3 A IMPORTÂNCIA DA DIVERSIDADE CULTURAL NAS PRÁTICAS u nidade CURRICULARES Seção VII Currículo e diversidade. Seção VIII O cotidiano como biopolítica de tempos e espaços escolares. Seção IX Saberes sociais e saberes pedagógicos. seções 78 9 Objetivos A IMPORTÂNCIA DA DIVERSIDADE CULTURAL NAS PRÁTICAS CURRICULARES • Seção VII: refletir sobre as relações entre currículo e diversidade cultural. • Seção VIII: refletir sobre o cotidiano e suas relações de poder na significação de tempos e espaços escolares. • Seção IX: refletir sobre as interações entre saberes sociais e saberes pedagógicos. SEÇÃO VII Unidade III Seção 7 CURRÍCULO E DIVERSIDADE SAIBA MAIS Currículo e diversidade cultural são duas noções básicas na construção social do pensamento pedagógico e do pensamento antropológico. O primeiro remete às estratégias de organização dos espaços escolares para a formação humana e produção do conhecimento. A diversidade cultural, por sua vez, auxilia diferentes tendências da Antropologia a refletirem sobre as diferenças culturais que orientam as diversas formas de organização social da espécie humana no planeta. UESC Pedagogia Currículo: palavra derivada do vocábulo latino currere que significa carreira, caminho. Tem sido utilizada na tradição do pensamento educacional, no ocidente, para designar a organização das áreas de conhecimento e as práticas de ensino e aprendizagem que lhes correspondem. Pode ser interpretada também, num sentido mais amplo, como processo e produto da escolarização. 69 Antropologia e Educação Currículo e diversidade. É possível estabelecer conexões entre essas duas noções numa busca de compreender como a Educação e a Antropologia tentam lidar com a difícil tarefa de pensar a espécie humana como uma única espécie, sem deixar de lado características particulares do humano em determinados contextos sociais. Na verdade, a relação entre o universal e o particular, tanto do ponto de vista da Educação, quanto do ponto de vista da Antropologia, constitui a fonte dos muitos debates que ainda se fazem presentes nestes dois campos das ciências humanas. Vejamos (grosso modo) como as teorias pedagógicas e as teorias antropológicas trataram as duas noções para, posteriormente, tentar identificar eixos de complementaridade entre ambas. As pesquisas educacionais buscam desenvolver seus estudos, partindo do pressuposto de que o currículo deve ser compreendido a partir de uma dupla dimensão: currículo formal e currículo real. O currículo formal compreende os programas escritos e guias curriculares que organizam os princípios e conceitos educacionais presentes num determinado contexto escolar. Currículo real corresponde às práticas de ensino e experiências vividas no interior das escolas. Um e outro são resultantes de uma construção social e cultural, na qual cada sociedade organiza seus modelos de escola. Segundo Santos (1995), as diretrizes de um currículo formal criam padrões universais que buscam definir o que ensinar e o que aprender, por que ensinar e por que aprender, como ensinar e como aprender, quem ensina e quem aprende. O SAIBA MAIS Racionalismo: pode ser compreendida em amplo sentido como todas as abordagens antropológicas que buscam conceitos universais para explicar a relação entre o homem e a cultura. Seus modelos interpretativos inspiram-se na física e na biologia e têm no evolucionismo sua matriz teórica mais importante. Relativismo cultural: trata-se de um princípio interpretativo da Antropologia criado pelas primeiras experiências da etnografia. Através deste princípio, os antropólogos consideram que só é possível compreender a relação do homem com a cultura dentro do contexto social em que ela se produz. O trabalho da observação participante é decisivo para a concretização de uma postura relativista. currículo formal é definido pelas políticas de educação praticadas num determinado país, segundo orientações gerais do Estado e da Sociedade. O currículo real incide sobre o cotidiano das escolas, está relacionado com as vivências entre educadores e educandos e nem sempre corresponde ao currículo formal. Tal distinção entre uma e outra dimensão do currículo supõe dificuldades em compreender as relações entre o universal e o particular no campo dos processos de escolarização, em diferentes contextos culturais. Do ponto de vista da Antropologia, duas fortes tendências trataram a diversidade cultural de maneira distinta. Vamos utilizar aqui as ideias de Montero (1999) que identifica tais tendências como racionalismo e relativismo cultural. Os racionalistas procuram leis e regras universais que justifiquem a unidade da espécie humana, 70 Módulo 2 I Volume 1 EAD valorizando características comuns a todos os humanos no planeta. Apoiaram-se em conhecimentos da física e da biologia para sustentar suas teorias, e foram duramente criticados pela tendência etnocêntrica de compreender as outras culturas de um ponto de vista europeu. Na contracorrente do racionalismo, o relativismo cultural procurou mostrar a necessidade de se compreender as diferentes culturas nos seus contextos específicos. A principal orientação do relativismo cultural é a aproximação do antropólogo das culturas que estuda, para que possa compreender o contexto em que está situado do ponto de vista dos outros. A crítica mais comum a esta prática de pensamento é a tendência das análises isoladas de cada povo estudado, sem que haja conexões profundas com aspectos mais universais das culturas presentes em povos de todo o planeta. Num ensaio intitulado Os usos da diversidade, Geertz (2001) chama a atenção para os riscos do etnocentrismo, presentes tanto no racionalismo antropológico quanto no relativismo cultural. O autor nos mostra que, no mundo contemporâneo, as diferenças culturais já não podem mais ser pensadas como aquilo que distingue selvagens de civilizados, isto porque povos de diferentes origens circulam pelo 7 mundo inteiro. Há também os efeitos da mídia que, seja através Seção da televisão ou do uso do computador, nos torna mais próximos de chineses, indianos, africanos, europeus e gente dos mais distantes lugares do planeta. Para este autor, o desafio contemporâneo do Unidade III estudo da diversidade é a prática da etnografia como forma de compreender também as diferenças mais sutis que