1.º Prémio
António Monteiro de Aguiar Oliveira
“A Chávena - (Exercício teatral em um ato)”
CENA I
MARIANA SÓ, NO QUARTO DE BANHO
MARIANA - (SAINDO DO DUCHE E OLHANDO-SE AO ESPELHO
- Bolas, apesar de tudo, não devia ter dito aquilo.
Agora, não há nada a fazer. Está dito, está dito.
Este meu maldito temperamento, sempre levada pela emoção,
sem pensar duas vezes, digo cada coisa...Realmente, fui um bocado exagerada...O Luís, com a
minha mãe...Bem sei que ela é uma doidivanas, mas daí a andar com o meu marido...Pode ser
que ele não tenha ouvido, estava a dormir tão bem...
E logo lhe fui confessar a minha "escorregadela"...
Ainda me custa a acreditar. Na inauguração da exposição, o Luís apresentou-mo. Achei graça
ao nome, parecia uma marca de vodka. Deu-me quatro beijos, dois em cada face.
Não me surpreendi, sabia que era costume na terra dele, mas foi o começo de
tudo...Reconheci a intenção disfarçada na aparente inocência desse cumprimento.
Conversámos os três um pouco, e até nos rimos do seu português atamancado.
Pouco depois, eu estava só, diante de um quadro, e ouvi, junto ao meu ouvido esquerdo,
aquela voz grave:
- Gostava de te pintar. Passou-me um cartão para a mão e desapareceu.
Telefonei-lhe uma semana depois.
No atelier dele, tudo aconteceu como um turbilhão,
sem tempo para pensar.
Não posso dizer que a recordação dessa tarde seja má, antes pelo contrário, mas não o voltei a
ver, depois disso.
(SUSPIRA PROFUNDAMENTE) - Oh, meu Deus, oxalá que o Luís não tenha ouvido. As coisas não
andam muito bem, mas...
(APERTA A TESTA COM AS MÃOS, E DEIXA-AS ESCORRER PELOS LONGOS CABELOS, OS DEDOS
EM FORMA DE PENTE. VESTE O ROUPÃO E VAI ATÉ À JANELA, ENCOSTANDO-SE À VIDRAÇA.
SENTE, NA TESTA, UMA HUMIDADE FRIA QUE LHE SABE BEM.
DE OLHOS FECHADOS, DEIXA QUE ESSA HUMIDADE LHE ACARICIE A FACE, A BOCA, O NARIZ, E
ATÉ SE DIVERTE UM POUCO COM ISSO. COM O INDICADOR, ESCREVE NO VIDRO: LUÍS)
- O tempo está tão escuro, e choveu tanto de noite...
Ainda bem que é domingo, não preciso de sair de casa. Vou fazer um almocinho catita, ele vai
adorar...
(SAI)
CENA II
COZINHA MODERNA - LUÍS, DEPOIS, MARIANA
LUÍS - (SENTADO, TOMA O PEQUENO ALMOÇO, ENQUANTO OLHA PELA JANELA, PENSATIVO) O tempo está tão escuro, e choveu tanto, de noite... Mas preciso de sair... (BEBE UM POUCO
DE SUMO) - Pode ser que tenha sorte, e que não chova...
MARIANA - (ENTRANDO, EM ROUPÃO DE BANHO) - Bom dia...
LUÍS - Bom dia...
MARIANA - (ENQUANTO SE SERVE DE UM CAFÉ) - O tempo está tão escuro, e choveu tanto, de
noite...
LUÍS - Eu ouvi a chuva, não dormi quase nada...
MARIANA - (IA FAZER MENÇÃO DE SE SENTAR MAS PÁRA, SOBRESSALTADA, COM A CHÁVENA
DE CAFÉ NA MÃO) - Como? Não dormiste nada? Mas eu ouvi-te ressonar, embora não muito.
LUÍS - Pois (PAUSA) - Mariana, precisamos de ter uma conversa muito, mas muito, séria. Peçote que me oiças sem me interromper.
