1 INDÍCIOS DE ABUSO SEXUAL INFANTIL Adriana de Fátima Nogueira1 RESUMO Este artigo tem como objetivo geral apresentar o estudo sobre os indícios de abuso sexual infantil nas relações intrafamiliares e suas seqüelas, deixadas pela violência de adultos perpetradas contra crianças, ele embasa-se no fato de que atualmente, a violência sob a forma de indícios quase não deixa marcas aparentes, ao contrário, na maioria das vezes, ocorrendo no âmbito familiar (intrafamiliar), a violência não apresenta testemunhas a não ser a própria vítima, no caso uma criança em formação e, normalmente, desacreditada pelos adultos em função da fértil imaginação, da pouca capacidade cognitiva, de seu peculiar estado de desenvolvimento como criança etc. Ocorre que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227 assevera que é dever da sociedade proteger incondicionalmente qualquer criança. Verifica-se, pois, com o emprego da violência sob a forma de indícios, a afronta a preceitos (normas, regras e princípios) constitucionais apregoados pela lei maior da nação. Qual palavra então terá mais valor: a de uma criança em formação ou a de um adulto? Os casos de indícios de abuso sexual infantil têm afetado inquestionavelmente, além da criança, sua família e àqueles que a cercam e que fazem parte do circulo social a que está inserida. As marcas deixadas pela violência, se não tratadas, poderão transformar estas crianças em adultos também violentos. Palavras-Chave: Indícios de abuso sexual infantil, violência intrafamiliar, relações de gênero, abusador. 1 Acadêmica do Curso de Direito da Escola de Direito e Relações Internacionais das Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil. 2 INTRODUÇÃO Para que se possa compreender o tema proposto no presente artigo se faz necessário informar que o abuso sexual infantil é uma experiência de ameaça à qual a criança responde com desamparo, medo e horror. As conseqüências, se não tratadas, na maioria dos casos encobrem marcas e reflexos pessoais no desenvolvimento da criança, que poderão se potencializar em uma fase mais madura. As crianças que sofrem abuso sexual infantil necessitam que adultos referendem, acreditem e ouçam seus relatos, reconhecendo sua responsabilidade por não terem sido capazes de protegê-las. Hoje, o retrato de muitas famílias, em seu histórico extra ou intrafamiliar, reflete a existência de indícios de abuso sexual infantil; mas em virtude do medo, da falta de informação, da vergonha, da impunidade, da falta de uma regulamentação legislativa mais efetiva, muitas vítimas e seus cuidadores calam-se frente a esta realidade. No desenvolvimento destas crianças, estes casos são determinantes para traçar as marcas e as seqüelas futuras que irão nortear o comportamento destes potenciais adultos em nossa sociedade. Necessário se faz destacar que os casos de indícios ou mesmo de abuso sexual infantil não ocorrem somente em classes menos favorecidas, ao contrário, toda a sociedade, independentemente de raça, credo, poder econômico, cultura, escolaridade etc., está sujeita a esta violência. O artigo 227 da Constituição Federal Brasileira de 1988 determina: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (sem grifos no original). A proteção incondicional à criança determina que é dever geral de cada brasileiro, adulto, capaz, consciente e responsável, protegê-la, independentemente do parentesco ou das motivações e laços afetivos que o fazem agir em favor e no interesse do menor (segundo o artigo 5ª do Código Civil brasileiro, a maioridade civil plena 3 ocorre aos 18 anos de idade). Através da norma constitucional, destaca-se que o Estado, como uma República Federativa, por meio de seus poderes, deve dar a cada criança, vítima de qualquer tipo de violência, seja ela sexual, psicológica, voz ativa para contar seu sofrimento em igualdade de condições, tendo assim a devida oportunidade para se expressar e ser protegida. Pela interpretação do artigo 227 da Constituição, todos os Poderes do Estado brasileiro devem efetivar a máxima proteção à criança, conscientizando-se assim, da necessidade de atualização constante da matéria (abuso sexual infantil). Hoje a violência na família abrange um crescente número em estatísticas de morbimortalidade de crianças, adolescentes e mulheres. No Brasil estas estatísticas não são diferentes, a violência contra crianças atinge todas as camadas sociais em sua diversidade cultural. Talvez utopicamente vislumbre-se neste artigo os preceitos de Norbert ELIAS quando afirma: Só então haverá uma possibilidade, também, de que o padrão comum de autocontrole esperado do homem possa ser limitado àquelas restrições que são necessárias a fim de que ele possa viver com os demais e consigo mesmo com uma alta probabilidade de prazer e uma baixa probabilidade de medo – seja dos outros, seja de si mesmo. Só com a eliminação das tensões e conflitos entre os homens é que essas mesmas tensões e conflitos que operam dentro dele podem se tornar mais brandos e menos nocivos às suas probabilidades de desfrute da vida. Neste caso, não precisará ser mais a exceção, talvez venha a tornar-se mesmo a regra que o indivíduo possa alcançar o equilíbrio ótimo entre suas paixões imperiosas, a exigir satisfação e realização, e as limitações a ele impostas (sem as quais continuaria a ser um animal