nos distinguem uns dos outros. No que diz respeito ao trato com as questões de currículo, há indicações que sugerem, por exemplo, que “...a história de vida dos professores poderá ser um valioso instrumento para o estudo da prática pedagógica no interior de uma disciplina, desde que se coloque a experiência de vida do indivíduo dentro de um enquadramento sócio-histórico...” (SANTOS, 1995, p.66). Esta indicação nos mostra a importância da etnografia para a compreensão das relações entre o cotidiano da escola e seus programas curriculares. A esta altura das nossas reflexões, já podemos inferir que a postura etnográfica, essa que nos orienta à interpretação e compreensão compartilhada do mundo com outras pessoas, se afirma como proposição para o reconhecimento da diversidade cultural, como princípio da construção das práticas curriculares nas escolas. Através da observação participante, os educadores poderão conhecer mais a fundo as trajetórias de vida dos seus educandos e, com isto, contribuir para uma contextualização profunda das dimensões formal UESC Pedagogia 71 Antropologia e Educação Currículo e diversidade. e real do currículo de suas escolas. A título de síntese para a sistematização das ideias apresentadas até aqui, podemos afirmar que: - currículo é o conjunto articulado de práticas e saberes que orientam a organização das instituições e processos de escolarização de uma determinada sociedade; - diversidade cultural é o conjunto articulado de diferenças culturais que identificam práticas e saberes de diversos indivíduos e povos, nos mais variados contextos geográficos e sociais. Tais definições se interpenetram e compõem as dinâmicas culturais que atravessam os contextos escolares com contextos sociais mais amplos. Os exemplos estão por toda parte. A pandemia da gripe suína que afetou o mundo inteiro, no ano de 2009, por exemplo, fez com que as escolas do sul e sudeste do país ampliassem os seus recessos das férias de inverno. Outras questões ligadas à violência, sexualidade, meio-ambiente, artes e conflitos étnicos também atravessam o mundo e as nossas escolas. É preciso que estejamos atentos a observar e compreender o mundo diante de nós, para podermos transformar nossos currículos escolares em instrumentos de conversação com o mundo em que convivemos e, quem sabe, assumirmos responsabilidades com as gerações futuras. ATIVIDADE • Organize suas dúvidas sob a forma de perguntas e busque respondê-las. • Descreva os princípios da educação expostos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, buscando estabelecer relações possíveis com algumas das suas experiências escolares. • Com a ajuda dos seus colegas de curso, procure organizar um texto sobre o tema currículo e diversidade 72 Módulo 2 I Volume 1 EAD LEITURA C O M P L E M E N T A R No final da década de 90 do século passado o Ministério da Educação Brasileiro adotou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) como programa de orientação para uma nova organização dos processos de escolarização nos níveis do Ensino Fundamental e Médio. Os PCNs sugerem orientações gerais sobre os conhecimentos básicos a serem ensinados e aprendidos em cada etapa do processo de escolarização. As áreas de conhecimento que constam do documento são: Português, Matemática, Ciências Naturais, História, Geografia, Educação Física e Arte. O documento prevê ainda a organização das atividades de cada área a partir dos seguintes temas transversais: Ética, Saúde, Meio Ambiente, Pluralidade Cultural e Orientação Sexual. Estes temas devem compor conteúdos presentes no cotidiano de educadores e educandos ao longo de suas experiências em sala de aula. No ano de 1998, a Revista Nova Escola publicou uma edição especial intitulada: Parâmetros Curriculares Nacionais Fáceis de Entender. Além de explicar detalhadamente os PCNS, a Revista apresenta sugestões de como trabalhar com os temas transversais articulados às áreas do conhecimento. Vejamos com atenção as sugestões da revista quanto ao trabalho com o tema da Pluralidade Cultural em disciplinas como História e Geografia, Língua Portuguesa e Educação Artística. “História e Geografia: os caminhos da imigração 7 O estudo da maneira pela qual o território brasileiro foi ocupado e de como Seção a população se formou pode ser feito reconstituindo o caminho das diversas etnias que aqui chegaram. Isso é possível ao tratar de temas básicos, como a ocupação e a conquista do território nacional, a escravização – tanto dos Unidade III indígenas quanto dos negros trazidos da África -, a imigração de outros povos para o Brasil e os movimentos de migração internos. Muitos livros didáticos descrevem os indígenas brasileiros como pertencentes a um único grande grupo. Eles seriam, simplesmente, ‘índios’. Com os povos vindos do continente africano ocorre o mesmo: são todos ‘negros’. Isso é completamente falso. Por ocasião da chegada dos europeus às Américas, havia por aqui centenas de grupos indígenas que tinham línguas, tipos físicos e hábitos próprios e estavam em diferentes estágios de desenvolvimento. Na África acontecia o mesmo. Foram trazidos para o Brasil membros de nações completamente diferentes entre si. Suas línguas, religiões, hábitos e traços físicos eram bem diversos”. “Língua Portuguesa: todo mundo fala com sotaque Fora de casa todos são estrangeiros. Compreender o sentido dessa frase é entender como é relativo o conceito do que é sotaque ou do que seja usar expressões regionais. Em São Paulo, um paulista percebe imediatamente quando fala com alguém natural do Rio Grande do Norte ou de Santa Catarina, pela maneira como essa pessoa pronuncia as palavras. No entanto, não nota nenhuma característica fora do usual quando fala com os seus conterrâneos. O mesmo paulista, na Bahia, terá de responder, toda vez que abrir a boca, à pergunta: ‘você não é daqui, não é?’ Tal discussão permite desenvolver a percepção do que é exatamente pluralidade. Poucos países do tamanho do Brasil têm uma língua única, tão amplamente UESC Pedagogia 73 Antropologia e Educação Currículo e diversidade. difundida e uniforme – sem dialeto – como é o Português entre nós. Por outro lado, seus alunos devem saber que existem no país diferentes idiomas falados pelas etnias indígenas e que muitos imigrantes preservam a língua de origem. Essa é mais uma forma de conhecer a diversidade brasileira”. “Educação Artística: cerâmica e berrante não são folclore A transversalidade com Educação Artística existe quando é feita a relação entre as diversas manifestações artísticas, como cerâmica, músicas e danças de certos grupos étnicos e o cotidiano de seus criadores. O que se quer não é mostrar apenas o folclore, mas a importância de tais manifestações na organização da vida de um grupo. Por exemplo, o berrante, que pode ser apreciado como um elemento decorativo, para o boiadeiro tem outra função: reunir a boiada”. Revista Nova Escola, Edição Especial, 1998 As sugestões apresentadas pela revista nos ajudam a compreender de forma mais precisa a necessária relação entre a diversidade cultural do nosso país e as disciplinas com as quais produzimos conhecimento na escola. Através dos Parâmetros Curriculares Nacionais, podemos encontrar novos caminhos para estabelecermos conexões com as propostas curriculares de nossas escolas e com a prática de ensino que desenvolvemos cotidianamente. LEITURA RECOMENDADA Assista ao filme Sociedade dos Poetas Mortos, de Peter Weir, procure mais informações sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais. Conheça a experiência da Escola da Floresta, no estado do Pará, acessando ao site: WWW.ideflor.pa.gov.br RESUMINDO Pensar o currículo do ponto de vista da diversidade cultural supõe o aprofundamento no diálogo entre Antropologia e Educação. O currículo é constituinte de uma dupla face da vida escolar: a) delimita conceitos e práticas que orientam e disciplinam o conhecimento escolar; b) institui relações sociais concretas que são marcadas por diferentes experiências culturais dos indivíduos que participam do cotidiano escolar. A etnografia pode ser compreendida como postura investigativa de complementaridade na busca de compreensão das dinâmicas culturais entre contextos locais e globais. No âmbito das pesquisas em educação, as contribuições do trabalho etnográfico podem orientar abordagens mais profundas entre a dimensão formal e real do currículo. 74 Módulo 2 I Volume 1 EAD SEÇÃO VIII O COTIDIANO COMO BIOPOLÍTICA DE TEMPOS E ESPAÇOS ESCOLARES O currículo é uma construção cotidiana. Para além dos conceitos 8 e princípios que referenciam suas orientações programáticas; os Seção cenários sociais e as dinâmicas culturais, no interior da vida escolar, redimensionam suas teorias. Vejamos um exemplo disto. A maioria dos programas curriculares Unidade III das nossas escolas sugere a formação ‘de sujeitos críticos’, no entanto as regras para tal formação estão sujeitas à compreensão daqueles que controlam e determinam as orientações pedagógicas. Isto quer dizer que o sujeito torna-se crítico a partir daquele que ensina. A crítica, no seu sentido mais elementar, é a nossa habilidade intelectual de questionar o mundo a partir das nossas experiências interpessoais. Não nos tornamos mais ou menos críticos por frequentar uma escola. No entanto, é na escola que aprendemos a exercitar a crítica através da mediação dos conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos que constituem os conteúdos de ensino delimitados pelo currículo. Na maioria das vezes, as práticas curriculares subjugam a capacidade crítica dos indivíduos, ensinando-os uma obediência a conteúdos preestabelecidos. Os estudantes que questionam tais conteúdos e as metodologias de ensino instituídas para a operacionalização do conhecimento em sala de aula são considerados garotos e garotas problema. UESC Pedagogia 75 Antropologia e Educação O cotidiano como biopolítica de tempos e espaços escolares A Antropologia contemporânea tem tentado compreender as formas como o pensamento produz cultura e é produzido pela cultura. Para desenvolver suas análises, os antropólogos têm buscado dialogar com os filósofos que analisam as relações entre saber e poder. Isto Biopoder: a noção passou a ser utilizada a partir das contribuições de Michel Foucault para a reflexão sobre as relações de poder presentes nas experiências de vida cotidianas dos indivíduos. A Antropologia tem utilizado tal noção em suas reflexões sobre cotidiano e vida comum, sobretudo pelo reconhecimento de que no dia a dia as pessoas criam formas de controle e manipulação das regras de convívio umas com as outras. se deve ao fato de que tais filósofos nos ajudam a compreender as nossas relações uns com os outros como relações de poder. Para estabelecermos relações com outras pessoas estamos sujeitos a regras, formas de controle e conformação de comportamentos. Uma das grandes contribuições dadas para o desenvolvimento desta interpretação das relações sociais tem a sua origem no filósofo francês Michel Foucault. Segundo Rabinow (2002), a noção de biopoder, originária do pensamento de Foucault, nos auxilia na compreensão de como as sociedades contemporâneas precisam definir um conceito de humano e manter o controle do corpo humano para garantir a ocupação e mobilidade das pessoas no tempo e no espaço das ordens sociais vigentes. Vamos a outro exemplo. Escola se afirma como escola através dos seus mobiliários, dos uniformes escolares, das suas normas de convívio, da diferenciação dos lugares do professor, dos alunos, dos diretores e dos demais funcionários das instituições educandárias. A Escola, no seu sentido mais amplo, é um espaço padronizado pelas regras que definem as suas funções enquanto instituição. No entanto, à medida que relações interpessoais se estabelecem neste lugar, outras configurações possíveis vão se construindo. Escrevemse nos braços das carteiras escolares, acrescentam-se aos uniformes acessórios de indumentária (brincos, pulseiras, cintos, nós nas blusas), as paredes dos prédios escolares vão sendo coloridas, conforme a criatividade daqueles que habitam este espaço. Entre uma aula e outra, professores trocam receitas de bolos, comentam sobre o horóscopo do dia, recomendam as liquidações da hora, trocam confidências sobre suas vidas pessoais. Escolas são instituições vivas. São instituições capazes de seguir as duras leis que as dirigem e de subvertê-las, segundo a efervescência do convívio entre todos que a frequentam. Apesar dos conceitos que fixam as identidades de educadores e educandos, as relações que estes estabelecem nos