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SOBRE A REVISTA
Lua Nova tem por objetivo fazer a alta reflexão de temas políticos e
culturais, contribuindo assim para elevar o nível intelectual do debate público. Em suas páginas, o leitor encontrará elaboradas incursões nos campos da teoria política (clássica e contemporânea), da
teoria social, da análise institucional e da crítica cultural, além de
discussões dos assuntos candentes de nosso tempo. Entre seus colaboradores típicos estão intelectuais, docentes e pesquisadores das
diversas áreas das Ciências Humanas, não necessariamente vinculados a instituições acadêmicas.
Os artigos publicados em Lua Nova estão indexados no Brasil no Data
Índice, na América Latina no Clase – Citas Latinoamericanas en Ciencias
Sociales y Humanidades, nos International Political Science Abstracts e na
Redalyc – Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y
Portugal. A versão eletrônica da revista está disponível na Scielo e no
portal da Capes.
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revista de cultura e política
2013 | no 88
ISSN 0102-6445
CONSTITUIÇÃO E
PROCESSO CONSTITUINTE
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Editor
Elide Rugai Bastos (Unicamp)
Comitê de redação
Adrian Gurza Lavalle (USP)
Elide Rugai Bastos (Unicamp)
Rossana Rocha Reis (USP/Cedec)
Conselho editorial
Adrian Gurza Lavalle (USP)
Alvaro de Vita (USP)
Amélia Cohn (USP)
Brasilio Sallum Jr. (USP)
Celi Regina Pinto (UFRGS)
Celina Souza (UFBA)
Cicero Araujo (USP)
Elide Rugai Bastos (Unicamp)
Elisa Reis (UFRJ)
Gabriel Cohn (USP)
Gonzalo Delamaza (Universidad
de Los Lagos)
Horácio Gonzalez (Universidad de
Buenos Aires)
John Dunn (University of Cambridge)
José Augusto Lindgren Alves
(Ministério das Relações Exteriores)
Leôncio Martins Rodrigues Netto
(Unicamp)
Marco Aurélio Garcia (Unicamp)
Marcos Costa Lima (UFPE)
Michel Dobry (Université Paris ISorbonne)
Miguel Chaia (PUC-SP)
Nadia Urbinati (Columbia University)
Newton Bignotto (UFMG)
Paulo Eduardo Elias (USP) †
Philip Oxhorn (McGill University)
Philippe Schmitter (European University,
Florence)
Renato Lessa (Iuperj)
Rossana Rocha Reis (USP/Cedec)
Sebastião C. Velasco e Cruz (Unicamp)
Sergio Costa (Freie Universität Berlin)
Tullo Vigevani (Unesp)
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Victor Manuel Durand Ponte
(Universidad Nacional Autónoma de México)
William C. Smith (University of Miami)
Preparação e revisão de texto
Anderson Lima
André Galletti
Dalila Silva
Renata Mourão Macedo
Márcia Cunha
Projeto gráfico e
editoração eletrônica
Signorini Produção Gráfica
Secretaria e assinaturas
Aline Menezes, secretária
Fones: 3569.9237, 3871.2966 – r. 23
e-mail: [email protected]
Comentários aos artigos?
Fale com o Editor:
e-mail: [email protected]
O Cedec é um centro de pesquisa e reflexão
na área de Ciências Humanas. É uma associação civil, sem fins lucrativos e econômicos,
que reúne intelectuais de diferentes posições
teóricas e político-partidárias.
Diretoria
Cicero Araujo, diretor presidente
Aylene Bousquat, diretora vice-presidente
Gabriela Nunes Ferreira, diretora
tesoureira
Cecilia Carmen Pontes Rodrigues,
diretora secretária
Conselho Deliberativo do Cedec
Amélia Cohn, Aylene Bousquat, Brasilio
Sallum Jr., Cicero Araujo, Elide Rugai
Bastos, Gabriel Cohn, Leôncio Martins
Rodrigues Netto, Luiz Eduardo Wanderley,
Maria Inês Barreto, Miguel Chaia,
Reginaldo Moraes, Sebastião C. Velasco e
Cruz, Tullo Vigevani
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Apoio:
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APRESENTAÇÃO
Este número 88 da revista Lua Nova apresenta um dossiê
sobre a Constituição e o processo constituinte brasileiro
do final dos anos de 1980. Organizado por Cicero Araujo,
constam desse dossiê nove artigos. Se a Constituição, tema
dos mais importantes para a compreensão da sociedade
brasileira, tem sido analisada por vários autores, o processo constituinte, embora tenha forte implicação no debate
acerca da democracia, foi menos visitado pela bibliografia.
Pensar a relação entre o processo e seu resultado constitui-se em trabalho original, cujos passos são formulados nos
textos aqui publicados.
Grande parte dos artigos resulta dos trabalhos de um
grupo de pesquisadores do Cedec que, a partir de um projeto financiado pelo CNPq, tem produzido análises sobre
a temática. Além disso, a partir do material recolhido na
investigação – documentos, entrevistas com protagonistas
da Assembleia Constituinte de 1987-1988, literatura sobre o
tema – constrói-se importante arquivo que possibilitará uma
ampliação desses estudos.
Além do dossiê completa o 88º número da revista um
artigo de Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira, “O
STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido
a supremo protagonista?” e um texto em homenagem a
Carlos Nelson Coutinho, importante intelectual falecido no
ano passado, de autoria de Marco Aurélio Nogueira.
Os textos aqui publicados foram propostos por seus
autores ao comitê de redação da Lua Nova, examinados e
aprovados por pareceristas externos, a quem agradecemos.
O EDITOR
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SUMÁRIO
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11 Socialismo e democracia no marxismo de Carlos
Nelson Coutinho (1943-2012)
Marco Aurélio Nogueira
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DOSSIÊ CONSTITUIÇÃO E PROCESSO CONSTITUINTE
25 Introdução
29 Genealogia da Constituinte: do autoritarismo à
democratização
Antônio Sérgio Rocha
4
89 O Debate Constituinte: uma linguagem democrática?
Tarcísio Costa
141 O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo
Andrei Koerner e Lígia Barros de Freitas
4
185 Processo Constituinte e Arranjo Federativo
Jefferson O. Goulart
217 Constituinte e Democratização no Brasil:
o impacto das mudanças do sistema internacional
Ademar Seabra da Cruz Júnior
257 The Weight of History and the Rebuilding of Brazilian
Democracy
Zachary Elkins
305 O Poder Constituinte do Povo no Brasil: Um Roteiro
de Pesquisa sobre a Crise Constituinte
Gilberto Bercovici
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327 O processo constituinte brasileiro, a transição e o
Poder Constituinte
Cicero Araujo
381 O essencial e o acidental: Bodin (e Hobbes) e a
invenção do conceito moderno de constituição
Bernardo Ferreira
ARTIGO
429 O STF e a Agenda Pública Nacional: de Outro
Desconhecido a Supremo Protagonista?
Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
471 Resumos/Abstracts
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Socialismo e democracia no marxismo de
Carlos Nelson Coutinho (1943-2012)
Marco Aurélio Nogueira
Quando publicou, em março de 1979, na revista Encontros
com a Civilização Brasileira, o ensaio “A democracia como
valor universal”, Carlos Nelson Coutinho já era um autor de
destaque no Brasil. Marxista de base lukacsiana, havia escrito dois belos e importantes livros – Literatura e humanismo,
de 1967, reunião de artigos de estética e crítica literária, e O
estruturalismo e a miséria da razão, de 1972, em que submetia
à crítica as ideias positivistas que se insinuavam entre a intelectualidade e no próprio campo marxista. Havia também
elaborado vários artigos sobre cultura brasileira, filosofia e
teoria política. Ainda jovem, era um autor prolífico, que se
singularizava pelo texto límpido, rigoroso e erudito.
Mas foi com esse ensaio (Coutinho, 1980) sobre a
democracia que Carlos Nelson ingressou de vez na cena
política e intelectual brasileira, para dela nunca mais
sair. Poucos textos tiveram tanta influência quanto aquele. Em plena ditadura militar no Brasil, o ensaio lançava
uma luz na escuridão; era como uma golfada de ar num
ambiente reprimido e sufocado, num momento em que
as esquerdas (dentro e fora do país) ainda digeriam o
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Socialismo e democracia no marxismo de Carlos Nelson Coutinho (1943-2012)
radicalismo pouco consequente das “guerrilhas” e, sem
conseguir assimilar a nova fase do capitalismo, as novas
formas sociais e a dimensão revolucionária da democracia
política, se envolviam em polêmicas verborrágicas sobre o
caráter “burguês” ou “proletário” da democracia e sobre
o “melhor caminho para o socialismo”. Dizia com todas as
letras, logo nas primeiras linhas:
A questão do vínculo entre socialismo e democracia
marcou sempre, desde o início, o processo de formação
do pensamento marxista; e, direta ou indiretamente,
esteve na raiz das inúmeras controvérsias que assinalaram
e assinalam a história da evolução desse pensamento
(Coutinho, 1980, p.19).
12
Tratava-se de um vínculo constitutivo do pensamento
de Marx e dos grandes marxistas, que não podia, portanto,
ser abandonado ou menosprezado. Ao contrário, precisava
ser plenamente recuperado, valorizado e atualizado. Era
hora de romper o marasmo, eliminar os vetos “marxistas-leninistas” à democracia política “burguesa” e conceber
uma estratégia democrática de transformação social, superando as limitações das prevalecentes teorias marxistas do
Estado, da revolução e do partido. Naquela altura da história das lutas sociais no mundo, não fazia mais sentido
menosprezar os procedimentos formais de representação,
decisão e criação de vontade política, que surgiram no
curso das revoluções burguesas clássicas e adquiriram
dimensão de “valor universal”, ou seja, ganharam validade geral e se incorporaram à experiência concreta das
sociedades modernas, enriquecendo o gênero humano.
O texto era claro:
As objetivações da democracia – que aparecem como
respostas, em determinado nível histórico-concreto
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Marco Aurélio Nogueira
da socialização do trabalho, ao desenvolvimento
correspondente dos carecimentos de socialização da
participação política – tornam-se valor na medida em que
contribuíram, e continuam a contribuir, para explicitar as
componentes essenciais contidas no ser genérico do homem
social. E tornam-se valor universal na medida em que são
capazes de promover essa explicitação em formações
econômico-sociais diferentes, ou seja, tanto no capitalismo
quanto no socialismo (Coutinho, 1980, p.24).
A argumentação vinha apoiada em um consistente arcabouço filosófico e valia-se do estímulo provocado por uma
instigante declaração de Enrico Berlinguer, então secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI), que afirmara,
nas comemorações do 60º. aniversário da Revolução de
1917: “A democracia é hoje não apenas o terreno no qual o
adversário de classe é obrigado a retroceder, mas é também
o valor historicamente universal sobre o qual fundar uma
original sociedade socialista” (apud Radice, 1979, p.128).
A sofisticada teoria política do PCI, então no auge de sua
forma física e intelectual, constituía naqueles anos a principal referência do marxismo que desejasse ser criação
crítica e não somente repetição de formulações consagradas. Ela irá ressoar com força no texto de Carlos Nelson
e repercutirá intensamente nos ambientes democráticos e
de esquerda no Brasil. A aceitação plena do pluralismo, da
busca de consensos, da multiplicidade de sujeitos políticos, da alternância de poder e da institucionalidade democrática tout court era então posta no centro da reflexão
política, num movimento teórico que deixava patente a
adesão de Carlos Nelson à perspectiva gramsciana da luta
por hegemonia, tema que ele iria desenvolver mais tarde
em seu excepcional livro Gramsci, de 1999.
Uma revolução poderia certamente ocorrer, mas ela
não seria “explosiva” e sim processual, encadearia reformas
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ao longo de um tempo impossível de determinar em abstrato. O Estado permaneceria como “aparelho” de opressão
de classe, mas alteraria sua forma em decorrência das pressões sociais, da socialização política e da complexificação da
estrutura social no capitalismo mais avançado, acentuando
sua condição de arena privilegiada da luta de classes. Portanto, também tinha de ser compreendido pela chave ético-política que Gramsci aproveitara de Benedetto Croce: um
agente de educação, espaço indissociável da sociedade civil,
locus de negociação e de construção de consensos, uma instância de governo e direção política. Tratava-se de assimilar
a ideia do Estado ampliado, um compósito de força e consenso, coerção e hegemonia, instituições, valores e massas
organizadas.
Eventuais governos socialistas não poderiam abrir mão
desses elementos, sob pena de não se completarem como
promessa reformadora. Se outro Estado pudesse ser concebido (e Carlos Nelson estava seguro de que podia), ele se
assentaria nessa dimensão universal da vida política e social
moderna. Uma nova hegemonia – capacidade de direção
política de um sujeito coletivo – somente poderia fazer sentido e ter desdobramento prático progressista se partisse
do reconhecimento da pluralidade irredutível dos sujeitos
e da irrevogabilidade das contradições sociais, ou seja, se
saísse do campo nebuloso dos “princípios” e se colasse à
vida, à complexidade real, aos tempos históricos particulares. A condição de possibilidade dessa nova hegemonia
estava dada pela incorporação sem subterfúgios da perspectiva democrática.
Para Carlos Nelson, a democracia precisava ser tratada como valor universal porque era um valor em si e uma
construção histórica que se fixara no horizonte da modernidade, abrindo-se assim, não como “caminho” ou “instrumento”, mas como plataforma de estruturação e impulsionamento de todos os movimentos políticos progressistas,
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reformadores. Ela não era somente base de um novo contrato social e um conjunto de “regras do jogo”, mas também
uma pedagogia para a luta e para a transformação social.
Ensinaria aos homens o valor dos “outros”, a dignidade das
pessoas, a tolerância, a relevância do diálogo, a complexidade da política e do político – fatores que se revestem de um
extraordinário poder de contestação e de agregação cívica.
A essa postulação, Carlos Nelson reunia uma teoria
da sociedade e uma estratégia política, o que fazia de sua
argumentação uma análise concreta de situações concretas.
Aceitar a democracia como valor universal não era um repto teórico ou filosófico, muito menos uma “tática política”
ou uma provocação que se fazia a uma esquerda fraseológica que parara no tempo, mas tratava-se antes de tudo do
desdobramento lógico de uma visão da realidade histórico-social, de uma compreensão do capitalismo contemporâneo e de seus desafios em escala nacional e internacional.
Particularmente no caso do Brasil – país que havia sido
condicionado por um padrão selvagem e autoritário de
desenvolvimento capitalista –, a questão democrática estava
no centro de tudo. Em 1979, em meio aos anos de chumbo, às vésperas da anistia política e do início do último
período da ditadura militar, o tema adquiria peso decisivo. Saber resolvê-lo teoricamente era qualificar uma teoria
da ação, estruturar uma agenda de lutas e dar sustentação a um discurso que precisava ganhar as multidões. Era
também um modo de conceber o Estado e suas políticas,
a relação governantes/governados, as reformas sociais e a
fixação da cidadania. A democratização que já se anunciava
no plano social e cultural precisava ser estendida ao plano
político imediato. O mesmo raciocínio poderia incluir os
distintos países da América Latina, ainda que com ritmos e
cores particulares.
Não foi, portanto, por acaso ou por mero capricho
teórico que o ensaio de Carlos Nelson incorporou de for-
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ma inovadora e criativa o conceito leniniano de “via prussiana”, valendo-se para tanto do tratamento mais ampliado
que Georg Lukács lhe dera. Segundo o filósofo húngaro,
o conceito não deveria se limitar ao modo como a questão
agrária seria resolvida em sentido estrito (como a propriedade da terra seria incorporada aos padrões capitalistas),
mas envolver todo o desenvolvimento do capitalismo e a
superestrutura política das sociedades burguesas. Lukács
também aproximou esse conceito dos problemas da cultura e da intelectualidade, ao dar operacionalidade à ideia
de “intimismo à sombra do poder”, com o que destacava
o imenso poder de atração exercido sobre os intelectuais
pelos núcleos do poder de Estado, principal “agente” de
modernização. A falta de democracia e de participação
popular seriam subprodutos inevitáveis desse padrão de
revolução burguesa, no qual a modernização faz concessões para poder avançar e é por isso “conservadora”, tendendo para o encontro de soluções autoritárias. Assim teria
ocorrido na Alemanha (nazismo) e na Itália (fascismo)
(Lukács, 1972, pp.29-74).
Ciente de que não se tratava de simplesmente “aplicar”
o conceito como se fosse um modelo, mas sim de tomá-lo como referência macro, Carlos Nelson o utilizou para
construir sua análise da situação brasileira, cuja revolução
burguesa assumiu caráter abertamente antidemocrático. As
transformações políticas e a modernização capitalista ocorridas no Brasil não resultaram de autênticas revoluções, de
movimentos provenientes de baixo para cima, que envolveriam o conjunto da população, mas sempre foram efetuadas
de forma “prussiana”, ou seja,
[...] através da conciliação entre frações das classes
dominantes, de medidas aplicadas de cima para baixo,
com a conservação de traços essenciais das relações de
produção atrasadas (o latifúndio) e com a reprodução
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ampliada da dependência ao capitalismo internacional
(Coutinho, 1980, p.32).
Nessa dinâmica, as classes e camadas sociais “de baixo”
permaneceram marginalizadas, reprimidas e fora do âmbito das grandes decisões políticas.
A transição brasileira para o capitalismo (e de cada
fase do capitalismo para a fase subsequente) deu-se tanto
no quadro da reprodução ampliada da dependência – ou
seja, com a passagem da subordinação formal à subordinação real em face do capital mundial – quanto no quadro de
uma “modernização conservadora”: relações de produção
atrasadas (o latifúndio) foram preservadas e incorporadas
funcionalmente ao capitalismo. Tal fator pesou como uma
bola de chumbo sobre toda a história nacional, retardando
dramaticamente uma industrialização centrada no mercado
interno ampliado e facilitando a monopolização precoce e
a dependência externa.
O combate ao autoritário elitismo “prussiano” confundia-se, assim, com a renovação democrática da vida social,
que se mostrava o modo mais avançado de levar a cabo as
tarefas que a ausência de uma revolução democrático-burguesa deixara em aberto. A democracia adquirira valor universal e potência subversiva.
No ensaio de 1979, o conceito leninista e lukacsiano de
“via prussiana” era incorporado de forma reflexiva e não
como modelo a ser aplicado. Carlos Nelson, já então, apropriara-se dos conceitos de “revolução passiva”, “revolução-restauração” e “revolução pelo alto”, com os quais Gramsci
não só acentuara o caráter antidemocrático e conservador
do desenvolvimento capitalista italiano, como também
procurara compreender a dinâmica do capitalismo que se
encaminhava para o fascismo e para o Estado de bem-estar
(Gramsci, 1999-2002, passim). A “revolução passiva” gramsciana era assim usada como “critério de interpretação” da
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formação social brasileira, na qual podiam ser visualizados
os mesmos fenômenos observados por Gramsci na Itália:
fortalecimento do Estado em detrimento da sociedade civil,
com o predomínio das formas ditatoriais da supremacia em
detrimento das formas hegemônicas, e a prática do transformismo como modalidade de desenvolvimento histórico
que implica a exclusão das massas. Dali em diante, ainda que
modificasse e corrigisse suas formulações, Carlos Nelson
não mais se afastaria desse modo de pensar.
A teorização traduzia-se em estratégia política: as lutas
populares – e mais concretamente a luta contra a ditadura
militar no Brasil – teriam de avançar por uma estrada longa e árdua, ganhando oxigênio ao se unificarem em torno
da luta pelas liberdades democráticas e pela democracia
política. A opção pelo que Gramsci chamara de “guerra de
posição” era assim uma imposição da realidade: a recusa
ao “golpismo de esquerda” (que será visto por Carlos Nelson como atravessado por um tipo semelhante de elitismo
“prussiano”) e a progressiva obtenção de posições firmes na
sociedade civil tornariam possível a conquista democrática
do poder de Estado pelas forças progressistas. A renovação
democrática, a democratização, seria o conteúdo estratégico da revolução socialista no Brasil e na América Latina,
poder-se-ia dizer.
Os anos de 1980, período em que a ditadura brasileira se decompõe acossada por um movimento democrático
de amplas bases populares, dariam razão a essa perspectiva.
Nas décadas seguintes, com Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), o Brasil avançaria política e socialmente, ainda que com altos e
baixos, mediante a consolidação da democracia política.
Em paralelo à consolidação de sua matriz teórica, Carlos Nelson iria atualizá-la e aprofundá-la. Reformularia
algumas ênfases, incorporaria de modo pleno a perspectiva gramsciana da “revolução passiva”, voltaria a dialogar
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com Lukács, (Coutinho, 2005a), traria Rousseau para o
debate marxista (Coutinho, 2011) e manteria incansável
trabalho de reflexão sobre cultura brasileira (Coutinho,
1986, 2005b) e, em particular, sobre marxismo (Coutinho, 1992, 1994, 2006). Em todas suas intervenções, permaneceriam vivas as apostas teóricas e políticas feitas no
famoso texto de 1979.
Carlos Nelson escreveu esse ensaio seminal como militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), do qual se
afastou nos primeiros anos da década de 1980. Mais tarde,
em 1989, ingressou no Partido dos Trabalhadores. Em 1986,
tornou-se professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que lhe concedeu o título
de professor emérito em junho de 2012.
Foi nessa condição de intelectual militante que concebeu e coordenou a edição brasileira de Cadernos do Cárcere de
Antonio Gramsci, publicado pela Civilização Brasileira entre
1999 e 2002 em seis volumes. Envolveu-se em muitas conversas, discussões e sessões de estudo para estruturar a obra.
O planejamento foi rigoroso e minucioso. Supervisionou
todo o trabalho, traduziu, redigiu notas complementares
e introduções, com a colaboração decisiva de Luiz Sérgio
Henriques, editor da revista eletrônica Gramsci e o Brasil 1.
Carlos Nelson a chamava de “edição temática dos Cadernos”, para realçar a perspectiva então seguida de privilegiar
as notas finalizadas e organizadas (segundo determinados
temas) por Gramsci. Não a via como uma edição crítica ou
completa, para especialistas, mas como uma edição destinada
a fazer com que Gramsci fosse melhor conhecido e estudado
no Brasil. Esta foi sua maior realização.
Ao longo dos governos Lula da Silva, Carlos Nelson
divergiu seguidamente das opções e das políticas governamentais então adotadas. Entendeu que elas não favo-
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Disponível na página eletrônica www.gramsci.org.
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reciam mudanças econômicas e sociais mais profundas.
Não aceitava que Lula se autoproclamasse um político
que jamais havia sido de esquerda, nem muito menos o
modo como o PT era dirigido e atuava, com excessivas
preocupações eleitorais e muitas conciliações. Em 2004,
trocou o PT pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol),
uma pequena agremiação composta por diversas tendências e dissidências de esquerda que haviam discordado do
PT durante os primeiros anos da presidência Lula. Fez seu
périplo partidário sem se afastar da visão democrática, do
compromisso socialista, da paixão intelectual por Gramsci
e pela batalha de ideias. Foi até o fim um comunista democrático, generosamente aberto ao diálogo, à controvérsia e
à reforma social.
A morte de Carlos Nelson em setembro de 2012 deixou
a cultura e as esquerdas brasileiras mais pobres e vazias; seu
trabalho, porém, deixou para elas um legado intelectual rico
e substantivo. Para os que puderam com ele conviver, discutir, trabalhar e fazer política, para os que leram e aprenderam com seus textos, a sensação é de perda, mas também
de serena compreensão de que Carlos Nelson cumpriu uma
função de extraordinária importância no desenvolvimento
do pensamento democrático e socialista no Brasil.
Marco Aurélio Nogueira
é cientista político, diretor do Instituto de Políticas Públicas
e Relações Internacionais da Unesp.
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Havana: Casa de Las Américas.
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Marco Aurélio Nogueira
. 1992. Democracia e socialismo: questões de princípio e contexto brasileiro. São Paulo: Cortez.
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Introdução
Cicero Araujo
Até recentemente, poucos trabalhos acadêmicos sobre a
trajetória da reconstrução constitucional do país a partir
de 1988 se dedicaram a analisar o processo constituinte
que a desencadeou. Grande parte da literatura em várias
disciplinas voltou-se à análise do texto constitucional e das
consequências deste no plano das práticas jurídicas; da
relação entre os poderes; ou mesmo – este mais amplo –
das práticas sociais. Na ciência/sociologia política, estudos
importantes foram feitos sobre as reformas constitucionais
ocorridas ao longo da década de 1990, mas também nesse
campo disciplinar, a atenção ao processo constituinte foi
relativamente menor.
Essa tendência vem se revertendo nos últimos anos e
há diversas razões para isso. Dentre elas, basta mencionar
duas. Primeiro, um deslocamento mais ou menos natural
dos interesses de pesquisa, que vai da análise dos resultados
(a própria Carta promulgada em 1988) à interrogação sobre
o processo político que levou a eles. A expectativa, dessa
forma, é a de ganhar uma compreensão mais profunda do
sentido histórico (especialmente em relação ao futuro) das
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Introdução
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novas práticas constitucionais. Segundo, um razoável distanciamento temporal do objeto – talvez ainda um tanto pequeno para a escala dos historiadores, mas já bastante considerável para a dos cientistas políticos, sociólogos e juristas, se
considerarmos sua propensão a analisar acontecimentos “à
quente”. Poder-se-ia dizer até que o interesse sobre o assunto vem crescendo à medida que essas disciplinas passaram
a notar certas vantagens cognitivas da análise de processos
históricos de médio prazo. Ou seja, nem tão remotos a ponto de enfraquecer demais os elos do passado com o presente
e o futuro visível, nem tão imediatos, a ponto de se perder a
perspectiva mesma de um “processo”.
O presente dossiê é uma contribuição a essa literatura acadêmica em adensamento. Exceto por dois artigos, os
demais resultaram dos esforços de um grupo de pesquisadores do Cedec que, a partir de um projeto financiado pelo
CNPq, começou a produzir análises e a montar um importante arquivo de documentos primários e literatura secundária sobre o tema. Os trabalhos aqui publicados também
se beneficiaram de uma série de entrevistas com protagonistas da Assembleia Constituinte de 1987-1988, além de debates, seminários e contatos acadêmicos (dentro e fora do
Brasil) que dela se seguiram, todos organizados pelo grupo do Cedec. Além de oferecer diferentes interpretações
do processo histórico em si mesmo, os artigos procuram
dissecar alguns dos embates políticos que ocorreram antes
e durante a Assembleia Constituinte, enfocando especialmente a relação entre atores institucionais preexistentes e
a elaboração da própria constituição. Ao deter-se sobre um
objeto histórico e empírico, o dossiê não deixa, porém, de
levar em conta contribuições de cunho mais teórico e conceitual relacionadas ao tema, como o leitor verá.
Abrindo o dossiê, Antonio Sergio Rocha expõe uma
síntese do processo e de suas sucessivas etapas, tendo como
interrogação os motivos que levaram à convocação, no BraLua Nova, São Paulo, 88: 25-28, 2013
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Cicero Araujo
sil, de uma assembleia constituinte para promover a reforma
constitucional, o que esse autor faz retroagir aos tempos do
regime autoritário. Em seguida, Tarcísio Costa reconstrói o
contexto intelectual dos debates constituintes, se perguntando o quanto as ideias democráticas, em franca ascensão no
mundo, teriam capturado os protagonistas daqueles debates.
Sabe-se que foram grandes as influências corporativas
durante a Assembleia Constituinte. Dois dos artigos abordam
mais especificamente dessa questão, ao tratarem de duas áreas consideradas cruciais na própria estrutura do arranjo institucional proposto pela Carta. Primeiro, o setor que lida com
o Poder Judiciário: Andrei Koerner e Ligia Barros de Freitas,
em artigo conjunto, refazem a curiosa história da influência, direta e indireta, do Poder Judiciário “constituído” – em
particular o Supremo Tribunal Federal, isto é, aquele em
vigência antes e durante a Assembleia Constituinte – sobre
o Poder Judiciário “a constituir”. Em seguida, Jefferson Goulart procura entender a influência da pressão setorial – desta
vez dos poderes locais e regionais – sobre o ramo da futura
estrutura constitucional que lhe é afim: o “arranjo federativo”, influência que, a seu ver, levou à “primazia das partes”,
em detrimento da polarização ideológica que caracterizou
outros embates ocorridos naquela assembleia.
Mais duas influências profundas são consideradas no
dossiê – influências “externas”, digamos assim, embora de
naturezas distintas. Em seu artigo, Ademar Seabra da Cruz
Júnior analisa o impacto das mudanças do sistema internacional, que, na época, coincidiam com o colapso do bloco socialista liderado pela antiga União Soviética e o consequente fim da Guerra Fria. E Zachary Elkins considera
o fenômeno sociocultural da “difusão” para entender de
que modo se deu a influência de “modelos” constitucionais
bem-sucedidos ou tradicionais sobre o debate presidencialismo versus parlamentarismo e sobre as decisões tomadas
pela assembleia a respeito do sistema de governo.
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Introdução
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Indo para um plano um pouco mais teórico, Gilberto Bercovici propõe uma discussão sobre o conceito de
“poder constituinte do povo” para abordar os debates relacionados à teoria constitucional. Tem como horizonte uma
avaliação crítica das visões prevalecentes que, a seu ver,
despolitizam as interpretações judiciais da Constituição e
empobrecem as práticas jurídicas delas decorrentes. Cicero Araujo, por sua vez, analisa a questão do Poder Constituinte tendo em conta o impacto da experiência política
brasileira a partir de 1964, em especial o contexto de fluidez institucional da transição à democracia. Encerrando o
dossiê, Bernardo Ferreira, em perspectiva eminentemente
conceitual, reconstrói a experiência intelectual mais ampla
que levou ao conceito de constituição que informa todos
os processos modernos de elaboração de uma carta constitucional, inclusive, por certo, os ocorridos no Brasil.
Essa série de artigos, obviamente, está longe de esgotar
o estudo das questões mais relevantes suscitadas pelo processo constituinte, mesmo as abordadas aqui. Como uma
contribuição parcial, esperamos que ela estimule a continuidade e a expansão das pesquisas, posto que ainda há
muito a aprender com elas, tanto na dimensão empírica
quanto na teórica. Cabe, enfim, registrar nosso agradecimento público ao suporte proporcionado pelo CNPq e pelo
próprio Cedec, sem os quais nada do que foi relatado acima
teria sido possível.