MARIANA - (ENCOSTA-SE AO GUARDA LOIÇA, COM A CHÁVENA, ESQUECIDA, NA MÃO) - Fala...
LUÍS - Sabes perfeitamente que as coisas não andam nada bem.
Há séculos que não há nada entre nós, o distanciamento é cada vez maior.
Acusaste-me de ter um caso com a tua mãe.
Raramente ouvi coisa mais disparatada. A tua mãe, é a tua mãe.
É uma mulher bonita, ainda nova, moderna, culta, desinibida, com quem se pode falar
abertamente de qualquer assunto, em suma, é uma mulher atraente.
É minha amiga, e eu sou muitíssimo amigo dela, mas nunca (VINCANDO AS PALAVRAS), e é
mesmo nunca, houve, entre nós, a mínima intimidade menos própria.
Por esse motivo, podes perfeitamente passar a ver a tua mãe com outros olhos.
MARIANA - (UM TANTO DESORIENTADA) – Mas ...
LUÍS - (FAZENDO UM GESTO COM A MÃO) - Pedi-te para não me interromperes. (PAUSA)
Há outra coisa, e bem mais importante. Já devia ter-te falado nisto, há algum tempo, mas
faltou-me sempre a coragem. Foi a tua explosão desta noite que me fez decidir.
Na realidade, há outra pessoa na minha vida, estamos apaixonados e queremos viver juntos.
Custa-me viver um engano, a solução é o divórcio.
MARIANA - (ESTUPEFACTA, HIRTA, COMO SUFOCADA, A CHÁVENA TREMENDO) - É... É alguém
que eu conheça? ...
LUÍS - Sim, conheces, é o Vladim Voskoff, aquele pintor russo que te apresentei Há algum
tempo.
Aconteceu, pronto.
(O ÚLTIMO SOMA OUVIR-SE É O DA CHÁVENA A PARTIR-SE EM MIL PEDAÇOS)
2.º Prémio
Alberto Pereira
"Tantos anos a vestir o vento"
Texto: Tantos anos a vestir o vento
a ajustar fósforos ao coração.
Era assim que a indecisa luz
coxeava incêndios.
Trazias no rosto
os séculos sempre ágeis,
a boca em longas jornadas
para construir pássaros.
Os lábios despiam-se;
primeiro o vestido vermelho
inventado pelo batom,
em seguida a língua até à nudez.
A fome era uma cítara,
ouvia-se a música a edificar o telhado.
Cresciam ruas em todos os lugares
e a garganta,
cidade que arrepiava.
Depois o tempo algemou a casa.
Deixaste de vir tantas vezes
e os beijos tornaram-se contratos.
É verdade, regressavas,
mas com machados até às fábulas.
As paredes aprenderam cicatrizes,
o quarto encheu-se de rugas.
Às vezes ainda te vejo chegar,
pela demência das árvores.
3.º Prémio
Edgar Manuel Damião Palminhas
Título: "Anda daí, vamos para casa, não ouves pedro?"
- Às vezes acho que te amo, outras vezes não sei
disse ela, a olhar para ele, a medo, da outra ponta do sofá onde ambos estavam sentados.
- Às vezes acho que não tenho nada mais para te dar
e fez-se silêncio. Ele ficou calado, à espera, olhos postos na televisão, sem ver, as cores a
saltarem indistintamente do ecrã em acenos de braços repentinos tentando quebrar-lhe a
distracção sem êxito.
- Já te queria ter dito, ter esta conversa há mais tempo, desculpa.
Finalmente ela ganhara coragem. E posto isto, aguardava agora a vez dele, num nervosismo
contido feito de dedos torcidos, como quem revela ao médico na consulta de rotina as dores
ignoradas há meses e espera com a aflição dos olhos um diagnóstico benigno.
Ele levantou-se, langoroso, foi até à janela no outro lado da sala. Arrastou o silêncio num olhar
esquecido para a rua, deixando que as coisas lá fora lutassem entre si para ganhar forma aos
seus olhos.
- Diz alguma coisa, por favor, é tão difícil para ti como para mim – tornou ela.