seus cotidianos são transformadoras dos padrões comportamentais que as regulam. Nos seus estudos sobre currículo e subjetividade, Antonio Viñao Frago e Agustín Escolano (1998) nos mostram que os espaços escolares são construções sociais, são definidos por um conjunto de signos e símbolos que buscam dar sentido às suas ocupações enquanto espaços institucionais. Os autores nos mostram, também, que são 76 Módulo 2 I Volume 1 EAD as relações cotidianas que transformam tais espaços em lugares. Nos seus estudos, o espaço se projeta e se imagina, o lugar se constrói a partir das relações que os indivíduos passam a estabelecer com a ideia instituída do espaço. Partimos do pressuposto de que os cotidianos escolares são atravessados por relações de poder. Tais relações tornam possíveis múltiplas formas de convivência com as regras de ensino e as definições de aprendizagem. Predominam as regras e definições estabelecidas pelo currículo formal, mas as regras e definições criadas diariamente no currículo real também existem e são capazes de significativas inovações nas formas como as pessoas pensam e vivem o espaço escolar. Para compreender a escola em sua complexidade e diversidade cultural, é preciso compreender a maneira como os indivíduos constroem suas relações cotidianas neste lugar. É fundamental considerar seus biopoderes, ou seja suas formas de criar outras ordens para estarem uns com os outros neste espaço. Um dos problemas mais frequentes de muitas escolas tem sido o controle disciplinar dos seus estudantes. Brigas, situações extremas de violência, drogatização, desrespeito às regras de ocupação de espaço são alguns dos principais dilemas dos contextos escolares na atualidade. A indisciplina é tratada pelos regimentos escolares de forma rígida: adverte-se, repreende-se, suspende-se e expulsa-se. 8 Ao se deparar com uma situação extrema, que induz ao processo Seção de expulsão, a escola entra em choque com o Estatuto da Criança e do Adolescente, que indefere tal procedimento. O que fazer em tal Unidade III situação? Consideremos ainda que muitos estudantes indisciplinados nem sempre criam situações extremas no descumprimento de regras, apenas cometem pequenas fraudes contra a disciplina. Tais alunos passam a frequentar o Serviço de Orientação Pedagógica, às vezes a sala do diretor e, um dia, acabam se acostumando com a pecha de serem problemáticos e incorrigíveis. Que fazer em situações como essas? Tais questões nos indicam a necessidade de não dissociar as normas estabelecidas no papel das normas construídas no cotidiano nas nossas escolas. Para se chegar a tal compreensão, é fundamental observar e participar mais de perto das inúmeras vivências da escola. Ver mais. Ouvir mais. Conviver mais. É preciso apreender e aprender com essas formas de poder que estão ao nosso alcance, mas que negamos por reconhecermos, apenas, a dura e fria força da lei. UESC Pedagogia 77 Antropologia e Educação O cotidiano como biopolítica de tempos e espaços escolares ATIVIDADE • Organize suas dúvidas sob a forma de perguntas e busque respondê-las. • A partir das suas experiências com a escola descreva formas de ocupação do tempo e do espaço presentes no cotidiano escolar. • a organização do horário da escola é sempre problemática, exige o esforço de adaptar os tempos escolares às condições de vida dos indivíduos. Desenvolva um texto em que você busca aprofundar esta reflexão. LEITURA C O M P L E M E N T A R Roberto Sidnei Macedo é professor da Faculdade de Educação da UFBA, coordenador do FORMACCE, Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Paris, Saint-Dénis, com pós-doutorado em Currículo e Formação pela Universidade de Fribourg-Suiça. Possui vários livros e artigos publicados em Currículo e Formação. A entrevista que se segue foi concedida com exclusividade para a elaboração desta aula. Cada questão busca articular os principais conceitos trabalhados nesta unidade e nas unidades anteriores, com a elaboração teórica de Macedo. O entrevistado desenvolveu o conceito de etnopesquisa crítica e multirreferencial na educação a partir de inspirações antropológicas, filosóficas, históricas e sociológicas. O seu nome figura nos dias de hoje entre os maiores nomes dos estudos sobre currículo no Brasil. Entrevista a Roberto Sidnei Macedo 1. Qual a importância da Antropologia da Educação para os estudos sobre currículo? Em várias e importantes publicações, pesquisas e práticas envolvendo problemáticas curriculares. Critica-se a histórica forma abstracionista de se conceber componentes e dispositivos curriculares. Priorizam-se os modelos teóricos hegemônicos, vindos dos centros de produção do conhecimento, que, em geral, advogam para si a capacidade de dizer como devemos compreender o mundo. Extremamente autocentrados, esses conhecimentos carregam consigo um poder quase sempre “escondido”, levando em conta o que se denomina no campo curricular de currículo oculto, de configurar visões de mundo, de homem e de educação, sem que as pessoas tenham a oportunidade de discutir e se posicionar, definindo situações curriculares. Hoje, em grande medida, não temos dúvida, que o currículo é um complexo dispositivo educacional culturalmente configurado, bem como um (in)tenso produtor de culturas. Podemos verificar, por exemplo, como o campo dos “estudos culturais” e sua provocante compreensão da dinâmica cultural, aparece na educação pelas mãos dos nossos mais refinados curriculistas como Antônio Flávio Moreira, Tomaz Tadeu da Silva, Alfredo Veiga-Neto, Elizabeth Macedo, Alice Casimiro 78 Módulo 2 I Volume 1 EAD Lopes, Sandra Corazza, entre outros. É neste âmago, mas não só, que da nossa perspectiva o currículo pode ser analisado hoje, como um território de luta por significados, assumindo, num mundo culturalmente em transe, uma importância formativa nunca verificada na história da educação sistematizada. No seio do currículo a cultura é uma pauta política fundante. Nestes termos, da nossa perspectiva, ou o currículo acolhe a multirreferencialidade como política curricular ou ele será borrado, rasurado, queiramos ou não. É aqui que os estudos antropológicos assumem uma centralidade formativa para mim ineliminável. Até porque os espaços/tempos formativos já não podem, desde as suas concepções, desprezar a heterogeneidade como condição humana. Os “novos” héteros chegam, não pedem mais licença, são protagonistas que querem alterar, querem ser autores e co-autores de si, autorizam-se portanto, não aceitando a reprodução colonialista como natural. Descolonizar o currículo e conquistar a formação é a questão importante dos nossos tempos. Em sendo essa uma realidade que não podemos mais negar, os atos de currículo se deslocam e acabam nos mostrando a emergência da cultura como uma força que configura, como um arkhé dos cenários educacionais, bem como uma pauta política decisiva para os ideários democratizantes da educação. 