SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA PERSONAGENS HOMOERÓTICAS FEMININAS EM CONTOS BRASILEIROS DO INÍCIO E DO FIM DO SÉCULO XX Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes* Resumo: Em diferentes épocas, a sociedade modelou formas de conceber e tratar as questões de gênero e de sexualidades e a produção literária parece ter acompanhado as transformações socioculturais, problematizando esses aspectos na esfera diegética. Nesse sentido, as personagens lésbicas, representadas na literatura, podem ser interpretadas se em sua constituição ficcional, de acordo com contexto histórico, incorporam as perspectivas ideológicas que podem ser reafirmadas ou transgredidas pelo texto literário. O objetivo principal deste artigo é analisar a construção da personagem homoerótica feminina na literatura brasileira do século XX, tomando por corpus dois contos publicados em diferentes períodos: no início do século – ―História de gente alegre‖ (1910), de João do Rio –, e no fim – ―Família‖ (1997), de Rubem Fonseca. Baseia-se nas discussões sobre a representação do homoerotismo na literatura, a partir de Facco (2004), Barcellos (2006) e Silva (2007, 2009), sobre gênero, sexualidade e identidade, a partir de Louro (2004) e Hall (2000). Palavras-chave: Contos brasileiros; personagens lésbicas; história. Reflexões iniciais Exílio, omissão e punição foram destinos recorrentes às personagens lésbicas na literatura brasileira. Mais notadamente no naturalismo, sujeitos ficcionais com sexualidade excêntrica foram taxados de doentes, viciados e os lugares por onde circulavam quase sempre eram ambientes de prostituição e marginalidade, como é caso mais famoso de Léonie e Pombinha, em O cortiço. Parece-nos que a primeira aparição de uma persona homoerótica feminina em nossas letras ocorreu no século XVIII em um poema de Gregório de Matos cujo mote já esclarece a temática: ―A uma dama que macheava outras mulheres‖. O termo ―macheava‖, é o pretérito imperfeito do verbo machear, que admite, dentre outros, o sentido da designação do coito entre animais. Podemos perceber que o uso do termo confere à relação lesbiana o aspecto animalesco, como se Nise, por machear outras mulheres, fosse um animal, não obstante esse era uma atitude muito recorrente na época: associar a homoafetividade à doença e ao comportamento animal. * Aluno do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade, da Universidade Estadual da Paraíba. Desenvolve pesquisa sobre o desejo homoerótico na contística brasileira do século XX, sob orientação do Professor Dr. Antonio de Pádua Dias da Silva. E-mail: [email protected]. SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA Nise, a referida dama, por quem o eu-lírico se apaixonou e não fora correspondido, uma vez que a moça não se interessava por homens. O sujeito poético expressa sua desventura para com a moça através de uma surpresa, porque Nise era bela e não aparentava ser uma ―machona‖, os versos da segunda estrofe demonstram essa ideia: ―a vista nunca repara/ no que dentro da alma jaz/ e pois tão louca te traz/ que só por Damas suspiras/ não te amara, se tu viras,/ Esse vício, a que te vás‖. (MATOS, 2002, p. 167, itálico nosso, negrito do autor). É relevante perceber que o sujeito poético afirma que o desejo lesbiano de Nise está na alma e portanto faz parte o âmago da persona, ao mesmo tempo em que julga o desejo um vício (último verso citado) e sua portadora, louca por ―suspirar‖ só por Damas. Devemos lembrar que o poema é satírico e, portanto, alguém é criticado, porém esse eu-lírico parece falar mais com tom de lamento, do que de raiva e de desejo de ridicularização: ―mas como serei contente,/ se por mulheres se sente,/ Que a nenhum homem te dás?‖. (p. 167, negrito do autor). O descontentamento do sujeito poético se dá não somente pelo desprezo de Nise, mas também pelo fato de, na visão dele, a moça estar desprezando a própria beleza e assim desperdiçando-se ao entregar-se a outras damas. Esse poema de Gregório de Matos representa uma situação inusitada, uma vez que durante muito tempo a sexualidade da mulher fora sequer reconhecida, ainda guardando o ranço do vitorianismo, como afirma Míccolis & Daniel (1983 citado por Facco, 2004, p. 65): ―Para o vitorianismo, a mulher era tão assexuada, que seria impossível pensar que ela pudesse querer praticar um ato sexual com outra mulher, pois fazê-lo apenas com um homem já era obrigação por demais penosa‖. E como padrões de