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Genealogia da Constituinte:
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Antônio Sérgio Rocha
Era possível a volta do Brasil à democracia sem os trabalhos
da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987-1988?
Por que o formato adotado foi o de um Congresso Constituinte? Como entender o resultado de suas atividades?
Neste artigo, argumentamos que o regime instalado
a partir de 1964 se proveu de atributos institucionais que
efetivamente exigiram que a redemocratização se desse
através de um processo constituinte. A reiterada constitucionalização das normas antidemocráticas e das medidas
de exceção por parte dos militares e dos seus aliados civis,
conjugada ao déficit de legitimidade da ordem autoritária, tornaram incontornável o recurso a uma assembleia
constituinte para a instauração de uma institucionalidade
democrática no país.
29
1
Este texto é uma versão bastante compacta do material produzido pela pesquisa iniciada em 2008 no Cedec, sob amparo financeiro do CNPq, intitulada “Em
busca do processo constituinte, 1985-88” e em curso de renovação. Os diversos
depoimentos colhidos, a ampla documentação primária levantada e coligida e a
literatura consultada são a base dos cinco volumes de Memória da constituinte atualmente em preparação pelo autor.
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Genealogia da Constituinte: do autoritarismo à democratização
O dédalo da transição política brasileira lançou raízes
no híbrido institucional construído no autoritarismo. Não
se pretende recontar aqui essa transição. O foco deste trabalho recai nas escolhas políticas feitas pelos protagonistas
– tanto da oposição quanto do regime – a partir das instituições postas pela ordem autoritária. Busca-se evidenciar os
momentos críticos dessa longa, complexa e sinuosa jornada
rumo à transformação do regime, encadeando e integrando
eventos, atores e contextos de decisão a partir de episódios
ordinariamente tratados de forma separada: autoritarismo,
transição política e Constituinte. O recurso à diacronia
intenta destacar as linhas de continuidade e as inflexões
dessa trajetória. Almeja-se com isso estabelecer as bases
para a construção de uma narrativa que possa prestar-se à
ulterior discussão de questões relativas à mudança política
e construção institucional em termos de processos constituintes comparados.
30
A configuração institucional do autoritarismo
Na época, como ainda hoje, a caracterização institucional
do período 1964-1985 constituiu-se em objeto de dissenso
entre os analistas, pelos atributos heteróclitos que estavam
presentes naquela configuração política. Indubitavelmente se tratava de um regime repressor e violador de direitos
humanos, e desde logo calcado na Doutrina de Segurança
Nacional. A ambígua moldura institucional que se estabeleceu a partir de sua instalação o fez receber denominações
diversas: “situação autoritária” (Linz, 1973; Cardoso, 2006),
“híbrido institucional” (Kinzo, 1988) e “regime burocrático-autoritário” (O’Donnell, 1990, Hagopian, 1996). Não é,
entretanto, a discussão e a adequada classificação do período enquanto regime político que importam aos propósitos
deste artigo, e sim pôr em evidência as restrições e os incentivos que as instituições representativas postas pelo autoritarismo exerceram sobre as escolhas políticas dos atores – em
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especial, suas consequências sobre a dinâmica da mudança
da ordem constitucional instaurada pela coalizão civil-militar que empalmou o poder em 1964.
Militarismo e instituições representativas
A concepção tutelar das Forças Armadas (FFAA) sobre a
política brasileira teve traços formativos muito ambivalentes. Ainda que se pusesse em xeque a possibilidade
de democracia no país e se buscasse excluir outros atores
do núcleo decisório, também se procurou salvaguardar a
instituição militar e colocar em prática uma certa versão
de governo representativo. Assim, desde o início, houve
esforço para a montagem de uma concepção impessoal de
governo. Ao tempo que desconfiavam e desprezavam os
civis, as FFAA temiam que, ao assumir o controle do sistema político, sofressem um processo de autodesagregação.
O temor maior era o surgimento de lideranças caudilhistas, com o potencial de antagonizar lideranças militares
e esfacelar a organização – como era o exemplo visível
das demais nações latino-americanas. Nesse sentido, os
doutrinadores militares estabeleceram uma cuidadosa
separação entre as funções de governante e as funções de
membro das FFAA, por meio da criação de regras rígidas
para evitar a politização entre os militares. São exemplos
desse esforço (i) a ida obrigatória das lideranças carismáticas para a reforma; (ii) a manutenção da Presidência da
República como cargo eletivo – ainda que pela via de um
Colégio Eleitoral – e (iii) a manutenção dos limites tradicionais à duração do mandato, juntamente com uma norma contra a reeleição.
Ao se operar in tanden com esse aspecto, buscou-se a
preservação de um sistema representativo. Se é verdade
que os militares manipularam contínua e sistematicamente as condições nas quais as eleições ocorreram nos vinte
anos do regime, também é fato que eles não tentaram eli-
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minar o sistema eleitoral ou substituí-lo por uma doutrina de representação inteiramente distinta – por exemplo,
pelo corporativismo –, e ininterruptamente ocorreram
eleições no país entre 1965 e 1982. Mesmo com um sistema partidário artificial e compulsoriamente criado (tanto
em 1965 como em 1979), nunca se deixou de contar com
uma agremiação oposicionista que atuasse abertamente
no sistema político. Ao contrário dos demais regimes militares da América do Sul – ou do Estado Novo varguista
–, o Congresso Nacional permaneceu aberto durante a
maior parte do tempo, funcionando ao menos como locus
de vocalização e resistência por parte da oposição parlamentar. Em termos institucionais, tratava-se de um regime
político incompletamente autoritário.
Aparato constitucional: a legalidade-sine-legitimidade
32
Já em abril de 1964, poucos dias após o Golpe Militar, o
senador Aluísio de Carvalho Filho2 subia à tribuna do Legislativo federal para pedir publicamente a convocação de
uma Assembleia Constituinte. A constitucionalização do
novo regime, no entanto, só se daria dali a três anos: incorporando o arbítrio dos Atos Institucionais e das dezenas
de Atos Complementares promulgados até então, a Carta
Constitucional de 1967 criava um sistema político com vasta
concentração de poderes no Executivo e no nível da União.
De facto como de jure, ficavam abolidos os controles verticais
e horizontais sobre os detentores do poder político. A Presidência da República se tornava o órgão máximo do regime. Buscava-se institucionalizar sua reprodução por meio
de um Colégio Eleitoral, como se lia no artigo 76 da Carta: “O Presidente da República será eleito pelo sufrágio de
um Colégio Eleitoral, em sessão pública e mediante votação
2
Membro da UDN (BA) e suplente de Octavio Mangabeira. Depois se filiaria à
Arena, vencendo a eleição para o Senado Federal em 1966.
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nominal”3. A escolha de governadores de estado, prefeitos
de capitais e de municípios em área de segurança pública
ficaria como atribuição exclusiva do chefe de Estado.
Do ângulo da sociedade, os direitos civis dos brasileiros
eram virtualmente aniquilados. Conquanto tenha havido
certa expansão de direitos sociais, sua regulação seguiria
sob férrea tutela do Estado4. Mas no caso dos direitos políticos, houve ambiguidades (Carvalho, 2010). Muitas levas de
cassações de mandatos e de incapacitação eleitoral eliminavam as lideranças que o regime considerava inaptas para
o jogo político que praticava. Para o eleitorado em geral,
entretanto, preservou-se o direito de voto em pleitos proporcionais (deputados federais, estaduais e vereadores) e
para Senado Federal. E, embora dificultosa, não se vedava
formalmente a criação de novas agremiações políticas.
Em 1969, a Emenda Constitucional n. 1 feita à Carta de
1967 extremaria a dimensão repressora do regime, constitucionalizando o liberticida Ato Institucional n. 5. No mesmo
ano, a Lei de Segurança Nacional estabeleceria a pena capital para vários crimes de natureza política (Moreira Alves,
1984). A ambiguidade cessava. Entravam em latência as instituições representativas até então criadas. O regime se tornava abertamente ditatorial.
Mesmo profusa e minuciosamente escorada em constituições, atos e diplomas legais5, a coerção per se, entretanto, não
33
Prescrevia-se a composição do Colégio Eleitoral através dos membros do Congresso Nacional e por três delegados indicados por cada Assembleia Legislativa
estadual, adicionados de mais um delegado a cada 500 mil eleitores inscritos no
estado, não podendo nenhum deles ter menos de quatro delegados. A eleição do
Presidente se faria por maioria absoluta dos votos. Uma Lei Complementar regularia os procedimentos do órgão.
4
Com a manutenção e mesmo incremento da concepção de “cidadania regulada”
(Santos, 1979).
5
Em depoimento à equipe do Cedec, Célio Borja opinou: “Esse vezo da linha-dura
em ter Constituições, emendas, é algo ínsito à organização militar, por tratar-se de uma
organização toda ela minuciosamente regulada. De modo que esse conjunto de atos e
emendas dos militares de fato não tinha nada a ver com constitucionalização. Era na
verdade um grande RDE, uma ampliação do Regulamento Disciplinar do Exército”.
3
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se bastava como meio para consolidar o domínio político do
“Movimento de Março”. Era o seu futuro que colocava dúvidas: como estabilizar a nova ordem política – ao menos no
indefinido período de preparação para um retorno à democracia prometido pelos militares6? Faltaria, talvez, o elemento
que Célio Borja apontou mais tarde: “a questão é saber por
que não veio da elite civil a doutrina autoritária que, acredito, teria sido a fórmula de estabilização do regime”7.
A hipótese do déficit de legitimidade seria elaborada
de forma sistemática por Linz (1973), em seu clássico estudo sobre o caso brasileiro,8 resumida posteriormente em
reportagem de periódico brasileiro:
34
No Brasil, a existência de uma situação autoritária [...]
é uma evidência das dificuldades que se apresentam
para a institucionalização desse tipo de regime. [...]
As duas fórmulas de legitimação apartidária – a
carismática e a corporativa – não parecem estar
6
As tentativas de dotar o regime de um arcabouço institucional ocorreram também de fora do governo. Em 1965, o jurista Goffredo Telles lançava a obra A democracia e o Brasil. Em 1966, o sociólogo Oliveiros Ferreira colaboraria intensamente
no recolhimento de sugestões para a equipe de redatores da Constituição Federal
de 1967, como relataria mais tarde, em 1986. Em 1972, o jurista Manoel Gonçalves
Ferreira Filho apresentava, na primeira edição do seu livro A democracia possível,
um projeto minucioso de institucionalização do regime. Considerava que “[...] a
construção política que ora se impõe reclama a elaboração de uma nova Constituição. A de 1967, embora retocada em 1969, pela Emenda Constitucional n. 1,
não atende às exigências da institucionalização revolucionária [...] nem é apta a
assegurar a continuidade da obra da Revolução de Março. [...] Tanto assim é que a
sobrevivência da Revolução tem sido garantida, segundo muitos pretendem, pelo
Ato Institucional n. 5, que, na verdade, a suspende. [...] Essa é tarefa política magna: a democracia possível para o progresso na ordem” (Ferreira Filho, 1972, p.126).
7
É possível que os ideólogos-juristas do regime tenham pressentido essa falta irreparável na montagem da nova ordem política, ao antecipadamente sustentarem que havia uma legitimidade intrínseca no movimento civil-militar de 1964,
conforme se lê no prólogo do primeiro Ato Institucional: “A Revolução vitoriosa
se investe no Poder Constituinte. [...]. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder
Constituinte, se legitima por si mesma”.
8
Para uma crítica ao conceito de crise de legitimidade como explicação para a
saída do autoritarismo e a transição política, ver Przeworski (1986).
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disponíveis para os governantes brasileiros. [...] No melhor
dos casos, os governos se sucederão administrando a
economia, mas adiando quase indefinidamente qualquer
projeto sério e consistente de institucionalização política.
Falando de forma pragmática, tal processo, combinando
a administração, manipulação, decisões arbitrárias,
campanhas aparentes e frequentes mudanças de pessoal,
pode vir a ser bem-sucedido enquanto a economia for
bem. Isso poderia assegurar a continuidade da situação
atual, mesmo deixando para o futuro um vácuo político
aterrador (Veja, 1973, pp.3-12).
Muito antes da crise econômica que, conforme vaticinava Linz, derruiria o regime, suas principais lideranças encetariam passos de afastamento do autoritarismo puro e duro.
Uma nova dinâmica se instalaria no sistema político.
O híbrido se move
Nem regime militar, nem ditadura, mas uma “democracia
relativa”9. Tal era a avaliação que as lideranças das FFAA
faziam da ordem política que instalaram no país. O próprio
valor da democracia não era negado, e pretendiam que a
repressão fosse uma medida excepcional, com duração temporária.
Tentativas de liberalizar o regime ocorreram desde o
seu início. Castello assumiu a Presidência comprometendo-se com o retorno à democracia em dois anos; a linha-dura
o obrigaria a adiar continuamente a promessa, ao final des-
35
“Eu discordo da denominação regime militar para o período de 1964 a 1985 no
Brasil. Porque regime militar foi aquilo que eu vi no Peru, quando lá estive como
representante da nação brasileira. Vi o presidente da República, general Velasco
Alvarado, em reunião com seu ministério – todos eram da caserna, todos estavam
fardados. Para mim, esse é que foi um regime militar. No caso do nosso país, vou
pedir ajuda ao general Geisel para definir o que tivemos: o regime foi uma democracia relativa” (depoimento de Jarbas Passarinhos à equipe do Cedec, concedido
em Brasília, em 2010).
9
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cumprida. Desde a sua posse, Costa e Silva anunciava a alvorada da democracia – mas presidiria o mergulho do país
na ditadura escancarada pelo AI-5. Mesmo sob Médici, com
o país convulsionado pela virulência repressiva, o ministro
Leitão de Abreu tomaria a iniciativa de encomendar ao
politólogo norte-americano Samuel Huntington um estudo
para balizar a estratégia política do governo rumo a uma
pretendida liberalização (Branco, 1982)10. Longe da imagem de grupo monolítico e do discurso da coesão interna,
no interior das FFAA havia, na realidade, uma funda e continuada disputa entre as facções ditas linhas-dura e reformistas acerca dos rumos do regime.
No seio da oposição, existia igualmente uma vincada
divisão acerca das visões e das estratégias da luta pela superação do autoritarismo. Um caso exemplar dessa disputa
se deu em setembro de 1973, quando o cientista político
Wanderley Guilherme dos Santos apresentou um trabalho
sobre a reorganização institucional do Brasil no plenário
do Congresso Nacional. Ele sugeriu que a ordem política fosse descomprimida por etapas, buscando-se evitar os
riscos de uma “recompressão”, a ser desencadeada pelas
forças extremistas (Santos, 1978). A tese de Santos gerou
imediata reação na ala da oposição parlamentar composta
pelos “autênticos” do MDB, que criticaram e combateram
duramente a concepção gradualista da mudança de regime. Assim como a oposição clandestina, os “autênticos”
pretendiam não menos que uma ruptura frontal com o
regime. Também os oposicionistas se fraturaram em duas
alas frequentemente irreconciliáveis.
Foi em 1974, com a posse do general Geisel na Presidência da República, que passos efetivos para a distensão do
regime afinal ocorreram, ao serem introduzidas alterações
10
Huntington formulará uma proposta de “mexicanização” do país, por meio da
transformação da Arena em um partido dominante ao estilo do PRI. A proposta
não terá acolhida pelo regime.
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no padrão de relacionamento regime-oposição. Da parte
do governo, buscava-se uma gradual redução dos custos
da coerção, ao tempo que operava para conter a crescente
autonomia do aparato da repressão. Da parte da oposição,
havia a exploração sistemática dos espaços políticos que
surgiam a cada momento. A revitalização das instituições
representativas do regime fez com que o MDB lograsse se
organizar como uma poderosa força eleitoral, capaz de
extrair importantes concessões junto às lideranças governamentais. Ainda assim, haveria um implacável fogo cruzado
entre os extremistas do regime e da oposição, e a abertura
política geiseliana se daria se forma lenta, gradual e segura11. Eppur se muove.
Constituinte: o MDB e o projeto democrático
A agenda política da oposição institucional se construiu
em torno de quatro reivindicações fundamentais: retorno
ao Estado de direito, anistia política, eleições diretas para
presidente da República e uma nova Constituição. Esses
pleitos e essas demandas delinearam o projeto democrático
do MDB para o país (Kinzo, 1988). Por certo, a prioridade
e a sequência de tais conquistas não eram, e não podiam
ser, objeto de escolha deliberada – em parte, pela adversas
circunstâncias políticas em que se vivia, mas também pelas
disputas no interior da própria agremiação oposicionista.
O projeto democrático emedebista conheceria contornos efetivos em julho de 1971, quando, pela primeira
vez, se lançou formalmente a proposta de convocação de
37
11
A frase de Geisel foi dita em 29 de agosto de 1974, em reunião com dirigentes
da Arena. Geisel destacava que promoveria o máximo de desenvolvimento econômico, social e político com o mínimo de segurança indispensável. Agregava que
pressões para que esse processo fosse mais acelerado seriam um erro: “Tais pressões servirão, apenas, para provocar contrapressões de igual ou maior intensidade,
invertendo-se o processo da lenta, gradativa e segura distensão” (Gaspari, 2003).
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uma Assembleia Nacional Constituinte, na chamada “Carta
de Recife”. Num ambiente nacional marcado pela euforia
diante do “milagre” econômico, o partido oposicionista
vivia uma fase de mutilações e cassações, numa quadra de
persistentes reveses eleitorais. Da clandestinidade, muitos
grupos contestavam a convivência da oposição legal com
as regras autoritárias, e parte da agremiação passou a pregar a sua autodissolução como forma de protesto contra o
regime. A Carta de Recife vinha para definir a Constituinte
como uma necessidade e um objetivo concreto da luta do
MDB contra o autoritarismo.
A tese da Constituinte, no entanto, operava mais para
demarcar a divisão entre os emedebistas “autênticos” (que
a defendiam) e os moderados (que a condenavam) do que
para mobilizar o partido na atuação por uma nova ordem
constitucional12. Esse objetivo seria retomado e sistematizado nas movimentações do MDB visando às eleições
de 1974, com o lançamento da campanha “Constituinte
com anistia”. Nenhum desses dois objetivos vingaria nesse pleito, contudo, o partido colheria uma expressiva e
inesperada vitória eleitoral. Assim, detalhe importante,
ao atuar no interior das regras estipuladas pelo próprio
regime, o partido demarcava o que um analista denominará de “abertura pela via das eleições” (Lamounier,
1986). A reversão da sorte eleitoral alentaria o grupo dito
moderado da oposição, robustecendo sua convicção da
viabilidade da luta no seio da institucionalidade autoritária.
Tal como Castello em 1965, o governo Geisel não
afrontou o resultado adverso das eleições. Mas reagiu com
dureza, de modo a neutralizar a vantagem oposicionista e
evitar novo avanço no pleito de 1978. O Pacote de Abril,
12
Depoimento de Fernando Lyra ao autor, concedido em Recife, em julho de
2012.
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Antônio Sérgio Rocha
de 1977, é a sua resposta13. O teor autoritário das medidas,
o recesso forçado do Congresso e a cassação do líder do
MDB, Alencar Furtado, levariam o partido a uma série de
reuniões tensas em busca de uma forma de atuação e de
resistência mais vigorosa do que as suas repetidas “notas de
protesto”. Dessa crise interna do MDB surgiria a fixação da
Constituinte como prioridade suprema para a oposição.
Decide-se desencadear uma campanha de âmbito nacional
pela convocação, como se ouviu no discurso feito por Ulysses Guimarães na ocasião:
Um povo só se autodetermina politicamente pela
democracia [...]. O caminho histórico e universal indicado
pela honestidade política e trilhado pelos democratas
sinceros e coerentes é a convocação de uma Assembleia
Nacional Constituinte, proposta urgente, institucional e
salvadora do MDB (Delgado, 2006, p.188).
Doravante, o tema da Constituinte seria evocado e perseguido sistematicamente pelo MDB.
Em 1978, com a candidatura de Euler Bentes à Presidência da República pelo partido, haveria nova invocação
por uma Constituinte. Ao encaminhar a votação no plenário do Colégio Eleitoral, discursava Ulysses:
39
Repito que o Movimento Democrático Brasileiro
estrategicamente aceitou a via indireta com a esperança e
o compromisso, se vitoriosos seus candidatos, de enxotálos da vida pública brasileira, com a imediata convocação
13
A Emenda Constitucional n. 8 de 1977 modificou também a composição do Colégio Eleitoral: além de incorporar os senadores “biônicos” ao órgão, passava a adicionar um delegado para cada um milhão de habitantes de cada estado-membro,
diminuindo ainda mais a representação daqueles estados com número elevado de
eleitores por delegado, ao passo que aumentava um delegado a representação dos
estados onde aquele número era baixo (Soares, 1984).
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de uma Assembleia Nacional Constituinte e a consequente
eleição, pelo voto direito, universal e secreto do presidente
da República, dos governadores de Estado, dos prefeitos
municipais e dos senadores [...] (Delgado, 2006, p. 191).
Em 1979, logo em seguida à sanção da Lei n. 6.767
1979, recriando o pluripartidarismo no país, deputados
e senadores lançaram o “Manifesto dos fundadores do
PMDB”, em que se lia:
40
O PMDB prosseguirá e intensificará a luta travada pelo
MDB em prol das grandes teses democráticas: manutenção
do calendário eleitoral, eleições diretas em todos os níveis,
defesa da autonomia dos municípios e fortalecimento da
Federação, democratização do ensino, anistia ampla, geral e
irrestrita, liberdade de informação, restauração dos poderes
do Congresso e convocação de uma Assembleia Nacional
Constituinte [...] (Delgado, 2006 p. 193).
A partir de então, o MDB passaria a promover atos,
editar publicações e realizar seminários sobre a Constituinte, disseminando a discussão nos quadros partidários e em
vários setores da sociedade. Em reunião no final de 1981,
divulgava-se no boletim do partido:
As principais preocupações do partido voltam-se agora para
1982. Trata-se de utilizar o pleito direto para aprofundar
a luta pela democracia e contra a política econômicofinanceira antinacional e antipopular, para conquistar
grande vitória eleitoral e acelerar a convocação da
Assembleia Nacional Constituinte (Delgado, 2006 p. 196).
Em preparação para a campanha eleitoral de 1982, o
PMDB elaborou o documento “Esperança e mudança”. Mais
uma vez, lá se escrevia: “O MDB lutará por uma Assembleia
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Nacional Constituinte”. Consumadas as eleições, e com as
expressivas vitórias para governo de nove estados, a prioridade do partido se inclinou pelas alternativas para chegar à Presidência da República. A Constituinte teria então de esperar.
Os juristas e a luta pelo Estado de Direito
A campanha pela reconstitucionalização do país não se circunscreveu ao partido oposicionista. Papel fundamental
também seria desempenhado pela Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB). O engajamento, entretanto, só se daria
tardiamente, como lembrou um dos seus membros:
A OAB havia apoiado o Golpe em 1964, e, durante muitos
anos, foi indiferente à política. Tanto que, em 1970, no auge
do AI-5 e da repressão, não houve nenhuma manifestação
pela abertura democrática no congresso da OAB aqui em
São Paulo, cuja temática foi “A OAB e a ordem econômica”
– como se a OAB não tivesse nada a ver com a ditadura
militar que estava imperando no Brasil14.
41
O ano de 1977 marcaria uma inflexão nessa postura,
com a eleição do jurista e historiador Raymundo Faoro para
a presidência nacional da OAB. A partir daí, “toda a advocacia mais ligada ao projeto de abertura democrática filiou-se à
corrente que Raymundo Faoro liderava na OAB, e a Ordem
cindiu-se entre aqueles que se engajavam no processo de
abertura e aqueles que não tinham esse engajamento”15.
Mesmo entre os advogados progressistas, haveria dissensões quanto à estratégia de retorno ao Estado de direito.
Tão logo assume, Faoro se afasta de duas das principais bandeiras do projeto oposicionista: convocação de uma Assem14
Flavio Bierrenbach, em depoimento concedido em 2010 à equipe do Cedec, em
São Paulo.
15
Flavio Bierrenbach, em depoimento concedido em 2010 à equipe do Cedec, em
São Paulo.
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bleia Constituinte e promulgação de uma anistia política. O
presidente da OAB prefere transferi-las para o elenco dos
objetivos: “A Constituinte é um dos caminhos. Mas não é
o único. [...] A anistia é um passo desta pacificação. Não é,
talvez, um passo prévio” (Osiel, 1986).
Para o representante da OAB, a reaquisição do habeas
corpus e das garantias da magistratura eram as exigências
mais prementes da luta política, como lembra Maria Victoria Benevides: “Faoro analisava que dar prioridade a um
processo constituinte naquela hora seria abrir o caminho
para todo tipo de disputa política, rompendo a frente contra a ditadura, contra o ‘entulho autoritário’ então vigente”.
E dizia: “Quem é que vai ser contra o habeas corpus, ou contra as garantias da magistratura, ou contra ampliar os direitos dos anistiados? Vamos nos concentrar nisso”16.
A implementação dessa estratégia levou Faoro a buscar
negociações com o núcleo reformista do governo Geisel –
Golbery, Leitão de Abreu e, sobretudo, Petrônio Portella. E
o fez com vigor. Em 1978, já sob a nova presidência, o Congresso Anual da Ordem foi realizado em Curitiba. O encontro ocorreu sob um clima de estranhamento generalizado.
Faoro havia convidado Petrônio Portela, então o ministro
da Justiça do regime, para participar da cerimônia inaugural. Setores da advocacia mais engajados com o projeto de
abertura democrática reagiram com surpresa e desconcerto
à iniciativa de Faoro, e a conferência do alto membro do
governo gerou certa divisão na própria OAB.
Enquanto o presidente nacional da OAB movia cuidadosamente suas peças no tabuleiro de xadrez das relações
regime-oposição, outra vertente de juristas optou por uma
manobra mais incisiva. Em 11 de agosto de 1977, o professor Goffredo Telles leu um manifesto na Faculdade de
16
Depoimento da professora Maria Victoria Benevides à equipe do Cedec, concedido em São Paulo, em 2008.
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Direito da Universidade de São Paulo, no qual repudiava
a ditadura militar e exigia a imediata restauração do Estado de direito. Sua “Carta aos brasileiros” era subscrita por
dezenas de juristas e personalidades políticas e gerou um
impacto profundo no país17:
Denunciamos como ilegítimo todo Governo fundado na
força. Legítimo somente o é o Governo que for órgão
do Poder; Proclamamos a soberania da Constituição [...]
e afirmamos que a fonte legítima da Constituição é o
Povo; [...] o Poder Constituinte pertence ao povo, e ao
Povo somente. Se uma ordem é legítima, por ser obra da
Assembleia Constituinte do Povo, nenhuma outra ordem,
provinda de outra autoridade, pode ser legítima. [...]
a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito. A
consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de
Direito já [grifos do autor] (apud Schubsky, 2007, p. 35).
Sob o influxo desses acontecimentos, em maio de 1980,
com a presidência de Bernardo Cabral, acontecia o Congresso Anual da OAB em Manaus, em que se levantava explicitamente a bandeira da Constituinte. A partir dessa tomada de
posição, a OAB convocaria uma reunião nacional específica
– o Congresso Pontes de Miranda, realizado em Porto Alegre, em 1981 – no qual aprovaria um anteprojeto de sugestão
para uma futura Constituição. Em 1983, em São Paulo, aconteceria o Congresso de Advogados Pró-Constituinte, com a
produção de dois alentados anais, repletos de comentários e
sugestões elaboradas para a futura ANC. Em 1985, a categoria exerceria influência e participaria decisivamente da futura Comissão Afonso Arinos e, em seguida, em assessoramentos na própria Constituinte, já em 1987-1988.
43
17
Seu brado – “Estado de direito, já” – seria reaproveitado, em 1984, na pressão
popular pelo restabelecimento da votação direta para presidente da República.
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Do temor ao tremor – o abalo que vem da sociedade
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A contrapelo dos casos clássicos, a sustentação do autoritarismo brasileiro não se deu pela via do entrosamento sociedade-Estado (Cardoso, 2010). Aqui, fora nítida a opção do
regime por desideologizar essa relação. Neste caráter desmobilizador do caso brasileiro, Linz (1973) destacaria a fragilidade e a precariedade do arranjo institucional instalado
a partir de 1964.
Os eixos da crítica ao regime, vocalizadas pela Universidade, SBPC, igreja católica e OAB, centravam-se na
denúncia e no combate às violações aos direitos humanos
perpetradas pelo aparelho repressor, por meio do maciço
e sistemático uso da violência, prisões e tortura contra os
“subversivos”. O terror de Estado se prestava a manter silente e obediente a sociedade.
Em fins da década de 1970, a irrupção das greves sindicais no ABC paulista marcaram a reversão do quadro. Inicialmente uma luta dos trabalhadores contra o arrocho salarial, a contestação frontal à política econômica do regime
acarretada pelas greves levou o movimento a uma escalada
de enfrentamentos que, ao final, incluiu na pauta o fim da
tutela do Estado nos conflitos trabalhistas – em outros termos, nada menos que o desmonte do próprio sindicalismo
corporativista no país. O embate projetou novas lideranças
e protagonistas; conjuntamente, sindicalistas e advogados
trabalhistas se converteram em novos atores sociais, de marcante presença na cena pública.
A partir da greve na Scania, em maio de 1978, paralisações se espalharam por todo o país. A forte adesão às
greves alcançou parte substancial das indústrias e daí se
disseminou por segmentos diversos das classes médias –
médicos, professores, servidores públicos –, angariando
simpatia e apoio de uma opinião pública outrora indiferente. Na década de 1980, em aberto desafio ao marco
regulatório do autoritarismo, o Brasil se tornou o país com
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o maior volume de greves no mundo, o que levou um analista a sustentar que, ao lado do gradativo acuamento do
regime pelas vitórias eleitorais oposicionistas, uma “abertura por meio de greves” foi elemento decisivo na transição política (Noronha, 2009, p. 3).
Novos personagens entravam em cena. Com eles,
uma vasta e heterogênea agenda de direitos se inscrevia
no horizonte das mudanças políticas no país. Em 1979,
a UNE foi reaberta e os estudantes readquiriram visibilidade e protagonismo. Em encontros regionais e nacionais, participantes do movimento sanitarista debateram os
rumos da saúde pública no país; educadores formularam
diagnósticos e reivindicaram mudanças no quadro educacional brasileiro; o incipiente movimento ecologista
tomou corpo e firmou pauta de exigências para o meio-ambiente. Uma movimentação-cidadã teve encontro marcado com a futura Constituinte.
