A pedagogia da agricultura orgânica certificada na selva alta peruana Ricardo Luiz Cruz1 Resumo As últimas décadas registraram uma forte expansão no cultivo de cafés certificados como orgânicos entre os cafeicultores da selva alta peruana, um movimento que tem implicado numa mudança generalizada na forma do trabalho desses produtores. Esta comunicação procura olhar para essa transformação produtiva enquanto um meio para se pensar a dinâmica das fronteiras que essas pessoas estabelecem com quem, segundo elas, não é um trabalhador do campo. Tal transformação é retratada aqui tendo como referencial um processo que pode ser definido como a “pedagogia da agricultura orgânica certificada” entre um grupo de cafeicultores de uma cooperativa da selva alta. O foco da análise é a relação que esses produtores mantêm com os “técnicos” que trabalham nessa organização. Grande parte do trabalho realizado por estes últimos sujeitos envolve o “controle” das práticas dos agricultores, tendo em vista as chamadas “inspeções” dos representantes das agências responsáveis pela certificação das plantações como orgânicas. Contudo, olhando de perto esse papel desempenhado pelos funcionários da cooperativa é possível perceber que seus ensinamentos e indicações, dirigidos aos cafeicultores, permitem que esses produtores interiorizem não só as normas ou princípios em torno dessa forma de cultivo como também uma preocupação sistemática e cotidiana com o ponto de vista dos compradores e consumidores estrangeiros dos seus grãos. Trata-se de um processo de racionalização do comportamento desses agricultores aparentemente afim com a emergência de um “sistema agroalimentar global orientado pela demanda”. O objetivo deste texto é investigar a construção social dessa disposição dos cafeicultores para trabalhar de maneira sistematicamente pautada por essas perspectivas externas. Palavras-chaves: trabalho rural, certificações, cooperativas, Peru. 1 Bolsista de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (PPGCSoc/UFMA). Introdução A agricultura orgânica é, por definição, um modelo de cultivo que se contrapõe ao uso de fertilizantes e pesticidas inorgânicos nas plantações. Trata-se de um ideal que enfatiza a utilização de materiais vistos como facilmente degradáveis no meio ambiente enquanto uma maneira de “preservá-lo” de transformações mais radicais produzidas pela intervenção humana. Existem diversas normas, tanto públicas quanto privadas, que servem de parâmetro para que as chamadas “agências certificadoras” identifiquem uma mercadoria como oriunda de um cultivo orgânico. Cada uma dessas normas é representada por um selo que acompanha os produtos certificados por essas agências. Isso permite aos seus consumidores se depararem com um sistema que controla a relação dos agricultores com os insumos produzidos sinteticamente. As últimas décadas registraram uma forte expansão no cultivo de cafés certificados como orgânicos entre os cafeicultores da selva alta peruana, um movimento que tem implicado numa mudança generalizada na forma do trabalho desses produtores2. Esta comunicação procura olhar para essa transformação produtiva como um meio para se pensar a dinâmica das fronteiras que essas pessoas estabelecem com quem, segundo elas, não é um trabalhador do campo3. Tal transformação é retratada aqui tendo como referencial um processo que pode ser definido como a “pedagogia da agricultura orgânica certificada” entre um grupo de cafeicultores de uma cooperativa da selva alta. O foco da análise é a relação que esses produtores mantêm com os “técnicos” que trabalham nessa organização. Grande parte do trabalho realizado por estes últimos sujeitos envolve o “controle” das práticas dos agricultores, tendo em vista as chamadas “inspeções” dos representantes das agências responsáveis pela certificação das plantações como orgânicas. Contudo, olhando de perto esse papel desempenhado pelos funcionários da cooperativa é possível perceber que seus ensinamentos e indicações, dirigidos aos cafeicultores, permitem que esses produtores interiorizem não só as normas ou princípios em torno dessa forma de cultivo como também uma preocupação sistemática e cotidiana com o ponto de vista dos compradores e consumidores estrangeiros dos seus grãos. Trata-se de um processo de racionalização do comportamento desses agricultores aparentemente afim com a emergência de um 2 As regiões de selva alta estão situadas entre a cordilheira andina e a planície amazônica. O pressuposto aqui é o de elas veem suas fronteiras sociais com base, em boa medida, numa oposição entre quem vive, diretamente, do trabalho na terra e quem não é agricultor ou trabalhador rural. Apresento, mais à frente, o arcabouço conceitual ou simbólico que dá sentido a essa dicotomia. 3 “sistema agroalimentar global orientado pela demanda”4. O objetivo deste texto é investigar a construção social dessa disposição dos cafeicultores para trabalhar de maneira sistematicamente pautada por essas perspectivas externas. O que esta análise revela é que essa racionalização da conduta desses sujeitos busca engendrar uma forma de trabalho subordinada não só à “demanda estrangeira” como também à realidade vivida por esses agricultores para além de seus interesses em produzir mais cafés e vendê-los por um preço maior5. Os técnicos procuram controlar as ações dos produtores assim como traduzir para a perspectiva destes últimos agentes os referenciais ou parâmetros utilizados nesse controle. Isso significa dizer que os pontos de vista dos cafeicultores podem transcender suas consciências e serem adotados por pessoas que não são classificadas como agricultores. Essa metamorfose conferiria uma legitimidade aos agentes responsáveis pela intermediação de suas relações extralocais, como é o caso dos técnicos que conduzem o que é aqui definido como a construção social da disposição desses produtores para trabalhar de maneira sistematicamente pautada pela perspectiva dos compradores e consumidores estrangeiros6. A interiorização do ponto de vista da demanda externa Num plano maior, essa disposição parece envolver boa parte dos cafeicultores peruanos, na medida em que 35% dos cafés exportados pelo seu país são destinados aos chamados mercados de cafés “especiais”, isto é, que costumam demandar grãos considerados de “melhor qualidade” (com menos “impurezas”, como pedaços de gravetos e de terra, por exemplo, e com sabor mais valorizado) do que os normalmente comercializados no dito “mercado convencional” (onde circula a esmagadora maioria dos cafés e a preços, em geral, mais baixos)7. Há três tipos principais de cafés especiais: A ideia de “sistema agroalimentar global orientado pela demanda” aparece em John Wilkinson (2002). Retomo, mais à frente neste texto, os argumentos desse autor. 5 O contraponto aqui são os estudos que encaram a adoção de novas práticas agrícolas como uma questão de maximização de recursos econômicos dentro do sistema capitalista, como é o caso, por exemplo, dos trabalhos de José de Souza Martins (1975) e Ricardo Abramovay (1992). 