determinadas épocas deveriam ser reforçados de várias maneiras, a literatura inclusive reforçou esta visão do sujeito feminino destituído de libido, no entanto Nise não somente ―macheava‖ outras damas, como também negava os homens e os esnobava com sua beleza, apesar de seu desejo rechaçá-la à loucura e ao vício. Essa visão discriminatória para com a homoafetividade foi preponderante nos séculos XVIII e XIX, mas a maioria das produções literárias que abordam o desejo gay nasceu no século XX, período o qual Stuart Hall (1997) afirmou que foi cenário de uma série de mudanças estruturais nas SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA sociedades modernas. A globalização e as rupturas do conhecimento moderno modificaram as paisagens culturais de etnia, nacionalidade, bem como as de gênero e de sexualidades. Este período de transformações caracteriza o contexto em que se situa o homoerotismo como um tema marcante no campo social e, consequentemente, no campo literário. Nosso objetivo é analisar dois contos brasileiros do século XX, cujo foco é a relação homoerótica feminina, a saber, ―História de gente alegre‖, de João do Rio, publicado em 1910 e o conto ―Família‖, de Rubem Fonseca, publicado em 1997. Pretende-se, portanto analisar as obras, tomando as personagens como unidade mínina de análise, elucidando as transformações sobre a homoafetividade que ocorreram no início e no fim do século e a problematização desse aspecto na literatura. Apostamos na hipótese de que o texto literário é um espaço discursivo em que se pode perceber uma mudança na maneira de falar sobre a lésbica e de formar esse sujeito de sexualidade excêntrica na esfera ficcional e que essa maneira peculiar de falar e construir esse sujeito possui implicações ideológicas que refletem valores de determinados períodos, bem como o valor do próprio texto diante da tarefa de enfrentar ou submeter-se aos dogmas sociais. Nos próximos tópicos, nos debruçaremos sobre as obras, buscando enfatizar essa nuance. Personagens lésbicas no início do século XX Não é preciso refletir muito para se imaginar como eram concebidas socialmente as relações homoafetivas no início do século XX. Green & Polito (2006) apresentam fontes históricas do período, dentre textos da área médica, jurídica e até sociológica, que demonstram o estigma através do qual os ―invertidos‖, ―sodomitas‖ ou ―pederastas‖ (como eram chamados os indivíduos de orientação homoafetiva) eram marcados negativamente como doentes e criminosos. De uma maneira geral, a descrição era caracterizada através de estereótipos, acreditava-se que o ―homossexual‖ masculino era o sujeito efeminado que ―se considera mulher‖ (p. 53), frequenta espaços associados à prostituição e à vida noturna e exerce, na maioria das vezes, dentre uma série SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA de profissões específicas como cabeleireiro, costureiro, cozinheiro, enfim, atividades que, segundo os autores, até meados do século XX, dotados de forte tendência machista, eram profissões femininas. (Cf. GREEN & POLITO, 2006, p. 43). É evidente que as afirmações são, aos olhos da atualidade, anacrônicas diante do conhecimento que a sociedade passou a dispor sobre a homoafetividade. É natural que a literatura de ficção produzida na época incorpore as concepções discriminatórias para a homossexualidade. Um dos escritores de destaque, quando se trata da relação homoerotismo e literatura, é João Paulo Alberto Coelho Barreto, ou simplesmente João do Rio, um de seus principais pseudônimos e como gostava de ser chamado devido a sua grande paixão pelo Rio de Janeiro; jornalista, no ramo literário foi cronista, teatrólogo e contista. Tinha um estilo mordaz, sarcástico, vestia-se com espalhafato e assumia abertamente sua homossexualidade, atraindo críticas severas dos intelectuais conservadores de seu tempo. A sua obra é referência pela singularidade com a qual representou o Rio de Janeiro e pelas reportagens de extrema importância na belle èpoque do Brasil República, além, claro, pelo autor se tratar de uma das primeiras personalidades a se assumir homossexual, o que, em seus textos, parece ser paradoxal, haja vista o estigma com o qual as personagens ―sodomitas‖ de seus contos são marcadas. Um dos contos do autor que abordam de maneira central a temática homoerótica é ―História de gente alegre‖, publicado em 1910, na coletânea Dentro da noite, sendo republicado em antologias que se preocuparam em reunir