SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES
Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução,
Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura
04 a 06 de Setembro de 2011
Centro de Convenções da Bahia
Salvador - BA
PERSONAGENS HOMOERÓTICAS FEMININAS EM CONTOS
BRASILEIROS DO INÍCIO E DO FIM DO SÉCULO XX
Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes*
Resumo: Em diferentes épocas, a sociedade modelou formas de conceber e tratar as questões
de gênero e de sexualidades e a produção literária parece ter acompanhado as transformações
socioculturais, problematizando esses aspectos na esfera diegética. Nesse sentido, as
personagens lésbicas, representadas na literatura, podem ser interpretadas se em sua
constituição ficcional, de acordo com contexto histórico, incorporam as perspectivas ideológicas
que podem ser reafirmadas ou transgredidas pelo texto literário. O objetivo principal deste
artigo é analisar a construção da personagem homoerótica feminina na literatura brasileira do
século XX, tomando por corpus dois contos publicados em diferentes períodos: no início do
século – ―História de gente alegre‖ (1910), de João do Rio –, e no fim – ―Família‖ (1997), de
Rubem Fonseca. Baseia-se nas discussões sobre a representação do homoerotismo na
literatura, a partir de Facco (2004), Barcellos (2006) e Silva (2007, 2009), sobre gênero,
sexualidade e identidade, a partir de Louro (2004) e Hall (2000).
Palavras-chave: Contos brasileiros; personagens lésbicas; história.
Reflexões iniciais
Exílio, omissão e punição foram destinos recorrentes às personagens
lésbicas na literatura brasileira. Mais notadamente no naturalismo, sujeitos
ficcionais com sexualidade excêntrica foram taxados de doentes, viciados e os
lugares por onde circulavam quase sempre eram ambientes de prostituição e
marginalidade, como é caso mais famoso de Léonie e Pombinha, em O cortiço.
Parece-nos que a primeira aparição de uma persona homoerótica
feminina em nossas letras ocorreu no século XVIII em um poema de Gregório
de Matos cujo mote já esclarece a temática: ―A uma dama que macheava
outras mulheres‖.
O termo ―macheava‖, é o pretérito imperfeito do verbo machear, que
admite, dentre outros, o sentido da designação do coito entre animais.
Podemos perceber que o uso do termo confere à relação lesbiana o aspecto
animalesco, como se Nise, por machear outras mulheres, fosse um animal, não
obstante esse era uma atitude muito recorrente na época: associar a
homoafetividade à doença e ao comportamento animal.
*
Aluno do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade, da Universidade
Estadual da Paraíba. Desenvolve pesquisa sobre o desejo homoerótico na contística brasileira
do século XX, sob orientação do Professor Dr. Antonio de Pádua Dias da Silva. E-mail:
[email protected].
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Nise, a referida dama, por quem o eu-lírico se apaixonou e não fora
correspondido, uma vez que a moça não se interessava por homens. O sujeito
poético expressa sua desventura para com a moça através de uma surpresa,
porque Nise era bela e não aparentava ser uma ―machona‖, os versos da
segunda estrofe demonstram essa ideia: ―a vista nunca repara/ no que dentro
da alma jaz/ e pois tão louca te traz/ que só por Damas suspiras/ não te amara,
se tu viras,/ Esse vício, a que te vás‖. (MATOS, 2002, p. 167, itálico nosso,
negrito do autor). É relevante perceber que o sujeito poético afirma que o
desejo lesbiano de Nise está na alma e portanto faz parte o âmago da persona,
ao mesmo tempo em que julga o desejo um vício (último verso citado) e sua
portadora, louca por ―suspirar‖ só por Damas.
Devemos lembrar que o poema é satírico e, portanto, alguém é criticado,
porém esse eu-lírico parece falar mais com tom de lamento, do que de raiva e
de desejo de ridicularização: ―mas como serei contente,/ se por mulheres se
sente,/ Que a nenhum homem te dás?‖. (p. 167, negrito do autor). O
descontentamento do sujeito poético se dá não somente pelo desprezo de
Nise, mas também pelo fato de, na visão dele, a moça estar desprezando a
própria beleza e assim desperdiçando-se ao entregar-se a outras damas.