6 Eric Wolf (2003), tomando como referência a história mexicana, analisa as transformações dos agentes que intermediam as relações dos camponeses/agricultores com os universos sociais mais abrangentes (com destaque para o Estado Nacional”). Mas esse antropólogo acaba reduzindo a perspectiva dos agricultores sobre os intermediários a uma questão econômica. Ele não se preocupa em indagar sobre as condições sociais por detrás da legitimidade desses mediadores. 7 Essa porcentagem (35%) de cafés especiais, em relação ao total dos cafés exportados pelo Peru, se refere ao ano de 2014, segundo informado na página eletrônica da Junta Nacional do Café (o “grêmio” que reúne as cooperativas do país): www.juntadelcafe.org.pe. Em 2004, por exemplo, esse número era de 13,48%, com 71% desses vendidos como somente orgânicos, 14% como de comércio justo (sendo orgânico ou não), 11% como sostenible e 4% como gourmet. (Schwarz, 2005) Ou seja, nesse intervalo de 4 “solidários”, “orgânicos” e gourmet. No Peru, a maior parte deles é exportada através de cooperativas e não pelas empresas “privadas” que dominam o mercado convencional. Mas estas últimas entidades também têm se preocupado e contribuído com a “melhoria” da qualidade dos grãos “convencionais” vendidos ao exterior, tendo em vista a competição que enfrentam com os cafés dos países da América Central (Cruz, 2010)8. Consequentemente, não é de se estranhar que o Peru vem deixando de lado os estigmas ou visões negativas sobre seus cafés entre os compradores estrangeiros e que vigoraram, sobretudo, durante as décadas de 1980 e 90, logo após o Estado ter se afastado do controle em torno das características dos cafés exportados (idem). É comum escutar, nos dias de hoje, um cafeicultor peruano referir-se a um contexto passado no qual ele se preocuparia, principalmente, em “produzir muito café”, inclusive fazendo uso intensivo de fertilizantes e pesticidas sintéticos, ao contrário da época atual onde, “produzir um grão de qualidade”, também seria um de seus objetivos. O significado de um “café de qualidade”, para esse agricultor, tende a envolver, sobretudo, as exigências mais gerais do mercado em relação à “pureza” dos grãos e aos aspectos sensoriais do produto pronto para o consumo, e não tanto o fato de sua produção ser certificada como “orgânica”. Contudo, como apresentado neste texto, o processo de “transição” de um produtor “convencional” para “orgânico” parece se colocar como uma forma de racionalizar sua conduta de modo a adequar o aumento da sua produção agrícola com o atendimento das demandas dos compradores estrangeiros. O cafeicultor orgânico ocuparia uma posição paradigmática, entre os produtores de café, em se tratando da interiorização desse ponto de vista externo. De acordo com Laura Raynolds e John Wilkinson (2007), durante as últimas décadas, a produção de comida industrializada vem sendo feita cada vez mais com base numa segmentação dos mercados alimentícios (em “nichos”) e/ou numa diferenciação dos produtos comercializados nesses mercados. Trata-se, nas visões desses sociólogos, da passagem de um sistema global onde a competição entre os agentes econômicos se dava essencialmente através dos preços para outro onde eles também competem por meio da “qualidade” de seus produtos. Isso implicaria na introdução do chamado paradigma da “produção flexível” no mercado de alimentos (em substituição a um modelo “fordista” de controle mais centralizado). Tais mudanças seriam conduzidas 10 anos, a porcentagem de cafés especiais vendidos ao exterior aumentou, assinalando um processo de expansão aparentemente ainda em curso durante a redação deste texto. 8 A criação, em 1991, do “grêmio” das “empresas privadas exportadoras” teve como um dos objetivos reverter a imagem negativa do café peruano no exterior e suas consequências econômicas (Cruz, 2010). pelos grandes grupos atacadistas do setor agroalimentar (anteriormente as indústrias alimentícias que orientariam a dinâmica desse setor)9. É dentro desse contexto atual que podemos entender a difusão dos “cafés especiais” e também o aprimoramento da qualidade dos “cafés convencionais”. Mas o que levaria um cafeicultor a se preocupar, de forma sistemática, com as exigências da “demanda externa”? Parte da resposta a essa pergunta pode ser encontrada na literatura sociológica e antropológica que se debruça sobre um dos principais ramos ou segmentos dos mercados de cafés especiais: o “comércio justo” regulado pela chamada Fair Trade Labelling Organizations International (FLO) (Raynolds, Murray & Wilkinson, 2007 Jaffee, 2007 Sick, 2008 Luetchford, 2008)10. Esses cientistas sociais reconhecem a importância do comércio justo principalmente por permitir aos agricultores vender seus cafés com base num preço maior em relação aos vigentes no mercado convencional, ainda mais se esses grãos possuírem um selo ou certificado que os identifique como procedentes de uma plantação orgânica, apesar dessa forma de cultivo demandar um tempo maior de trabalho do que a lavoura “tradicional”11. Porém, esses pesquisadores, mesmo chamando a atenção para a necessidade das cooperativas de cafeicultores em adequar os grãos de seus associados às exigências dos consumidores do comércio justo, como é o caso de suas demandas por um produto não só orgânico como “de qualidade”, não questionam esse papel desempenhado por essas organizações12. Consequentemente, não é de se estranhar que eles acabem olhando para os objetivos (econômicos, em suma) por detrás da participação dos produtores nesse sistema comercial e não para as formas como se dão os contatos desses sujeitos com esse sistema. Segundo esses estudiosos, o mercado convencional, responsável pela comercialização da maioria dos cafés ao redor do mundo, vem se caracterizando, desde o final da década de 1980, por apresentar períodos prolongados onde os preços desses grãos se mostram bastante reduzidos, ao ponto de ocasionarem uma “crise” na cafeicultura de “pequena escala”, aquela que congrega a maior parte de seus produtores. “As empresas alimentares se diversificaram tanto para responder as tendências mais voláteis e segmentadas de demanda como para se adaptar às exigências logísticas da grande distribuição” (Wilkinson, 2002 p. 152). 10 O comércio justo de café certificado é um mercado, de dimensões internacionais, criado no ano de 1988 e organizado com base num ideal de solidariedade dos consumidores para com os “pequenos produtores” (desse grão) reunidos em cooperativas autorizadas (hoje pela FLO) a participar desse sistema comercial. 11 Existe uma íntima associação entre o comércio justo e a produção de cafés certificados como orgânicos, por conta, em especial, do valor maior pago a esses grãos dentro desse sistema comercial. 12 Conforme aponta Ricardo Abramovay (1992), desde a década de 1920 que o economista russo Alexander Chayanov já chamava a atenção para o papel desempenhado pelos funcionários das cooperativas de agricultores em adequar a produção de seus associados às demandas do mercado mundial. 