Ana Filipa Pinto
À Rasca
Retrato de uma geração
Eles estão aqui
José Vegar
Eles não são invisíveis, nós é que os desconhecemos ou
evitamos reparar. Eles são a geração, entre os 18 e os 39 anos,
mais bem preparada e educada das últimas décadas em
Portugal, mas também a que é forçada ao pior projecto de
vida das últimas décadas. Nós somos aqueles com mais de
40 anos que, com maior ou menor êxito, com maior ou
menor brilhantismo, com maior ou menor solidez, temos
um percurso pessoal e profissional estabilizado, e pelo menos
algumas coisas com que contamos neste mundo em vertigi‑
nosa mudança. Entre eles e nós existe, temos de o admitir,
esta enorme, vincada e permanente fronteira.
Na verdade, eles são uma multidão heterogénea e dis‑
persa, despojada de quase todas as armas que nós fomos
adquirindo, forçada a uma luta permanente pela sobrevi‑
vência e uma estranha e confusa nova espécie de clandestinidade pessoal e profissional, que compreendemos mal, que
não conseguimos pensar, quanto mais encaixar. Eles lutam
continuamente pela sobrevivência porque não conseguem
trabalhar, ou só conseguem trabalhar de modo fragmentado
e precário. A partir daqui, deste nó fundamental, são encer‑
rados na tal nova espécie de clandestinidade, um conceito tão
apropriado como qualquer outro, porque, mais uma vez, não
percebemos «que vida é a deles». Não desenham um projecto
pessoal, porque sabem que o trabalho pode acabar a qualquer
momento. Não conseguem abandonar a casa familiar, e isso
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impede­‑os de construir a sua família. Vão estando por aqui,
em círculos permanentes, sem que saibamos, eles e nós, onde
e como e principalmente porquê.
Ou então, resistem, resistem dos mais inventivos modos,
criando do zero, e de modo original, emprego, actividade,
ganho, rendimento. E aí deparam­‑se com uma sociedade
e um Estado arcaicos, que nem sequer entende o que eles
fazem, quanto mais apoiá­‑los, seja a nível empresarial, ou
através de incentivos fiscais.
Um dos grandes problemas desta questão fundamen‑
tal para todos nós, que é política, económica e social, e que
interfere tanto com a competitividade de Portugal como
com várias justiças elementares, é que nós sabemos que eles
estão aqui, mas não sabemos quem eles são.
As estatísticas disponíveis dizem­‑nos pouco, e logo aqui
percebemos que, antes de tudo o mais, este é um problema
de conhecimento. Sabemos pelo Instituto Nacional de Esta‑
tística (ine) que, em 2001, tínhamos 3 milhões e 826 mil por‑
tugueses entre os 15 e os 39 anos.
Sabemos, também pelo ine, agora já com dados do pri‑
meiro trimestre de 2011, que temos 4 milhões e 866 empre‑
gados, e 688 mil desempregados.
Sabemos, novamente pelo ine, que 22,4 dos desemprega‑
dos tem menos de 25 anos, e que 75 mil desempregados têm
formação superior.
Sabemos ainda, agora procurando conhecer a população
empregada entre os 18 e os 39 anos, que 4,7% daqueles que
trabalham mediante contratos denominados como «falsos
recibos verdes» são detentores de cursos superiores.
E que 55% dos contratos de trabalho não permanente são
celebrados com profissionais com menos de 24 anos. E que
1 em cada 3 dos assalariados até aos 34 anos tem um contrato
de trabalho não permanente.
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Pouco mais sabemos. E sem um conhecimento rigoroso
do fenómeno não há acção. Assim, esta é antes de tudo o
mais uma questão política, que começa na necessidade de
dar prioridade a obter conhecimento e acaba na necessidade
de a começar a resolver, pelo menos.
Não sabemos muito, mas os dados quantitativos existen‑
tes servem no mínimo para intuirmos que esta é também
uma questão económica decisiva para o futuro de Portugal.
Se temos uma enorme multidão de profissionais qualifica‑
dos a quem não é dado incentivo, mesmo quando «inven‑
tam» trabalho e rendimento, estes pouca vontade sentirão
para produzir mais e melhor.
E, finalmente, eles são um enorme problema multisso‑
cial. Pelo pouco que sabemos, percebemos que a clandestini‑
dade a que a todo o momento e em que todas as dimensões
os forçamos privam­‑nos, na maior das vezes, de lutar e con‑
seguir tudo aquilo que nós consideramos ser elementar para
uma vida.
A extraordinária investigação da jornalista Ana Filipa
Pinto, que não poderia pertencer mais a esta geração, é prin‑
cipalmente um esforço de revelação. Primeiro, e através do
cruzamento dos escassos dados sólidos existentes, para nos
revelar quem é esta geração e por que razões estruturais,
económicas e sociais foi ela empurrada para a estranha clan‑
destinidade onde circula.
Depois, e mais importante, para nos levar à intimidade
de dezenas de membros forçados e assumidos desta gera‑
ção. Página a página, partilhamos os objectivos e sonhos que
eles levantaram, chocamos nós também com as suas desilu‑
sões pessoais e profissionais permanentes, entramos nesse
estranho mundo da permanência forçada na casa dos pais
ou nos apartamentos de amigos, e fazemos com eles as via‑
gens dos sonhos que teimam em não eliminar. Dos 500 mil
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manifestantes do 12 de Março aos acampados do Rossio, de
Barcelona e de Madrid, a indignação e a revolta contaminam
cada vez mais os membros desta geração.
A investigação de Ana Filipa Pinto detecta casos extraordinários de resistência, engenho e força de vontade, mas,
inevitavelmente, revela uma realidade comum a tantos, feia
e triste, feita de sonhos esmagados, oportunidades elimina‑
das e, principalmente, vazios contínuos, criados pela inca‑
pacidade de agir e pelo desconhecimento total do que vai
acontecer.
Chegamos ao fim deste texto com uma certeza. Eles estão
aqui, e nós temos de fazer alguma coisa.
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À Rasquinha
Para um conhecimento rigoroso de uma geração
Cresceram convencidos de que a crise «estava quase»
a acabar. Estudaram, socializaram entre umas minis, uns
quantos festivais e uns tantos cigarritos. Ainda tinham
tempo. Tomaram decisões, desenharam planos, ainda que
a lápis. Ponderaram vontades e riscos e alguns aprenderam
a cozinhar uma «licenciatura à Bolonhesa». Outros só lhe
sentiram o cheiro e houve quem optasse por um menu dife‑
rente. E os pais lá iam dizendo, em tom de final feliz: «Isto vai
passar!» Estavam todos tão «concentradíssimos» nesta doce
ilusão que parecem ter deixado o tempo passar demasiado
depressa. Quase se suspeitou que também ele tivesse sido
alvo de cortes. Enquanto isso, e repetindo para si mesmos
na mesma mensagem, lá iam pagando a propina na espe‑
rança de que o futuro passaria por ali. (Afinal a bolsa tinha
sido indeferida.) E as fotocópias. E os livros. E a mensalidade
da Internet porque é necessária. E o «moche» e o «extrava‑
ganza» e o «tag». E a televisão por cabo com SportTV e Tele‑
Cine, porque já ninguém vive sem isto. E a prestação da casa
e do carro porque tem de ser. E a mesada e a carta de condu‑
ção porque ele merece. E a ida em Erasmus porque é impor‑
tante para o currículo. E a viagem de finalistas porque «todos
vão». Isto pensando sempre: «Está quase.»
De repente, o curso acaba. Sai então mais uma fornada
para o mercado de trabalho. Assim, benzem­‑se pastas e
pede­‑se o milagre da multiplicação dos postos de trabalho.
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Recebem 180 ects em tom de grande conquista e um selo
branco que custa uma simpática e redondinha centena de
euros. E, enquanto isso, ecoa: «Ah, agora a licenciatura já
não vale nada.» Arranca a pesquisa de mestrados, pós­
‑graduações e afins. Para os pais são «só» mais dois anos.