2. Nas suas investigações sobre práticas curriculares o senhor indica uma etnopesquisa crítica e multi referencial, qual a relevância dessa proposta para a compreensão do cotidiano como dimensão viva do currículo? Tomando a etnometodologia, desenvolvida como uma teoria do social por Garfinkel, como uma inspiração maior, bem como levando em consideração que currículo é um artefato/dispositivo socialmente construído por homens 8 e mulheres datados, situados e intencionados, compreendo que só há possibilidade de compreendermos o processo curricular acontecendo, in situ, Seção em ato, se conseguirmos encontrar os atos de currículo na sua emergência cotidiana. Não estamos desconhecendo as estruturas curriculares instituídas Unidade III e seu poder de reprodução, entretanto, até mesmo o fenômeno que se reproduz se realiza por atos instituintes. Ademais, para a etnopesquisa, não existe possibilidade de compreensão das nossas ações se não indexalizarmos essas ações às bacias semânticas em que elas emergem, bem como se não estabelecermos uma conversação compreensiva com os atores sociais e seus etnométodos curriculares. É nestes termos que a etnopesquisa tem uma possibilidade significativa de desnaturalizar os atos de currículo e suas realizações. É aqui que sua potência política aponta para novos horizontes de estudos, principalmente quando se leva em consideração a importância que os “novos” héteros atribuem hoje às questões curriculares vinculados à relação com o conhecimento eleito como formativo. Atravessar esta fronteira é o nosso desafio em termos de produção de conhecimento no campo da etnopesquisa crítica e do currículo, que, inclusive, já tem um título provisório: “Etnopesquisa Crítica e Ações Afirmativas”. Trabalhar com o conhecimento eleito como formativo da perspectiva da etnopesquisa crítica e vislumbrar uma formação afirmativa é o objetivo desta obra que ainda está a caminho. 3. O senhor concorda que as definições de tempo e espaço escolares são construídas pelos biopoderes presentes na vida institucional das escolas? UESC Pedagogia 79 Antropologia e Educação O cotidiano como biopolítica de tempos e espaços escolares De alguma forma a ideia de atos de currículo é enriquecida pelo conteúdo que sua questão apresenta. Quando Gaston Pineau vem nos falar de um bioquestionamento em crescimento, que reflete a maneira pela qual as biotecas humanas e sua irredutível heterogeneidade começam a assumir, uma certa, centralidade na compreensão das realidades que construímos. “Pequenas” histórias implicadas, narradas por atores sociais, que constituem seus saberes no dia a dia da vida, vêm demonstrando que explicitam melhor um conjunto de realidades antes dissolvidas pelas e nas metanarrativas, pela grande história, que, não raro, contavam a história e falavam da cultura do vencedor. As consequências políticas dessa última opção foram terríveis para a formação do povo brasileiro. Hoje, a cultura da escola, que não pode ser confundida com a cultura escolar, instituída pelas pessoas concretas que a constitui é indispensável para compreendermos de forma refinada de como tempos e espaços curriculares se contextualizam, descontextualizam e recontextualizam de forma única e, portanto singular. Para um curriculista comprometido com o fazer curricular cotidiano isso é muito caro. 4. Recentemente o senhor lançou uma obra em que reflete sobre os Atos de Currículo. Qual a importância deste conceito para os estudos nessa área? Em alguns dos meus devaneios curriculares, algo me chamava a atenção: como radicalizar em termos conceituais a processualidade interativa e instituinte do currículo, no sentido de dar-lhe mais abertura político-democrática. Como tornar o currículo algo do âmbito da ágora nas nossas polis. Esse conceito caminhou seus caminhos, e, aos poucos, foi me demonstrando a capacidade que tem de esgarçar o tecido do pensamento curricular. Claro que nossas influências ligadas às teorias acionalistas deram base a esta inspiração conceitual, mas a experiência concreta tratando com concepções, mudanças e a crítica das práticas, possibilitou mais robustez ao conceito. Em realidade nossa intenção é de dizer de forma mais interativa e construcionista possível, via este conceito, que o currículo é uma “tradição inventada”, como nos revela Goodson. É um artefato concebido por homens e mulheres intencionados e orientados por determinada concepção de formação, para todos os fins práticos. Essa explicitação onde a formação assume centralidade elucidativa vem assumindo no meu pensamento uma importância cada vez maior, no seguinte sentido: como problematizar o currículo, levando em conta os atos de currículo e seus etnométodos, tomando a complexidade humana e pedagógica do fenômeno formação, que, fundamentalmente é do âmbito da experiência. Compreender os atos de currículo é compreender como se instituem os etnométodos daqueles que concebem, organizam, implementam, institucionalizam e avaliam currículos, bem como direta ou indiretamente interferem no seu dinamismo e nas suas possibilidades formativas. 