9 Entre os sintomas dessa crise se destacariam: uma situação generalizada de pobreza nas regiões tradicionalmente associadas à produção de café, um expressivo êxodo rural oriundo dessas zonas, uma ênfase maior de seus moradores na agricultura de subsistência e a substituição dos seus cafezais por pasto ou outras lavouras comerciais (incluindo aí as plantações de matérias-primas utilizadas na produção de drogas ilícitas). Em suma, estaríamos diante de um cenário no qual o cultivo de café perdeu seu lugar de destaque como uma atividade econômica privilegiada no contexto da reprodução social de um sem número de famílias espalhadas pelo mundo. O comércio justo se colocaria como um entre outros modos de atenuar e não, suplantar, suas carências materiais (caberia a cada uma das famílias cafeicultoras a escolha de uma “estratégia econômica” mais adequada às necessidades e capacidades de seus membros)13. Em meado de 2005, me dirigi até o Peru, para dar início a uma pesquisa de doutorado a respeito da presença do comércio justo entre os seus produtores de café. Para além do que era definido como uma “crise” internacional nos preços desse grão, iria me deparar com outros problemas que agravavam ainda mais a difícil situação econômica vivida pelos cafeicultores desse país, como era o caso, de maneira especial, da fragmentação das propriedades rurais devido às suas transmissões através de herança, do envelhecimento das plantações e do esgotamento dos solos. Não é de se estranhar que suas participações no comércio justo eram, em grande medida, justificadas pelo fato dele oferecer um melhor preço para seus cafés, conforme enfatizado pela literatura sociológica e antropologia sobre esse mercado. Porém, essa literatura, ao não discutir, nos seus pormenores, o papel desempenhado pelas cooperativas na adequação dos grãos de seus associados às demandas externas, encara o contato deles com esse sistema comercial basicamente sob o prisma da satisfação de suas necessidades e não como um processo de mudança das suas disposições em relação ao trabalho. Em 2005, um dos técnicos, aqui retratados, me disse, depois de alguns dias acompanhando seu trabalho e de seus colegas, junto aos produtores, que estes últimos tendiam a se “desanimar” quando, tal como nessa ocasião, os valores do café, no mercado interno, eram superiores aos praticados internacionalmente e que serviam de referência para os preços dos grãos “orgânicos” vendidos através do comércio justo. Nesse ano, a produção de café, em todo o país, decaiu bastante, em decorrência da 13 No entender desses autores, a diversificação das fontes de ingressos econômicos das famílias dos cafeicultores, para além da produção de café a ser vendido no mercado convencional, ganharia uma importância maior na atual conjuntura de preços baixos nesse mercado. escassez de chuvas, fazendo com que o preço do “café convencional” praticamente se equiparasse com o do “café orgânico”. Sua cooperativa teve que pagar aos seus “sócios” o mesmo valor que os comerciantes estavam oferecendo para todos os produtores locais, do contrário, ela certamente ficaria sem a quantidade necessária de café para cumprir seus contratos com os compradores ligados ao comércio justo, apesar da obrigação de seus associados em ter de “entregá-la” certas quantidades pré-estipuladas do produto. Contudo, os produtores ainda se viam em desvantagem diante de suas vendas para a cooperativa, na medida em que os comerciantes aceitavam os cafés com maior umidade e com mais “impurezas” ou “defeitos físicos”, o que fazia com que o peso dos grãos e, consequentemente, seu valor, aumentassem14. “É todo um esforço para, no fim, acabar vendendo pelo mesmo preço disponível para quem não é certificado”, afirmou o técnico, ponderando, logo em seguida: “mas isso não acontece todos os anos”, ou seja, normalmente, os agricultores “orgânicos”, filiados à cooperativa, receberiam um valor maior para seus cafés do que seus vizinhos não certificados. Por um lado, a decisão dos cafeicultores em obter uma melhor remuneração econômica para seus cafés, ao vendê-los, como orgânicos, através do comércio justo, era uma escolha que pressupunha suas transformações em “produtores orgânicos”, conforme as regras das agências certificadoras e por meio de um processo de transição, conduzido pelos técnicos da cooperativa, a partir do qual interiorizavam não só essas regras como uma preocupação mais geral e sistemática com o ponto de vista dos consumidores e compradores estrangeiros (como a questão da qualidade dos grãos). Mas porque esses agricultores levavam a sério o trabalho dos técnicos da cooperativa? Em outras palavras, quais eram os motivos que faziam com que eles acreditassem na eficácia dos ensinamentos e indicações advindos desses sujeitos? Essa crença parecia se assentar, em boa medida, na autoridade dos técnicos, na legitimidade de suas práticas e no reconhecimento das representações que acionavam em suas falas. A autoridade dos técnicos se apoiava, basicamente, sobre seus graus de escolarização, estudos e experiências extra-acadêmicas, em especial, suas capacidades de adotar a perspectiva dos cafeicultores15. Já a legitimidade de suas práticas decorria fundamentalmente do seu caráter técnico ou científico, em oposição a um senso comum 14 As chamadas impurezas ou defeitos físicos podem ser não só os já citados pedaços de gravetos e de terra como também de folhas, além de grãos “verdes”, “pretos” ou atingidos por uma praga. 15 Muitos cafeicultores peruanos costumavam criticar os profissionais graduados ou especialistas, comumente chamados por eles de “engenheiros”, que vinham até eles e os apresentavam uma série de propostas produtivas que acabavam se mostrando irrealistas ou inviáveis. visto não somente como “improdutivo”, mas também prejudicial ao “meio ambiente”. As representações que esses profissionais acionavam em suas falas, tendo em vista a motivação dos produtores em prol da agricultura orgânica, se assentavam não só nas expectativas de retorno financeiro, como também no ideal de “preservação da natureza”. Isso significa dizer que o trabalho dos técnicos pressupunha uma socialização anterior dos cafeicultores numa sociedade dominada pelas relações mercantis, onde o espírito técnico-científico é valorizado e também que percebe ou encara o esgotamento dos “recursos naturais” como uma realidade evidente. Mas esse trabalho devia igualmente levar em conta determinadas mediações simbólicas ou linguísticas, próprias do universo cultural dos agricultores, adquiridas pelos técnicos com base no convívio junto a eles, como, por exemplo, o uso da língua nativa (o quéchua, no caso) ou um comportamento qualquer que envolvia o estabelecimento de uma relação de confiança ou proximidade. Esses pormenores, na verdade, eram muitas vezes imprescindíveis para captar a atenção dos cafeicultores e os motivá-los em relação aos seus ensinamentos16. Cerca de 150.000 famílias se dedicavam, em 2005, à produção de café no Peru, por volta de 90% delas tinha entre meio a cinco hectares de terra e praticamente todas viviam nas chamadas zonas