o debate curricular acerca da questão VSIJ;
b) o olhar dos profissionais da educação (professores, gestores, técnicos e outros);
c) o Projeto Político Pedagógico das unidades de ensino e a inclusão da temática da
VSIJ;
d) o aspecto inclusivo de vítimas de VSIJ no ambiente escolar.
Elas serão tratadas no ambiente escolar à medida que o projeto curricular seja de
envergadura emancipadora como argumenta Santomé (1998, p. 130):
Flávio Corsini Lírio
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A Educação no Contexto da Violência Sexual Infanto-Juvenil
um projeto curricular emancipador destinado aos membros de uma sociedade
democrática e progressista, além de especificar os princípios e procedimentos
que permitem compreender a natureza construtiva do conhecimento e sugerir
processos de ensino e aprendizagem em consonância com os mesmos ,
também deve necessariamente propor metas educacionais e blocos de
conteúdos culturais que possam contribuir da melhor maneira possível com
uma socialização crítica dos indivíduos [..]
a ação educacional pretende, além de desenvolver capacidades para a tomada
de decisões, oferecer aos estudantes e ao próprio corpo docente uma
reconstrução reflexiva e crítica da realidade, tomando como ponto de partida
as teorias, conceitos, procedimentos, costumes, etc.
Referências
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a criança? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
Banco de teses e dissertações da Capes. Disponível em: http://servicos.capes.gov.br/capesdw
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LOMBARDI, Jose Claudinei; SAVIANI, Dermeval. Marxismo e Educação - Debates
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PACHECO, José Augusto. Escritos curriculares. São Paulo: Cortez, 2005.
Flávio Corsini Lírio
1073
A Educação no Contexto da Violência Sexual Infanto-Juvenil
SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado.
Tradução Cláudia Shilling. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1998.
TAQUETTE, S. R. (org) Mulher Adolescente/Jovem em situação de Violência.
Propostas de intervenção para o setor saúde: Secretaria Especial de Políticas para
as Mulheres, 2007, (p. 59).
Flávio Corsini Lírio
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
INERENTES À FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA
Germana Alves de Menezes
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Os Direitos da Criança e do Adolescente Inrentes à Função Social da Escola
OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE INERENTES À FUNÇÃO
SOCIAL DA ESCOLA
Germana Alves de Menezes1
RESUMO: O presente artigo traz elementos para uma reflexão acerca da situação
social e política da criança e do adolescente no Brasil, enfocando o desafio social que
marca os cuidados para com esses cidadãos em fase de desenvolvimento. Ressalta-se a
importância da escola como uma das principais instituições responsáveis pela
viabilização e efetivação dos direitos preconizados pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente - Lei 8069/90 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei
Nº 9394/96. Trata ainda de problematizar como a escola pode atuar, no sentido de fazer
valer os preceitos recomendados pela legislação vigente no país.
PALAVRAS-CHAVE: Criança e adolescente. Direitos sociais. Escola.
Introdução
Um país que aprende a valorizar a criança e a empenhar-se na sua
formação manifesta sua decisão de construir uma sociedade justa,
solidária e capaz de vencer discriminações, violência e exploração da
pessoa humana (D. Luciano Mendes de Almeida, 2002:17).
A questão dos direitos da criança e do adolescente vem ganhando destaque em
diversos espaços: nos setores jurídicos, nas instituições religiosas, nos serviços
públicos estatais, na mídia. Apesar dessa visibilidade, a situação desses cidadãos em
idade de zero a dezessete anos ainda é motivo de grandes preocupações.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – (2000) registra que
14 milhões de crianças e adolescentes brasileiros encontram-se na linha da pobreza,
têm seus direitos constantemente negados, vivem em lares cuja renda per capita é
inferior a 1/4 de salário mínimo e são, com frequência, usurpados em muitos de seus
direitos, dentre os quais se destacam: o direito ao lazer, a uma moradia digna, à
1
Pedagoga, Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco e Professora do Curso
de Pedagogia da Universidade Estadual da Paraíba.
Germana Alves de Menezes
1178
Os Direitos da Criança e do Adolescente Inrentes à Função Social da Escola
alimentação, à saúde e ao acesso a uma educação de qualidade. Cerca de 2,9 milhões
de crianças e adolescentes brasileiros, com idade entre 5 e 14 anos, vêm
desenvolvendo atividades remuneradas.
No que diz respeito à educação escolar, de acordo com Graciano (2005:15), a
educação brasileira apresenta um quadro de desigualdade: 2,8% da população
brasileira de 7 a 14 anos (aproximadamente 739.413 pessoas) encontram-se fora da
escola; apenas 40,1% dos que têm mais de 14 anos frequentam o Ensino Médio. Essa
situação se torna ainda mais grave nas Regiões Norte e Nordeste e nas áreas rurais.
Atualmente, o Brasil conta com 1,9 milhão de jovens analfabetos.
A situação de pobreza, de ausência de direitos e de políticas públicas em que
atingem a infância e a juventude brasileiras não é recente. Esse fenômeno vem se
dando ao longo de nossa história e reflete as perversas formas de desigualdades da
sociedade brasileira.
Cabem então alguns questionamentos: como o Estado, a sociedade e a escola
vêm entendendo suas relações com as crianças e adolescentes brasileiros, ao longo dos
séculos?
Que concepção de educação vem sendo trabalhada em nossas escolas? Essa
instituição está atenta à necessidade de formar cidadãos plenos, cientes de seus direitos
e de suas obrigações sociais e políticas?
1. Direitos infanto-juvenis: vivências, negações e conquistas
Iniciamos nossa reflexão colocando que a história social da criança e do
adolescente brasileiros é marcada não pela presença e atuação de políticas públicas
estatais, mas sim, pela ação caridosa de religiosos e particulares sensibilizados com a
situação de milhares de crianças em estado de pobreza e abandono.
De acordo com Marcílio (1998), marca a história da infância e da juventude
brasileiras uma visão dicotômica quanto aos aspectos sociais e políticos: de um lado,
filhos das camadas ricas e médias da sociedade; de outro, as crianças e os jovens filhos
das camadas pobres. Os primeiros eram alvos das políticas e dos cuidados da família.
Já as crianças pobres, especialmente as desamparadas, sofriam o estigma da figura de
um criminoso em potencial, de um desvalido, para quem estavam reservadas a
Germana Alves de Menezes
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Os Direitos da Criança e do Adolescente Inrentes à Função Social da Escola
caridade pública e uma educação elementar e profissionalizante, com o intento de
prepará-las para o trabalho. Não havia sequer uma lei que pudesse ampará-las.
O Estado só veio a se expressar quanto a essa questão no ano de 1927, quando
se criou o primeiro aparato legal: o Código de Menores. Todavia, a dicotomia acima
mencionada não foi rompida. Não havia investimento na proteção dos ‘menores’ por
parte das autoridades competentes, cabendo, ainda, tais cuidados às ações caridosas de
particulares, religiosos, grupos comunitários etc.
A criação e a instalação de Órgãos públicos estatais, como o Serviço de
Assistência ao Menor – SAM, em 1941, Decreto nº. 3.799 (ano de 1941e nº. 6.865, ano
de 1944), e a Fundação Nacional do Bem-estar do Menor – FUNABEM - na década de
1960, não implicaram mudanças quanto à forma de tratamento voltado para as crianças
pobres e/ou abandonadas.
Uma nova forma de ver e tratar a criança e o adolescente brasileiros só
começou a se esboçar em fins dos anos de 1970, período em que os movimentos
sociais populares retomaram suas forças. Dentre as demandas desses movimentos
sociais, encontravam-se os direitos da criança e do adolescente das camadas populares.
A luta em prol dos direitos infanto-juvenis contava com a presença de pessoas e
organizações sociais que lutavam pela justiça social e política, o que contribuiu para se
adentrar aos anos 80 com uma organização e mobilização política consideráveis.
Destacam-se, nesse período, os movimentos populares de modo geral e, em
especial, a Pastoral do Menor e o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
– MNMMR - que deram significativa contribuição em todo o período constituinte e,
consequentemente, garantiram espaço na Carta Constitucional de 19882 e também para
a aprovação e homologação da Lei 8069/90, o “Estatuto da Criança e do Adolescente”.
1.1. ECA: grandes apostas, novos desafios
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA - além de revogar o antigo
Código de Menores, trouxe para a sociedade brasileira uma nova forma de se ver e
tratar a criança e o adolescente, enquanto sujeitos de direitos e pessoas em
desenvolvimento.
2
Ver artigos 227 e 228 da Constituição Federal de 1988.
Germana Alves de Menezes
1180
Os Direitos da Criança e do Adolescente Inrentes à Função Social da Escola
Essa nova forma política transfere para os Estados e os Municípios atribuições,
até então, da competência da esfera federal e chama ainda a sociedade civil para a
participação.
Não é fácil implantar uma nova institucionalidade, construir uma nova cultura
política e garantir uma participação cidadã, com base na paridade, na corresponsabilidade.
O ECA assegura que a criança e o adolescente são pessoas em fase de
desenvolvimento, que precisam ter seus direitos garantidos pela família, pelo Estado e
pela sociedade, sem discriminação de raça, cor, gênero e classe. Deixa claro que o
descumprimento e/ou a ausência desses direitos está sujeito a penalidades. Nas
palavras de Seda (2003:276), o direito da criança e do adolescente é, através do
Estatuto, um Direito que respeita direitos e impõe deveres.
Para tanto, foi pensada uma nova forma de gestão desses direitos, o Sistema de
Garantias de Direitos – SGD, voltado para efetivar o Artigo 86 do Estatuto da Criança
e do Adolescente. Esse sistema compreende um conjunto de políticas, órgãos,
instituições e serviços que se estruturam na forma de um sistema, apoiado em três
eixos: o da promoção – enquanto um conjunto de políticas públicas com vistas a
atender aos direitos das crianças e dos adolescentes; o do controle – que visa
acompanhar e monitorar a execução dessas políticas; e o da defesa – composto por um
conjunto de órgãos e instâncias com a função de garantir a segurança e a não violação
dos direitos desses cidadãos em desenvolvimento
(cf. SILVA e MOTTI, coord.
2002:93).
A escola encontra-se no eixo da promoção (atendimento), a acessibilidade a
esta está inscrito na Constituição Federal e também no ECA.
2. A Escola frente aos novos desafios políticos e sociais
A história da educação escolar brasileira e a história social da criança e do
adolescente apresentam traços em comum, dentre esses o trato de uma educação para as
camadas ricas e médias da sociedade e outro para aqueles oriundos das camadas menos
abastadas da sociedade. A título de exemplo, destacamos dois momentos históricos da
Germana Alves de Menezes
1181
Os Direitos da Criança e do Adolescente Inrentes à Função Social da Escola
educação apresentados por Ghiraldelli Jr.: as duas primeiras repúblicas. No tocante a
Primeira República, Ghiraldelli afirma:
Não havia uma rede de escolas públicas respeitável, e a que existia
voltava-se para o atendimento das classes mais favorecidas
economicamente.
As elites não só enviavam seus filhos aos colégios particulares como
também se utilizavam do Estado para criar uma rede de ensino público
para o atendimento de seus filhos (GHIRALDELLI JR. 1992:26-
27).
Não podemos esquecer, porém que alguns setores da sociedade – as
organizações do proletariado urbano no Brasil - buscavam formas de acesso a educação
escolar tanto na Primeira com também na segunda República, a exemplo da Aliança
Nacional Libertadora – ANL - criada no ano de 1935 e fechada quatro meses depois
pelo governo Vargas. Conforme ainda Ghiraldelli Jr. essa entidade merece destaque:
Aglutinou boa parcela das classes populares – proletariado e camadas
médias – (...) recuperou, em parte, os projetos da política educacional
esboçados pelo Movimento Operário da Primeira República,
principalmente as teses sobre democratização do ensino
(GHIRALDELLI JR. 1992: 46).
Não obstante
algumas conquistas no que concerne aos direitos políticos e
sociais no Brasil, uma massa crescente de pessoas permanceu alijada dos direitos
fundamentais, dentre esses o direito a moradia, a saúde e educação.
Apesar dos avanços em termos legais, a execução das proposições
constitucionais quanto aos direitos humanos, sociais e políticos ainda não se efetivou
plenamente efetivada. Neste sentido Paoli e Telles (2000:114) tecem os seguintes
comentários:
Reconhecer esse campo democrático em construção significa
reconhecer que, no cenário dos dilemas atuais, a luta por direitos
circunscreve um campo de conflito que é também de disputa pelos
sentidos de modernidade, cidadania e democracia.
Germana Alves de Menezes
1182
Os Direitos da Criança e do Adolescente Inrentes à Função Social da Escola
A Constituição Federal e as Leis complementares a esta, são caminhos para a
materialização da conquista da cidadania. Dentre essas leis, duas nos dizem respeito
diretamente neste artigo: a Lei Nº. 9394/96 - Diretrizes e Bases da Educação Nacional e
também a Lei Federal Nº. 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente. Esta última
registra uma efetiva participação de setores organizados da sociedade civil na garantia
dos direitos infanto-juvenis.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei 9394/96 - abre espaço
para uma participação ativa da família e da sociedade, através dos conselhos em
instâncias estaduais e municipais e os conselhos escolares. A elaboração de projetos
político-pedagógicos nas escolas, a inserção de temas referentes à cidadania, no
currículo escolar, a ética, entre outros, sinalizam também para novas oportunidades de
ação política. Conforme Leal (2004:148),
Para o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente, é preciso
uma educação que garanta o exercício da cidadania e da qualificação
para o trabalho. Para isso, devem ser assegurados a crianças e
adolescentes igualdade de condições para acesso e permanência na
escola, o respeito dos educadores a esses sujeitos, o direito de serem
contestados os critérios avaliativos da escola; (...) o direito de acesso à
escola pública gratuita próxima de sua residência.
De fato, na sociedade capitalista, a escola vem desempenhando dupla função:
incorporação no mundo do trabalho e intervenção na vida pública. Todavia, Pérez
Gómez (2000: 14-15), respaldado por Fernández Enguita, afirma que essa duplicidade
de funções não é facilmente cumprida, são antagônicas no processo de socialização das
futuras gerações.
A educação escolar é um direito humano fundamental e precisa ter como um de
seus princípios básicos a garantia de qualidade e a capacidade de atender às
necessidades e às especificidades dos sujeitos desse processo educativo. Comungamos
com Graciano M. (2005: 9), quando afirma que a educação escolar é base constitutiva
na formação das pessoas, assim como na defesa e na promoção dos outros direitos. A
escola pode favorecer a formação de cidadãos mais conscientes, mais críticos e mais
capazes de lutar para defender seus direitos.
Quando essa instituição assume a responsabilidade, não só de auxiliar na
aquisição dos conhecimentos das ciências, da matemática e da linguagem, mas também
Germana Alves de Menezes
1183
Os Direitos da Criança e do Adolescente Inrentes à Função Social da Escola
na formação de sujeitos conhecedores de seus direitos e das leis que lhes dão garantia,
conscientes e cumpridores também de seus deveres, ela está exercendo também a sua
função de promotora de direitos humanos. Nessa perspectiva, o Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos (2006: 23) afirma:
Não é apenas na escola que se produz e reproduz o conhecimento, mas
é nela que esse saber aparece sistematizado e codificado. (...) Nas
sociedades contemporâneas, a escola é local de estruturação de
concepções de mundo e de consciência social, de circulação e de
consolidação de valores, de promoção da diversidade cultural, da
formação para a cidadania, de constituição de sujeitos sociais e de
desenvolvimento de práticas pedagógicas.
Apesar de a temática da educação em direitos humanos se encontrar na ordem do
dia, a escola ainda a trata de forma tímida, ou até mesmo inexistente, ou então é
abordada de maneira distante, sem enxergar em seus alunos a face daqueles que têm
seus direitos constantemente violados.
Em relação a esse aspecto, cabe aqui uma
pergunta: O que implica essa postura no cotidiano escolar? Temor, desconhecimento?
Ausência de compromisso político?
Retomando a reflexão desenvolvida por Pérez Gómez, é gritante a dicotomia
entre a esfera política, na qual todos os cidadãos gozam dos mesmos direitos, e a esfera
econômica, onde predomina o direito privado. Nesse sentido, a escola desempenha
funções antagônicas: a primeira é a preparação para o mundo do trabalho, na qual se
espera do sujeito uma atitude passiva, disciplinada, submissa; a segunda se refere à
produção de conhecimentos, idéias, atitudes e pautas
comportamento que permitam [ao sujeito] sua incorporação eficaz
mundo civil, no âmbito da liberdade do consumo, da liberdade
escolha e participação política, da liberdade e responsabilidade
esfera da vida familiar (2000:15).
de
no
de
na
Poderíamos, então, pensar que chegamos a uma encruzilhada: não há nada que
nós, educadores, possamos fazer diante de tal quadro. Portanto, só nos resta seguir o
caminho tantas vezes já percorrido. Mas esse seria mesmo um caso sem solução? Como
contribuir para a superação desses problemas?
Dois estudiosos dos direitos humanos da criança e do adolescente (Basílio e
Kramer, 2003) afirmam que a atuação na área dos direitos infanto-juvenis tem se dado
Germana Alves de Menezes
1184
Os Direitos da Criança e do Adolescente Inrentes à Função Social da Escola
de modo diversificado e desigual. Além disso, a questão tem servido aos mais diversos
tipos de especulação político-eleitoral.
Outro problema que se encontra, de acordo com os autores supracitados, é a
fragmentação nos estudos teóricos que orientam diagnósticos, pesquisas e avaliações.