selvagem e um perigo tanto para si mesmo quanto para os demais) – enfim, possa chegar àquela condição a que com tanta freqüência nos referimos com palavras altissonantes, como “felicidade” e “liberdade”: um equilíbrio mais durável, uma sintonia mais fina, entre as exigências gerais da existência social do homem, por um lado, e suas necessidades e inclinações pessoais, por outro. Se a estrutura das configurações humanas, de sua interdependência, tiver essas características, se a coexistência delas, que afinal de contas é a condição da existência individual, de cada uma, funcionarem de tal maneira que seja possível a todos os assim interligados alcançar tal equilíbrio, então, e só então, poderão os seres humanos dizer a respeito de si mesmos, com alguma justiça, que são civilizados. Até então, estarão, na melhor das hipóteses, em meio ao processo de se tornarem civilizados. Até então poderão dizer, quando muito: o processo civilizador está em andamento, ou como o velho d` Holbach: “La civilisation... n`est pás encore terminée”2. A infância é extremamente importante para a humanidade, é dela que serão 2 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahr, v.2., 1993. p. 273274. A citada expressão francesa “La civilisation... n`est pás encore terminée”, traduz-se “A civilização... ainda não está completada”. 4 moldados os cidadãos do futuro. É pela infância que são traduzidos os valores dos antepassados, é na infância que a sociedade se perpetua, com ela moldamos nosso caráter, nossa moral e nossos valores. Para Içame TIBA: “quando os pais permitem que a criança faça tudo o que tem vontade e não lhe estabelecem limites na medida certa para a idade, ela não desenvolve plenamente o uso da razão, vivendo um estilo animal de vida”3. Ao longo de nossas vidas estabelecemos relações das mais variadas formas, sejam elas afetivas, econômicas, culturais, educacionais, políticas etc. Cientificamente, desde a gestação é iniciado o sentimento do feto para com a mãe. Dentre tantas relações possíveis, há, na sociedade, relações estabelecidas pelo gênero homem e mulher e, historicamente, pelo poder do mais forte sobre o mais fraco. As relações de gênero são formatadas muitas vezes pela imposição de valores sociais, adquiridos e desenvolvidos ao longo dos tempos, isto é, pela força do homem e “fragilidade” da mulher (durante a construção histórica). Já as relações de poder são formadas pelo domínio do mais forte sobre a submissão do mais fraco. Segundo Içami TIBA, “o progressivo que não tem organização nem empenho obtém piores resultados que aquele que empreende com disciplina e ética. A formação de um cidadão feliz e competente para o trabalho requer bastante disciplina” 4. Neste sentido são identificadas as raízes culturais brasileiras que levaram ao aparecimento do abuso sexual infantil, hoje uma “moléstia social”. 1 INDÍCIOS DE ABUSO SEXUAL INFANTIL É importante ressaltar que o ordenamento jurídico pátrio não se omitiu ao crime de abuso sexual infantil, quando ocorre o envolvimento de crianças em atividades sexuais onde se tem um adulto, isto é, quando desencadeada a relação de submissão da criança em relação ao seu agressor; não tendo a criança capacidade volitiva da negação ou mesmo da compreensão do ato (qualquer que seja este ato). 208-210. 3 TIBA, Içami. Disciplina: limite na medida certa. 75. ed. São Paulo: Integrare, 2006. p. 4 Ibidem, p. 211. 5 Em contrapartida legislativa, não pensou o constituinte que tais crimes são geralmente praticados não aos olhos dos outros, muitas vezes dentro da família (abuso sexual infantil intrafamiliar), bem como, para evitar sua comprovação, não são necessariamente efetivados os atos, isto é, não ocorre a consumação do ato sexual ou violento que permita marcas ou sinais visíveis. Geralmente estes atos, quando não perceptíveis aos olhos, consumam-se pela manipulação psicológica e sexual, envolvendo o corpo da criança. Esta denúncia torna-se conhecida no meio forense e psicológico como denúncia silenciosa, isto é, apenas a criança, própria vítima do ilícito, tem o conhecimento do fato, mas por sua tenra idade ou mesmo (in)capacidade cognitiva, não lhe é permitida a exteriorização pela “palavra”. É necessário, nesta etapa, destacar o que são indícios, para melhor elucidar a tratativa do presente artigo, isto é, segundo Hugo MAZZILLI, antes da Constituição de 1988, para a lei processual penal (artigo 239 do Código de Processo Penal), o indício era a circunstância conhecida e provada e que tinha relação com o fato principal (a ser provado), autorizando, por indução, a concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias. Indício vem do radical latino index, aquilo que indica (daí o dedo indicador, com o qual normalmente indicam-se objetos). Assim, como mero e proverbial exemplo, é do senso comum, em princípio, que onde há fumaça, há indício de fogo5. Com o advento da nova ordem constitucional de 1988, hoje, para o sistema legislativo brasileiro, os indícios são meios de prova. Nosso Código de Processo Penal afirma que os indícios são prova, e, a princípio, estão em pé de igualdade com outras provas como a perícia, a confissão, os testemunhos, os documentos etc. (artigo 239). Mas assevera-se que em certos casos, como nos casos de indícios de abuso sexual infantil, os indícios são até mesmo os únicos meios possíveis de provas, são os crimes cometidos às ocultas; ademais, inúmeros crimes não deixam vestígios materiais nem provas diretas6. Para Claus ROXIN, os indícios são: 5 VAZ, Marlene. O papel dos indícios nas investigações do Ministério Público. Disponível em: <http://www.mazzilli.com.br/pages/artigos/indicio.