Sinuosamente, a custo, começou a distinguir as ondulações da avenida lá em baixo onde a
noite, vagarosa, a instalar-se de mansinho, a urgência dos carros, apressados como
ambulâncias, a passarem-lhe ruidosamente no estômago, as copas das árvores balanceadas
pelo vento nos segredinhos delas mudando de sítio as últimas manchas de sol pelo chão,
ziguezagueadamente. E nisto, de súbito, vieram-lhe à memória os verões em porto covo, a
mãe ao longe a chamá-lo no regresso da praia e ele sentado no banquinho de pedra junto à
falésia aguardando que o sol, brando e lento, escorrega-se até mergulhar na prata cintilante
do mar.
- Anda daí, vamos para casa, não ouves Pedro?
E a voz da mãe, distante, a engrossar ao longe como agora a suspeita da noite a engrossar
também nas ruas de Lisboa, rumorosas e agitadas, onde os carros e as pessoas e os prédios
enegrecidos uma azáfama de sombras. Tanta solidão nas ruas de Lisboa em horas de ponta.
- Diz alguma coisa por favor…
(Diz alguma coisa antes que a tua mãe furiosa a chamar-te, não ouves pedro?)
- …é tão difícil para ti como para mim.
E tão difícil para ele dizer alguma coisa, tão difícil encontrar algo dentro para dizer quando o
“às vezes acho que te amo, outras vezes não sei” palavras escritas a giz na ardósia do seu
desespero naquele barulho riscado de unhas que faz arrepios nos nervos, tão difícil dizer o que
fosse naquele momento indefinido em que a luz, débil e leve, tecida de porcelana, a pôr nas
coisas uma fragilidade de gato, deixando-as a existir, preguiçosamente, esquecidas do resto.
Ela levantou-se, acendeu um cigarro. Foi até à janela, junto dele. E ao chegar junto dele olhoulhe de soslaio a cara contida nas feições aferrolhadas de quem proíbe uma lágrima, e
subitamente ganas de abraçá-lo durante imenso tempo e de
- Meu amor...
mas se
-Meu amor...
talvez ele um estouro súbito de ranho e raiva e uma ambivalência enorme a crescer a
espasmos na garganta, talvez ele uma vontade imensa de a rasgar por dentro e, ainda assim,
incapaz de não deslizar para o seu colo no movimento indolente dos vencidos.
Por isso mesmo (dizia eu) se por acaso ela
- Meu amor...
quem sabe, talvez ele sem resistir
-Meu amor...
também, e o pôr do sol sobre Lisboa a ganhar novos contornos dissipando-lhe os mal
entendidos com a vida, o pôr do sol sobre Lisboa não carros apressados nem pessoas nem ruas
nem prédios enegrecidos, o pôr do sol sobre Lisboa a fundir-se ao pôr do sol em porto covo, a
emaranhar-se nele, a enlearem-se os dois e uma dificuldade enorme de distinguir um do
outro, o pôr do sol sobre Lisboa o melhor pôr do sol do mundo e a voz da mãe
- Anda daí, vamos para casa, não ouves pedro?
a evolar-se, a esvaecer-se, a desmaiar aos poucos dentro dele, ficando apenas a suspeita de
um braço de Tejo ao longe no abraço dela, e a noite quente, comovida, a tocar-lhe com os
dedos ao de leve no rosto secando-lhe a lágrima que não foi capaz de conter.
MENÇÕES HONROSAS
- Alberto Pereira
"Barcos para a insónia"
Não venhas agora,
as árvores tremem nos móveis
e a tempestade não adormeceu a cama.
Os lençóis assobiam o teu nome
e dizem os retratos
que os pássaros são barcos
para a insónia.
Não venhas agora,
as paredes hospedaram o vento
e nas estantes os versos dançam falésias.
Há livros com janelas doentes
e as histórias agasalham-se no nevoeiro.
Não venhas agora,
as paisagens passeiam naufrágios
e Agosto está numa cadeira de rodas.
Quando regressares,
os dias estarão sós.