Esse poema de Gregório de Matos representa uma situação inusitada,
uma vez que durante muito tempo a sexualidade da mulher fora sequer
reconhecida, ainda guardando o ranço do vitorianismo, como afirma Míccolis &
Daniel (1983 citado por Facco, 2004, p. 65): ―Para o vitorianismo, a mulher era
tão assexuada, que seria impossível pensar que ela pudesse querer praticar
um ato sexual com outra mulher, pois fazê-lo apenas com um homem já era
obrigação por demais penosa‖. E como padrões de determinadas épocas
deveriam ser reforçados de várias maneiras, a literatura inclusive reforçou esta
visão do sujeito feminino destituído de libido, no entanto Nise não somente
―macheava‖ outras damas, como também negava os homens e os esnobava
com sua beleza, apesar de seu desejo rechaçá-la à loucura e ao vício.
Essa
visão
discriminatória
para
com
a
homoafetividade
foi
preponderante nos séculos XVIII e XIX, mas a maioria das produções literárias
que abordam o desejo gay nasceu no século XX, período o qual Stuart Hall
(1997) afirmou que foi cenário de uma série de mudanças estruturais nas
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sociedades modernas. A globalização e as rupturas do conhecimento moderno
modificaram as paisagens culturais de etnia, nacionalidade, bem como as de
gênero e de sexualidades. Este período de transformações caracteriza o
contexto em que se situa o homoerotismo como um tema marcante no campo
social e, consequentemente, no campo literário.
Nosso objetivo é analisar dois contos brasileiros do século XX, cujo foco
é a relação homoerótica feminina, a saber, ―História de gente alegre‖, de João
do Rio, publicado em 1910 e o conto ―Família‖, de Rubem Fonseca, publicado
em 1997. Pretende-se, portanto analisar as obras, tomando as personagens
como unidade mínina de análise, elucidando as transformações sobre a
homoafetividade que ocorreram no início e no fim do século e a
problematização desse aspecto na literatura.
Apostamos na hipótese de que o texto literário é um espaço discursivo
em que se pode perceber uma mudança na maneira de falar sobre a lésbica e
de formar esse sujeito de sexualidade excêntrica na esfera ficcional e que essa
maneira peculiar de falar e construir esse sujeito possui implicações
ideológicas que refletem valores de determinados períodos, bem como o valor
do próprio texto diante da tarefa de enfrentar ou submeter-se aos dogmas
sociais. Nos próximos tópicos, nos debruçaremos sobre as obras, buscando
enfatizar essa nuance.
Personagens lésbicas no início do século XX
Não é preciso refletir muito para se imaginar como eram concebidas
socialmente as relações homoafetivas no início do século XX. Green & Polito
(2006) apresentam fontes históricas do período, dentre textos da área médica,
jurídica e até sociológica, que demonstram o estigma através do qual os
―invertidos‖, ―sodomitas‖ ou ―pederastas‖ (como eram chamados os indivíduos
de orientação homoafetiva) eram marcados negativamente como doentes e
criminosos.
De uma maneira geral, a descrição era caracterizada através de
estereótipos, acreditava-se que o ―homossexual‖ masculino era o sujeito
efeminado que ―se considera mulher‖ (p. 53), frequenta espaços associados à
prostituição e à vida noturna e exerce, na maioria das vezes, dentre uma série
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de profissões específicas como cabeleireiro, costureiro, cozinheiro, enfim,
atividades que, segundo os autores, até meados do século XX, dotados de
forte tendência machista, eram profissões femininas. (Cf. GREEN & POLITO,
2006, p. 43). É evidente que as afirmações são, aos olhos da atualidade,
anacrônicas diante do conhecimento que a sociedade passou a dispor sobre a
homoafetividade.
É natural que a literatura de ficção produzida na época incorpore as
concepções discriminatórias para a homossexualidade. Um dos escritores de
destaque, quando se trata da relação homoerotismo e literatura, é João Paulo
Alberto Coelho Barreto, ou simplesmente João do Rio, um de seus principais
pseudônimos e como gostava de ser chamado devido a sua grande paixão
pelo Rio de Janeiro; jornalista, no ramo literário foi cronista, teatrólogo e
contista. Tinha um estilo mordaz, sarcástico, vestia-se com espalhafato e
assumia abertamente sua homossexualidade, atraindo críticas severas dos
intelectuais conservadores de seu tempo.