narrativas sobre a homoafetividade, como Histórias do amor maldito (1967), selecionada por Gasparino Damata e a recente Entre nós (2007), organizada por Luiz Ruffato. O conto parte de um diálogo entre dois personagens que sentam à mesa para um jantar de luxo, o narrador descreve com detalhes o local e seus freqüentadores, há um interlocutor, o personagem barão de Belfort, com quem o sujeito do enunciado estabelece o diálogo que contará a estória, que será o centro da narrativa, das duas personagens principais: Elsa e Elisa, conhecidas da corte pela vida pública de prostituição e que eram alvo dos comentários do SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA momento porque a primeira havia falecido na madrugada do mesmo dia ao momento do jantar. O barão de Belfort, que sabia de todo o envolvimento entre as duas, passa a ser o narrador do conto, evidenciando a vida das duas personagens, emitindo uma série de considerações discriminatórias a respeito da homoafetividade. A personagem Elsa, que morrera, é mencionada pelo narrador sempre a enfatizar sua beleza, era uma prostituta muito requisitada pelos homens, mas, segundo o barão, naquela noite, ―olhava-a, com seu olhar de morta a Elisa, a interessante Elisa‖ (RIO, 1967, p. 42). Já a descrição da personagem Elisa nos transmite a imagem de um ser inferior, conforme o ponto de vista do discurso do personagem: Elisa é um tipo talvez normal nesse ambiente. Tem os cabelos cortados, usa eternamente um gorro de lontra. [...] É feia, não deve agradar aos homens, mas presta-se a todos os pequenos serviços dessas damas [...] dizem-na com todos os vícios, desde o abuso do éter até o unissexualismo. Ora, a Elisa com os seus dois olhos mortos e velados que olhava Elsa, a Elsa sentia uma extraordinária repugnância, um nojo em que havia medo ao mais simples contato. Elisa sorria, a Elisa que está sempre nesses lugares, sem colete com o seu corpo de andrógeno morto. (RIO, 1967, p. 42, grifos nossos). Observemos que há no fragmento uma série de adjetivos que são empregados de maneira negativa: a personagem é configurada como feia e dada a práticas que vão do uso do éter ao ―unissexualismo‖, que dizia respeito, na época, dentre outros termos, a prática de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. É importante destacar que o barão afirma que essa prática era um vício do qual sofria a personagem Elisa que, não obstante, possui corpo de ―andrógeno morto‖. Portanto, vemos que o sujeito lésbico, nesse conto, é representado de maneira negativa, enfatizando a discriminação e a homofobia. Entre os olhares de Elisa, Elsa termina cedendo: ―No fim, Elsa pálida e ardente dizia: ‗Viens, mon chéri, que jê te baise!‘ e mordia raivosamente o pescoço da Elisa‖ (p. 45). A cena de carícias era uma afronta a todos que estavam à festa e o barão de Belfort deixa evidente a apreciação do ato: ―Viase a repugnância, a raiva com que ela fazia a cena de Lesbos [...] a ceia acabou em espetáculo [...]‖ (p. 45). No conto, a homossexualidade adquire as feições que a moral e até mesmo a ciência da época definiam. Ao finalizar os carinhos públicos, Elsa e Elisa saem para o quarto, segundo a narração, às SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA 2h30min, ao que o interlocutor do barão exclama ―Que horror!‖ (p. 45). Às 5h da manhã, na pensão onde as moças dormiram, todos acordam apavorados com gritos que vinham do quarto delas, ao entrar: Um frasco de éter aberto empestava o ambiente. [...] Elisa estava de joelhos à beira da cama. Os braços pendiam como dois tentáculos cortados. Inteiramente nua, o corpo divino lívido, os cabelos negros amarrados ao alto como um casco de ébano, Elsa d‘Aragon, as pernas em compasso, a face contraída, ainda sentada agarrava com as duas mãos numa crispação atroz, a cabeça da Elisa. [...] Elsa estava bem morta, o corpo já frio. Devia ter havido luta, resistência de Elsa, triunfo da mulher loura e por fim sem fim até a morte, enquanto a outra se estorcia, apertava-a, arrancava-lhe os cabelos, machucava-lhe o rosto — aquele horror. Elsa entrara no nada debatendo-se, vítima de um suplício diabólico, mas, no último espasmo, as suas mãos agarram a assassina. (RIO, 1967, p. 46). O desfecho trágico, nesse conto, envolvendo personagens homoeróticas é uma forma de reforçar ainda mais a negatividade instaurada no discurso do narrador. Devemos ressaltar que apesar do uso excessivo de éter e de bebida alcoólica entre as personagens, Elsa, para o