ID: 57888683
11-02-2015
Tiragem: 16364
Pág: 8
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 26,00 x 27,30 cm²
Âmbito: Economia, Negócios e.
Corte: 1 de 3
ENTREVISTA EURICO CASTRO ALVES Presidente do Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento
INVESTIMENTO
“Não podemos afirmar
que o acordo com a Gilead
é o melhor da Europa”
Hepatite C Depois do acordo com a farmacêutica norte-americana, “avizinha-se um verdadeiro
inferno de negociações com a indústria”, antevê o presidente do Infarmed.
Catarina Duarte
[email protected]
O Ministério da Saúde chegou a
acordo, na quinta-feira passada,
com a farmacêutica que detém as
patentes dos medicamento para a
hepatite C. Sem revelar o preço
acordado, Paulo Macedo garantiu
que Portugal tinha conseguido “o
melhor acordo da Europa”. Em
entrevista, por escrito, ao Diário
Económico, o presidente do Infarmed explica que a confidencialidade a que os países estão obrigados não permite afirmar com
toda a certeza de que Portugal
conseguiu o melhor acordo.
O Ministério da Saúde quer passar
a impressão de que o que se passou na comissão parlamentar na
quarta-feira, 4 de Fevereiro - e
que colocou o ministro sob forte
pressão da opinião pública - não
apressou o desfecho das negociações. Isto abre a porta a que venham a acontecer situações semelhantes?
Em minha opinião avizinha-se
um verdadeiro inferno de negociações com a indústria farmacêutica. Temos notícia de que estão para chegar medicamentos
inovadores muito eficazes e muito
caros, daí que eu acredite que
tudo possa acontecer. Em vários
países pelo mundo fora as associações de doentes manifestam-se
contra o laboratório farmacêutico
por estar a vedar o direito de acesso aos medicamentos inovadores
e ao tratamento, pressionando-o
a baixar preços para valores comportáveis pelos Estados. O apelo
que deixo é que, no futuro, haja
uma transferência da pressão pública (cidadãos, utentes, médicos
e associações) para as farmacêuticas que, com o objectivo de obter
lucros rápidos, possam vir a exigir
preços incomportáveis para os
medicamentos inovadores. E esta
será a realidade com que nos vamos defrontar muito em breve.
Dito isto, não se entenda que
olhamos a indústria farmacêutica
como um inimigo potencial. A indústria farmacêutica tem expectativas, a meu ver legítimas, de ter
retorno dos seus investimentos e
das suas apostas em grandes programas de investigação. Acho é
que tem de se conseguir encontrar um equilíbrio sensato, que
permita às farmacêuticas encontrarem a compensação razoável
pelo seu investimento e que, ao
mesmo tempo, não possa ficar em
causa a sobrevivência dos serviços de saúde dos países.
“
O apelo que deixo
é haja uma transferência
da pressão pública
para as farmacêuticas
que, com o objectivo
de obter lucros rápidos,
possam vir a exigir
preços incomportáveis
para os medicamentos
inovadores.
Em que pé estavam as negociações com a farmacêutica Gilead
na terça-feira, 3 de Fevereiro?
Depois de um duro processo negocial, o acordo com Gilead já estava assumido há mais de uma semana. Além do medicamento sofosbuvir (Sovaldi), este acordo
visa ainda comparticipar um outro medicamento inovador, o sofosbuvir/ledipasvir (Harvoni),
muito recentemente aprovado
pela Comissão Europeia, com uma
significativa redução dos preços
iniciais, e com a vantagem de o
Estado português partilhar riscos,
pagando, não por caixas de comprimidos, mas por doente efectivamente curado. O acordo ainda
prevê aplicar retroactivamente as
suas condições, a todos os tratamentos entretanto efectuados aos
doentes prioritários. Sempre soubemos que teríamos de ser resilientes e que estávamos perante
uma luta desigual contra o tempo.
Assinaram o “melhor acordo da
Europa”?