Ao veio político-institucional da transição se agregava,
então, a vertente dos movimentos sociais. E parcela ponderável dessa vertente, mercê dos vínculos que estabeleceram
entre si, com a igreja católica e com os sindicalistas, confluiu na constituição do Partido dos Trabalhadores (PT).
O impacto dessa nova agremiação sobre a política nacional
foi assim resumida: “A criação do PT em 1980 como um
partido fortemente ligado aos sindicatos e aos movimentos sociais nascentes criou uma divisão de trabalho entre as
oposições. Ao PMDB, coube a bandeira da democracia; ao
PT, a da igualdade” (Noronha, 2009).
Não foram apenas as forças populares que organizaram
suas reivindicações. A mobilização social também alcançou
o empresariado. Cardoso (2005) assim pontuou a mudança:
45
O regime era até então sustentado pela burguesia, satisfeita
e industrializando pelas benesses a que tinha acesso. A
relação era tão próxima que, por muito tempo, Estado
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e burguesia pareciam ser a mesma coisa. Se, no entanto,
desfrutava os benefícios, a burguesia não decidia. Com
a liberalização do regime, os empresários percebem a
brecha e se lançam ao controle da hegemonia, à busca de
comandar as decisões da economia (Cardoso, 2005).
46
E começam a se dessolidarizar com o regime. Teve início a campanha pela “desestatização” da economia (Velasco
e Cruz, 1995), que cada vez mais colocaria parte ponderável do empresariado numa postura de crítica às instituições
econômicas do regime.
Os meios de comunicação desempenharam papel de
peso no reconhecimento público dos atores sociais em constituição. A partir do abrandamento dos controles do regime,
promovido por Golbery, de modo a acuar o aparelho repressivo, a própria mídia investiria na construção dos atores –,
sejam aqueles ligados ao novo sindicalismo, sejam empresários considerados progressistas: Cláudio Bardela, Antônio
Ermínio de Moraes, José Midlin. Em parte, essas novas lideranças empresariais aderiram às teses da oposição e elaboraram um discurso tomado ao MDB: distribuição de renda,
ênfase no social, maior participação nas decisões econômicas.
Se os tremores advindos de uma sociedade em intensa
movimentação escavaram um fosso na capacidade de controle do regime, abalo mais forte proviria do âmbito da
economia. Em fins de 1982, o México declarou moratória
de sua dívida externa, levando ao pânico o mercado financeiro internacional, período conhecido como “setembro
negro”. As fontes externas de financiamento da economia
brasileira secaram subitamente, o que forçou os policy-makers do governo a manobras extremadas para evitar a
insolvência do país. Na percepção pública, firmava-se a
imagem de que somente sob uma democracia a política
econômica readquiriria racionalidade e a indispensável
defesa dos interesses nacionais.
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A crise econômica desmontava o último pilar da reivindicação de legitimidade clamada pelas figuras centrais do
autoritarismo. Àquela altura do governo Figueiredo, a margem de manobra do regime reduzia-se agudamente.
Aliança Democrática – remédio autoritário para o
autoritarismo?
Em 1982, a transição política brasileira conheceria seu decisivo ponto de inflexão. Naquele ano, as eleições diretas para
governador de Estado, previstas para 1978 e posteriormente
adiadas pelo regime, afinal se concretizaram. Como resultado, as oposições colheram expressiva vitória eleitoral. No
sistema federativo, a conquista dos dez principais estados
projetou os governadores de oposição como atores com visibilidade e recursos políticos de primeira ordem; cerca de
metade dos brasileiros passou a ser governada por partidos
oposicionistas, formando-se no país o que um analista denominaria “diarquia política” (Lamounier, 1986). Na Câmara
dos Deputados, o avanço do PMDB levou à perda da maioria parlamentar pelo PDS, desarticulando a capacidade
governativa do regime nessa arena. O impacto dessa perda
para a entropia do regime não pode ser subestimado. Seria
também aí, no Legislativo federal, que as oposições iriam
buscar, de dentro das instituições do regime, obter sua
superação: primeiramente, pela via disruptiva da emenda
das diretas-já, e, no seu malogro, pelo uso do próprio Colégio Eleitoral – coração da reprodução da ordem autoritária.
Mas sigamos a cronologia. No dia 2 de março de 1983,
o deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT) apresentou a
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 5, visando
à extinção do Colégio Eleitoral e ao restabelecimento das
eleições diretas para Presidência da República em 1984. A
proposta apresentada pelo deputado da esquerda peemedebista alterava profundamente o rumo que a agremiação
oposicionista vinha seguindo até então, cujo principal obje-
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tivo, como vimos, era o retorno do país à institucionalidade democrática através de uma Assembleia Nacional Constituinte (Leão, 2004). Poucos dias após a apresentação da
PEC, o líder Freitas Nobre constituiria uma comissão de cinco deputados para elaborar um documento em defesa das
diretas presidencias. Em 11 de março, o grupo encaminhou
à executiva nacional um plano para a campanha nacional
pelas diretas. Nascida no Congresso Nacional, organizada
pelos políticos profissionais e apoiando-se prioritariamente nos partidos – em especial, no PMDB – somente depois
é que as diretas para Presidência receberiam a adesão dos
movimentos sociais e da população dos grandes centros,
ainda mobilizada pelas greves de 1978.
A partir daí, o movimento empolgaria o país; mesmo as
hostes governistas não lhe seriam indiferentes. Deputados do
PDS formaram o grupo pró-diretas na agremiação governista
– e, posteriormente, contribuíram com 55 votos favoráveis na
votação da emenda. Ainda assim, e por pequena margem, a
PEC das diretas-já foi, afinal, derrotada em 25 de abril de 1984.
O resultado da votação evidenciava, contudo, que mudara
a relação de forças no Congresso, abrindo a possibilidade de
que o governo deixasse de contar com maioria no Colégio
Eleitoral. A percepção induziu as oposições a repensar sua
estratégia, como aventava o senador Márcio Santilli (PMDB-SP) em plenário: “devemos formular uma ampla aliança,
incluindo os deputados democratas do PDS, para que possamos cacifar uma transição [...]” (Diário do CN, 1984, p.2531).
No partido do governo, a conversão de um grupo de
deputados pedessistas à tese das eleições diretas era apenas uma parte da crise que lavrava na legenda. A questão
da escolha do candidato governista à sucessão presidencial desencadearia rivalidades e disputas inconciliáveis; seu
acirramento levaria à crescente fragmentação do PDS, que
culminou numa dissensão de próceres governistas que, na
sequência, deixariam o partido e abandonariam o regime.
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A cizânia nas hostes do governo teve seu epicentro em
junho de 1984, quando Sarney, na presidência do PDS, propôs publicamente a realização de prévias eleitorais para escolha do candidato governista. Combatidas pelos malufistas e
desautorizadas pelo próprio presidente Figueiredo, a convenção partidária rejeitou as prévias em 11 de julho, desimpedindo o caminho para a candidatura de Paulo Maluf. Com
o resultado, Sarney renunciou de imediato à presidência e
também à sua filiação partidária, abrindo uma crise sem precedentes no PDS. Como recorda o senador Bornhausen,
A solução virá na madrugada do dia 10 para o dia 11 de
junho de 1984. Foi acertado que Sarney renunciaria à
presidência do PDS e eu a assumiria. Mas, na segunda
reunião, eu também renunciaria, e essa seria a senha para a
formação da Frente Liberal (Echeverria, 2011, p. 289).
Em 5 de julho, a dissidência rompeu com o PDS e formalizou a Frente Liberal. O ciclo se fechava. Civis levaram ao golpe de 1964. Civis encerrariam o regime que ajudaram a criar.
A convergência de trajetória entre a nova dissidência
governista e a ala dos moderados de oposição não viria de
imediato. No dia seguinte à derrota das diretas-já, partidos de
oposição e o grupo pró-diretas do PDS empreendem articulações para que a mesa diretora do Congresso Nacional colocasse em votação emendas alternativas para as eleições diretas.
Havia a PEC n. 35 de 1984, apresentada pelo governo dias
antes da votação da Dantes de Oliveira, no calor da mobilização nacional, e que propunha diretas presidenciais para
1988. Com a mudança de cenário e ante a disposição dos oposicionistas de emendar a proposta e antecipar as eleições para
1985, o governo prestamente retirou sua PEC. Pelo lado da
oposição, restava ainda a Emenda Theodoro Mendes18 e, no
49
Apresentada em 02 de agosto de 1983, tratava-se da PEC n. 20 de 1983.
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começo de agosto, o líder Freitas Nobre pressionou a mesa do
Congresso para colocar em pauta a sua votação. Esta e outras
tentativas fracassariam. Como a conquista da Presidência da
República pela via das eleições diretas estava inviabilizada
para o PMDB, restava a alternativa do Colégio Eleitoral. Passo
a passo, a direção nacional e a maioria do partido caminhariam para um acordo com os políticos da Frente Liberal.
A via da eleição indireta, no entanto, gerava intensa rejeição nas bases peemedebistas. No plenário, parlamentares se
revezavam na denúncia da “farsa das eleições indiretas brasileiras”, repudiando, conforme afirmara Luiz Henrique (PMDB-SC), “o pacto das elites, a costura por cima, o pacto pelo pacto, a conciliação pelo poder” (Diário do CN, 1984). Não era o
que pensavam os moderados – ala do PMDB que as eleições
de 1982 infundiram substancial incremento, graças aos efeitos
das regras institucionais postas pelo regime. No pleito daquele
ano, a lei eleitoral obrigava a vinculação do voto para todos
os cargos em disputa, vedando também as coligações em regime proporcional. O regramento inviabilizara o Partido Popular de Tancredo Neves e o levara a pedir reincorporação ao
PMDB, de onde havia saído na criação do pluripartidarismo
em 1979. Tendo feito escala no PP, ex-arenistas e conservadores estavam agora a bordo da nau oposicionista, inflando a ala
dos moderados do partido19. No correr da campanha, há evidências de que essa facção já trabalhava com a possibilidade
de derrota da Emenda Dante de Oliveira20. Como resumia
19
Que internamente se organizarão no grupo Unidade. Instalado na 1ª. vice-presidência do novo partido, Tancredo demarcaria terreno: “O meu PMDB não é o
PMDB do Dr. Arraes” (Couto, 1998, p. 431).
20
Tancredo Neves foi a única ausência política importante da oposição no palanque do comício do dia 25 de janeiro de 1984, que reuniu cerca de 300 mil pessoas
no centro da cidade de São Paulo. O governador mineiro dizia-se favorável às
diretas, mas, na data do comício, preferiu receber o então presidente Figueiredo
na exposição de gado em Uberaba (MG). Segundo Hagopian (1996), ali Tancredo
deixava claro sua opção de criar espaço no regime para ser o fiador de uma transição negociada com as Forças Armadas, caso se confirmasse a derrota da emenda
das diretas-já na Câmara, três meses mais tarde.
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em sua coluna o jornalista Castello Branco, o governador de
Minas Gerais manobrava nos bastidores um novo movimento,
articulado pelos moderados mas com apoio mais geral, que
“[...] pode ser chamado de Tancredo-Já, ao invés de diretas-já”
(Branco, 1984).
Os “históricos” do partido perderiam mais essa batalha. A ida ao Colégio Eleitoral se imporia à oposição. Em
23 de julho de 1984, o PMDB e outros partidos de oposição lançaram Tancredo Neves como candidato indireto à
Presidência da República. A aliança com os dissidentes da
Frente Liberal traria preciosos votos e incontáveis conexões no mundo interior do regime – urdidura a ser tecida, com os recortes aí colhidos, na vestimenta a ser usada
no desfile final da ordem autoritária.
Na negociação entre frentistas e tancredistas, operaram
mais uma vez as regras institucionais do regime. Na composição, Marco Maciel era o preferido da ala dos “autênticos”
para ocupar a candidatura de vice-presidente na chapa do
PMDB. A Emenda Constitucional n. 11 de 1978, no entanto,
impunha perda de mandado ao candidato que disputasse
eleições depois de trocar de legenda partidária. O veto atingia Maciel, mas não alcançava José Sarney, que havia sido
eleito senador em 1978 – e era o preferido de Tancredo.
Novamente, os membros históricos do partido rejeitaram a
chapa com José Sarney na vice-presidência. Ulysses fecharia
a questão: “Não dá, aritmeticamente falando, para elegermos Tancredo sem os votos da Frente Liberal, que, como
contrapartida, ganhou o direito de indicar o vice e indicou.
Ou vocês acham que devemos deixar o Maluf eleger-se?”
(Echeverria, 2011, p. 284).
O dixit do ex-“Sr. Diretas” encerraria, afinal, a contestação
interna ao ex-presidente do PDS e, em 7 de agosto, a Aliança Democrática de PMDB e Frente Liberal seria anunciada
ao país. No dia 8, Sarney filiou-se à agremiação oposicionista.
Três dias depois, a chapa seria aprovada na convenção peeme-
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debista. Consumava-se a opção do combate ao sistema “por
dentro”. A decisão, no entanto, parecia pesar no encontro.
Discursou Tancredo: “Assumo, diante de nosso povo, o compromisso de promover, com a força política que a Presidência
da República confere a seu ocupante, a convocação de poder
constituinte para, com a urgência necessária, discutir e aprovar a nova Carta Constitucional” (Delgado, 2006, p. 289).
A intenção foi formalizada dias depois, quando se lançou o “Manifesto à Nação”, assinado pelo PFL e pelo PMDB,
que fixou as metas políticas para a nova ordem institucional:
52
É urgente a necessidade de proceder-se à reorganização
institucional do país. Uma nova Constituição fará do
Estado, das leis, dos Partidos políticos meios voltados para
a realização do homem – sua dignidade, sua segurança e
seu bem-estar. [...] Esse entendimento possibilita a Aliança
Democrática estabelecer como compromissos impostergáveis
e fundamentais com a Nação brasileira: restabelecimento
imediato das eleições diretas, livres e com sufrágio universal,
para Presidente da República, Prefeitos das Capitais
dos Estados e dos Municípios considerados estâncias
hidrominerais e dos declarados de interesse da segurança
nacional. Representação política de Brasília; convocação de
Constituinte, livre e soberana, em 1986, para elaboração de
nova Constituição [...] (Delgado, 2006, p. 290).
No meio do caminho, porém, havia uma pedra: a disputa com Maluf no Colégio Eleitoral. E esse era um caminho
repleto de armadilhas que os aliancistas teriam de desarmar. Como parte de sua estratégia para a eleição presidencial em 1985, o governo havia promulgado a Emenda Constitucional n. 22, aprovada em agosto de 1982. A nova regra
estipulara que os delegados das assembleias estaduais não
mais representariam o estado, e sim o partido majoritário
na Assembleia Legislativa. Em outras palavras, os seis deleLua Nova, São Paulo, 88: 29-87, 2013
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gados que cada estado agregava à composição do Colégio
Eleitoral passavam a ser escolhidos apenas pela agremiação
política com o maior número de cadeiras na Assembleia
Legislativa daquela unidade federada21.
Da parte do candidato aliancista, prosseguiam as negociações para a batalha contra Maluf e a montagem do futuro governo. Em público, Tancredo negava-se a comentar a
convocação de uma Constituinte, embora se soubesse que
ele discretamente recolhia propostas e sugestões técnicas
de como fazê-la22.
Em 8 de janeiro de 1985, a poucos dias da reunião do
Colégio Eleitoral, Ulysses Guimarães entregaria ao candidato
Tancredo Neves o plano de governo da Aliança Democrática,
intitulado “Nova República”23. Nele, estavam previstas eleições
diretas nas capitais em 1985 e eleições para uma Assembleia
Nacional Constituinte em 198624. No discurso em que lançou
a Nova República, proclamaria Tancredo: “Ela será iluminada
pelo futuro Poder Constituinte, que, eleito em 1986, substituirá as malogradas instituições atuais por uma Constituição que
situe o Brasil em seu tempo”. (Delgado, 2006, p. 293)
53
Nova República – o cálculo da constituinte
No início de 1985, às vésperas da posse do novo governo, o
Congresso Nacional instalou uma Comissão Interpartidária
21
No Rio de Janeiro, do total de seus 5,5 milhões de eleitores, apenas aquele 1,5
milhão que votou no PDT ganhou representação no Colégio Eleitoral. No Rio
Grande do Sul, seriam representados somente os 1,25 milhão de eleitores que
votou no PDS; os demais 2,5 milhões, não.
22
Sabia-se que Tancredo havia incumbido o jurista Clóvis Ramalhete de elaborar
um esboço da convocação da Assembleia Constituinte, assim como de um projeto
de Constituição (Salgado, 2007, p.114). Ramalhete havia sido Consultor-Geral da
República no governo Figueiredo. Antes, elaborara parecer favorável à extensão
unilateral do mar territorial brasileiro para 200 milhas marítimas. Colaborou também no projeto da Lei de Anistia, em 1979.
23
Expressão criada pelo publicitário Mauro Salles conforme depoimento de Fernando Lyra ao autor, concedido em Recife, em 2012.
24
Note-se que o programa político do PDS também contemplava a convocação de
uma Constituinte.
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sobre Legislação Eleitoral e Partidária. O objetivo era dar
os primeiros passos rumo à nova institucionalidade democrática, por meio da eliminação de alguns dos principais
entraves legais postos na ordem pública pelo autoritarismo.
Tratava-se do que à época se chamou “remoção do entulho
autoritário”. A empreitada era operada também no âmbito
do Ministério da Justiça, sob o comando de Fernando Lyra,
antigo militante da ala dos emedebistas “autênticos” convertido em liderança tancredista. De imediato, se pretendia
despojar o híbrido institucional do ancien régime daqueles
dispositivos que tolhessem a definição dos parâmetros a
presidir a convocatória da longamente almejada Assembleia
Nacional Constituinte – quando, afinal, se restabeleceria a
ordem democrática em sua plenitude.
A definição e a escolha de tais parâmetros se arrastariam por cerca de dois anos, consumidos pelo fragor dos
debates e das manobras pelas distintas alternativas institucionais para a nova ordem: Constituinte derivada ou originária? Exclusiva ou congressual? Provida de anteprojeto ou não? No mais das vezes, as disjuntivas implicavam
polarização entre as forças políticas. Personagens das correntes progressistas e conservadoras multiplicavam seus
argumentos, escritos e pressões em incontáveis reuniões,
mesas-redondas e conferências nas universidades, nos
jornais, nas televisões, em centros de pesquisa (como no
próprio Cedec), nas comunidades de base e nos partidos
políticos, numa campanha aberta e incisiva para obter a
prevalência de suas visões e de seus interesses25. O país
vivia uma situação constituinte.
No plano institucional, entretanto, os membros da
cúpula da Aliança Democrática operavam para manter sob
controle o processo de construção constitucional. A emen25
Por limitação de espaço, não indicamos aqui esse rico elenco de publicações –
que se saiba, pendente até hoje de organização e análise.
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da convocatória da ANC, instituindo um Congresso Constituinte em bases derivadas da Constituição federal de 1967,
foi agenciada pelo ramo pefelista do consórcio político. Do
lado do PMDB, Ulysses Guimarães interviria decisivamente
para abortar a proposta de plebiscito sobre a questão, tal
como previsto no substitutivo elaborado por um relator
defenestrado pessoalmente pelo grande timoneiro da transição. Por fim, o próprio presidente Sarney tentaria legar ao
esquecimento das gavetas do Ministério da Justiça o meticuloso e progressista Anteprojeto Constitucional da Comissão Arinos. A Nova República parecia “um imenso pastiche
da transição” (O’Donnell, 1987); pessimismo e apreensão
quanto aos trabalhos da futura Constituinte rondavam as
forças progressistas. No que se segue, apontaremos os principais aspectos preliminares da ANC.
A Reforma Política do PMDB
Com relatoria do deputado João Gilberto Lucas Coelho
(PMDB-RS), a Comissão Interpartidária apresentou a proposta que resultou na Emenda Constitucional n. 2526. Modificações profundas eram introduzidas no sistema político
do país. Ficava liberada a criação de novas agremiações,
inclusive aquelas anteriormente ilegais; concedia-se o direito de voto aos analfabetos; punha-se fim ao instituto da fidelidade partidária, permitindo aos políticos a livre-troca de
agremiação; ficava abolida a sublegenda; revogava-se o artigo que previa a adoção do sistema distrital misto; suprimia-se o voto vinculado; eliminava-se as restrições da Lei Falcão
à propaganda eleitoral; coligações para eleições proporcionais voltavam a ser permitidas; eram suspensas as cassações
políticas e sindicais; concedia-se representação política ao
Distrito Federal, de modo que Brasília passaria a eleger três
senadores e oito deputados federais; por fim, introduzia-se
55
Promulgada em 15 de maio de 1985.
26
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a eleição direta para presidente da República e vice-presidente, em dois turnos27.
Nesse mesmo período, Coelho – parlamentar oriundo
da ala dos emedebistas “autênticos” – também ficaria responsável pela relatoria de dois outros projetos de lei. Num deles,
introduzia alterações na Lei Orgânica dos Partidos Políticos, as quais concediam às agremiações a possibilidade de
registro na Justiça Eleitoral, prescindindo da publicação
de estatuto previamente aprovado em convenção nacional,
bastaria apenas que se provasse o funcionamento de diretórios regionais, convenções e executivas nacionais28. Completando a reforma política sob patrocínio peemedebista,
Coelho relataria também o projeto que alterava o Código
Eleitoral e determinava o restabelecimento, em novembro
de 1985, das eleições nas capitais dos estados, dos municípios considerados área de segurança nacional e das estâncias hidrominerais, suspensas desde 1968.
Os direitos políticos dos brasileiros estavam plenamente restabelecidos. Parte do projeto democrático do antigo MDB
se materializava, derrogando em ampla medida as instituições representativas criadas pelo autoritarismo. Uma ordem
poliárquica despontava no país.
Exclusiva ou congressual? A batalha da convocatória
Ao correr da transição política, argumentos os mais variados foram esgrimidos por vozes ligadas ao regime para combater a convocação de uma Assembleia Constituinte. Para
esses juristas, um alegado poder reformador do Congresso
Nacional (à exceção da República e da Federação) seria o
instrumento adequado para depurar, da ordem pública em
27
As eleições eram marcadas para 15 de novembro de 1990, já que o mandato
presidencial continuava a ser de seis anos, tal como definido na EC n. 1 de 1969.
28
Note-se que a lei partidária de 1979 não é alterada. A legislação infraconstitucional para formar partidos continuou em vigor e só mudaria em 1995, com a
promulgação de uma nova lei partidária.
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vigor, os excessos autoritários introduzidos pela Emenda
Constitucional n.1 de 1969. Nessa ótica, a reconstitucionalização do país demandada pela oposição poderia ser alcançada por meio do retorno puro e simples à moldura da
Constituição de 1967.
A tese recebeu dura e frontal contestação em livro que
Raymundo Faoro publicou em 1981. Para o ex-presidente
da OAB, nenhum remendo constitucional à guisa de reforma contemplava o que realmente estava em jogo no país:
a recuperação da legitimidade da ordem política. O livro
e a cerrada argumentação de Faoro exerceriam considerável impacto no debate nacional. Uma versão menos intransigente da reconstitucionalização passaria a tomar corpo
entre os partidários do regime. Tratava-se da alternativa de
criação da nova ordem institucional por meio de um Congresso Constituinte. Na defesa do modelo, postava-se um
celebrado constitucionalista, conspirador de primeira hora
do movimento de 1964.
Em agosto de 1981, discursando na tribuna do Senado Federal, Afonso de Arinos de Melo Franco proclamava
que “a situação do Brasil [...] só se resolverá por meio de
uma Assembleia Constituinte Instituída”, a ser promovida
pelo Legislativo, que traria “uma solução jurídica, quanto
à sua essência, mas política, quanto à sua forma”. E propunha, no fim, “a outorga de poderes constituintes ao futuro Congresso Nacional, a ser eleito em 15 de novembro de
1982”, já que a concessão desses poderes constituintes seria
“a melhor solução, e mesmo a única, em termos jurídicos,
para o restabelecimento indispensável da ordem constitucional” (Franco, 1982 p. 11).
No ano seguinte, a Casa de Rui Barbosa (RJ) abrigou
um ciclo de conferências acerca da Constituinte, sob o título geral de “Reforma Constitucional”. Num dos encontros,
o jurista Célio Borja também faria a defesa da Constituinte Instituída, a ser instalada no Congresso Nacional. Meses
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mais tarde, já como assessor do presidente Sarney, Borja
redigiria a emenda convocatória da ANC calcada em idêntica base doutrinária. Sigamos o argumento.
58
Havendo Governo, “reforma-se” a ordem normativa
existente. Mas como a reforma constitucional tem o
mesmo efeito jurídico do ato constituinte – uma vez que
repele a invocação do direito adquirido sob a lei velha – é,
muitas vezes, tida pelo Direito e seus cultores como da
mesma natureza do poder de constituir os fundamentos
da lei e do Governo. [...] Daí resulta que, enquanto não
dissolvido o Governo, isto é, as instituições governativas, não
caberia criar outro órgão que possa ostentar o atributo de
depositário do poder constituinte originário, pois ter-se-ia
por dissolvido ou inexistente o Governo emanado da ordem
constitucional preexistente; ou, em defesa desta, estariam
os governantes autorizados a resistir a essa verdadeira
revolução (Machado e Torres Jr., 1997 p. 23).
Em 28 de junho de 1985, o presidente Sarney encaminhava seu projeto de convocação da Assembleia Nacional Constituinte. A forma escolhida foi a de uma emenda
à Constituição em vigor, que receberia críticas por ligar a
construção de uma nova ordem às regras do status quo constitucional. A Constituinte era declarada livre e soberana,
sem qualquer restrição (mesmo a de rever a república e a
federação), composta por senadores e deputados federais,
e funcionando paralelamente às atividades normais do Congresso. A eleição dos constituintes coincidiria com o pleito
de 1986 para governador, senador e deputado federal.
No início de agosto, formou-se uma comissão mista
para analisar a PEC da convocatória. Por quatro meses,
no Congresso e em diversos outros fóruns que aconteciam
no país, o relator da PEC, Flavio Bierrenbach (PMDB-SP),
participaria de longos debates sobre o caráter da ConstiLua Nova, São Paulo, 88: 29-87, 2013
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tuinte, a forma de eleição, plebiscito, proporcionalidade
na representação, funcionamento do Congresso, a questão
dos senadores eleitos em 1982 e outros tópicos. À medida que os trabalhos avançavam, evidenciava-se a tensão no
governo, no Congresso Nacional, em setores militares e
na sociedade sobre a fórmula adotada para a futura Constituinte. Por fim, no dia 15 de outubro, o relator surpreendia com um relatório contendo alternativas inovadoras,
em que propunha um plebiscito para que os brasileiros
escolhessem uma Constituinte congressual ou exclusiva; a
separação das eleições para constituinte e para governador de Estado; o aprofundamento da “remoção do entulho autoritário” da ordem constitucional em vigor, para
efetivamente permitir uma Constituinte livre e soberana29;
a ampliação da anistia para civis e militares afastados no
regime militar; o funcionamento de uma comissão legislativa congressual enquanto estivesse sendo elaborada a
Constituição; a coleta de sugestões à ANC por meio das
Câmaras Municipais.
No momento de apresentação de seu parecer, o relator
abriu diante da comissão mista uma mala contendo 70 mil
telegramas e cartas recebidas de todo o país. Eram as manifestações em favor de uma Constituinte exclusiva. A reação
do governo e a alta cúpula do PMDB foi dura e imediata,
e um Substitutivo alternativo foi preparado para derrubar
o parecer do relator. Oficialmente, a autoria era do deputado Valmor Giavarina e seu texto estipulava a convocação
de um Congresso Constituinte. A destituição de Bierrenbach da relatoria da PEC se dava no último dia de trabalho
da comissão, no momento que o parlamentar se preparava
para ler seu Substitutivo, como ele evoca:
59
29
Deveriam ser excluídos da Constituição Federal de 1967/emenda Constitucional n. 1 de 1969 o estado de emergência, as medidas de emergência e o art. 181,
que versava sobre a aprovação e a exclusão de apreciação judicial dos atos da “Revolução” desde 1964.
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Tive uma conversa com o Dr. Ulysses dois ou três dias
antes da votação do meu Relatório. Eu não sabia que
iria ser destituído; essa foi uma solução que, acredito,
tenha sido decidida na véspera. Dr. Ulysses me disse que
meu Substitutivo não ia passar, e que era consensual
e majoritária a fórmula original vinda do Palácio do
Planalto, elaborada por Célio Borja. Essa fórmula foi
forjada pela ala-PFL da Aliança Democrática; acredito que
tenha sido feita pela mão do Marco Maciel. O episódio
da minha destituição ocorreu no Plenário da Comissão
Mista. Alguém lá propôs que substituíssem o relator e que
nomeassem um relator substituto, e o deputado Valmor
Giavarina já estava com tudo pronto. Giavarina apresentou
o substitutivo dele de última hora30. O comentário que eu
fiz a respeito do seu substitutivo foi de que era “medíocre
na forma e covarde no conteúdo”. Nunca tive vontade nem
coragem de lhe perguntar se foi ele mesmo que fez. Foi só
isso que eu disse ali. Me retirei da Comissão e fui embora.
Nunca perguntei a ninguém os motivos, nunca passei
recibo da minha destituição31.
A Constituinte brasileira seria congressual, como desejavam o governo e o PMDB ulyssista.
O notável anteprojeto dos “Notáveis”
Atribui-se a Tancredo Neves a ideia de criar uma comissão
para elaborar um anteprojeto de Constituição. Dizia que
seu papel era ser o “sal da terra”, de modo a provocar o
30
Isso ocorreu em 13 de outubro de 1985. Giavarina era deputado federal pelo
Paraná e antigo militante da ala dos “autênticos” do MDB. Tinha sido vice-líder
do PMDB na Câmara Federal e cabeça de fila do grupo Só Diretas. Em setembro
de 1984, discursara no Congresso Nacional sobre as alternativas de convocação de
uma ANC. Também havia escrito um opúsculo sobre a Constituinte que lhe valera
um bilhete elogioso de Tancredo Neves.
31
Depoimento concedido à equipe do Cedec, em São Paulo, em 2010.