Para eles são «ainda» mais dois anos. E entretanto lá vão
dizendo «Está quase», em voz alta e entre dois palavrões, ao
mesmo tempo que se reencaminha o octogésimo segundo
currículo sem «não», nem «sim». Só «nins». Não têm expe‑
riência nem oportunidade. E as bolsas da fct e os estágios
profissionais não chegam para todos. E é nesse momento
que surge aquele espírito empreendedor (um conceito girís‑
simo, cheio de classe e altamente na moda). Os projectos
atropelam­‑se, as ideias parecem estar a assistir ao concerto
de Slipknot. E, no fim de tudo, desistem à beira do balcão
da repartição de finanças mais próxima ou esmagados pela
burocracia preenchida a caneta preta e fotocopiada, a cores,
vezes sem conta.
Deixam de pensar no que queriam, começam a exigir
apenas o que precisam. Uma casa própria é miragem e até o
quarto alugado sem janelas reclama o fim de muitas regalias.
Ficar em casa dos pais é solução a termo incerto – um pouco
ao estilo dos afamados contratos e que acaba por compro‑
meter o seu desenvolvimento pessoal, segundo David
Cairns, investigador na área da sociologia, o qual sublinha
que estes jovens, por não terem oportunidade de se torna‑
rem independentes tanto em termos económicos como em
termos sociais, «não têm capacidades práticas: como loca‑
lizar uma casa? Como manter um orçamento?, por exem‑
plo. Estes aspectos podem contribuir para a manutenção de
uma expectativa acerca da qualidade de vida. Assim sendo
e devido a esta circunstância, não interessa ter apenas um
emprego mas sim um emprego fantástico; não só uma casa,
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mas uma casa enorme num sítio como o Estoril. Ou seja,
muitas pessoas não têm esta experiência de luta». No entanto
e não esquecendo as diferenças culturais, acrescenta ainda
que o mundo está a «portugalizar­‑se» e que começa a ser
normal, em países como a Inglaterra e a Irlanda, um jovem
permanecer em casa dos pais até aos 30 anos.
E, por momentos, todos começam a questionar se estará
mesmo quase. Tudo acaba envolto entre outras expectativas
que se compram e vendem avulso na feira Outlet, com des‑
contos até 70%. Têm 20, 30 ou até 40 anos e deixaram de
querer ver o telejornal às 20 horas e o mesmo de sempre a
cada dia que passa. Alguns não querem saber de política,
limitam­‑se a actualizar a página inicial do Facebook para
perceber o que se passa e a ler a última do FB Leaks, arru‑
mam os sonhos na estante e fazem um pouco de tudo para
enganar a espera. Outros fazem a sua própria revolução indi‑
vidual e partem ou reinventam certezas. Outros ainda que‑
rem acreditar que vale a pena esperar. Esperar pela bolsa,
pelo emprego, pelo ordenado, pela entrada para os quadros,
pelo contrato, pela solução, pelas novas eleições, pelas deci‑
sões do fmi, pela mudança, para uns impossível, para outros,
inevitável. Um «está quase» adiado de curso em curso, de
recibo verde em recibo verde (cor irónica!), de contrato em
contrato, de call center em call center, de 500 em 500 euros,
de dia em dia tentando manter a confiança no pacote de açú‑
car que diz «hoje é o dia». E pronto. Parece que é mesmo
assim que o sketch dos Gato Fedorento se torna tão, tão real
que deixa de ter piada.
Sonharam ser diferentes, descobrir a cura para este mal
nacional que não deixa possibilidade para anticorpos, levar
o nome do país ao topo dos rankings que não apenas os que
revelam que apresentamos um dos mais elevados índices
de infelicidade e de insatisfação. São estes os «parvos» que
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«estudaram e são escravos» e a quem foram tirados todos
os «planos B» possíveis, a quem dizem que «luta é alegria».
Sujeitam­‑se a falsos recibos verdes, a serem considerados
mão­‑de­‑obra barata ou, até mesmo, gratuita, acumulam
estágios curriculares na esperança de ficarem e vão tentando
pensar que ainda são jovens, que ainda têm muito por viver,
que há quem esteja em situação pior, que tudo pode ser enri‑
quecedor mesmo deixando os bolsos vazios.
Entre os 15 e os 39 anos, de acordo com os censos de 2001,
são 3 826 486. Jovens que correm o risco de ter de juntar os
trocos que vão encontrando nos bolsos das calças e que já
nem pedem o extracto da conta à ordem. Não têm pé­‑de­
‑meia, conta poupança ou mealheiro. Vão gastando. Não
acreditam que venham a ter reforma. Encaram com serie‑
dade as contas de água, luz e gás e a despesa no supermer‑
cado é uma incógnita diária. No fundo, os pais continuam a
ser os seus melhores fiadores e, mesmo assim, não há banco
que lhes conceda empréstimos. Sobra­‑lhes o banco de jar‑
dim onde gravaram e guardaram juras e promessas que afi‑
nal não podem cumprir. Foram o maior investimento, o
depósito das esperanças e, agora, vivem enrascados. Uma
condição que não se limita à independência, em euros, que
tarda em chegar. Se uns não têm «onde cair mortos», outros
não têm por que estar vivos. Convivem, à mesa de jantar,
com a frustração, a revolta, a sede de justiça, com o novo
ditado «tenho de deixar para amanhã o que queria ter feito
hoje».
Tudo isto devido, talvez, a um sistema de relações de tra‑
balho que, de acordo com Pedro Portugal, académico portu‑
guês dedicado ao estudo do mercado laboral, dada a rigidez
da sua legislação, tende a proteger quem tem emprego e a
dificultar a entrada nesse mesmo mercado: «A duração
média de uma situação de desemprego em Portugal ronda os
14
dois anos. Somos o país da ocde onde a situação de desem‑
prego é mais longa […]. Cria­‑se um problema brutal do
ponto de vista psicológico e também do ponto de vista eco‑
nómico.» E, no dia em que se anuncia uma queda de 1,8%
do número de inscritos nos centros de emprego face ao pas‑
sado mês de Março, o próprio governo admite o aumento
do desemprego de longa duração, conforme o noticiado, a
17 de Maio, pela rtp. Um humor negro que já nem os núme‑
ros perdoa.
Pedro Portugal sublinha ainda que, para além do desem‑
prego, «há uns anos atrás, os contratos a prazo eram uma
porta de entrada, um degrau, ou seja […] no fim do contrato
a prazo, havia uma probabilidade de pelo menos 50% pas‑
sarem para o contrato definitivo, o que é uma coisa razoável. […] Nos últimos anos passámos para uma probabili‑
dade entre os 10% e os 20%. O contrato a prazo já não é uma
porta de entrada, é uma situação de permanência: passam
de um contrato a termo para outro contrato a termo, de um
contrato a termo para recibos verdes, de recibos verdes para
contrato a termo e não saem dali. Este é que é o drama».
E quando a conversa foge para o desconhecido e as pala‑
vras assustam, os portugueses nem sempre optam por per‑
guntar: «Como assim?» Entre a ausência de resposta e a
resposta indesejada, são muitas as vezes em que se escolhe o
silêncio. «Flexibilização» é uma dessas palavras que ecoa nas
consciências e provoca suores frios. Raquel Freire, cineasta,
activista associada a causas diversas e uma das mobilizado‑
ras da Geração à Rasca, acredita que temos assistido a uma
aplicação errónea do que são os ideais da «flexissegurança»,
defendendo que esta não poderia ser uma solução porque
«essas medidas de flexibilização (falando da Europa Ociden‑
tal, nomeadamente do sul do continente, e não do Norte da
Europa) estão a ser aplicadas como uma forma, apenas e só,
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de fazer com que as pessoas fiquem cada vez mais precárias.