A sua obra é referência pela singularidade com a qual representou o Rio
de Janeiro e pelas reportagens de extrema importância na belle èpoque do
Brasil República, além, claro, pelo autor se tratar de uma das primeiras
personalidades a se assumir homossexual, o que, em seus textos, parece ser
paradoxal, haja vista o estigma com o qual as personagens ―sodomitas‖ de
seus contos são marcadas.
Um dos contos do autor que abordam de maneira central a temática
homoerótica é ―História de gente alegre‖, publicado em 1910, na coletânea
Dentro da noite, sendo republicado em antologias que se preocuparam em
reunir narrativas sobre a homoafetividade, como Histórias do amor maldito
(1967), selecionada por Gasparino Damata e a recente Entre nós (2007),
organizada por Luiz Ruffato.
O conto parte de um diálogo entre dois personagens que sentam à mesa
para um jantar de luxo, o narrador descreve com detalhes o local e seus
freqüentadores, há um interlocutor, o personagem barão de Belfort, com quem
o sujeito do enunciado estabelece o diálogo que contará a estória, que será o
centro da narrativa, das duas personagens principais: Elsa e Elisa, conhecidas
da corte pela vida pública de prostituição e que eram alvo dos comentários do
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momento porque a primeira havia falecido na madrugada do mesmo dia ao
momento do jantar. O barão de Belfort, que sabia de todo o envolvimento entre
as duas, passa a ser o narrador do conto, evidenciando a vida das duas
personagens, emitindo uma série de considerações discriminatórias a respeito
da homoafetividade.
A personagem Elsa, que morrera, é mencionada pelo narrador sempre a
enfatizar sua beleza, era uma prostituta muito requisitada pelos homens, mas,
segundo o barão, naquela noite, ―olhava-a, com seu olhar de morta a Elisa, a
interessante Elisa‖ (RIO, 1967, p. 42). Já a descrição da personagem Elisa nos
transmite a imagem de um ser inferior, conforme o ponto de vista do discurso
do personagem:
Elisa é um tipo talvez normal nesse ambiente. Tem os cabelos cortados, usa
eternamente um gorro de lontra. [...] É feia, não deve agradar aos homens, mas
presta-se a todos os pequenos serviços dessas damas [...] dizem-na com todos
os vícios, desde o abuso do éter até o unissexualismo. Ora, a Elisa com os
seus dois olhos mortos e velados que olhava Elsa, a Elsa sentia uma
extraordinária repugnância, um nojo em que havia medo ao mais simples
contato. Elisa sorria, a Elisa que está sempre nesses lugares, sem colete com
o seu corpo de andrógeno morto. (RIO, 1967, p. 42, grifos nossos).
Observemos que há no fragmento uma série de adjetivos que são
empregados de maneira negativa: a personagem é configurada como feia e
dada a práticas que vão do uso do éter ao ―unissexualismo‖, que dizia respeito,
na época, dentre outros termos, a prática de relações sexuais entre pessoas do
mesmo sexo. É importante destacar que o barão afirma que essa prática era
um vício do qual sofria a personagem Elisa que, não obstante, possui corpo de
―andrógeno morto‖. Portanto, vemos que o sujeito lésbico, nesse conto, é
representado de maneira negativa, enfatizando a discriminação e a homofobia.
Entre os olhares de Elisa, Elsa termina cedendo: ―No fim, Elsa pálida e
ardente dizia: ‗Viens, mon chéri, que jê te baise!‘ e mordia raivosamente o
pescoço da Elisa‖ (p. 45). A cena de carícias era uma afronta a todos que
estavam à festa e o barão de Belfort deixa evidente a apreciação do ato: ―Viase a repugnância, a raiva com que ela fazia a cena de Lesbos [...] a ceia
acabou em espetáculo [...]‖ (p. 45). No conto, a homossexualidade adquire as
feições que a moral e até mesmo a ciência da época definiam. Ao finalizar os
carinhos públicos, Elsa e Elisa saem para o quarto, segundo a narração, às
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2h30min, ao que o interlocutor do barão exclama ―Que horror!‖ (p. 45). Às 5h
da manhã, na pensão onde as moças dormiram, todos acordam apavorados
com gritos que vinham do quarto delas, ao entrar:
Um frasco de éter aberto empestava o ambiente. [...] Elisa estava de joelhos à
beira da cama. Os braços pendiam como dois tentáculos cortados.
