A HOLDING PURA COMO SOCIEDADE EMPRESÁRIA
O Código Civil (“CC”) instituiu uma nova classificação para quem exerce a
atividade econômica, adotando a teoria da empresa como divisor de águas e
superando a vetusta teoria dos atos de comércio. O CC dividiu, como regra geral, as
sociedades em empresárias e não empresárias. Caiu por terra a classificação das
sociedades conforme o seu objeto. Agora vigora o critério subjetivo do modo pelo
qual as atividades são exercidas: o exercício profissional de atividade econômica
organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços.
O profissional se caracteriza pelo exercício habitual da atividade e, conforme
entendimento consolidado da doutrina, é aquele a quem se pode reputar determinado
ofício como principal, sistemático e duradouro. Na lição de Francesco Ferrara Jr e
Francesco Corsi:
“Ma la professionalità importa altersì Che l’attività sai stabile, duratura, svolta
sistematicamente.”1
Já a organização consiste na utilização de um complexo de meios de produção
ordenados para a consecução de um fim. Nos dizeres de Borba (em parecer elaborado
para o Registro Civil de Pessoas Jurídicas, datado de 07/07/2003), na sociedade
empresária: “A coordenação, a direção e a supervisão são pertinentes ao empresário
ou à sociedade empresária; o exercício direto do objeto social vale dizer: a produção
ou a circulação de bens e a prestação de serviços são operadas pela organização”.
E não há que se argumentar que a sociedade empresária é só a que organiza a
mão-de-obra de terceiros para a consecução de seus fins. A existência (ou não) de
empregados ou de colaboradores é indiferente para a sua classificação como
empresária ou não empresária. Deve se ter em mente a organização dos fatores de
produção, na linha da melhor doutrina italiana sobre o assunto, berço e túmulo da
sociedade simples (“Simples”). Conforme acentuam Ferrara, Jr. e Corsi:
“Nell’attività commerciale il lavoro può essere svolto dallo stesso imprenditore
personalmente od avere carattere marginale: la vita offre esempi di esercizi
commerciali in cui in cui il lavoro umano à sostituito nella massima parte da
congnegni meccanici (automatici), Che a seguito dell’introduzione della moneta
o del gettone consegnano al cliente da merce desiderata, ed in cui la presenza
dell’impresa è inegabile.”2
Nessa mesma linha, Tavares Borba ensina:
1 Gli Imprenditori e le Società – Milano: Giuffrè Editore, 2001. p. 37. Itálicos no original.
2 Op. Cit. p. 34.
1
“Hoje, com o avanço científico e o automatismo, algumas indústrias quase não
têm empregados, os quais foram substituídos pelo aparato tecnológico, que
processa a matéria prima, elabora o produto, e até mesmo o acondiciona para
o mercado. Nesses casos, ainda que não se tenha uma organização de pessoas,
tem-se a coordenação de meios materiais, e a sociedade empresária, por essa
razão, avulta indiscutível.”3
O exercício de atividade econômica pode ser verificado quando há a criação de
nova forma de riqueza, seja através da geração direta de lucro ou da agregação de
valor a outros bens ou atividades pré-existentes. Conforme Ferrara Jr. e Corsi:
“Produzzione di ricchezza si há non solo quando si creino nuovi beni, ma altersì
quando si aumenti il valore dei beni esistenti (portandoli nel luogo di smercio
od altrimenti)”.4
A produção e a circulação de bens ou serviços devem ser definidas de forma
ampla, de modo a abrigar não só a manufatura e o comércio, mas também abranger
novos ofícios (o de organização do controle, por exemplo) que gerem ou agreguem
valor a outros bens ou atividades sob relação de coordenação ou de subordinação com
a sociedade holding.
A holding pura pode ser definida como a sociedade cujos escopos principais são
a aquisição, titularidade, alienação e controle de participações societárias. Tais
escopos são exercidos com profissionalismo, vez que a holding os tem como principal
atividade e razão da sua existência como vértice de estrutura de controle (cf. art. 2º,
§§ 1º e 2º c/c art. 243 §2º, ambos da Lei 6.404/76 c/c art. 1.053, par. único, do NCC).
Também são econômicas porque visam a administrar e a agregar valor à
carteira de participações societárias. A melhor doutrina italiana confirma este
entendimento reafirmando a presunção de profissionalismo e de viés econômico em
estruturas de controle como as que reveladas pelas holdings puras. Nesse sentido,
mais uma vez o escólio de Ferrara Jr. e Corsi confirmam nosso entendimento:
“Le società aventi por oggeto di investire il próprio patrimonio in azioni o quote
di altre società esercitano attività econômica, tano nell’ ipotesi in cui si
propognano di corrispondere ao soci um dividendo constante (come avviene
da tempo nell’ investment trust del diritto anglosassone ed ora nei fondi
comuni d’investimento mobiliare di recente disciplinati da noi), quando
nell’altra in cui si propongnano, attraverso il dominio di altre società ed il
coordinamento della loro azione, di valorizare le partecipazioni sociali
possedute e di realizzare maggiori redditi (come avviene nela holding): sai
3 Op. Cit.
4 Op. Cit. p. 31.
2
nell’uno che ne l’altro caso l’attività è direta alla produzione di nuova
ricchezza”.5
Aliás, se pudesse se afirmar que a holding não tem atividade econômica nem
sociedade seria (seja simples ou empresária), não estando enquadrada no conceito do
art. 9816 do NCC7. Seria assim uma associação, entidade destinada a desenvolver fins
não econômicos, consoante o art. 538 do NCC.
A própria existência de uma sociedade destinada a organizar e controlar
participações societárias pressupõe estrutura fortíssima, fazendo presente, quando
menos, o elemento de empresa da parte final do par. único do art. 966 do NCC. Isso é
o que basta para afastar tal sociedade do regime próprio da Simples. Mais forte fica o
argumento caso a holding pura estiver regulada pelas regras supletivas da Lei
6.404/76.