Isto porque não se pode escolher: ou aceitas um trabalho,
seja lá em que condições for, ou vais para a rua. […] Para
se conseguir ter a flexibilização do trabalho, tem de ser feita
uma distribuição mais justa da riqueza, algo que temos no
Norte da Europa mas não em Portugal».
Quanto a razões que justifiquem esta «evolução» rela‑
tivamente às relações laborais, Pedro Portugal explica que
«nos países em que há uma maior protecção ao emprego e
uma menor possibilidade de despedimento existe sempre
esta dificuldade e as ofertas são geradas a um ritmo muito
mais lento. E, depois, as pessoas não rodam o suficiente para
encontrar o emprego onde são mais produtivas e mais feli‑
zes. […] É como os namorados: em geral, é preciso experi‑
mentar, conhecer». Um problema «crónico» do nosso país, o
qual, segundo o especialista em economia do trabalho, não
promove a rotação nem segue o modelo do «sapato da Cin‑
derela» que por muitos pés foi experimentado até encontrar
o certo. A acrescentar a esse, Pedro Portugal refere ainda
que «este período dos 30 anos até à crise financeira, ao qual
os economistas gostam de chamar the great moderation, foi
caracterizado por ciclos económicos que não tinham uma
grande amplitude, não havendo grandes flutuações ao nível
da taxa de desemprego, o que justificava a ausência de medo
em contratar». No entanto, «com a crise financeira e com a
recessão brutal, os economistas perceberam que havia termi‑
nado a great moderation […]. De repente, os empregadores
perceberam que haveria uma maior volatilidade na procura
dos seus produtos, portanto têm muito mais dificuldade
em garantir um emprego». Assim, em Portugal, acrescenta
o economista, «quando se passa para um contrato defini‑
tivo tal implica quase um casamento para toda a vida. Basi‑
camente, aquilo não pode ser desfeito a não ser por razões
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disciplinares muito graves. Portanto, a partir do momento
em que há a percepção de que a economia pode voltar a cor‑
rer mal outra vez, os indicadores vão agitar muito mais e aí
tendem a renovar os contratos a prazo e a não se sair desse
estado porque os empregadores não se querem comprome‑
ter com um emprego a 20, 30 anos».
Luís Menezes Leitão, advogado, especialista em Direito
Laboral e professor catedrático da Faculdade de Direito de
Lisboa, recorda que «a nossa legislação do trabalho assenta
num sistema bastante rígido desde a Revolução de 1974, mas
deve dizer­‑se, e em bom rigor, que tal já vinha desde o tempo
de Marcelo Caetano».
Este quadro histórico, para Menezes Leitão, é agravado
pelo facto de estarmos actualmente «perante um défice de
efectividade porque a maior parte das empresas contratam
ilegalmente os trabalhadores ou a termo, o qual, segundo a
lei, só é possível com base numa justificação específica, exis‑
tindo sempre necessidades temporárias da empresa».
Na verdade, aponta o advogado, «o que sucede, no
entanto, é que a empresa contrata a termo, diz que tem
necessidades temporárias e, como ninguém controla se as
necessidades são ou não temporárias, o trabalhador lá será
contratado a termo».
Esta é, defende o professor catedrático, «uma situação
bastante prejudicial para os trabalhadores e para os jovens,
pois as empresas não renovam depois o contrato a termo e,
mesmo havendo um limite para a renovação desses contra‑
tos, estes não passam a definitivos após esse período. Ter‑
minam um contrato e chamam um novo, ou seja, no fundo,
para manter esta situação de precariedade».
A isto, o especialista junta «os falsos recibos verdes, situações em que não existe subordinação jurídica, ou seja, em
que a pessoa é um trabalhador independente […] e o que
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se sucede é que se está sujeito a horário de trabalho, sujeito
a local de trabalho, sujeito a ordens de um empregador mas
em recibo verde, o que é uma situação ilegal. Mas é também,
muitas vezes, a maneira de as pessoas serem contratadas,
porque se não quiserem recibos verdes a resposta é “tenha
paciência mas não contrato ninguém”».
Perante este cenário, Menezes Leitão defende que «esta‑
mos a assistir ao que eu chamo de “défice de efectividade”
da legislação laboral. Uma legislação laboral relativamente
rígida mas que só é aplicada a alguns casos. Nesta situação,
aos trabalhadores mais antigos e que conseguem manter
esses contratos antigos».
A rigidez laboral desencadeou, segundo Menezes Leitão,
«um outro fenómeno: antigamente, havia um único para‑
digma de contrato de trabalho. […] Agora cada vez têm sur‑
gido mais novos tipos de contratos de trabalho e cada vez
mais precários […]. Temos uma legislação de trabalho muito
rígida mas que só é aplicada a alguns felizardos, os happy
few, aqueles que de facto beneficiam do tal contrato de tra‑
balho definitivo. Aos que entram agora no mercado de trabalho ninguém lhes dá um contrato de trabalho definitivo, o
que gera precariedade e leva a um problema de grande inse‑
gurança».
Os dados comprovam que a história tem evoluído real‑
mente neste sentido e, de acordo com um artigo do jornal
Público de 28 de Março de 2011, «no início de 1998, um em
cada cinco assalariados de idades até 34 anos tinha um con‑
trato de trabalho não permanente. Doze anos depois, é já um
em cada três». Uma tendência que sai reforçada quando fala‑
mos de jovens com idades até aos 24 anos, pois «em 1998, era
um em cada três. Hoje, são quase três em cada cinco (55% dos
contratos)». A insegurança contratual cresce a olhos vistos
e a contratação a prazo começa a ser regra e não excepção.
18
Um cenário de precariedade que «parece penetrar mais entre
os jovens universitários. […] Em 1998, quatro em cada cinco
assalariados universitários tinham contratos permanentes.
Mas, doze anos depois, desceram para três em cada quatro».
Uma evolução que em nada se confunde com progresso e
melhoria sendo que, ao nível dos falsos recibos verdes, a
realidade também não é sorridente, pois o número «quase
duplicou em 12 anos, e de forma marcada entre os detento‑
res de cursos superiores. De um em cada quatro falsos reci‑
bos verdes em 1998 passou­‑se para dois em cada cinco em
2010. O que explica que, entre os universitários assalariados,
tenha crescido o peso dos falsos recibos verdes – de 2,8%
para 4,7% do total». Uma circunstância que parece deixar
o país corado. Se assim não fosse, não seria necessário dis‑
farçar a realidade através de letras microscópicas que traem
o objectivo dos censos da população, realizado durante o
primeiro trimestre de 2011, e parecem apelar a algum sen‑
tido de humor: «Se trabalha a “recibos verdes” mas tem um
local de trabalho fixo dentro de uma empresa, subordinação
hierárquica efectiva e um horário de trabalho definido deve
assinalar a opção “trabalhador por conta de outrem”.» Fala‑
mos de um regime em que os trabalhadores, apesar de cum‑
prirem horários, terem posto fixo e uma chefia hierárquica,
assumem a posição de prestadores de serviços tendo de fazer
descontos para a Segurança Social das entidades patronais.
Para piorar, esses mesmos descontos não asseguram qual‑
quer protecção em caso de desemprego, sendo que, devido
à ausência de vínculo contratual, tal possibilidade acaba por
pesar ainda mais nos pensamentos de quem se levanta dia‑
riamente para ir trabalhar nestas condições.
Trabalhar a recibo verde é mau. Estar desempregado é
ainda pior. E a verdade é que, de acordo com um artigo do
Diário Económico (11 de Março de 2011) baseado em estudos
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do ine, o número de diplomados desempregados subiu 16%
em 2010. No ano passado, os licenciados no desemprego
chegaram perto dos 64 mil: «De acordo com os dados do
Instituto Nacional de Estatística (ine), a economia portu‑
guesa terminou 2010 com 63 800 licenciados no desemprego.