Inteiramente nua, o corpo divino lívido, os cabelos negros amarrados ao alto
como um casco de ébano, Elsa d‘Aragon, as pernas em compasso, a face
contraída, ainda sentada agarrava com as duas mãos numa crispação atroz, a
cabeça da Elisa. [...] Elsa estava bem morta, o corpo já frio. Devia ter havido
luta, resistência de Elsa, triunfo da mulher loura e por fim sem fim até a morte,
enquanto a outra se estorcia, apertava-a, arrancava-lhe os cabelos,
machucava-lhe o rosto — aquele horror. Elsa entrara no nada debatendo-se,
vítima de um suplício diabólico, mas, no último espasmo, as suas mãos
agarram a assassina. (RIO, 1967, p. 46).
O desfecho trágico, nesse conto, envolvendo personagens homoeróticas
é uma forma de reforçar ainda mais a negatividade instaurada no discurso do
narrador. Devemos ressaltar que apesar do uso excessivo de éter e de bebida
alcoólica entre as personagens, Elsa, para o barão de Belfort, foi ―vítima de um
suplício diabólico‖, isto é, a relação sexual entre ambas teria sido o motivo da
morte dela. Assim, segundo a linguagem do conto de João do Rio, a relação
homossexual era um vício e aqueles que a praticavam sofriam duras
conseqüências: Elsa faleceu e Elisa ―seguiu horas depois para o hospício,
babando e estertorando‖. Morte e loucura, estas são as penas para aqueles
que escolheram romper com a ordem convencional da sexualidade na
sociedade representada, reforçando e incorporando as concepções negativas
para a homossexualidade difundidas no início do século XX.
No fim do século: personagens lésbicas, subversão e homparentalidades
Muitas transformações ocorreram da década de 1910 até 1990, os
modos de vida transformaram-se radicalmente e os sujeitos homoeróticos já
ousam dizer o nome e reivindicar seus espaços. A década de 1990 foi, a nosso
ver, no que diz respeito à questão homossexual na sociedade brasileira, um
marco pela união entre a militância e o mercado.
A inserção do público homoerótico no mercado, ocasionou o aumento
das publicações de periódicos direcionados aos indivíduos gays, ou mesmo o
surgimento de novos periódicos, como a Femme, a G Magazine e a extinta e
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mais sofisticada revista gay brasileira Sui Generis. Foi nesse período que se
forjou a sigla GLS – abreviação para gays, lésbicas e simpatizantes, e a partir
dessa abreviação foram rotulados muitos produtos culturais e comerciais
destinados a esse público. As Edições GLS surgiram nesse período,
publicando livros de ficção e de ensaio exclusivamente voltados para a
temática gay. Em 1997 foi realizada a primeira parada GLBT (a abreviação foi
logo modificada para Gay, Lésbica, Bissexual e Transgênero), que teve suas
versões subsequentes, arrastando multidões pela capital paulista.
As relações e sujeitos homoeróticos adquiriram, assim, maior projeção e
no campo literário, isso se refletiu no aumento de publicações de temática gay.
Os anos 90 também oportunizaram uma aparição maior de personagens gays
na televisão, sobretudo nas telenovelas da Rede Globo. No Brasil e no mundo
essa união entre militância e mercado fez a literatura gay se expandir em
produção e em vendas.
Entendemos, assim, que a partir do momento em que o mercado se
abriu para o consumo de um público gay, a produção da literatura homoerótica
aumenta de maneira considerável; vemos editoras publicando coletâneas de
contos e antologias poéticas de textos que abordam a homoafetividade,
coleções ou selos editoriais como a ―Aletheia‖, da editora Brasiliense que só
possui textos literários com enfoque no amor entre mulheres. Desse modo, o
fim do século XX marca a produção da literatura de expressão gay com um
aumento quantitativo, e consequentemente diversificando a representação
homoafetiva na literatura.
No rol de escritores contemporâneos, Rubem Fonseca se destaca por
sua produção literária diversificada e de caráter original. Contista e romancista,
o autor é conhecido pelas abordagens polêmicas e inusitadas nas situações
representadas em suas obras. Na antologia Histórias de amor (1997), o conto
―Família‖, dá vida a personagem Dora, moça de família, orfã de mãe e educada
em colégio interno de freiras; a relação entre a personagem e o pai, Ernestino,
é um dos pontos de tensão da narrativa, que nos é transmitida em terceira
pessoa.