de selva alta (JNC, 2005). Os cafeicultores eram, em geral, migrantes oriundos dos Andes peruanos ou seus descendentes17. A interiorização da perspectiva da demanda externa, por parte dos produtores orgânicos, pode ser pensada como um processo cuja eficácia nos mostra o quanto a adequação desses agentes às alterações mais gerais do capitalismo pressupõe, em grande medida, um trabalho de mediação que leve em conta seus pontos de vista. Em outras palavras, esse processo se apoiava nas diferenças sociais entre os técnicos e os cafeicultores tanto quanto na capacidade dos primeiros olharem o mundo a partir do lugar ou posição dos segundos. Isso implica não apenas em ver o trabalho rural (no caso, a agricultura de base familiar) como uma forma de trabalho e como uma perspectiva sobre a realidade, mas também compreender a relação entre esses seus dois modos de expressão num contexto social onde ele igualmente se expressa enquanto uma matriz de significados dentro da qual o 16 Não é à toa que os agricultores do Peru frequentemente criticavam os funcionários de suas cooperativas que se comportavam perante eles de maneira excessivamente citadina, isto é, que lhes aparentavam ser demasiadamente impessoais, frios, impacientes e deselegantes, por exemplo. 17 A literatura antropológica ou sociológica a respeito dos produtores de café peruanos é bastante escassa – ver Cruz (2010). De qualquer maneira, através desses estudos é possível perceber o crescente protagonismo dos cafeicultores de ascendência ou origem andina no contexto social da selva alta peruana. trabalho não rural, de um modo geral, aparece como uma atividade que, por definição, se assenta na apropriação indevida dos frutos do trabalho rural. As “visitas de campo” Quando desembarquei no Peru, em 2005, meu objetivo inicial era participar da XXII feira anual da Central de Cooperativas Agrarias Cafeteleras COCLA, onde pretendia entrar em contato com cafeicultores inseridos no comércio justo18. Ao longo da feira, transitei pelos stands das então 23 cooperativas filiadas à COCLA – as quais apresentavam seus cafés nesses locais. Na barraca da Cooperativa Huadquiña, me chamaram a atenção as amostras de café nela expostas, cada uma demarcada com o nome de seu produtor e o selo de certificação do produto. Sete amostras estampavam a certificação orgânica própria da união europeia e outra um selo de “sustentabilidade” de uma organização não governamental, todas outorgadas por uma agência certificadora19. Por meio da conversa com os expositores surgiu, logo de cara, o convite do presidente da cooperativa para uma visita à organização, a qual, como descobriria mais tarde, era a responsável pela produção dos cafés cuja embalagem, com um selo de comércio justo e uma imagem do local onde eles eram produzidos - o entorno de Machu Picchu -, havia despertado meu desejo em realizar um estudo no Peru. Mas quando ele se deu conta de que estava diante de alguém interessado na condução de uma pesquisa e não na compra de café, mesmo não desfazendo o convite, me questionou sobre os benefícios que minha investigação os traria. Disse-lhe que isso era uma questão pertinente, mas difícil de ser respondida naquele momento20. Mesmo assim ele me apresentou ao “técnico” Juan Carlos, com o qual fiquei de me encontrar no dia 2 de agosto na cidade sede da cooperativa. O contato com Juan e outros membros da organização permaneceu constante até o final da feira; fui o fotógrafo “oficial” da cooperativa durante a premiação do concurso no qual a entidade (na verdade, um de seus associados) alcançou o primeiro lugar pela qualidade de seus grãos de café, numa competição que envolvia as outras cooperativas (e seus respectivos sócios) também filiadas à COCLA. Adiantando o expediente, parti com Juan no dia 30 até a cidade de Santa Teresa (capital de um As “centrais” de organizações de produtores de café são entidades legais de “segundo grau”, isto é, diferentemente das cooperativas e associações, cujos membros ou sócios são os próprios cafeicultores, entre as centrais os associados são as cooperativas ou as associações. 19 Os cafés considerados sostenibles (sustentáveis) eram aqueles identificados com selos que mesclavam critérios “sociais” e “ambientais”. Eram cafés produzidos de acordo com normas supostamente menos exigentes do que aquelas presentes nos certificados orgânicos e de comércio justo. 20 Segundo ele, “muitas pessoas vêm até nós conduzir suas pesquisas e depois nunca mais dão qualquer tipo de satisfação”. “Vocês escrevem suas teses e se esquecem de nós”, completou. 18 distrito de mesmo nome, um dos nove distritos da província de La Convención, localizada no departamento de Cuzco)21. Fomos numa van margeando, durante algumas horas, as imponentes montanhas da selva alta cusquenha. Nos dois primeiros dias em Santa Tereza, pude conversar com os associados e dirigentes da Cooperativa Huadquiña, que me informaram sobre o funcionamento da organização (Cruz, 2010). No terceiro dia, acordei ainda de madrugada e fui encontrar o técnico Juan Carlos na cooperativa, para então acompanhá-lo em suas “visitas de campo”, de acordo como havíamos combinado. Fui dar uma volta pelas dependências da entidade enquanto um sócio conversava com ele e com Raul (um técnico apelidado de “Russo” e natural da mesma cidade que Juan)22. Entrei no armazém e me deparei com a seguinte classificação escrita na parede: café orgânico, café sustentável (sostenible) e café planta23. Abaixo da inscrição “café orgânico”, havia uma segunda classificação, só que com relação ao local de origem do café ou sua cuenca (bacia hidrográfica, em espanhol): Quellomay, Yanatile e Suriray. O armazém também funcionava como uma sala de reunião, o que podia ser percebido através da lousa num de seus cantos e dos diversos bancos empilhados uns nos outros. Sou chamado para subir até o escritório dos técnicos e encontro Juan escrevendo seu relatório da feira da COCLA, no qual constava, por exemplo, quantos produtos foram vendidos pela Cooperativa Huadquiña. Começo então a “fuçar” nos arquivos referentes aos sócios da cooperativa. Em cada pasta de “registro de dados do agricultor” havia inúmeras “fichas de recomendações”, “fichas de visita de campo”, “contratos de compra e venda”, “compromissos de produção de café orgânico”, e outros documentos. Era um imenso “mecanismo integrado de controle” feito pela burocracia da Huadquiña. Não era à toa que ela participava de um “sistema de controle interno” entre as cooperativas que faziam parte da COCLA. Tal aparato visava prepará-las, junto de seus associados, para as “visitas” dos inspetores externos. Mario era o único, dos três técnicos da Huadquiña, que era casado e que não havia frequentado uma universidade, além de ser o mais velho. Também somente ele era filho de agricultores associados à cooperativa. Numa outra ocasião, conversando com Juan sobre seu trabalho nessa organização, me disse que ele e Raul eram 21 O distrito de Santa Teresa foi fundado em 1957. A Cooperativa Huadquiña foi criada no ano de 1963. Raul tinha 27 anos, cinco a mais que Juan. Ambos eram filhos de cafeicultores e moravam juntos em Santa Teresa. A casa deles era pequena, sem fogão, tanque e outros utensílios. Ganhavam 1.200 soles mensais (em torno de USS 400), além de um dinheiro complementar para o transporte. 