O número representa uma subida de 16% face ao ano ante‑
rior e 10,6% do total de desempregados no país – de acordo
com o ine, Portugal terminou o ano passado com 602 600
pessoas no desemprego. Mais: o aumento do ano passado
interrompeu uma tímida recuperação verificada em 2008
e 2009 – anos em que o desemprego entre os diplomados
recuou.» Quanto à perspectiva do Instituto do Emprego e
Formação Profissional (iefp), também não é animadora,
pois, segundo a entidade, o desemprego entre os diploma‑
dos não dá sinais de retrocesso: em Janeiro deste ano, esta‑
vam inscritos nos centros de emprego 50 205 licenciados,
1% a mais do que em Dezembro de 2010.
A imprensa revela ainda mais dados implacáveis.
Segundo o noticiado pelo Jornal de Negócios, a 16 de Feve‑
reiro de 2011, «são quase 100 mil os jovens sem emprego.
[…] Muitos destes jovens nem sequer chegaram a entrar
no mercado de trabalho. Dados do ine revelam que havia,
no final de 2010, 63,5 mil portugueses desempregados à pro‑
cura do primeiro emprego. Parte destes terá um nível de
escolaridade completo, ou até ensino superior. O número de
desempregados com licenciatura, ou superior, era de 63,8 mil,
tendo chegado a 75 mil no quarto trimestre, um aumento
homólogo de 37,5%». Já em termos globais, em 2010, a taxa
de desemprego total correspondia a 10,8%. O relatório
de estatísticas do emprego do ine, relativo ao 3.º trimestre de
2010, refere que «o aumento trimestral da população desem‑
pregada ocorreu essencialmente nos seguintes grupos popu‑
lacionais: mulheres, indivíduos dos 15 aos 34 anos e com 45
20
e mais anos, indivíduos com nível de escolaridade completo
correspondente ao ensino secundário e pós­‑secundário e ao
ensino superior, indivíduos à procura de primeiro emprego e
à procura de novo emprego provenientes dos serviços e indi‑
víduos desempregados à procura de emprego há 12 e mais
meses». Os dados do Instituto indicam ainda que o peso dos
jovens desempregados com idades inferiores a 25 anos equi‑
vale a 22,4 %.
Ano novo, vida nova. Ou talvez não. Em 2011, os núme‑
ros não nos deixam mais felizes. «A taxa de desemprego em
Portugal atingiu um novo máximo histórico de 12,4% da
população activa no primeiro trimestre do ano, revelou hoje
o ine», assim dá conta o jornal Público no dia 18 de Maio de
2011. Este valor representa «uma subida abrupta face ao ante‑
rior recorde de 11,1% registado para o período de Outubro a
Dezembro do ano passado, mas esta variação deve ser lida
com cautela, pois resulta em grande parte de uma mudança
no método do ine para estimar o desemprego, cujo primeiro
resultado é precisamente o do primeiro trimestre». O artigo
acrescenta ainda que este valor «resulta também da dete‑
rioração da actividade económica na sequência das medi‑
das de austeridade que entraram em vigor no início do ano
(como a redução salarial na função pública) e perspectivas
mais negativas das empresas face ao futuro. Utilizando o seu
novo método de recolha, o ine estimou a população empre‑
gada em 4,866 milhões de pessoas e a população desempre‑
gada em 688,9 mil pessoas. Pelo método antigo, estes valores
são de respectivamente 4,956 milhões e 633,3 mil pessoas».
Assim sendo, «os dados mais recentes revelados pelo Euros‑
tat, relativos a Março, colocavam o desemprego português
como o décimo mais elevado da eu e o sexto da zona euro.
A Espanha continuava a ser a campeã, com 20,7% em Março».
Já no jornal Metro do dia 19 de Maio, aparece indicado que
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a taxa de desemprego entre os jovens com idades compreendidas entre os 15 e os 24 anos também ascendeu para
os assustadores 27,8%. Neste mesmo artigo fica ainda salva‑
guardado que o ine sublinhou a impossibilidade de serem
efectuadas comparações directas com os dados anteriores,
que apontavam para uma taxa de 23% no que toca a jovens
desempregados, dada a mudança verificada ao nível do
método utilizado.
Quanto a futuros e rankings, ainda de acordo com um
artigo do jornal i, publicado a 16 de Dezembro de 2010 acerca
do mais recente relatório da Organização para a Coopera‑
ção e Desenvolvimento Económico sobre o mercado labo‑
ral global, «o desemprego entre os mais novos vai atingir os
18% em 2011 e os 17% em 2012 na ocde, ou seja, mais do
dobro da taxa de desemprego total (o desemprego afectava
8,6% de jovens e adultos em Outubro de 2010). Na Europa,
a taxa de desemprego jovem será ainda mais elevada: pode
chegar aos 21% em 2011 e aproximar­‑se dos 20% em 2012».
Acrescenta ainda que a geração dos 15 aos 24 anos será a
mais afectada pela falta de criação de emprego e pela preca‑
riedade laboral, estimando­‑se que «os jovens têm hoje quase
duas vezes mais probabilidades de ficar no desemprego do
que os trabalhadores adultos». No que toca a Portugal, este
relatório não poupa nas más notícias e alerta que «o desem‑
prego jovem […] vai ultrapassar os 20% até 2012, valor duas
vezes superior à taxa de desemprego entre os adultos. Portu‑
gal terá na altura referida uma taxa de desemprego naquela
faixa etária na ordem dos 21,1% (contra 16,1% em 2007): um
em cada cinco portugueses entre os 15 e os 24 anos estará
desempregado».
As notícias nacionais dramáticas são confirmadas por
outros organismos credíveis. O Banco de Portugal, no seu
relatório anual, publicado em Maio de 2011, garante, de
22
modo implacável, que a recessão prolongada em 2011 e 2012
«será acompanhada de uma contracção sem precedentes do
rendimento disponível real das famílias e de novos aumentos
da taxa de desemprego».
Neste contexto, Raquel Freire afirma que «estivemos
20 anos convencidos de que éramos Europa de primeira e
não percebemos que isto nos ia acontecer. E quem vai pagar
a factura são todas as gerações. Mas há uma geração que a
paga especialmente, porque é a geração que deveria come‑
çar a sua vida agora e não o está a conseguir. É a que tem e
ganha consciência e é a que decide agir e dizer: mas isto não
chega e estamos a andar para trás». Um «andar para trás»
que Raquel acredita passar pela perda de direitos conquista‑
dos no passado e pela percepção de que muitos deles estão
«vazios».
Assim sendo, afirma José Machado Pais, sociólogo, com
trabalho de décadas sobre os jovens e o mercado laboral,
«esta é uma geração muito qualificada e instruída, que está
colocada numa encruzilhada. Não vê como é possível con‑
cretizar os seus objectivos pessoais e profissionais, porque as
expectativas que tem são muito altas e são todas frustradas.
Têm um curso universitário, têm competências, mas não as
conseguem concretizar. Deste modo, são também aquilo que
se chama uma “geração sandwich”, formada por indivíduos
em situação híbrida. Por exemplo, têm autonomia de vida,
mas dependem financeiramente da família». Já David Cairns,
também investigador ligado à área da sociologia, refere que
esta fase de transição para a idade adulta é sempre compli‑
cada e controversa, sendo que as dificuldades enfrentadas
por estes jovens não diferem muito daquelas que gerações
passadas também superaram. Na sua opinião, «a diferença
prende­‑se com o futuro. Uma das perguntas do Eurobaro‑
meter 88 estava relacionada com o medo do desemprego
23
no futuro e em Portugal é mais alto que em todos os outros
países da Europa». Um medo que deriva também de «uma
impotência que impossibilita a tomada das principais deci‑
sões que caracterizam este período – […] é necessário locali‑
zar o primeiro emprego, sair de casa dos pais, formar família.