O narrador conta que Dora, aos seis anos fora estudar no colégio
interno, vendo o pai apenas aos domingos. Os primeiros meses de vida na
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escola foram imenso tormento para garota que chorava todos os dias, no
entanto, com o tempo ela fora aprendendo a gostar do internto e dos rituais
católicos, boa parte da obra é preocupada em descrever com detalhes o dia-adia da protagonista na escola, com sua farda de saia rodada azul marinho e
blusa azul-claro.
A vigilância e o pudor dominavam as ações na escola como fica evidente
pela descrição da hora do banho:
As alunas tomavam banho em boxes abertos, vestidas com uma
camisola de algodão sem mangas e sem gola. Quando terminavam,
uma freira colocava uma toalha aberta na frente do boxe para a aluna
poder tirar a camisola e se enxugar sem que a sua nudez fosse vista;
depois a aluna punha um roupão e subia para o dormitório, se curvava
ao lado da sua cama e vestia meio escondida o uniforme. (FONSECA,
2004, p. 626).
Tamanho era o cuidado para com a nudez que a única vestimenta sem
mangas e sem gola usada no colégio era a camisola de banho; apesar da
repressão, Dora fazia tudo com boa vontade, uma vez que as regras foram
muito bem internalizadas pela menina, sendo parte do cotidiano.
No colégio, a protagonista conheceu Eunice, sua melhor amiga com qual
possuía intimidades mal-vistas pelas freiras: ―Sempre que possível ficavam de
mãos dadas, cochichando e rindo. As freiras chamavam tal comportamento de
bêtise e procuravam contê-las, mas sem recriminá-las por isso‖. (FONSECA,
2004, p. 626). O termo francês, ―bêtise‖, que significa estupidez era a palavra
usada para rechaçar o comportamento das personagens, que iria muito além
da amizade: ―Quando o curso ginasial terminou elas se abraçaram chorando e
disseram que nunca deixariam de se amar.‖ (FONSECA, 2004, p. 626).
Adultas, Eunice e Dora, cursaram Direito e, depois de formadas,
passaram a advogar juntas ―causas pertinentes ao direito da família‖ (p. 627),
às vezes, Dora dormia na casa de Eunice ao que o pai reclamava por deixá-lo
sozinho com a empregada.
A tensão entre a protagonista e o pai, a que nos referimos
anteriormente, residia no fato de Ernestino sonhar que a filha lhe desse um
neto homem, ―que com o tempo assumisse os negócios e continuasse a
tradição da família‖. (p. 627)
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Todavia, a protagonista recusava todos os pretendentes, o que
entristecia o pai que com o tempo descobrira uma grave doença neurológica
que lhe tomaria o fôlego de vida. Quando soube da enfermidade, o pai afirmou
que não morreria antes de ver a filha casada e com um filho, a fez prometer-lhe
que não o deixaria morrer sem ter alegria de ver o neto, nesse dia, Dora foi
dormir na casa de Eunice:
[...] as duas fizeram amor com um ardor muito intenso. [...] Depois,
Dora contou a Eunice a conversa que tivera com o pai, acrescentando
que ele estava cada vez mais obstinado em seu desejo de vê-la
casada e ter um neto. As duas permaneceram o resto da noite
tomando vinho branco e falando desse assunto, e da frustração de não
poder morar na mesma casa, acordar juntas, cozinhar, viajar, viver
juntas o tempo todo das suas vidas, serem as duas uma família.
(FONSECA, 2004, p. 628).
Nessa altura da narrativa, a relação lesbiana é explicitada pelo narrador,
bem como o sentimento de frustração das personagens por serem impedidas
de constituírem família juntas. O tom desse fragmento do texto, parece mesmo
soar como uma reivindicação dos direitos das minorias sexuais.
Ernestino foi definhando cada vez mais, não conseguia mais andar e
precisou dos cuidados de um enfermeiro, a angústia da filha aumentava ao ver
o sofrimento do pai:
O passatempo preferido de Ernestino, em casa ou quando ele saia com
Dora em sua cadeira de rodas para passear na praça, era interrogar a
filha sobre os seus pretendentes e escolher o nome que o neto teria.
Dora participava dessas conversas tentando, manter a mesma
paciência dos seus tempos de colégio interno, mas não conseguia
deixar de se sentir exausta e infeliz, pois o pai sempre terminava a
conversa dizendo que apenas esperava ela se casar e ter um filho para
morrer em paz. (FONSECA, 2004, p. 628).