- André Boaventura
" Icebergue"
I dwell in Possibility-A fairer house than Prose-- Emily Dickinson
There’s a possibility that all I have
is all I’m gonna get
- Lykke Li
Sabes o que é um icebergue? É uma possibilidade. Pegas mal pela ponta e degelo. Ou pegas
bem pela outra e enlevo. Enlevo é ter as barbas de Júlio Verne, descer ao centro da Terra e
traçar 20 000 léguas submarinas. Enlevo é cantar assim
Eu fui ao fim do mundo
vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
bonita
Esta ponta de icebergue começa com três ingredientes: uma estação de caminhos-de-ferro na
Rússia, um rapaz e uma rapariga.
A cara dela diz nos o frio. Sente-se desamparada. Tempos houve em que bastou lutar para ter
o que queria, mas agora falta algo. Nem tudo vem pela força. Esta manhã, acha-se velha de
mais para isto. Começa a pensar que foi um erro. Deveria ter ido com os pais para a Quarteira.
Praias apartadas em paredões, cafés e esplanadas, revistas, biquíni amarelado. Fugidios
homens colibris que só lhe tragam o néctar. Não se olha ao espelho, olha-se à torneira aberta
do lavatório, fita-a qual serpentina pelo cano abaixo, dilacerada, moída, dá por si de mochila às
costas e na Rússia à procura de algo, algo que esbaforido foge pelo cano abaixo, em
serpentina. Há velhos na estação, mas ela afoga-se mais que eles, o papel pardo, textura de
ossos, savana da pele, tosse pergaminho, toda a areia do Sahara, mas onde há deserto, há
oásis. O que há de belo num deserto é que, algures, esconde um poço. O poço não é ele. O
poço é o encontro dos dois
Ele nasce seis anos depois dela, na Alemanha, mas peneira Alexandria e o Nilo. Recorda da
infância idas à pesca com o pai e correr o mundo de bicicleta. Ainda hoje corre mundo, mas de
Transsiberiano e, paciente, pesca tatuagens. É artista de tatuagens. Desenha na flora e na
fauna, traça a savana da pele. Tem o dom de falar mandalas e foi assim que despontou o amor
em botão. O olhar de Matthias, decantando Marta, de turbilhão para constelação. Ela é a
tatuagem em si inscrita, achou-a ali, ele que professa a geometria, toda a geometria é divina,
que bela ela é, que bela é ela, em si inscrita, traçada, a sua mandala, esta mulher é divina, é
geometria sagrada, quero-a em mim. Matthias é loiro, tem o cabelo rapado dos lados,
espetado em cima e rastas na nuca. Tem piercings, mas nenhuma tatuagem. Até hoje,
mantinha apenas uma vaga ideia dos contornos desejados. Eram os traços do rosto dela, da
tinta que compõe Marta
Marta ainda não deu por Matthias, só pela sua falta. Lê um livro espesso sobre Lisbeth
Salander. Também ela sonha com uma lata de gasolina e um fósforo. Para deitar fogo a todos
os homens-colibris, esses que odeiam as mulheres, esses que delas sorvem néctar. Marta não
gosta do seu reflexo, por isso busca-se na torneira do WC. Abafada, põe os auscultadores e liga
o discman. Só levou um CD, uma colectânea pessoal. Música para a animar, música para a
adormecer. Música para abafar e música para chorar. Selecciona a faixa 06, da banda-sonora
do filme da Amélie, mas as pilhas morrem ali. Típico. História da minha vida. E, saindo do WC,
vê Matthias
Matthias, enquanto espera que ela saia do WC, desenha já em si o rosto de Marta. Desenha o
rosto dela no seu braço. Tornando-se numa mandala, tem visões de Alexandria e do Nilo. Ela
sai do WC e ele traça sobrancelhas como cisne, como heras, como milhares de libélulas, um
rompante de magnólias desabraçando-se sem fim
Marta sai do WC, olha para Matthias e ouve a música do filme da Amélie. Que susto. Desvia o
olhar e pára. Torna a olhar e recomeça. Vem de Matthias, a música vem dele, só se olhar para
ele. Intrigada, demora nele o olhar e tem visões de um poço, da cortina de contas da cozinha e
de um rompante de magnólias, desabraçando-se sem fim. O poço é o encontro deles.