Assim como em outros campos, cada campo das Ciências Sociais busca suas respostas
de modo isolado, sem ao menos procurar conhecer as demais, sem que haja uma
interlocução entre eles e seus pesquisadores.
Além dessa fragmentação, as questões não são abordadas como categorias
socioanalíticas constituídas na história e influenciadas por fatores de caráter econômico,
sociológico e político. Esses problemas são, frequentemente, reduzidos ora a faixas
etárias, ora a níveis de escolaridade, ora a estratos ou grupos sociais. De maneira
perspicaz, Basílio e Kramer (op. cit. 14) perguntam:
Será que nós, pesquisadores da área educacional, ao tratar, por
exemplo, de ensino/aprendizado ou de leitura/escrita, da prática
pedagógica e dos saberes docentes, temos nos perguntado sobre as
condições das crianças que estão na escola, do ponto de vista de seu
cotidiano fora da escola? Ou as olhamos apenas como alunos?(...)
Quantas crianças e jovens vítimas de maus tratos e abusos sexuais
contam com suas professoras para falar do que sofrem, procurar ajuda
e obter encaminhamento? (...) Quantos de nós, envolvidos com o tema
e solidários com as crianças e jovens (...), acompanhamos o trabalho
do conselho tutelar mais próximo?
Apesar de Basílio e Kramer se voltarem para o pesquisador, estendemos nossa
reflexão para o professor. Não concebemos aqui um pesquisador dissociado da prática,
mas sim, o professor-pesquisador. É comum nos depararmos com a função docente
isolada da prática da pesquisa e da própria realidade dos alunos. O professor, muitas
vezes, distancia-se da realidade de seus alunos e termina por esquecer que eles têm uma
‘vida’ intensa fora da escola, não raras vezes, em contextos desafiadores, sendo vítimas
de diversas formas de exploração e de opressão. Perdem, então, muitas oportunidades
de contribuir para que os alunos adquiram consciência da violação de seus direitos.
Aliás, a noção de direitos, quase sempre, não é clara na mentalidade das
crianças e, muitas vezes, não o é para o professor, que também pode estar sujeito a um
déficit de conhecimento sobre a temática. O próprio termo direito, popularmente, pode
ser assimilado e reduzido à noção de dever.
Germana Alves de Menezes
1185
Os Direitos da Criança e do Adolescente Inrentes à Função Social da Escola
A inversão desses termos não pode ser encarada como algo banal, fácil de ser
resolvido. Ela decorre da própria organização social e política instalada longamente no
país. Seu rompimento envolve a construção de uma nova forma de pensar e de agir.
Inclusive, no que tange à própria organização política da categoria docente.
É importante lembrar que Projetos sociais como o Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil – PETI; Bolsa-escola/bolsa família – ligados ao Ministério do
Desenvolvimento Social - são partes de um programa de integração e promoção dos
direitos de crianças e adolescentes marginalizados. São programas que objetivam
atender a uma necessidade mais imediata da população e, por isso mesmo, não devem se
institucionalizar.
Conclusões
As questões aqui levantadas são colocadas enquanto um convite a todos os
educadores, para que lancem um olhar sobre a situação social, política e econômica em
que vive grande parte das crianças brasileiras. Trata-se de uma problemática que ainda
tem muito a ser investigada por todos aqueles que atuam na área da educação.
O educador precisa estar preparado para essa empreitada. Para tanto, faz-se
necessário que essa questão seja encampada de forma mais incisiva, nos processos de
formação de professores, seja na formação inicial seja na formação continuada, no
intuito de formar não o professor repassador, mas sobretudo, o professor críticoreflexivo, como defende Nóvoa, aquele que reflete sobre sua prática, que pensa e
elabora sobre essa prática.
Sabemos que o Estatuto da Criança e do Adolescente está completando
dezenove anos. Apesar de reconhecermos que se trata de uma lei ainda jovem, sua
inserção na vida da escola poderia estar mais avançada, pois essa instituição consiste em
um dos espaços mais importantes para a geração de conhecimentos e a disseminação de
novas culturas.
É necessário, então, investir em uma escola que tenha uma proposta e uma
vivência democrática que busque abrir as suas portas para os pais de seus alunos, aberta
a uma gestão colegiada, onde a comunidade possa se expressar, participar de modo
atuante dos conselhos escolares, da efetivação de um projeto político-pedagógico
Germana Alves de Menezes
1186
Os Direitos da Criança e do Adolescente Inrentes à Função Social da Escola
construído coletivamente. Onde se possa, ainda, fomentar a criação de uma nova cultura
e formar cidadãos de fato e de direitos.
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Os Direitos da Criança e do Adolescente Inrentes à Função Social da Escola
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Germana Alves de Menezes
1189
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
POLÍTICAS DE CURRÍCULO E DIREITOS
HUMANOS: O DIÁLOGO ENTRE A DIFERENÇA E
OS DIREITOS A PARTIR DA PERSPECTIVA DOS
ALUNOS
Maria de Lourdes do Prado Krüger D’Almeida
Paola Cristine Marchioro Hanna
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
Alunos
POLÍTICAS DE CURRÍCULO E DIREITOS HUMANOS: O DIÁLOGO ENTRE
A DIFERENÇA E OS DIREITOS A PARTIR DA PERSPECTIVA DOS ALUNOS
Maria de Lourdes do Prado Krüger D’Almeida
[email protected]
Paola Cristine Marchioro Hanna
[email protected]
RESUMO: As práticas curriculares são atravessadas por tensões e conflitos produzidos
pela diferença silenciada nas proposições curriculares hegemônicas e homogeneizantes,
que ignoram a diferença e a garantia dos direitos. Com base nesse pressuposto, tem-se
como propósito refletir sobre a questão: Quais as convergências e divergências nos
posicionamentos dos alunos sobre direitos humanos e os problemas percebidos numa
escola pública de educação básica? A análise acerca da relação entre diversidade e
direitos humanos no currículo escolar apoia-se em Candau (2000, 2008), Benevides
(2000), Freire (1997), Mazendzo (2006), Moreira (2001), MacLaren (2000) e nos
documentos legais. Na pesquisa foi realizada entrevista estruturada, com 781
estudantes. Os dados permitem estabelecer o mapa da diversidade presente na escola,
sendo predominantemente feminina, com idades bastante variadas e aproximadamente a
metade se considerando brancos. Os alunos, nos seus posicionamentos, têm clareza dos
direitos, assinalando o respeito, a educação e a liberdade como os principais. A falta de
garantia dos direitos humanos fundamentais pode produzir e potencializar os problemas
identificados na escola, tais como: conflitos entre os alunos, infraestrutura precária,
professores despreparados.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo escolar. Direitos humanos. Diversidade. Educação
básica.
Introdução
O presente artigo apresenta dados de uma pesquisa sobre currículo, diversidade e
direitos humanos, realizada numa escola pública de educação básica. Esse estudo
justifica-se por sua atualidade e relevância à medida que se considera que as práticas
curriculares são atravessadas, impregnadas pelas tensões e conflitos produzidos pela
diferença
silenciada,
mediante
proposições
curriculares
hegemônicas
e
homogeneizantes, que ignoram e negam a diferença.
Maria de Lourdes do Prado Krüger D’Almeida & Paola Cristine Marchioro Hanna
1193
Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
Alunos
As escolas são compostas por uma diversidade de sujeitos com interesses,
posições sociais, sexuais, religiosas, políticas, culturais, étnicas, raciais, entre outras,
diferentes. Na escola, as diferenças estão em constante contato e são obrigadas a
conviver, o que gera conflitos. Há nas escolas, por um lado, uma acentuada distinção de
classes, grupos e do discurso da cultura dominante, e do outro, a luta dos grupos
minoritários para seu reconhecimento e inserção no espaço escolar.
Frente a essas considerações, o problema que orienta esta reflexão é: Quais as
convergências e divergências nos posicionamentos dos alunos sobre direitos humanos e
os problemas percebidos na escola? Nesse sentido, o trabalho propõe como objetivo
central identificar o que os alunos da escola pública de educação básica revelam sobre
direitos humanos e problemas na/da escola. Também apresenta como objetivo analisar
as convergências e divergências nos posicionamentos dos alunos sobre direitos humanos
e os problemas percebidos na escola.
Na pesquisa, adotou-se o pressuposto de que a escola é um espaço privilegiado
para a discussão de questões referentes aos direitos humanos, pois é um espaço de
convivência com a diversidade. Dessa forma, ela é fundamental para a sensibilização
dos estudantes quanto a seus direitos fundamentais, por meio de uma educação em
direitos humanos. A garantia desses direitos supõe o respeito à diferença e à inclusão de
todos, de fato, para que tenham condições de acesso aos bens e serviços socialmente
constituídos e que garantam a dignidade da pessoa.
A análise acerca da questão proposta apoia-se em Candau (2000, 2008),
Benevides (2000), Freire (1997), Mazendzo (2006), Moreira (2001), MacLaren (2000),
Silva (2007) e nos documentos: Constituição Federal (1988), Plano Nacional em
Direitos Humanos (2007), Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996),
Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).
Currículo e diversidade
A presença da diversidade, no contexto escolar, é fato incontestável. Que
historicamente o currículo escolar não tem considerado a diversidade também é fato
incontestável. O silenciamento e negação da diversidade geram tensões e conflitos que
precisam ser superados via políticas e práticas pedagógicas capazes de dialogar e incluir
Maria de Lourdes do Prado Krüger D’Almeida & Paola Cristine Marchioro Hanna
1194
Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
Alunos
a diversidade. É importante iniciar-se pela reflexão sobre o que compreende uma teoria
curricular.
Uma teoria define-se pelos conceitos que utiliza para conceber a “realidade”.
Os conceitos de uma teoria dirigem nossa atenção para certas coisas que sem
eles não “veríamos”. Os conceitos de uma teoria organizam e estruturam nossa
forma de ver a “realidade”. Assim, uma forma útil de distinguirmos as
diferentes teorias do currículo é através do exame dos diferentes conceitos que
elas empregam. (SILVA, 2007, p.17).
As teorias de currículo são classificadas por Silva (2007) como tradicionais,
críticas e pós-críticas. Nas primeiras, prepondera a concepção curricular etnocêntrica,
monocultural, na qual a diversidade é desconsiderada. Por outro lado, a questão do
poder é o centro da reflexão das teorias críticas e pós-críticas do currículo. Os
questionamentos feitos ao currículo não se limitam a perguntar “o quê?”, mas “por
quê?”. Para Silva (2007), a discussão sobre currículo vai além de uma seleção de
conhecimento. Envolve, sim, uma operação de poder. Assim, o currículo é um
documento de identidade. “As teorias críticas e pós-críticas de currículo estão
preocupadas com as conexões entre saber, identidade e poder” (p. 16).
Depois das teorias críticas e pós-críticas, não podemos mais olhar para o
currículo com a mesma inocência de antes. O currículo tem significados que
muito além daqueles aos quais as teorias tradicionais nos confinaram. O
currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo
é trajetória, viagem, percurso, O currículo é autobiografia, nossa vida.
Curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto,
discurso, documento. O currículo é documento de identidade. (SILVA, 2007, p.
250).
Nessa perspectiva, o currículo é desafiado ao dialogo com a diversidade, a se
pautar numa concepção multicultural. O multiculturalismo é um movimento que destaca
a ideia da reivindicação das culturas consideradas minoritárias, que por serem
discriminadas, organizam-se em movimentos que visam o reconhecimento de sua
cultura numa cultura nacional.
O multiculturalismo discute a equivalência entre todas as culturas, não
considerando a possibilidade de ocorrer uma hierarquia entre elas, uma não pode
considerar-se superior a outra. Para esse movimento, as pessoas não devem entrar em
controvérsia com as diferenças, mas dialogar entre elas. É por isso que as escolas podem
tornar-se um lugar plural e dialógico, um lugar em que os estudantes aprendam a ler e
Maria de Lourdes do Prado Krüger D’Almeida & Paola Cristine Marchioro Hanna
1195
Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
Alunos
entender o contexto, na medida em que vivem e respeitam uns aos outros, um respeito
que não caracterize sobreposição, mas a convivência entre diferentes culturas.
Nas escolas, as práticas pedagógicas reproduzem padrões voltados para uma
forma hegemonicamente dominante de pensar. Infelizmente as atividades escolares têm
girado em torno da reprodução daquilo que é ditado pelas classes dominantes.
Nessa perspectiva, a escola não determina a cultura dominante, mas é por ela
determinada, atuando como mecanismo de exclusão. O currículo tem se caracterizado
como etnocêntrico e hegemônico, sendo baseado na cultura dominante. Assim, as
crianças das classes dominantes sentem-se à vontade com esse currículo, com esses
códigos, pois vivem nele, mas para as crianças das classes dominadas, esse código é
indecifrável, já que elas não foram acostumadas com ele.
Diferentes concepções de cultura consideradas na definição do currículo
produzem diferentes identidades. Questões acerca da identidade, pedagogia e poder são
discutidas por Peter MacLaren (2000) que identifica a escola como local de reprodução
cultural, social e econômica, que tem um papel na acumulação do capital, na
legitimação ideológica e na produção de conhecimentos para resolver as demandas de
uma sociedade capitalista. Contudo, as escolas podem desempenhar um papel
democrático de desconstrução dessa ideologia e constituir-se espaço de resistência. Para
esse autor, o processo escolar é um empreendimento político culturalmente complexo e
que pode desenvolver diferentes linguagens, sejam elas voltadas à reprodução ou à
resistência.
As identidades não são construídas pelos indivíduos da mesma maneira, pois a
estratificação de classe, de raça e de gênero, os limites objetivos, as determinações
históricas, a divisão do trabalho e a organização da política e da política de mercado
regulam as escolhas das pessoas e dos grupos. Assim:
Precisamos de uma pedagogia crítica da linguagem e da experiência na qual
as categorias de compreensão da diversidade e da alteridade não proíbam
outras diferenças de ser nomeadas. Precisamos de uma linguagem que possa
servir como um instrumento para a autoformação discursiva dos estudantes e
como um meio para produzir um sujeito político coletivo. Essa linguagem
deve ser simultaneamente assumida por estudantes, mobilizada
estrategicamente pelos professores e trabalhadores culturais, e transformada
nos interesses do desenvolvimento de uma justiça educacional, política,
econômica e cultural maior. (MACLAREN, 2000, p. 47).
Maria de Lourdes do Prado Krüger D’Almeida & Paola Cristine Marchioro Hanna
1196
Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
Alunos
Diante de uma perspectiva multicultural, o indivíduo é levado a ler a palavra, a
imagem e o mundo de forma crítica, entendendo as relações, identificando que a
construção da sua identidade e da forma como ele pensa foi criada pelas experiências
culturais, políticas, sociais que ele teve.
O currículo desempenha um papel fundamental na construção de um trabalho
que leve em conta o multiculturalismo na constituição das identidades. Silva (2007)
pondera que:
A questão central que serve de pano de fundo para qualquer teoria do currículo
é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado. De uma forma mais sintética
a questão central é: o que?[...] a pergunta “o que?” nunca está separada de outra
importante pergunta: “o que eles ou elas devem ser?”, ou melhor, “o que eles
ou elas devem se tornar?” Afinal, um currículo busca precisamente modificar
as pessoas que vão “seguir” aquele currículo. (SILVA, 2007, p. 14).
É importante ter clareza de quais conhecimentos são necessários para a
constituição de pessoas que respeitem a diversidade.
No fundo das teorias do currículo está, pois, uma questão de “identidade” ou de
“subjetividade”. Se quisermos recorrer à etimologia da palavra “currículo”, que
vem do latim curriculum, “pista de corrida”, podemos dizer que no curso dessa
“corrida” que é o currículo acabamos por nos tornar o que somos. [...] Talvez
possamos dizer que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é
também uma questão de identidade. (SILVA, 2007, p. 15).
O desenvolvimento de hábitos, comportamentos e valores de respeito à
diversidade pressupõe uma construção coletiva e dialógica do currículo, para tanto é
preciso criar contextos que tornem possível essa aprendizagem.
Essa relação não é espontânea, ela não ocorre naturalmente, ela tem que ser
intencional, ou seja, quando sujeitos de diferentes culturas decidem isso e
querem intencionalmente estabelecer relações com o outro e compreendê-los
também. (...) a relação intercultural só ocorre como projeto. (...) Essa relação
intercultural se constitui como um contexto de integração. Não se trata só de
comunicar ou de passar informações, trata-se de criar um contexto relacional,
um contexto que permite justamente a sujeitos, a partir de referenciais
diferentes, interagirem, acolherem-se e entenderem-se. (MOREIRA, 2002, p.
11).
Para o estabelecimento desse diálogo, é importante compreender que a
perspectiva multicultural pensa um currículo baseado no respeito, na tolerância e na
convivência harmoniosa entre as culturas. Num currículo multiculturalista, a diferença,
mais do que respeitada e tolerada, é colocada em questão.
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1197
Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
Alunos
Situando a questão dos direitos humanos
O reconhecimento e a garantia dos direitos humanos vêm se consolidando ao
longo de um processo sócio-histórico e cultural, construído por meio de lutas e
reivindicações.
Em 10 de dezembro de 1948 foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que é composta por trinta artigos
e traz em seu texto o princípio de que os homens nascem livres e iguais em dignidade e
direitos e que, como seres racionais e conscientes, devem comportar-se fraternalmente
uns com os outros.
O que se entende por Direitos Humanos?