barão de Belfort, foi ―vítima de um suplício diabólico‖, isto é, a relação sexual entre ambas teria sido o motivo da morte dela. Assim, segundo a linguagem do conto de João do Rio, a relação homossexual era um vício e aqueles que a praticavam sofriam duras conseqüências: Elsa faleceu e Elisa ―seguiu horas depois para o hospício, babando e estertorando‖. Morte e loucura, estas são as penas para aqueles que escolheram romper com a ordem convencional da sexualidade na sociedade representada, reforçando e incorporando as concepções negativas para a homossexualidade difundidas no início do século XX. No fim do século: personagens lésbicas, subversão e homparentalidades Muitas transformações ocorreram da década de 1910 até 1990, os modos de vida transformaram-se radicalmente e os sujeitos homoeróticos já ousam dizer o nome e reivindicar seus espaços. A década de 1990 foi, a nosso ver, no que diz respeito à questão homossexual na sociedade brasileira, um marco pela união entre a militância e o mercado. A inserção do público homoerótico no mercado, ocasionou o aumento das publicações de periódicos direcionados aos indivíduos gays, ou mesmo o surgimento de novos periódicos, como a Femme, a G Magazine e a extinta e SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA mais sofisticada revista gay brasileira Sui Generis. Foi nesse período que se forjou a sigla GLS – abreviação para gays, lésbicas e simpatizantes, e a partir dessa abreviação foram rotulados muitos produtos culturais e comerciais destinados a esse público. As Edições GLS surgiram nesse período, publicando livros de ficção e de ensaio exclusivamente voltados para a temática gay. Em 1997 foi realizada a primeira parada GLBT (a abreviação foi logo modificada para Gay, Lésbica, Bissexual e Transgênero), que teve suas versões subsequentes, arrastando multidões pela capital paulista. As relações e sujeitos homoeróticos adquiriram, assim, maior projeção e no campo literário, isso se refletiu no aumento de publicações de temática gay. Os anos 90 também oportunizaram uma aparição maior de personagens gays na televisão, sobretudo nas telenovelas da Rede Globo. No Brasil e no mundo essa união entre militância e mercado fez a literatura gay se expandir em produção e em vendas. Entendemos, assim, que a partir do momento em que o mercado se abriu para o consumo de um público gay, a produção da literatura homoerótica aumenta de maneira considerável; vemos editoras publicando coletâneas de contos e antologias poéticas de textos que abordam a homoafetividade, coleções ou selos editoriais como a ―Aletheia‖, da editora Brasiliense que só possui textos literários com enfoque no amor entre mulheres. Desse modo, o fim do século XX marca a produção da literatura de expressão gay com um aumento quantitativo, e consequentemente diversificando a representação homoafetiva na literatura. No rol de escritores contemporâneos, Rubem Fonseca se destaca por sua produção literária diversificada e de caráter original. Contista e romancista, o autor é conhecido pelas abordagens polêmicas e inusitadas nas situações representadas em suas obras. Na antologia Histórias de amor (1997), o conto ―Família‖, dá vida a personagem Dora, moça de família, orfã de mãe e educada em colégio interno de freiras; a relação entre a personagem e o pai, Ernestino, é um dos pontos de tensão da narrativa, que nos é transmitida em terceira pessoa. O narrador conta que Dora, aos seis anos fora estudar no colégio interno, vendo o pai apenas aos domingos. Os primeiros meses de vida na SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA escola foram imenso tormento para garota que chorava todos os dias, no entanto, com o tempo ela fora aprendendo a gostar do internto e dos rituais católicos, boa parte da obra é preocupada em descrever com detalhes o dia-adia da protagonista na escola, com sua farda de saia rodada azul marinho e blusa azul-claro. A vigilância e o pudor dominavam as ações na escola como fica evidente pela descrição da hora do banho: As alunas tomavam banho em boxes abertos, vestidas com uma camisola de algodão sem mangas e sem gola. Quando terminavam, uma freira colocava uma toalha aberta na frente do boxe para a aluna poder tirar a camisola e se enxugar sem que a sua nudez fosse vista; depois a aluna punha um roupão e subia para o dormitório, se curvava ao lado da sua cama e vestia meio escondida o uniforme. (FONSECA, 2004, p. 626). Tamanho era o cuidado para com a nudez que a