Marta deleita-se, recatada, faz que não é nada. O final do filme da Amélie, ela e ele felizes na
lambreta. Marta e Matthias poderiam felizes no Transsiberiano. Ele traçando o rosto dela em
si e ela evaporando em música, adorando o corpo dele. Ele feito mandala e ela beijinhos ou
brisa. A seis passos de distância um do outro. A seis passos do amor que tudo consome ou a
seis passos dum amor tranquilo. Um amor que corre o risco de permanecer num bloco de gelo.
Tudo depende deles. A seis passos, a ponta do icebergue.
Pegas mal numa ponta e degelo. Pegas bem na outra e enlevo. Enlevo é isto, é a possibilidade,
um poço no deserto. A possibilidade do amor que tudo consome. A possibilidade de nele
brotarem mandalas e, nela, beijinhos ou brisas. A possibilidade de um amor tranquilo. Se ela
desse o primeiro passo, pegaria mal na ponta. Zangar-se-iam dali a seis meses via Skype,
exigiriam coisas diferentes um ao outro. Ela ia chorar e tomar comprimidos na banheira, sem
saber que ele tinha viagem marcada e quarto reservado em Sintra. Ela ia morrer de
comprimidos, evaporar-se e nunca saber o que é extrair mandala da pessoa amada.
Só que é ele que dá o primeiro passo e Marta sorri. Ela ouve agora uma voz, cantando em
Matthias, uma voz que talvez seja a dela, porque canta, tal como ela cantava, tantas noites de
Verão, rainha do palácio das correntes de ar, sozinha e sem braços, na varanda, sento-me
nesta varanda vazia e relembro, rezando à Lua, cantando, pedindo Irmã Luna, eu só te peço a
sorte, Irmã Luna, eu (só) quero a sorte de um amor tranquilo
- Fernanda Maria Portugal Alves da Costa
"Amor Gramatical"
Dona Gramática andava muito triste! Era dia catorze de fevereiro e recordava nostalgicamente
como desaparecera para sempre o grande Amor da sua vida. Recordava os tempos de moça
viçosa em que se perdia nas estantes da Biblioteca em ousadias loucas com certo
complemento circunstancial que, quer no tempo, quer no espaço, quer mesmo no modo lhe
concedia ocultos prazeres em impensáveis proezas textuais … Recordava como tantas vezes,
na loucura de todo o amor proibido (ou escondido, vá lá), ele lhe sussurrava palavras sensuais,
que lhe ruborizavam todos os capítulos, lhe desconcertavam qualquer conetor, lhe
confundiam todo o género textual, a faziam remexer todas as interjeições, deixando-a no fim
rendida em contemplação, completamente incapaz de se reorganizar durante alguns minutos
até que, inadvertidamente, alguém a buscasse na estante para uma qualquer consulta e a
obrigasse a, rapidamente, se recompor, não fosse alguém perceber…
Mas isso fora há muito tempo! Agora restava-lhe apenas um lugar sombrio na prateleira dos
menos procurados (dos fora de uso)…felizmente mesmo em frente àquela onde decorreram
todos os loucos momentos de prazer daquele amor passado. O seu amor afastado por uma
qualquer reforma dos tempos modernos, desaparecera para sempre e ela, ela ficara ali
naquele marasmo insuportável, naquele sofrimento atroz a olhar «a outra», a Nova Gramática,
cheia de vigor, de cor e luz, pousada altivamente na melhor estante do corredor central, num
«entra e sai» bamboleante e maldoso, em cento e cinquenta mil requisições por dia, que
deixavam Dona Gramática cada vez mais infeliz! Passava então os seus dias em lamentos
chorosos com o seu amigo, o velho dicionário, navegando num mar de «frases feitas»:
- Não somos nada nesta vida!» ou
- Não valemos mesmo nada e somos facilmente trocados. Somos apenas uma peça na
engrenagem… Rapidamente somos esquecidos…
E blá, blá, blá…
O outro, velhote e também arrumado, conformara-se bem com a situação e até achava que, se
já servira tantos anos o mundo das letras, o melhor era mesmo ficar agora a gozar as delícias
daquela reforma, confortavelmente deitado na estante da sua Biblioteca de sempre,
quentinho e sossegado.