Direitos decorrentes da dignidade do ser humano, abrangendo, dentre outros:
os direitos à vida com qualidade, à saúde, à educação, à moradia, ao lazer, ao
meio ambiente saudável, ao saneamento básico, à segurança, ao trabalho e à
diversidade cultural. (BRASIL, 2003, p. 10).
Segundo o art. 5º da Constituição Federal:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade. (BRASIL, 1988).
Para a conscientização sobre os direitos humanos, os documentos oficiais da
educação orientam para que as escolas promovam educação em direitos humanos. Os
documentos são: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que estabelece que
educar em direitos humanos é fomentar uma prática educativa “inspirada nos princípios
de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, com a finalidade do pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”. O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
(PNEDH) também estabelece diretrizes para a educação em direito humanos.
É na década de 1990 que políticas curriculares pautam a inclusão dos direitos
humanos no processo formativo, a exemplo dos parâmetros curriculares
nacionais, da inserção dos princípios em planos educacionais, matrizes e
diretrizes de educação, a exemplo da matriz curricular para formação dos
profissionais de segurança. Por outro lado, para além do princípio e das
diretrizes, os direitos humanos busca se afirmar como construtor de identidades
e práticas, ampliando e qualificando a transversalização nas políticas públicas,
como tem sido a atuação na política de direitos humanos, de promoção de
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1198
Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
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políticas para as mulheres, de igualdade étnica, racial e social, da diversidade
sexual e outras. (CANDAU, 2000, p. 12).
O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos “incorpora aspectos dos
principais documentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é
signatário, agregando demandas antigas e contemporâneas da nossa sociedade pela
efetivação da democracia, do desenvolvimento, da justiça social e pela construção de
uma cultura de paz” (BRASIL, 2007, p. 11).
Segundo Benevides (2000), a Educação em Direitos Humanos é:
A formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da
promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da
solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Isso significa criar,
influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos
e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais citados –
os quais devem se transformar em práticas. Ser a favor de uma educação que
significa a formação de uma cultura de respeito à dignidade da pessoa humana,
significa querer uma mudança cultural, que se dará através de um processo
educativo. (p. 1).
O que será necessário para um processo educativo, partindo-se da constatação de
que, apesar das dificuldades, é possível desenvolver uma ação educativa em direitos
humanos?
Primeiramente, é fundamental o conhecimento dos direitos humanos, das suas
garantias, das suas instituições de defesa e promoção, das declarações oficiais, de
âmbito nacional e internacional, podendo-se garantir somente aquilo que se conhece
como direito. Daí a importância de dar poder às pessoas para que sejam sujeitos de
direitos.
A escola tem um papel fundamental na construção desse “empoderamento”,
contribuindo na formação do sujeito de direito, por meio de práticas para o
reconhecimento e vivência desses direitos.
Nas sociedades contemporâneas, a escola é local de estruturação de
concepções de mundo e de consciência social, de circulação e de
consolidação de valores, de promoção da diversidade cultural, da formação
para a cidadania, de constituição de sujeitos sociais e de desenvolvimento de
práticas pedagógicas. O processo formativo pressupõe o reconhecimento da
pluralidade e da alteridade, condições básicas da liberdade para o exercício
da crítica, da criatividade, do debate de ideias e para o reconhecimento,
respeito, promoção e valorização da diversidade. Para que esse processo
ocorra e a escola possa contribuir para a educação em direitos humanos, é
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1199
Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
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importante garantir dignidade, igualdade de oportunidades, exercício da
participação e da autonomia aos membros da comunidade escolar. (BRASIL,
2007, p. 31).
A educação por meio da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da
justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz poderá
formar uma cultura de respeito e dignidade humana.
O aprendizado deve estar ligado à vivência desses valores e deve propiciar o
desenvolvimento de sentimentos, como sugere Paulo Freire:
Como alguém que não se respeita, que não respeita os seus próprios direitos,
que às vezes nem os conhece e que não luta por eles, poderia ensinar outro
alguém sobre o exercício de algum direito ou sobre qualquer outro conteúdo de
forma crítica e emancipadora? Ou como alguém desacostumado a lutar pode
conhecer o sabor da luta ou da possível vitória? Ou como um professor que se
deixa vencer pela rotina, por mais dura que pareça, pode contribuir para a
formação de sujeitos que exerçam plenamente a sua cidadania e saibam lutar e
defender os seus direitos civis, sociais. (FREIRE, 1997, p. 161).
A educação em Direitos Humanos pressupõe a busca de processos de ensino e
aprendizagem participativos e ativos, dessa forma, tem como intenção gerar uma
consciência que permita às pessoas assumirem atitudes de luta e de transformação,
diminuindo a distância entre o discurso e a prática dos Direitos Humanos no cotidiano.
Um sujeito de direitos é alguém com conhecimentos básicos dos direitos
humanos fundamentais e que os aplica na promoção e na defesa dos seus
direitos e os direitos dos outros. É alguém que está familiarizado com a
Declaração Universal dos Direitos Humanos e com algumas das resoluções,
acordos, convenções e declarações, nacionais e internacionais relacionadas
com os direitos humanos. (MAZENDZO, 2006, p. 4).
Uma sugestão importante para a ação educativa em direitos humanos é
“reescrever o conhecimento”:
Temos que reescrever o conhecimento a partir das diferentes raízes étnicas.
Mas não é cada um fechadinho no seu canto. Eu tenho que reescrever a partir
da minha experiência nessa raiz étnica. É a experiência vivida, inclusive no
nosso caso, pelos descendentes de africanos na diáspora. Uma das coisas de
que eu tento convencer meus alunos é o seguinte "gente, nós temos de olhar
para nós mesmos e olhar o mundo na nossa perspectiva". (...) nós temos de
reescrever para dialogar uns com os outros, mas aí é em pé de igualdade. Eu
não posso ter o olhar eurocêntrico que todos nós temos, porque a nossa
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1200
Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
Alunos
educação foi eurocêntrica e eu não posso continuar com esse olhar.
(MOREIRA, 2001, p.15).
Outra questão fundamental na educação em direitos humanos, e que hoje tem
causado debates públicos, é a igualdade, pois conforme o artigo 5º da Constituição
Federal, “todos são iguais perante a lei”. Mas de qual igualdade está se falando?
Segundo Candau (2008, p. 49), a igualdade de todos os seres humanos,
independentemente das origens raciais, da nacionalidade, das opções sexuais, enfim, a
igualdade é uma chave para entender toda a luta da modernidade pelos direitos
humanos.
Candau afirma ainda que atualmente o centro de interesse deslocou-se da
igualdade para a diferença: “Quando digo que houve um deslocamento, não estou
querendo dizer que se nega a igualdade, mas que se coloca muito mais em evidência o
tema da diferença. A questão está em como trabalhar a igualdade na diferença”
(CANDAU, 2008, p. 49).
Para reforçar essa reflexão, a autora menciona o novo imperativo transcultural:
Que no seu entender deve presidir uma articulação pós-moderna e
multicultural das políticas de igualdade e diferença: “temos o direito a ser
iguais, sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser
diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, apud
CANDAU, 2008, p. 49).
A educação em direitos humanos tem um significativo componente ideológico,
cultural e político, de modo que ela se insere numa perspectiva crítica de educação. As
contradições envolvidas no reconhecimento da importância do reescrever o
conhecimento, na mudança de nosso olhar a partir da reescrita do conhecimento, na
compreensão sobre igualdade e diferença e a compreensão dos componentes ideológico,
cultural e político, certamente impõem desafios para a escola que se proponha a garantir
direitos humanos em educação.
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Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
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Posicionamento dos alunos sobre direitos humanos e problemas percebidos na
escola
A análise sobre o que pensam os alunos acerca dos direitos e dos problemas da
escola revela e projeta o diálogo entre os sujeitos, no contexto da escola pública de
educação básica. A coleta de dados se apoia em uma pesquisa de abordagem qualitativa,
realizada com 781 estudantes de uma escola pública de ensino fundamental e médio,
situada em Curitiba.
A escola foi selecionada por estar situada numa região de grande vulnerabilidade
social, decorrente da pobreza, privação e fragilização de vínculos afetivos relacionais e
de pertencimento social dos alunos. Os participantes foram incluídos na pesquisa
mediante termo de consentimento livre e esclarecido, assinado pelos pais, no caso dos
menores de idade, e termo de consentimento livre e esclarecido assinados por eles, se
maiores de idade.
O instrumento de coleta de dados foi a entrevista estruturada, entendida como
aquela em que se apresenta ao participante da pesquisa um questionário estruturado com
perguntas previamente formuladas, pois o “principal motivo deste zelo é a possibilidade
de comparação com o mesmo conjunto de perguntas e que as diferenças devem refletir
diferenças entre os respondentes e não diferença nas perguntas” (LODI, 1974 apud
LAKATOS, 1996).
Dos estudantes que frequentam o ensino fundamental, 12,8% frequentam a
quinta série; 6,7% a sexta série; 6,7% a oitava série e 5,8% a oitava série. Dos que
frequentam o ensino médio, 25,4% frequentam o 1º ano; 25,2% frequentam o 2º ano;
13,4% frequentam o 3º ano e 4,1% o 4º ano técnico.
Os contornos da diversidade que circulam e convivem no espaço escolar
investigado podem ser analisados a partir de algumas características, como gênero,
idade, raça e rendimento.
Na questão do gênero, 56,7% pertencem ao gênero feminino e 43,1% ao gênero
masculino. Quanto às diferenças de gênero, alguns conflitos podem ser gerados na
escola em função da maioria de um dos grupos, ocorrendo a predominância da forma de
pensar de um grupo perante o outro ou também a criação de estereótipos que
padronizam comportamentos, o que causa a exclusão daqueles que não seguem esses
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1202
Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
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padrões. É interessante ressaltar que embora a maioria corresponda ao gênero feminino,
o currículo escolar não valoriza equilibradamente experiências femininas e masculinas.
Normalmente o currículo valoriza os interesses masculinos.
O currículo oficial valoriza a separação entre sujeito e conhecimento, o
domínio e o controle, a racionalidade e a lógica, a ciência e a técnica, o
individualismo e a competição. Todas essas características refletem as
experiências e os interesses masculinos, desvalorizando em troca, as estreitas
conexões entre quem conhece e o que é conhecido, a importância das
ligações pessoais, a intuição e o pensamento divergente, as artes e a estética,
o comunitarismo e a cooperação – características que estão, todas, ligadas às
experiências e aos interesses das mulheres. A solução não consistiria
simplesmente numa inversão, mas em construir currículos que refletissem de
forma equilibrada, tanto a experiência masculina quanto a feminina. (SILVA,
2007, p. 94).
Na questão da idade, 5,1% possuem 9 ou 10 anos; 15,5% possuem 11 ou 12
anos; 17,8% possuem 13 ou 14 anos; 29,7% possuem 15 ou 16 anos; 17,4% possuem 17
ou 18 anos e 14,3% possuem mais de 18 anos. Em cada fase de desenvolvimento, os
alunos apresentam concepções diferenciadas de mundo e de enfrentamentos diante da
realidade. Dessa forma, a convivência entre grupos de diferentes faixas etárias, se não
tiver uma educação voltada a uma prática multicultural, pode gerar conflitos de
sobreposição de um grupo sobre o outro, como no caso dos maiores sobre os menores,
na forma de bullying. Essa sobreposição pode ocorrer à indução de comportamento
demandando por um grupo de maior força, anulando a identidade das minorias.
A diferença, assim como a identidade, é um processo relacional. Diferença e
identidade só existem numa relação de mútua dependência. O que é (a
identidade) depende do que não é (a diferença) e vice-versa. (SILVA, 2007,
p. 101).
Na questão étnica/racial, 57% dos estudantes se consideram brancos; 27,8%
pardos; 8,1% negros; 3,1% amarelos e 3,6% indígenas. Somente 0,5% dos alunos não
soube responder como se considera. Essas diferenças podem gerar conflitos e
discriminações em relação à raça e à etnia.
Sobre raça e etnia há as perspectivas do caráter histórico e construído das
categorias raciais e a importância política e estratégica do sentimento de identificação
étnica e racial. Identidade étnica e racial é desde o início uma questão de saber e poder.
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Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
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O próprio termo raça indica a relação de poder do homem branco colonizador sobre o
negro dos países colonizados.
O texto curricular está recheado de narrativas étnicas e raciais, nas datas
comemorativas, lições orais, etc. Em geral, essas narrativas celebram os mitos da
origem nacional, confirmam o privilégio das identidades dominantes e tratam as
identidades dominadas como exóticas e folclóricas. Um exemplo forte é que a figura do
negro é sempre vista como a do escravo. Esse posicionamento interfere na construção
da identidade dos alunos.
Diante desses dados e na perspectiva de que a escola é o local de
convivência da diversidade, é importante ressaltar que todas as relações estão
envolvidas numa relação de poder. Nesse sentido, o currículo não pode ser entendido
sem uma análise das relações de poder nas quais ele está envolvido. O mapa do poder
inclui os processos de dominação centrados na raça, etnia, gênero e sexualidade. Essas
discussões são essenciais para se entender o contexto sobre os direitos humanos.
Por meio da entrevista estruturada, buscou-se verificar o que os estudantes
consideram como direito fundamental da pessoa, a partir da pergunta: O que você
considera como direito fundamental da pessoa? Nessa pergunta, do tipo aberta, cada
estudante poderia responder livremente qual o direito que ele considera fundamental. Os
resultados foram: 23,7% responderam respeito; 16,4% educação; 15,9% ensino médio e
faculdade; 14,3% liberdade de escolha, ir e vir, liberdade de pensamento e
independência; 9,9% liberdade de expressão, opinião e reclamação; 5,8% saúde e
saneamento básico; 5,5% moradia; 4,5% trabalho, emprego, oportunidade e valorização;
2,8% dignidade, caráter, confiança; 2,7% alimentação; 2,6% amor, paixão, felicidade,
amizade e espiritualidade; 2,6% lazer, brincar, esportes, amigos e cultura; 2,3% vida;
2,3% família e convivência familiar; 1,7% qualidade de vida e boa renda familiar; 1,5%
honestidade, vida pública, igualdade entre as pessoas, ética e justiça; 1,3% boa relação e
diálogo com pais, professores e colegas; 0,9% paz e equilíbrio; 0,8% segurança e menos
violência; 0,8% responsabilidade e sinceridade; 0,5% direito de errar e persistir; 0,5%
não ter ou ser vítima de preconceito; 0,5% privacidade; 0,5% conhecimento, informação
e acesso à internet; 0,5% obedecer e limites; 0,4% cidadania; 0,4% profissionalização;
0,3% atenção e 0,1% bolsa escola.
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Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
Alunos
Os direitos que os alunos mais enfatizam são: respeito, educação e aprender,
estudo, ensino médio e faculdade, liberdade de escolha, ir e vir, liberdade de
pensamento e independência.
É interessante ressaltar que 44 estudantes não souberam dizer sobre seus
direitos e a grande maioria apontou respostas que são efetivamente os direitos
fundamentais da pessoa apresentados na legislação.
Na continuação da entrevista estruturada, foram apresentados aos estudantes,
numa pergunta do tipo fechada, todos os direitos enunciados na Constituição Federal
(1988) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Os estudantes deveriam
escolher qual direito eles consideram o mais importante. Foram obtidos os seguintes
resultados: 25,1% responderam o respeito; 13,3% a vida; 12,2% a saúde; 11,3% a
convivência familiar e comunitária; 10,5% a liberdade; 9,3% educação; 8,2% a
dignidade; 4,5% a profissionalização; 1,7% a alimentação; 1,7% esporte; 1,4% a cultura
e 0,8% o lazer.
Observa-se que os direitos que os alunos consideram mais importante são o
respeito, a vida e em terceiro lugar a saúde, observando-se uma diferenciação entre os
direitos apontados na questão aberta. É interessante ressaltar que respeito e educação
aparecem nas duas tabelas com 23,7% e 25,7% e 16,4% (15,9% ensino médio e
faculdade) e 9,3% respectivamente.
E de qual respeito e qual educação os estudantes estão falando? Isso nos remete
a Paulo Freire quando escreve em Pedagogia da autonomia que:
Como educador, devo estar constantemente advertido com relação a este
respeito que implica igualmente o que devo ter por mim mesmo. [...] o
inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez seres éticos. O
respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não
um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. (FREIRE, 1996, p.
21).
Esses dados, aliados à resposta dos alunos quanto a não saber seus direitos,
podem trazer uma pista bem interessante para o trabalho com direitos humanos em
educação. O Art. 17 do ECA (1990) afirma que:
O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física,
psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da
imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos
espaços e objetos pessoais. (BRASIL, 1990).
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Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
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Esse artigo apresenta conteúdo rico para reflexões e “empoderamento” de
estudantes e de profissionais da educação.
Problemas identificados pelos alunos na escola
Uma educação que assegure os direitos humanos precisa exercitar o convívio
com a diversidade. Esse convívio vai além do respeito e da tolerância, e corresponde a
olhar os outros com olhos de sensibilidade, num posicionamento de alteridade.
Esse argumento é fundamental para se discutir a problemática proposta neste
artigo, que pretendeu saber quais as convergências e divergências nos posicionamentos
dos alunos sobre direitos humanos e os problemas percebidos na escola.
Buscando responder a esse questionamento, foi inquirida aos alunos uma
pergunta do tipo fechada sobre quais os problemas que a escola apresenta. Os maiores
problemas apontados foram: 32,9% os alunos; 20,5% os professores e 20,4% a
infraestrutura.