23 Café planta era o café também chamado de convencional, tradicional ou comum. 22 “engenheiros” (agrônomos) e Mario “apenas um técnico” (florestal). Acontece que este último era formado em um instituto, uma instituição de terceiro grau, mas que não tinha o mesmo prestígio ou reconhecimento que uma faculdade ou universidade perante não só entre eles como entre os peruanos de um modo geral. De qualquer modo, entre os produtores ligados à cooperativa, os três eram comumente chamados de “engenheiros”, e de uma maneira que se colocava como uma espécie de reverência24. Partimos nas duas motocicletas da cooperativa para fazer as visitas de campo; fui com Raul, Juan e Mario seguiram na outra moto. Depois de quarenta minutos de viagem, chegamos ao local onde elas ficariam estacionadas. Desse lugar, fomos a pé visitar as chacras dos sócios localizados na região, conhecida como Sahuayaco, um dos 20 “comitês” da cooperativa nos quais estavam agrupados. Na área onde deixamos as motos, havia uma escola, um campo de futebol, um restaurante e algumas barracas que vendiam bebidas engarrafadas e guloseimas para os diversos turistas que descansavam de uma caminhada alternativa às ruínas de Machu Picchu. Após os técnicos decidirem quais associados iriam visitar, segui com Raul morro acima e à direita; os outros dois subiram pelo lado esquerdo. Cada um deles visitaria dois sócios (eles costumam visitálos sozinhos, e não em duplas). Deixamos o local às 11 da manhã e o combinado era de se encontrar nesse mesmo lugar às três da tarde25. Antes de chegarmos na chacra do primeiro sócio que iríamos visitar, passamos em frente da propriedade de um de seus vizinho, e que não era associado à cooperativa. O que encontramos pelo caminho que a circundava foi uma quantidade impressionante de lixo espalhado entre as árvores e arbustos. Na área do sócio, a situação era completamente diferente; sem falar que o café do produtor não associado era “heterogêneo demais” (decorrente de uma “colheita e beneficiamento tradicional” e não de uma “colheita seletiva e beneficiamento técnico”, me informou Raul) e estava sendo secado numa lona preta de plástico próxima ao chão de terra (e não numa laje de concreto, de acordo como a cooperativa exigia de seus sócios)26. Conforme um produtor 24 De acordo com o censo nacional de 2007, entre os habitantes do distrito de Santa Teresa com 15 anos ou mais, 8,6 por cento tinha uma educação de nível superior. Já os analfabetos formavam 15,5 por cento da sua população com 15 anos ou mais. As informações relativas aos censos nacionais peruanos podem ser encontradas na página eletrônica do Instituto Nacional de Estatística e Informática (INEI): www.inei.gob.pe. 25 Escutaria de Raul que seu desejo era, no fundo, “se desenvolver” (profissionalmente) como cafeicultor, o que se colocava como mais um exemplo do fato de que ele e os demais técnicos eram atravessados por distintas identidades ou pontos de vista ligados ao trabalho. 26 A “colheita seletiva” envolvia a coleta apenas dos grãos maduros e, consequentemente, com características (como corpo, aroma, acidez, doçura e amargor) mais próximas do paladar dos consumidores dos mercados de cafés “especiais”. O “beneficiamento técnico” permitia um maior controle havia me dito no dia anterior: “o mercado quer homogeneidade”. Ele traduzia em palavras o que podia ser observado nas visitas às chacras. Chegando à propriedade do associado em questão (propriedade inclusive no seu sentido jurídico, pois a área era reconhecida legalmente), Raul foi logo conversando, em quéchua, com a mulher do proprietário. Ela explicou que a ausência de seu marido se devia ao fato dele estar trabalhando no reparo da estrada logo abaixo. Seguimos então adiante e entramos na área de outro “não sócio”; o lixo e o modo de secar não permitido pela cooperativa mais uma vez me chamaram a atenção. Nas chacras dos associados, pelas quais íamos passando, era possível perceber uma variedade impressionante de cultivos, incluindo árvores frutíferas, entre elas a da granadilla, uma fruta local de sabor indescritível e que havia provado na feira da COCLA justamente pelas mãos de Raul27. Chegamos à chacra do outro cafeicultor que deveríamos visitar nesse dia, mas que, em virtude do seu falecimento, estava, na ocasião, sob a responsabilidade da sua viúva. Conversaram em quéchua e Raul comentou comigo depois: “primeiro as observações e conversas, depois as recomendações de acordo com as potencialidades da propriedade”. São estas recomendações, assim como os planos de produção e demais indicações, que, além de servirem para controlar as práticas dos agricultores com base nas normas das agências certificadoras, também podem ser pensados como elementos fundamentais para a criação e o reforço de um modo de se comportar afim com uma nova realidade socioeconômica global em torno da produção de alimentos. Tais recomendações, indicações ou conselhos que faziam aos produtores de café, ao levarem em conta as “potencialidades da propriedade”, acabavam aproximando seus pontos de vistas da realidade vivida pelos agricultores, ao contrário do que acontecia quando “controlavam” estes últimos. Os técnicos incentivavam os sócios a adotar uma nova disposição em relação à agricultura, assim como um treinador de futebol incitaria seus jogadores a seguir um novo estilo de jogo, ao incutir neles os meios de superação e dessas distintas e economicamente valorizadas características desses cafés. Já a secagem dos grãos em lajes de concreto tinha como objetivo principal mantê-los afastados do solo (onde podiam entrar, mais facilmente, em contato com as chamadas “impurezas”, como gravetos e terra, por exemplo). 27 Havia um discurso, bastante proferido pelos funcionários das organizações peruanas de cafeicultores, que valorizava a “diversificação” das fontes de ingressos econômicos das famílias dos seus associados. No caso da Cooperativa Huadquiña, como deve ficar claro ao longo do texto, a ênfase no cultivo da granadilla era colocada pelos técnicos como algo que, antes do que contradizer seus discursos em torno da produção orgânica de café, servia justamente para garantir esse tipo de produção entre os agricultores que apresentavam certas desvantagens produtivas em relação aos seus pares. Isso implicava, certamente, num olhar mais global da perspectiva destes últimos antes do que apenas vê-los como produtores de café. levando em conta seu conhecimento das “potencialidades” desses atletas28. A questão é ver o trabalho de Raul e de seus colegas como um processo, de longo prazo, cuja eficácia depende das suas autoridades perante os produtores, da legitimidade de suas práticas e do compartilhamento das representações acionadas em suas falas. Ou seja, a interiorização, pelos cafeicultores, das novas regras do campo