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2008. 6 Idem. 6 Fatos que permitem uma conclusão diretamente sobre um fato principal. Assim, por exemplo, o fato de o suspeito de homicídio ter proferido, antes do óbito de X, ameaças de morte diretamente contra ele, ou depois do fato ter removido de suas calças marcas de sangue, ou que o suspeito de fraude contra o seguro tenha adquirido gasolina e elevado o valor do seguro7. Diferentemente, Walter ACOSTA distingue: Indício não é sinônimo de presunção, como alguns entendem: é a circunstância ou antecedente que autoriza a fundar uma opinião acerca da existência de determinado fato, ao passo que presunção é o efeito que essa circunstância ou antecedente produz, no ânimo do julgador, quanto à existência do mesmo fato. Na técnica da prova indiciária desenvolve-se, pois, um silogismo, em que a premissa menor é um fato, ou circunstância provada, que é a circunstância indiciante, e a premissa maior, que se ajusta à outra, é simplesmente problemática ou abstrata, calcada nos ensinamentos do bom senso comum8. Diante do pressuposto adotado para que se chegue a uma conclusão do que venha a ser indício, o abuso sexual infantil seria qualquer conduta sexual com crianças, tomada sempre a frente por um adulto ou mesmo uma criança mais velha, que, além da penetração vaginal ou anal, envolva o toque dos genitais, ou mesmo o roçar deles na criança ou no adulto. 2 FORMAS E SINAIS DO ABUSO SEXUAL INFANTIL O abuso sexual pode envolver toques ou carícias impróprias, o que acaba por incluir atitudes de incesto, molestamento, estupro, contato oral-genital, carícias nos seios e genitais. A violência envolvendo este ilícito inclui ainda comportamentos abusivos, que estimulem a educação sexual imprópria a uma criança, como a exposição e estímulo de fotografias pornográficas. E estas, em absoluto deixam marcas físicas. São consideradas formas de abuso sexual infantil que não envolvem o contato físico: a violência sexual verbal (realizada por palavras e conversas a respeito de 7 ROXIN, Claus. Strafverfahrensrecht: ein Studienbuch. ed. 24. Auflage. München: Beck, 1995. p. 161. 8 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 5 ed. Bauru: Jalovi, 1977, v. 1. p. 258. 7 atividades sexuais, nas quais o abusador pretende despertar e chocar o menor). Há o vuoyerismo, que é caracterizado por pessoas que gostam de observar outras nuas ou com trajes íntimos (é a manipulação das partes intimas ou a prática de relações sexuais). Há ainda o exibicionismo, que ocorre quando uma pessoa expõe as partes intimas de seu corpo a outra na intenção de chocar ou causar o libido. Outra forma de abuso sexual infantil que envolve o contato físico é tipificada pelo ordenamento como atentado violento ao pudor. Este é realizado e constatado quando se constrange o menor, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratiquem atos libidinosos diversos da conjunção carnal. Citase ainda o estupro, caracterizado pelo ato de constranger uma criança do sexo feminino à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Por fim, tem-se o assédio sexual, configurado quando se constrange o menor, com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior. Segundo Veet VIVARTA: A violência sexual contra crianças e adolescentes tem origem nas relações desiguais de poder entre os personagens do crime. Denominações de gênero, classe social e faixa etária sob o ponto de vista histórico cultural, contribuem para a manifestação de abusadores e exploradores. A fragilidade da vítima, sua incapacidade de resistir aos ataques e o fato de a eventual revelação do crime não representar grande perigo para quem o comete são condições que favorecem sua ocorrência. Meninas são mais vulneráveis à violência que meninos – oito em cada dez vítimas de abuso sexual ou de exploração sexual são do sexo feminino, independentemente da classe sócio-econômica a que pertencem, apontam dados do Ministério da Assistência e Promoção Social. Os que estão em estratos sociais menos privilegiados são mais suscetíveis à exploração – a pobreza influencia e potencializa o delito sexual para fins comerciais. E, de modo geral, crianças são mais dóceis aos comandos dos adultos, particularmente se lhes são familiares. Por isso, muitas vezes o abuso ocorre no ambiente doméstico9. O fato é que há muitos casos de abuso sexual infantil, de fáceis ou de difíceis ou quase impossíveis constatações, já que o ato da penetração, nem sempre é realizado, ou mesmo as marcas da violência podem não deixar sinais visíveis aos olhos ou trabalhos técnicos e periciais. Muitos sinais são dados pela criança, mas muitas vezes o medo e o desconhecimento fazem com que os adultos não os percebam. Para 9 VIVARTA, Veet. O grito dos Inocentes: os meios de comunicação e a violência sexual contra crianças e adolescentes. v. 5. São Paulo: Cortez, 2003. p. 44. 