Como se pode observar, os maiores problemas dizem respeito ao relacionamento
entre alunos e professores e à infraestrutura. Foram apontados também problemas
referentes à equipe pedagógica, pais e familiares, equipe técnica administrativa e 29,1%
dos alunos afirmaram não saber informar.
Pode-se estabelecer uma relação entre o respeito como a maior exigência dos
direitos fundamentais, pois a maioria das justificativas é ações que caracterizam a falta
desse direito.
Quanto à relação com os professores, as justificativas dos alunos são: 23,8%
dizem que os professores não ensinam e não explicam; 14,4% a falta e o atraso de
professores; 13,8% os professores não sabem ensinar, não dá para entender suas letras,
não dominam a matéria, não têm qualificação e não sabem avaliar; 11,9% brigam,
xingam, gritam, são estressados e sem paciência; 10,6% não têm atitude, domínio da
turma ou não sabem lidar com conflitos; 9,4% agem com falta de educação, respeito e
ética; 8,8% falta de diálogo e entendimento com os alunos; 6,9% são professores chatos,
autoritários e exigentes; 6,3% professores não são comprometidos e motivados; 5,0%
não apontaram quais os problemas; 3,1% professores não querem ensinar e não
respondem perguntas; 2,5% não fazem atividades diferentes e não têm didática; 1,3%
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Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
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professores com problemas pessoais e problemas de saúde; 1,3% professores não dão
atenção e 1,3% falta de organização.
Quanto à variável infraestrutura, os alunos colocaram os seguintes problemas:
30,2% dizem que o colégio é velho, precisa de reforma, como paredes e muros com
rachaduras, goteiras, piso solto, má pintura, janelas e iluminação; 20,8% pichações;
10,7% banheiros sujos, estragados e sem espelho; 10,7% não apontaram qual o
problema na infraestrutura; 9,4% faltam laboratórios de informática (aulas), internet,
pesquisa, melhorar a biblioteca e sala de vídeo; 7,5% faltam material didático, esportivo
e recursos; 7,5% carteiras, mesas e quadro de giz estragados; 6,3% faltam salas, salas
pequenas; 4,4% faltam ventilador, bebedouro, cortinas; 3,8% falta segurança; 3,8% falta
de organização nas salas; 3,8% quadra de esporte sem iluminação e obra inacabada;
2,5% cantina e salas sujas; 1,9% faltam zeladores, funcionários e pessoas qualificadas;
1,9% merenda é ruim e sem qualidade; 1,3% faltam jardim, placas de jogar lixo,
proibido fumar e lugar para guardar bicicletas; 0,6% ratos e cupins; 0,6% muitas grades
e 0,6% falta acesso para deficientes.
Conforme os dados apresentados, observa-se que os alunos consideram a
necessidade de assegurar o direito ao respeito, conforme o art. 17 do ECA: preservação
da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e
objetos pessoais de crianças e adolescentes.
É papel da escola, portanto, estar em permanente luta contra as exclusões e todas
as formas de desigualdades que privilegiam uns e desconsideram muitos. É a escola
responsável por plantar nos alunos a esperança de uma sociedade mais justa, não uma
esperança utópica, mas “revolucionária”.
É interessante observar que a maioria dos problemas apresentados pelos alunos
está ligada ao comportamento entre alunos e o relacionamento com os professores. São
dados significativos e podem sugerir um trabalho mais efetivo em educação em direitos
humanos e o respeito à diversidade.
Quanto à infraestrutura, é importante pontuar que alguns aspectos estão
relacionados à política pública, nas três áreas de gestão: União, Estado e Município,
especificamente a área econômica, tais como construção, manutenção e fornecimento de
materiais, insumos, limpeza, acesso para deficientes, segurança para as unidades
escolares, entre outras. Algumas questões podem ser relacionadas às posturas dos
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Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
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próprios alunos que realizam pichações, depredam e sujam. É interessante refletir sobre
o que leva os alunos a essa atitude e ressaltar a importância do sentimento de pertença.
Conclusão
Dos problemas existentes na escola, identificados pelos participantes, é possível
inferir que se o respeito e a liberdade à diferença não forem vivenciados, são produzidos
preconceitos, discriminações e exclusões.
Uma educação que assegure os direitos humanos precisa exercitar o convívio
com a diversidade. Esse convívio vai além do respeito e da tolerância, e corresponde a
olhar os outros com olhos de sensibilidade, num posicionamento de alteridade.
Este argumento é fundamental para se discutir a problemática proposta neste
artigo: quais as convergências e divergências nos posicionamentos dos alunos sobre
direitos humanos e os maiores problemas percebidos na escola?
Felizmente, após a análise dos dados, observou-se que os alunos compreendem
quais são os direitos fundamentais e estes estão assegurados na legislação, o que é uma
convergência do posicionamento dos alunos e dos direitos humanos estabelecidos
constitucionalmente. Também se pode observar convergência entre os problemas
apresentados na escola e o sentimento de ausência de respeito apresentado pelos alunos
nos resultados das pesquisas, o que se pode concluir que os alunos almejam aquilo que
consideram importante para sua vivência. Dessa forma, fica clara a necessidade de se
promover ações na escola para a garantia do respeito.
É papel da escola, portanto, estar em permanente luta pela garantia desses
direitos. É a escola responsável por plantar nos alunos a esperança de uma sociedade
mais justa, não uma esperança utópica, mas “revolucionária”.
Assim, a perspectiva multicultural pensa um currículo baseado no respeito, na
tolerância e na convivência harmoniosa entre as culturas. Essa perspectiva não deixa
intactas as relações de poder que se manifestam nas relações entre os sujeitos. As
diferenças não devem ser só simplesmente toleradas e respeitadas à medida que elas
estão sendo feitas e refeitas, o que se deve focalizar são precisamente as relações de
poder que presidem a sua produção. O currículo, nessa concepção, não ensinaria só o
Maria de Lourdes do Prado Krüger D’Almeida & Paola Cristine Marchioro Hanna
1208
Políticas de Currículo e Direitos Humanos: o Diálogo entre a Diferença e os Direitos a partir da Perspectiva dos
Alunos
respeito e a tolerância, mas analisaria os processos pelos quais as diferenças são
produzidas. Num currículo multicultural, a diferença, mais do que respeitada e tolerada,
é colocada em questão.
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS COMO
OPÇÃO CRÍTICA DE EDUCAÇÃO E CURRÍCULO
Maria de Nazaré Tavares Zenaide
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Educação em Direitos Humanos como Opção Crítica de Educação e Currículo
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS COMO OPÇÃO CRÍTICA DE
EDUCAÇÃO E CURRÍCULO
Maria de Nazaré Tavares Zenaide 1
[email protected]
RESUMO: A Educação em direitos humanos emerge no processo de transição
democrática como prática não formal, articulada com as lutas em de resistência os o
arbítrio e a violência do regime militar nos anos 70-80 no Brasil. Com a
institucionalidade democrática em 1988, os direitos humanos se inserem como princípio
do Estado de Direito, sendo incorporado nos principais instrumentos legais normativa
da educação. Nesse momento, em que o Brasil após a criação do Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos, encaminha para a construção de diretrizes gerais para
a educação em direitos humanos emerge o debate: o que e para que educar em direitos
humanos; que conteúdos e temas, como ensinar para os diferentes estágios escolares;
quais os critérios de seleção dos conteúdos e com quem definir; aonde se quer chegar e
quais os resultados esperados; quais os referenciais teóricos e metodológicos e os
recursos pedagógicos como avaliá-los.O presente artigo se propõe a iniciar um debate
preliminar que possa contribuir com a construção de diretrizes curriculares para a
educação em direitos humanos a partir da perspectiva crítica de educação e currículo.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo – Direitos Humanos – Pedagogia Crítica.
1 A Educação em direitos humanos contextualizada num momento crítico de
violações dos direitos humanos
Gestada na educação popular ao longo da década de 70-80 na América Latina, a
pedagogia da educação em direitos humanos emergiu num momento histórico crítico,
em que forças políticas contrárias à ditadura foram severamente reprimidas e expulsas
do país, quando a universidade e a escola como aparelhos de hegemonia receberam o
impacto da violência institucional, quando as liberdades fundamentais e de cátedra
foram reprimidas, quando a positivação da ciência e da formação priorizou a
tecnificação e o empresariamento do ensino, quando a extensão universitária foi
1
Psicóloga, Professora do Departamento de Serviço Social e membro do Núcleo de Cidadania e Direitos
Humanos do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Educação do Centro de Educação da UFPB.
Maria de Nazaré Tavares Zenaide
1214
Educação em Direitos Humanos como Opção Crítica de Educação e Currículo
dissociada do ensino e da pesquisa na educação superior, alicerçando a construção de
perspectivas e práticas tradicionais de currículo.
Para Magendzo (2001, p. 10)
[...] se há ido configurando uma pedagogia de la educación de los
derechos humanos, que partiendo de la educación popular en donde
se gestó la educación en derechos humanos, hace suya una serie de
principios de la pedagogia crítica. Por sobre todo, se recupera el
sentido participativo, el enfoque problematizador y crítico, se liga la
educación a la realidad y la vida cotidiana, se propende a que se
establezca una comunicación horizontal entre docentes y estudiantes
basada en la confianza y en el reconocimiento de otro como un
legítmp otro.
Como afirma Pacheco (2001, p. 51) “as práticas pedagógicas estão relacionadas
com as práticas sociais”, cabendo aos educadores críticos identificar nas relações de
poder, as contradições e resistências, as opressões e injustiças.
Portanto, antes de nos perguntarmos o que ensinar, precisamos questionar para que
a educação em direitos humanos. Na origem das experiências não formais de educação
em direitos humanos, inventadas a partir da necessidade histórica de resistir à violência
e as formas de opressão e dominação se buscava transformar o medo e a dor frente às
violações em sentimentos e ações de indignação e resistências; o silenciamento e o
isolamento das vitimas em gritos e solidariedade, o arbítrio e o uso extremo da força
em resistência civil, organizando sujeitos críticos para mudar uma realidade violadora
da dignidade e das liberdades. Nesse sentido, o direito à memória e à verdade assim
como a responsabilização social são temas necessários da educação em direitos
humanos. (ARENDT, 2004)
A educação em direitos humanos com a institucionalidade democrática galgou a
educação formal ousando entrar no sistema formal de ensino. Não se trata apenas de
prevenir as violações à dignidade e os direitos fundamentais que assumem novas
manifestaçaões com a rede de organizações sociais, é preciso que o Estado de Direitos
prepare seus agentes para o respeito ativo aos direitos humanos, a proteção e a
segurança não só do Governo e suas organizações, como de todos os cidadãos. A
institucionalidade democrática demanda que cidadãos (ãs), gestores e agentes públicos
sejam informados das leis e normas de proteção e dos mecanismos de defesa
reconhecidos e protegidos pelo Estado Democrático de Direito, que saibam exigir tais
Maria de Nazaré Tavares Zenaide
1215
Educação em Direitos Humanos como Opção Crítica de Educação e Currículo
direitos e usar os mecanismos institucionais de proteção e defesa, assim como, os
mecanismos políticos de participação direta e indireta; assim como, formar juízo crítico
e independente; exercer autocrítica; saber dizer não com autonomia e liberdade; resistir
a demandas arbitrárias; respeitar e fazer ser respeitado nas diferenças; usar a palavra ao
invés da força para administrar conflitos e crises.
2. Reflexões para a construção de Diretrizes na perspectiva Crítica
A educação em direitos humanos em sua origem articula um conjunto de
princípios da educação crítica – a resistência ao autoritarismo e a naturalização da
violência e dos fenômenos educacionais, a perspectiva da emancipação do sujeito frente
a dominação e a opressão, a crítica ao currículo tradicional pautado na racionalidade
instrumental, na relação verticalizada entre educandos e educadores, na positivação do
saber especializado e descontextualizado, a perspectiva reprodutivista que defende a
educação liberal concretizada no currículo formal e oculto que reproduz ideologias e
mecanismos de poder concerníveis com o status quo, o diálogo intercultural inserindo
os recortes de gênero, as relações étnicos raciais como parte do currículo no contexto
democrático.
Para Silva (2000) Dewey apresenta uma concepção progressista de currículo
quando propõe que a educação se transforme num espaço de vivências e práticas
democráticas, rompendo a visão tradicional de currículo conteudistica que enfatiza os
aspectos técnicos em detrimento dos contextuais e vivenciais. Nessa perspectiva, a
centralidade dos sujeitos no processo educativo, o clima, a gestão, as relações
interpessoais e de poder, os processos de administração de conflitos e as metodologias
são elementos relevantes para qualificar as vivencias escolares que possam desdobrar-se
em processos de significação pessoal, intersubjetivos e organizacionais.
Com os movimentos sociais globais na década de 60 no campo educacional
emergiram movimentos de críticas sobre a função reprodutivista da escola e do
currículo, a partir das contribuições de Althusser acerca da ideologia e da crítica a
escola como aparelho de produção simbólica e reprodução ideológica da hegemonia
dominante permeado pelos conteúdos das matérias. Bowles e Gintis, por sua vez,
Maria de Nazaré Tavares Zenaide
1216
Educação em Direitos Humanos como Opção Crítica de Educação e Currículo
enfatizaram ao invés dos conteúdos, as vivências e experiências escolares como espaços
de formação de atitudes, incorporação de valores dominantes.
Bordieu e Passeron criticam a educação a partir do conceito de reprodução
cultural. Para eles o funcionamento da escola produz uma economia que implica no
capital cultural, capaz de gerar valor social a partir da cultura dominante. Ao naturalizar
a cultura dominante, as classes hegemônicas não só obtém consenso, como também
generaliza a cultura dominante como essência ocultando a dominação dos processos
simbólicos. Durante o processo de colonização no Brasil naturalizou-se a cultura dos
dominadores como valor, em nome da civilização exterminou-se as populações
indígenas e quilombolas que resistiam a dominação, hierarquizou-se culturas violando o
direito à diversidade.
A insistência das culturas subordinadas em políticas de identidades e de inclusão
social como elemento da cidadania intercultural, desvelando as contradições presentes
na sociedade que se afirma plural e democrática. Para Bordieu e Passeron, o processo de
reprodução social se constrói a partir dos mecanismos de exclusão e ocultação das
relações de dominação e opressão, onde a cultura é o espaço onde se movem o capital
simbólico.
Com Bourdieu e Passeron a reprodução social se centra no processo de reprodução
cultural, que está permeado de linguagens simbólicas. A naturalização que se produz
pela imposição de uma cultura (dominante) em detrimento das múltiplas culturas
(silenciadas e subordinadas) e o modo de ocultamento desses mecanismos é o que
produz o processo de dominação cultural. Nesta concepção a desnaturalização dos
fenômenos sociais relacionados aos direitos humanos, assim como a crítica a
banalização da violência é um dos eixos da educação em e para os direitos humanos.
Desocultar o silenciamento das vítimas para que possam não só reagir, mas agir em sua
defesa e reparação, desnaturalizando a violência é um dos objetivos da educação para os
direitos humanos.
Apple ao criticar as concepções mecanicistas em relação a determinação
econômica ressalta a mediação da ação humana, propondo articular aspectos estruturais
com relacionais. Para ele, o currículo ocorre em relações de tensões e de resistências.
Apple questiona: qual o conhecimento é considerado verdadeiro! Quem define! Quais
os interesses e relações de poder permeam a escolha dos conteúdos!
Maria de Nazaré Tavares Zenaide
1217
Educação em Direitos Humanos como Opção Crítica de Educação e Currículo
Os movimentos identitários denunciam a exclusão de suas culturas no currículo
oficial como uma questão de dominação e reprodução social, assim como denunciam a
escravidão como mecanismo de dominação econômica, social e cultural, já que esta
resultou em processos de hierarquização cultural manifestando-se nos preconceitos,
estigmas, estereótipos e atitudes discriminatórias. Ao estar fora dos espaços de poder se
reproduz o estranhamento em relação aos grupos excluídos, quando também, se produz
mecanismos de criminalização seja pelos mecanismos penais e de segurança, como pela
saúde e pela educação, apesar da igualdade formal discursar sobre a isonomia.
O princípio do diálogo intercultural na educação em e para os direitos humanos
implica em incluir a identidade como componente curricular num contexto de disputa e
resistências. Pacheco (2001, p. 54) ressalta como as questões de classe, gênero e etnia
constituem domínios de vivências de processos de opressão, exploração e dominação.
Magendzo (2001, p. 10) argumenta acerca da relação entre a educação em direitos
humanos e a pedagogia crítica, para ele, “liga a la educación em derechos humanos con
la pedagogia critica, problematizadora, contextualizada y com la educación para el
empoderamiento”, assim como argumenta concordando com Habernas acerca do caráter
emancipador do conhecimento dos direitos humanos, uma vez que,
[...] su interes central es la autônoma y la libertad racional, que
emancipa a las personas de las ideas falsas, de las formas de
comunicación distorsionadas y de las formas coercitivas de relación
social que contriñen la acción humana y social.
A educação em direitos humanos recupera segundo Magendzo
[...] el sentido participativo, el enfoque problematizador y critico se
liga la educación a la realidad y la vida cotidiana se propone a que se
estabelezca una comunicación horizontal entre docentes y estudiantes
basadas en la confianza y en el reconocimiento del otro como como
un legítimo otro.
Magendzo (2001, p. 11) destaca a função crítica, para além de “proporcionar los
conocimientos normativos” a educação em direitos humanos leva os sujeitos a poder
atuar sobre a realidade.