E a verdade é que muitos jovens encaram isto como impos‑
sível de realizar. É muito difícil desenhar um plano para o
futuro», acrescenta.
O investigador acredita que o facto de os jovens não con‑
seguirem imaginar o futuro é a diferença face a gerações do
passado, sendo este sentimento o principal impulsionador
de toda esta agitação social associada à Geração à Rasca.
Aliás, Eliana Vilaça, psicóloga clínica, designa esta gera‑
ção como aquela que tem «sangue na guelra». Explica que
«o mercado de trabalho está muito agressivo», distinguindo
duas atitudes possíveis perante ele: «A postura mais depres‑
siva, que leva a pessoa a uma atitude mais queixosa, mais
dependente, desenvolvendo sentimentos de incapacidade; e
depois há a postura mais agressiva, que é a pessoa mais con‑
fiante, que entra na competição, que quer fazer valer as suas
capacidades.» Acrescenta ainda que, «neste momento, pes‑
soas com uma atitude mais depressiva têm muito mais difi‑
culdades porque também existem menos apoios: os apoios
sociais diminuem, os pais também não podem ajudar tanto
porque também estão em dificuldades… Obriga a que a pes‑
soa vá buscar dentro de si capacidades para se autonomizar
e procurar soluções alternativas».
Eliana Vilaça explica ainda que, «quando saímos da
faculdade ainda estamos muito agarrados aos nossos pais
e ainda temos pouca confiança de que somos capazes de
fazer alguma coisa sozinhos. Portanto, a maturidade, o sen‑
timento de capacidade e de autonomia ainda estão muito
frágeis». Convicta de que, hoje em dia, «a adolescência não
24
acaba aos 18», esclarece que a saída da adolescência pode
ser determinada «como o momento em que se entra para
o mercado de trabalho, em que se assume mais responsa‑
bilidades […], há ali coisas que já estão resolvidas ao nível
da personalidade. […] E acontece que isso pode ser viven‑
ciado, por um lado, com uma imensa capacidade (“Ah, agora
vou poder fazer tudo à minha maneira”), por outro, com um
medo enorme (“Agora sou eu que estou a tomar conta de
mim, como é que isto vai ser”). […] É como sair do ninho
para uma selva cheia de predadores.»
Neste contexto de incerteza e insegurança, «as pessoas
estão muito mais preocupadas com as saídas profissionais e
não tanto com o facto de fazerem algo de que gostam. Já não
vão atrás de um sonho. Vão atrás de uma oportunidade. E a
orientação vocacional tem de ter isso tudo em conta: entre
personalidade, escolhas, gostos e aptidões… Tal só é possí‑
vel conversando e compatibilizando vontades e necessidades
dos jovens, dos pais dos jovens e do mercado de trabalho».
Segundo a psicóloga, com experiência com esta popula‑
ção, «os desejos dos pais influenciam mais ou menos consoante o jovem. Influenciam sempre, mas o jovem tem de ter
dentro de si uma motivação. Depois há as expectativas, que
também têm um peso enorme. É possível articular tudo por‑
que, a não ser que haja um dom para uma área, nós conse‑
guimos adaptar­‑nos a algo diferente dentro da área da qual
gostamos. […] E é uma coisa que está muito mais presente:
a realidade mais objectiva do mercado de trabalho».
Assim sendo, aos psicólogos cabe o papel de mediado‑
res, de gestores de expectativas. Eliana Vilaça esclarece que
a própria orientação vocacional se adaptou às novas exi‑
gências do mercado de trabalho, pois «os testes servem
apenas para nos dar alguns dados. O que nós procura‑
mos, acima de tudo, é promover a reflexão», não deixando
25
esmorecer o diálogo, o questionamento e, acima de tudo,
a noção de real.
No entanto e independentemente de crises existenciais
de uma economia que não quer sair do armário, «a resposta
vem sempre de dentro da pessoa». Por isso mesmo, é impor‑
tante conseguir balancear planos, convicções e feitios, per‑
sonalidades: «Por vezes, uma pessoa tem uma paixão tão
grande por uma área e uma personalidade tão determinada,
competitiva, competente… que eu estou certa de que ela vai
encontrar o seu lugar no mercado de trabalho. Porque a pai‑
xão também interfere de uma forma significativa.»
Para esta especialista, «o importante é que a pessoa des‑
cubra que tem capacidade dentro dela». Ou, ainda mais
determinante, a capacidade «de capacitação». A psicóloga
sublinha que, «mesmo que se mantenha a dependência,
deve lutar­‑se pela autonomia» e aplaude estes enrascados,
pois, embora o presente não esteja de feição, «são pessoas
que estão em movimento, em acção, e que estão a organizar
coisas criativas».
Segundo a psicóloga, «é uma Geração à Rasca, mas uma
geração à rasca que sabe que vai ser capaz, apesar de as coi‑
sas não estarem fáceis, que precisa de alguns apoios, mas que
está a lutar, que está determinada a mudar isto».
Em tom de justificativo desta mesma agitação, para além
do contexto familiar e das influências socioeconómicas e cul‑
turais que diferenciam a atitude de um jovem, André Freire,
politólogo e professor no iscte, refere ainda que é nesta fase
do ciclo de vida, coincidente com o surgimento de inúmeras
responsabilidades e com uma maior integração social e no
mercado de trabalho, que se tende a verificar o «despertar»
mais aceso para todas estas questões de foro político. Isto
porque só a partir dali se passará a ser um alvo directo de
decisões que irão condicionar o futuro, o dia­‑a­‑dia.
26
Com o futuro «hipotecado» e outrora silenciosos, querem
agora gritar pacificamente até que os oiçam. Entre pudores
postos de parte e níveis de vontade recarregados, clicaram
em «vou participar» e juntaram­‑se sob a forma de uma só
causa.
«Estávamos a discutir a situação, a nossa, a dos nossos
amigos e conhecidos, e chegámos à conclusão de que, de
facto, ou estávamos todos desempregados ou em situação
precária […] e desse debate surgiu a vontade de fazermos
algo. Então foi criada uma página no Facebook. Inicialmente
seria, penso eu, uma forma de discutirmos, entre nós, pos‑
síveis soluções e propostas. Mas passados três dias tínhamos
mais de duas mil pessoas a dizer que sim, que iam sair à rua
connosco no dia 12 de Março.» Nas palavras e na memória
de Paula Gil, foi assim que começou a história. Uma história
que, de acordo com Alexandre de Sousa Carvalho, um outro
rosto da organização, começou graças não à música em si,
mas à reacção suscitada no outro lado, no público que ouvia
os Deolinda, que chorava, ria e aplaudia, que, boquiaberto,
determinou que seria «o tempo certo para avançar», pois,
«de repente, toda a gente percebeu que andávamos todos
a pensar no mesmo […], houve uma espécie de tomada de
consciência colectiva», remata Pedro Santos, também envol‑
vido no movimento. E, ainda nas palavras de Alexandre de
Sousa Carvalho, este era e é um dos principais objectivos, ou
seja, «colocar certos aspectos em causa», suscitar a reflexão
e, acima de tudo, o questionamento.
Como refere Pedro Santos, «não podemos andar, na
nossa vida, sempre a questionar tudo e mais alguma coisa,
pois seria esquizofrénico. Mas o que nós queremos é que as
pessoas perguntem mais vezes “porquê?” – por que está cá
o fmi, por que chegámos a este estado das contas públicas,
por que achamos que todos os políticos são corruptos. E, se
27
calhar, vamos chegar a uma altura em que iremos perceber
que muitas coisas só acontecem porque nós deixamos que
aconteçam».