única vestimenta sem mangas e sem gola usada no colégio era a camisola de banho; apesar da repressão, Dora fazia tudo com boa vontade, uma vez que as regras foram muito bem internalizadas pela menina, sendo parte do cotidiano. No colégio, a protagonista conheceu Eunice, sua melhor amiga com qual possuía intimidades mal-vistas pelas freiras: ―Sempre que possível ficavam de mãos dadas, cochichando e rindo. As freiras chamavam tal comportamento de bêtise e procuravam contê-las, mas sem recriminá-las por isso‖. (FONSECA, 2004, p. 626). O termo francês, ―bêtise‖, que significa estupidez era a palavra usada para rechaçar o comportamento das personagens, que iria muito além da amizade: ―Quando o curso ginasial terminou elas se abraçaram chorando e disseram que nunca deixariam de se amar.‖ (FONSECA, 2004, p. 626). Adultas, Eunice e Dora, cursaram Direito e, depois de formadas, passaram a advogar juntas ―causas pertinentes ao direito da família‖ (p. 627), às vezes, Dora dormia na casa de Eunice ao que o pai reclamava por deixá-lo sozinho com a empregada. A tensão entre a protagonista e o pai, a que nos referimos anteriormente, residia no fato de Ernestino sonhar que a filha lhe desse um neto homem, ―que com o tempo assumisse os negócios e continuasse a tradição da família‖. (p. 627) SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA Todavia, a protagonista recusava todos os pretendentes, o que entristecia o pai que com o tempo descobrira uma grave doença neurológica que lhe tomaria o fôlego de vida. Quando soube da enfermidade, o pai afirmou que não morreria antes de ver a filha casada e com um filho, a fez prometer-lhe que não o deixaria morrer sem ter alegria de ver o neto, nesse dia, Dora foi dormir na casa de Eunice: [...] as duas fizeram amor com um ardor muito intenso. [...] Depois, Dora contou a Eunice a conversa que tivera com o pai, acrescentando que ele estava cada vez mais obstinado em seu desejo de vê-la casada e ter um neto. As duas permaneceram o resto da noite tomando vinho branco e falando desse assunto, e da frustração de não poder morar na mesma casa, acordar juntas, cozinhar, viajar, viver juntas o tempo todo das suas vidas, serem as duas uma família. (FONSECA, 2004, p. 628). Nessa altura da narrativa, a relação lesbiana é explicitada pelo narrador, bem como o sentimento de frustração das personagens por serem impedidas de constituírem família juntas. O tom desse fragmento do texto, parece mesmo soar como uma reivindicação dos direitos das minorias sexuais. Ernestino foi definhando cada vez mais, não conseguia mais andar e precisou dos cuidados de um enfermeiro, a angústia da filha aumentava ao ver o sofrimento do pai: O passatempo preferido de Ernestino, em casa ou quando ele saia com Dora em sua cadeira de rodas para passear na praça, era interrogar a filha sobre os seus pretendentes e escolher o nome que o neto teria. Dora participava dessas conversas tentando, manter a mesma paciência dos seus tempos de colégio interno, mas não conseguia deixar de se sentir exausta e infeliz, pois o pai sempre terminava a conversa dizendo que apenas esperava ela se casar e ter um filho para morrer em paz. (FONSECA, 2004, p. 628). É relevante ressaltar que em nenhum momento a personagem ousa enfrentar o pai ou decepcioná-lo diretamente, haja vista o estado patológico deste e o sofrimento dele diante da espera do casamento; Dora estava em um dilema: deveria casar-se e engravidar para satisfazer as vontades do pai ou encontrar outra maneira de fazê-lo morrer em paz sem ferir a sua subjetividade lesbiana? É então que uma ideia surge: ―A morte era sempre uma bênção para os doentes desenganados‖. (p. 628) Assim, o enfermeiro sai de férias e, ao invés de contratar outro, a própria Dora decidiu cuidar do pai; passava todos os dias SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA e noites ao lado dele o que o emocionou bastante, ainda mais porque ela prometera que assim que ele melhorasse um pouco, se casaria e teria um filho. Passado um mês, Ernestino morreu de uma ―súbita insuficiência respiratória‖ (p. 628). O que nos leva a crer que a filha assassinara o pai, para libertá-lo da espera e libertar-se da obrigação de casar com um homem e ter um filho. O luto de Dora foi longo e muito doloroso, mas o conto tem desfecho feliz: ―Dora e Eunice foram morar juntas e adotaram um menino a quem deram o nome de Ernestino. O menino cresceu e as pessoas, os novos amigos que elas fizeram, diziam que ele