Maria de Nazaré Tavares Zenaide
1218
Educação em Direitos Humanos como Opção Crítica de Educação e Currículo
[...] tem que crear condiciones de uma educación em derechos
humanos capaz de transformar y emancipar a las personas para que
traten de superar la irracionalidad y la injusticia que subjacen em la
violación permanente de los derechos humanos em sus vidas
cotidianas.
Magendzo ressalta a importância do corpo técnico e normativo que subsidia a
defesa dos direitos humanos e os processos reparatórios e a proteção dos direitos, mas
também do conhecimento prático gestado na atuação das pessoas como sujeitos de
direitos no cotidiano. A educação em direitos humanos tem como princípios
norteadores, segundo Magendzo: os direitos humanos é um conhecimento emancipador;
construtor de sujeitos de direitos assim como sua metodologia assume os paradigmas da
pedagogia crítica e da pedagogia problematizadora. Não se restringe ao saber
acadêmico, mas também o prático gerado na experiência cotidiana, podendo assumir
modalidades formais, não-formais e informais.
Para Salvat (apud CANDAU, 1999, p. 16) o caráter crítico da educação em
direitos humanos se constrói enquanto objeto de reflexão crítica da ação educativa.
Os direitos humanos aparecem, para nós, como uma utopia a
promover e plasmar em diferentes níveis e espaços da sociedade.
Como tais, se apresentam como um marco ético-político que serve de
crítica e orientação (real e simbólica) das distintas práticas sociais
(jurídicas, econômicas, educativas, etc.) na luta permanente por uma
ordem social mais justa e livre.
Nesse sentido, insere a noção de educação de Benevides (1998, p. 157) como,
[...] formação do ser humano para desenvolver suas potencialidades
de conhecimento, julgamento e escolha para viver conscientemente
em sociedade, o que inclui também a noção de que o processo
educacional, em si, contribui tanto para conservar quanto para mudar
valores, crenças, mentalidades, costumes e práticas.
No contexto democrático, um dos princípios da educação em direitos humanos é a
afirmação dos direitos historicamente conquistados e o enfrentamento das formas de
opressão, exploração e dominação presentes na realidade social. Nesse sentido, a
educação em direitos humanos, implica na formação de sujeitos críticos capazes de
Maria de Nazaré Tavares Zenaide
1219
Educação em Direitos Humanos como Opção Crítica de Educação e Currículo
processar a desnaturalização das violações e intervir sobre sua realidade concreta,
transformando-a.
Ensinar cada um a respeitar os próprios direitos humanos e o dos
demais, e possuir, quando for necessária, a coragem de afirmá-los em
quaisquer circunstâncias, inclusive nas mais difíceis: tal é o
imperativo do nosso tempo. (AMADOU-MAHTAR M’BOW apud
BETO, 1998, p.45)
Rodini (2009, p.6) ressalta a função preventiva em relação à violência e a função
ético-social de construção de uma cultura que se paute nos princípios democráticos.
“Las metas de la EDH son: Uma, preventiva (de valor negativo, instrumental): evitar
violaciones de DDHH [...] Otra, constructiva (de valor positivo, ideológico): crear uma
cultura de derechos humanos”.
A prática educativa em direitos humanos é essencialmente crítica, por isso o
processo de inserção tão ressaltado em documentos internacionais encontra tantas
resistências na escola, nos gestores, na mídia e na sociedade. Dornelles (1998, p. 12)
confirma as resistências presentes no processo de educação em e para os direitos
humanos, quando afirma:
Uma atividade crítica assumidamente política, que sofre muitas
resistências tanto nos modelos políticos repressivos, quanto dos
sistemas educacionais repressivos e manipuladores, vigentes em
muitas sociedades democráticas.
Neste processo, os fundamentos teóricos da educação em direitos humanos se
inserem numa abordagem teórica progressista e crítica da educação e do currículo,
considerando que seus objetivos inserem uma visão crítico-transformadora dos valores,
atitudes, relações e práticas sociais e institucionais.
A Educação em Direitos Humanos potencializa uma atitude questionadora,
desvela a necessidade de introduzir mudanças, tanto no currículo explícito,
quanto no currículo oculto, afetando assim a cultura escolar e a cultura da
escola [...] aflora o conflito entre manutenção e mudança educacional [...]
reduz a problemática da educação aos direitos humanos à introdução de uma
nova disciplina escolar ou à mera afirmação de que deve perpassar todos os
conteúdos curriculares transversalmente [...] questiona se é melhor avançar
lentamente ou acelerar processos, entre a linguagem neutra e a
comprometida [...] gera a tensão entre falar e calar sobre a própria história
Maria de Nazaré Tavares Zenaide
1220
Educação em Direitos Humanos como Opção Crítica de Educação e Currículo
pessoal e coletiva como necessidade de trabalhar a capacidade de recuperar
a narrativa das nossas histórias na ótica dos direitos humanos [...] afirma a
tensão entre atomização e integração de temas como questões de gênero,
meio ambiente, questões étnicas, diversidade cultural, etc. (CANDAU, apud
NUEVAMÉRICA, 1998, p. 36-37)
A integralidade das dimensões, promoção, proteção, defesa e reparação das
violações aos direitos humanos afirmam a multidimensionalidade dos direitos humanos.
A perspectiva integral do currículo articula-se com uma visão multidimensional dos
direitos humanos no processo educativo. Marcela Tchimino Nahmías ressalta assim a
dimensão educativa,
[...] o conhecimento dos direitos humanos não só tem uma expressão
real nos instrumentos jurídicos que o consagram, senão que também
que concretiza em significações e representações que pessoas
concretas outorgam aos direitos humanos em suas vidas cotidianas.
[...] é preciso estabelecer o sentido da educação em direitos humanos
desde uma visão crítica para dimensionar e valorizar os processos
comunicativos e de interiorização que conduz a construção de
sujeitos com capacidade autônoma para pensar, atuar e emitir juízos
éticos. (NAHMÍAS apud NUEVAMÉRICA, 1998, p.42-43)
No contexto democrático, o exercício da participação, da liberdade, da construção
de consensos e responsabilidades, da solidariedade e da busca de justiça social para
todos, por sua vez, possibilita a construção de uma cultura política que tenha os direitos
humanos como princípios norteadores das práticas educativas. Se de um lado, a cultura
de direitos foi sendo gestada no plano político e jurídico no âmbito internacional,
regional, nacional e local, no plano das práticas sociais e institucionais carece de ser
incorporada como parâmetro ético capaz de gerar novos modos culturais e novas
práticas institucionais e sociais.
Se como afirma Pacheco (2001, p. 64) o currículo é uma construção que envolve
os uma prática performativa a educação em direitos humanos implica em processos
participativos e dialógicos. A educação em direitos humanos se insere em situações
concretas no contexto educacional, onde se conflitam leituras de mundo, modos de ser e
agir, interesses individuais e coletivos, perspectivas teóricas e metodológicas. Como o
currículo, a educação em e para os direitos humanos é espaço de embate e diálogos
democráticos onde a prática é uma construção coletiva.
Maria de Nazaré Tavares Zenaide
1221
Educação em Direitos Humanos como Opção Crítica de Educação e Currículo
Considerações Gerais
A educação em direitos humanos não é uma ação neutra, mas essencialmente
política e socialmente construída e comprometida com a promoção, a proteção e a
defesa dos direitos individuais, coletivos de toda a humanidade; pois ela surge no
contexto das lutas sociais engajadas com a construção das forças sociais democráticas,
através dos movimentos sociais e organizações populares, e se institucionaliza nos anos
90, articulando políticas públicas no campo da educação.
O currículo na perspectiva crítica, segundo Apple (apud SILVA, 2000, p.46-47)
“não é um corpo neutro”, ele encontra-se relacionado não só as estruturas econômicas,
políticas e culturais, como também, as relações sociais conflitadas pelos recortes de
classe (APPLE), de gênero e etnia (MULTICULTURALISMO) que permeiam a
estrutura, na forma de escolha e de transmissão dos conteúdos (BERNSTEIN), a tensão
entre reprodução social e cultural e as manifestações do currículo oculto.
Zenaide (2004) ressalta os dilemas ético-político-pedagógicos experienciados no
processo de educação em direitos humanos: a resistência à mudança, as atitudes que
reproduzem preconceitos e produzem práticas discriminatórias, as posturas que tem
como efeito a naturalização da violência e a banalidade da vida, as concepções que
refletem a presença de uma cultura excludente e autoritária, a resistência à autocrítica e
à mudança, assim como de exercer a liberdade e a responsabilidade social, a perda da
capacidade de se indignar, a reprodução de modelos culturais pautados no machismo,
assim como expressões de xenofobia, sexismo e racismo, a falta de informação dos
direitos e mecanismos de proteção e defesa, o silenciamento como estratégia de
sobrevivência frente à violência, a insensibilidade e a indiferença em relação ao outro.
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capacitação de educadores. João Pessoa: Editora Universitária, 2008.
Maria de Nazaré Tavares Zenaide
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
DIREITOS HUMANOS NO CURRÍCULO ESCOLAR
COMO MEIO DE EFETIVAR O DIREITO À
EDUCAÇÃO
Taísa Caldas Dantas
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
DIREITOS HUMANOS NO CURRÍCULO ESCOLAR COMO MEIO DE
EFETIVAR O DIREITO À EDUCAÇÃO
Taísa Caldas Dantas
RESUMO: A presente pesquisa tem a finalidade de proceder a uma análise acerca do
currículo escolar baseado nos direitos humanos como meio para garantir o direito de
todos à educação. Questiona-se como muitas vezes a estrutura rígida e inquestionável
do currículo, tem sido instrumento de promover desigualdades na escola e impossibilitar
o acesso de todos à educação, ao conhecimento e à cultura. Nesse sentido, aqueles que
não conseguem aprender no tempo e ritmo previsto no currículo são taxados de
incapazes ou deficientes e são diariamente excluídos. Caracterizando-se como uma
pesquisa bibliográfica, fez-se uso da legislação e da doutrina referente ao direito à
educação, ao currículo escolar e a importância dos direitos humanos no currículo
escolar. O presente ensaio se desdobrou em três partes, onde inicia-se analisando as
dimensões do direito à educação, em seguida a rigidez do currículo escolar e a exclusão
que ele proporciona e, por fim, demonstra-se o que significa um currículo escolar
pautado nos direitos humanos, como meio de efetivar o direito de todos à educação.
Dessa forma, concluiu-se que a escola, como meio para garantir a educação de todos,
precisa repensar a rigidez com que o currículo escolar é organizado e a necessidade de
construí-lo sob a perspectiva dos direitos humanos.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à educação. Currículo Escolar. Direitos Humanos.
Introdução
A escola, enquanto espaço onde deveria ser garantido o direito à educação, acaba
por constituir um lugar de classificação e hierarquização dos alunos, onde aqueles que
não conseguem aprender os conteúdos previstos no tempo curricular, são denominados
de deficientes, incapazes, lentos. Isto se dá, pois é o currículo que determina toda a
organização e trabalho escolar e apesar de ser reconhecida as diferenças entre os alunos,
a estrutura curricular é organizada de forma única, rígida, inquestionável, pautado
naqueles que são tidos como “normais”.
Dessa forma, o currículo como tem sido organizado atualmente, constitui um
meio de acentuar as desigualdades sociais, de gênero, raça, poder, riqueza, etc. Um
Taísa Caldas Dantas
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Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
currículo que se tornou inquestionável, tem negado o direito à educação e ao
conhecimento de inúmeras crianças, adolescentes, jovens e educandos com
necessidades especiais, já que as desiguais formas como os alunos saem em relação ao
domínio dos conteúdos determinam toda sua vida e até a entrada no mercado de
trabalho.
Em um mundo de globalização, onde a regulação da sociedade capitalista é
constituída por processos de desigualdade e exclusão, a escola parece se incorporar à
esse fato e um lugar onde deveria ser celebrada a inclusão de todos, se torna um espaço
de diferenças. Devido à esse enquadramento ao sistema, a escola se torna tecnicista e o
ensino propagado por ela se configura apenas como um meio para formatar um
indivíduo para mercado e não para vida.
Importante ressaltar, que a Declaração Universal de Direitos Humanos, a
Constituição Cidadã de 1988, a LDB e o ECA, recolocou como objetivos da educação
básica a formação plena do indivíduo, o preparo para exercício da cidadania e a
qualificação para o trabalho. Dessa forma, reconhecer aos cidadãos a garantia desse
direito, nos obriga com urgência a rever um currículo que condiciona a ação docente
para uma prática tecnicista, pragmática e positivista.
Dentro desse contexto, reconhecendo os educandos como sujeitos de direitos,
onde todos têm direito à educação, ao conhecimento e à cultura, de forma que sejam
formados integralmente, nos impulsiona a repensar em um currículo que seja pautado
nos direitos humanos, norteado pelo princípio da dignidade da pessoa humana e como
meio para diminuir as desigualdades, valorizar a diversidade e promover a educação de
todos os cidadãos indistintamente.
É nessa perspectiva que essa pesquisa se desdobra, onde através de uma pesquisa
bibliográfica, analisar-se-á em um primeiro momento, as dimensões do direito à
educação como um direito humano; em um segundo momento, as desigualdades que o
currículo proporciona da maneira como é pensado e planejado; e, por fim, o que
significa um currículo pautado nos direitos humanos, como meio para efetivar o direito
à educação de todos os indivíduos.
Taísa Caldas Dantas
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Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
Fundamentação Teórica
1.
As dimensões do direito à educação
Cumpre ressaltar inicialmente que a educação é um direito humano e, como tal,
indispensável para garantia de inúmeros outros direitos, como o direito de participar
livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e participar do progresso
científico e de seus benefícios.1 Além dessa dimensão, a importância da educação
também está no fato de consistir em um meio de socialização da nova geração, exercida
pelas gerações adultas sobre aqueles que ainda não se encontram preparados para a vida
social (DURKHEIM apud SCHILLING, 2005, p. 133).
Dessa forma, compreende-se que a educação, realizada em espaços formais ou
não-formais, de maneira formal ou informal, tem o fim não apenas de transmitir
conteúdos ou formar para o desempenho de uma função específica do mercado de
trabalho, mas possui um papel fundamental na formação integral do indivíduo, na
construção dos valores e princípios que irão determinar sua vida em sociedade. O direito
a educação encontra-se consagrado nas dimensões acima mencionadas, como direito de
todos, independente de raça, cor, sexo, classe social, tanto no plano internacional,
quanto no ordenamento jurídico do País.
No plano internacional, o direito a educação está consagrado na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, sendo um direito humano fundamental e também
essencial para garantia de outros direitos. Em relação à educação, o art. 26 da
Declaração prescreve que:
A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da
personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas
liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a
amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades
das Nações Unidas em prol da manutenção da paz (DECLARAÇAO, Art. 26)
Nesta afirmação, formula-se uma tensão central da tarefa educacional que deverá
promover a igualdade de todos em relação ao conhecimento e lidará com a diferença
1
Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo XXVII – 1. Toda pessoa tem o direito de participar
livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do processo científico e de
seus benefícios.
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Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
existente entre as pessoas, para que o objetivo maior da educação se concretize, ou seja,
o da possibilidade da convivência entre diferentes (SCHILLING, 2008).
Dessa forma, diferentemente da visão reducionista da educação atual, fruto da
globalização, onde a escola precisa apenas preparar para o mercado de trabalho, no que
se refere ao indivíduo, a instrução é concebida pela Declaração, nos termos mais amplos
possíveis. É colocada como instrumento que desenvolve a personalidade humana –
física, emocional, intelectual e social – de maneira a permitir a auto-determinação e a
recompensar o relacionamento com outros seres humanos e com a sociedade em geral
(WILDE, 2007). Ainda nesse sentido, o referido autor, explica, que:
Quanto aos objetivos mais amplos da educação, o Artigo 26 sublinha a
importância de promover as virtudes cívicas, como o respeito ao ser humano, a
dignidade humana, a coexistência, a paz e a justiça, que são a base dos direitos humanos
(WILDE, p. 152, 2007).
Assim, a educação conforme consagrada pelo Texto de 1948, deve atender a dois
requisitos principais: desenvolver a personalidade humana e promover um
relacionamento sadio entre os homens, pautado no respeito ao ser humano,
independente de suas debilidades, especificidades, diferenças.
Dentro desse contexto, tendo como inspiração a Declaração ora citada, a
Constituição-Cidadã de 1988, também veio a consagrar o direito a educação de todos os
indivíduos, representando um avanço para o Brasil, no que se refere à introdução de
instrumentos jurídicos para que plenamente esse direito seja efetivado. Ou seja, caso o
indivíduo não esteja tendo o seu direito garantido assim como está posto no texto
constitucional, ele poderá acessar os meios jurídicos para satisfazê-lo.
A respeito da intencionalidade maior da educação preconizada na Constituição
Cidadã, pode ser expressa em seu art. 205:
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Complementando o artigo acima citado, a fim de evitar uma interpretação
dualista entre cidadania e trabalho, evitando assim o tradicional caminho do Brasil de
tomar a qualificação do trabalho como uma sala sem janelas que não a do mercado, a
LDB, em seu art. 22, acrescenta como sendo partes de uma educação voltada para a
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Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
cidadania, tanto o trabalho quanto o prosseguimento em estudos posteriores, quando
assim dispõe:
A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação
comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em
estudos posteriores (LEI DE DIRETRIZES E BASES, art. 22).