Sem mudanças optimistas à vista, «só havia uma forma
desta geração reagir, que era sair para a rua e voltar às bases
da democracia», afirma Raquel Freire, uma das mobiliza‑
doras deste movimento e também um dos rostos das con‑
testações estudantis dos anos de 1990 – aqueles que ficaram
conhecidos como Geração Rasca pela boca do jornalista
Vicente Jorge Silva. «Daí surge a expressão Geração à Rasca,
que é uma tentativa de te apropriares de um insulto e de
fazeres com que ele seja a tua bandeira.» E, apesar das dife‑
renças, talvez haja, acima de tudo, muito em comum entre
estes enrascados, agora unidos: «Os sonhos não se cumpri‑
ram, as promessas não se cumpriram. Porque, ao chegarmos
ao patamar acima da nossa vida que é o mercado de traba‑
lho, encontramos outra luta.»
Afinal, acrescenta Pedro Santos, «podíamos dizer que
começou com as taxas de desemprego de 10,6 % em Dezem‑
bro, com o código contributivo que teve a sua aplicação em
Janeiro, foi muita coisa que muitas pessoas foram sentindo
degradar­‑se nos últimos anos… A instabilidade política, a
dívida a crescer, os vários pec’s… Quer dizer, tanta coisa
que puxou e fez com que as pessoas se sentissem cada vez
mais frustradas e desiludidas e revoltadas com o rumo que
este país estava a tomar, com o próprio rumo que a sua vida
estava a tomar […]. Há todo um país que se começa a degra‑
dar económica e socialmente e foi tudo isso» que obrigou
as conversas a extravasarem as mesas de café e a avançarem
para a rede social.
Começar pela web, segundo João Labrincha, outro orga‑
nizador do movimento do 12 de Março, justifica­‑se pelo facto
de a Internet ser «um espaço de liberdade e de comunicação
28
[…] com um potencial gigante», capaz de ajudar a chegar
aonde dificilmente se chegaria. Sem planos de acção, deram
por si a definir turnos, de forma a garantirem a «omnipre‑
sença» no Facebook e conseguirem dar uma resposta, em
tempo útil, a todas as solicitações. «24 sobre 24 horas» – foi
essa a estratégia que, volta e meia, deu origem a um grupo
de pessoas, alheio ao núcleo da organização, o qual garantia
o cumprimento de todas as regras daquele espaço que dis‑
pensava filtros.
Uma febre, um vício e, pelos vistos, um instrumento de
intervenção. David Cairns sublinha o papel que a Internet
exerce ao ser uma ferramenta comum e partilhada de media‑
ção da realidade, sendo que o seu uso em massa «demonstra
uma mudança ao nível das preferências e tem características
específicas – por exemplo, mais rápido, mais inclusivo […] –,
mas seria mais estranho se os jovens começassem a utilizar o
telégrafo ou o pombo­‑correio. Assim, tal é mais um reflexo
da realidade actual do que uma mudança».
André Freire destaca ainda que estamos perante uma
sociedade mais escolarizada, que, ao recorrer à Internet e a
outros meios, será mais exigente, reforçando a construção
da sua cidadania. Eis o poder da educação, nomeadamente
num momento em que «qualquer pessoa o pode fazer» – um
lema do mundo cibernauta que delega nas mãos de comuns
mortais o direito de, por exemplo, criar um qualquer evento
no Facebook que, posteriormente, correrá o risco de ser
divulgado por todo o mundo. O politólogo acrescenta que
falamos de ferramentas que possibilitam «vias de comuni‑
cação baratas, simples e eficazes e isso facilita muito a vida
de organizações inorgânicas e, pelos vistos, foi um elemento
fundamental».
Neste novo mundo globalizado, Raquel Freire sublinha
ainda, a par da Internet, o surgimento das viagens low cost –
29
duas grandes invenções que, segundo ela, por permitirem a
mobilidade a um baixo custo e tendo surgido no sistema de
capitalismo financeiro, foram usadas contra o próprio sis‑
tema. Por diluírem fronteiras, estas ferramentas que levam a
crer que «tudo o que se está a passar no mundo é potencial‑
mente divulgável» consumam a grande conquista da demo‑
cracia: a informação.
E da rede social para as ruas, verificou­‑se então o enten‑
dimento e a identificação com a mensagem que norteava
aquele projecto que «não descambou» e que conseguiu fazer
valer o seu cariz pacífico: «Havia milhares de crianças, cente‑
nas de carrinhos de bebé, centenas de idosos… E não houve
um único multibanco que tivesse sido vandalizado… Até as
ruas ficaram limpas!», comenta o grupo orgulhoso que per‑
sonificou o início de uma mudança que não deixou rasto de
destruição.
Com ou sem rasca, muitos optaram por fazer um pas‑
seio diferente naquele sábado à tarde. Assistiu­‑se à «cons‑
ciencialização de que agir também passa por nós», acredita
Paula Gil. E foi no dia 12 de Março que deram o primeiro «ar
da sua graça», sendo que, nas palavras de Raquel Freire, «só
seria preciso alguém começar e a partir daí seria imparável».
«É a cidadania a funcionar. Decidiram fazer qualquer
coisa, tomar nas suas mãos. […] Eu acho que este movi‑
mento é uma assunção de responsabilidades da cidadania.» –
assim é descrito o movimento por André Freire, defensor de
que, apesar do seu arranque «inorgânico», se o mesmo con‑
tinuar a avançar incrementando a sua «visibilidade social»,
este movimento continuará a ser assunto do dia e obrigará
o sistema político a encará­‑lo, a dar­‑lhe atenção. «É, em si
mesmo, um acto político», conclui o politólogo. Um acto
que veio contrariar o complexo de inferioridade que, tantas
vezes, prepondera.
30
Afirma Freire que «as pessoas às vezes não participam,
em abstracto, ou participam menos porque têm a sensa‑
ção de que a sua acção não é eficaz, não produz efeito. Ora,
perante o sucesso de uma determinada acção levada a cabo
por pessoas que estão numa situação comum, com proble‑
mas comuns e que se predispuseram a actuar, é natural que
tal estimule outros menos envolvidos».
Uma situação «comum» sintetizada num documento, o
qual esteve acessível a todos que ponderaram alinhar nesta
luta. «Estamos aqui, hoje, porque não podemos continuar a
aceitar a situação precária para a qual fomos arrastados.» –
Assim dita o manifesto que antecedeu e alimentou aquela
tarde de gritos revoltados. Gritos que foram gravados em
folhas A4 e, posteriormente, entregues ao então Presidente
da Assembleia da República, Jaime Gama, o qual, segundo
um artigo do Jornal de Negócios e uma vez questionado acerca
das motivações deste movimento, apenas respondeu «todos
os protestos têm algumas razões». Este documento, excerto
da História, está agora ao alcance de todos no arquivo da
Biblioteca da Assembleia da República. Deu­‑se assim corpo
ao desespero que ilustra o país, demonstrando­‑se que não se
pretende «demonizar» nada nem ninguém. Na voz de Paula
Gil, as razões pelas quais se querem fazer ouvir giram apenas
em torno de interesses que nada mais são do que direitos,
tais como: «um emprego digno e justo» e uma «democracia
participativa». Isto porque, como remata André Freire, «não
podemos simplesmente dizer que está tudo mal e que os cul‑
pados são eles. Em democracia, “eles” são “nós”. Logo, a res‑
ponsabilidade é de todos nós».
Raquel Freire chama­‑lhe «jovem precária». Portugal
aprendeu a chamar­‑lhe democracia, sem medo, há apenas
37 anos, «depois de uma noite infernal» em que a ignorância
de uns foi a estratégia de outros. Uma democracia que deveria
31
chegar ao trabalho, ao ensino, a cada pedaço de quotidiano
e que, sendo tão jovem, assiste ainda à edificação da «cons‑
ciência social». No entanto, a cineasta, que foi parte da génese
deste actual momento de revolta, reconhece que o país ainda
tem muito medo das «coisas novas». Coisas novas como este
movimento, que, sem esquerda nem direita, tende a cons‑
ciencializar e a deslindar os contornos da «despartidarização
da política». Mas, apesar da tolerância face à desconfiança
do outro, Raquel não deixa de apontar o quão saturante é a
desculpa do «ai coitadinhos, nós tivemos fascismo durante
tanto tempo! Vamos acordar! Já chega! Temos mesmo de
conseguir avançar em termos de democracia. E avançar nes‑
ses termos são movimentos como o 12 de Março que lutam
por essa democratização da vida em geral […]. A política
agora faz­‑se na rua com os cidadãos».