era a cara da mãe‖ (FONSECA, 2004, p. 628). As personagens lésbicas dessa obra trazem uma perspectiva bastante contemporânea dos modos de vida homoafetivos. Elas, desde muito novas, expressam amor e fraternidade uma pela outra. A amizade é o primeiro vínculo afetivo que com o passar do tempo transforma-se em uma parceria homoerótica duradoura. A constituição da família pelas personagens, a adoção e a questão da homoparentalidade são questões que se apresentavam ainda de maneira muito singela na década de 1990, o que denuncia o caráter subversivo do conto. O próprio título já aponta a questão da família, mas só no desfecho é que essa família de fato vem ser trazida à tona por completo: a homoparentalidade é uma ruptura no modelo de família tradicional, e o conto constrói uma visão positivo-afirmativa dessa ruptura como uma possibilidade bem sucedida, uma quebra que desemboca em um fator positivo e de libertação, como afirma Barcellos (2006), o homoerotismo ―como transgressão social, demolição das barreiras entre classes, portanto libertação do indivíduo‖ (FERNANDEZ citado por BARCELLOS, 2006: 135). Essa libertação se dá, inclusive, na atitude da personagem Dora ao assassinar o pai. Dessa forma, é construída a ideia de que toda barreira imposta à relação lesbiana de Dora e Eunice deveria ser derrubada, ainda que através de meios pouco lícitos. É possível perceber que o comportamento das personagens não se pauta ou se associa à imagem estereotipada, descartando pressupostos discriminatórios e preconceituosos, pelo contrário, há uma aceitação e também uma reivindicação de igualdade para com as questões homoeróticas. Dessa SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA forma, é possível perceber a considerável mudança na abordagem da relação homoafetiva e na construção da personagem lésbica. Reflexões Finais Diante dessas duas perspectivas distintas de construir a personagem lesbiana, faz se necessário sumarizar algumas considerações. O contexto de produção das duas narrativas é dividido por uma longa lacuna temporal. Se levarmos em consideração a afirmação de Gagnon (2006, p. 67) de que ―A medida que surge uma nova geração, a cultura sexual sentida ou vivenciada e o cenário sexual do passado tornam-se mais distantes‖ e de que a linguagem é parte irredutível da vida social, não há como negar que é previsível que a literatura acompanhe as transformações sociais na medida em que estas se aproximam de uma maior liberdade sexual ao fim do século XX (Cf. GIDDENS, 1993; HALL, 1997). Conforme podemos perceber nas paráfrases e discussões dos textos literários, o mais recente, ―Família‖, passa a se libertar do jugo condenatório e a narrar o desejo gay de maneira mais aberta e positivo-afirmativa. No início do século XX, temos Elsa e Elisa, tendo seu desejo interpretado pelo narrador como mero interesse sexual, como um vício, em um ambiente de prostituição, já no fim do século, Dora e Eunice, lutam para ficar juntas, a homoafetividade passa a envolver muito mais que só um momento sexual, passa a gerar um modo de vida, que para ser vivido de maneira liberta exige sacrifícios mortais como o assassinato do pai da protagonista. A maneira de construir essas personagens também é singular de suas distinções. Desde o século XIX, cultivou-se a crença de que toda sodomita possuía comportamento e aparência masculinizada, não se admitia beleza nessas mulheres, assim, Elisa, do conto de João do Rio é um modelo de estereótipo de como a mulher lésbica era pensada naquela época: cabelos curtos, vestia-se como homem, e saciava seus desejos em lugares de prostituição, Elsa, na perspectiva do conto, fora apenas uma vítima do ―suplício diabólico‖ provocado por Elisa. No conto de Rubem Fonseca as personagens SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA não são construídas com base em estereótipos, nem sua subjetividade reprimida ou negativizada. A construção dos corpos dessas personagens, se estereotipados ou não é aspecto importante do ponto de vista cultural. Segundo Butler (2002, p. 163 citado por Louro, 2004, p. 79) os corpos ―carregam discursos como parte de seu próprio sangue‖. Considerando-se os corpos de papel inscritos no conto, essa afirmação é pertinente, uma vez que os corpos, nesse caso, das personagens se inscrevem linguisticamente através de suas ações, que significam, em um âmbito maior, discursos envolvidos em relações de poder. Ainda conforme Louro (2004, p. 82) os corpos são regulados, a