econômico, pressupunha todo um trabalho de mediação social e cultural, e não um contato direito ou não mediado com as transformações nos mercados de café ou de outro produto. Esta última chacra que visitamos tinha cinco hectares. Raul requisitou à sua proprietária os seguintes documentos: “declaração jurada”, “fichas de recomendação” (de visitas anteriores) e “plano de produção” (cópias desses documentos compunham o “registro de dados do agricultor” em mãos da Huadquiña)29. Esta sócia ainda não era “orgânica”; estava em (fase de) “transição dois”. Ele chamou sua atenção por conta dos (poucos, no meu entender) lixos espalhado pelo caminho, já no interior da sua chacra. Um dos seus filhos disse que iria juntá-los e depois depositá-los na “lixeira inorgânica”. O técnico lembrou que essa lixeira estava cheia; ela e seus filhos imediatamente se comprometeram com construção de uma nova. Eles também afirmaram que iriam erguer uma laje de concreto (para a secagem dos grãos), mas só em janeiro, pois no momento não teriam dinheiro suficiente para essa obra. Raul lhes indagou sobre as fontes de ingresso da família (disseram que dependiam mais da granadilla do que do café) e a respeito da quantidade de patos e galinhas que possuíam, entre outras questões que talvez pudessem ser respondidas através da própria observação do técnico. Tudo o que ele anotava na ficha de visita de campo era fruto de perguntas e não de observações. Indagado mais tarde sobre isso, me respondeu: “o importante é observar a produção de café”. Mas como ele e Juan supostamente já conheciam bem a propriedade, dessa vez essa observação foi bastante superficial: “quando o técnico visita uma chacra nova, ele olha atentamente todo o cafezal”, apontou. Enfim, a visita me pareceu bastante burocrática. No final, Raul e o filho mais velho desenharam um croqui da propriedade. O técnico também fez uma estimativa da inclinação da chacra e repassou suas recomendações através de uma cópia da ficha de visita de campo. “Em setembro os 28 Não é sem razão que a construção social da autoridade de muitos dos atuais treinadores de futebol se dê com base nos seus estudos superiores e nas suas experiências como ex-jogadores enquanto uma característica que supostamente lhes ajudaria a transmitir seus ensinamentos aos seus atletas. 29 Vale ressaltar que eram feitas, por ano, de três a quatro visitas a cada sócio, por isso as inúmeras fichas nas pastas dos agricultores que tinha visto na sala dos técnicos. técnicos regressam a essa propriedade”, avisou. Eles eram sócios da cooperativa há treze anos, mas só recentemente haviam se tornado “orgânicos”30. O dia seguinte também foi dedicado às visitas de campo com os técnicos. Voltamos os quatro para Sahuayaco, o mesmo comitê cujos moradores havíamos visitado no dia anterior. O programado era encontrar os produtores de granadilla dessa região para uma reunião que, dado às suas ausências, não aconteceu. Os três técnicos então debateram quais sócios iriam visitar. Segui com Juan morro acima. A mais de dois mil metros de altura (medidos com o GPS da Huadquiña em suas mãos), deparamo-nos com as árvores de granadilla. Esta fruta era normalmente vendida aos comerciantes locais, mas a ideia da cooperativa era criar uma associação de produtores, tendo em vista “organizar um mercado do produto”, conforme ele comentou comigo. Esse projeto deveria começar no ano seguinte. Num terreno situado acima de dois mil e duzentos metros de altura, o cultivo de café não seria vantajoso, de acordo com Juan, que iria nesse dia informar aos sócios que, apesar de, nessa altitude, a “qualidade” do grão ser excelente, a “produtividade dos cafezais era baixa”. O primeiro sócio que visitamos era um “produtor orgânico”. Chegamos em sua propriedade quando ele colhia suas granadillas, com a ajuda de quatro a cinco pessoas. Inicialmente, Juan lhe repassou as informações sobre um “sistema de irrigação”; o sócio se interessou pela sugestão, mas o custo do empreendimento parecia o desencorajar. Então o técnico o aconselhou a adquirir uma parte do sistema, “a título de experiência”. Tratava-se de uma entre outras propostas feitas pelo funcionário da cooperativa a esse agricultor e com o objetivo manifesto de aprimorar sua produção orgânica. Acabamos sendo gentilmente convidados para o almoço. Terminada a refeição, descemos morro abaixo até sua “parcela” onde cultivava seu café31. Caminhamos por entre outras chacras e até por um caminho de pedra do tempo dos inkas. Chegando ao terreno com cafezais, o técnico fez a habitual inspeção nestas plantações. Ele cobrou do sócio que o mesmo reconstruísse um poço usado para armazenar as “águas” resultantes do 30 Segui com Raul de volta à propriedade do sócio que estava ausente durante nossa visita à sua chacra. Constatamos, através de sua mulher, que ele ainda não havia retornado. “O produtor pode entregar menos, mas nunca acima de sua cota”, me disse o técnico no caminho de volta até as motos. Essa cota aparecia na “declaração jurada do produtor” e era uma maneira de não permitir que os cafés não certificados fossem vendidos sob o rótulo de “orgânico”. 31 As terras pertencentes a uma chacra não eram necessariamente contíguas. “beneficiamento” do café (impedindo assim que atingissem os rios). O produtor se prontificou a realizar essa obra ao longo do próximo ano32. Seguimos morro acima, em direção à chacra de um tio desse sócio. A conversa de Juan com esse senhor foi feita quase que inteiramente em quéchua, intercalada com os comentários que eu recebia desse técnico, em espanhol. Durante a visita ao cafezal, ele sugeriu ao agricultor que plantasse mais árvores de granadilla: “dá mais dinheiro”, conclui o técnico a respeito desse cultivo, ainda observando: “a qualidade do café é boa, mas a produção é pequena nessa altura”. Nessa chacra, a sujeira “inorgânica” era difícil de ser percebida. No final da visita, Juan repassou ao sócio as suas recomendações, entre as quais incluíam: (1) “poda seletiva e poda total nas plantas pré-determinadas”, (2) “barreiras naturais”, (3) “composto orgânico no adubo” e (4) “melhor limpeza das instalações” (os sócios tinham que cumprir com sete tarefas indicadas pelos técnicos). Terminada a visita, caminhamos morro abaixo e nos encontramos com Mario e Raul no local onde estavam estacionadas as motos. Um sócio, dono de uma lanchonete ao lado, nos ofereceu um delicioso café. Juan brincou com ele dizendo que eu era um inspetor estrangeiro; o associado reagiu com bastante reverencia33. Considerações finais Em 2011, o café da Cooperativa Huadquiña se converteu no sétimo produto reconhecido, pelo governo do Peru, por sua “denomina de origem”34. Tal feito foi amplamente divulgado pela imprensa do país. Numa dessas reportagens, por exemplo, seu autor afirma que esse rótulo havia sido concedido depois de três anos de “avaliação técnica das características diferenciadas” desse grão, um processo conduzido por um instituto estatal e através do qual foram levadas em conta suas “características especiais de qualidade, aroma, corpo e acidez derivadas de seu entorno” (Calderón, 2011). Segundo esse jornalista, “sua alta qualidade e características especiais têm feito com o café gourmet Machupicchu-Huadquiña conseguisse se posicionar com muito êxito nos mercados internacionais.” (idem) Para um dirigente da cooperativa com quem ele conversou, “essa certificação de denominação de origem será um valor agregado que 32 Juan igualmente observou onde deveria ser feita a poda da planta do café e a indicou para o agricultor. Falou também da importância do uso do abacate na produção de adubo orgânico: “as minhocas gostam de coisas úmidas”, exemplificou. Continuamos andando e, pelo caminho, o produtor recolheu uma garrafa de plástico jogada em sua propriedade. 