Sendo assim, claro está no ordenamento jurídico do País, que a educação se
move tanto no sentido de desenvolver o educando numa formação plena, quanto no
exercício da cidadania, bem como para prepará-lo para o trabalho. O grande cerne da
questão atual, é que o sistema educacional tem valorizado o aspecto do trabalho em
detrimento dos outros aspectos, tão importantes, ou por que não dizer, imprescindíveis
para que a dimensão do trabalho seja alcançada. E nessa luta desenfreada de preparar
para o mercado de trabalho, tem excluído aqueles que não alcançam esse padrão
desejado.
Na Constituição, há um reconhecimento de que esse é um direito indispensável
na construção de um cidadão que seja sujeito ativo e crítico, razão pela qual a educação
básica torna-se ao mesmo tempo, um direito nato do cidadão e um dever do Estado.
Mas, o que ocorre é que essa dimensão do direito a educação como formação de um
sujeito crítico, não tem sido atendida pela escola, fundamentalmente por seu currículo,
que tantas vezes prioriza disciplinas exatas, técnicas, relegando a segundo plano as
humanas, que tratam mais diretamente do valor do ser humano.
Ainda nesse âmbito de proteção ao direito à educação, tendo por base a
Constituição Cidadã e como diretriz norteadora a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 1990, o Brasil sanciona a Lei n. 8069/90, que institui o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA). O Estatuto assegura uma educação voltada para o
pleno desenvolvimento da pessoa, tornando clara a prática para cidadania e a
capacitação para o trabalho. Nesse sentido, o artigo 53 dispõe que:
Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de
sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: I igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - direito de ser respeitado por seus
educadores; III - direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares
superiores; IV - direito de organização e participação em entidades estudantis; V - acesso à escola pública
e gratuita próxima de sua residência. Parágrafo único. É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do
processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais. (Lei 8060/90, art. 53)
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Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
Como se observa, ao garantir o direito a educação, o Estatuto coloca
prioritariamente o pleno desenvolvimento do educando enquanto pessoa, em segundo
lugar o preparo para o exercício da cidadania e por último, a qualificação para o
trabalho. Acerca do tema, importante afirmação faz Costa:
Esta hierarquia estabelece o primado da pessoa sobre as exigências relativas à vida cívica e ao
mundo do trabalho, reafirmando o princípio basilar de que a lei foi feita para o homem e não o contrário.
Isto significa que a pessoa é finalidade maior, devendo as esferas da política e da produção levarem em
conta este fato na estruturação e no funcionamento de suas organizações (COSTA, p. 194, 2006)
Efetivando o valor do desenvolvimento da pessoa como prioridade sobre o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, essa dimensão da educação
consagrada não só pelo ECA, mas pela Constituição Federal e pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos, deveria ser a diretriz norteadora dos currículos
escolares, para realmente efetivar a educação como um direito humano. É preciso
entender que a educação como um direito humano possui duas dimensões: a do acesso e
a da permanência. Nesse sentido:
O acesso é uma dimensão fundamental para a realização da educação como um direito humano;
outra dimensão central é a da permanência, porém, de uma permanência onde possa se realizar o
conteúdo do direito de acesso irrestrito ao saber, ao conhecimento científico acumulado (SCHILLING, p.
278, 2008)
Porém, conforme demonstraremos a seguir, não é sob essa perspectiva que os
currículos têm sido construídos, mas por outro lado, tem sido incorporado ao ambiente
escolar o sistema que rege a sociedade atual que exclui tantos, todos os dias.
2. O currículo escolar como promotor de desigualdades na escola
Demonstrado como o direito à educação está garantido pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos e pelo ordenamento jurídico do País, cumpre ressaltar
que a escola possui um papel primordial dentro da garantia do direito a educação.
Apesar dela não ser o único lugar onde a educação pode ocorrer, a escola é o meio que o
Estado dispõe para cumprir com o seu dever na efetividade desse direito. E, dentro da
escola, o currículo possui um papel fundamental já que ele condiciona toda a
organização escolar. SCHILLING afirma que:
Este é o objetivo central das escolas, da educação formal: possibilitar o acesso aos bens
científicos e culturais produzidos pela humanidade. Este é o conteúdo do direito à educação, ou deveria
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Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
orientar as escolhas metodológicas e curriculares, com uma forte ênfase na idéia de igualdade de todos e
todas para participar da cultura e da ciência. (SCHILLING, p. 273-274, 2008)
Nesse sentido, importante se faz questionar se os valores que estruturam os
currículos são igualitários e democráticos, tendo como referencial político a garantia de
todos ao conhecimento, à cultura e à formação humana.
Tais questionamentos vão muito mais além do que didáticas, atualização das
disciplinas ou acréscimo de alguns temas transversais. Mas, a base da insatisfação com
o currículo está no condicionamento que ele dá a organização do trabalho, no tempo, na
forma como os professores atuam, no padrão estabelecido, onde tantas vezes tem
provocado desigualdade e exclusão na escola, impedindo que todos os alunos tenham
realmente o direito à educação, sendo este apenas privilégio de alguns.
Os educandos, que deveriam ser sujeitos centrais da ação educativa, são
condicionados ou classificados pelos conhecimentos a serem aprendidos e, sobretudo,
pelas lógicas e tempos predefinidos em que terão de aprendê-los. Os educandos são
medidos pela aprendizagem dos conteúdos curriculares, nas lógicas temporais e nos
recortes em que esses conhecimentos são organizados no currículo. Este, é construído a
partir de protótipos de alunos, estruturando-se em função destes, enquanto os reproduz e
legitima. E nesse sentido, o objetivo da escola é que os alunos aprendam de tal forma, a
alcançar o protótipo esperado por ela. Portanto, há uma relação direta entre a forma
como os currículos se estruturam e a formação dos diversos padrões de alunos que
espera-se (GONZÁLES, 2008).
O ordenamento curricular não é neutro, mas condicionado pela pluralidade de
imagens sociais que estão presentes na sociedade de crianças, jovens e adultos nas
hierarquias sociais. As ações pedagógicas são orientadas com o fim de construir um
determinado tipo de aluno (ativo, criativo, autônomo), em oposição a outro tido por
“desqualificado”.
Como instituição, a escola é um sistema de classificação e re-
classificação constante. Essa instituição, concebida nos tempo modernos, como
realizadora do direito humano à educação, de forma igualitária, produz incessantemente
a assimetria, a diferenças, os diferentes (SCHILLING, 2008)
Taísa Caldas Dantas
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Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
Na corrida inacabável e doentia por atender as novas exigências que o mundo do
mercado impõe à sociedade, a visão dos alunos como empregáveis tem sido
determinante nas políticas formuladoras do currículo, fazendo com que a escola não
efetive o direito a educação, conforme está garantido pela Declaração e pela legislação
pátria, na dimensão da formação plena do indivíduo. Esta concepção reducionista dos
educandos, faz com que aqueles que conseguem corresponder às expectativas colocadas
pela escola sejam classificados como bons, enquanto os que por alguma especificidade
não se enquadra no padrão esperado pela escola para qualificar-se para o trabalho, seja
visto como incapaz. Nesse sentido,
(...) a educação escolar ainda é vista como uma ponta para a conquista de um lugar no mercado
de trabalho. Quão distantes estamos da compreensão da escola como uma instituição que tem o dever de
garantir o direito de todos ao saber, ou seja, da educação como um direito humano. (SCHILLING, 2008)
Dessa forma, há uma redução do currículo ao domínio de competências e a uma
concepção pragmatista e positivista de conhecimento e de ciência, renunciando à
possibilidade de se ter um projeto de sociedade de formação humana e de educação. É
preciso, relativizar o papel das demandas do mercado na reorientação dos currículos,
entendendo que isso não significa a negação dos educandos à preparação para o
trabalho, já que este também é um direito humano fundamental. Mas, ter como referente
ético dos currículos, o direito dos educandos ao trabalho e o direito aos conhecimentos e
saberes, é ir além do referencial mercantil, do aprendizado e das competências.
Ainda nessa discussão, outra imagem acerca dos educandos que permeia o
currículo escolar e se apresenta como empecilho è efetividade do direito á educação, é
vê-los como desiguais perante os saberes e a capacidade de aprendê-los. Hierarquizar os
desiguais é inerente à cultura escolar e condiciona as bases em que tudo se estrutura nas
escolas, como o ordenamento dos conhecimentos, o tempo das didáticas e sobretudo o
currículo. Importante afirmação faz Gonzáles sobre isso, ao afirmar que:
As competências e habilidades, que deverão ser aprendidas e em que tempo e ritmos, por
bimestres, séries, níveis, tem como referente os alunos vistos como os mais capazes, sem problemas de
aprendizagem, os acelerados, não-defasados, bem sucedidos. Estes alunos passam a ser catalogados como
os ‘normais’ ou os desejados e o resto como anormais, deficientes mentais. Até as deficiências físicas são
vistas como deficiências mentais (GONZÁLES, p. 30, 2008).
Taísa Caldas Dantas
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Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
Mesmo tendo tanta certeza que a escola é um lugar de diversidades e diferenças,
seja ela por classe, idade, raça, incapacidade, há pois um contra-senso, pois o currículo é
organizado de forma única, rígida, tendo como parâmetro aqueles alunos ditos normais.
Aqueles que não conseguem alcançar e assimilar os conteúdos no tempo previsto no
currículo, são taxados de incapazes, lentos, deficientes, fracassados, repetentes. Por essa
razão, se o acesso à educação se universaliza, já que de fato grande parte das crianças
tem acesso às redes de ensino, o mesmo não se pode dizer da permanência, pois “apesar
da sua ampliação quantitativa, as desigualdades educacionais continuaram a se
reproduzir e a se multiplicar” (LEÃO, apud SCHILLING, p. 277, 2008)
Nessa luta por um currículo que inclua e não exclua, primeiramente, é preciso
entender que todos os indivíduos são educáveis, mesmo os idosos, os que entraram na
escola tarde, os analfabetos, os deficientes, os repetentes, os evasivos. Construímos um
currículo rígido, sem colocar espaço para as diferenças e necessidades individuais e,
nesse sentido, se um aluno precisa de um tempo além do previsto no currículo para
assimilar um determinado conteúdo, ele já é taxado como incapaz e dele já é tirado o
sonho de poder estudar e vencer o mercado de trabalho. Como afirma Gonzáles,
“construímos um currículo para poucos e essa mesma construção vem servindo de
justificativa para classificações excludentes” (GONZÁLES, p. 33, 2008).
Outro ponto a ser questionado, é que todos os educandos têm direito à educação,
ao conhecimento e à cultura, e o currículo não pode ser um instrumento de excluí-lo
desse direito. “A crença na desigualdade mental é incompatível com a igualdade perante
o direito à educação” (GONZÁLES, p.33, 2008). Em nome de um currículo rígido e
imutável, nega-se o direito à educação de inúmeras crianças, vítimas de serem julgadas
incapazes de aprender os conteúdos nos ritmos previstos no currículo.
Nesse sentido, a construção de uma escola que cumpra com o seu dever de
garantir o direito de todos à educação, ao conhecimento e à cultura, promovendo a
inclusão, a valorização das diferenças e a tolerância, implica na necessidade de
reorientar o currículo e a cultura escolar, sob uma perspectiva de direitos humanos,
conforme discutido a seguir.
Taísa Caldas Dantas
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Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
3. Um currículo escolar pautado nos direitos humanos
Primeiramente importante recolocar mais uma vez o papel fundamental que a
escola formal e o currículo possuem no desenvolvimento integral do cidadão, na medida
em que ambos possuem o fim, ainda que implícito, de formação de uma consciência e
de uma aquisição de concepção de vida, através da transmissão de uma determinada
cultura. Esse caráter reprodutor da escola e do currículo manifestado de várias maneiras,
explicitamente ou de forma oculta, se apresenta como uma grande razão para se pensar
em um currículo pautado nos direitos humanos, diante da determinação e influência que
aquele exerce na formação do educando.
Essa necessidade de reorientar os currículos escolares na dimensão da educação
como um direito humano, se mostra indispensável para construção de uma escola como
um espaço de inclusão, de igualdades, de respeito às diferenças e que realmente efetive
o direito de todos ao conhecimento. Nesse sentido, importante destacar que ter-se um
currículo que promova os direitos fundamentais, não significa apenas a inclusão de uma
disciplina de direitos humanos e cidadania no currículo escolar. Mas, significa a
transformação de toda a estrutura da escola, de forma a incorporar tais valores e
princípios. Magendzo ao explanar acerca da temática, afirma que,
Não se trata de um conteúdo adicional, mas se está pondo em jogo uma totalidade educativa que
compromete o conteúdo e o método, o código e a mensagem, a interação humana na escola e fora dela. A
temática dos direitos humanos na escola significa, certamente, repensar a instituição educacional em seu
conjunto, promover a mudança e gerar um processo de autocrítica e auto-análise (MAGENDZO, 2007).
Nesse sentido, importante ressaltar que os direitos humanos devem estar
explícitos não só no currículo escrito e formal da escola, mas devem permear todo o
currículo oculto, ou seja, tudo aquilo que de maneira informal faz parte do cotidiano da
escola, das relações que são estabelecidas entre alunos e professor, da forma como a
escola condiciona suas decisões e, que a despeito de não estarem formalmente escritos,
estão em todo o tempo transmitindo algum valor para os alunos. A respeito desse
currículo oculto, Apple e Beane (1997) discorre que:
As estruturas e processos (...) em geral definem a qualidade da vida cotidiana das escolas. Como
parte de tradições antigas e estruturas arraigadas da escola, também oferecem ensinamentos importantes
sobre o que e quem a ela valoriza. Por esse motivo, constituem uma espécie de currículo oculto, por meio
do qual as pessoas aprendem lições fundamentais sobre justiça, poder, dignidade e auto-estima.
Democratizar essas estruturas e processos é um aspecto crucial das escolas, mas uma versão mais
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Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
completa também inclui trabalho criativo no sentido de trazer a democracia para o currículo planejado ou
explícito (APPLE & BEANE, apud TEIXEIRA, p. 150, 2005)
Entende-se, portanto, que uma escola democrática, inspirada nos direitos
fundamentais presentes na Declaração de 1948, tendo como princípio norteador a
dignidade da pessoa humana, é aquela que possui aspectos dos direitos humanos não só
no currículo explícito, mas aquela que vive esses princípios no cotidiano, ainda que de
maneira oculta e implícita. Nessa direção:
A Educação em Direitos Humanos potencializa uma atitude questionadora, desvela a necessidade
de introduzir mudanças, tanto no currículo explícito, quando no currículo oculto, afetando assim a cultura
escolar e a cultura da escola (...) aflora o conflito entre a manutenção e mudança educacional (...) reduz a
problemática da educação aos direitos humanos à introdução de uma nova disciplina escolar ou à mera
afirmação de que deve perpassar todos os conteúdos curriculares transversalmente (...) questiona se é
melhor avançar lentamente ou acelerar processos, entre a linguagem neutra e comprometida (...) afirma a
tensão entre atomização e integração de temas como questões de gênero, meio ambiente, questões étnicas,
diversidade cultural, etc (TAVARES, apud NUEVAMÉRICA, P.10, 2008)
Para que realmente se tenha uma escola democrática e igualitária, é preciso criar
ambientes em que os Direitos Humanos impregnem todas as relações e componentes
educativos.
A promoção dos direitos humanos nos sistemas de ensino inclui a
elaboração de políticas públicas, a configuração dos ambientes de aprendizagem e as
condições de trabalho e o desenvolvimento profissional dos educadores. (CANDAU,
2008).
Ainda nesse ínterim, para que um currículo seja pautado nos direitos humanos
democratizando o saber na escola, além de vivenciar esses valores tanto no currículo
explícito quanto oculto, é preciso extinguir a tensão existente entre igualdade e
diferença, criando um espaço para que haja uma relação dialética entre elas,
entendendo-as como interdependentes e não opostas. Nesse sentido, Santos concorda e
discorre acerca dessa visão multicultural dos direitos humanos:
(...) temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser
diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza (SANTOS, p. 313, 2008).
Essa aproximação histórica entre distintos seres sociais e institucionais, entre
múltiplas identidades étnicas, sociais, culturais, físicas, é o que vai constituir os
elementos para o exercício da transdisciplinaridade dos direitos humanos (TAVARES,
2008). A necessidade de inserção dos direitos humanos de modo transversal na escola e
Taísa Caldas Dantas
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Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
consequentemente nas práticas curriculares, surge de uma crise de paradigmas, de
modelos pautados na reprodução de desigualdades em grande escala, de práticas de
intolerância em relação aos socialmente e culturalmente diferentes, da crise da escola
como espaço central e tradicional de formação de valores em relação a outros meios e
outras instituições (MAGENDZO, apud TAVARES, p. 10, 2008)
Nesse sentido, para que a escola seja um instrumento na promoção dos direitos
humanos e na garantia do direito à educação de todos indistintamente, é imprescindível
compreender que diferença não implica em desigualdade e nem incapacidade para
aprender. Dentro desse contexto, Comparato, discorrendo a respeito da diferença versus
desigualdade, afirma que:
As primeiras referem-se a diferenças que têm uma base natural ou são produto de construções
sociais. As desigualdades sociais estão relacionadas a juízos de superioridade ou inferioridade que
expressam, por sua vez, a valoração de indivíduos em função de sua posição social ou econômica, ou
pertencimento a algum grupo social específico (COMPARATO, apud TEXEIRA, p. 149, 2005)
Somente através desse entendimento de que as diferenças exigem respeito e as
desigualdades repúdio, é que será possível construir um currículo que não seja único,
tendo como parâmetro os alunos ‘normais’, mas que condicione toda a estrutura da
escola, tendo como diretriz a valorização da diferença e não a exclusão em razão dela.