Mas Dona Gramática não se conformava e, naquele catorze de fevereiro recordava, cada vez
mais infeliz, o seu amor perdido para sempre por uma qualquer estúpida reforma… Sentia-se
completamente desolada, abandonada e incompreendida!
Todos se preocupavam muito com ela e temiam que aquele mar de lágrimas que lhe brotava
do índice e desabava prateleiras abaixo tivesse um final trágico!
- Afinal era uma senhora com tanta classe!- comentavam todos os capítulos- Tanta classe, ou
tantas classes!
E, nessa inabalável verdade, todas as classes de palavras acompanhavam o lamento, num
verdadeiro movimento solidário com Dona Gramática:
- Oh!- lamentavam-se as interjeições- não pode ser! Ui! Como ela está tão abatida! O que
poderemos fazer para ajudar?
Os adjetivos corriam como doidos pelas páginas do índice, num pedido desesperado de auxílio
e diziam:
- Ela precisa de ajuda! Está triste, acabrunhada, inconsolável, amargurada, deprimida porque
foi abandonada, humilhada, vilipendiada e até um pouco perseguida!!!
- Precisamos de a ajudar-diziam os verbos- de a animar, trazer de volta, incentivar… Talvez a
consigamos distrair… Se a conseguíssemos ocupar… Enfim fazê-la sentir-se útil de novo. Voltar
a sorrir… Sentir-se amada!
- Claro! – ripostavam os nomes- todos precisam de Amor, de carinho, de companhia de
consolo, de distração. Não bastam as coisas materiais. Não basta ter uma estante. Não é
suficiente estar numa Biblioteca, em vez de ter sido arrumada num caixote qualquer!
- Não- comentavam os advérbios de negação- Não nos conformaremos!
E as narrativas procuravam soluções, as lendas caminhos, as descrições desdobravam-se em
procuras por páginas e páginas… As notícias ameaçavam autopublicar-se e os slogans
visionavam as imagens perfeitas para dar relevo à questão.
Dona Gramática, essa, continuava triste recordando cada vez mais o seu Amor! Outro como
ele não existia, com toda a certeza! Era ousado, frontal, impetuoso. Meigo e carinhoso no
amor mas enérgico no gesto e arrebatado em cada ideal sempre concretizado! Não havia
recurso expressivo a que não deitasse mão para lhe proporcionar infinitos momentos de
prazer! E conseguia empolgá-la no ritmo de cada anáfora, percorrer-lhe os capítulos com
metáforas, beijar-lhe cada página com alegorias, confundi-la com antíteses únicas,
percorrendo-lhe os caminhos mais esconsos com onomatopeias e hilariantes aliterações.
Depois, quando o ímpeto acalmava, aninhava-se no colo dela onde, em jeito de «repouso do
guerreiro» lhe sussurrava atrevidas enumerações, no seio das quais qualquer pleonasmo não
tinha a menor relevância… E ficavam ali, abandonados ao tempo e ao seu Amor, unidos,
entrelaçados, para não mais se perderem de vista. Mas, um dia, ele fora embora. Para sempre!
Outros passaram na tentativa de conquistar Dona Gramática, mas nenhum, mesmo nenhum se
assemelhava a ele… Depois, também não lhe agradava qualquer um. Talvez o que mais se
aproximasse fosse o Complemento Direto. Gostava dele, precisamente por isso: ser direto.
Mas faltava-lhe ardor e sensualidade. Ser demasiado direto também tem os seus quês. Já o
indireto não lhe agradava de todo. Tinha a mania das «indiretas» e era demasiado
inconveniente por ter de se andar sempre a perguntar ao verbo: a quem? Chegava-se a ele.