sociedade é moldada através de discursos que impõem ―limites de sanidade e legitimidade, moralidade ou coerência‖ e dessa forma os corpos são marcados culturalmente, assim como acontece com as personagens de João do Rio. No entanto, os corpos nem sempre obedecem às normas pré-estabelecidas, pelo contrário, elas são desestabilizadas, os sujeitos deixam de se conformarem com a ordem vigente, escapam àquela via planejada, subvertem as fronteiras constantemente vigiadas dos gêneros e da sexualidade, extraviam-se por outros caminhos, como ocorre com Dora e Eunice. Nesse sentido, a literatura possui um papel importante na manutenção ou quebra de determinadas visões culturais para com a sexualidade. Daí chegarmos à discussão postulada por Silva (2007 e 2009) de que um grande agrupamento textos literários produzidos em diferentes épocas constituem a literatura gay, subgênero literário em que se lê o desejo e vivências homoeróticas, podemos ainda acrescentar em que se problematizam aspectos dos modos de vida dos sujeitos homoafetivos de acordo com cada contexto de produção. Logo, é possível concluir que apesar de distintos em suas abordagens, os contos aqui discutidos trazem à tona, de acordo com o contexto de produção, os modos de vida gays. É esse aspecto que essas narrativas enfatizam, lançando mão de estratégias narrativas subjacentes à época de sua publicação, porque apesar de o conto de João do Rio trazer uma perspectiva negativa do desejo homoerótico, no período de publicação dele a homoafetividade era um pecado inefável, isto é, que não se podia exprimir pela palavra e, assim, a obra SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA também possui caráter de ruptura, essa, talvez seja uma das principais características da literatura de expressão gay, obras que rompem com padrões estabelecidos. Ao percebermos que há uma evolução na maneira de construir as personagens lésbicas, da abordagem preconceituosa à aceitação, vemos de maneira otimista que a produção literária parece promover a temática da diversidade sexual. Em outro trabalho (Cf. Fernandes, 2009), verificamos como a literatura de temática gay tem crescido no mercado brasileiro desde a década de 1980, o que, com efeito, denuncia também mudanças na maneira de o mercado se estruturar e de avançar quanto ao apoio e à visibilidade da subjetividade homoerótica. Temos consciência da sutil contribuição de nossa análise diante de um tema tão abrangente e complexo, resta acompanhar a evolução dessas obras e continuar nos debruçando sobre esses discursos que rompem com estigmas e tornam gays e lésbicas protagonistas de suas histórias, trazendo-as à tona e revelando um mundo até então obscurecido e discriminado. Referências BARCELLOS, J. C. Literatura e homoerotismo em questão. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006. FACCO, Lúcia. As heroínas saem do armário: literatura lésbica contemporânea. São Paulo: Edições GLS, 2004. FERNANDES, Carlos Eduardo A. Reflexões sobre a narrativa brasileira de temática gay: 1980-2009. In.: CAMARGO, F. P.; SILVA, A. P. D. (Orgs.) Configurações homoeróticas na literatura. São Carlos: Claraluz, 2009, p. 51-68. FONSECA, Rubem. Família. In.: ___. 64 contos de Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 624-628. SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura 04 a 06 de Setembro de 2011 Centro de Convenções da Bahia Salvador - BA GAGNON, John H. Pesquisa sobre práticas sexuais e mudança social. In.: ____. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Trad. Lucia Ribeiro da Silva. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p. 65-110 GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: EDUSP, 1993. GREEN, James & POLITO, Ronald. Frescos trópicos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A Ed., 1997. LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. RIO, João do. História de gente alegre. [1910] In.: DAMATA, Gasparino (Org.). Histórias do Amor Maldito. Rio de Janeiro: Record, 1967, p. 121-131. SILVA, Antonio de Pádua Dias da. Considerações sobre uma literatura gay. In: SILVA, A. P. D.; ALMEIDA, M. L. L.; ARANHA, S. D. G. (Orgs.) Literatura e lingüística – teoria, análise e prática. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2007a, p. 29-40. _____. Especulações sobre uma história da literatura brasileira de temática gay. In.: SILVA, A. P. D. (Org.) Aspectos da literatura gay. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2008, p. 25-49.