Essa é uma afirmação do laboratório. A verdade é que as condições deste acordo inédito, apesar
de representarem um esforço financeiro pesado para o Estado e
para os contribuintes, são comportáveis para o nosso SNS e permitirão curar todos os doentes infectados com hepatite C, ao passo
que as condições anteriores não.
No entanto, como todos os países
estão obrigados à confidencialidade, não podemos afirmar com
toda a certeza que este é o melhor
acordo da Europa. Esta falta de informação deixa-nos numa posição de extrema vulnerabilidade,
negociando com uma única empresa que detém o exclusivo da
cura, que projectava, ao nível
mundial, expectativas de lucros
de milhares de milhões de euros.
Como é que uma negociação que
se arrastava há tantos meses acabou no “melhor acordo da Europa” em poucas horas?
Nunca podemos dissociar o resultado de uma negociação com todo
o seu processo e antecedentes
que, como bem refere, durava há
mais meses do que aqueles que
desejámos.
Há uma coisa que as pessoas não
percebem: como é que um tratamento que tem um custo de produção de 100 euros pode ser vendido por 100 mil.
A expectativa legítima do lucro
motiva a investigação e a inovação
verdadeiramente disruptiva. Graças a esta inovação e à indústria
farmacêutica conseguimos hoje
ter níveis de saúde e de tratamento
verdadeiramente notáveis, com
influência directa na longevidade
ou na qualidade de vidas das pessoas. O problema é que a posição
dominante de um único laboratório - que detenha a patente de um
medicamento verdadeiramente
inovador, com taxas de cura superiores a 90%, que investe milhões
numa estratégia de comunicação e
promoção, com poder para influenciar uma opinião pública que
transfere toda a pressão para o lado
dos governos - tem reunidas condições para exigir o preço e o lucro
que quer, recuperando, em muito
pouco tempo, todos os riscos associados ao negócio e ao investimento efectuado. Não podemos
deixar de ter presente que o acesso
ao medicamento é um direito fundamental que não deve ser ameaçado por preços especulativos e
manifestamente incomportáveis
para os cidadãos e respectivos sistemas de saúde, não podendo deixar de se exigir aos laboratórios
farmacêuticos essa responsabilidade social. ■
119 milhões
“Em 2013, o Serviço Nacional
de Saúde investiu 119 milhões
de euros em inovação”.
INOVAÇÃO
142 milhões
“Até Setembro de 2014
a inovação já representava
um investimento
de 142 milhões de euros”.
AUTORIZAÇÕES
665
“Até ao dia 5 de Fevereiro
o Infarmed autorizou
665 tratamentos, dos quais
499 corresponderam ao
sofosbuvir ou a medicamento
inovador de efeito terapêutico
equivalente.”
“2014 foi o
“Não houve neste processo
qualquer falha que possa
ser imputada ao Infarmed”.
Castro Alves garante que o Infarmed cumpriu o seu papel nas
autorizações especiais para o
tratamento da hepatite C: “Num
tempo médio de 11 dias, autorizámos todas as propostas de tratamento”.
Houve alguma falha por parte do
Infarmed na demora das autorizações pedidas pelos hospitais?
Há indicações da tutela para atrasar ou restringir autorizações devido à restrição orçamental?
Em termos de autorizações de
utilização excepcional, um mecanismo que assegura o acesso a
medicamentos que ainda não estão comparticipados pelo Estado,
o Infarmed, com a colaboração
muito empenhada da Comissão
Nacional de Farmácia e Terapêutica, cumpriu o seu papel. Num
ID: 57888683
11-02-2015
Tiragem: 16364
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Âmbito: Economia, Negócios e.
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João Relvas / Lusa
“Sempre soubemos que teríamos
de ser resilientes e que estávamos
perante uma luta desigual contra o
tempo”, diz Eurico Castro Alves
sobre as negociações com a
farmacêutica Gilead para aquisição
do tratamento para a hepatite C.
melhor ano na aprovação de medicamentos inovadores”
tempo médio de 11 dias, autorizámos todas as propostas de tratamento. Até ao dia 5 de Fevereiro o Infarmed autorizou 665 tratamentos, dos quais 499 corresponderam ao sofosbuvir ou a
medicamento inovador de efeito
terapêutico equivalente. Não
houve neste processo qualquer
falha que possa ser imputada ao
Infarmed. Quanto à questão sobre orientações da tutela, é evidente que o Infarmed nunca teve
nem poderia ter qualquer indicação ou sugestão desse género.