Mas «cheirava» a delação. Não. Definitivamente o indireto não!
Um dia, depois destas modernices que observava diariamente a saírem da «outra», a Nova
Gramática, deu de caras com o modificador. Francamente, até o achou simpático. Não sendo
demasiado bonito, era galanteador, o que agrada a qualquer mulher. Mas, após alguns dedos
de conversa, percebeu logo que não tinha a mínima graça. Era um «sensaborão», não marcava
presença, não se lhe sentia a falta e, quer ele estivesse ou não ali, nada mudava! Ou seja, nem
sequer fazia jus ao nome pois o modificador, não modificava nada! Era absolutamente
dispensável e nenhuma mulher deseja um homem assim… Não, depois de ter passado na sua
vida um certo circunstancial… Que, embora circunstancial, era sempre uma certeza de tornar a
sua vida num mundo de emoções.
Era dia catorze de fevereiro e ela para ali… Repentinamente, sentiu que uma carícia suave
como a brisa de uma tarde de verão lhe secou uma lágrima grossa que rolava já quase estante
abaixo… Levantou o olhar e encontrou outro olhar. Profundo, negro, enigmático. Tinha tanto
de esquivo como de avassalador. Dona Gramática estremeceu. Todas as interjeições
acordaram de supetão e gritavam simultaneamente: «Ai! Ui! Oh!», os verbos desataram a
conjugar-se atabalhoadamente, os adjetivos a flexionar-se apenas nos superlativos, nos
«íssimos» e nos «érrimos» ou nos muito… qualquer coisa! Dona Gramática sentiu uma
frenética vontade de gritar e corou no olhar intenso do outro que a fixava, sedutor… Recordou
outros tempos e atreveu-se:
- Como te chamas?
- Oblíquo- respondeu-lhe puxando-a para si num jeito que era mais do que uma promessa.
- És novo por aqui?
Não obteve resposta, porque ele a arrastava já, deslizando enviesadamente para um canto da
estante, onde começou a desfolhá-la sem rodeios. Gostou dele. Era decidido, enérgico, ousado
e meigo… Vieram-lhe à lembrança outros tempos, outros lugares. Bons. Muito bons!
- És atrevido!
- Não, sou imprescindível! Sem mim a tua vida já não vai fazer sentido.
Foi mesmo assim. E, como noutros tempos, Dona Gramática ficava muitas vezes num certo
desalinho, naquele amor escorregadio que só um oblíquo pode dar. A vantagem agora é que já
não temia que qualquer mão apressada a buscasse nas prateleiras da estante. Vendo bem as
coisas, até vivia mais descansada, rindo-se agora da outra, a Nova, que não parava num lufalufa que lhe recordava tempos idos.
E ela, ela vivia secretamente aquele grande amor. Um amor renovado, que uma velha dona
gramática conquistara num qualquer dia catorze de fevereiro quando já nada a fazia acreditar!
E vivem felizes para sempre, para o bem e para o mal, na saúde e na doença até que a morte
os separe…. O caruncho, visite embora algumas páginas de Dona Gramática, não afastou certo
oblíquo que continua a «deslizar» até lá!
- Gosto de mulheres maduras!- sussurra-lhe ao ouvido fazendo-a sempre corar de emoção.
Coisas do AMOR!
- Joaquim Jorge Silva Carvalho
"Lição de astronomia"
A Terra à volta do Sol:
Movimento de translação da Terra.
A Terra à volta de si própria:
Movimento de rotação da Terra.
Os meus olhos à volta de Ti:
Movimento de admiração da Terra.