8 VIVARTA: A maior parte dos casos de violência sexual nasce no ambiente familiar. A agressão sexual durante a infância é, geralmente, perpetrada por pessoas que a criança conhece e nas quais confia. No abuso sexual, as relações intrafamiliares correspondem à maioria dos crimes notificados – 52%, segundo dados da Abrapia. O incesto – aí estão incluídas as relações entre pais e filhos (biológicos ou não) ou entre irmãos – é detectado em 44% desse universo. A familiaridade entre os personagens de uma situação de abuso sexual é um dos fatores da complexidade desse tipo de delito. A vítima de incesto sofre mais e é mais suscetível a novas ocorrências. O processo geralmente começa com carícias simples e pode até chegar ao contato genital. As vezes, o que move o agressor é a carência de afeto e não o desejo sexual propriamente dito. Na maioria das ocorrências, existe um quadro de pedofilia. Sem compreender inteiramente a própria sexualidade, incapaz de identificar o limite entre carinho e a agressão, envergonhada por estar envolvida naquela situação, a criança pode levar meses, ou mesmo anos, para revelar o fato10. A família ainda trata o abuso sexual como assunto particular, optando por escondê-lo a revelá-lo e se sujeitar a qualquer forma de condenação ou mesmo preconceito social. Quando finalmente a criança leva o fato ao conhecimento de outros adultos, muitas vezes é desacreditada, incompreendida ou ameaçada (pelo abusador e quem lhe acredite). Revela-se, portanto, na maioria dos casos de indícios de abuso sexual infantil, o silêncio tácito da família e a oportunidade para que o abusador opte pela continuidade de seus atos (são elos que perpetuam a situação de abuso). 3 DE VÍTIMAS A RÉUS Imprescindível se faz indagar a transferência da culpa. Quando se tratam de casos de indícios ou de abuso sexual infantil, a sociedade tem a tendência em transformar vítimas em réus11. Estigmatizada pela sociedade, a vítima “perde” sua imagem imaculada de criança e passa a ser vislumbrada como impura, já a adolescente passa a ser rotulada como responsável pela prostituição. Segundo o artigo da socióloga Marlene VAZ, “Desvendando Máscaras da Re-violência Sexual: 10 Ibidem, p. 52. Geralmente a palavra de uma criança ou adolescente tem menos credibilidade que a do adulto. É muito comum que se rotulem os relatos infantis ou infanto-juvenis como fantasiosos e imaginários. Por omissão, ignorância ou necessidade de defesa, muitos adultos responsabilizam a criança ou o adolescente pelo problema, culpando-as por sedução ou consentimento. Ibidem, p. 59-61. 11 9 Quando uma criança ou adolescente revela uma situação de violência sexual, sempre o faz para uma pessoa de sua confiança. Isso também ocorre quando uma pessoa adulta revela segredos. Ao não compreenderem as implicações específicas da violência sexual como “síndrome conectadora de segredo”, a policia civil, a polícia técnica, a Medicina Legal, os promotores e os juízes tomam decisões e praticam ações capazes de conduzir o acusado à absolvição por falta de provas. Esses atores não percebem que a marca física e a verbalização podem ser substituídas pelo comportamento manifesto da criança ou do adolescente. E se o réu inocentado for realmente culpado, entende que obteve permissão oficial para continuar violentando. Assim, os órgãos governamentais passam a ser “promotores” da violência sexual. Trata-se da repetição do dano legal impingido à população infanto-juvenil violentada12. Quando contatados os agentes públicos, nos casos de denúncia de abuso sexual infantil, a fim de resgatar o dano sócio-psicológico, as vítimas fatalmente vivenciam novamente a violência sofrida. Nos casos de indícios de abuso sexual, pior será a investigação, isto porque será mais exaustivo o processo investigatório (psicológico, técnico e processual). Enfim, situações como os casos de abuso exigem a participação ativa do Estado no resgate da dignidade do homem, mas muitas vezes este mesmo Estado, através de seus agentes, não está preparado para enfrentar a forte carga psicológica que envolve o tema. Preconceitos de um povo alienado à parte, a verdade é que as seqüelas que são deixadas às crianças que foram expostas a este tipo de violência podem aparecer de diversas formas e nos estágios mais inusitados do desenvolvimento humano, gerando, inclusive, o fim da infância. 4 O FIM DA INFÂNCIA As crianças muito dificilmente inventam histórias sobre abuso sexual, isto porque simplesmente são desprovidas de vocabulários ou experiências para ter o conhecimento necessário em fantasiar histórias que envolvam a sexualidade (proibida) entre adultos e crianças. Relatos de crianças sobre comportamentos que as deixam desconfortáveis são sempre dignos de absoluta e cuidadosa atenção. Segundo Veet VIVARTA: 12 VAZ, Marlene. Op. cit. p. 115. 