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debate nacional e despertar a participação da cidadania32.
Sarney levaria adiante o projeto de Tancredo, instituindo
em 18 de julho de 1985 a Comissão Provisória de Estudos
Constitucionais. No país, várias das experiências constituintes anteriores contaram com a preparação de anteprojetos.
Mas, no clima político da Nova República, a elaboração de
um anteprojeto constitucional se converteria em outro ponto de discórdias entre as diversas forças políticas.
Desde o início, a chamada Comissão Arinos foi malvista
por consideráveis posições e correntes. Havia o temor de que
o resultado de seu estudo confluísse num “Projeto de Constituição do governo”, a ser encaminhado à ANC como forma
de pressão dos poderes constituídos. Desde logo batizada de
“Comissões de Notáveis”, foi tema de muitos debates e discursos na campanha eleitoral. Havia uma quase unanimidade de
críticas33. Ademais, sua composição majoritariamente conservadora deixava entrever a produção de um documento pouco
afinado com o que desejavam as forças progressistas no país34.
61
Em seu discurso no final da ANC, Arinos lembraria: “Em 1985, já eleito pelo
Colégio Eleitoral, o presidente Tancredo visitou o presente orador, no Rio, e o
convidou para presidir uma comissão incumbida de redigir o anteprojeto da Constituição” (Salgado, 2007).
33
A entrevista de Arinos (Veja, 1986) em nada contribuiria para dissipar a imagem
de comissão de “notáveis”, alheios ao sentimento geral: “A OAB tem muitas restrições
à Comissão Arinos e à ideia de anteprojeto. Como é fazer um anteprojeto de Constituição
praticamente brigado com a OAB? O senhor tem qualquer contato com a entidade ou com
seu presidente, Hermann Baeta? Não conheço o Hermann Baeta e não dou nenhuma
importância ao que ele diz. Ele é presidente de uma instituição de classe, e não
tem uma situação relevante no meio jurídico. Não é um líder da ciência jurídica
do país. Por causa desse tipo de afirmação, o senhor muitas vezes é acusado de elitista. Sou
elitista. Sou professor de Direito, e ele não. Fiz concurso. Essa falta de intercâmbio
com a OAB causa prejuízo à Comissão? Somos uma emanação do governo federal.
Nós não procuramos ninguém. [...] Quero ver se a VEJA vai fazer uma entrevista
nas Páginas Amarelas com o Hermann Baeta.”.
34
Logo no início dos trabalhos da Comissão, a imprensa pretendeu identificar
dois grupos em confronto: no campo majoritário, considerado “conservador”,
havia “ideólogos de direita” (em que pontificavam Ney Prado, Miguel Reale e Gilberto Ulhôa Canto) e empresários (como Sergio Quintella e Luís Eulálio Bueno
Vidigal); o campo “progressista” era composto por juristas, professores e jornalistas, como José Afonso da Silva, Barbosa Lima Sobrinho, Cândido Mendes, Evaristo
de Moraes Filho e Joaquim de Arruda Falcão.
32
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Nesse ponto, como em alguns outros, a Comissão Arinos foi uma espécie de laboratório do que aconteceria posteriormente na própria Constituinte: uma intensa controvérsia ideológica entre os membros atravessou o andamento
dos seus trabalhos. Ao final, um documento surpreendentemente progressista e inovador indicava qual das tendências
havia triunfado na Comissão.
Para Cittadino (2000), foram duas as principais razões
para a reversão das expectativas negativas. Inicialmente, por
não ter se concretizado o temido pacto entre os ideólogos
de direita e os empresários. De outra parte, por não ter
havido da parte dos “conservadores” o grau de comprometimento e a assiduidade aos trabalhos dos comitês temáticos35 que os representantes do grupo “progressista” tiveram,
como assinalado por Ney Prado na Folha de S. Paulo na edição 19 de setembro de 1986:
62
Os chamados conservadores são homens com múltiplas
atividades e não podiam comparecer com assiduidade. Os
progressistas, mais determinados, começaram a frequentar
mais as reuniões. E ficou tão marcante a divisão que alguns
conservadores até desistiram. Eles diziam: “O que adianta ir,
se os nossos pontos de vista estão sendo triturados?”.
Impondo-se nas atividades da Comissão Arinos, desde
o início o campo progressista imprimiu aos trabalhos uma
diretriz orientada pela chamada doutrina constitucional
comunitarista, a partir do Anteprojeto de Constituição elaA Comissão Arinos era integrada por dez comitês temáticos distintos, tendo cada
um deles um coordenador, um secretário e um relator. Os comitês temáticos eram
os seguintes: 1) Princípios Fundamentais da Ordem Constitucional, Organização
Internacional e Declaração de Direitos; 2) Federação e Organização Tributária;
3) Poder Legislativo e Organização Partidária; 4) Poder Executivo; 5) Poder Judiciário e Ministério Público; 6) Educação, Cultura e Comunicações; 7) Condições
Ambientais, Saúde, Ciência e Tecnologia; 8) Ordem Econômica; 9) Ordem Social;
10) Defesa do Estado, da Sociedade Civil e das Instituições Democráticas.
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borado por José Afonso da Silva (Cittadino, 2000). A influência desse escrito seria marcante. Segundo a autora, uma
nítida linha de continuidade doutrinária (e mesmo de
passagens literais) percorre o anteprojeto feito por Silva,
o documento promulgado pela Comissão Arinos e o texto
final da Constituição Federal de 1988. Baseado em artigos
das Constituições portuguesa e espanhola – que, por sua
vez, haurem inspiração no dito “novo constitucionalismo
alemão” do pós-guerra –, o Anteprojeto José Afonso da Silva apresentava um completo e exaustivo sistema de direitos
e garantias individuais e coletivas36. O decisivo, entretanto,
era a criação de mecanismos processuais para materializar e
tornar eficaz o rol de direitos humanos que se propunha. O
temor de que a nova Constituição viesse a padecer, como as
anteriores, de uma espécie de inoperância crônica, o levava
a propor novos institutos processuais, consagrando o dever
de prestação por parte do Estado37.
O Anteprojeto Silva propunha também a criação de
um Tribunal Constitucional. Com a função essencial de
“guardião da Constituição”, seus pronunciamentos a propósito da constitucionalidade das leis obrigariam não apenas todos os órgãos do Poder Judiciário como os demais
poderes do Estado.
Mas não apenas da contribuição do anteprojeto Silva
viveu a Comissão Arinos. Outros juristas e militantes dos
direitos humanos, como o professor Candido Mendes, aportaram importantes contribuições ao relatório final. Além
disso, milhares de sugestões de entidades e de cidadãos lhes
foram encaminhadas. Audiências com debates públicos e
63
36
Estavam previstos, dentre outros, o direito à cultura, ao meio ambiente, à associação sindical, à proteção jurídica, à informação, à escusa de consciência, ao
lazer, à integridade moral e imagem, de acesso aos registros de informações, de
greve etc.
37
Mais tarde, no texto final da Constituição de 1988, esses institutos se tornariam o
“mandado de injunção”, que obrigava o Congresso Nacional a legislar para suprir
a norma faltante, e a “ação de inconstitucionalidade por omissão”.
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longas jornadas de trabalho marcaram a atuação da Comissão, que concluiria sua tarefa somente em 18 de setembro
de 1986 – quatorze meses após o decreto que a instituíra.
O presidente José Sarney não contava que a proposta
tivesse feições tão inovadoras e progressistas – e, sobretudo, que recomendasse o sistema parlamentarista. Sarney
decidiu por não enviar o Anteprojeto da Comissão à Assembleia Nacional Constituinte, remetendo-o por despacho
presidencial em 24 de setembro, ao Ministério da Justiça,
onde foi arquivado. O Anteprojeto tampouco seria objeto
de debate público no país. Tudo levava a crer que a empreitada resultaria inútil.
Mas há evidências de que o Anteprojeto não dormitou
indefeso nos arquivos. Dividido em partes, o documento
seria apresentado como sugestão à mesa da constituinte
pouco tempo depois. Afonso Arinos, eleito senador pelo
Rio de Janeiro (PFL) e escolhido para a presidência da
comissão de sistematização da ANC, tinha dúvidas acerca da
conveniência de apresentar formalmente o Anteprojeto da
Comissão, receando que seu gesto fosse interpretado como
uma limitação à soberania dos constituintes. Entretanto, no
dia 24 de abril de 1987, o senador receberia um telefonema
do deputado Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, o qual solicitava que apresentasse a proposta dos “Notáveis” à Mesa da Assembleia38.
O material circularia nos bastidores do Congresso
Nacional das mais variadas maneiras. De maneira informal,
partes significativas do seu texto eram copiadas por constituintes na elaboração de suas propostas, o que levou o depu-
38
Segundo Cittadino (2000), tanto o Jornal de Brasília quanto o Jornal do Brasil, do
mesmo dia, publicaram reportagens intituladas, respectivamente: “Congresso terá
como base Anteprojeto de Notáveis” e “Arinos apresenta proposta”, informando
não apenas sobre o telefonema de Ulysses Guimarães como da decisão do Senador
Arinos de distribuir os capítulos do Anteprojeto dos Notáveis às subcomissões da
Constituinte.
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tado Manoel Moreira (PMDB-SP) a observar: “No lugar de
plagiar, vamos examinar logo o original” (apud Cittadino,
2000). Ademais, vários dos membros da Comissão Arinos
participariam direta e intensamente dos trabalhos da ANC39.
Vox Populi: A Igreja e o “Plenário Pró-Participação Popular”
As atividades da elite política e dos atores partidários nas
preliminares à Constituinte encontravam seu duplo na
outra vertente a atuar na transição democrática: as forças
populares. E o seu principal polo de irradiação de trabalhos
era a igreja católica.
Apoiadora do Golpe de 1964 e aliada do regime que
logo após se instaurou, essa igreja passou por uma transmutação fundamental a partir de meados da década de 1970.
Ironicamente, os setores do catolicismo progressista aproveitaram intensamente as comunidades eclesiais de base –
estrutura de alta capilarização social que os conservadores
haviam criado e desenvolvido país afora – na sua militância
pelos direito humanos e na luta pela reconstitucionalização, como relata Dalmo Dallari:
65
Quem criou no Brasil a Comunidade Eclesial de Base
foi D. Eugênio Sales, que depois ficou com a imagem
do bispo reacionário, ultraconservador. Mas ele era
bispo do Rio Grande do Norte, e sabia da situação muito
séria, de marginalização, de discriminação ali. E criou a
Comunidade Eclesial de Base, que de certo modo era para
se contrapor às Ligas Camponesas. A ideia básica então
era essa: não são só os comunistas que estão preocupados
39
José Afonso da Silva foi o principal assessor, durante todo o processo constituinte, do Senador Mário Covas (PMDB-SP), líder da maioria na ANC. Carlos Roberto
de Siqueira Castro assessorou a liderança do PDT na ANC, além de ter destacada
participação, conforme revelam suas atas, na comissão da soberania e dos direitos
e garantias do homem e da mulher. Ambos os constitucionalistas integraram a
comissão de redação, responsável pelo texto final da Constituição.
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Genealogia da Constituinte: do autoritarismo à democratização
com justiça social. Nós também estamos, a Igreja também
se preocupa com justiça social. De modo que, ao lado das
Ligas Camponesas, aparece a Comunidade Eclesial de
Base. Elas depois se disseminaram pelo Brasil inteiro, e
tiraram o nome Eclesial. Descobriram uma Comunidade
de Base. É a organização básica da sociedade. E isso teve
uma importância enorme. Tinha muito brasileiro que
não era comunista e que não queria o comunismo, mas
que aceitava e reconhecia a importância da organização
comunitária, e isso teve muita importância no combate à
ditadura. São elementos que vão se somando e que vão ter
como resultado a Constituinte40.
66
Anos mais tarde, em depoimento, o líder social católico Francisco Whitaker lembraria que a inflexão política
da igreja católica rumo à reconstitucionalização decorreu
principalmente da experiência da qual tinham participado
ele e o bispo (e advogado) D. Cândido Padim, num projeto
denominado “Jornadas internacionais por uma sociedade
superando as dominações”. Tratou-se de um encontro mundial lançado em 1975, em Paris, que era a evolução de um
projeto no qual a CNBB tinha decidido, em assembleia no
Brasil, fazer algo no exterior sobre os direitos humanos no
país. No primeiro momento, ainda não se falava em ordem
constitucional, mas em restauração da normalidade democrática, da liberdade e do direito. Essa experiência convocaria inúmeros juristas de persuasão católica a atender à
ampla mobilização popular que se formava.
Na década de 1980, essas movimentações passariam a
colocar explicitamente em pauta a atuação popular numa
futura assembleia constituinte. Um dos mais importantes
instrumentos de ação foi a criação do “Projeto educação
popular constituinte”, como recorda o mesmo jurista:
Depoimento concedido à equipe do Cedec, concedido em São Paulo, em 2008.
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Antônio Sérgio Rocha
Nessa época, já se começa a falar o que é uma Constituinte,
o que é uma Constituição. A proposta era de que o povo
tivesse intensa participação na Constituinte, inclusive
preparando propostas para serem apresentadas lá. Passei
a viajar pelo Brasil inteiro, para dar conta dos incontáveis
convites de sindicatos, de delegação de mulheres, de
diversos movimentos sociais. Me tornei uma espécie de
“caixeiro-viajante” da Constituinte41.
Em 1983, D. Mauro Morelli, bispo da Arquidiocese de
Duque de Caxias (RJ), e o sociólogo Betinho se lançaram
num debate no Brasil inteiro por uma nova Constituição.
No Rio, formou-se uma ampla frente pró-Constituinte com
a participação de sindicatos, da OAB e de diversos movimentos sociais e de católicos do mundo acadêmico, como o
professor Cândido Mendes.
Em São Paulo, também houve movimentação por uma
Constituinte com ampla participação social. Foi quando se
criou o Plenário Pró-Participação Popular, seguindo o princípio das jornadas internacionais ocorridas na França, numa
opção metodológica pela prática política horizontal, como
novamente recorda Whitaker:
67
Era um movimento – porque não tinha dirigentes, sendo
um espaço aberto a todos aqueles que achavam que era
preciso haver participação popular na Constituinte. Isso se
expressava no slogan que a gente criou aí: Constituinte sem
povo não cria nada de novo42.
Desde logo, o Plenário Pró-Participação Popular adotava
posição e realizava campanha pela Constituinte exclusiva.
Com a derrota do Substitutivo Bierrenbach, o grupo pasDepoimento de Dallari, concedido à equipe do Cedec em São Paulo, em 2008.
Depoimento de Francisco Whitaker, concedido à equipe do Cedec.
41
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Genealogia da Constituinte: do autoritarismo à democratização
sou a trabalhar em propostas a serem levadas diretamente à
ANC – quando então receberiam a designação de “emendas
populares”.
Eleições de 1986 – o PMDB vai ao paraíso
68
Com a institucionalidade do país renovada e liberada pela
reforma política no início da Nova República, a sociedade
afluiu com vigor na criação de novas agremiações políticas.
Nas eleições municipais de 1985, concorreram 29 partidos –
aqueles 5 que já haviam disputado o pleito de 1982 e outras
24 novas agremiações. Principal legenda oposicionista e
condottiere da transição, o PMDB colheu magros resultados.
A principal derrota foi em São Paulo, onde Jânio Quadros
bateu Fernando Henrique Cardoso e revigorou as forças
conservadoras. Em 1986, os resultados seriam inteiramente
diversos.
Ainda que tenham sido as eleições para Constituinte a
atrair a cobertura da imprensa, o interesse dos eleitores se
dirigiu para a disputa dos comandos dos estados. Tratava-se
da segunda eleição para governador desde 1965 e a primeira feita sob a égide da nova institucionalidade política. Esse
fenômeno incidiria com força nessas eleições. Graças ao
impacto do Plano Cruzado, o PMDB desfrutava de elevadíssima popularidade. A legislação da época não exigia filiação
partidária um ano antes da eleição; por meio dessa brecha,
vários políticos do PDS deixariam o partido para concorrer pela agremiação oposicionista. Em Alagoas, Fernando
Collor saiu do PDS, se filiou ao PMDB e venceu as eleições
para o estado. No Rio de Janeiro, Moreira Franco deixou o
PDS e igualmente se elegeu governador pelo PMDB. Com
exceção de Sergipe, a legenda venceria em todos os estados
da federação.
O landslide peemedebista implicaria uma espécie de
transbordamento do voto de governador para as bancadas
no Congresso Nacional. Em geral, a formação da chapa
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Antônio Sérgio Rocha
para os cargos proporcionais se organizava em torno do
Executivo estadual. Acresce que, no contexto institucional-eleitoral de 1986, em que não havia mais o voto vinculado, os partidos voltavam a poder coligar e não havia eleição casada para prefeito, como a de 1982. Isoladamente, o
PMDB amealhou 260 das 487 cadeiras na Câmara dos Deputados43. No Senado, obteria 38 das 49 vagas em disputa. Era
a maior bancada partidária da futura Constituinte – ainda
que sob inchaço dos nouveaux opposants de 1982 e de 1986,
oriundos, no final da contas, da legenda de sustentação do
autoritarismo. Conjugado aos números obtidos pelo PFL, a
Aliança Democrática detinha sozinha a maioria absoluta na
futura ANC. O parceiro na superação do regime de 1964
seria também o sócio na construção da democracia?
Uma Assembleia, duas constituintes
Foram 583 dias de atividades – o mais longo processo constituinte que se tem notícia. Operante nessa longa jornada,
a ausência formal de anteprojeto estava a lhe balizar os trabalhos. Mas a implosão e o desmanche da Aliança Democrática foi sua causa eficiente, a acontecer logo após o início dos trabalhos da ANC. Exauria-se ali o pacto político
que havia criado a Nova República – perempto seu intento originário e heterogêneo em demasia os parceiros. Ao
cindir-se, a Aliança fazia de PMDB e PFL os dois principais
polos políticos na ANC, em torno dos quais os aliados preferenciais ou circunstanciais orbitariam44. De modo a destacar esta que nos parece ter sido a clivagem essencial dos
trabalhos da Constituinte, simplificaremos e estilizaremos
69
43
Dos trinta partidos que participaram do pleito, treze deles conseguiram eleger
pelo menos um representante para a Constituinte.
44
Nem todos os enfrentamentos ocorridos na ANC decorreram de alinhamentos
sistemáticos entre os polos políticos formados a partir de PMDB e de PFL. Ao que
parece, não há uma lógica única de explicação para as ações, decisões e votações
ocorridas na Constituinte. No entanto, a dicotomia captura a generalidade dos
contenciosos ali havidos.
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as duas forças políticas em confronto sob a denominação
de Sistematização e de Centrão.
Desde suas prístinas atividades, essas duas forças travariam embates, confrontos, blefes, ameaças, impasses. Os
“buracos negros” – matérias do Projeto de Constituição
nas quais nenhum dos dois blocos tinha força e voto para
aprovar ou rejeitar cabalmente, implicando a paralisação
do processo constituinte – seriam sua mais perturbadora
expressão. Mas igualmente ocorreriam composições, convergências e conciliações, quando os dois ex-sócios políticos se viram obrigados a transigir, negociar e firmar acordos sobre as questões em disputa – sob a pena capital de
não conseguirem produzir constituição alguma. A fusão
de emendas coletivas seria seu mecanismo preferencial de
avença. O padrão decisório da ANC se constituiu, assim,
num modelo conflitivo-consensual, pelo qual os confrontos passaram para o texto final da Constituição de 1988
sob a forma de compromissos agenciados pelas lideranças partidárias a representar os dois blocos dominantes –
numa espécie de “casamento na polícia” dos antigos parceiros aliancistas.
À dinâmica conflito-consenso dos dois blocos nos trabalhos da ANC se associava uma escansão temporal a vincar
os vinte meses, demarcando duas amplas fases e padrões de
atividades, nítidas a ponto de merecerem distintas nomeações. Vivia-se, de início, a fase da “Constituinte popular”,
resultante de um arcabouço de funcionamento altamente
descentralizado, consagrado pelo regimento interno da
ANC, ensejando e trazendo para o interior do Congresso
a participação de vasto rol de atores extraparlamentares:
movimentos sociais os mais diversos, frenética atividade de
lobbies e acutilante pressão dos interesses organizados sobre
os legisladores. Esse período recobre a fase do trabalho nas
24 subcomissões e oito comissões temáticas, cujo arremate se daria na “grande comissão” – a instância agregadora
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que regimentalmente elaboraria o Projeto de Constituição.
Capitaneado, sobretudo, pelo senador Mário Covas, o bloco
Sistematização comandou essa primeira fase, que transcorreu de fevereiro a fins de 1987.
Na virada do ano, a insatisfação latente e dispersa da
massa de constituintes deixados à margem dos trabalhos da
“grande comissão” deu corpo a um núcleo de parlamentares hostis ao primeiro Projeto de Constituição, que criou o
Centrão. O novo bloco levaria o Congresso à fase da “Constituinte Partidária”. Aí, perderiam nitidez os alinhamentos
ideológicos e as demandas corporativas da fase anterior, e
os acordos demandariam laboriosas e exaustivas negociações entre os principais líderes de partidos. Da mesa diretora, a sobrepairante figura de Ulysses Guimarães arbitraria
as contendas e induziria os parlamentares ao rito do voto.
Esse período recobriu o ano de 1988, quando as votações
nominais do 1o e 2o turnos se desenrolaram no plenário do
Congresso Nacional.
A longa sombra da Presidência da República se projetaria sobre as duas fases da Constituinte. Desde a sua instalação até os derradeiros momentos da ANC, o governo
Sarney atuaria de molde a condicionar, interferir e mesmo
a pautar o processo constituinte. O Congresso Nacional reagiria de forma oscilante, ora cedendo às pressões do Executivo, ora confrontando-o e rejeitando sua agenda. Não é
um enigma menor atinar para o que efetivamente pretendia Sarney. Para que ele queria os cinco anos de mandato?
Por que a insistência na preservação do presidencialismo?
A conquista dessas duas reivindicações, note-se, não aplacaria as críticas e pressões que ele seguiria movendo contra a
ANC. Não é desconhecido que, em contextos de transição
política, as forças da velha ordem tendam a convergir para
o Executivo – sobretudo para o presidente da República –
em busca de garantias de que seus interesses serão preservados (O’Donnell et al., 1986) Assim havia ocorrido com
71
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Tancredo Neves nos acordos explícitos e implícitos que
patrocinou. Que garantias buscavam então com Sarney, a
ponto de levá-lo a um ativismo pontuado por mudanças de
estratégias, e até mesmo de estrategistas, no cerceamento
sistemático à ANC?45
Ao “enigma-Sarney” se acresce a charada fundamental acerca dos trabalhos constituintes: como uma assembleia de majoritária composição conservadora logrou
produzir um documento final de natureza indubitavelmente progressista? Na literatura dedicada ao tema,
autores avançaram a hipótese de que as regras de funcionamento da ANC instituídas pelo PMDB no regimento
interno privilegiaram a decisão de membros da centro-esquerda em postos-chave do processo, que atuaram
em aberta dissonância com as preferências da maioria
que compunha o corpo coletivo (Gomes, 2002). As duas
fases da ANC, porém, transcorreram sob bases institucionais muito distintas, e mesmo as novas regras regimentais
patrocinadas pelo Centrão não lhes conferiu capacidade
de remover do texto constitucional as inovações progressistas. A explicação institucionalista não parece suficiente
para solver o quebra-cabeça. Há também hipóteses que
pretendem explicar a extensão, o grau de detalhamento
e as inconsistências presentes na versão final da Constituição pela combinação de uma sistemática de trabalhos
legislativos ultradescentralizados com a lógica do cálculo
político dos deputados e senadores – na pele de constituintes, mantinham inabalados seus interesses eleitorais
em sua atuação na ANC. O texto final – extenso, detalhista, em que atendimentos corporativos são visíveis a olho
45
Sarney mobilizou de militares a governadores do PMDB. Entre seus estrategistas
mais próximos, estavam Marco Maciel, Paulo Brossard e Saulo Ramos. Também
consultava com frequência Jarbas Passarinho e os jornalistas Carlos Chagas e Carlos Castello Branco.
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nu – expressaria cabalmente o efeito dessas duas lógicas a
operar nos trabalhos constituintes46.
Tais questões remanescem inconclusivas até hoje. Passemos então ao consabido, aos episódios estelares de cada
fase da ANC e suas vicissitudes.
Sistematização e a “Constituinte popular”
Represada pelos anos de autoritarismo e reativada pelos
eventos do final da década de 1970, uma vasta agenda de
direitos se apresentou na fase inicial da ANC. Remobilizados após a derrota das diretas-já, os movimentos sociais
fariam da Constituinte uma espécie de revanche da transição política pactuada, como avalia Genoíno Neto em
depoimento:
Essa é uma particularidade da transição no Brasil: o
movimento popular não foi cooptado pela transição
pelo alto. O PT e a esquerda ficaram numa ala
esquerda, sem ser domesticado, e o movimento social
não foi cooptado. As comunidades populares e o
movimento sindical vieram paralelamente a isso. E nós
colocávamos eles todos para dentro. Entravam conosco
no Plenário, usávamos as nossas prerrogativas de
deputados federais no limite47.
73
Não seriam apenas as forças populares a comparecer e a se infiltrar maciçamente no plenário e nas galerias. Forças Armadas, membros do Judiciário, polícias,
46
A “hipótese dos detalhamentos corporativistas” não enxerga o aspecto da implementação exitosa da nova Constituição, a faceta do alto grau de estabilidade
que essa Constituição logrou alcançar nesses 25 anos que se seguiram à sua
promulgação, graças, possivelmente, ao reconhecimento da parte das mais diversas forças políticas do país de terem seus interesses contemplados no texto
constitucional.
47
Depoimento de José Genoíno à equipe de Cedec, em julho de 2008.
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representantes de bancos, de entidades patronais, estatais, multinacionais, mineradoras etc. transitaram com
desembaraço pelos corredores e dependências do Congresso Nacional. Nessa fase, estima-se que 9 milhões de
pessoas tenham passado pelo Congresso e, ao todo, mais
de 60 mil propostas de segmentos diversos da sociedade
civil seriam apresentadas às subcomissões da ANC. O país
desejado ali se delineava.
“Todo poder à Constituinte”?
74
Vencidas, mas não convencidas, na convocatória de uma
Assembleia exclusiva em 1985, as forças progressistas lançariam uma arremetida por uma Constituinte soberana tão
logo a ANC se instalasse. No cerne da contenda, estavam a
natureza da transição política brasileira e suas implicações
para a construção da nova ordem institucional.
Tanto na opinião pública como no plenário do
Congresso, as duas correntes travariam uma luta radical. Inconformados com o possível atrelamento da nova
ordem constitucional ao poder constituído anterior, aqueles que consideravam a Constituinte plenamente soberana
pressionavam para que os parlamentares assumissem desde logo o controle sobre a situação política do país, que
confirmassem ou não o presidente da República no cargo
e que estabelecessem um calendário da transição para o
novo governo – além de adotar decisões que revogassem
de pronto os institutos autoritários ainda vigentes. Já aqueles que insistiam no caráter incontornavelmente derivado
da Constituinte defendiam a limitação do corpo constituinte à elaboração do novo documento constitucional,
sem interferir na força institucional anterior à promulgação; alarmados pelos riscos do “todo poder à Constituinte”, sustentavam que a integralidade de suas prerrogativas
somente haveria de se manifestar com a vigência da futura
Constituição. Para tais forças conservadoras, a inexistência
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Antônio Sérgio Rocha
de ruptura no processo político brasileiro desqualificava a
convocação de uma Constituinte originária48.
O governo Sarney logo tomaria posição pela segunda opção, procurando preservar seus poderes e limitar o
campo de ação dos constituintes. Na equipe presidencial,
Saulo Ramos era o principal e mais agressivo propagandista
da tese antisoberanista: “Só há Constituinte originária se há
ato revolucionário que implique quebra, ruptura da ordem
jurídica, sob pena de a Constituinte revelar-se derivada e,
portanto, submetida à ordem jurídica em vigor”(Ramos,
1987, p. 21). Ele iria mais longe, e, em escrito publicado
em pleno funcionamento da ANC, em setembro de 1987,
sustentaria as limitações da Constituinte em onze amplos
aspectos temáticos, mercê de sua natureza de emenda
à Constituição Federal de 1967. O opúsculo, assim como
seus constantes pronunciamentos na mídia atacando a
ANC, possivelmente suscitaram aos constituintes a ideia e
a propositura do que chamaram de “projeto de decisão”.
Tratava-se de um recurso jurídico para “sobrestar medidas
que possam ameaçar os trabalhos e as decisões soberanas na
Assembleia Nacional Constituinte”. Na prática, o Congresso
Nacional passaria a deter o comando político do país. Mas o
instituto não encontraria acolhida no seio da ANC; submetido a votação, a maioria congressual o derrotaria.
O governo persistia na pressão sobre a atuação dos
constituintes. Em 19 de maio, nas rádios e na TV, Sarney
fez um pronunciamento à nação, no qual manifestava divergências em relação aos trabalhos de elaboração constitucional e a seu conteúdo. Anunciava, em especial, que abria
75
48
Na obra de 1981, Faoro já havia rebatido de antemão o argumento de que somente uma revolução propiciaria os fundamentos de uma Constituinte soberana,
ao escrever que “é duvidosa a tese de que só as revoluções vitoriosas podem convocar constituintes. Assembleias Constituintes podem ser o meio de enfrentar uma
crise em perspectiva e lançar bases da transição, como sucedeu no Brasil, em que a
Constituinte de 1823 foi convocada antes da Independência, pelo Decreto de 3 de
junho de 1822” (Faoro, 1981 p. 95).
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mão de um ano de mandato constante na Carta Constitucional então vigente – seis anos – e definia unilateralmente
a duração de seu mandato em cinco anos. O país conhecia
um novo Dia do Fico.
A definição do núcleo político
76
Já no dia seguinte à sua instalação, a escolha da presidência
da ANC entrava em pauta. Duas candidaturas almejavam
o posto: Ulysses Guimarães (PMDB-SP) e Lysâneas Maciel
(PDT-RJ), replicando, ainda uma vez, a disputa “moderados” e “autênticos” durante a transição, quando ambos
eram emedebistas. A vitória de Ulysses se deu por larga
margem. O segundo round da disputa no interior do PMDB
ocorreu com a contenda Ulysses versus Fernando Lyra pela
presidência da Câmara dos Deputados. Nova vitória de Ulysses, cumulando-o com uma tríplice presidência – do PMDB,
da Câmara e da ANC.