5. Sabemos que boa parte das tradições escolares dissocia as experiências de vida dos indivíduos das experiências de ensino e aprendizagem na vida escolar. O que o senhor pensa a respeito desta questão? As instituições especializadas em educação adoram abstracionismos, adoram instituir impérios teóricos que se especializaram em desprezar as 80 Módulo 2 I Volume 1 EAD experiências que não foram produzidas pelo ethos e pela ética das experiências produzidas fora da ciência e da academia. Vejo isso como arrogância e imoralidade, face aos epistemicídios que produzem, para citar Boaventura de Souza Santos. A vida é um espetáculo de aprendizagens que acontece a partir dos vários mundos experienciais que constituímos em interação. Mas o prejuízo que constituímos desprezando os diversos mundos culturais e as aprendizagens que constituem, fazem com que sejam criadas verdadeiras esquizofrenias formativas, onde se imagina que o mundo do trabalho, o mundo das experiências familiares, das próprias experiências escolares, são mundos que apenas devem ser preparados para refletirem as famigeradas formas de aplicar o conhecimento especializado e requentado, bem como suas formas de controle. Eis aqui o império da disciplina e suas lógicas seculares. Penso que, em vários momentos, a disciplina e o seu ethos se transformam num delírio, quando se avaliam como a última fronteira da verdade, ou mais alucinatório ainda, a verdade em si. Saberes são construções antropossociais complexas, que inclui o não-saber e, muitas vezes, o não-construído. Faz-se necessário perguntar de forma problematizante porque sempre a disciplina veio e vem primeiro? Porque a experiência não-disciplinar é colocada no lugar do adorno, da “ponte”, do exemplo que ilustra? As respostas a essas perguntas nos abririam para uma história de colonização e violência ainda hoje um tanto quanto em opacidade. Para o interesse de muitos! 6- A Intercrítica é o caminho para o estabelecimento de diálogos entre saberes e práticas pedagógicos e saberes e práticas sociais? Grato pela sapiência com que você organizou suas questões para mim. Eles se entretecem de forma cuidadosa em termos de argumento compreensivo. 8 Tomo a crítica aqui como uma categoria filosófica, que acolhe a interpretação Seção que deseja explicitar, a demanda da falta, a vontade de questionamento, a compreensão e o trabalho com contradição. Vejo-a como uma possibilidade para todos, indistintamente, desde quando as condições sejam criadas. Unidade III Vejo-a também como irredutível, por mais que possam vir de identificações constituídas por segmentos sociais em processos interativos de entendimento. O que não podemos admitir é que a crítica como explicitamos aqui seja propriedade privada de alguém, ou condição única de um grupo, nem possa se dissolver numa só perspectiva. É nestes termos que a crítica faz parte também de uma política da diferença, ou seja, a intercriticidade implica numa conversação onde a crítica não pode ser compreendida por analogias, formas colonizadas de interpretação ou coisas como tal, mas como um encontro de modos diferenciados de compreender o mundo, que, nas suas singularidades, contribuem para essa compreensão, com possibilidades de interfecundação de saberes. Nestes termos saberes escolares ou acadêmicos e saberes da “prática”, sem qualquer tentativa de identificar purismo nestes saberes, têm, para nós, o mesmo status em termos de formação, são saberes de possibilidades formativas, sem qualquer pretensão hierarquizante. São especificidades que devem ser tratadas com refinado cuidado pelo senso crítico que tenta qualificar a formação. É assim que gosto de pensar currículo como ágora. O lugar onde as diferenças se expõem e se encontram no esforço de, pelas suas singularidades, produzirem o bem comum social via educação. Pensamos, portanto, se existe verdade curricular é porque é discutível, intercriticamente. UESC Pedagogia 81 Antropologia e Educação O cotidiano como biopolítica de tempos e espaços escolares ATIVIDADE Após a leitura desta entrevista procure conhecer a história do currículo da escola em que você trabalha. Utilize o recurso da entrevista à equipe pedagógica da escola e consulte os principais documentos de referência da política curricular da instituição em que você trabalha. Após a realização de tal levantamento produza um texto síntese contendo as suas reflexões acerca do material coletado. LEITURA RECOMENDADA Assista ao filme Os Incompreendidos, de François Truffaut, buscando refletir sobre as questões apresentadas nesta seção. Conheça as ideias da escola nômade acessando: WWW.escolanomade.org.br, sobretudo no que diz respeito à proposta de autogestão do conhecimento. Leia o livro de David Gilmour intitulado: O Clube do Filme, trata-se de uma história real da tentativa de um pai em oferecer outras formas de educação do próprio filho que inconformado com as práticas de ensino da sua escola desiste de estudar. RESUMINDO O cotidiano escolar é atravessado por dinâmicas de construção e reconstrução cultural do currículo. Através das relações de poder instituídas entre os participantes deste cotidiano, são estabelecidas significações dos tempos e espaços escolares. Algumas perspectivas teóricas da Antropologia contemporânea buscam compreender os biopoderes, inerentes às ações humanas, através dos discursos que instituem as práticas culturais. Deste ponto de vista os conceitos que definem o currículo, assim como as práticas de convivência intra-escolar, são compreendidos com biopolíticas de tempos e espaços institucionais da escola. 82 Módulo 2 I Volume 1 EAD SEÇÃO IX SABERES SOCIAIS E SABERES PEDAGÓGICOS Os saberes produzidos nas escolas precisam dialogar com 9 os saberes produzidos fora da escola. É no meio da vida social Seção que os indivíduos experimentam a relação com o conhecimento, transformando suas habilidades intelectuais e conteúdos acumulados Unidade III acerca dos mais variados temas, em atitudes concretas de interação com outras pessoas. Quando aprendemos sobre determinados assuntos que compõe o currículo escolar e não encontramos formas de interagir com este assunto fora do ambiente escolar, logo o esquecemos. Esquecemos o conteúdo e a forma de lidar com o conteúdo do assunto apreendido. Vamos ao exemplo de uma tabela periódica, assunto recorrente nas aulas de ciências e química. Fica difícil guardar na memória todos os elementos químicos presentes na tabela e suas respectivas referências quantitativas para a aprendizagem sobre as dimensões atômicas de cada elemento. Ao associarmos tais elementos com situações de vida experimentadas socialmente, a aprendizagem da atomística assume outro significado para nós. UESC Pedagogia 83 Antropologia e Educação Saberes sociais e saberes pedagógicos Lembro-me de uma aula de biologia em que a professora tentava explicar o significado das bactérias saprófitas (consumidoras de matéria orgânica). Para digerir a matéria orgânica, tais bactérias produzem uma enzima que, por sua vez, produz luz. No escuro, no interior de um cemitério, por exemplo, podemos identificar tais bactérias, fazendo a digestão do seu alimento. Segundo a professora, qualquer pessoa que desconhecesse tal dinâmica iria acreditar na existência de fantasmas ou assombrações luminosas. Guardo este exemplo na minha memória, porque foi uma das muitas experiências com o saber escolar que me fez gostar da biologia, apesar de ter seguido outro ramo das ciências modernas. A separação entre saberes sociais e saberes escolares foi um dos artifícios da educação científica, na modernidade, que prejudicou, de um lado, a compreensão de diversas formas não científicas de produção autêntica do conhecimento. Tal separação produziu, ainda, currículos escolares em que a relação com o saber científico ignora a relação com outros saberes. Em seus estudos sobre a aprendizagem da matemática, D’Ambrosio (2002) elabora uma contundente crítica a esta separação entre ciência e vida comum e reivindica o diálogo entre saberes escolares e saberes sociais como uma estratégia de aproximação da educação científica da vida social, no seu sentido mais amplo e profundo. O autor diz o seguinte: “O currículo deve refletir o que está acontecendo na sociedade [...] o problema-chave na dinâmica curricular é relacionar o momento social, o tempo e o lugar, na forma de objetivos, conteúdos e métodos, de forma integrada...” (D’AMBROSIO, 2002, p.34). Tal argumento sustenta-se no reconhecimento de que tanto a matemática quanto todas as demais ciências aprendidas na escola só conseguirão transformar contextos sociais quando conseguirem efetivamente encontrarem lugar na vida cotidiana dos indivíduos. Há pessoas que, apesar de não terem frequentado a escola, conseguem lidar com os conhecimentos matemáticos tais como a contagem, medições, cálculos de proporção, entre outros. No entanto, quando passam a frequentar a escola sequer são consultados sobre os saberes que construíram ao longo de suas vidas. A Antropologia, ao longo de sua história como ciência humana, tem demonstrado como diferentes povos produzem diferentes formas de organização social e diferentes conhecimentos. Servem de exemplo as expressões geométricas dos desenhos típicos de etnias africanas, americanas ou australianas (só para citar alguns exemplos). Povos espalhados pelo mundo inteiro desenvolveram cálculos para a prática 84 Módulo 2 I Volume 1 EAD da caça, da colheita ou da pesca. Desenvolveram, ainda, diferentes expressões de arquitetura para a ocupação dos espaços de suas aldeias. Enfim, através do trabalho dos antropólogos ao longo das últimas décadas, podemos compreender outras formas de ensinar e aprender com a ciência. É necessário ressaltar que a educação, seja ela escolar ou não escolar, exige pensar sociedade e cultura como processo e produto da passagem da vida individual para a vida coletiva. À medida que avançamos na relação com o conhecimento, aprofundamos nossas relações uns com os outros. Ao considerarmos a diversidade cultural como uma dimensão articuladora de diferenças culturais, capaz de ampliar nossas referências de ensino e aprendizagem, consideramos, também, a transformação dos saberes com os quais confeccionamos nossas práticas pedagógicas. É importante que objetivos, conteúdos, métodos e contextos de ensino e aprendizagem, presentes nos currículos escolares, sejam mediados por outras expressões de saberes presentes na vida em sociedade. Além de ressaltar o valor de outras tradições de pensamento, esta mediação valorizará a ciência como expressão da vida. O papel dos saberes pedagógicos será ampliar as condições de compreensão da ciência, dentro e fora dela mesma. Em última análise, isto poderá gerar uma compreensão da importância profunda do papel da escola para a formação humana em seu sentido mais 9 amplo. • Organize suas dúvidas sob a forma de perguntas e busque respondê-las. • Cite exemplos de inter-relações entre saberes sociais e saberes pedagógicos. • Procure descrever a experiência de aprendizagem de um conteúdo ou habilidade Unidade III Seção ATIVIDADE escolar que se deu fora da escola. Tente descobrir tal experiência em sua comunidade inspirada(o) na seguinte afirmação: Pessoas não alfabetizadas desenvolvem relações com a leitura e a escrita, conseguem distinguir marcas de produtos, linhas de ônibus urbanos e decifrar os calendários expostos nas cozinhas de suas casas. • Elabore um texto em que você expressa sua própria compreensão da relação entre saberes sociais e saberes pedagógicos. UESC Pedagogia 85 Antropologia e Educação Saberes sociais e saberes pedagógicos LEITURA C O M P L E M E N T A R Durante a década de 90 do século passado, a Secretaria de Educação do Município de Porto Alegre produziu inúmeras mudanças no currículo do Serviço de Educação de Jovens e Adultos (SEJA). Duas das principais alterações foram: a) a mudança do conceito de seriação por Totalidades do Conhecimento; b) a organização do conhecimento a partir da construção de habilidades intelectuais. Além de trabalharem com os conteúdos das áreas de conhecimento historicamente construídas no processo de escolarização, os estudantes produzem textos e interagem com o conhecimento a partir de suas experiências vividas. Os textos dos estudantes foram organizados em publicações intituladas Cadernos do Trabalhador. Nessas publicações, constam: o texto produzido, a escola em que foi produzido, a professora ou o professor que orientou o trabalho e o tema utilizado para desenvolver o trabalho. Vejamos a seguir um texto publicado no volume sétimo do Caderno do Trabalhador. A Escola e a disciplina “Os alunos da nossa escola mostram-se indecisos e dividem-se em suas respostas. Mesmo que eles tenham respondido as perguntas que lhes foram citadas, nem sempre agem da maneira que relataram em relação a disciplina e ao agir, sabese que não é assim que funciona. Os professores se dividem nas opiniões sobre a disciplina, mostraram com suas respostas que cada aluno é um caso a se resolver, tomar como caso sem solução não seria correto. Não depende das suas atitudes, que certamente cada um deles tomaria e talvez resolvesse, mas tem que esperar a aprovação dos superiores. A