10 As conseqüências do crime sexual podem aparecer de diferentes formas na vida da criança ou do adolescente. Variam conforme o tipo de indução ao ato, sua periodicidade e o número de agressores ou abusadores envolvidos. Mas quase sempre há efeitos sobre a saúde física e psicológica. Esses traumas físicos e psicológicos que afetam as crianças e adolescentes abusados ou explorados sexualmente costumam ser graves, mas podem ter duração e intensidade variadas. O abuso sexual pode ser agudo ou crônico. O primeiro é um episódio único ou que se repete por curto período de tempo, geralmente protagonizado por agressores alheios ao núcleo familiar. O segundo, mais freqüente, é aquele que permanece encoberto pela família. Logo depois que acontece o abuso, a criança ou o adolescente pode ter sentimentos de angústia, medo, ansiedade, culpa, vergonha humilhação, autocensura, baixa auto-estima e depressão. Podem ocorrer ainda reações somáticas como fadiga, cefaléia, insônia, secreções vaginais ou penianas, pesadelos, anorexia, náusea e dor abdominal. Outras conseqüências podem ser pesadelos, lembranças retrospectivas, bulimia, anorexia nervosa, fobias, dificuldades de relacionamento e até mesmo perda de memória e pensamentos suicidas. Na vida adulta, essas crianças e adolescentes que sofreram abuso podem desenvolver quadros de transtorno da sexualidade, dor nas relações sexuais e até mesmo a perda da capacidade de orgasmo13. São vários os indicadores de abuso sexual que podem levar a suspeita de que uma criança esteja sendo abusada ou negligenciada. Estes indicadores servem como sinais de alerta na busca de ajuda profissional e legal. Assim, além da revelação verbal do abuso, ainda existem inúmeras outras pistas que auxiliam na identificação da violência sexual infantil e podem levar a sua constatação. Os sinais podem ser físicos, sexuais ou mesmo comportamentais. Os indicadores físicos são detectados através de exames clínicos ou periciais, como a observação da dilatação do hímen, o sangramento, a constatação de doenças sexualmente transmissíveis, a gravidez precoce, infecções e dores na região genital e abdominal. Os sinais sexuais são observados através da masturbação excessiva e precoce da criança, do conhecimento sexual incoerente com a fase de desenvolvimento em que a criança se encontra, apresentação de comportamento sexualmente explícito. É importante estar atento às mudanças de comportamento ou humor, pois, na maioria das vezes, as crianças expressam a violência sofrida através das mudanças de comportamento, como as acima citadas. Assim, notando-se algum desses comportamentos, é necessário o diálogo de 13 VIVARTA, Veet. Op. cit. p. 60-61. 11 maneira tranqüila e acolhedora, estabelecendo harmonia, segurança e propiciando a fala da criança no sentido do relato, ou não, do abuso sexual. O fim da infância apresenta costumeiramente, nas crianças, a baixa estima de si mesmas, hiperatividade e ansiedade exagerada, comportamento rebelde, falta freqüente a escola, fuga de casa, mentiras, roubo, distúrbios alimentares, idéias e tentativas de suicídio, transtorno de sono, pesadelo e insônia, isolamento social e depressão, falta de confiança em adultos, baixo rendimento escolar, mudanças repentinas de humor, conduta agressiva, dificuldade de concentração, choro fácil, entre outros14. Estas crianças acabam desenvolvendo transtornos psicológicos de monta incalculável e que se refletem principalmente na idade adulta, isto porque a criança, em evidente formação, nunca estará preparada para iniciar uma vida sexual antes de seu tempo biológico e emocional, ademais, a família, que é símbolo do berço, do abrigo e da segurança; nos casos de abuso sexual, vivenciam dramas e transtornos psíquicos reflexos à vitima dessa violência. Para Veet VIVARTA: Quando, apesar de tantas dificuldades, consegue-se responsabilizar criminalmente um abusador ou explorador, começa outro problema: tratar vítimas e agressores, de forma a conseguir interromper o ciclo da violência. As várias formas de configuração dos crimes sexuais contra o segmento infantil e infanto-juvenil de cada caso, a obrigatoriedade de integração entre diversas páreas do conhecimento, as limitações institucionais e as dificuldades individuais dos profissionais envolvidos são elementos que ilustram o grau de complexidade que cerca o atendimento. Vale relembrar: a recuperação das crianças e dos adolescentes violentados, exige atenção aos aspectos físicos, psicológicos, afetivos e sociais. Descuidar de algum deles pode comprometer avanços em outra área15. A violência sexual infantil atinge a todos da família. As seqüelas do abuso sexual, principalmente de ordem psíquica, devem levar ao maior comprometimento no cumprimento das normas legais de caráter preventivo e assistencialista às vitimas e famílias das vítimas do abuso sexual extra ou intrafamiliar16. 14 Cartilha Violência Sexual Contra Meninos e Meninas. 2005. p. 13. Disponível em: <http://sspasse.ba.gov.br/arquivos/VOZ_CIDADE_02.pdf.>. Acesso em 22 nov. 2008. 15 VIVARTA, Veet. Op. cit. p 90-91. 16 É importante destacar que a criança sempre mostra, de alguma maneira, que passa por uma situação de abuso sexual, seja revelando-a claramente, seja por meio de “sinais”, como desenhos, utilização de um linguajar sexualizado impróprio para sua idade, pesadelos e medos incomuns, forte 12 5 INDÍCIOS DE ABUSO SEXUAL INFANTIL INTRAFAMILIAR As famílias nas Constituições brasileiras sempre foram consideradas unidades básicas da sociedade, isto é, agentes socializadores do homem extremamente importantes na formação afetiva e moral das crianças. Os pais têm o dever de gerir a formação e proteção aos filhos, garantindo-lhes direitos fundamentais à vida, saúde, educação, dignidade, entre outros. Imprescindíveis à estrutura e inserção social, as famílias possuem um papel legal e fundamental na constituição da infância. Com a atuação de educadores, os pais visam apaziguar conflitos