Como é que os Estados se podem
proteger das rendas excessivas
das farmacêuticas? No Brasil algumas patentes foram nacionalizadas... É um caminho?
Não prevejo que seja esse o caminho para Portugal ou para a Europa, até porque a segurança jurídica e o respeito pela propriedade industrial são essenciais
para motivar o investimento em
investigação e inovação.
Em Espanha discutiu-se a criação
de um fundo específico para financiar a inovação, com dinheiro
do orçamento do Estado e da indústria farmacêutica. Isso já foi
discutido em Portugal a nível governamental?
O investimento e o acesso à inovação foram incrementados em
2014, tendo sido o melhor ano de
sempre na aprovação de medicamentos inovadores, seja em novas substâncias activas, seja em
novas indicações para substâncias já existentes. Em 2013, o Serviço Nacional de Saúde investiu
119 milhões de euros em inovação. Até Setembro de 2014 a inovação já representava um investimento de 142 milhões de euros.
Se nos lembramos que, desde
2012, o Ministério da Saúde e a
indústria farmacêutica, através
da Apifarma, têm realizado sucessivos acordos de cooperação
com vista a reduzir a despesa pública com medicamentos e a
EUROPA
PE discute hoje
medicamentos
inovadores
Os socialistas querem
colocar na agenda europeia
a questão do acesso aos
medicamentos inovadores
e levam hoje o tema
à Eurocâmara. “Sabemos
que a Comissão não tem
o poder de regular preços
ao nível nacional. Mas tem
a obrigação de promover
e incentivar mecanismos
de procura agregada,
reforçando o poder negocial
dos Estados”, defenderá
hoje o eurodeputado
socialista Carlos Zorrinho,
em Estrasburgo.
contribuir para a sustentabilidade do SNS, creio que estarei a
responder à sua pergunta.
Porque é que não se conseguiu fazer uma negociação conjunta a
nível da União Europeia?
O Infarmed propôs, em Bruxelas,
o estabelecimento de uma aliança entre os países europeus para
concordarem com um preço máximo por tratamento com sofosbuvir de 5,93 vezes o preço do
medicamento no Egipto [700 euros], na directa proporção com a
média do PIB europeu, oferecendo ainda um volume de doentes
agregado maior que o do Egipto.
Apesar de todas estas iniciativas
demorarem o seu tempo a ser
amadurecidas, acredito que estamos no caminho certo para
uma política europeia de acesso
ao medicamento. Dizem-me que
vem aí um novo medicamento,
para um determinado tipo de
cancro, que será ainda mais caro.
Avizinha-se um verdadeiro in-
ferno de negociações para este e
outros medicamentos inovadores que estão na calha, pelo que
estas acções marcam um ponto
de partida para que a Europa e as
forças vivas da sociedade se
unam para ganhar escala e negociar preços únicos comportáveis
para todos Estados.
O Conselho Nacional de Ética
para as Ciências da Vida defendeu que o Ministério da Saúde
pode e deve “racionar” medicamentos mais caros. Chegámos a
esse ponto?
O pior que nos poderia acontecer
era haver racionamento de medicamentos. Para que tal não aconteça, temos que trabalhar todos
os dias para garantir a sustentabilidade do Serviço Nacional de
Saúde. Todos sabemos que não
existem recursos ilimitados e que
todos os dias somos confrontados
com a necessidade de garantir a
distribuição, com equidade, dos
recursos disponíveis. ■
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11-02-2015
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PRESIDENTE DO INFARMED
“Não podemos
afirmar que
o acordo com a
Gilead é o melhor
da Europa”
Eurico Castro Alves
avalia o acordo entre
o Governo e a
farmacêutica que
produz o
medicamento para a
hepatite C. E antevê
“um inferno de
negociações com a
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