33 Ver Cruz (2010) para o relato de outras “visitas de campo”. 34 Os produtos, que haviam recebido esse rótulo, eram: o pisco peruano, o milho branco gigante de Cuzco, a cerâmica de Chulucanas, o feijão de Ica, o café de Villa Rica e a abóbora de Lambayeque. beneficiará os 600 pequenos sócios” (idem). Contudo, para além das dimensões organolépticas e comerciais em torno do café da cooperativa, essa reportagem também chama a atenção para as mudanças nas disposições dos seus sócios diante do trabalho. “Quem não se submete às exigências às regras de exigência máxima do mercado não pode estar na cooperativa”, afirmou o gerente da Huadquiña que, mais a frente, completaria seu raciocínio, “antes os sócios entregavam ‘qualquer coisa’, agora sabem que um produto melhor é um preço melhor” (idem). Logo em seguida, o autor da matéria relata a transformação vivida por um sócio da cooperativa: Odil Vivanco Candia é um agricultor do setor de Yanatile. Sem que pudesse imaginar, se tornou um exemplo a ser seguido. Há quatro anos ele tinha quatro hectares com pouca produção. Os técnicos o aconselharam a substituir seus cafezais. Depois de conversar com sua esposa, começou a praticar a poda seletiva, por meio da qual, suas plantas velhas, que estavam disformes, raquíticas, com crescimento horizontal, foram extirpadas. Hoje em dia esse cafeicultor renovou quase 50 por cento de seus cafezais. Se antes ele produzia 12 quintais por hectare – pouquíssimo – hoje seus índices ascendem a 25 quintais, com a meta de chegar a 50, uma vez que termine a renovação. A renovação deve ser feita ao poucos, e em três anos a chacra estará toda renovada, comenta. “As vantagens de renovar são muitas, produz mais grãos, as plantas não são mais tão altas, facilita a colheita, e a mão de obra não se afasta, pois prefere ir onde é mais fácil colher”, acrescentou. Antes precisava de doze pessoas para colher um quintal de 100 libras. Hoje em dia só necessita de oito e logo será menos (idem). Quem lê essa reportagem, pode ser levado a acreditar que a racionalização das práticas agrícolas dos agricultores da Huadquiña é guiada somente pelos retornos econômicos que ela é capaz de proporcionar35. Porém, olhando de perto os procedimentos pedagógicos por detrás desse processo, é possível ver que ele deve ser traduzido ou adaptado à realidade dos produtores de café. Não é sem razão que os “conselhos” dos técnicos são evocados na matéria36. Tal mudança na forma do trabalho rural (sua “racionalização”) parece então se apoiar numa transformação da perspectiva dos funcionários da cooperativa: a adoção da visão dos sócios. Ou seja, para entender as metamorfoses do trabalho rural, enquanto uma atividade, é preciso vê-lo também como um ponto de vista ou um olhar sobre o mundo e que é capaz de ser adotado por aqueles que não são classificados como trabalhadores rurais. A Cooperativa Huadquiña representava, evidenciava ou expressava não apenas um ideal comercial ou produtivo, mas também de relacionamento ou socialidade entre os cafeicultores e os agentes que intermediavam suas relações com o plano extralocal. “A melhoria de seus cafezais nasceu quando os mercados de café orgânico e de comércio justo chegaram a pagar US$ 30 a mais por quintal” (Calderón, 2011). 36 “A busca por um grão mais uniforme e limpo passou por uma revolução de pensamento. Todos os sócios se submeteram aos conselhos dos técnicos” (Calderón, 2011). 35 Esses “outros” deviam também se posicionar como uma espécie de “nós” para que essa intermediação ganhasse uma maior legitimidade da perspectiva dos produtores de café: esse era o caso não só dos técnicos das cooperativas como também dos seus gerentes, dos comerciantes “privados” e dos políticos locais, por exemplo. Tais metamorfoses não estariam tão presentes numa época passada quando seus vínculos com esses mediadores seriam bastante escassos ou praticamente inexistes. Não foi sem razão, por exemplo, que as cooperativas de cafeicultores começaram a ser criadas, a partir dos anos 60, devido, em especial, à falta de confiança de seus membros nos compradores de café (Cruz, 2013). Estes últimos agentes apareciam (e continuariam aparecendo) entre os primeiros como a representação dominante ou paradigmática do “explorador”, isto é, daquele que gozaria a vida à custa do trabalho dos agricultores. A relação dos produtores com os comerciantes de café se situaria assim nas fronteiras da moralidade (não era à toa que as pessoas da selva alta identificadas, de uma maneira ou de outra, com o comércio desse grão, eram comumente associadas à figura do ladrão ou bandito). De acordo com um, outrora, líder dos cafeicultores peruanos: Quando, por iniciativa de agricultores visionários, dedicados à cafeicultura, se formaram as primeiras cooperativas em 1965, decididas a controlar os baixos preços que recebia o cafeicultor, o roubo no peso, a especulação e a exploração do colonizador da Sobrancelha de Selva em benefício de atacadistas e exportadores intermediários inescrupulosos, cujos ganhos obtidos facilmente eram gastos em viagens ao estrangeiro, na aquisição de artigos suntuosos, no consumo de bebidas e produtos importados, residindo nas cidades, desfrutando do luxo e da abundância; enquanto a economia do campesinato era cada vez mais menosprezada, disseminando a desmoralização e o fatalismo no homem do campo, que morava em casas inadequadas e desconfortáveis, submetido a todo tipo de privações, sem serviços essenciais de nenhum tipo, esgotando-se lentamente como consequência de sua miséria, afundado pelo frequente consumo de tabaco e álcool; não se previam, nem se especulavam sobre, as perspectivas e alcances desse movimento cooperativo de transformação, redenção e mudança na Sobrancelha de Selva (Revista Café Peru, edição de janero-fevereiro de 1980). Mas a fundação e o controle de muitas das cooperativas teriam contado com pessoas com as quais os agricultores de origem andina pareciam não se identificar, como é o caso de uma organização da província de Satipo (na “selva central”) que o antropólogo Robin Shoemaker (1981) visitou entre 1973 e 1975. A experiência de um sócio dessa cooperativa, que havia se tornado um de seus “delegados”, mostra as diferenças ou descontinuidades que existiam no interior dessa entidade: Desde que se tornou delegado, ele aprendeu que o administrador chefe e os