Seguiu-se o processo de escolha das lideranças partidárias. A maioria das agremiações atribuiu a função de “líder
na Constituinte” para um de seus parlamentares que já ocupavam a liderança na Câmara ou no Senado. O PMDB, no
entanto, optaria pela escolha de uma liderança específica
na ANC, o que motivou disputa acirrada entre o senador
Mário Covas e o deputado ulyssista Luiz Henrique. A vitória
de Covas tornou-se um fato político significativo para todo
o processo, ao contestar o comando partidário e imprimir
uma orientação de centro-esquerda à legenda. Ali começava o estranhamento PMDB-PFL. Ali se dava o início do fim
da Aliança Democrática.
Covas infligiria nova derrota a Ulysses na escolha do
relator-geral da ANC. Ambicionada por Fernando Henrique, Covas impõe Bernardo Cabral na função49. A Cardoso
49
Que tinha sido seu vice-líder no MDB em 1969, quando ambos foram cassados
pelo AI-5.
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tocaria a nevrálgica relatoria do regimento interno, definidor das regras de funcionamento da ANC e de suas instâncias decisórias.
Na composição da mesa diretora, a Constituinte conheceria mais um impasse político. Segundo partido em número de
constituintes, o PFL impôs várias condições para participar da
mesa da ANC; não conseguindo apoio, terminou fora da chapa unitária. No confronto, o PFL, por sua liderança, chegou
a ameaçar fazer uma “Constituinte paralela”, no que seria dissuadido por membros mais moderados, inclusive pelo então
ministro da Educação, Marco Maciel50. O episódio, no entanto, estremeceria as relações no interior da Aliança Democrática. O término formal desta se daria nesse episódio.
A querela do regimento interno
Entre fins de dezembro de 1986 e princípio de 1987, a
assessoria da Câmara dos Deputados, por inspiração do
presidente Ulysses Guimarães, formulou uma minuta de
regimento interno da ANC calcada no modelo de 1946, em
que se previa a formação de uma comissão constitucional
para preparar o Anteprojeto (Andrade e Bonavides, 1991).
A minuta, entretanto, não prosperaria. Na disputa interna no PMDB pela presidência da Câmara dos Deputados,
Fernando Lyra advertia os parlamentares para o risco de
criar-se uma grande comissão, cuja composição prevista era
de 80 constituintes, 1 relator geral e vários auxiliares. Sua
extensão e prerrogativas implicariam o risco de repartir o
Congresso em constituintes de primeira e de segunda classe. Lyra alegava também que não haveria como ocupar o
tempo dos parlamentares que ficassem ociosos aguardando
a preparação do Anteprojeto, a dar-se no recinto privilegiado da “grande comissão”.
77
50
Que depois iria integrar a ANC, na condição de senador e ativa liderança do
Centrão.
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O assunto entraria em pauta na primeira reunião ordinária da ANC, o que desencadearia intenso debate sobre a
natureza e o formato do processo constituinte. A decisão:
não haveria nem comissão constitucional nem Anteprojeto
prévio. Todos os constituintes participariam direta e igualmente do processo. Ainda a ser elaborado, incumbiria às
normas do regimento interno a missão de instituir a estrutura, o calendário, os mecanismos e os procedimentos de
elaboração do Projeto de Constituição. O formato adotado
consistiria na criação de 24 subcomissões, que se agregariam,
três a três, em oito comissões temáticas, por sua vez com
matérias englobadas e consolidadas numa comissão de sistematização, responsável por montar o Anteprojeto. O deputado Nelson Jobim (PMDB-RS) evoca a concepção quase lúdica que orientou a montagem das instâncias de trabalho:
78
[...] tivemos de criar um imenso modelo,
extraordinariamente complicado, de criação de 24
subcomissões. [...] Surgido o problema, pegamos os três
volumes que reuniam as constituições ocidentais editadas
pelo Senado e recortamos com tesoura os nomes de títulos
e capítulos de todas aquelas constituições. E, durante uma
noite inteira, colocando no chão, terminamos a distribuição
daquilo tudo. E aí surgiu o seguinte: houve nomes de títulos
e capítulos que se reproduziam em todas as constituições.
Chamamos, então, de matéria absolutamente constitucional.
Houve nomes de títulos e capítulos que se repetiam
na maioria das constituições. Chamamos de matéria
relativamente constitucional. E houve um número de títulos
de capítulos que se repetiam na minoria das constituições,
menos de 50%. Chamamos de matéria relativamente não
constitucional. [...] Neste modelo é que foram elaboradas
as 24 subcomissões, que se centravam em grandes temas:
eram as oito comissões temáticas, que eram os oito títulos da
Constituição de hoje (Sampaio, 2004, pp. 11-2).
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Duas consequências adviriam do formato delineado
naquele regimento. Em termos substantivos, as oito comissões temáticas na realidade predefiniam os capítulos da
vindoura Constituição. Em termos operacionais, a divisão
de trabalho em duas dúzias de fóruns decisórios implicava altos custos para uma posterior compatibilização e
consistência das matérias apresentadas. Tal incentivo aos
particularismos era justificado pelas oportunidades de
participação dos atores extraparlamentares, na forma de
sugestões iniciais de qualquer associação, assim como das
câmaras municipais; audiências públicas obrigatórias, nas
quais não só especialistas e autoridades poderiam ser convidados como, sobretudo, entidades associativas teriam o
direito de apresentar-se e opinar; haveria a possibilidade
de apresentação de emendas populares e a defesa de tais
propostas ante a comissão de sistematização diretamente
por um dos seus signatários51.
O regimento interno atribuía o direito de emendas a
qualquer constituinte, e o número veio a ser expressivo:
20.790. Mas a grande novidade ficava por conta da chamada emenda popular52. Trinta mil eleitores poderiam subscrever uma proposta organizada sob a responsabilidade
de pelo menos três entidades associativas e apresentá-la
diretamente na ANC. No total, houve 122 emendas populares, portando nada menos que 12.277.423 assinaturas53.
Desse montante, 83 emendas populares foram admitidas
no processo constituinte.
79
51
É notável que, ao lado de tão inusitado mecanismo de abertura social, o plenário
da ANC tenha resistido à submissão do futuro texto, em algum momento de sua
elaboração, ao plebiscito da nação. Para mediar essa questão, o regimento da ANC
previu um prazo e um momento para a apreciação de propostas de referendo ou
plebiscito, sem que nenhuma delas lograsse êxito.
52
Houve um precedente remoto dessa modalidade de participação na Assembleia
Constituinte de 1823, na figura das “sugestões de cidadãos”.
53
Cada eleitor podia subscrever até três propostas. A efetiva mobilização e a participação popular, portanto, foi da ordem de 4 milhões de cidadãos.
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Genealogia da Constituinte: do autoritarismo à democratização
Covas e a estratégia da Sistematização 54
80
O passo seguinte foi organizar as comissões temáticas e suas
subcomissões, além da poderosa comissão de sistematização. Na definição política dos cargos internos de comissões
e subcomissões, o PMDB, partido majoritário da ANC, conseguiu assegurar a maioria das relatorias, distribuindo presidências e vice-presidências entre as demais agremiações.
Para as forças progressistas, foi um momento decisivo: em
troca da cessão do cargo da presidência de cada uma das
comissões temáticas, Covas firmou acordo com José Lourenço, líder do PFL, para obter 7 das 8 relatorias em jogo.
E escolheu a dedo, dentre parlamentares progressistas do
PMDB, esses relatores, que seriam também membros natos
da Sistematização. O circuito se fechava. Do recolhimento
das matérias apresentadas à elaboração do Anteprojeto, o
PMDB covista exercia seu predomínio.
Em 26 de junho de 1987, o relator-geral Bernardo
Cabral dava a público a primeira tentativa de organizar as
partes votadas nas comissões temáticas. Era um anteprojeto
de constituição com 501 artigos, distribuídos em dez títulos.
Em 15 de julho, começava a tramitar o Projeto Zero – o primeiro texto oficial da futura Constituição. A Constituinte
percorrera cinco meses e meio para chegar ao seu ponto de
partida formal. Uma crise política se instalou, e o deputado José Richa (PMDB-PR) propôs suspender por um mês o
funcionamento da ANC. Acabaria voto vencido.
No mês de outubro de 1987, tornou-se necessária mais
uma prorrogação de prazo para a comissão de sistematização.
Os trabalhos seriam consideravelmente embargados pelas
divergências que se acentuavam e que estavam originando
54
Originalmente, a mesa da comissão de sistematização era a seguinte: presidente:
Afonso Arinos (PFL-RJ); 1o vice-presidente: Aluízio Campos (PMDB-PB); 2o vice-presidente: Brandão Monteiro: (PDT-RJ). Em vistas dos impasses, acrescentaram-se mais
dois vice-presidentes, que teriam participação positiva para organizar e acelerar as deliberações: Jarbas Passarinho (PDS-PA) e Fernando Henrique Cardoso (PMDB-SP).
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um grupo que pretendia modificações regimentais. No plenário da Constituinte, ocorria uma revolta da maioria dos
parlamentares, que ficavam sem uma participação direta,
enquanto a comissão de sistematização deliberava e votava.
Em 18 de novembro, a Sistematização conclui o projeto da
nova carta política. As polêmicas desencadeadas pelo documento arrojariam a ANC em nova fase de funcionamento.
Centrão e a “Constituinte partidária”
Em fins de 1987, formou-se um bloco parlamentar que se
autodesignava “Centro Democrático” (Centrão)55. O estopim
de sua organização, entretanto, vinha de muito antes. Preliminarmente, nas divergências quanto ao quorum de deliberações ainda no momento de formação do regimento interno: para o PFL, o quorum deveria se dar por maioria absoluta de toda a ANC; para as lideranças do PMDB, por maioria
simples dos presentes na votação. Decisivamente, quando a
comissão de sistematização aprova a estabilidade no emprego
– sem considerações de tempo de serviço ou outras exigências. Operacionalmente, com a insatisfação generalizada com
o teor do documento produzido pela “grande comissão”.
Essa fase marcou a ascensão das lideranças partidárias
no papel preponderante e organizador das deliberações,
barganhas e acordos para viabilizar as votações no plenário.
Um “colégio de líderes”, instância informal de consulta e
decisão, se formou a partir dessas continuadas reuniões e
passou a centralizar as atividades constituintes.
A reforma do Regimento pelo Centrão implicaria também
uma apreciável concentração de poderes no presidente da
ANC, Ulysses Guimarães –, seja por sua intervenção direta, seja
81
55
Suas lideranças eram as seguintes: Roberto Cardoso Alves (PMDB-SP); Afif Domingos (PL-SP); José Lourenço (PFL-BA); Ricardo Fiúza (PFL-PE); Delfim Netto
(PDS-SP); Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP); José Maria Eymael (PDC-SP); Gastone
Righi (PTB-SP); Roberto Jefferson (PTB-RJ); Paes Landim (PFL-PI); Expedito Machado (deputado, PMDB-CE); Sólon Borges dos Reis (PTB-SP).
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Genealogia da Constituinte: do autoritarismo à democratização
pela necessidade de que ele, a todo momento, interpretasse as
normas de funcionamento e tomasse as decisões gerais. Sob
as novas bases institucionais, Ulysses passaria a ser o elemento-pivô do processo de negociação das lideranças partidárias.
A virada do Centrão
82
Já no final dos trabalhos da comissão de sistematização,
articulava-se uma maioria dos constituintes em torno da
bandeira da modificação do regimento interno. Apoiando-se inicialmente num documento inspirado pelo Palácio
do Planalto, intitulado “Democracia e desenvolvimento”, o
Centrão estreiou com uma demonstração de força, ao aprovar o Substitutivo Cardoso Alves para o regimento interno
da Constituinte. O novo bloco político conseguira derrubar
o item do regimento que conferia preferência às emendas
provenientes da comissão de sistematização nas votações
em plenário: agora, passavam a ter preferência aquelas
emendas assinadas por metade mais um dos constituintes.
Com esse dispositivo, o Centrão conseguia retirar parte considerável do poder dessa comissão em matéria de decidir o
andamento da pauta da Constituinte.
Controvérsias e negociações conduziram por fim à
aprovação da resolução n. 3, publicada em 5 de janeiro de
1988. Desaparecia a comissão de sistematização, substituída
pela figura individual do relator-geral. Para a redação final
do Projeto, foi prevista a criação de uma comissão específica. Além das emendas individuais e coletivas, foram previstos os instrumentos de destaques para uma emenda e do
requerimento de preferência. A votação de primeiro turno
em plenário teve início com a Assembleia Constituinte já
datando um ano de sua instalação.
Confrontos e composições: a dinâmica política no Plenário
Em 27 de janeiro de 1988, surgiu o primeiro impasse em
Plenário, a repetir-se seguidamente: a emenda coletiva
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sobre o Preâmbulo e no Título I da Constituição não obteve
os 280 votos para aprovação e teve de ser submetida a uma
negociação informal. Doravante, essa forma de conduzir a
votação tipificaria os acordos entre as duas forças majoritárias. A base era o texto do Centrão; para que fosse aceito, já
se faziam preliminarmente alterações de consenso. Isso, no
entanto, não impedia que as divergências restantes fossem
a voto, na confrontação das partes. O resultado prático era
que o texto da Comissão de Sistematização era recuperado
em sua maior parte.
Em julho de 1988, cinco meses após terem sido iniciadas, as votações em primeiro turno estavam concluídas. As
votações de segundo turno iniciaram-se sob elevada tensão.
Haviam surgido propostas para uma revisão geral, no mérito, do que já tinha sido aprovado, ou mesmo de recomeçar
a tarefa constituinte. As divergências entre o Governo e os
setores da Constituinte aprofundavam-se em pronunciamentos oficiais e por meio da imprensa. Em cadeia de rádio
e TV, o presidente da República criticou frontalmente os
conteúdos do Projeto B:
83
[...] há o receio de que alguns dos seus artigos
desencorajem a produção, afastem capitais, sejam adversos
à iniciativa privada e terminem por induzir ao ócio e à
improdutividade. [...] E que o povo, em vez de enriquecer,
venha a empobrecer; e possa regredir, em vez de progredir.
Em suma: os brasileiros receiam que a Constituição torne o
País ingovernável (apud Delgado, 2006 p. 315).
Sarney é rebatido, no dia seguinte, com uma declaração incisiva de Ulysses Guimarães, também levada ao ar em
cadeia nacional de rádio e televisão:
Não ouvimos o establishment, encarnado no Velho do
Restelo, conclamando, na praia alvoaçada da partida,
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Genealogia da Constituinte: do autoritarismo à democratização
Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Camões para
permanecerem em casa, saboreando bacalhau e o caldo
verde, ao invés da aventura das Índias, do Brasil e dos
Lusíadas e amaldiçoando “o primeiro que, no mundo,
nas ondas velas quis em seco leão”. Esta Constituição terá
cheiro de amanhã, não de mofo. [...] A governabilidade
está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença
inassistida, é que são ingovernáveis. [...] Repito: esta será
a Constituição cidadã. Porque recuperará como cidadãos
milhões de brasileiros. [...] Esta Constituição, o povo
brasileiro me autoriza a proclamá-la, não ficará como
bela estátua inacabada, mutilada ou profanada. O povo
nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo. Viva a
Constituição de 1988. Viva a vida que ela vai defender e
semear (apud Delgado, 2006).
84
A votação do texto em globo alcançou expressiva maioria, confirmando o trabalho de primeiro turno. Nessa segunda rodada de deliberações pelo plenário, os trabalhos ganharam mais velocidade, o número de destaques postos a voto foi
reduzido, as sessões alongaram-se pelo dia inteiro e em parte
da noite, em “esforço concentrado”. Dominava o conjunto da
Assembleia a necessidade de concluir e promulgar a Constituição56. Desde sua instalação, os trabalhos constituintes consumiram vinte meses. Antes da comissão de sistematização,
tinha havido quatro anteprojetos e projetos de Constituição.
Do trabalho do relator-geral entre as duas rodadas de plenário, emergira mais um projeto. No segundo turno, novo projeto. Por último, houve o Projeto de Constituição feito pela
comissão de redação final. Ao todo, seriam nove anteprojetos
ou projetos, gestados na longa jornada constituinte.
56
Com a saída de Mário Covas para a fundação do PSDB, a função de líder do
PMDB fora atribuída ao deputado Nelson Jobim (RS). A ele caberia papel essencial nos momentos de divergência e negociação ao longo do segundo turno de
votação.
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Antônio Sérgio Rocha
“Chegamos!”
O final das deliberações ocorreu na madrugada de 2 de
setembro, numa Assembleia exaurida pela longa jornada
de trabalhos. A data de promulgação estava definida desde
o final do segundo turno, e a cerimônia aconteceu no dia 5
de outubro, às 15h30, no plenário do Congresso Nacional.
Pelos constituintes, falou o seu decano, o senador Afonso Arinos. Representando as delegações estrangeiras, Vitor Crespo,
presidente da Assembleia Legislativa de Portugal, saudou da
tribuna um Brasil democrático e reconstitucionalizado. Sarney não discursou; a fala do presidente não estava prevista. Ao
lado de Ulysses Guimarães, aguardava o momento que devia
jurar a Constituição brasileira. Com as mãos trêmulas, estendeu o braço para o pronunciamento. O papel que segurava,
contendo umas poucas palavras protocolares, tremia também.
A fala final é de Ulysses Guimarães. Sereno mas vibrante, enfatizou a ampla e inovadora carta de direitos do documento agora promulgado. A Constituição cidadã recebera
seu nome de batismo.
85
Antônio Sérgio Rocha
é docente de ciência política da Unifesp, membro associado
e pesquisador do Cedec.
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O debate constituinte: uma linguagem
democrática?
Tarcísio Costa
Em meados dos anos de 1980, não foram poucos os atores
que cerraram fileiras em defesa de uma Assembleia Nacional Constituinte (ANC) exclusiva. A Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa
(ABI) estiveram à frente de campanha que reuniu amplo
leque de organizações de classe, movimentos sociais e partidos políticos. Eram animados pela convicção de que estavam a serviço da vontade geral. Somente um foro eleito precipuamente para a função constituinte disporia da autonomia necessária para realizar o anseio coletivo de reinvenção
da ordem democrática.
A causa, como se sabe, não prosperou. Prevaleceu a
fórmula do Congresso com poderes constituintes, mais ao
agrado dos setores conservadores. Inquietava a estes a perspectiva de uma ANC que deliberasse ao largo dos poderes
constituídos, definindo instituições e normas de relevância inevitável para os gestores de plantão. Os congressistas
foram eleitos para ocupar-se tanto da feitura da Constituição quanto da lide parlamentar, de maneira alternada.
Estiveram sujeitos aos humores da conjuntura, ora ditados
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O debate constituinte: uma linguagem democrática?
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pelas disputas e composições partidárias, ora marcados pelo
volátil e conturbado relacionamento entre o palácio do planalto e os agrupamentos políticos.
Frustrados em seu objetivo, os defensores de uma ANC
exclusiva fizeram sentir seu apego a uma vontade geral originária ao longo do exercício constituinte. Foi constante o
empenho em fazer reverberar a “mensagem das ruas” junto
à ANC, seja na promoção das iniciativas populares e de outras
formas de democracia direta, seja na valorização dos espaços
abertos à presença dos grupos sociais no processo constituinte, como as audiências públicas. A expectativa desses agrupamentos era a de que, pela mobilização social, a suposta
vontade popular preponderasse sobre os interesses setoriais e
contingentes a que estaria sujeita a Constituinte por seu vício
de origem e terminasse ditando o tom da Carta em gestação.
O desenlace é conhecido: malgrado o volume e os êxitos pontuais das emendas populares, o texto promulgado
foi considerado bem aquém do almejado. As inovações —
expressivas nas passagens dedicadas ao meio ambiente, educação e saúde — e a plêiade de direitos assegurados aos trabalhadores, aposentados, mulheres, crianças, adolescentes,
idosos, índios e outras minorias, não teriam situado a Carta
à altura de um suposto consenso social. A abstenção do Partido dos Trabalhadores (PT) na votação do texto constitucional evidenciou esse sentimento de frustração.
Para o PT e grupos afins, a legitimação da Carta de
1988 viria a posteriori, por pragmatismo. Logo ficou claro
que a conjuntura mostrava-se cada vez menos receptiva às
bandeiras que haviam sido assumidas por esses segmentos
no processo constituinte. Ao invés de continuar a denunciar a Carta em nome dos objetivos não alcançados, como
a desapropriação de terras produtivas para fins de reforma
agrária, parecia mais consequente aderir ao texto e zelar
pelas “conquistas” que estariam sob risco no campo social e
no tocante ao papel do Estado e à ordem econômica.
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Tarcísio Costa
Assistiu-se, de fato, no pós-constituinte, ao recrudescimento das críticas veiculadas na ANC quanto às dificuldades que a Carta traria à governabilidade em momento de
acentuada crise fiscal e à atividade produtiva em tempo
de globalização. A Presidência da República e o Ministério da Fazenda mantiveram o refrão a respeito do impacto
das novas garantias sociais e previdenciárias sobre o orçamento federal, para não mencionar o reclamo atinente ao
descompasso entre as atribuições reservadas à União e os
recursos a ela destinados. O rosário de queixas de analistas econômicos e agentes produtivos ia além do desconforto com o ônus representado pelas obrigações sociais e
incluía restrições aos monopólios estatais e ao tratamento
favorável reservado às ditas “empresas brasileiras de capital nacional” diante daquelas sediadas no Brasil, mas sob
controle acionário externo.
Vinte e cinco anos após a entrada em vigor da “Constituição cidadã”, os ânimos estão serenados. As críticas do período
pós-constituinte acerca do risco à governabilidade
perderam sua razão de ser e os adeptos de uma ANC exclusiva são hoje amigos da Carta. Para tanto contribuíram, de um
lado, a superação da crise fiscal, os ajustes na previdência, a
acomodação do pacto federativo e as reformas constitucionais nos anos de 1990, e, de outro lado, a atualização do discurso do PT com o exercício do poder a partir de 2003.
É verdade que, ocasionalmente, sobretudo em perío­
dos eleitorais, retoma-se a cantilena contra a alienação de
empresas públicas, insuflada pela valorização da Petrobras após a descoberta das jazidas no pré-sal. Também
são ouvidos brados de ufanismo por conta da maior projeção internacional do país. Mas são manifestações que se
esgotam diante do recuo do Estado às funções menos controversas de fomentador e regulador da atividade econômica
e diante das práticas continuadas de integração à economia internacional. Notam-se, obviamente, discrepâncias
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entre o governo e a oposição sobre o papel do Estado e
em relação ao formato e à implementação das políticas
sociais, mas são diferenças que não questionam o marco
constitucional. Não se fala mais em insuficiência ou obsoletismo da Constituição.
Por que, então, retomar a discussão sobre a legitimidade do exercício constituinte, como se propõe este artigo?
Qual a justificativa para indagar sobre quão legítimo foi
um processo deliberativo responsável por texto que, com
as emendas recebidas, revelou-se eficaz como referência
normativa de um período particularmente intenso da história política e econômica do país? Por duas razões, complementares entre si. A primeira é de natureza conceitual e a
segunda, de cunho histórico.
As análises sobre a legitimidade do processo constituinte costumam ser variações em torno do juízo de que
se tratou da mais ampla e participativa experiência deliberativa de nossa história republicana, independentemente do critério que se privilegie: partidário, classista,
profissional, regional ou étnico. Por vezes se argumenta
que foi a estrutura capilarizada do processo que permitiu uma ausculta diversificada da cidadania, com a ressalva de que o percurso traçado foi desvirtuado com a
alteração do regimento interno da ANC feita pelo “Centrão”. Mas pouco se diz sobre a deliberação em si. Como
se, asseguradas a representatividade das audiências e a
fluidez dos ritos, o resultado inevitável fosse o resgate
ou a explicitação de uma pré-definida vontade coletiva.
Quanto mais inclusivo fosse o foro e isentos seus procedimentos, maior seria a chance de ter revelada a vontade
geral, que se sabia latente1.
Como análises que ressaltam o caráter participativo e a representatividade partidária e regional do exercício constituinte, ver Sampaio (2009) e Kinzo (1990),
respectivamente.
1
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Tarcísio Costa
Existem, contudo, caminhos alternativos e de interesse histórico para pensar a legitimidade democrática.
Teóricos de diferentes filiações optam por amparar a
legitimidade da ação política não em uma vontade geral
imanente, mas no processo deliberativo de definição do
interesse coletivo. Mais do que isso: há uma reflexão consolidada, como expressa por Jürgen Habermas e Bernard
Manin, sobre como fundamentar a legitimidade democrática na qualidade da deliberação, que se supõe que seja
um exercício em aberto, pluralista e sem sujeitos oniscientes. Embora não tenham igual especificidade, análises sobre a transição democrática no Brasil também colocaram em pauta a compreensão da democracia como um
processo deliberativo e indeterminado.
O ganho que a leitura do exercício constituinte sob
essas lentes propicia é múltiplo. Torna-se possível aferir
os limites e as potencialidades do ambiente discursivo
em que foram desenvolvidas as tratativas da ANC. Oferece também a oportunidade de examinar em que medida
o discurso político brasileiro no final dos anos de 1980,
quando se dava por concluída a transição, refletia valores
democráticos. O diagnóstico que faziam estudiosos como
Francisco Weffort era o de que a linguagem democrática
era de uso cada vez mais corrente tanto à esquerda como
à direita do espectro político, leitura digerida com grão de
sal por observadores mais céticos de nossa cena política,
como Albert Hirschman.
***
93
Do contratualismo liberal à teoria crítica, tem sido
prolífica a reflexão sobre o tema da deliberação pública.
Rawls (1971) é paradigmático entre os contratualistas, mas
não é o caso de resenhá-lo aqui em toda sua amplitude2.
Ver Rawls (1971), em particular os capítulos I, II, III e IV.
2
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O debate constituinte: uma linguagem democrática?
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Convém recordar, de todo modo, que Rawls dedica-se em
sua obra à identificação dos princípios que os indivíduos –
se imaginados sob um “véu de ignorância” que lhes assegure
absoluta imparcialidade em seus juízos – escolheriam para
fundamentar uma concepção racional e universalmente
aceita da justiça. Também reflete sobre a “estrutura (institucional) básica” que seria a mais adequada para colocar esses
princípios em prática3.
A todos é reconhecido igual direito de participação
no processo político e na determinação de seus resultados,
o que pode ser comprometido por distorções no modelo
representativo e pelos vícios do sectarismo e do abuso do
poder econômico. Para impedir a sobrerrepresentação,
Rawls ressalta a importância de que os distritos eleitorais
sejam de dimensões equivalentes, com quocientes de votos
semelhantes para a eleição dos representantes. De modo a
evitar que a deliberação pública fique refém das facções,
advoga o franco usufruto das liberdades de pensamento
e de consciência, bem como dos direitos de reunião e de
expressão, inclusive da prerrogativa de “leal oposição”. Contra o abuso econômico, são prescritas desde uma equitativa distribuição da riqueza até o financiamento público dos
partidos políticos.
Rawls deixa claro que não há, contudo, como tornar a
deliberação política imune a desvios. Afinal de contas, ela
3
Por ordem de prioridade, são dois os princípios concebidos na “posição original”. O primeiro requer que sejam garantidas a todos as liberdades fundamentais.
O segundo recomenda que as desigualdades sociais e econômicas sejam acomodadas segundo um arranjo tal que, respeitados a igualdade de oportunidades e o
interesse das gerações futuras, os maiores benefícios destinem-se aos menos afortunados. A ordem constitucional construída a partir e em defesa desses princípios teria uma feição liberal-democrática. Por um lado, contemplaria uma carta
de direitos sob amparo da lei, um sistema representativo, equilíbrio e controle
recíproco dos poderes e um legislativo bicameral. Por outro lado, o Estado seria dotado de legislação e meios para assegurar livre-competição, pleno emprego,
renda social mínima, ensino (público ou subsidiado) e políticas distributivas por
intermédio de taxação e ajustes ao direito de propriedade (Rawls, 1972).
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se dá em ambiente necessariamente conflituoso, no “mundo imperfeito”. Por mais que sejam facultados a todos os
atores o mais equânime acesso às informações disponíveis
sobre a realidade e condições semelhantes para apresentar,
apreciar e reformar propostas normativas, não se concebe
que o arranjo constitucional possa ser tão imparcial quanto
o contrato social que pautou a seleção dos princípios basilares de justiça. Enquanto a deliberação constituinte é interativa, com barganha e negociação, aquela desenvolvida na
“posição original”, não, já que pressupõe unanimidade de
pontos de vistas.
Há quem questione se é propriamente deliberativa
a definição dos princípios de justiça sob o “véu de ignorância”. Rawls prevê a existência de um “árbitro”, que
mediaria a interlocução dos atores, anunciando as opções
disponíveis e os argumentos a favor de cada uma delas.
Mas logo conclui que o papel desse árbitro é supérfluo,
uma vez que todos devem pronunciar-se na mesma linha.
Desconhecendo tudo aquilo que os diferencia entre si e
tendo em mãos idênticas opções e critérios de juízo, os
indivíduos são fadados à convergência de posições. A
visão de qualquer ator escolhido ao léu reflete a orientação dos demais. O processo de escolha resume-se, assim,
a um simples cálculo em que opções comuns passam pelo
crivo de critérios igualmente comuns, com o resultado já
contido na premissa.
Não surpreende, assim, que as críticas a Rawls tenham
sido concentradas no irrealismo do modelo ancorado na
“posição original”, que sobreviveria enquanto parâmetro
normativo para o uso público da razão, mas seria demasiado asséptico para comandar a “estrutura básica” e assegurar a estabilidade desta. Em obra subsequente, Rawls busca
dotar sua construção teórica de maior efetividade; complementa a teoria moral da justiça com uma concepção
política da justiça, que estaria melhor aquinhoada para
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fundamentar o pluralismo doutrinário contemporâneo
(Rawls, 1993)4.
Entre os pontos que distinguem Jürgen Habermas de
John Rawls, dois traços da teoria da ação comunicativa elaborada pelo primeiro, são de relevância imediata para o debate sobre deliberação: a articulação mais estreita de pressupostos filosóficos com uma compreensão crítica da sociedade e a natureza “dialógica” da produção do conhecimento5.