Parece muito clara a intenção da lei de reservar à Simples os pequenos
negócios, realizados de forma artesanal por seus titulares, conforme defende Fabio
Ulhoa Coelho:
“(...) Presta-se bem, por sua simplicidade e agilidade (34 ), às atividades de
menor envergadura. É o tipo societário adequado, por exemplo, aos pequenos
negócios, comércios ou prestadores de serviços não-empresários (isto é, que
não exploram suas atividades empresarialmente), aos profissionais liberais (à
exceção dos advogados, cuja sociedade tem disciplina própria na Lei nº 8.906,
de 4 de julho de 1994), aos artesãos, artistas etc.”.
Logo, é incompatível com o tipo e regime jurídicos de uma Simples os casos nos
quais a multiplicidade de participações societárias e a sofisticação da organização para
o exercício do controle estejam sejam tão elevados que reclamem a constituição de
uma holding como típico instrumento de organização institucional.
É importante notar que a lei e a melhor doutrina estabelecem como critério
distintivo entre as sociedades simples e empresária apenas o exercício da atividade
5 Op. Cit. p. 31. Grifamos.
6 “Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir,
com bens ou serviços para exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.”
(Grifamos)
7 Conforme nos ensina Miguel Reale: “Por sua vez a sociedade se desdobra em sociedade econômica
em geral e sociedade empresária. Têm ambas por fim a produção ou a circulação de bens ou serviços,
sendo constituídas por pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir para o exercício de
atividade econômica e a partilha entre si dos resultados.” (REALE, Miguel. Invencionices sobre o novo
Código Civil. Direito de Empresa. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 63, mar. 2003. Disponível em:
http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3820. Grifamos.)
8 “Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não
econômicos.”
3
econômica organizada e profissional. Não há relevância se a sociedade se relaciona
(ou não) interna ou externamente com terceiros. Remarque-se bem: a própria
existência de uma sociedade que tem como objetivo precípuo a organização e o
controle de determinados bens (tendo relações predominantemente internas)
pressupõe uma complexidade de relações incompatível com o uso da Simples e com
seu complexo regime jurídico, sobretudo diante da presunção de demanda
organizativa para o implemento das atividades de comando.
Note-se, ainda, como já defendido pela doutrina antes mesmo do NCC, quando
as atividades da controlada têm características empresariais, a organização de tais
atividades, por via indireta e através da holding, também deve ser considerada uma
forma de empresa. A contaminação aqui é necessária e evidente. Nessa linha,
Comparato, citando Kohler e Ascarelli, fala da utilização das sociedades holdings como
negócio jurídico indireto e acentua:
“Parece-nos, em conseqüência, impossível excluir, completamente, a atividade
empresarial das sociedades controladas do objeto da sociedade de controle
pura, ainda que essa atividade empresarial não venha explicitada no contrato
social ou nos estatutos da holding.”9
Mais adiante, recorrendo ao art. 2.361 do Código Italiano, Comparato10
demonstra que a holding é mera sociedade de segundo grau, vez que a referida norma
veda a assunção de participações quando pela medida e objeto de tais participações
restar modificado o objeto social constante no ato constitutivo. Em outras palavras, a
norma reconhece que a detenção de participação em outra sociedade pode ser
considerada como o exercício indireto das atividades da sociedade na qual participe.
Em amparo da tese aqui defendida, cabe ainda fazer referência ao Anteprojeto
do Código de Obrigações, de autoria do Prof. Sylvio Marcondes, também autor do
Capítulo do Direito de Empresa do Projeto de Lei que deu origem ao NCC. O art. 1.106
do Anteprojeto definia empresário de forma idêntica ao NCC11. Já o §1 exemplificava
as principais atividades próprias de empresário comercial da seguinte forma:
“I – atividade industrial destinada à produção de bens ou serviços;
II – atividade intermediária na circulação de bens;
III – atividade de transporte, por terra, água ou (...);
IV – atividade bancária;
V - atividade seguradora;
9 COMPARATO, Fabio. O Poder de Controle – Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 135.
10 Op. Cit. p. 135.
11 “Art. 1.106. É empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a
produção ou a circulação de bens ou de serviços.”
4
VI – outras atividades auxiliares das precedentes.”12 (Grifamos)
Parece bastante claro que as sociedades holdings têm como objeto atividades
auxiliares das sociedades nas quais participa como, aliás, já foi até defendido por
Comparato, o que encaixa a holding como uma luva nas atividades próprias de
empresário na ótica do autor do citado Anteprojeto.
Não nos parece haver, enfim, um motivo sério para classificar a holding pura
como Simples, pois a participação em outras sociedades também é forma de empresa
e diante do fato de que o NCC reservou às Simples o caráter de exceção ao fenômeno
empresarial (até porque é como tipo facultativo ou como regime jurídico subsidiário
que a Simples agoniza nos poucos países que ainda a adotam), ao passo que a regra
geral é a de que a sociedade seja empresária.
Ademais, o fato de as regras sobre as Simples (como tipo societário) serem
base geral para a disciplina das sociedades contratuais, constitui apenas o modo
escolhido pelo legislador para sistematizá-las. Isso não afeta a natureza da sociedade.
Não se pode confundir a técnica de organização (a sociedade, como um contrato
plurilateral), com o objeto que essa técnica pretende facilitar ou organizar (atividade
econômica, empresária ou não).
Márcio Tadeu Guimarães Nunes
Advogado, Professor e Consultor no Rio de Janeiro.
12 BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do estabelecimento comercial – São Paulo: Ed. Saraiva, 1988. p. 113.
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