permitindo ou não ações que consideram necessárias à formação e crescimento saudável da criança. Aqui, eles fazem uso de seus poderes de autoridade. O Estatuto da Criança e do Adolescente, neste sentido, dispõe de medidas pertinentes aos pais ou responsáveis causadores de maus-tratos, opressão ou abusos, chegando a medidas extremas, dependendo da forma de violência, como o afastamento da moradia comum ou até a perda do poder familiar17. Infelizmente, uma das formas de abuso que têm apresentado maior incidência na sociedade atual é a violência sexual intrafamiliar. Essa violência ocorre no recinto do afago, da segurança e do afeto, ou seja, na família, escola, igreja, abrigos, círculos resistência para ver determinadas pessoas ou sintomas físicos. Portanto, antes de tudo, é fundamental acreditar no que a criança ou adolescente denuncia, bem como estar atento aos “sinais” que demonstra. É importante também avaliar a motivação de quem denuncia ou notifica o abuso. As relações do denunciante com a vítima e com seus familiares são diversas, fazendo com que suas intenções ao denunciar e ao notificar também o sejam. As revelarem situações de abuso sexual vividas, as vitimas estão pedindo ajuda para que essas cessem imediatamente, porque sofrem muito com isso e desejam se afastar dos abusadores, temem suas ameaças, mas nem sempre querem que sejam presos. Sentem-se culpadas e preocupam-se com as com as conseqüências da denúncia para si e para toda a família. Os familiares também sofrem com a situação de abuso sexual, precisam de ajuda, desejam a punição do agressor (nem sempre sua prisão), avaliam e temem os desdobramentos da denúncia. É importante lembrar que em geral os abusadores fazem ameaças, muitas de morte, às vítimas, às testemunhas, aos denunciantes e até a profissionais. Outras pessoas que denunciam, como amigos e visinhos, o fazem por questões éticas, humanitárias ou religiosas. Querem auxílio para a vítima e punição para o agressor. Já os profissionais denunciam ou notificam por princípios éticos, profissionais ou de militância pelos direitos das vítimas. Buscam, em geral, a prisão do agressor e nem sempre sua prioridade é a proteção de todos os envolvidos nos processos de abuso sexual – vítimas, familiares, abusadores. Ibidem, p. 87-88. 17 LIBERATI, Wilson Donizete. Direito da Criança e do Adolescente. São Paulo: Rideel. 2006. p. 10-12. 13 de amizades e mesmo em ambientes tidos como de proteção. A violência intrafamiliar ocorre dentro do circulo familiar, onde a criança se sente segura e o abusador, seguro da fragilidade desta e de sua falta de defesa, aproveita-se da situação18. No Brasil, de acordo com dados do Ministério da Justiça, são registrados por ano, aproximadamente 50 mil casos de violência sexual contra crianças. Segundo pesquisadores, esta estimativa é de que os números oficiais não chegam a representar 10% do total de casos porque grande parte das agressões não são notificadas19. Muitas pesquisas abordam fatores que se fazem presentes nas famílias que apresentam casos de abuso sexual infantil, como a existência de famílias com poderes desiguais entre pai e mãe, ou dependência financeira em relação ao chefe da família, o que dificulta ainda mais o esclarecimento destes ilícitos. Constata-se também que muitas famílias brasileiras são sustentadas pela figura masculina (do pai ou padrasto), representando a dependência do grupo familiar todo a esta figura mantenedora. Outro aspecto investigado é a imaturidade biológica da criança, bem como sua dependência emocional e material em relação ao adulto, legitimando a relação assimétrica20. A maioria dos casos de abuso somente são denunciados quando a mãe, denunciante, se separada do agressor. No vínculo conjugal essas denúncias são muito difíceis de ocorrer. Há também casos em que a mãe torna-se cúmplice do abusador em função do medo de perder o provedor da família, do medo da condenação e preconceitos sociais, e de vários outros medos que somente o convívio familiar é capaz de esclarecer. Os pactos de silêncio, existentes nas relações de gênero intrafamiliares nos casos de indícios de abuso sexual infantil, envolvendo a violência sexual contra crianças em seu ambiente familiar, é um tema bastante polêmico. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o abusador sexual raramente é 18 LEAL. Maria de Fátima Pinto. Indicadores de violência intrafamiliar e exploração sexual comercial de crianças e adolescentes na América Latina e Caribe: relatório final, Brasil. 1999. p. 12.Disponível em: <http://www.cecria.org.br/pub/livro_iin_publicacoes2.pdf.>. Acesso em: 12 jan. 2009. 19 NOGUEIRA NETO, Wanderlino. Por um sistema de promoção e proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes. BAHIA. In Capacitação Para os Operadores do CREAS. Salvador, 2006. p. 54. 20 LEAL. Maria de Fátima Pinto. Op. cit. p. 10-13. 