Algo a ser debatido nas escolas é essa concepção instaurada, que faz com que a
diferença seja tratada com intolerância e admitida como estigma, impedindo que a
educação se efetive como um direito humano. Para Flávia Schilling (2008):
(...) o grande desafio contemporâneo é não aceitar os isolamentos (...). Mais do que nunca é
importante negar – criticar – os guetos, os enclaves fortificados, o “não fale com estranhos”. Estes são
desafios centrais em nossas práticas. Ao ‘normalizar’ um determinado grupo, quem estamos excluindo? É
possível incluir sem questionar esta ordem que se apóia em classificações incessantes e que produz as
exclusões? De que forma precárias e instáveis estamos praticando a inclusão? (SHILLING, p. 282, 2008)
Responder a esses questionamentos implica repensar a forma como os currículos
têm sido estruturados, criando uma escola que seja pautada na democracia, aberta para
atender as peculiaridades e diferenças dos alunos. A respeito dessa escola, Apple e
Beane afirmam que:
As pessoas envolvidas com as escolas democráticas vêm-se como participantes de comunidades
de aprendizagem. Por sua própria natureza, essas comunidades são diversificadas, e essa diversidade é
valorizada, não considerada um problema. Essas comunidades incluem pessoas que refletem diferenças
Taísa Caldas Dantas
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Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
de idade, cultura, etnia, sexo, classe socioeconômica, aspirações e capacidades. Essas diferenças
enriquecem a comunidade e o leque de opiniões que deve considerar. Separar pessoas de qualquer idade
com base nessas condições ou usar rótulos para estereotipá-las são procedimentos que só criam divisões e
sistemas de status que diminuem a natureza democrática da comunidade e a dignidade dos indivíduos
contra quem essas práticas são dirigidas com tanto rigor (APPLE & BEANE, apud TEIXEIRA, p. 149,
2005)
Considerações Finais
Terminamos esse ensaio afirmando a importância que o currículo escolar tem na
organização e funcionamento de toda a escola, como instrumento que irá promover a
inclusão de todos ou exclusão de alguns ao direito à educação. Ao longo dos últimos
anos, imbuídos pelo modo capitalista que rege a sociedade e a exigência cada vez maior
do mercado de trabalho, a escola tem criado uma estrutura curricular apenas para o
padrão dos alunos considerados ‘bons’, onde aqueles que não conseguem acompanhar o
tempo preconizado no currículo para assimilar determinado conteúdo, são classificados
como ‘incapazes’, sendo-lhe tirados o direito a uma educação digna, de formação plena
e preparo para o exercício da cidadania.
Dessa forma, para que uma escola seja democrática e promotora dos direitos
humanos, é preciso construir um currículo que reconheça todos os educandos como
sujeitos de direitos direcionando as ações pedagógicas para que todos tenham direito à
educação, ao conhecimento e à cultura. Como afirma BOBBIO (1992) vivemos a era
dos direitos e, nesse contexto atual, é inaceitável exclusões e desigualdades movidas por
diversidades. Para que realmente tenhamos acesso a uma educação de qualidade, que
atenda a todos, conforme preconiza a Declaração e o ordenamento jurídico pátrio, é
preciso ter valores e princípios humanos condicionando toda a estrutura escolar e
desenvolver propostas curriculares que não mais excluam os indivíduos em razão de
diferenças. É preciso partir da verdade de que apesar das especificidades e do tempo
particular de cada um, todos somos educáveis.
Taísa Caldas Dantas
1241
Direitos Humanos no Currículo Escolar como Meio de Efetivar o Direito à Educação
Referências
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Taísa Caldas Dantas
1242
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Taísa Caldas Dantas
1243
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
DIREITOS HUMANOS, GÊNERO E EDUCAÇÃO:
DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS AO COTIDIANO
DA ESCOLA
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
DIREITOS HUMANOS, GÊNERO E EDUCAÇÃO: DAS POLÍTICAS
EDUCACIONAIS AO COTIDIANO DA ESCOLA
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP/Campus de Marília
[email protected]
RESUMO: O presente texto mostra parte dos resultados de uma pesquisa qualitativa
realizada em escolas públicas estaduais de Ensino Médio, na cidade de Marília (SPBrasil). A motivação para esse estudo se deu por observarmos que a democracia, em
termos legais, está garantida, contudo, no cotidiano, prevalece aviltamento a direitos,
participação não democrática, desencanto com a política e até com a democracia.
Entendendo que a participação da sociedade civil é pressuposto para a democracia,
queremos observar se e como as escolas trabalham essa questão junto aos jovens, já que
é condição para a formação de verdadeiros cidadãos e cidadãs além de observar se e
como as escolas estão trabalhando a questão de gênero e dos direitos humanos.
PALAVRAS-CHAVE:
democracia
educação,
gênero,
protagonismo
juvenil,
participação,
As sociedades democráticas capitalistas vivem, na atualidade, contradições
que resultam da criação de um sistema de igualdade política e de direitos, dentro de um
sistema de desigualdade econômica, social e cultural. Nas escolas, dessas sociedades,
parece não ter se concretizado plenamente o ideal de formar cidadãos e cidadãs
emancipados, que assimilaram valores democráticos. Concebendo que a cidadania
política é um pressuposto para o desenvolvimento da democracia, este texto tem como
objetivo central refletir acerca da participação dos/as jovens no Grêmio Estudantil, das
relações sociais de gênero nesse órgão e se a escola contempla as questões de gênero e
dos direitos humanos no seu projeto pedagógico.
Entendemos que a educação, a cidadania e as relações sociais de gênero
estão intimamente relacionadas quando pensamos em uma sociedade e escola
democráticas pois essa relação corresponde a leituras de mundo e a práticas educativas
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
1247
Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
que, se articuladas, podem contribuir para consolidação da almejada igualdade de
gênero.
As argumentações aqui destacadas mostram parte dos resultados de uma
pesquisa qualitativa realizada em escolas públicas estaduais de Ensino Médio, na cidade
de Marília (SP-Brasil).
A motivação para esse estudo se deu por observarmos que a democracia, em
termos legais, está garantida, contudo, no cotidiano, prevalece aviltamento a direitos,
participação não democrática, desencanto com a política e até com a democracia. Nesse
momento histórico, no qual a participação da sociedade civil é imprescindível,
queremos observar se e como as escolas trabalham essa questão junto aos jovens, já que
é um pressuposto para a formação de verdadeiros cidadãos e cidadãs além de observar
se e como as escolas estão trabalhando a questão de gênero.
Embora não se possa afirmar que alcançamos, na sociedade brasileira, uma
cultura democrática, alguns momentos de democracia de nossa história recente podem
ser lembrados. Nos anos de 1980, observou-se mobilização da sociedade civil no
sentido de garantir, em termos legais, os direitos humanos para todos. Os direitos
sociais, civis e políticos foram contemplados na Constituição da República Federativa
do Brasil, de 1988. Nessa perspectiva, a educação para a cidadania, necessariamente,
deveria promover o conhecimento a respeito dos direitos e deveres da cidadania, que
inclui, participação na vida pública. Foi neste contexto que começaram a expandir-se,
no começo dos anos de 1980, as demandas democratizadoras no campo educacional e
que a igualdade de gênero entrou para a agenda das políticas públicas devido à ação do
movimento feminista que vem mostrando as desigualdades sociais que impedem o
desenvolvimento social e pessoal de diferentes sujeitos de direitos, dentre eles as
mulheres.
Concebendo que a cidadania democrática pressupõe “igualdade diante da lei,
a igualdade de participação política e a igualdade de condições socioeconômicas básicas
- o que garante a vida com dignidade”, conforme escreve Benevides (2004, p. 50), nos
anos de 1990, a cidadania ativa tornou-se a meta, podendo ser exercida nos partidos
políticos, sindicatos, nas ONGs, nas associações de base e movimentos sociais, em
processos decisórios na esfera pública ou nos conselhos de direitos.
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
1248
Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
No que se refere à educação, a gestão democrática, com o dever de promover
a participação de todos, constitui-se num princípio da Constituição da República
Federativa do Brasil1, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (CURY,
2000).2 e está contemplada nas Normas Regimentais Básicas (SÃO PAULO, Estado,
1998)3 para as escolas públicas do Estado de São Paulo. A participação dos jovens
também é assegurada nesses documentos legais. O “preparo para o exercício da
cidadania” é um direito constitucional assegurado para todas as pessoas e reafirmado no
Estatuto da Criança e do Adolescente (SÃO PAULO, Estado, 1992, p. 36), além do
“direito de organização e participação em entidades estudantis”4, reconhecendo os/as
jovens como sujeitos de direitos.
Entretanto, há que se ressaltar que em termos de garantia de direitos dos
jovens, no Brasil há muito a fazer pois, de acordo com Dayrell (2003), o número de
adolescentes entre 12 e 17 anos analfabetos é grande. Nessa faixa etária, o
analfabetismo atinge 5,6 % dos rapazes e 2,9 % das moças. Apesar da maior
escolaridade, o mercado de trabalho não retribui essa vantagem às mulheres. A
desigualdade aumenta quando se compara a escolaridade de brancos e de afrodescendentes. E isso decorre tanto da dificuldade de acesso à educação, mas
principalmente da qualidade do ensino oferecido nas escolas, além do mais, a escola
está distante da juventude, não responde às suas demandas. O autor afirma ainda que “a
estrutura escolar e os projetos político-pedagógicos ainda dominantes nas escolas não
respondem aos desafios que estão postos para a educação da juventude contemporânea”
(DAYRELL, 2003, p.185). Acrescentemos ainda que em 1998, 400 mil meninas de 10 a
16 anos, pobres, a maioria negra, trabalhavam em casas alheias, das quais 33 % não
estudavam e 23 % trabalhavam mais de 48 horas semanais, conforme pesquisa da
UNICEF (apud REDE FEMINISTA, 2004).
1
Capítulo III, seção I, Art. 206, inciso VI da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
(BRASIL, 2000).
2
A Lei 9.294/1996, ratifica no Art. 3º, inciso VIII e no Art. 14, reitera o princípio constitucional da
gestão democrática da educação (CURY, 2000).
3
Parecer CEE nº 67/98, de 21/03/1998, em seu Título II, capítulo I (SÃO PAULO, Estado, 1998).
4
Capítulo IV, Art. 53 e inciso IV do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13/07/1990
(SÃO PAULO, Estado, 1992).
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
1249
Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
Nessa perspectiva, não se pode descartar, além da aquisição do
conhecimento historicamente acumulado, investir em sua formação política, que deve se
dar, primordialmente, na escola. Para promover o protagonismo juvenil, a escola deve,
além de trabalhar tais questões de forma transversal no currículo, incentivar e apoiar a
atuação no Grêmio Estudantil, já que este órgão pode ser um locus de aprendizagem de
participação democrática. Dessa forma, haverá possibilidade do desenvolvimento de
uma cultura de participação, pressuposto da gestão democrática e necessidade na
sociedade globalizada.
Democracia, participação e gênero
A questão da cidadania política é um tema que tem motivado pesquisas por
ser um pressuposto para a consolidação da democracia. Conforme Ferreira (2005), em
estudo no qual analisou a participação política dos jovens em vários países da Europa, a
necessidade da formação de “verdadeiros cidadãos” tornou a educação para a cidadania,
uma questão central na agenda política das sociedades européias. Afirma o autor que a
crise da representação democrática se faz sentir com o declínio da identificação dos/as
cidadãos/ãs com o funcionamento das instituições políticas e que “se manifesta na fraca
adesão partidária, no esvaziamento das fracturas ideológicas ou na debilidade da
participação eleitoral, é particularmente visível nas camadas mais jovens da população
européia (2005, p.1).
Ribeiro (2004, p. 22) também se posiciona a respeito dizendo que, hoje, “ao
mesmo tempo que a política se concentra na democracia, e aumenta o número de
pessoas que desfrutam de liberdades básicas no mundo, a política perde em prestígio
(grifo do autor)”. Esse sentimento decorre do fato apontado por Ferreira (2005), de que
a democratização dos países não representou o atendimento dos reclamos sociais.
Ainda conforme Ribeiro (2004, p. 22), “as ditaduras saíram de cena com as crises
econômicas, deixando para governos eleitos a tarefa de resolver a desigualdade social
que haviam criado ou agravado. As democracias vieram gerir a crise” o que levou,
como conseqüência, a uma imagem da política e do político, negativa.
Acrescente-se também o que Oliveira (2001, p. 30) afirma, que a principal
forma de legitimação do sistema de dominação da sociedade atual é a criação de
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
1250
Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
“mecanismos de interação supostamente consensuais, mas que permitem e perpetuam a
dominação, na medida em que produzem e difundem a idéia de que o sistema é
democrático.” Esse processo é reforçado na escola, através de práticas sociais
dominantes que excluem alguns segmentos da comunidade dos processos decisórios.
Na América Latina, constata-se, em outros países o desencanto com a
política, expresso no alto índice de abstenção dos jovens nas eleições o que mostra que é
preciso incentivar o jovem para a participação entendendo que a democracia não é
apenas uma forma de governo, mas um processo, do qual todos devem participar, além
disso, mostrar que é uma construção que também se vive na escola.
Não é diferente no caso da juventude brasileira. Observamos, junto aos/às
jovens há descrédito nas instituições políticas, provocando também o descrédito na ação
política e na sua capacidade transformadora, conforme argumenta Benevides (2004, p.
51), “não é possível ser cidadão consciente com rejeição à atividade política”.
Na legislação educacional, consta que o estímulo e a promoção da
participação é dever da administração da escola e do corpo docente. Acrescente-se
também que a educação, entendida no seu sentido amplo de formação para a cidadania,
pressupõe que as relações sociais presentes no cotidiano escolar devam ser inspiradas
nos princípios democráticos. Concebendo que só se aprende a cidadania e a democracia
vivenciando-as no cotidiano, dois âmbitos do processo de ensino-aprendizagem devem
ser considerados: o do conhecimento e o das relações interpessoais que, se pretender
democrática, pressupõe divisão do poder, ação motivadora e facilitadora da participação
nos órgãos colegiados, onde há possibilidade de ação coletiva. Nessa perspectiva, o
ensino deve também contemplar temas como as questões de gênero, raça/etnia e classe
para que crianças e jovens respeitem as diferenças e vejam no/a outro/a, um/a sujeito de
direitos.
Nessa perspectiva, os conteúdos do ensino, articulados às metodologias,
serão rediscutidos e reorganizados de modo a questionar as verdades oficiais e/ou
científicas. Conforme Oliveira (2001, p. 32), as relações sociais, as metodologias e
conteúdos de ensino, devem ser discutidos com a participação de todos. Assim, haverá a
possibilidade de “democratizar os meios de decisão política, não só na esfera do Estado,
como no conjunto da vida cotidiana.”
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
1251
Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
É importante ressaltar que, no Estado de São Paulo, na década de 1980,
coerente com o anseio de redemocratização do país, o Governo Montoro propôs uma
política educacional democrática com investimento nos órgãos colegiados da escola
(nos Conselhos, na Associação de Pais e Mestres, nos Grêmios Estudantis), visando ao
desenvolvimento de práticas de participação democrática para a construção da
cidadania, tanto do corpo docente quanto do discente e da comunidade.
Entretanto, naquele momento, havia resistências à nova forma de ensinar e
de administrar proposta. O processo de redemocratização em curso na sociedade,
aparentemente, não ocorreu na escola. Foi nesse período que a Assessoria Técnica de
Planejamento e Controle Educacional - ATPCE (SÃO PAULO, 1987), propôs discutir,
em todas as escolas paulistas a questão da mulher, o ponto de partida para um projeto
maior, que não teve continuidade5. E ocorreu um amplo debate sobre o papel da mulher
na sociedade, envolvendo as escolas da rede estadual de educação. Outra iniciativa
desse período foi a discussão a respeito do sexismo no livro didático, entretanto, a
questão de gênero não aparecia claramente na política educacional.
Nos anos de 1990, em âmbito nacional, reafirma-se a necessidade de
formação para a cidadania ativa e a escola pública passou por novas mudanças, com a
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em 1996 (CURY,
2000) e a adoção dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), nos quais a
democracia, a cidadania política e a questão de gênero são contempladas, a partir deste
momento, para todo o país. Segundo Vianna, Unbehaum (2004, p. 39), nos Parâmetros,
“as questões de gênero aparecem, evidenciando zelo e cuidado com muitos dos aspectos
relativos aos significados e às implicações de gênero nas relações e nos conteúdos
escolares”. Além disso, trazem como eixo central da educação escolar o exercício da
cidadania e inovam ao apresentar “a inclusão de temas que visam resgatar a dignidade
da pessoa humana, a igualdade de direitos, a participação ativa na sociedade e a coresponsabilidade pela vida social”.
Contudo, ao analisarem a Constituição Federal, de 1988, o Plano Nacional
de Educação, Lei n. 10.172/2001; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei
n. 9394/1996 e os Parâmetros Curriculares Nacionais, de 1997, concluem que a
5
Recentemente, vemos algumas iniciativas na forma de boletins no Dia Internacional das Mulheres,
enviados às escolas públicas estaduais com atividades a serem desenvolvidas pelos/as professores/as por
parte do Sindicato dos Professores –APEOESP, que atualmente possui um Coletivo de Gênero.