Ao valorizar uma síntese dialética entre filosofia e
interpretação social, entre norma e fato, Habermas é fiel
ao espírito que pautou a fundação do Instituto de Pesquisa
Social de Frankfurt, imbuídos como foram seus pioneiros
da missão de investigar em situações históricas concretas
o potencial emancipatório da razão. Sabe-se que o ceticismo provocado por fenômenos como o nazifascismo
e o totalitarismo soviético arrefeceu o ânimo da teoria
crítica com a investigação social. Adorno refugiou-se na
“dialética negativa”, com pessimismo crescente quanto à
possibilidade de resistir à ascendência crescente da razão
instrumental, alheia aos fins. Habermas não o seguiu.
A consciência do Holocausto (“desumanidade realizada
coletivamente”) já o fizera imergir na tradição crítica alemã, de Kant a Lukács, passando por Schelling, Hegel e
Marx, em busca de inspiração para dissecar a “patologia
da modernidade” e poder revalidar a relevância do uso da
razão contra formas abertas ou dissimuladas de dominação e opressão.
4
Mediante a elaboração de conceitos como o “consenso superposto” (overlapping
consensus), o novo paradigma rawlsiano busca maior assentamento na realidade
de modo a servir de referência a que doutrinas filosóficas, religiosas e morais —
reconhecidamente incompatíveis entre si — possam coexistir, desde que confirmada sua “razoabilidade”, ou seja, o respeito aos ritos de um regime democrático.
Trata-se, enfim, de um marco mais afim à natureza da “estrutura básica”, que não
prescinde, de todo modo, da exigência da unanimidade. Ver Rawls (1993), em
particular o lecture IV.
5
Ver Habermas (1986, 1996), em particular, o capítulo VII do segundo.
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Na crítica que faz da razão ou de sua “realização deformada na história”, Habermas desenvolve uma tipologia das
formas de reflexão inscritas nas práticas e instituições sociais.
A racionalidade da ação propositiva seria característica dos
agregados ou complexos sociais. Implica que as ações e sistemas sociais podem ser racionalizados pelo uso eficiente da
técnica e pela consistência das escolhas valorativas. Nortearia as ciências analítico-empíricas. Uma racionalidade instrumental é o que se avalia pelo êxito na obtenção de resultados
e metas. Já a racionalidade da ação comunicativa seria associada à realidade efetiva, com sua multiplicidade de atores.
Requer a superação das distorções e relações de dependência que dificultam a superação pelo diálogo dos conflitos e
desajustes sociais. Seria inerente às ciências “reconstrutivas”,
como a própria teoria da ação comunicativa ou “pragmática
universal”. Trata-se de uma racionalidade que visa assegurar
confiança e entendimento mútuo entre os indivíduos.
Embora a compreensão dos sistemas requeira o entendimento do papel dos atores sociais e vice-versa, as duas
racionalidades não têm coexistido de modo harmônico, constata Habermas (1986). A dinâmica da sociedade
industrial, com os constrangimentos crescentes impostos à
ação dos indivíduos, tem dado margem à sujeição da realidade social à lógica sistêmica, à hegemonia da razão instrumental já denunciada por Weber e Adorno. Mas Habermas
está convencido de que tal fenômeno não é necessário
ou inelutável. Confia na função liberadora de uma ação
comunicativa ou dialógica sem peias. Até porque a instrumentalização da realidade tem sido seletiva, parcial. A
racionalidade comunicativa resiste em múltiplas formas,
desde os princípios universalistas das modernas constituições até a pauta dos movimentos sociais. Basta reunir as
condições econômicas, políticas e sociais para que se adote como regra para a resolução de conflitos “a força do
melhor argumento”, a ser validado segundo os critérios da
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compreensibilidade (da expressão simbólica), da verdade
(do conteúdo da proposição), da sinceridade (da intenção) e da correção (normativa) dos atos de fala6.
Uma nota final sobre Habermas e a legitimidade democrática: o elogio ao diálogo não dispensa a expectativa do consenso. É certo que o diálogo não se dá entre sujeitos autossuficientes que interagem em defesa de verdades pré-definidas.
Ao buscar empréstimo na filosofia da linguagem dos atos de
fala e, refinando-os, dar sua “guinada linguística”, no dizer
de Richard Bernstein (1985), Habermas abriu mão da hermenêutica do sujeito. Os atores são constituídos por meio e no
âmbito da própria ação comunicativa. E, obviamente, os conflitos e as acomodações de posição são corriqueiros no curso
da pragmática universal. Mas, se um argumento é questionado
e remetido ao plano do discurso para confronto com um
dos critérios de validade, a solução há de ser consensual, por
conta do próprio universalismo dos critérios.
Se em vários aspectos converge com Habermas, aqui
Bernard Manin dele se afasta, pela incisiva rejeição à unanimidade como base de legitimidade para a deliberação
(Manin, 1987). Para Manin, o requisito de assentimento
unânime dos cidadãos é irrealista e, por isso, impróprio para
amparar uma experiência democrática. Pode servir
de base para teorias normativas sobre o que é ou não é
justo, como ambiciona Rawls, mas não de critério de legitimidade para processos de tomada de decisão em regimes
democráticos, que soem ocorrer com a marca da premência e sob o signo da incerteza.
É verdade, admite Habermas, que nas situações concretas as divergências costumam ser contornadas por uma plêiade de artimanhas e estratégias. Mas o importante é que a via da argumentação não coercitiva esteja inscrita como possibilidade real em nossos discursos teóricos, práticos e estéticos. Mais do que isso: os
critérios de validade valem igualmente para a comunicação pré-teórica, para os
conceitos e estruturas básicas que sustentam o uso público da razão. A apriorística
posição original rawlsiana não cabe em Habermas. Não apenas o conhecimento,
mas também as condições para sua formação são sujeitos à validação empírica.
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Manin detém-se na premissa de que, nem os cidadãos,
nem seus representantes atuam na arena política com vontades ou preferências definidas a priori. Todos partem de
posições tentativas, até porque as informações disponíveis
são incompletas e fragmentadas. No curso da deliberação,
os atores costumam obter uma maior familiarização com os
temas, o que os habilita a aprimorar seus juízos, incorporar
novos pleitos, rever posições ou prioridades. Não é incomum que identifiquem inconsistências e até incompatibilidade entre suas próprias preferências7.
A natureza da argumentação em um processo deliberativo tampouco condiz com o critério da unanimidade,
acrescenta Manin. Os argumentos são construídos de modo
racional e discursivo não para comprovar ou demonstrar
um achado sociológico, mas para persuadir o interlocutor.
O ponto de partida é contingente. Não se elabora sobre
premissas evidentes ou convencionais, mas a partir de proposições que reflitam valores supostamente partilha­dos
pela audiência. O discurso é modulado pela percepção que
se tenha das opções do público-alvo, que não são, por regra,
universais, embora a isso se aspire. Ao invés de obedecer a
qualquer imperativo lógico, o enlace das proposições é feito
por analogia ou a fortiori. Desse arranjo podem advir argumentos plausíveis, convincentes, mas jamais necessários.
Nem é pertinente a inquirição se são estes, empiricamente, verdadeiros ou falsos. Serão aferidos segundo sua consistência e eficácia como recurso argumentativo. Trata-se,
enfim, de uma argumentação afinada com a própria essência da política, assemelhada a um “conflito entre os deuses”,
99
7
Manin exemplifica com as expectativas de redução de tributos e de melhoria dos
serviços públicos. Com a evolução do debate, o interessado pode dar-se conta de
que a satisfação plena de uma dessas expectativas implicará o sacrifício da outra
e passar a defender uma acomodação entre os dois anseios que inicialmente não
cogitava. Se considerarmos que situações do gênero podem ocorrer várias vezes
com inúmeros atores em cada experiência deliberativa, torna-se óbvia a improbabilidade de que se tenha como desenlace uma convergência absoluta de posições.
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cujo encaminhamento deve ser realizado não por escolha
arbitrária, como propunha Weber, autor da expressão, mas
segundo justificativas consideradas aceitáveis pela maioria.
A voz da minoria não é negligenciada, esclarece Manin.
Rechaça a leitura rousseauniana de que a minoria representa apenas uma opinião equivocada sobre o interesse
comum, ou seja, o entendimento de que, se esclarecidas
ou mais informadas, as vozes minoritárias identificar-se-iam
com a definição dada pela maioria sobre o que é a vontade
geral. Para Manin, a minoria é o que ela expressa ser: uma
visão diferente daquela dominante, que deve ser devidamente contabilizada pelos gestores de plantão, até para que
o poder seja exercido sem maiores arestas.
A existência de minorias em nada afetaria a legitimidade da democracia. Apenas confirma a necessidade de que
ela seja compreendida em termos distintos dos apregoados por Rousseau e, paradoxalmente, por Rawls. Ao invés
de assentar a legitimidade em um somatório de vontades
idênticas e pré-definidas, cabe repousá-la, acentua Bernard
Manin, sobre o processo deliberativo de definição do interesse comum. Em outras palavras, a legitimidade democrática é ancorada não em uma vontade geral, mas em uma
deliberação geral (respeitadas as exceções constitucionais
quanto ao direito de voto), que é, por essência, conflituosa,
indefinida e sem sujeitos oniscientes.
***
A reflexão sobre a democracia no Brasil não foi
indiferente ao tema da deliberação. Embora inexistam
estudos específicos de maior realce, as condições e princípios de uma experiência deliberativa receberam, em
diferentes momentos, a atenção de analistas da transição
democrática. Ainda no limiar do período mais repressivo
do regime militar, Fernando Henrique Cardoso fez uma
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profissão de fé na autonomia da política ao defender o
reconhecimento da legitimidade do conflito como passo indispensável para a construção de uma “democracia
substantiva” (Cardoso, 1975) 8. Já em plena transição,
Carlos Nelson Coutinho (1980) recorre a Gramsci para
defender que a esquerda considere os atributos liberal-democráticos como essenciais na luta pela hegemonia na
sociedade e no Estado. Nos estertores do regime militar,
trata-se da vez de Francisco Weffort afirmar que a linguagem da democracia é de uso cada vez mais corrente entre
conservadores e progressistas, até por conta do trauma
causado pelo uso da violência durante a ditadura militar
(Weffort, 1985).
O elogio de Cardoso à política é casado com a crítica
às explicações deterministas do autoritarismo. Assim como
o regime militar não teria sido imposição da lógica de acumulação capitalista, sua superação dependeria de escolhas
políticas, sem pressupostos econômicos. O alegado “milagre
econômico” dos anos de 1970 não se sustentou na contenção de gastos públicos via repressão política das demandas,
mas, ao contrário, em expansão da capacidade produtiva
por conta de investimentos públicos e privados, argumenta
Cardoso (1975). A repressão teria sido responsável, quando
muito, por características do modelo, como a concentração
de renda. O regime ter-se-ia beneficiado do cenário legitimador da Guerra Fria, que estava perdendo nitidez com a
distensão entre as potências nucleares e o abandono por
Cuba da política de apoio aos movimentos de guerrilha.
Como âncora para o sistema de poder, restava um “apático
comodismo social”, o que era claramente insuficiente para
assegurar a atualização reclamada pelos desafios domésticos
e internacionais.
101
8
São particularmente relevantes a introdução (“O autoritarismo e a democratização necessária”) e o capítulo conclusivo (“A questão da democracia”) do livro.
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Duas vias poderiam ser cogitadas para a liberalização
política. A primeira consistiria na presença de um “déspota esclarecido”, que se revelasse convencido de que
qualquer projeto de “segurança nacional” sem o apoio de
uma cidadania ativa implicaria apenas o reforço de um
Estado a serviço da minoria. Seria o caminho talvez mais
curto, mas pouco confiável, por ser tutelado, pondera
Fernando Henrique Cardoso. A segunda e mais promissora via seria uma aproximação negociada entre segmentos realistas do regime e setores da oposição em torno
da necessidade de legitimação do conflito. Isso implicaria o reconhecimento pelos atores interessados de que
não haveria alternativa ao obsoleto autoritarismo vigente
sem renúncia às visões mistificadas e pseudoconsensuais
de futuro, seja o lema do Brasil-potência, seja o sonho de
um igualitarismo iminente. A admissão da divergência
como legítima tampouco se coadunaria com a suposição
de que qualquer dos contendores tivesse consigo a chave
da história. Seriam inoportunas tanto a pretensão de que
a estrutura do Estado pudesse absorver a variedade dos
interesses sociais, como a ilusão de que um partido ou
agrupamento político falasse pela coletividade como um
todo, acrescenta Cardoso.
Ainda que não estivesse ao alcance da mão, o objetivo
último da liberalização seria uma “democracia substantiva”, cuja realização passaria necessariamente pela restauração dos direitos civis e políticos, sem o que a sociedade
ficaria impotente para exercer o controle devido sobre o
Estado. Isso não se confundiria com “basismo”, ressalta
Cardoso. Os sindicatos, organizações de classe, agrupamentos étnicos e os movimentos sociais seriam úteis por
contrapor à tradição elitista e conservadora uma “atitude
ética de solidariedade”. Mas não se revelavam capazes de
pensar o conjunto social e o próprio Estado. Limitavam-se
a criar “espaços de liberdade” para os setores que repreLua Nova, São Paulo, 87: 89-140, 2012
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sentam, deixando a máquina pública como chasse gardée
dos setores dominantes (Cardoso, 1975)9.
A leitura de Fernando Henrique Cardoso não ficou
isenta de crítica entre os pares da resistência democrática. Merece menção a análise desenvolvida por Coutinho
(1980). A obra é considerada um paradigma na conversão
de intelectuais e personalidades identificadas com o Partido Comunista Brasileiro, de uma leitura instrumental da
democracia, para a aceitação dos valores liberal-democráticos como essenciais, ainda que insuficientes para a instauração do socialismo10. A democracia deixa de ser considerada
como forma de dominação por parte da burguesia ou dos
monopólios nacionais e internacionais e passa a ser vista
como base insubstituível e fundamental para o estabelecimento e consolidação de um modelo socialista. Só que isso
requer não a legitimação do conflito, que equivaleria a uma
simples rendição ao liberalismo, mas a criação de um “consenso majoritário” mediante uma persistente e ampla “guerra de posição” na sociedade e também no Estado.
Para Coutinho, as mudanças políticas no país sempre
se deram pela “via prussiana”, com a prática da conciliação
de elites e a reprodução ampliada de um quadro de depen-
103
9
Daí a importância de que a necessária reativação das liberdades públicas, do
voto e da dinâmica partidária seja acompanhada de mecanismos que permitam o
controle do Estado também internamente, afirma Cardoso. Onipresente na vida
nacional em suas funções de produtor e regulador, o Estado precisaria ser monitorado a partir de dentro. O sociólogo cogita desde a quebra do segredo de informação em assuntos de relevância pública até a democratização dos mecanismos
de tomada de decisão em diferentes núcleos de poder da administração e das
empresas estatais. Os grupos privados também deveriam ser sujeitos à auditoria
pública nas atividades de interesse coletivo. Reanimada a sociedade e controlado
o Estado, poder-se-ia perseguir, deliberativamente e não segundo a racionalidade
tecnocrática, uma utopia com ressonância social, que incluiria as bandeiras dos
movimentos civis contemporâneos e as múltiplas expectativas de uma população
carente como a brasileira. Para a visão de Cardoso sobre a natureza do papel a ser
desempenhado pelos movimentos sociais, ver Cardoso (1993, pp. 257-72).
10
Sobre a evolução do pensamento da intelectualidade associada ao Partido Comunista Brasileiro a respeito da democracia, ver Brandão (1997).
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dência. Da proclamação da Independência por um príncipe português à implantação, pelo regime militar, de uma
modalidade dependente de capitalismo de Estado, sobressai a tendência à exclusão das massas dos frutos do progresso e da participação nos processos de tomada de decisão.
A resposta da esquerda concorreu para a debilidade dos
ensaios democráticos no país. Optara-se desde sempre pelo
recurso igualmente prussiano do “golpismo”, tanto como
concepção de acesso ao poder como enquanto modo de
fazer política. A estratégia era dirigida à “tomada” do Executivo para a realização das reformas estruturais, ao arrepio
de qualquer consideração pelo Parlamento, visto como uma
instituição desconectada da relação de forças na sociedade.
O assédio ao poder e a própria condução das lides partidárias eram feitas com sofreguidão “pelo alto”, sem ausculta às
bases sociais.
Insistindo em que a questão democrática consta na
agenda do comunismo brasileiro desde 1958 e foi inscrita
no pensamento de esquerda pelo jovem Marx, sem prejuízo
da maioridade que ela assumiu em Gramsci e Berlinguer,
Carlos Nelson Coutinho advogava que a ruptura do padrão
prussiano de transformação política passa pela aceitação
definitiva da democracia como valor universal, o que conservaria e elevaria a nível superior as conquistas liberais. Tal
desafio comporta dois eixos que se reforçam mutuamente:
a democratização da economia nacional e a socialização da
política. A economia passará de oligárquica a democrática à
medida que sejam realizadas a reforma agrária, a integração
e ampliação do mercado interno e o fim dos monopólios.
Já a socialização da política, argumenta Coutinho, é favorecida pela diferenciação social e cultural ocorrida com a
modernização conservadora sob mando militar a partir dos
anos de 1960, com a emergência de uma multiplicidade de
sujeitos coletivos, como as comunidades eclesiais de base e
os movimentos sociais identificados com as causas ecológiLua Nova, São Paulo, 87: 89-140, 2012
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cas e de gênero. Também teria concorrido para a afirmação
da sociedade civil a autonomia crescente diante do Estado
de que passaram a gozar as centrais sindicais e as organizações de classe, a exemplo da OAB e da ABI.
Não se trata, contudo, de um elogio ao pluralismo per
se. Ele é saudado enquanto desdobramento indispensável à
construção de um “consenso majoritário” — tático em um
primeiro momento — que permita a liberação política com
a definição, por uma ANC, de novas “regras do jogo” e —
estratégico no momento subsequente — o aprofundamento
da democracia no sentido de uma experiência organizada
de massas. A expectativa é a de uma persistente “guerra de
posição” em que não seria menor o papel de partidos operários e do próprio Parlamento11.
Carlos Nelson Coutinho fala em “unidade na diversidade”. Respeitados a variedade de interesses e o direito de
expressão da minoria, o desafio é congregar o consenso
necessário para dar cabo, em cada quadra histórica, dos
desafios econômicos e sociais que se coloquem no caminho
da afirmação de um socialismo democrático no Brasil, que
se distingue, ressalta Coutinho, da social-democracia. Aqui
a crítica a Fernando Henrique Cardoso torna-se explícita.
Contestando a associação feita pelo sociólogo em entrevista recente entre consenso e autoritarismo, afirma que Cardoso se fizera intérprete de uma social-democracia confinada ao horizonte do liberalismo. Negar o valor do consenso
105
11
Inspirado nas reflexões de Palmiro Togliatti sobre o “partido novo”, Coutinho
(1980) argumenta que a existência de um partido comprometido com a renovação
social e, como tal, sensível aos pleitos dos movimentos de base, é crucial para a formação de um bloco democrático e nacional-popular, com atuação relevante fora e dentro
do Parlamento. Fora, enquanto instância de pressão e controle social. Dentro, para
assegurar que os mecanismos de representação indireta, nos três níveis da Federação, escapem aos interesses corporativos e concorram, efetivamente, para uma
“síntese política” entre os sujeitos coletivos. Quanto mais forte o bloco e consolidada
a democracia de massas, maiores as chances de o Parlamento “corporificar” a progressiva hegemonia das classes trabalhadoras na vida política brasileira.
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em nome do reconhecimento da legitimidade do conflito
seria negar a necessidade da hegemonia para a democracia. Para Coutinho, Cardoso conservara, mas não elevara
as conquistas liberais. Ter-se-ia limitado a uma valorização
abstrata do pluralismo, ignorando o ritmo dialético do
movimento social.
Weffort (1985) retoma o juízo de que a experiência
democrática é, por natureza, conflituosa e indeterminada e
acrescenta que disto estaria convencido um universo cada
vez mais amplo de cidadãos e atores políticos, malgrado o
contexto de crise. A estagnação econômica tivera um elevado
custo social. Mas ao contrário do que ocorrera nos anos de
1960, não era mais corrente, nos círculos de esquerda, a defesa da revolução. Do lado dos “donos do poder” tampouco se
pregava a perpetuação indefinida do arbítrio. Salvaguardadas as diferenças quanto ao ritmo e à substância da transição
democrática, havia uma clara convergência quanto à importância do processo e de que chegasse a bom termo.
A explicação dada por Weffort para esse sentimento
comum vale para os militares e seus opositores: o trauma
da violência. Nenhuma das partes aceitava como cenário o
retorno aos anos de chumbo. Além da comprovada e absoluta ineficácia da luta armada, a acusação de que usara as
mesmas armas do adversário revelava-se politicamente nociva para esquerda. Quanto às lideranças do regime, estavam
mais do que cientes da desilusão causada pelo terror e pela
corrupção nos setores civis que haviam pactuado com a ruptura da ordem constitucional em 1964.
Francisco Weffort preocupa-se em deixar claro, de todo
modo, que a improbabilidade do retrocesso não era garantia do avanço. Não estaria inscrito em lei histórica alguma que a transição daria lugar a uma plena e consolidada
democracia. A política, insiste Weffort, é um processo em
aberto, uma cosa da fare. Pensar o contrário seria acalentar
o viés autoritário de guiar ou determinar a história.Assim
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como a deterioração da crise econômica e social na primeira metade dos anos de 1980 não impedira a transição, a
política continuaria a seguir o rumo que viesse a ser negociado entre seus atores. Para que o desenlace fosse o desejável, muito contribuiria a renúncia explícita por ambos os
lados a uma concepção instrumental da democracia, ou
seja, o repúdio ao golpismo, vício cuja autoria é atribuída
não à esquerda, mas às elites nacionais12.
Multiplicavam-se as evidências, insiste Weffort, do compromisso permanente e não apenas tático de liberais e
socialistas com a democracia, ainda que houvesse divergência sobre o ponto de chegada. Os liberais almejavam apenas
a satisfação das demandas da frente democrática: restauração das eleições diretas em todos os níveis, restabelecimento pleno das prerrogativas do Congresso, afirmação da
independência do Judiciário, revogação da Lei de Segurança Nacional, garantia da liberdade e da autonomia sindical
e desativação da comunidade de informação. Já a esquerda
não podia contentar-se com a simples consolidação do Estado de direito, que, embora necessária e indispensável, não
asseguraria, por si só, que a democracia resultasse significativa melhora para o pobre. Cumpria criar condições para
uma erradicação em massa da pobreza, que privava milhões
do acesso à cidadania. Sem isso, o Brasil seria, quando muito, uma democracia de “cidadãos de segunda classe”.
Só que a correção das desigualdades sociais não se
daria por conta exclusiva das instâncias representativas.
107
12
Weffort passa, então, a listar as ocasiões em que os grupos dirigentes julgaram
que o sistema representativo não mais atendia a seus interesses de conservação do
poder econômico e social e decidiram “virar a mesa”, em que inclui, limitando-se ao pós-1930, a Revolução Constitucionalista de 1932, a instauração do Estado
Novo em 1937, o movimento integralista em 1938, as tentativas de impedir a posse
de Vargas em 1950 e a de Juscelino em 1955, as manobras que antecederam o
suicídio de Vargas em 1954, o veto a Café Filho em 1955, o esforço em impedir
a posse de João Goulart em 1961 e o golpe de 1964. A esquerda, admite Weffort,
teria lançado mão do expediente sem igual assiduidade, mas com desembaraço,
como na Intentona de 1935 e no questionamento a Dutra em 1947.
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Ao lado do pluralismo partidário, caberia zelar pelo pluralismo social. Somente a ação conjugada dos partidos
populares com os movimentos sociais poderia servir de
contrapeso à ascendência das forças conservadoras sobre
as políticas de Estado, condição sem a qual não se criaria,
acentua Weffort, uma democracia efetiva. Não se requeria para tanto o apelo de qualquer modelo de sociedade
a ser consumado em algum momento futuro. Os “slogans
vazios” deviam dar lugar à disposição de enfrentar desafios
pendentes do capitalismo, a serem equacionados no marco
do próprio sistema, como a adequação das políticas econômicas às preocupações sociais. Assim como o poder não é
algo a ser tomado de assalto, mas sim o resultado de uma
conquista cotidiana, a busca de uma sociedade mais justa
não deve ser adiada sine die, como objetivo inscrito em um
tempo remoto, mas enquanto meta realizável a partir das
circunstâncias presentes.
É sustentável afirmar, portanto, que, às vésperas da
convocação da ANC, reconhecidos intelectuais convergiam quanto ao entendimento de que os institutos
representativos e os direitos e garantias individuais são
ingredientes essenciais da democracia. Também coincidiam no juízo de que deveria haver uma simbiose entre
democracia e mudança social de modo a assegurar o
acesso de milhões de brasileiros à cidadania. Nem Cardoso, nem Coutinho e tampouco Weffort negavam que o
liberalismo tivesse sido usado como fachada para práticas
autocráticas e excludentes, mas viam esse vício não como
uma necessidade histórica ditada pela evolução do capital, mas como resultado de opções políticas.
A cartilha, contudo, não era exatamente a mesma.
Enquanto Coutinho atinha-se a noções como unidade na
diversidade, consenso majoritário e sujeitos da história,
Cardoso e Weffort adotavam leituras menos “orgânicas” e
mais sintonizadas com o debate internacional sobre transiLua Nova, São Paulo, 87: 89-140, 2012
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ções democráticas13. Cada um a seu modo, compreendiam
a política como um processo essencialmente indeterminado, cujas regras são passíveis de redefinição sempre que seja
essa a escolha, deliberativa, da maioria. Não haveria, por
conseguinte, leis ou marchas da história que se imponham
aos agentes políticos. Tampouco cogitavam de guias, individuais ou coletivos, que tenham presciência hermenêutica
ou política do futuro, até porque este estaria, por definição,
em aberto. Cardoso e Weffort adotavam ênfases distintas
quanto ao papel dos movimentos sociais. Se para Cardoso
eles eram úteis para a difusão de uma ética da solidariedade, mas ineptos para a tarefa de pensar e transformar o
Estado, Weffort considerava-os fundamentais para assegurar
o pluralismo social e o aprofundamento da democracia.
***
Alguns meses após a publicação de Por que democracia?,
Albert Hirschman, em seminário realizado em São Paulo
sobre o tema da consolidação democrática, mostrou-se
cauteloso em seus prognósticos sobre o futuro da democracia no Brasil14. Reconheceu que o ritmo da transição não
havia sido comprometido pela recessão econômica e pelo
crescimento do desemprego. Saudou também o fim da censura e a devolução gradual do poder político a autoridades
eleitas. Mas não julgou tais fatores suficientes para definir
seu ânimo. Serviam, quando muito, para atenuar seu pessimismo, sentimento que devia ser o ponto de partida para
109
Entre os estudiosos sobre transições democráticas então em evidência, destacaria, pela atenção atribuída à incerteza ou indeterminação como característica
dos experimentos democráticos, o nome de Adam Przeworski, autor, entre outras
obras, de Democracy and the market.
14
Essa apresentação no seminário em tela foi publicada como capítulo em Hirschman (1992, pp.176-82). Para o tratamento dado por ele ao tema da deliberação,
inclusive com referência ao trabalho de Bernard Manin, ver Hirschman (1991,
pp.164-70). Também é relevante Hirschman (1995, pp.77-84).
13
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qualquer reflexão séria sobre as perspectivas da democracia
na América Latina, tamanha a instabilidade que caracterizava as experiências políticas na região, inclusive aquelas de
cunho autoritário. Não descartava a possibilidade de que
estivesse assistindo apenas à desintegração de um autoritarismo que se presumia sólido, sem o prenúncio de qualquer
alternativa estável no futuro imediato.
Para Hirschman, seria fútil definir pré-condições para
o enraizamento da democracia na região e, em particular,
no Brasil. Além da tradição de instabilidade política, os inibidores multiplicavam-se, como a vulnerabilidade econômica e a injusta estrutura social. Para evitar que se terminasse
condicionando o usufruto da democracia à mudança da
realidade como um todo, seria mais consequente investir não no que parecia provável, mas no que se afigurava
possível. Em outras palavras, Hirschman defendia que, ao
invés de ater-se à identificação e à viabilização de requisitos
supostamente necessários e suficientes para a consolidação
da democracia, seria preferível atentar às oportunidades
que a conjuntura oferecia para sedimentar os valores que
norteiam a experiência democrática, como a tolerância e o
respeito à diferença.
O desafio assumiria uma relevância particular diante
de um renitente viés da cultura política latino-americana,
qual seja, o apreço pela assertividade ou opiniões definitivas (opinionated opinions) sobre todo e qualquer item da
agenda pública (Hirschman, 1992, pp. 180-1). É clara a dissonância deste e de outros traços afins com a mentalidade que Hirschman julgava adequada ao jogo democrático,
reportando-se à visão de Bernard Manin e, em especial, ao
entendimento de que o exercício deliberativo se faz a partir
de posições tentativas e não de juízos conclusivos ou previamente arrematados.
Albert Hirschman é uma citação oportuna, não somente por qualificar o otimismo expresso por Francisco Weffort
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quanto ao grau de disseminação no país de uma linguagem
democrática, mas por prover instrumental teórico relevante
para aferição da qualidade da deliberação política na experiência constituinte. Trata-se do conjunto de arquétipos
elaborados na sua instigante revisão do pensamento conservador a respeito da evolução dos direitos e garantias individuais e da reação correspondente no campo progressista
(Hirschman, 1991)15.
Os argumentos utilizados contra cada nova onda de
direitos são organizados por Hirschman em três teses, que
denomina “perversidade”, “futilidade” e “ameaça”. As respostas dos partidários dos avanços são agrupadas em tipos
definidos à parte: voluntarismo franco; cumplicidade da
história e ilusão da sinergia, respectivamente.
A tese da perversidade argumenta que a adoção dos
novos direitos tende a produzir efeitos opostos àqueles buscados. Teria feito fortuna ao longo da história entre aqueles
que se opuseram aos direitos sociais. Desde os críticos das
Poor Laws na Inglaterra vitoriana aos libelos contra o sistema
do bem-estar social nos Estados Unidos dos anos de 1980,
buscou-se amparo no entendimento de que as garantias ao
trabalhador estimulam a indolência e terminam por comprometer a qualidade de vida do beneficiado. Hirschman
atribui o prestígio da tese à afinidade desta com a sequência
Húbris-Nêmesis da mitologia grega, em que o sucesso gera
arrogância e, por intervenção divina, fracasso e desastre16.