14 um estranho. Na maioria das vezes é alguém muito próximo da criança, isto é, pessoas de seu convívio e com quem mantém uma relação de confiança, afeto e respeito. São geralmente pessoas do sexo masculino, como pai, padrasto, tio, primo, avô, parentes, vizinhos, professores e também desconhecidos. O fato é que quanto mais próximo o vínculo, mais difícil é para a criança revelar o abuso sexual e mais devastador ainda o será do ponto de vista psicoemocional21. O fato de ter a autoridade legitimada por ser adulto, de ter a confiança da criança, ser mais forte, confere ao abusador um poder que é utilizado para consumação do abuso. Segundo as Doutoras Maria Amélia AZEVEDO e Viviane Nogueira de Azevedo GUERRA, há uma classificação da tipologia da violência intrafamiliar e sexual a ser considerada: a) Negligência: a omissão em prover as necessidades físicas e emocionais de uma criança ou adolescente. Configura-se quando os pais ou responsáveis falham em alimentar, vestir, adequadamente, seus filhos etc.; b) Violência física: atos que causam dor física, e não apenas dano. Também encontrada na literatura sob a denominação de síndrome de maustratos físicos e abuso físico. Uma das manifestações mais comuns dessa violência é a Síndrome do Bebê Sacudido (Sharken Baby Syndrome): lesões de gravidade variáveis, que acontecem quando a criança, geralmente lactente, é violentamente sacudida, na maioria das vezes pelos próprios pais, causando hemorragias intracranianas e intraoculares que podem levar à morte ou deixar seqüelas no aprendizado ou comportamento, hemiplegia, tetraplegia, convulsões, etc.; c) Violência psicológica: atitudes e condutas perante a criança que ocasionam medo, frustração, experiência de temor quanto à própria integridade física e psicológica, ameaças verbais com conteúdo violento, ou emocional. Inclui a rejeição, o não reconhecimento da criança em sua condição de sujeito; degradação ou subvalorização da criança, expondo-a à humilhação pública e atribuindo apelidos depreciativos, ameaças, surras, reprimendas, castigos, isolamento, exploração; d) Violência sexual: ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente, tendo por finalidade estimular, sexualmente, essa criança ou adolescente ou utilizá-lo para obter uma estimulação sobre sua pessoa ou de outra pessoa.; d.1) Abuso sexual é um tipo de agressão definido como o envolvimento de crianças e adolescentes dependentes e evolutivamente imaturos em atividades sexuais que eles não compreendem, para os quais não são capazes de dar consentimento informado, e que violam os tabus sexuais dos papéis familiares. Fundamentalmente, estabelece-se uma relação de poder ou controle entre o agressor e a vítima que, não necessariamente, é uma pessoa adulta. Suas formas são: d.1.1) Incesto: qualquer relação de caráter sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente, entre um adolescente e uma criança, ou ainda, entre adolescentes, quando existe um laço familiar, direto ou não, ou mesmo uma mera relação de responsabilidade. d.1.2) Estupro: do ponto de vista legal, é a situação em que ocorre penetração vaginal com uso de violência ou grave ameaça. d.1.3) Sedução: situação em que há penetração vaginal sem uso de violência em adolescentes virgens, de 14 a 18 anos incompletos. d.1.4) Atentado 21 GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Violência de pais contra filhos: a tragédia revisitada. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1998. p. 25-28. 15 violento ao pudor: circunstância em que há constrangimento de alguém a praticar atos libidinosos, sem penetração vaginal, utilizando violência ou grave ameaça, sendo que, em crianças e adolescentes de até 14 anos, a violência é presumida, como no estupro. d.1.5) Assédio sexual: propostas de contrato sexual; na maioria das vezes, há posição de poder do agente sobre a vítima, que é chantageada e ameaçada pelo agressor. d.1.6) Exploração Sexual: é a inserção de crianças e adolescentes no mercado do sexo. Incluí a pornografia infantil e a prostituição22. Destaque-se desta enorme lista de violência intrafamiliar, que há, além da normativa constitucional, o artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei Federal 8.069/90) que se propõe a proteger as crianças: "Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais". Assim, neste século, não mais se admite por parte do Poder Público, uma atuação passiva em relação a defesa dos interesses da criança vítima de violência e de maus-tratos, muitas vezes, praticados por quem teria o dever legal de defendê-las. CONCLUSÃO Conclui-se com o presente artigo que o enfrentamento de um tema tão complexo como no caso de indícios de abuso sexual infantil mostra-se ainda, infelizmente e apesar das recentes mudanças legislativas, prematuro no universo jurídico, social e político. Mesmo com as transformações sociais ocorridas ao longo dos tempos, percebe-se que o avanço da tratativa ainda é precoce. Com efeito, ainda somos regidos, embora com menos evidência, com base nas relações de gênero e poder, dos mais fortes (seja economicamente, psicologicamente, culturalmente etc.) sobre os mais fracos (oprimidos ou renegados seja pela fraqueza, pela tenra idade, pela força do mais forte, ou por falta de oportunidade social). A preocupação da família e da sociedade em relação a comportamentos diversos e disruptivos de crianças são fatores que devem ser investigados, ademais quando externados indícios de violência contra elas. 22 AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Infância e Violência doméstica. São Paulo: LACRI USP, 2002. passim. 