Corroborando esta ideia, André Feire afirma que «os par‑
tidos são entidades muito fechadas sobre si próprias, muito
oligarquizadas», acrescentando que «existe um problema de
ligação entre os eleitores e os eleitos», algo que reforça o papel
dos movimentos sociais capazes de propor alternativas nesse
jogo que não é de sorte nem apresenta limite de «apostas».
Foi espontaneamente que nasceu e cresceu este movi‑
mento, cheio de vontade de saltar do armário. Pessoas de
todo o país e, inclusive, a viverem no estrangeiro «chegaram­
‑se à frente» e engrossaram este dia que ficou destacado no
calendário e na agenda de muitos como «apartidário, laico e
pacífico». E, nessa tarde em que 500 mil andaram pelas ruas
de todo o país, perdeu­‑se a noção do que seria «uma Gera‑
ção à Rasca».
A definição do movimento surgiu em honra e memó‑
ria de um passado não muito distante, que também obri‑
gou a juventude a erguer o tom de voz e a mostrar o rabo e
o descontentamento. E, passado pouco mais de uma década,
32
as duas gerações agem como sendo uma só: a enrascada.
Raquel Freire define esta geração como «a que tem acesso
ao saber – e saber é poder! […] A melhor maneira de man‑
ter o povo calado é a ignorância. A partir do momento em
que garantes acesso à educação, as pessoas deixam de ser tão
facilmente manipuladas e começam a questionar a demo‑
cracia em todos os sentidos da nossa existência […] e esse
questionamento é uma tarefa para a vida […] é perceber que
a democracia és tu que a fazes».
José Machado Pais acrescenta ainda que a Geração à
Rasca «é um conceito complexo, que obriga a entender várias
questões. Uma tipologia possível é a de distinguir entre gera‑
ções biológicas, demográficas e sociais. As primeiras têm a
ver com a reprodução natural. As segundas com a substi‑
tuição, devido aos nascimentos. As terceiras, muito latas
em termos etários, são aquelas que ganham protagonismo
por efeitos históricos e por definirem novos rumos socie‑
tários. Esta é claramente uma geração social. Por efeito de
uma circunstância histórica não há coincidência, neste caso,
entre a geração demográfica e a geração social». Se os filhos
se vêem à rasca para arranjar um emprego, os pais à rasca se
vêem porque não podem fazer muito mais para além de
porem mais um prato na mesa. Como sublinha André
Freire, «os pais estão a perceber que não são capazes de dar
aos filhos tudo aquilo que tiveram. Portanto, há uma espé‑
cie de downgrade geracional». Uma impotência que leva ao
questionamento de escolhas, reformas, pec’s, decisões e por
que nada mudou. Ou melhor, até mudaram. As estatísticas
provam isso mesmo. Resta saber qual seria o rumo suposto:
se para melhor, se para pior. Não se percebeu lá muito bem.
De acordo com Machado Pais, este «fenómeno» deve­‑se a
uma «causa estrutural, que é histórica e profunda: o nosso
país sempre teve, desde 1930, uma estratégia de contenção
33
do desemprego baseada em estruturas produtivas familiares,
pequenas, e com baixos custos salariais. A democratização
do ensino permitiu obter muitos profissionais qualificados,
mas a estrutura produtiva manteve­‑se a mesma. É arcaica
e não consegue absorver mão­‑de­‑obra qualificada, tirando
alguns clusters específicos».
A diversidade complica e enriquece. Entre reivindicações
e estados de espírito tão diferentes, «havia uma aura no ar,
[…] um manto de esperança», descreve Pedro Santos. Nem
a chuva varreu aquela sede de palavras, palavras que eram de
ordem, que entupiram ruas e libertaram gargantas e consciências, provando que a vontade não fica afónica e que mui‑
tas gerações andavam cansadas de estar caladas. De acordo
com o olhar de Raquel Freire, a realidade superou, mais uma
vez, a ficção.
Por um futuro, por um emprego, pelo fim dos falsos reci‑
bos verdes, por curiosidade ou só mesmo para ver como
era, pela sua reforma, pelo aumento do salário mínimo, pelo
pai, pela filha, com a avó, num carrinho de bebé, dançando,
cantando, rindo, chorando, aplaudindo, gritando ou, até
mesmo, em silêncio, ninguém ousou imaginar que as vozes
e as palavras tão bem se fundissem numa só mensagem
sem bolinha no canto superior ou ar de desenho animado.
Não havia limite de idade, aliás, não havia quaisquer limi‑
tes que visassem asfixiar aquilo que Raquel Freire afirma ter
sido uma «das maiores provas de democracia […]. Foi uma
lição gigante de democracia para os nossos governantes. […]
Uma revolução de consciências». Como explica João Labrin‑
cha, este dia demonstrou às pessoas que elas não estão sozi‑
nhas, que «a democracia não morre no voto». Citando Paula
Gil, foi uma «catarse colectiva».
Da vontade de quatro amigos espoletou esta manifesta‑
ção que agora se reflecte noutras iniciativas diversificadas.
34
Tão diversificadas quanto as pessoas que se juntaram nas
ruas. O m12m é um desses frutos. Segundo a descrição da
organização, patente na página do Facebook, «é um movi‑
mento informal, não hierárquico, apartidário, laico e pací‑
fico que defende o reforço da democracia em todas as áreas
da nossa vida […]». No fundo, pretende dar continuidade e
levar mais longe os ideais que estiveram na génese de todo
este projecto, ou seja, reforçar a democracia e chamar as pes‑
soas para junto dela, para dentro dela, promovendo o debate,
o «porquê», a participação activa sob todas as formas con‑
templadas na Constituição, acreditando que «a responsabili‑
zação e a transparência dos actos dos decisores públicos são
a base de uma democracia saudável».
A espontaneidade de outrora ganha agora contornos
convictos em acções como a Iniciativa Legislativa de Cida‑
dãos, «uma proposta de lei contra a precariedade laboral,
em colaboração com os Precários Inflexíveis, ferve, Inter‑
mitentes do Espectáculo e do Audiovisual e com os orga‑
nizadores do Protesto da Geração à Rasca no Porto», a
«convocação de uma Assembleia Popular (não deliberativa)
decorrente do Fórum das Gerações – 12/3 e o Futuro, a «aus‑
cultação dos vários partidos políticos […] sobre as mais
diferentes temáticas, entre outras». E, volta e meia, surgirá,
nas páginas dos jornais, algo como: «Movimento que orga‑
nizou Geração à Rasca agenda acção surpresa para dia de
arranque de campanha.» Assim noticiou o jornal i no dia
12 de Maio de 2011. Rate me foi o nome desta acção de rua
que deixou suspense no ar. O comentário de um dos orga‑
nizadores, João Labrincha, acabou por aguçar ainda mais a
curiosidade: «Houve um maestro (agência de rating) que te
avaliou e te mandou fazer o que ele quis, não pudeste ques‑
tionar… Até um determinado momento… Em que deixaste
de aceitar…»
35
Apresentar propostas ainda está nas mãos dos governa‑
dos desiludidos com o incumprimento do afamado «con‑
trato social». No entanto, são muitas as vezes em que as
propostas são substituídas por uma troca de culpas, em plena
assembleia. E, como em casa onde não há pão todos ralham
e ninguém tem razão, será que os próprios jovens também
terão culpas a declarar? Poder­‑se­‑ão alegar escolhas impon‑
deradas, nomeadamente no que toca aos cursos? Conforme
o noticiado pelo jornal Público, a 6 de Maio de 2011, a área de
Línguas e Humanidades vai ficando cada vez mais ameaçada.