direção mostrou dificuldades que tem para resolver o caso do não cumprimento das disciplinas, conservação da escola e agressão entre alunos, já que declarou que a lei os proíbe tomar decisões enérgicas. Penso que com essa pesquisa posso refletir com mais certeza sobre o que acontece em nossa escola. Vejo que falta maior interesse tanto da direção e, principalmente dos alunos em melhorar as condições da escola. Aprendi que quando os alunos não conservam a higiene dos banheiros e sala de aula, os prejudicados são eles próprios, e não estão atingindo diretamente a escola. Concordo que mais segurança na entrada da escola resolveria o problema de entrada de penetras, a venda de drogas e consumo dentro do pátio. Discordo que as regras das escolas particulares são obedecidas por ser uma empresa, acho que é uma questão de alunos conscientes e bem orientados pelos pais e pela própria direção da escola.” Marta Margarete da Silva Espírito Santo, 35 anos A autora do texto era estudante da Totalidade 3 do SEJA. Esta totalidade corresponde ao processo de alfabetização e prevê a construção das sistematizações 86 Módulo 2 I Volume 1 EAD dos códigos escritos. Como se pode ver através do seu texto, além do domínio da escrita, a autora consegue realizar uma análise crítica na relação entre escola e disciplina, questionando os modelos de autoridade vivenciados na sua escola. O texto foi produzido na Escola Municipal “Ildo Meneghetti” e orientado pela professora Angelita Jussara Cruz Silva. LEITURA RECOMENDADA Conheça o documentário Escola e Inclusão Social disponível no site do Ministério da Educação. Para acessá-lo entre o link Domínio Público e solicite documentários disponíveis na forma de vídeo. Conheça ainda os trabalhos desenvolvidos pelo Observatório de Favelas, no Rio de Janeiro, o site é WWW.observatoriodefavelas.org.br. Seção 9 RESUMINDO Contextualizar práticas de ensino e aprendizagem. Este é o desafio dos Unidade III educadores que buscam operar sínteses entre as experiências de vida e as experiências de escolarização dos seus educandos. Para cumprir tal tarefa é preciso criar situações de diálogos entre saberes socais e saberes pedagógicos. Tal tarefa supõe da parte da Antropologia, o reconhecimento das culturas dos outros como legítimas para a produção do conhecimento escolar. Da parte da Educação pressupõem-se reconstruções de posturas pedagógicas em que os educadores aprendem com o universo cultural dos seus educandos, novas formas de ensinar. UESC Pedagogia 87 Antropologia e Educação Saberes sociais e saberes pedagógicos RESUMINDO A UNIDADE III Os avanços conceituais e metodológicos na Antropologia produzem concepções de mundo marcadas pelas diferenças e diversidade cultural. Tais avanços contribuem para que o campo teórico e metodológico da Educação transforme também suas concepções básicas. No debate atual o conceito de currículo tem sido questionado em suas ambições universais e generalizantes de educação escolar. Ao buscar sistematizar os processos educativos para a instituição dos sistemas escolares, pensadores ocidentais inspiraram-se no conceito de currículo para formular práticas disciplinares da organização dos tempos e espaços escolares. O conceito de currículo formal passou a definir parâmetros teóricos para o estabelecimento de regras, valores, saberes e práticas pedagógicas. No entanto, dada a diversidade cultural das instituições em que este conceito é aplicado, têm-se observado as suas limitações para englobar os processos culturais que compõem os cotidianos escolares. Sob a ótica das vivências cotidianas na escola emerge o conceito de currículo real, aquele que se produz através das interações dos indivíduos que participam da vida escolar. Entre o currículo formal e o currículo real existem distâncias. No exercício da crítica à forma rígida como as práticas curriculares buscam eliminar as especificidades culturais presentes nas dinâmicas escolares, em nome da universalidade dos processos educativos, vários intelectuais buscam definir o conceito de currículo oculto. As regras implícitas às ações dos currículos formais impõem formas autocráticas de gestão dos cotidianos escolares. Compreendendo as relações cotidianas nas escolas como relações de poder, bem como a exigência de trocas simbólicas entre saberes sociais e saberes pedagógicos na escola, a discussão atual sobre currículo busca incorporar, na noção de diversidade cultural, novos postulados para práticas curriculares comprometidas com a participação plural dos indivíduos que ocupam os cenários escolares. Antropologia e Educação constituem campos de saberes cooperantes na proposição de novas bases para a reflexão sobre práticas curriculares e diversidade cultural. 88 Módulo 2 I Volume 1 EAD CANDAU, Vera Maria (Org.). Sociedade, educação e culturas. Petrópolis: Vozes, 2002. D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: um enfoque antropológico Culturalmente Distintos. São Paulo: Global Editora/FAPESP, 2002. DAYRELL, Juarez (Org.). Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizontes: UFMG, 1999. FORQUIN, Jean Claude (Org.). Sociologia da Educação. Trad. de REFERÊNCIAS da matemática e do ensino. In: Idéias Matemáticas de Povos Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1995. FRAGO, Antonio Viñao; ESCOLANO, Agustín. Currículo, Espaço e Subjetividade. Trad. de Alfredo Veiga Neto. Rio de Janeiro, 1998. MACEDO, Roberto Sidney. A etnopesquisa crítica e multirreferencial nas ciências humanas e na educação. Salvador: EDUFBA, 2000. RABINOW, Paul. Antropologia da Razão.Trad. de João Guilherme 9 Biehl. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. Seção REVISTA NOVA ESCOLA. Parâmetros Curriculares Nacionais: fáceis Unidade III de entender. Edição Especial. São Paulo: 1998. SANTO, Marta Margarete da Silva Espírito. A escola e a disciplina. In: Palavra de Trabalhador. v. 7. SEJA/MOVA. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Educação, 1998. SANTOS, Lucíola L. de C. P. História das disciplinas escolares: outras perspectivas de análise. In: Educação e Realidade, v. 20, n. 2. Porto Alegre: EDUFRGS, 1995. UESC Pedagogia 89 Suas anotações ________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _____________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________