gerentes da cooperativa estavam roubando dinheiro da instituição. A maioria desses diretores, segundo ele, são os antigos patrões (latifundiários) de Satipo ou seus filhos. Eles são os que fundaram a cooperativa dez anos antes e tomaram seu controle apesar de todas as mudanças sociais que aconteceram. A ditadura corrupta continua no poder porque poucos colonos entendem as leis ou têm alguma noção de seus direitos como membros da cooperativa. A maioria dos atuais colonos tem origem indígena, diz ele, e faltam a eles a “educação e cultura” necessárias para se oporem eficazmente aos gerentes de sua cooperativa (idem p. 19-20). Entretanto, com o passar dos anos, uma parte dos descendentes dos cafeicultores andinos se formou no Ensino Superior e passou a conduzir/gerenciar suas cooperativas. Nesse sentido, a atual posição privilegiada de algumas dessas organizações no mercado de café parece ser um reflexo de uma transformação na identidade de seus funcionários. Não que as pessoas de fora do universo cafeicultor não pudessem se identificar com ele, apenas que os agricultores andinos tinham como referência um senso comum no qual o “outro”, isto é, o sujeito não associado ao trabalho rural, tendia a assumir ou representar, num maior ou menor grau, o papel de explorador do trabalho dos proprietários rurais 37. Não foi à toa minha dificuldade em ser aceito pelos dirigentes da Huadquiña. Contudo, os filhos ou descendentes dos produtores de café pareciam se mostrar mais abertos ou confiantes para entrar em contato direto com a alteridade. Através de suas experiências familiares e escolares eles acabaram incorporando uma disposição que os legitimava a traduzir com propriedade o mundo exterior para os cafeicultores. Eram as segundas ou terceiras gerações das famílias desses agricultores que, aparentemente, se mostravam as principais responsáveis pela diminuição do “clima” de desconfiança em relação aos agentes que intermediavam seus contatos extralocais. Porém, essa “atmosfera” ainda permeava, em grande medida, as visões dos produtores a respeito desses intermediários ou mediadores. Tal desconfiança generalizada podia explicar, num maior ou menor grau, a relutância de muitos deles em fazer parte das cooperativas de cafeicultores ou, mesmo sendo seus associados, em ingressar nos ditos “programas de cafés orgânicos”, apesar das “vantagens” econômicas que poderiam obter com suas participações nessas entidades ou programas. De qualquer maneira, Não é sem razão que o tema do “colonialismo interno” é central na narrativa de Shoemaker (1981). Segundo ele, “o problema enfrentado pelos agricultores de Satipo pode ser definido de maneira simples: o produtor de alimentos é explorado pelas pessoas que controlam os canais mercantis” (idem p. 205). Tal olhar se apoia tanto nas visões dos cafeicultores quanto no viés teórico desse autor: a “economia política”. 37 mesmo entre os “sócios orgânicos” ou em “fase de transição”, a confiança nos funcionários de suas cooperativas devia ser cotidianamente reforçada, haja vista o que aqui foi definido como a pedagogia da agricultura orgânica certificada38. Por fim, como explicar esse pano de fundo de “desconfiança generalizada”? Peter Luetchford (2008), num livro em que aborda a questão do comércio justo numa cooperativa de cafeicultores da Costa Rica, afirma que estes tenderiam a ver o valor do café como algo derivado das atividades envolvidas na sua produção e não do seu comércio, uma visão que teria uma raiz cristã39. Trata-se de uma “teoria do valor”, segundo as palavras desse autor, que pressupõe um arcabouço conceitual ou simbólico organizado ao redor de uma ideia do trabalho rural40. Guardada as devidas diferenças, creio que essa visão de mundo também esta presente entre os cafeicultores peruanos 41. Mas meu ponto aqui é o de que o trabalho rural, enquanto uma noção ou representação, pode ser pensado como uma matriz de significados, ou seja, como fonte de sentidos para estes últimos agentes interpretarem não somente suas ações como também as dos sujeitos que não são trabalhadores rurais ou agricultores. A deslegitimação sistêmica ou estrutural do “trabalho não rural” aparece entre os produtores de café do Peru como uma condição das suas integrações lógicas e sociais. Em outras palavras, a visão negativa de seus mediadores é naturalizada tendo em vista o reconhecimento de uma perspectiva em comum. Porém, ela deve ser desconstruída na medida em que esses “outros” queiram estabelecer uma relação de confiança com eles. Este texto mostrou que essa desconstrução vem sendo feita, em grande medida, através de metamorfoses de pontos de vista e as quais têm sido realizadas, notadamente, por uma parte dos filhos desses cafeicultores.42 A legitimação desses mediadores, isto é, a 38 Em 2014, algumas cooperativas peruanas de cafeicultores, outrora situadas entre as que mais exportavam café no país, enfrentaram graves dificuldades financeiras e as quais acabaram alimentando um sentimento de desconfiança de seus sócios para com seus funcionários. 39 Os que apoiavam mais enfaticamente a cooperativa seriam os jovens e os produtores “tecnicamente mais informados”. Já seus críticos seriam os agricultores mais velhos. 40 De acordo com essa teoria: “aqueles que não trabalham duro”, isto é, que não transformam a natureza, “não têm direito de se apropriar (do trabalho) daqueles que agem dessa maneira” (Luetchford, 2008). Segundo esse autor, os profissionais que trabalham no escritório da cooperativa, assim como outros tipos de agentes intermediários, são acusados, pelos produtores, de serem preguiçosos, uma crítica ou divergência que “esta ancorada na crença de que o verdadeiro valor advém do trabalho na terra e da interação com a força que Deus colocou na natureza (idem p. 142). 41 “Os produtores parecem compartilhar alguma coisa com os consumidores e ativistas do comércio justo; a idealização do trabalho sobre a natureza como criador de valor e o direito de reter esse valor criado” (Luetchford, 2008 p. 138). Ou seja, essa visão de mundo parece transcender o universo dos cafeicultores. Com base em Klaas Woortmann (1987), é possível dizer que se trata de uma ética cujas raízes perpassam o cristianismo e se estendem até as ideias do filósofo grego Aristóteles. 42 É importante ressaltar que essa “desvalorização” ontológica ou cultural do trabalho não rural é deixada de lado principalmente diante do desejo dos agricultores de verem seus filhos se tornarem “profissionais”, transformação dos “outros” em “nós”, se relacionava diretamente com o processo de racionalização das práticas agrícolas. Essa mudança do trabalho rural era o reflexo de uma incorporação, pelos produtores, da perspectiva da “demanda externa” através das suas confianças nos ensinamentos e conselhos dos técnicos. Referências ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão. Campinas: Hucitec, 1992. CRUZ, Ricardo. Sagas do “comércio justo” e percepções da modernidade na selva central peruana. Rio de Janeiro, 2010. 277 f. 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