É relevante ressaltar que em nenhum momento a personagem ousa
enfrentar o pai ou decepcioná-lo diretamente, haja vista o estado patológico
deste e o sofrimento dele diante da espera do casamento; Dora estava em um
dilema: deveria casar-se e engravidar para satisfazer as vontades do pai ou
encontrar outra maneira de fazê-lo morrer em paz sem ferir a sua subjetividade
lesbiana?
É então que uma ideia surge: ―A morte era sempre uma bênção para os
doentes desenganados‖. (p. 628) Assim, o enfermeiro sai de férias e, ao invés
de contratar outro, a própria Dora decidiu cuidar do pai; passava todos os dias
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e noites ao lado dele o que o emocionou bastante, ainda mais porque ela
prometera que assim que ele melhorasse um pouco, se casaria e teria um filho.
Passado um mês, Ernestino morreu de uma ―súbita insuficiência respiratória‖
(p. 628). O que nos leva a crer que a filha assassinara o pai, para libertá-lo da
espera e libertar-se da obrigação de casar com um homem e ter um filho.
O luto de Dora foi longo e muito doloroso, mas o conto tem desfecho
feliz: ―Dora e Eunice foram morar juntas e adotaram um menino a quem deram
o nome de Ernestino. O menino cresceu e as pessoas, os novos amigos que
elas fizeram, diziam que ele era a cara da mãe‖ (FONSECA, 2004, p. 628).
As personagens lésbicas dessa obra trazem uma perspectiva bastante
contemporânea dos modos de vida homoafetivos. Elas, desde muito novas,
expressam amor e fraternidade uma pela outra. A amizade é o primeiro vínculo
afetivo que com o passar do tempo transforma-se em uma parceria
homoerótica duradoura. A constituição da família pelas personagens, a adoção
e a questão da homoparentalidade são questões que se apresentavam ainda
de maneira muito singela na década de 1990, o que denuncia o caráter
subversivo do conto.
O próprio título já aponta a questão da família, mas só no desfecho é
que essa família de fato vem ser trazida à tona por completo: a
homoparentalidade é uma ruptura no modelo de família tradicional, e o conto
constrói uma visão positivo-afirmativa dessa ruptura como uma possibilidade
bem sucedida, uma quebra que desemboca em um fator positivo e de
libertação, como afirma Barcellos (2006), o homoerotismo ―como transgressão
social, demolição das barreiras entre classes, portanto libertação do indivíduo‖
(FERNANDEZ citado por BARCELLOS, 2006: 135).
Essa libertação se dá, inclusive, na atitude da personagem Dora ao
assassinar o pai. Dessa forma, é construída a ideia de que toda barreira
imposta à relação lesbiana de Dora e Eunice deveria ser derrubada, ainda que
através de meios pouco lícitos.
É possível perceber que o comportamento das personagens não se
pauta ou se associa à imagem estereotipada, descartando pressupostos
discriminatórios e preconceituosos, pelo contrário, há uma aceitação e também
uma reivindicação de igualdade para com as questões homoeróticas. Dessa
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forma, é possível perceber a considerável mudança na abordagem da relação
homoafetiva e na construção da personagem lésbica.
Reflexões Finais
Diante dessas duas perspectivas distintas de construir a personagem
lesbiana, faz se necessário sumarizar algumas considerações. O contexto de
produção das duas narrativas é dividido por uma longa lacuna temporal. Se
levarmos em consideração a afirmação de Gagnon (2006, p. 67) de que ―A
medida que surge uma nova geração, a cultura sexual sentida ou vivenciada e
o cenário sexual do passado tornam-se mais distantes‖ e de que a linguagem é
parte irredutível da vida social, não há como negar que é previsível que a
literatura acompanhe as transformações sociais na medida em que estas se
aproximam de uma maior liberdade sexual ao fim do século XX (Cf. GIDDENS,
1993; HALL, 1997).
Conforme podemos perceber nas paráfrases e discussões dos textos
literários, o mais recente, ―Família‖, passa a se libertar do jugo condenatório e a
narrar o desejo gay de maneira mais aberta e positivo-afirmativa. No início do
século XX, temos Elsa e Elisa, tendo seu desejo interpretado pelo narrador
como mero interesse sexual, como um vício, em um ambiente de prostituição,
já no fim do século, Dora e Eunice, lutam para ficar juntas, a homoafetividade
passa a envolver muito mais que só um momento sexual, passa a gerar um
modo de vida, que para ser vivido de maneira liberta exige sacrifícios mortais
como o assassinato do pai da protagonista.