16 Os danos gerados em uma criança, vítima de violência e desacreditada no âmbito familiar ou mesmo jurídico levam, fatalmente, a um estado de trauma e descrença (atingindo todos os envolvidos) e que reflexivamente irão interferir em seu futuro. Assim, é preciso decodificar os sinais desta criança de tal sorte que seu testemunho, controlado e supervisionado, possa ser suficiente para a identificação de indícios de abuso sexual. Ímpar destacar a função essencial de psicólogos e psiquiatras especializados em casos de indícios de abuso sexual infantil. Estes, em auxílio ao poder judiciário, podem realmente proteger e orientar crianças abusadas a recuperar sua auto-estima, lidando melhor com sentimentos que confundem a infância. Neste sentido é que todas as medidas protetivas à criança devem ser tomadas. Percebe-se também que os casos que envolvem indícios de abuso sexual infantil, infelizmente, ainda não tiveram o devido enfrentamento legislativo, mesmo com a nova lei, isto porque os indícios não configuram a concretização do ato sexual abusivo contra a criança; ademais, na maior parte das jurisdições referentes a tratativa do tema, com exceção de algumas poucas (como no caso das Varas da Infância e Adolescência de Porto Alegre, São Paulo e muito recentemente em Curitiba), as crianças não são ouvidas. Por fim, deve-se assumir que o objeto da tutela jurisdicional junto a Justiça da Infância e Juventude, nas hipóteses de indícios de abuso sexual infantil, é norma de efetiva proteção à criança (como exprimem os princípios constitucionais do melhor interesse da criança e da proteção integral). Para Maria Berenice DIAS: A denúncia é muito difícil, pois o crime não é praticado com o uso de violência, e, quando a vítima se dá conta de que se trata de uma prática erótica, simplesmente o crime já se consumou. A vítima é pega de surpresa e surge o questionamento de quando foi que tudo começou, vindo junto a vergonha de contar o que aconteceu, o sentimento de culpa de, quem sabe, ter sido conivente. Teme ser acusada de ter seduzido o agressor, ser questionada de por que não denunciou antes. Assim, cala por medo de ser considerada culpada. Surge, então, o medo de não ser acreditada. Afinal, o agressor é alguém que ela quer bem, que todos querem bem, que a mãe e toda a família amam e respeitam, pois geralmente é um homem honesto e trabalhador, sustenta a família, é benquisto na sociedade e respeitado por todos. Quem daria credibilidade à palavra da vítima? (...). O juiz quer testemunhas para ter certeza da existência de crime que acontece entre quatro paredes e busca provas materiais quando nem sempre os vestígios são físicos. Não dá valor aos laudos sociais e psicológicos que, de forma eloqüente, mostram que os danos psíquicos são a mais evidente prova da prática do crime. 17 E, de uma maneira surpreendente, a absolvição por falta de provas é o resultado na imensa maioria dos processos23. Diante deste quadro de violência, de perda de valores e respeito, diante da exposição crescente de abusos perpetrados pelos mais inesperados sujeitos; da modesta proteção que a sociedade em sua totalidade tem oferecido às crianças, faz-se necessário acabar com os pactos de silencio e com as abstenções do poder público e da sociedade em geral. Faz-se necessário dar voz às crianças e ouvi-las como se adulto fossem nas suas mais diversas expressões. Indícios de abuso sexual infantil existem e precisam ser tratados por todos os segmentos da sociedade de forma a proteger as gerações futuras. 23 DIAS, Maria Berenice. A justiça e a invisibilidade do incesto. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br/>. Acesso em: 11 ago. 2008. 18 REFERENCIAS AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Infância e Violência doméstica. São Paulo: LACRI USP, 2002. DIAS, Maria Berenice. A justiça e a invisibilidade do incesto. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br/>. Acesso em: 11 ago. 2008. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahr, v.2., 1993. GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Violência de pais contra filhos: a tragédia revisitada. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1998. LEAL, Maria de Fátima Pinto. Indicadores de violência intrafamiliar e exploração sexual comercial de crianças e adolescentes na América Latina e Caribe: relatório final, Brasil. 1999. p. 12.Disponível em: <http://www.cecria.org.br/pub/livro_iin_publicacoes2.pdf.>. Acesso em: 12 jan. 2009. LIBERATI, Wilson Donizete. Direito da Criança e do Adolescente. São Paulo: Rideel. 2006. NOGUEIRA NETO, Wanderlino. Por um sistema de promoção e proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes. BAHIA. In Capacitação Para os Operadores do CREAS. Salvador, 2006. ROSÁRIO, Maria do. Cartilha Violência Sexual Contra Meninos e Meninas. 2005. p. 13. Disponível em: <http://sspasse.ba.gov.br/arquivos/VOZ_CIDADE_02.pdf.>. Acesso em 22 nov. 2008. ROXIN, Claus. Strafverfahrensrecht: ein Studienbuch. ed. 24. Auflage. München: Beck, 1995. TIBA, Içami. Disciplina: limite na medida certa. 75. ed. São Paulo: Integrare, 2006. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 5 ed. v.1. Bauru: Jalovi, 1977. VAZ, Marlene. O papel dos indícios nas investigações do Ministério Público. Disponível em: <http://www.mazzilli.com.br/pages/artigos/indicio.pdf.>. Acesso em: 19 ago. 2008. VIVARTA, Veet. O grito dos Inocentes: os meios de comunicação e a violência sexual contra crianças e adolescentes. v. 5. São Paulo: Cortez, 2003.