111
15
O ensaio de Hirschman tem como referência o clássico estudo de T. H. Marshall
sobre o desenvolvimento histórico dos direitos de cidadania em suas categorias
básicas: a afirmação dos direitos civis com a Revolução Francesa; a introdução do
sufrágio universal e a assimilação gradual dos direitos econômicos e sociais.
16
O mito grego teria sido secularizado, com sinal trocado, por Adam Smith em sua
doutrina da mão invisível, onde a ambição individual, multiplicada, propicia o bem
coletivo. Retomaria seu sentido original com a tese das “consequências indesejadas”
tão ao gosto dos opositores da Revolução Francesa, por permitir a associação do terror jacobino ao impulso inicial de defesa dos direitos individuais. Hirschman encontra parentesco, ainda, entre a tese da perversidade e o complexo da “fracassomania”
que percebia latente entre intelectuais e gestores públicos na América Latina.
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Enquanto o objetivo dos que empunham a tese da perversidade é obviamente o de inibir políticas ou iniciativas
que ocasionem transformações institucionais ou sociais
de relevo, o contraponto progressista costuma ser, afirma
Hirschman, a defesa do mais amplo e irrestrito voluntarismo. Os progressistas estariam sempre prontos a modelar
e remodelar a sociedade, ostentando a mais plena convicção na própria capacidade de fazê-lo. A inclinação jacobina pela engenharia social estaria comumente associada ao
sentimento de que se vivencia uma situação-limite (desperate
predicament) que reclama a substituição da ordem vigente
por outra, radicalmente nova.
A tese da futilidade sustenta que determinadas normas
e iniciativas estão fadadas à ineficácia por desconsiderarem
traços essenciais da realidade que se busca transformar. De
uso tão prolífico quanto o argumento da perversidade, foi
explicitada por Alexis de Tocqueville com o juízo de que as
supostas conquistas do ciclo revolucionário já estavam incorporadas, por obra do antigo regime, à paisagem francesa, o
que subtraía sentido à gesta de 178917. Para Hirschman, a
tese tem um impacto mais desconcertante sobre os reformistas do que a da perversidade, uma vez que, levada ao paroxismo, nega a possibilidade de intervenção sobre a realidade.
A resposta progressista à tese da futilidade implica também ceticismo quanto ao alcance da ação humana. Enquanto
17
Hirschman lembra que Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto também lançaram mão
da tese na oposição que fizeram ao sufrágio universal e ao sistema representativo, que não se coadunariam com o postulado de que as sociedades estão desde
sempre fadadas à divisão entre uma minoria de governantes e uma maioria de governados, entre a elite e a não elite. Pareto empenhou-se, ainda, em desacreditar
políticas de redistribuição de renda. A partir de dados que reuniu a respeito de
vários países em diferentes épocas, enunciou que os padrões nacionais de distribuição de renda tendem à uniformidade e são, portanto, impassíveis de correção
por mecanismos fiscais, desapropriação ou políticas de bem-estar. George Stigler,
Milton Friedman e Marin Feldstein também se encarregariam de criticar medidas
redistributivas, agora sob o argumento de que, por razões diversas, elas jamais
alcançavam os reais necessitados, e sim os estratos médios e, até mesmo, afluentes.
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os conservadores cultivam o refrão de que as coletividades
são regidas por “regularidades” que lhes conferem estabilidade e inibem reformas, a esquerda é propensa a cunhar
leis que impulsionariam as sociedades de maneira inelutável em uma direção específica18.
Dos três arquétipos cunhados por Hirschman, a tese
da ameaça é talvez a mais moderada: novas reformas são
desestimuladas por comprometerem conquistas prévias
tão ou mais valiosas do que aquelas agora perseguidas. São
citados os debates parlamentares que precederam a adoção
das leis eleitorais – de 1832 e 1867 – que transformaram
a Inglaterra de oligarquia em democracia, em particular o
entendimento então expresso por muitos de que tais normas colocariam em risco as prerrogativas individuais, como
o direito à propriedade19. Contribuiu para o prestígio dessa
tese a associação com mitos culturais, como o ceci tuera cela
(a que recorreram Victor Hugo e Marshall McLuhan) e a
noção de que as mudanças sociais representam sempre um
jogo de soma zero.
A reação da vanguarda à tese da ameaça consistiria na
“ilusão da sinergia”, na suposição de que as novas e as anti-
113
Hirschman fala de uma aspiração incontida dos cientistas sociais por emular as
ciências naturais, o que se teria manifestado na reverência que Helvécio nutria
por Newton e, sobretudo, na determinação de Marx em rastrear os traços de uma
lei motora do processo histórico, que poderia ser abreviada, mas jamais abolida ou
revista pelo engenho humano.
19
Hirschman recorda que a tese foi usada contra o Estado de bem-estar social em,
pelo menos, dois momentos. Nas duas primeiras décadas após o seminal Beveridge
Report, em 1942, a principal referência foi Friedrich Hayek, que se estendeu em “O
caminho para servidão” e “Os fundamentos da liberdade” sobre o juízo de que as
políticas públicas, pela impossibilidade de serem consensuais, requerem coerção
por parte do Estado sobre as vozes dissonantes. Gozou de repercussão limitada
diante do reconhecimento generalizado de que as redes de proteção social haviam contribuído, no pós-guerra, para o reforço da paz social e da própria democracia. A tese voltou a constar da agenda pública no final dos anos de 1960 e início
dos 1970. Obteve maior ressonância por coincidir com momento de instabilidade
política na Europa e nos Estados Unidos. Expressa por nomes como Samuel Huntington, atribuiu uma alegada crise da democracia ao excesso de demanda por
serviços e bens sociais.
18
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gas conquistas hão de interagir positivamente. Estaria inscrito no temperamento progressista desde a Grécia antiga
a propensão a acreditar que “as boas coisas vão juntas”, que
os valores positivos reforçam-se mutuamente. Uma manifestação atualizada desse sentimento, afirma Hirschman, é a
defesa do Estado do bem-estar pelo argumento de que este
seria indispensável para salvar o capitalismo de seus próprios excessos, como o desemprego, as migrações em massa
e a desintegração das comunidades e dos sistemas familiares. Ao permitir uma reprodução equilibrada do capital, as
políticas sociais concorreriam também para a sustentabilidade das instituições democráticas.
Albert Hirschman, no capítulo final de The rhetoric of
reaction, esclarece que, ao proceder ao mapeamento de
arquétipos da retórica conservadora e de contrapontos progressistas, não quis negar que essas teses possam ser validadas em situações concretas. Não é incomum, acrescenta o
ensaísta, que iniciativas provoquem efeitos contrários aos
desejados, sejam inócuas ou comprometam ganhos previamente alcançados. Mas Hirschman está convencido de que,
pela recorrência com que foram usados à revelia dos fatos
ao longo dos séculos XIX e XX, para os mais diferentes fins,
os argumentos são motivados, prioritariamente, pelo apelo
que lhes confere a remissão a mitos e fórmulas consagradas.
Constituiriam recursos retóricos dos mais úteis a agentes
políticos interessados em esquivar-se da transitividade e da
incerteza inerentes ao exercício cotidiano da democracia.
Vejamos um breve apanhado de quão assíduo foi o
emprego das teses da perversidade, da futilidade e da ameaça,
e qual o modo como foram formuladas nos debates da (e
a respeito da) ANC, com foco nas tratativas atinentes aos
direitos sociais, pelo interesse despertado entre os parlamentares e junto à opinião pública. As fontes são as atas da
comissão sobre direitos e garantias individuais, da comissão
sobre a ordem social e, sobretudo, da comissão de sistematiLua Nova, São Paulo, 87: 89-140, 2012
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zação. Também serão considerados livros e artigos de algumas das lideranças do processo constituinte, bem como editoriais dos principais jornais e material produzido por foros
de debates e outras instâncias da sociedade civil20.
***
Contra os direitos sociais, foi disseminado no processo
constituinte o recurso à tese da perversidade. Das assertivas contundentes e doutrinariamente fundamentadas de
Roberto Campos, em que não faltavam alusões a Hayek e
Von Mises, a juízos mais insuspeitos como os de Fernando
Gasparian (PMDB), passando por editoriais de O Estado
de S. Paulo e declarações de constituintes tais como Luis
Roberto Pontes (PMDB), Delfim Neto (PDS), Ricardo
Izar (PFL), Francisco Dornelles (PFL), Sandra Cavalcanti
(PFL), Afif Domingues (PL) e Álvaro Valle (PL), grassou
no plenário e fora dele o argumento de que o capítulo
social da Carta deixaria os brasileiros mais pobres e não
menos. Campos chegou a falar de “Constituição contra os pobres”, contrapondo-se à denominação dada por
Ulysses Guimarães de “Constituição-cidadã” ou “Constituição dos pobres”. As razões variavam segundo o dispositivo
constitucional. Os alvos mais visados foram a garantia da
estabilidade no emprego e o teto da jornada de trabalho
em 44 horas semanais.
A estabilidade no emprego traria como consequências a
apatia, a baixa produtividade, a inibição dos investimentos e
a consequente perda de postos de trabalho. Particularmente vitimadas seriam as pequenas e médias empresas, exatamente aquelas que mais geram empregos. Bem mais salutar econômica e socialmente — ponderavam constituintes
115
Fiz uma análise mais detida do discurso constituinte segundo o instrumental
desenvolvido por Albert Hirschman em tese de doutoramento submetida em 1998
à Universidade de Cambridge (Costa, 1998).
20
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tais como Dornelles e Domingos —, seria a valorização pela
ANC do princípio da rotatividade no emprego, ressalvada
a prerrogativa de indenização em casos de demissão sem
justa causa (Brasil, 1988a, pp. 1148, 1172). As críticas à
carga semanal de 44 horas estendiam-se, o mais das vezes,
ao limite de 6 horas para trabalho em “horário corrido”
e ao incremento de 50% no pagamento de horas extras.
Vaticinava-se que, pelo ônus adicional imposto aos custos
de produção, sobretudo na área de serviços e dos setores
industriais menos consolidados, tais inovações afetariam
negativamente o nível geral de emprego e a taxa de inflação. Valle (1987, p. 4), Campos (1990, p. 145) e o Estado
de S. Paulo (1988b, p. 3) acentuaram a suposta incompatibilidade dos direitos com o estágio de desenvolvimento do
país, que requeria mais e não menos trabalho. Foi lembrado que a redução na Europa do número de horas no trabalho ocorreu em função do aumento de produtividade e não
por fiat legislativo. Também foram feitas comparações com
o Japão e a Coreia, onde, malgrado os elevados índices de
produtividade, prevaleciam limites de horas semanais bem
superiores ao nosso. O Brasil estaria na contracorrente de
seus competidores21.
Não foram poucos os argumentos sob o lema da perversidade que aspiravam à precisão de enunciados científicos. Os resultados deletérios para a população que adviriam
21
Dispositivos menos controversos também sofreram restrições com base na tese
da perversidade, como os relativos à licença-maternidade e à proibição do trabalho infantil. Roberto Campos chegou a qualificar a licença como uma medida
antifeminista, tamanho o desestímulo econômico que traria a uma maior presença
das mulheres no mercado de trabalho (Campos, 1987, p. 9). Sandra Cavalcanti,
por sua vez, via a proibição do trabalho infantil como contrária ao esforço de proteção de crianças e adolescentes contra o apelo da criminalidade e marginalização. Impedidos de exercerem uma atividade produtiva, tornar-se-iam presas fáceis
do crime organizado. O arremate do argumento não podia ser menos feliz: para a
parlamentar fluminense, se a proibição em tela estivesse vigente nos séculos anteriores, o Brasil teria sido privado do talento de Machado de Assis e de Aleijadinho,
que começaram a trabalhar em idade tenra (Brasil, 1988a, p. 1295).
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do capítulo social da Carta foram, por vezes, apresentados
como efeitos negativos e inelutáveis da aplicação das normas. Outra não foi a linha, por exemplo, dos prognósticos feitos pelo O Estado de S. Paulo sobre a repercussão das
cláusulas sociais. Em editorial, o jornal ateve-se ao tema da
licença-paternidade e corroborou equação elaborada por
Delfim Netto segundo a qual, a cada ano, por conta daquela
prerrogativa constitucional, 100 mil homens perderiam seu
posto de trabalho (O Estado de S. Paulo, 1988c). Em outro
editorial, Mellão Neto, por sua vez, voltou-se para o elenco
de direitos sociais e chegou a estimar um impacto imediato de 25,4% sobre a folha salarial das empresas brasileiras,
que cairia, a médio prazo, para a porcentagem tampouco
negligenciável de 15,8%. Com os direitos convertidos em
questão técnica, de efeitos mensuráveis, as vozes dissonantes são facilmente qualificadas de ineptas. Campos (1987, p.
9) foi mais além e, no espaço de um só artigo, reportou-se à
esquerda dominada, segundo ele, por “cretinismo catedralesco”, “hemiplegia” e “parálise mental”.
A resposta da esquerda no processo constituinte à tese
da perversidade revelou-se condizente com o parâmetro
reconstruído por Hirschman, naturalmente ajustado às circunstâncias locais. A avalanche de alertas quanto às consequências indesejadas das normas sociais teve como contraponto um voluntarismo maximalista justificado pela alegada iminência de um desastre político e social. Tal cenário
somente seria evitado com a adoção de uma Carta que previsse meios para uma correção intempestiva de iniquidades
históricas, o que, por sua vez, pressupunha a condução do
processo pelos oprimidos de hoje e de sempre, dotados, por
sua condição, de legitimidade e clarividência.
Florestan Fernandes (PT) sobressaiu-se como intérprete
da situação de risco em que se estaria realizando a Constituinte (Fernandes, 1986, pp. 67-77). Amparado, como
sociólogo, na caracterização que fizera do “capitalismo sel-
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vagem” em vigência no Brasil, Florestan mostrou-se indignado com o desinteresse das classes dirigentes em buscar
soluções, ainda que burguesas, para as assimetrias do sistema capitalista no país. Nos anos anteriores, o quadro de
exclusão social ter-se-ia, na verdade, agravado. Não se observara movimento algum no sentido de resgate das pendências que se haviam multiplicado desde a extinção do regime escravocrata, passando pela Proclamação da República,
pela aliança liberal de 1930 e pelo populismo dos anos de
1950. Não houvesse por parte da ANC a decisão de romper
não apenas com o “entulho autoritário” do período ditato­
rial, mas também com os padrões atávicos de exploração
social, Florestan via como risco concreto a hipótese de eclosão de uma guerra civil22.
A leitura prevalecente no campo progressista era a de
que a Carta deveria prever instrumentos que assegurassem
sem delongas a transformação social, a “revolução dentro
da ordem”, na linguagem de Florestan. Não faltaram ideias
nesse sentido. Uma das propostas que gozou de maior apelo foi a de que se adotasse o instituto de “inconstitucionalidade por omissão”, defendido com veemência por José
Paulo Bisol (PSB) e Lysâneas Maciel (PDT), com o apoio
de nomes como Cândido Mendes e Márcio Thomaz Bastos
(Brasil, 1987a, p. 71; Brasil, 1987f, p. 21 e Brasil, 1987a, p.
72 e 99). Eram citadas, como antecedentes relevantes, as
constituições espanhola e portuguesa, em que são contemplados, para o Legislativo, a obrigação de não se eximir
22
Com tom menos apocalíptico, Hélio Jaguaribe não deixou de sublinhar a
necessidade de que fossem criadas condições para um tratamento imediato da
questão social. Atribuiu ao autoritarismo tecnocrático-militar o acirramento da
disparidade entre a burguesia, com condições de vida “ocidentais”, e as massas,
sujeitas a circunstâncias “asiáticas”. Lembrava que os 10% mais afluentes detinham mais de 50% da renda nacional. A persistência de padrões tão iníquos de
desigualdade seria incompatível com a democracia. Caso perdurassem, Jaguaribe estimava como certo o retorno ao autoritarismo, de direita ou de esquerda
(Jaguaribe, 1985, p. A3).
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da produção de norma complementar quando necessária
para a eficácia do texto constitucional e, para o Executivo,
o dever de não se privar da realização dos atos administrativos devidos para a operacionalização da Constituição ou
de norma ordinária superior. Mas tinha-se em vista algo
mais. Desejava-se a efetiva garantia pela Carta da implementação dos direitos econômicos e sociais. Se constatada a indisponibilidade de meios para assegurar o usufruto
imediato por todos de determinados bens, como o direito
a uma existência digna, o Estado deveria ser compelido a
redefinir prioridades e adotar políticas dirigidas à consecução no mais breve prazo possível das garantias constitucionais ainda não satisfeitas.
O juízo final sobre a omissão ou não do Estado na provisão de meios para o usufruto generalizado dos atributos
constitucionais ficaria a cargo de um “tribunal de garantias
da soberania popular e dos direitos constitucionais”, que não
se confundiria com o Supremo Tribunal Federal, inclusive
no que concernia à composição. Os membros da Corte constitucional paralela deveriam dispor não apenas de reputação
ilibada e conhecimento jurídico, mas comprovar sensibilidade, sabedoria e experiência popular. Para Lysâneas Maciel,
pelo menos três dos magistrados deveriam ser egressos da
classe trabalhadora e demonstrar “compromisso real” com
sindicatos e organizações populares (Brasil, 1987b, p. 6).
Florestan Fernandes foi claro na caracterização de
quem deveria construir e reger o Brasil do futuro, a começar pela definição da nova ordem constitucional: os proletários do campo e da cidade, universo variado constituído
pelo indígena, pelo negro, pelo professor humilde e por
todas as demais categorias sociais que se viram ao longo da
história “banidas da nação” ou “reféns de uma falsa cidadania”. Do âmago da iniquidade social brasileira viriam
os redentores do país (Fernandes, 1987a, p. 3). Jair Meneguelli, então presidente da Central Única dos Trabalhado-
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res, ecoava o mesmo sentimento (Meneguelli, 1987, p. 111).
Se a Constituinte almejava mudar o Brasil, o protagonismo
deveria caber às vítimas do sistema e não aos latifundiários,
banqueiros e homens de negócios em geral23.
***
120
O voluntarismo normativo da esquerda sofreu críticas
acirradas de Roberto Campos e seus pares segundo a tese
da futilidade. Se aprovadas pela ANC, grande parte das
propostas socialistas resultaria inócua, sem impacto algum
sobre a condição de vida dos brasileiros, diluindo a relevância prática da nova Carta, que se assemelharia a um “dicionário de utopias”, a um simples “mosaico de aspirações”.
Pleitos que, sob a chave da “perversidade”, eram combatidos por provocarem consequências opostas às pretendidas,
como a estabilidade no emprego, cláusula supostamente
geradora, pelo custo adicional que impunha às empresas,
de mais demissão e maior desemprego, agora se tornavam
reivindicações cosméticas, esvaziadas de sentido. Em um
mercado de trabalho em que a informalidade era crescente, a imposição da regra de estabilidade cairia no vácuo ou,
o que seria ainda pior, estimularia a disseminação de relações de trabalho ao desabrigo da lei, reduzindo, com isso, o
espaço para observância de qualquer das novas conquistas
sociais.
Prerrogativas como salário mínimo unificado, irredutibilidade de salários, redução de horas de trabalho, licenA Pastoral da Terra era mais seletiva. Como verbalizado por seu líder no Paraná,
Werner Fuchs, considerava os proletários do campo melhor situados do que os
proletários da cidade para questionar o estado de coisas existente. Os trabalhadores urbanos restringiam a luta pelo socialismo à reivindicação salarial. Já os rurais,
sujeitos a uma situação de quase aniquilamento, questionavam os meios de produção e a propriedade privada. Sem prejuízo da necessidade de alianças, dos últimos
dependeria o impulso para uma transformação radical a favor de um novo tempo
(Fuchs, 1987, p.102).
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ça maternidade de 120 dias, licença-paternidade, proteção
contra a automoção, isonomia salarial entre relações permanentes e provisórias de trabalho e universalização dos
direitos à educação e saúde estariam fadadas a tornarem-se letra morta em um país onde mais de 50% da população economicamente ativa era desprovida de contrato e
não contribuía para a previdência social. Se a isso fosse acrescido o custo que os novos direitos, em uma situação recessiva,
impunham ao empregador, afirmava Roberto Campos, o
cadinho estaria criado para uma situação de descumprimento generalizado da Constituição. Seria o tributo a ser
pago pela tentativa de criar um sistema de segurança social
sueco com recursos moçambicanos, ironizava, com tato
questionável, o antigo embaixador brasileiro24.
Cumpria questionar a razão de tamanho irrealismo,
acrescentava Campos, o qual já apresentava uma resposta: a
cultura política brasileira continuaria impregnada de uma
crença atávica na onipotência da lei, em linha com a mentalidade juridicista que havia desde sempre orientado a formação da elite nacional. Quando a tal crença se somava uma
ilusão distributivista, o resultado era a produção de normas
sem qualquer fundamentação econômica. Despesas eram
previstas sem a identificação das receitas correspondentes.
Benefícios eram dados à revelia de aumentos de produtividade. Daí a ineficácia contumaz dos exercícios de “caritocracia”
representados pelos processos constituintes na América Latina, os quais, até por conta disso, multiplicavam-se25.
121
24
Esses comentários foram extraídos de Campos (1988b, p. 2, 1988a, p. 7, 1994,
pp. 1206, 1075-80 e 1184).
25
Em suas memórias, Roberto Campos menciona a média de 13 Constituições
por país desde a respectiva Independência. A “incontinência” constituinte mais
aguda teria ocorrido na República Dominicana, Venezuela e Haiti, com 20 Cartas cada. O Brasil, assim como o México, estava abaixo da média, com 8 textos,
mas plenos de passagens inusitadas, como a previsão na Constituição de 1988 de
que esta seria revista em um par de anos. Nossos constituintes, concluía Campos,
não poderiam ter sido mais explícitos na admissão de que a obra realizada havia
sido das mais precárias.
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Muitas vozes fizeram coro à litania de Roberto Campos
contra a crença no poder demiúrgico da lei, a começar
pelos órgãos de imprensa. O Estado de S. Paulo caracterizava o exercício constituinte como uma era dourada marcada pelo animus dândi dos parlamentares, indiferentes
como eram à eficácia dos fins a que estavam destinando os
recursos coletados do contribuinte. Mover-se-iam, os parlamentares, por seus cálculos eleitoreiros imediatos, sem
o menor pejo em atribuir a responsabilidade pela ineficácia das normas a quem não conseguia aplicá-las enquanto
empregador, seja na esfera pública, seja na esfera privada.
O jornal destacava o irrealismo representado pela licença
paternidade e pelos quatro meses de licença-maternidade,
traçando paralelo com a prática indígena da couvade, com
a diferença de que, entre os nativos, o pai repousava ao
passo que a mãe logo retornava ao trabalho (O Estado de
S. Paulo, 1988a, p. 3).
Já a Folha de S. Paulo reportava-se ao projeto da Carta
como um compêndio permeado de boas intenções, mas na
qual não se evidenciava preocupação alguma com a aplicabilidade do ali disposto. Buscava-se resolver pela via legislativa problemas de naturezas muito diversas: a carência
de instituições democráticas e uma imensa dívida social.
Enquanto o primeiro poderia ser encaminhado “formalmente” mediante uma adequada construção constitucional do regime de governo, das relações entre os poderes e
do sistema eleitoral, o segundo, para seu equacionamento,
reclamava, ao invés de normas, políticas públicas e fiscais
eficazes. Persistindo no equívoco de situar não somente o
primeiro desafio, mas também o segundo como matéria
constitucional, os constituintes produziriam uma Carta com
baixo assentamento social, validade incerta e grande superficialidade (Folha de S. Paulo, 1987a, p. A2).
Se o discurso conservador situava o ativismo social dos
constituintes como indicativo de um bacharelismo tão atáLua Nova, São Paulo, 87: 89-140, 2012
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vico quanto inoperante, o tempo em que se reunia a ANC
não era visto como estático ou sem promessas. Pelo contrário, era apresentado como um tempo de grandes transformações, ou, mais precisamente, como um tempo no qual se
podia discernir uma tendência arrebatadora rumo à afirmação do mercado como regulador da vida econômica e social
e ao consequente recuo do Estado. A exigência maior que
tal momento impunha à ANC seria o de liberar o país de
suas amarras regulatórias e orientá-lo na direção que já era
perseguida por todos, desde as sociais-democracias europeias aos redutos onde até havia pouco imperava o “socialismo real”, que se desconstruía sob o impulso de Gorbachev.
Seria de todo extemporâneo recuar no tempo em busca de
inspiração e tentar montar no Brasil dos anos de 1980 um
Estado do bem-estar social.
A inocuidade dos direitos sociais passava a ter, assim,
uma segunda explicação. Além do culto à onipotência da
norma, uma variável duradoura, supostamente associada
à cultura política brasileira e latino-americana, sobressaia
agora o descompasso com o fluxo da história, necessariamente dinâmico. Uma vez mais, Roberto Campos ditou
o compasso do discurso conservador, rejeitando a caracterização do debate como um confronto entre direita e
esquerda. A tensão se daria, na verdade, entre arcaicos
e modernizadores, o que, no Brasil, assumia contornos
específicos. Ao contrário do pregado por Florestan, o país
não se encontraria sob o domínio nefasto do capitalismo,
que, selvagem ou domesticado, jamais lograra implantar-se
no país. Vigia entre nós um sistema prévio de acumulação
de riquezas, que mais se assemelhava a um mercantilismo
notarial. Sem um corte claro com esse passado, que saudasse as benesses do mercado, não haveria futuro. Caberia ao Brasil compreender e seguir o rumo da história ou
sofrê-la como destino, sentenciava Campos (1985, p. 8),
citando José Guilherme Merquior.
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Outras vozes na mesma linha fizeram-se ouvir, fora e
dentro da ANC. Colunistas de O Estado de S. Paulo e personalidades como Ives Gandra Martins reverberaram o alerta
contra a opção alegadamente obsoleta do Estado-previdência, modelo gerado nas circunstâncias únicas do pós-guerra europeu, quando o crescimento econômico contínuo
permitiu confluência mutuamente benéfica entre capital e
trabalho (Amaral Júnior, 1988, p. 2; Martins, 1988, p. A3).
Já Celso Bastos falava de uma retomada inconsequente do
nacionalismo dos anos de 1920, referência de todo injustificada diante dos reclamos atuais por eficiência e criatividade (Bastos, 1988, p. A3). A Folha de S. Paulo (1987b,
p. A2) pleiteava a reconsideração de teorias arraigadas no
país, tais como o estatismo, e aludia às mudanças em curso
na União Soviética. Albano Franco (PFL) era insistente na
defesa da desregulamentação da economia e citava a ameaça de isolamento no concerto das nações (Brasil, 1987e,
p. 108). Álvaro Valle (PL) afirmava que as fórmulas de que
lançava mão a esquerda no combate à pobreza somente
estavam em voga em alguns países que, na América Latina
e na África, mantinham-se alheios à onda de liberalização
(Valle, 1987, p. 4).
Para nomes de destaque na esquerda, a história caminhava na direção contrária e com passo igualmente inelutável. Florestan distinguia-se pela contundência. Atribuía
à ANC a responsabilidade de recolocar o país no trilho
regular do processo histórico, no qual, a bem da verdade, nunca estivera, por falha da burguesia em realizar suas
“revoluções”: a nacional, a agrária, a urbana e a democrática. Era chegado o momento de romper o nó górdio que
atava o futuro do Brasil ao passado colonial e escravocrata. O “Frankenstein político” representado pela chamada
Nova República somente acirrara o quadro de exclusão
social e concentração de riqueza que caracterizava a vida
nacional desde a Independência, onde a nota fora a prátiLua Nova, São Paulo, 87: 89-140, 2012
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ca das “conciliações por cima”. Como ponto de partida de
uma sempre devida evolução histórica, a Assembleia ANC
o gatilho da ruptura indispensável à construção de uma
“nova era”, inclusiva, equânime e soberana (Fernandes,
1986, pp. 88, 90, 171-2).
Theotonio dos Santos retomou o argumento da vontade coletiva à espera de um tradutor, que não poderia
ser outro exceto a ANC. Falava de um momento fundacional. A nação brasileira havia sido até àquele uma ficção,
por conta do caráter excludente de nosso percurso histórico. Da maioria de não cidadãos da Monarquia ao
império do grande capital sob o regime militar, passando
pelo patrimonialismo da República Velha, a autocracia de
Vargas e o liberalismo vazio dos anos de 1950, a tônica fora
o alijamento do povo das decisões. A ANC passaria a limpo esse passado, como marco de uma nação que despertava de uma longa letargia com um profundo sentimento
de generosidade em relação a seu futuro, democrático,
plural e humano (Santos, 1986, p. 157). Maria Victoria
Benevides também apostava na soberania popular, por
frustrada que tivesse sido, em nome do pragmatismo,
durante a transição. A ANC, idealmente exclusiva, poderia e deveria ser um momento de ruptura para a instauração de uma nova ordem política, jurídica, econômica e
social (Benevides, 1987, p. A3).
Avançados os trabalhos da ANC, Florestan Fernandes
não escondeu seu desalento com os resultados, que teriam
frustrado suas mais realistas expectativas. A Constituinte
deixava muito a desejar. Não estaria propiciando a esperada
revolução dentro e por meio da lei. Pela corrupção e pela influência do capital, a minoria impusera-se à maioria, inclusive
na definição das regras do jogo. Parcos teriam sido os reflexos concretos da participação popular, que ele, Florestan,
reiteradamente incentivara. O Brasil continuaria carente
de todas as revoluções burguesas. Mas, concedia o sociólo-
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go, havia uma nota positiva. A nova Carta disponibilizava
aos “de baixo” direitos e garantias para prosseguir a gesta
constituinte, que não chegaria a termo com a promulgação
do texto. Até porque um novo horizonte de possibilidades
havia sido aberto com a tomada de consciência por parte
dos oprimidos da natureza de sua inserção social. Foram ativados o sentimento de classe e a luta social, até então adormecidos. Os donos do poder não haviam perdido privilégio
algum, mas era improvável que continuassem a dominar ad
libidum, sem resistência. É verdade que golpes ainda poderiam ser dados em nome da lei e da ordem. Mas tornara-se
inesgotável a latitude de ação dos pobres como agentes históricos. Quando lograssem sepultar o passado, a eles, os desvalidos do campo e da cidade, caberia o futuro (Fernandes,
1987b, p. A3).