A maneira de construir essas personagens também é singular de suas
distinções. Desde o século XIX, cultivou-se a crença de que toda sodomita
possuía comportamento e aparência masculinizada, não se admitia beleza
nessas mulheres, assim, Elisa, do conto de João do Rio é um modelo de
estereótipo de como a mulher lésbica era pensada naquela época: cabelos
curtos, vestia-se como homem, e saciava seus desejos em lugares de
prostituição, Elsa, na perspectiva do conto, fora apenas uma vítima do ―suplício
diabólico‖ provocado por Elisa. No conto de Rubem Fonseca as personagens
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não são construídas com base em estereótipos, nem sua subjetividade
reprimida ou negativizada.
A construção dos corpos dessas personagens, se estereotipados ou não
é aspecto importante do ponto de vista cultural. Segundo Butler (2002, p. 163
citado por Louro, 2004, p. 79) os corpos ―carregam discursos como parte de
seu próprio sangue‖. Considerando-se os corpos de papel inscritos no conto,
essa afirmação é pertinente, uma vez que os corpos, nesse caso, das
personagens se inscrevem linguisticamente através de suas ações, que
significam, em um âmbito maior, discursos envolvidos em relações de poder.
Ainda conforme Louro (2004, p. 82) os corpos são regulados, a
sociedade é moldada através de discursos que impõem ―limites de sanidade e
legitimidade, moralidade ou coerência‖ e dessa forma os corpos são marcados
culturalmente, assim como acontece com as personagens de João do Rio. No
entanto, os corpos nem sempre obedecem às normas pré-estabelecidas, pelo
contrário, elas são desestabilizadas, os sujeitos deixam de se conformarem
com a ordem vigente, escapam àquela via planejada, subvertem as fronteiras
constantemente vigiadas dos gêneros e da sexualidade, extraviam-se por
outros caminhos, como ocorre com Dora e Eunice.
Nesse sentido, a literatura possui um papel importante na manutenção
ou quebra de determinadas visões culturais para com a sexualidade. Daí
chegarmos à discussão postulada por Silva (2007 e 2009) de que um grande
agrupamento textos literários produzidos em diferentes épocas constituem a
literatura gay, subgênero literário em que se lê o desejo e vivências
homoeróticas, podemos ainda acrescentar em que se problematizam aspectos
dos modos de vida dos sujeitos homoafetivos de acordo com cada contexto de
produção. Logo, é possível concluir que apesar de distintos em suas
abordagens, os contos aqui discutidos trazem à tona, de acordo com o
contexto de produção, os modos de vida gays.
É esse aspecto que essas narrativas enfatizam, lançando mão de
estratégias narrativas subjacentes à época de sua publicação, porque apesar
de o conto de João do Rio trazer uma perspectiva negativa do desejo
homoerótico, no período de publicação dele a homoafetividade era um pecado
inefável, isto é, que não se podia exprimir pela palavra e, assim, a obra
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Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução,
Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura
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também possui caráter de ruptura, essa, talvez seja uma das principais
características da literatura de expressão gay, obras que rompem com padrões
estabelecidos.
Ao percebermos que há uma evolução na maneira de construir as
personagens lésbicas, da abordagem preconceituosa à aceitação, vemos de
maneira otimista que a produção literária parece promover a temática da
diversidade sexual. Em outro trabalho (Cf. Fernandes, 2009), verificamos como
a literatura de temática gay tem crescido no mercado brasileiro desde a década
de 1980, o que, com efeito, denuncia também mudanças na maneira de o
mercado se estruturar e de avançar quanto ao apoio e à visibilidade da
subjetividade homoerótica.
Temos consciência da sutil contribuição de nossa análise diante de um
tema tão abrangente e complexo, resta acompanhar a evolução dessas obras e
continuar nos debruçando sobre esses discursos que rompem com estigmas e
tornam gays e lésbicas protagonistas de suas histórias, trazendo-as à tona e
revelando um mundo até então obscurecido e discriminado.
Referências
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Lúcia.
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gay. In.: SILVA, A. P. D. (Org.) Aspectos da literatura gay. João Pessoa:
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personagens homoeróticas femininas em contos brasileiros