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
1252
Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
referência aos direitos humanos e a abertura para as demandas organizadas nas políticas
públicas como algo positivo. No entanto, não podemos deixar de mencionar a falta de
radicalidade quanto às demandas de gênero, sobretudo no Plano Nacional de Educação,
num contexto histórico no qual as desigualdades de gênero já estavam no centro dos
debates. Vianna, Unbehaum (2004, p. 44) concluem, assim, que
a compreensão das relações de gênero pela escola corre o risco de
permanecer velada, uma vez que as políticas públicas não as mencionam e,
quando o fazem, não exploram em todos os temas e itens curriculares os
antagonismos de gênero presentes na organização do ensino e no cotidiano
escolar.
Em pesquisa anterior, realizada na década de 1990, observou-se que as
questões de gênero faziam parte do imaginário das professoras, mas não de sua prática
docente. Até 1997, não se observara nenhuma política educacional de gênero ou curso
de formação continuada que abordasse a temática e provocasse alguma mudança nesta
realidade naquela Unidade Escolar. Em 1986, quando ocorreu o debate já mencionado,
nas Escolas Estaduais paulistas sobre o papel da mulher na sociedade, talvez tenha sido
o único momento em que a questão da mulher veio à tona e foi debatida pela maioria
das escolas públicas paulistas (BRABO, 2005).
Vale destacar que é essencial a vinculação da escola com as questões sociais
e com valores democráticos, não só do ponto de vista da seleção e do tratamento dos
conteúdos, como da própria organização escolar. Uma escola só pode se tornar cidadã
através de uma construção coletiva e permanente dos ideais democráticos propagados
nas políticas educacionais. Para tanto, discutir e incluir nos componentes curriculares a
questão dos direitos, da igualdade e da diferença bem como das relações sociais de
gênero, para que um projeto de escola e sociedade democrática se contraponha à ordem
estabelecida na sociedade atual, globalizada, na qual se presencia a desigualdade
econômica, social e cultural.
Acrescente-se também que a dimensão política não pode ser esquecida para
a cidadania pois um/a verdadeiro/a cidadão/ã é aquele/a que tem participação ativa na
sua própria vida e na sociedade, que é capaz de lutar por seus direitos e cumprir seus
deveres, na condição de sujeito de sua própria história (BRASIL, 1997).
Para fazer da escola um locus de aprendizagem política é necessário que os
todos os envolvidos no processo de educação escolar enfrentem esses novos/velhos
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
1253
Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
desafios, já que ainda não alcançamos o ideal de uma escola verdadeiramente
democrática cujos princípios perpassam o ensino, as relações interpessoais e os espaços
de participação, dentre eles, o Grêmio Estudantil. Nesse órgão, pode haver o vivenciar
da cidadania se a escola concebê-lo como espaço público de participação.
O Grêmio Estudantil nas escolas públicas paulistas: o legal e o real da participação
e da questão de gênero
Conforme Oliveira (2001), a ação política democratizante ocorrerá no
interior da escola pela transformação das relações interpessoais que se dão no seu
cotidiano, através da ampliação dos espaços de participação, de debates respeitando-se
as diferenças de interesse entre os diversos sujeitos e grupos em interação além da
horizontalização das relações de força entre eles. Para a garantia de mecanismos e
instâncias democráticos, uma das formas é consolidá-los legalmente, contudo, para
consolidá-los na prática, demanda conhecimento e vivenciá-los no cotidiano, em todas
as instâncias da sociedade.
Em termos legais, as Normas Regimentais Básicas para as Escolas Estaduais
(NRB), elaboradas à luz da LDBEN, dispõem sobre: organização e funcionamento das
escolas, gestão democrática, processo de avaliação, organização e desenvolvimento do
ensino, organização técnico-administrativa e organização da vida escolar. Não se refere
à questão de gênero mas contempla a igualdade de direitos para todos/as.
No capítulo II, constatamos que a Associação de Pais e Mestres e o Grêmio
Estudantil deixam de ser órgãos auxiliares e se tornam Instituições Escolares, atribuindo
outro papel para estas, com um maior envolvimento na escola. Mostram as Normas, no
artigo 11 que “As instituições escolares terão a função de aprimorar o processo de
construção da autonomia da escola e as relações de convivência intra e extra-escolar”.
Atribuem, também, à direção da escola, “garantir a articulação da associação de pais e
mestres com o conselho de escola e criar condições para organização dos alunos no
grêmio estudantil”.
Contraditoriamente, conforme salienta Aredes (2002), quando as Normas
Regimentais utilizam os verbos elaborar e executar, a idéia que transmitem é de que o/a
diretor/a é o poder executivo, a ele/a é delegado todo o poder. Nesse contexto, o
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
1254
Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
Conselho de Escola fica com sua ação limitada e, além disso, nem sempre há uma
relação tranqüila entre este órgão e a direção da escola, o mesmo acontecendo com o
Grêmio Estudantil. Além do mais, pesquisas mostram que há preconceito com relação
ao protagonismo dos/as estudantes, restrições à sua efetiva participação, acreditam que
o Grêmio serviria apenas para contestação (PARO, 1995), além do temor quanto ao
envolvimento dos/as jovens com partidos políticos. Embora se vislumbre algumas
mudanças, ainda parece predominar o que afirma Focault (1991), que a preocupação da
escola é controlar o comportamento dos jovens, estabelecendo a ordem, o respeito à
hierarquia, através da obediência cega, promovendo a alienação diante da sua própria
realidade.
No que se refere aos Grêmios Estudantis, nos anos de 1980, com a
promulgação da lei federal n. 7398/1985, o movimento estudantil é retomado e os
Grêmios são incentivados pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SE) que
promoveu vários encontros para discutir a formação e a função dessa instituição na
escola. Contudo, de acordo com Pescuma (apud AREDES, 2002), os Congressos
promovidos pela SE excluíam a União Municipal de Estudantes Secundaristas) (UMEs),
a União Paulista de Estudantes Secundaristas (UPEs) e a União Brasileira de Estudantes
Secundaristas (UBEs). Aredes (2002) afirma que havia um certo receio em relação à
atuação dos/as jovens nessas entidades, acreditavam que os estudantes universitários ou
secundaristas eram uma ameaça à ordem e ao poder constituído.
O estudo revelou que as escolas públicas estão caminhando para a
concretização da gestão democrática, embora com passos lentos. Entretanto, tanto na
sociedade em geral quanto nas escolas, os problemas sociais aumentaram. Algumas
escolas, mesmo com todas as dificuldades relacionadas à violência, drogas, gravidez
precoce e indisciplina, dentre outras questões, conseguem realizar a construção coletiva
do projeto pedagógico visando à melhoria da qualidade do ensino e têm caminhado no
sentido da cultura democrática.
No Estado de São Paulo já havia um investimento para a democracia, em
termos de políticas educacionais, principalmente nos anos de 1980, conforme já foi
afirmado. Da mesma forma, no bojo das mudanças implementadas pela Secretaria da
Educação do Estado de São Paulo, as Normas Regimentais Básicas (SÃO PAULO,
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
1255
Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
Estado, 1998), dos anos de 1990, representam um avanço e foram elaboradas com o
objetivo de concretização da escola democrática.
Entretanto, observamos dificuldades para o vivenciar definitivo da gestão
democrática: inexistência de canais eficazes de comunicação; resistência de segmentos
da escola; ausência histórica de uma cultura de participação na sociedade brasileira; a
forma com que são realizados os encaminhamentos das políticas educacionais; o
acúmulo de atividades sob a responsabilidade do/a administrador/a e supervisor/a de
ensino bem como as exigências burocráticas. Embora já se possa observar mudanças
rumo à construção coletiva da cultura democrática, não é realidade em todas as escolas.
Apesar de ser obrigação legal da Administração e da Supervisão diz respeito
a facilitar a comunicação entre os diferentes segmentos dentro da escola, entre esses e a
comunidade, e entre a comunidade e as instâncias administrativas, esse trabalho
coletivo, ainda não foi concretizado.
No que se refere à questão de gênero, embora a legislação estadual reafirme
a gestão democrática, não se refere explicitamente ao gênero. A Secretaria Estadual da
Educação parece não se preocupar com essa temática pois não se observou cursos de
formação continuada ou projetos sugeridos por ela para as escolas, que a abordassem.
Atualmente, há um projeto de formação docente em curso que trabalha a igualdade e a
diferença contudo, na perspectiva de raça/etnia e apenas ligeiramente aborda a questão
da mulher. Observamos, além do mais, que em algumas escolas esse tema é trabalhado
no Dia Internacional da Mulher e no dia de combate à violência contra a mulher,
contudo, de forma pontual, o tema não faz parte do projeto político pedagógico das
escolas. A pesquisa tem mostrado que gênero é um tema desconhecido e, em geral, mal
trabalhado na escola pública, ainda há o reforço de papéis tradicionais para ambos os
sexos na sociedade. Assim, as alunas têm maior dificuldade para identificar-se com um
currículo que esquece as contribuições femininas na sociedade, impondo a elas a
aceitação de uma identidade cultural que lhes atribui, no nosso modo de pensar, meia
cidadania ou uma cidadania imperfeita, conforme constatamos nos anos de 1990
(BRABO, 2001, 2005).
Quanto ao Grêmio Estudantil prevalece uma atuação no sentido de ajudar a
escola e de melhor aproveitar o tempo e o espaço na escola. Não se observaram
atividades conjuntas com o Conselho ou com a APM. Neste sentido, não houve o
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
1256
Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
aprendizado político coletivo, entretanto, exercia a interlocução junto à direção e à
coordenação pedagógica, que, de certa forma, se transformava em aprendizado. Seus
membros não são convidados a participar efetivamente, por exemplo, do processo de
elaboração do projeto pedagógico, do acompanhamento de seu desenvolvimento e do
processo de avaliação.
Algumas escolas incentivam a participação dos alunos no Grêmio,
entretanto, preferem que participem os bons e comportados
alunos. Através da
observação das reuniões, acompanhamento do processo eleitoral para composição do
Grêmio e de entrevistas realizadas com seus membros, foi possível observar que havia
interesse em participar, as reuniões eram momentos de diálogo entre todos, meninos e
meninas participavam. No início da observação, constatamos que as meninas quase não
se manifestavam, atualmente, elas têm tido uma participação ativa e têm feito parte do
processo eleitoral, chegando à presidência do órgão.
O processo da campanha eleitoral, desde a elaboração da proposta de
trabalho até o debate quando a apresentavam aos alunos e alunas, era um momento de
aprendizagem de diálogos democráticos e de reflexões sobre as normas legais que
organizavam o pleito. Cotidianamente, seus membros interagiam com a direção e
coordenação pedagógica da escola e, depois de eleitos, tomavam conhecimento das
normas legais que organizam qualquer instituição.
Outro aprendizado para a cidadania diz respeito a pensar as necessidades da
escola, além disso, até a comunidade passou a ser objeto de observação com busca de
soluções para os problemas enfrentados pela população do bairro em que viviam.
Os depoimentos mostraram que o Grêmio é uma instituição importante para
os/as estudantes. O fato de participarem de um órgão colegiado fez com que realmente
exercessem a cidadania no cotidiano, ao mesmo tempo, foram adquirindo o aprendizado
político da participação e da representação.
Essa realidade observada não corresponde à totalidade das escolas, ainda há
restrições por parte de alguns/as diretores/as e de alguns/as professores/as quanto à
participação dos jovens assim como há resistência por parte de alguns segmentos com
relação ao avanço da prática da democracia. Aparentemente, há o receio de compartilhar
o poder.
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Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
A ausência de uma cultura de participação é uma característica da maioria
das escolas e da postura dos profissionais da educação assim como da sociedade
brasileira em geral. Apesar de nas políticas educacionais e de na legislação haver a
ênfase à participação da comunidade, dos professores e dos alunos na gestão
democrática da escola pública, na realidade, os profissionais do ensino pouco decidem.
Além do mais, a escola parece não confiar na capacidade da população e dos/as
alunos/as de emitir opiniões e tomar decisões em relação aos seus problemas.
Ainda predomina uma representação negativa e preconceituosa em relação à
juventude, os jovens são vistos apenas na sua condição de alunos e de alunas. A escola
pouco os ouve e também conhece pouco do jovem que a freqüenta, sobre seus projetos
de vida, sua visão de mundo ou suas expressões culturais. É preciso fazer da escola um
espaço democrático tendo jovens de ambos os sexos como parceiro/a na construção de
um espaço público que proporcione o exercício consciente da democracia.
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Este texto aborda parte de uma pesquisa qualitativa que está sendo
desenvolvida desde o ano 2000 em Marília (SP-Brasil). A partir de 2003, ampliamos a
análise fazendo um estudo comparativo, ainda em andamento, entre uma escola da rede
pública estadual e uma cooperativa educacional. A preocupação que motivou esse
estudo, diz respeito à questão da participação pois esta está assegurada em termos legais
contudo não é vivenciada no cotidiano escolar, o que dificulta a formação para a
cidadania plena para ambos os sexos. Através do estudo exploratório verificou-se que
além de o corpo docente ser majoritariamente feminino no Ensino Fundamental, a
Administração e a Supervisão nas duas escolas, estão sendo exercidas por mulheres, em
sua maioria. O recorte de gênero merece destaque neste estudo, tanto por esta
constatação quanto porque a questão de gênero está presente na política educacional
atual, desde os anos de 1990. Pretendemos, então, conhecer: a participação e as relações
sociais de gênero no Grêmio Estudantil, se gênero é conhecido pelos/as educadores/as e
se está presente no currículo das duas escolas.
Foi motivada pelo fato de que passados dez anos de implementação da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e quase vinte anos da promulgação da
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Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, nas quais o ideal de sociedade
e educação democráticas estão contempladas, constata-se que o retorno do Brasil à
democracia não permitiu a todos o pleno acesso à cidadania. Além do mais, na CF/88,
foi assegurada a igualdade de direitos e deveres, entre homens e mulheres.Contudo,
ainda essa igualdade não foi garantida na prática e a globalização do mundo
contemporâneo e suas revoluções tecnológicas parecem dificultar a concretização desse
ideal de sociedade democrática em seu sentido amplo. Pesquisas mostram que nas
sociedades contemporâneas nota-se a perda do sentido de uma cultura pública, há a
tendência à individualidade, as pessoas perderam a capacidade de interagir
coletivamente. Mostram ainda que a crise contemporânea atinge quase todas as
instituições (a política, a cultura, a economia, a família, a escola, o mercado, a vida
pública e privada), e tira a confiança na capacidade de sua resolução.
Nesse contexto, no caso brasileiro, a partir dos anos de 1980, políticas
públicas foram implementadas num processo de redemocratização da sociedade como
um todo; a gestão democrática da educação constituiu-se num princípio da Constituição
da República Federativa do Brasil, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e
da legislação educacional do Estado de São Paulo. A questão de gênero também está
contemplada nos Parâmetros Curriculares Nacionais, desde a década de 1990. Sendo a
escola o local onde se dá a socialização formal de meninos e meninas, e um local de
trabalho onde há a presença quase que maciça de mulheres, há que se constatar quais os
efeitos das políticas educacionais democráticas no cotidiano das escolas sob a
perspectiva de gênero.
Tendo como objetivo observar como se dá a participação de meninos e
meninas nos Grêmios Estudantis, se esta promove o aprendizado político democrático
daqueles jovens e como a escola concebe essa participação observamos, através da
literatura a respeito, que os movimentos estudantis foram predominantemente
movimentos universitários, os estudantes secundaristas sempre foram vistos como uma
ameaça para as instituições educacionais. De maneira geral, a participação discente
sempre incomodou e foi cerceada mesmo no momento em que a legislação e as políticas
educacionais o desejasse. Através da observação das reuniões, acompanhamento do
processo eleitoral e entrevistas, foi possível constatar que há interesse em participar, as
reuniões são momentos de diálogo democrático entre todos, meninos e meninas.
No momento da campanha eleitoral desde a elaboração da proposta de
trabalho até o debate quando vão apresentá-la aos alunos e alunas, são momentos de
aprendizagem acerca da representação e das normas legais que organizam o processo.
Cotidianamente interagem com a direção e a coordenação pedagógica da escola e,
depois de eleitos tomam conhecimento das normas legais que organizam qualquer
instituição e o relacionamento entre os membros que a compõem. Outro aprendizado
para a cidadania diz respeito a pensar as necessidades da escola e propor alternativas
para superação das dificuldades.
Nesse processo, até a comunidade passou a ser objeto de observação.
Buscaram soluções para os problemas enfrentados pela população do bairro em que
vivem. Aprenderam a relação entre e a escola o poder público, que não proporciona os
recursos necessários para a concretização do ensino de qualidade. Nesse sentido,
adquiriram o conhecimento a respeito dos seus direitos, das condições de vida daquela
população, como reivindicar direitos e a quem recorrer.
A maioria dos membros era menino, contudo, a cada ano aumentava o
número de meninas sendo que por duas vezes elas assumiram a presidência do órgão.
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Direitos Humanos, Gênero e Educação: das Políticas Educacionais ao Cotidiano da Escola
Os depoimentos mostraram que é uma instituição importante para os/as estudantes. A
escola estudada incentivava essa participação. Assim, também as meninas aprenderam a
cidadania política mesmo que a escola não tivesse a preocupação com a questão de
gênero. O fato de participarem de um órgão colegiado fez com que realmente
exercessem a cidadania no cotidiano, ao mesmo tempo, foram adquirindo o aprendizado
político da participação, sentindo-se sujeitos de um processo.
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a educação no contexto da violência sexual infanto-juvenil