Um artigo que vem reforçar um outro do Jornal de Negócios
do dia 15 de Abril do mesmo ano. Este último arranca com
uma frase de Pedro Portugal, o qual afirma que os cursos
não são todos iguais, apesar de continuarem a ser uma boa
aposta. Segundo o economista, «neste momento, há cursos
que não são nada boa ideia mesmo com uma grande voca‑
ção», defendendo que deverá existir uma maior orientação
dos estudantes acerca do que se passa nas diversas áreas de
formação. No entanto, acrescenta ainda que, independente‑
mente da escolha, um curso superior é sempre um trunfo
que garante «múltiplas valências», ressalvando também que
a qualidade dos profissionais continua a ser, em todas as
áreas, sinónimo de, mais cedo ou mais tarde, se alcançar o
lugar merecido. Segundo informações presentes na base de
dados pordata, da Fundação Francisco Manuel dos San‑
tos, em 2010, 1 065 000 indivíduos, residentes em Portugal
e com 15 e mais anos, tinham o ensino superior completo,
continuando a acreditar que faz sentido procurar o canudo.
Falamos de um valor equivalente a 11,8% da população con‑
tabilizada (9021,4 milhões). E, neste âmbito, o economista
considera que as faculdades «estão mais bem preparadas
para fazer a inserção profissional dos jovens, estes interfaces
com as empresas», demonstrando um interesse em integrar
36
a sociedade civil. Mas, apesar de reconhecer o valor dos
esforços e das iniciativas, não deixa de apontar que tal «não
cria postos de trabalho necessariamente», pois «é fácil levar
o burro à fonte, mais difícil é fazê­‑lo beber». Isto porque,
para além dos entraves inerentes à própria economia nacio‑
nal, «o mercado de trabalho é mesmo um mercado: tem
oferta, tem procura e tem preço. E esse preço é o salário. Ou
seja, taxas de desemprego muito altas querem sempre dizer
que o salário subiu um bocadinho acima do que seria o dese‑
jável […]. E nos próximos anos vamos assistir à inflação a
comer os salários, os quais evoluirão muito mais modera‑
damente […]». Pedro Portugal sublinha então que, em Por‑
tugal, assiste­‑se a problemas que derivam também de um
ajuste dos salários, no final dos anos de 1990, o qual ultra‑
passou as reais capacidades dos empregadores. No entanto e
contra apelos à redução dos salários, Raquel Freire relembra
que é em Portugal que se verifica um dos salários mínimos
mais baixos da União Europeia e às maiores diferenças entre
esse salário mínimo e o salário máximo registados: «Quando
vamos a uma cadeia de supermercados, entre o caixa e o
gerente encontramos a maior diferença de salários de toda
a União Europeia. Ou seja, já tens uma desigualdade social
enorme e ainda vais cortar no que ganha menos.»
Tostão a tostão, um artigo do Diário Económico (11 de
Março de 2011), refere que «de acordo com os últimos dados
disponíveis, o salário médio pago aos recém­‑licenciados
ronda os 1200 euros, muito por culpa dos cursos de enge‑
nharia (cujo salário médio ronda os 1500 euros), já que
na maioria dos outros cursos não chega a mil euros». E os
números do iefp não deixam dúvidas: «De todos os traba‑
lhadores que se licenciaram em Informação e Jornalismo ao
longo da última década, quase um décimo estava inscrito
num centro de emprego. Uma percentagem que cai para
37
2% quando a licenciatura é da área da matemática estatística.»
Apesar dos números, as regras são cada vez mais excepções
e já nada se confunde com dogmas. Números contaminados
pela precariedade e que assustam. Mas o que assusta ainda
mais é mesmo a sua ausência na conta bancária. É o pro‑
longamento deste sentimento de «corda bamba» que mais
desmotiva quem só pede uma oportunidade para começar.
Pedro Portugal conta que as dificuldades sempre existiram
para os jovens que enfrentam o momento de transição e
que «a novidade prende­‑se com o facto de mesmo os jovens
empregados não conseguirem chegar ao que chamamos de
mercado de insiders, continuando a rodar nos outsiders».
No entanto, não deixa de sublinhar que os jovens que mais
pesam na estatística são aqueles que não apresentam níveis
elevados de qualificação. Ou seja, os jovens licenciados apre‑
sentam uma «vantagem permanente que existe em todas as
economias […] e que em situações mais difíceis ainda se
torna mais evidente».
Neste âmbito e partindo do pressuposto de que, contra
estatísticas, a licenciatura ainda é uma vantagem, o econo‑
mista, também professor na Universidade Nova de Lisboa,
considera que os mais qualificados sempre podem optar
por explorar novas paragens. Ir em busca de um futuro
além­‑fronteiras, na sua perspectiva, pode ser negativo a
curto prazo, pois implica um brain drain. No entanto, sal‑
vaguarda que, a longo prazo, pode significar a criação de
uma networking, «uma coisa belíssima» para o jovem e para
o país.
E quando o cenário que, diariamente, desfila no telejornal
não muda, já tem cheiro a velho, a bolor, a mofo, muitos são,
efectivamente, os que pensam em partir. Mas nem tudo é
fácil. Não é como noutros tempos em que bastava fazer girar
o globo e apontar, à toa, um destino. Apesar da vontade de
38
procurar outras paragens, outros telejornais, David Cairns
acredita que, «economicamente, sair de cá pode ser uma
boa ideia. Mas, psicologicamente, tal pode ser mais difícil
por causa da família, dos amigos, da cultura, do futebol, da
qualidade do café. A cultura portuguesa é muito forte, tem
muita intensidade. Num país como Inglaterra não há uma
cultura como esta, não é tão substancial. Aqui temos mui‑
tas pequenas coisas que podem fazer muita diferença lá fora.
É muito difícil morar fora desta zona de conforto».
No entanto e apesar de David Cairns não acreditar num
grande «êxodo», já são muitos os que não hesitam perante
a proposta e a miragem de se safarem deste país que atrai,
repele e confunde. Trocam então o café de qualidade a
55 cêntimos por uma qualidade de vida sem preço.
Mas, dispensando previsões, por enquanto, muitos ainda
andam por cá, seja esta uma zona de conforto ou nem por
isso. Viu­‑se, aliás, no dia 12 de Março. E esses que superaram
a porta de casa e do temor também superaram a fronteira
de uma zona de conforto que sussurrava «vai antes às com‑
pras». «As pessoas estavam ávidas de vir para a rua», foi o
que sentiu a organização da manifestação Geração à Rasca.
Aquela que tantos questionou sobre tantas coisas, que obri‑
gou o mundo a olhar para este «jardim» sem se fixar nas
praias do Algarve, que obrigou o próprio país a olhar para si
mesmo e a repensar­‑se.
Mais ou menos jovens, mas todos à rasquinha, cansaram­
‑se de acreditar que «estava quase» e perceberam que pode‑
riam fazer e ser parte desse «quase» que muito se anseia:
«Sentimos que estamos a ser ouvidos agora», afirma Raquel
Freire. Gritaram e agitaram dogmas, provaram a veracidade
e a aplicabilidade de um dos norteadores do movimento –
uma frase da autoria de José Saramago: urge «fazer de cada
cidadão um político». Atrás deles, da frase e do ideal foram
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500 mil e mais uns trocos. Coisa pouca. Repetindo Pedro
Santos, «o dia 12 de Março foi a conversa de café que saiu do
café […] e, pelos vistos, havia muita gente com vontade de
sair do café». Afinal de contas, cafeína em excesso também
faz mal. E é sempre bom arejar ideias.
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Ana Filipa Pinto À Rasca