- José Afonso de Castro Bastos (Pseudónimo – Albatroz)
"Amor"
Vem dos teus olhos
Um poema
Feito apenas duma
Palavra
Uma palavra
Onde cabe um poema
Do tamanho
Dos teus olhos
Numa palavra
Os teus olhos
Estão escritos
No poema
O poema afinal
Dos teus olhos
Escritos
Numa palavra
- Maria do Carmo Domingues Lopes
"Amor Arrebatador em qualquer lugar"
Coração Vermelho Cheio de Amor
Existente e Refletido em Várias Formas e Símbolos
Nas Crenças e Religiões Existentes no Mundo
Nas Flores e Ramos de Todas as Cores e Feitios
Nos Doces e Bombons que Deliciam a Mente
Nos Vinhos e Espumantes que Aquecem a Boca
Nas Molduras com Coração Preenchidas por Dentro
Nos Livros, Textos e Poesias Declamadas em Voz Alta ou em Silêncio
Na Música Clássica, Popular e Erudita, com Blues, Country ou Eletrónica
Nos Meios Audio-Visuais, Rádio, FacebooK e Twitter
Em Salas de Exposições de Todo o Tipo de Arte
Previsto nos Signos e na Vida do Dia-a-Dia
Que Leva Pessoas a Mudar de País, Cidade, Aldeia ou Vila
Que se Encontra em Muitas Decorações e Porcelanas
Em Joias de Ouro ou Simplemente de Fantasia
Em Tecidos que Embelezam a Casa e o Corpo Humano
Em Perfumes e Colónias Com Diferentes Aromas
No Ar, Na Terra ou no Mar, Aonde não Existe Lugar?
Para o Amor Arrebatador Sem Igual.
- Maria Rodrigues Costa
"Frio"
Está frio. Está muito frio.
Está cada vez mais frio.
Mas não é frio comum, é um frio meu,
que só a mim me gela.
Surgem as memórias, uma e outra,
rápidas, como se de uma corrida se tratasse
e como se nada fosse, queimam uma a uma, um pouco do meu cérebro.
Queimam tudo aquilo que não deviam
e fazem-me sentir demais tudo aquilo que me mata.
Enchem o meu peito de um vento gélido, que revolve toda e qualquer fibra.
Antes, há muito tempo,
quando os dias eram feitos de cores fortes e fracas,
de calor e paisagens,
de sentimento...eu pensava.
Pensava no mundo, nas coisas,
em ti, em mim.
Agora, gosto de me deixar consumir pelo cansaço.
Sinto prazer pelo não-prazer de ser.
E sinto frio. Muito frio. Mas sinto-te a ti.
- Patrícia Isabel Monteiro Caneira
"Oxitocina”
É em tom de tristeza que te escrevo. Implorando mais uma vez para que a calma nos pertença.
Mostro sempre tanta raiva, tanta frieza quando estou contigo enquanto o meu coração
transborda de amor. Tens o dom de me fazer mostrar a loucura de que sou feita. Fui moldada
por dor e é só isso que te posso dar. Perdoa-me.
Tantas são as vezes em que te ouço calada apenas para não te mostrar todo o veneno que
corre em mim. Eu amo-te, nunca duvides. Mas nunca te vou dizer.
Não me condenes, a loucura tem-se apoderado de mim mais do que devia.
É nesses instantes, em que me afasto e desato a chorar que te amo mais. É nesses instantes
em que perguntas porque mostro tanto ódio que te amo mais. É nesses instantes em que toda
eu sinto e nada mostro que te amo mais.
O amor não tem de ser bonito para ser verdadeiro. Se causa dor é porque é real. Sem truques
nem ironias, o amor somos nós no estado mais cru e nu que existe. Despidos de ilusões e
fantasias.
De mãos salgadas e bocas feridas, de almas esfarrapadas e cabeças na lua. E não pertence a
todos, pois nem todos temos a ousadia de o agarrar cada vez que ele choca connosco numa
esquina.
Somos ousados. Temos sorte de ainda amarmos, nem sempre da melhor maneira, mas à nossa
maneira.
- Rebeca Pereira
S/ título
Os esquilos comem elefantes.
O carregador está na parede.
Os iraquianos morreram.
Sou um queijo.
Os escombros erguem-se para o chão.
A porta caiu.
Cabelo castanho.
O fogo arde.
Sou uma tartaruga ninja.
E foi assim que ele nasceu
Asa de frango.
Paz Mundial
amor não faz sentido.
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1.º Prémio António Monteiro de Aguiar Oliveira