Mais sóbrio, Dalmo de Abreu Dallari também afirmava que o Brasil não seria o mesmo depois da Constituinte. Não porque os parlamentares tivessem realizado um
trabalho extraordinário. Mas devido ao reconhecimento
do peso de novos fatores na definição das ordens econômica e social. A principal inovação residiria na presença
significativa do povo no espaço político, o que permitira
a adoção pela ANC de instrumentos importantes como
a iniciativa popular e o mandato de injunção. Dallari dizia-se convencido de que esses institutos, se implementados,
poderiam favorecer em muito a igualdade jurídica. Haveria um longo caminho a percorrer para traduzir a isonomia em efetiva igualdade de oportunidades. Mas a direção
parecia sinalizada rumo à conquista da justiça social por
vias pacíficas. O futuro desejado não havia sido alcançado,
mas se passara a dispor de elementos úteis para persegui-lo (Dallari, 1988, p. A3).
O fato é que, para nomes influentes da esquerda, o
Brasil continuava em fase de transição. Em algum ponto do
futuro estaria o porto de destino, que seria, dependendo do
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interlocutor, a sociedade sem classes, a democracia de massas ou a democracia política e social. Quando o país lá chegasse, o passado deixaria de constituir uma ameaça – o risco
de tutela militar, de golpes, de autocracia burguesa extinguir-se-ia. No meio-tempo, caberia envidar todos os esforços
para afastar os espectros do passado ou inimigos do futuro.
Os conservadores não se haviam credenciado à posição de
interlocutores. Eram “sementes reacionárias”, “obscurantistas” ou simplesmente “aqueles do alto”, cuja voz deveria ser
abafada. Na verdade, eles próprios estariam empenhados
em sacrificar seu destino. Tanto melhor, porque não haveria
espaço para que coexistissem mesmo na democracia incompleta que se buscara construir por intermédio do exercício
constituinte, decretava Florestan Fernandes (1987b, p. A3).
***
A tese da ameaça foi também empregada a velas soltas
na experiência constituinte. O argumento central era o de
que as cláusulas estatizantes e distributivistas comprometeriam a governabilidade e poriam em risco os avanços políticos realizados durante a transição. A liberdade política e
a liberdade econômica eram apresentadas como valores
indissociáveis entre si, pelo menos em uma escala temporal
mais ampla. Seria insustentável, assim, o quadro observado
nos anos de 1980, quando evoluíram em direções contrárias. O país dera passos largos rumo ao usufruto das franquias públicas. Faltariam apenas arremates institucionais a
favor de uma tradução mais apurada do princípio representativo e de uma relação mais equilibrada entre os poderes. Já no plano econômico ter-se-ia assistido, em meio à
escalada inflacionária, a um autoritarismo burocrático crescente, que a Constituinte ameaçava agravar.
Não faltavam antecedentes históricos a recomendar a
afinidade entre liberdades públicas e livre-mercado. Rober-
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to Campos recordou a celeuma na Itália pré-fascista entre
Luigi Einaudi e Benedetto Croce. Enquanto o primeiro viu
desatendida sua posição de que a liberdade econômica era
condição sem a qual a liberdade política não prosperaria,
Croce insistiu, com maior ressonância na opinião pública,
na diferença entre liberalismo e liberismo, apenas para presenciar, impotente, a ascensão do fascismo (Brasil, 1987d,
pp. 50-1). Campos aludiu também ao “distributivismo populista” de Vargas e Perón, em que a sinergia não poderia ter
sido mais evidente entre autocracia e estatismo. Um atributo comum a ambos havia sido o desconhecimento absoluto
de economia. O líder brasileiro não fora capaz de distinguir salário nominal de salário real, ao passo que seu colega
argentino considerava o Erário uma fonte inesgotável de
prebendas às massas (Campos, 1988a, p. 7, 1987, p. 9).
Uma lástima que tais exemplos reverberassem por décadas a fio e chegassem a inspirar “cretinismos catedralescos”
como os que estariam sendo cometidos pela comissão da
ordem social e pela própria comissão de sistematização da
ANC, asseverava Roberto Campos, com o endosso de O Estado de S. Paulo e um bom número de constituintes. Corroboravam a preocupação do presidente José Sarney com o risco
que a enxurrada de novos direitos em ambiente de escassez
poderia trazer à governabilidade. Estariam comprometidos,
pelo desvio de recursos, não apenas projetos questionáveis
como a ferrovia Norte-Sul, afirmava o jornal, mas a própria
execução de políticas públicas. A vítima maior, contudo,
seria a comunidade empresarial. Seria tal o desestímulo
causado à atividade produtiva pelo acúmulo de novas obrigações sociais que se prenunciava um descumprimento
generalizado da lei, com reflexos imprevisíveis sobre a estabilidade institucional (O Estado de S. Paulo, 1988d, p. 3).
Nada mais benfazejo, assim, do que a oportunidade oferecida pelo Centrão de revisão do regimento interno da ANC
para que o plenário opinasse sobre os excessos cometidos
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pela esquerda na primeira etapa do processo constituinte.
Bonifácio de Andrade (PDS), um dos líderes do agrupamento interpartidário, dava guarida às expectativas de contenção
da “onda rosa”. Mostrava-se veemente na crítica à sujeição da
iniciativa privada à tecnocracia e ao autoritarismo administrativo. Por métodos antidemocráticos, a comissão de sistematização teria criado um quadro normativo de todo refratário
à liberdade e ao progresso econômico. Cumpriria agora tornar o projeto de Carta menos ideológico e mais conforme a
“evolução do nosso povo” (Andrade, 1988, p. 7). O veto do
plenário à possibilidade de reforma agrária em latifúndios
produtivos foi muito celebrado. Só que logo veio o desapontamento com a preservação de grande parte das cláusulas
sociais, incluindo aquelas julgadas mais onerosas para o setor
produtivo, como a estabilidade no emprego, a jornada de 44
horas e a licença-maternidade de 120 dias. Não se esperava a
inusitada convergência de parte do Centrão com a esquerda
a esse respeito. O Estado de S. Paulo (1988c, p. 3) lamentou
o predomínio que se teria observado da emoção sobre a consistência doutrinária (1988c, p. 3). Álvaro Valle (PL) advogou, como remédio último, a devolução pelo plenário do
Poder Constituinte ao eleitor, com a convocação de eleições
gerais (Valle, 1987, p. 4). Roberto Campos chegou a recorrer
a Bertold Brecht para traduzir a situação marginal em que se
via após seguidas frustrações. Caracterizou como tragicômicos a aprovação do capítulo social e o risco imposto à governabilidade (Campos, 1988b, p. 2).
Pode parecer surpreendente a desenvoltura com que
nomes até havia pouco identificados com o regime militar perfilaram-se em defesa da liberdade contra a ameaça supostamente representada pelas obrigações sociais. A
explicação talvez resida no fato de que associavam o conceito, na linha dos ideólogos da “liberdade negativa”, à ausência ou limitação do poder do Estado. Se o intervencionismo
estatal sempre fizera parte da cena brasileira, a ANC parecia
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querer levá-lo ao paroxismo, distanciando o país ainda mais
de um pretendido capitalismo democrático. Sem um Estado enxuto, que despolitizasse por completo a economia, os
indivíduos persistiriam na condição de “clientes submissos”,
não se convertendo jamais em cidadãos, capazes de exercer
livremente suas opções (Campos, 1985, pp. 112-3).
A resposta da esquerda à tese da ameaça seguiu, grosso
modo, o padrão esboçado por Albert Hirschman. Ao invés
de comprometer a construção em curso da democracia,
os direitos sociais dariam sustentabilidade às reformas
políticas e salvariam a própria versão local do capitalismo,
incapaz como se mostrara até então em conciliar capital
e trabalho26.
Foram vários os constituintes que se pronunciaram acerca dos benefícios que dispositivos específicos da Carta social
trariam à feição do capitalismo no Brasil. José Genoíno
(PT) enaltecia a relevância da estabilidade no emprego para
a modernização das relações de trabalho, sem qualquer
dano ao “sacrossanto direito de propriedade” (Brasil,
1988b, pp. 1157-8). Nelton Friedrich (PMDB) e Luiz
Salomão (PDT) apontavam a experiência japonesa como
exemplo de que a estabilidade era não apenas compatível,
mas também indutora de elevados índices de produtividade (Brasil, 1988b, pp. 1160, 1149). Bocayuva Cunha (PDT),
Geraldo Campos (PMDB) e Brandão Monteiro (PDT), por
sua vez, coincidiam em situar a jornada de 44 horas como
inovação que ajudaria a elevar as práticas brasileiras aos
Já se mencionou a aceitação por Florestan Fernandes em substituir suas aspirações mais radicais por uma “revolução dentro da ordem” que assegurasse a
promoção social, ainda que parcial, do trabalhador. Uma das consequências não
negligenciáveis de tal cenário seria a domesticação do capitalismo nacional, que
assumiria uma face mais humana. O constitucionalismo brasileiro seria pródigo
em fórmulas sobre como avançar nessa direção. Bastaria consulta aos escritos de
Godofredo da Silva Telles, Dalmo de Abreu Dallari e Raymundo Faoro, recomendava Florestan.
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padrões em voga nas principais economias do mundo (Brasil, 1988b, pp. 1205, 1207, 1987c, p. 102).
Não menos professado foi o entendimento de que as
obrigações sociais, ao invés de debilitarem, reforçariam a
democracia. Florestan encarregou-se de colocar a questão
em perspectiva. Entre as muitas lacunas observadas na evolução política brasileira, uma das mais agudas havia sido a
ausência de meios para um exercício efetivo dos direitos
de cidadania, a começar pelo sufrágio, que se resumia, desde
sempre, a uma “técnica de domesticação política” dos mais
pobres. Dele fizeram largo uso as “democracias senhoriais do
Império” e as “democracias plutocráticas da República” para
conferir uma aparência de consentimento a formas cruas de
dominação social (Fernandes, 1986, pp. 143-208).
Severo Gomes (PMDB) era igualmente veemente no juízo de que a questão social sempre fora o principal empecilho
à evolução institucional do país. A desigualdade extrema era
a responsável última pela transitoriedade dos experimentos
democráticos. Criara-se um círculo vicioso. Como havia sobre
a mesa inúmeras carências “inegociáveis”, por exemplo, a
fome, exigia-se árduo e elaborado trabalho de engenharia
política para arrematar compromissos, o que raras vezes
ocorrera. As tensões sociais terminavam por gerar desobediência civil e abalos institucionais. Os militares intervinham
em missões saneadoras cujo resultado inelutável, até por
conta da repressão às demandas sociais, era o agravamento da concentração de renda e a renovação dos pleitos pela
democracia. Oxalá a Constituinte pudesse gerar condições,
aspirava Severo, para alterar essa sina, acelerando a correção
do quadro social e permitindo, por fim, o enraizamento da
democracia (Brasil, 1987f, p. 151).
Marcio Thomaz Bastos reiterava seu otimismo na capacidade de a Constituinte contribuir para superar a desigualdade social como fonte de turbulência institucional.
A solução do problema somente viria pela ação geral da
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coletividade via políticas públicas. Mas o aparato normativo
poderia eliminar privilégios e definir princípios para uma
repartição mais equânime da riqueza. Isso em nada conflitaria com a propriedade privada ou a livre-iniciativa. Apenas aproximaria o Brasil das condições vigentes nas grandes
democracias do Ocidente (Bastos, 1986, p. 156).
Se, em Severo Gomes e Thomaz Bastos, a preocupação com as condições materiais para um usufruto real da
cidadania não revelava descaso com o valor intrínseco das
liberdades e instituições democráticas, outros depoimentos
soavam menos convincentes a esse respeito. Emir Sader distinguia entre o “invólucro vazio” representado pela definição jurídica de cidadão como sujeito de direitos e o “conteúdo essencial” que tal definição mascarava, a saber, as
condições concretas de existência de cada indivíduo, fosse
ele trabalhador, mulher, negro, menor, idoso ou agricultor.
Se a Constituinte não avançasse também no segundo plano,
sua contribuição à democracia brasileira seria inexpressiva
(Sader, 1986b, pp. 145-6). Jair Meneguelli foi mais além.
Equiparava a democracia à justiça social e aos direitos por
alimentação, saúde, educação, habitação, trabalho e um
salário decente. Seriam perfeitamente dispensáveis as instituições que não assegurassem tais bens, limitando-se ao
endosso de uma democracia formal que sujeita a classe trabalhadora aos interesses e caprichos dos estratos dominantes (Meneguelli, 1987, p. 111).
***
Sabe-se que o largo emprego de uma retórica da intransigência na ANC não impediu que o foro cumprisse seu
mandato e atualizasse a ordem constitucional brasileira. É
sempre possível afirmar que, sob a prevalência de padrões
discursivos mais transitivos, a ANC teria produzido um texto
menos ambíguo e mais autoaplicável. Quem sabe do exerLua Nova, São Paulo, 87: 89-140, 2012
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cício deliberativo poderia ter resultado uma Carta em que
não se observasse um contraste tão marcante entre dispositivos estatizantes e princípios liberais; entre normas centralizadoras e uma ênfase federalista; entre a opção presidencialista e claras concessões ao parlamentarismo. Ou uma
Carta em que grande parte de seus preceitos prescindisse,
para sua efetiva observância, de legislação complementar.
De todo modo, não há como fazer história “a contrapelo”.
Careceremos sempre dos fatos. O que sim parece claro é
que a ANC evidenciou que o discurso político brasileiro,
por ocasião da renovação formal do Estado de direito, estava ainda impregnado de vícios autoritários.
Não se confirmou a generalizada conversão do meio
político à compreensão da democracia como um processo deliberativo autônomo, indeterminado e sem guias ou
tutores. A atitude de cautela de Albert Hirschman revelou-se mais acurada do que o otimismo de Francisco Weffort
quanto ao grau de sedimentação da linguagem democrática
no Brasil do final dos anos de 1980. Nem a direita, nem
a esquerda passaram incólumes pelo teste. Nas fontes primárias analisadas, Roberto Campos e Florestan Fernandes
podem ser singularizados como os porta-vozes mais articulados de seus respectivos campos. Ainda que o discurso dessas
personalidades tenha um inconfundível timbre pessoal,
as posições por elas expressas revelaram-se emblemáticas da
opinião de muitos de seus pares.
A título de conclusão, recordemos os principais “vícios
retóricos” de conservadores e progressistas. Entre os primeiros, era corrente a leitura de que a democracia não gozaria
de autonomia ou sequer sobreviveria diante do autoritarismo
econômico. A afirmação da liberdade no país dependeria
menos da operação das instituições representativas do que
da superação do mal crônico do estatismo. Já os progressistas
mostraram-se habituados a questionar a autonomia da política sob o ângulo oposto. A garantia pelo Estado de uma dis-
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tribuição mais equânime da renda era condição sem a qual
a democracia não poderia prosperar. Na ausência de condições materiais para um exercício significativo da cidadania,
as franquias democráticas apenas serviam para encobrir a
opressão de classe ou alimentar “ilusões constitucionais”.
Para um sem-número de atores de ambos os lados do
espectro ideológico, a política era tudo menos um processo em aberto. Várias razões eram brandidas para explicar
a absoluta previsibilidade das consequências que adviriam
das inovações constitucionais. Para os adeptos da tese da
perversidade, o elevado custo imposto pelas obrigações
sociais produziria ao invés de bem-estar, forçosamente,
desemprego adicional e indigência. Quando se preferia
como recurso argumentativo a tese da futilidade, os novos
direitos passavam a ser vistos como necessariamente
inócuos, seja por decorrerem de uma irrealista e atávica
crença do legislador na onipotência da norma, seja por
contrariarem a marcha da história rumo a uma crescente
desregulamentação. Daí o imperativo de que os conservadores assumissem o leme da experiência constituinte e
assegurassem a feitura de uma Carta operativa que garantisse a despolitização da economia. Eles, e somente eles,
estariam credenciados a tal tarefa.
Para muitos nomes da esquerda a história seria guiada
por leis também. O capítulo social e conquistas afins permitiriam ao país não apenas evitar um “desastre iminente”,
mas trilhar o caminho regular do processo histórico. Como
espaço para uma “revolução dentro da ordem”, a Constituinte sepultaria a Nova República e resgataria o débito acumulado ao longo do tempo com todas as revoluções burguesas. Para tanto, era imprescindível que o ritmo fosse ditado
pela clarividência dos que haviam sido vítimas contumazes
da história: os “de baixo” da cidade e do campo. Frustrada
a oportunidade de uma Carta à imagem e semelhança dos
desvalidos, ficara o ganho da emergência de uma consciênLua Nova, São Paulo, 87: 89-140, 2012
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cia de classe, que havia ativado a luta social e aproximaria o
país aos poucos de um futuro desde sempre prescrito.
Modelos de futuro constavam igualmente do discurso conservador, só que consubstanciados no presente de
outras nações, que eram situadas, dependendo do orador, ora no Ocidente industrializado, ora no Japão ou
países emergentes do Sudeste asiático. Enquanto não
chegássemos lá, conviria precaver-se, como também pregava Florestan Fernandes às audiências, contra os inimigos do amanhã. É verdade que, como o futuro era apresentado como uma profecia autorrealizável de hegemonia do mercado, as vozes dissidentes estavam fadadas à
irrelevância. Poderiam, quando muito, arrefecer o fluxo
da história nos trópicos, ampliando o hiato entre o Brasil
e as demais democracias capitalistas. De todo modo, a
regra era não contemporizar. Em muitos tópicos, o ponto
de chegada coincidiu com o ponto de partida na interlocução dos entusiastas do mercado com os socialistas estatizantes e vice-versa. Não havia margem para transigência
ou acomodação de posições. As celeumas, e houve muitas, eram diluídas em fórmulas declaratórias ou simplesmente levadas a voto.
Escapa aos objetivos deste artigo atualizar a reflexão,
com eventual paralelo entre os padrões discursivos da experiência constituinte e aqueles ora vigentes. Mas não custa
reconhecer que algumas mudanças são perceptíveis. Parece
haver nos dias de hoje maior receptividade à concepção da
política como um processo em aberto, indeterminado, até
pela falência ou comprometimento de alguns modelos de
futuro. Após a discussão que se seguiu à Queda do Muro
de Berlim acerca dos rumos do socialismo e ao descrédito que a crise financeira internacional trouxe aos apóstolos
mais empedernidos de um mercado sem regulamentação,
o terreno revela-se pouco fértil para a advocacia de leis ou
marchas da história.
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O debate constituinte: uma linguagem democrática?
136
Focado no presente, o discurso político mostra-se
também mais pragmático. No lugar da confrontação entre
modelos claramente distintos de organização da sociedade e do Estado, busca-se uma acomodação viável entre o
reconhecimento das leis de mercado e a valorização do
papel do Estado na provisão de bem-estar e na regulação
dos serviços públicos. Não se trata, obviamente, de um
fenômeno restrito ao Brasil. Mas nas últimas duas décadas
ganhou raízes no país pelo exercício do poder por parte
de variações nativas da social-democracia. Embora poucas
vezes admitida, a proximidade entre as pautas do governo
e da oposição parece facilitar a administração dos conflitos e o ajuste de posições.
Mas há notas dissonantes. Uma delas é o risco de
atrofia da crítica. O reconhecimento do impacto positivo
sobre a economia e o quadro social da relativa continuidade observada nos últimos cinco governos em orientação macroeconômica e políticas públicas, se traduzido em complacência com os gestores de plantão, pode
esvaziar o debate sobre os fins e valores da ação política.
Não será a razão instrumental a melhor conselheira para
a definição do bem comum em um momento pleno de
incertezas, quando a crise financeira cria limitações crescentes à gestão pública. Ainda bem que tal risco é temperado por um exercício cada dia mais amplo dos direitos
de cidadania, inclusive por conta da diversificação em
curso do tecido social.
Também cabe atenção ao empenho dos gatos pardos
em diferenciarem-se entre si. O embate pode reacender
tensões que na prática de governo já se encontram diluídas. A oposição chegou a abdicar da defesa de seu histórico
para eximir-se de críticas ao programa de privatização. Passou a ter uma identidade clandestina e ainda não logrou
construir uma nova face. Já o governo inventou uma tradição em suposto contraponto ao legado recebido, por mais
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que nele se tenha amparado, reforçando a dimensão social.
Diluiu a contradição pelo carisma, com amplos ganhos
eleitorais. É de lamentar-se nessa contenda a retomada ocasional de uma leitura instrumental da democracia. Alegados compromissos com a transformação social passam de
elemento diferenciador de uma ou mais gestões para salvo-conduto na condução dos afazeres públicos. Em nome da
transformação social, valeria tudo, inclusive a indiferença
à lei e à república, como se não fossem bens que podem e
devem coexistir. Mas são rompantes com ressonância limitada. Prevalece a compreensão da democracia como valor
universal. Predomina o juízo de que a história não tem
donos, individuais ou coletivos.
Tarcísio Costa
é diplomata e doutor em teoria política pela Universidade
de Cambridge.
137
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O debate constituinte: uma linguagem democrática?
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O SUPREMO NA CONSTITUINTE E
A CONSTITUINTE NO SUPREMO*
Andrei Koerner
Lígia Barros de Freitas
O presente artigo analisa as relações entre ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF) e outros agentes políticos durante o processo constituinte em duas perspectivas.
A primeira delas considera o STF objeto da deliberação
constitucional. Nesta, se enfocam projetos, embates e
negociações políticas ao longo do processo constituinte
e se determinam as posições e alianças com as quais foram
definidas as características desse tribunal na nova Constituição. O STF é tomado, nesse sentido, como “produto”
da deliberação constituinte e os ministros como agentes
no processo no qual atuam – com o intuito de alcançar
determinadas regras constitucionais acerca dos tribunais –
enquanto representantes institucionais do Poder Judiciário
*
O presente artigo apresenta os resultados das pesquisas “Em busca do processo
constituinte”, coordenada por Cícero Araújo e Antônio Sérgio Carvalho Rocha,
realizada no Cedec, com financiamento do CNPq, e “Pensamento jurídico, decisão judicial e processo político: uma análise política do controle da constitucionalidade nos anos de 1990”, coordenada por Andrei Koerner, realizada no Ceipoc/
IFCH/Unicamp, com financiamento da Fapesp, CNPq e Faepex/Unicamp. Agradecemos a Celly Cook Inatomi, Carlos Eduardo Giungi Galvão, Ana Paula Brito
Prata e Catarina Eichenberger pelo apoio no levantamento de dados.
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O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo
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junto a outros agentes. A segunda perspectiva considera
o STF como “produtor” da nova Constituição, pois, como
jurisdição constitucional, tinha a capacidade de decidir
sobre a forma, a dinâmica e os limites do processo constituinte. O STF incide sobre o processo de três modos: como
recurso estratégico mobilizado pelos agentes para sustentar
suas posições nos momentos críticos; como arena decisória que, ao decidir litígios, atua como instância normativa
que fixa o significado jurídico dos conflitos políticos e, por
fim, como instância legitimadora da atuação dos ministros
como opinantes constitucionais. Em nome da instituição, eles
enunciam juízos informais – sem qualquer processo judicial
– acerca das controvérsias políticas, procurando determinar
seu sentido jurídico-constitucional e assim orientar a direção do processo político.
Combinadas, essas perspectivas permitem verificar
como o STF foi investido e projetado no processo constituinte e como seus ministros, em aliança com outros
agentes, atuaram durante as deliberações, contribuindo
desse modo para a orientação dos debates e das decisões
na Constituinte. Assim, o artigo tem o objetivo de colaborar não só para a compreensão do sentido político dessa
atuação dos ministros no processo constituinte, mas também do próprio resultado desse processo – em termos
do formato institucional da jurisdição constitucional na
Constituição de 1988 – e dos pressupostos implícitos à
compreensão normativa que eles possuíam da Constituição de 1988. Para realizar esse propósito, a análise relaciona as posições dos ministros do STF às dos principais
agentes políticos, procurando determinar suas alianças e
conflitos ao longo do processo.
Foi elaborada a cronologia do processo constituinte e
foram selecionados eventos críticos, tanto para a dinâmica
interna da Constituinte como para as interações desta com
outros agentes. Esses eventos foram pesquisados em bancos
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Andrei Koerner e Lígia Barros de Freitas
de notícias de jornais1, periódicos jurídicos2 e outras fontes
secundárias3. Para determinar a confluência entre as posições dos ministros e juristas com as dos partidos e constituintes, foi feito o levantamento de suas manifestações (como
discursos dos ministros e entrevistas) sobre os poderes da
Constituinte e a organização das instituições judiciais4. As
decisões da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) sobre
os poderes do STF tiveram como base os Anais da Constituinte e a documentação disponível nos sites da Câmara dos
Deputados e Senado Federal5. As decisões sobre a Constituinte foram buscadas na página eletrônica do STF. Por
fim, foi feito o levantamento das decisões sobre o STF nas
principais etapas do processo constituinte, identificando-se
as posições adotadas pelos partidos e relacionando-as com as
posições destes a respeito do tema em outros momentos.
O artigo segue os momentos do processo constituinte,
apresentando as duas perspectivas de análise em cada um
143
As notícias de jornal citadas ao longo deste artigo foram levantadas em Sallum
Júnior e Graeff (2004) e no Banco de Notícias do Senado Federal sobre a Constituinte (disponível em www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/103421).
2
Foram consultados: volume 28, número 4, da revista Convivium; o número 60-1
da Revista Brasileira de Estudos Políticos; o volume 24 da Revista da Procuradoria Geral
do Estado de São Paulo; o número 21 da Revista do Advogado – com exceção deste
último, que foi publicado em 1986, todos lançados em 1985.
3
Tais como anais do IX Congresso Brasileiro dos Magistrados, realizado no Rio
de Janeiro em 1982; do X Congresso Brasileiro dos Magistrados, realizado em Recife em 1986; do 6° Congresso Nacional do Ministério Público, realizado em São
Paulo em 1985; do I Encontro dos Presidentes de Tribunais de Justiça, realizado
em Recife em 1985; do I Congresso Nacional de Advogados Pró-Constituinte,
realizado em São Paulo em 1983 e do II Congresso Nacional de Advogados Pró-Constituinte, realizado em Brasília em 1985. Além destes, foram consultadas coletâneas tais como Chiarelli et al. (1985); Ministério da Justiça (1988); Machado
e Torres Júnior (1997); Grinover et al., (1988) e Ribeiro (1985).
4
Os discursos, entrevistas e artigos dos ministros do STF citados ao longo deste
artigo estão disponíveis na seção Pasta dos Ministros, na página eletrônica www.stf.
jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaPas
taMinistro
5
As atas das reuniões das comissões estão disponíveis em <www.congresso.gov.br/
anc88/> e as atas das reuniões da Comissão de Sistematização de 09 de abril a 24
de novembro de 1987, em <www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte/
sistema.pdf>.
1
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O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo
deles. Nesses momentos, o STF e os ministros aparecem de
maneiras distintas, em função das questões sobre as quais
eles procuraram incidir.
O período pré-Constituinte
144
No período que vai, grosso modo, de 1984 à instalação
da Constituinte em 1987, o foco do conflito político está
no sentido e no alcance das mudanças políticas a serem
impressas pela Constituinte. Havia consenso entre os principais agentes políticos sobre os princípios gerais, as bases
da organização política e o cerne dos direitos fundamentais
na nova Constituição. Fazia parte desse consenso o fortalecimento das instituições judiciais6, com conteúdos precisos
a respeito da independência financeira e administrativa do
Poder Judiciário7, das garantias para o Ministério Público e
da ampliação do acesso à Justiça.
Quanto às diferenças em relação à Constituinte, a polarização se dava a respeito da natureza e poderes do Poder
Constituinte: à direita falava-se em emendas ou revisão da
Carta vigente e à esquerda defendia-se a Constituinte como
assembleia soberana e exclusiva, em ruptura com a ordem
existente. Acerca do Judiciário, a polarização se dava sobre
as bases do constitucionalismo: as atribuições de controle da
constitucionalidade e a participação popular nesse Poder. À
direita, buscava-se preservar o STF, tribunal supremo com
poderes concentrados de controle da constitucionalidade,
e o Judiciário composto por uma magistratura profissio-
6
Compreendidas num sentido amplo, que incluem não só o Poder Judiciário,
mas também as demais organizações e agentes no processo judicial, assim como
direitos e garantias constitucionais.
7
A autonomia financeira seria a reserva de uma parcela do orçamento anual para
o Judiciário, com a garantia de sua execução uniforme ao longo do ano ou, ao
menos, a reserva ao Judiciário da iniciativa legislativa em matéria orçamentária;
para a segunda, a exclusão do Executivo das nomeações e promoções dos juízes e
o reconhecimento para que o Judiciário organizasse seus serviços, selecionasse e
contratasse os demais funcionários.
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nal (Ferreira Filho, 1985a, 1985b; Reale, 1985a, 1985b). À
esquerda, a proposição era de que as controvérsias sobre as
leis fossem resolvidas pelo Legislativo, uma delegação deste
ou um tribunal, e que houvesse ampla participação popular
no Judiciário (Bisol, 1988; Castro, 1985; Comparato, 1986;
Dallari, 1984; Grau, 1985)8.
À margem do debate constituinte, definia-se a mobilização corporativa dos juízes, liderada pelos dirigentes
dos tribunais e que ultrapassava a direção institucional
do STF na formulação de proposta para o Judiciário. No
início dos anos de 1980, eles viam com reservas mudanças constitucionais mais profundas, mas a Constituinte
apareceu como uma oportunidade para promoverem o
fortalecimento do Judiciário, na qual reivindicavam voz e
voto para os magistrados. Essa perspectiva se diferenciou,
pois os dirigentes dos tribunais limitaram-se às questões
corporativas, enquanto as associações de juízes ligaram-se
às de outras profissões jurídicas e associações populares, e
incorporaram demandas de centro-esquerda pela ampliação dos direitos e garantias9.
Os ministros do STF adotavam posições de centro às
de direita ao encarar com reservas a Constituinte. Visavam
preservar o STF de mudanças mais profundas e retomar a
liderança que eles tinham perante os demais juízes ao promover as próprias demandas. Em fevereiro de 1985, falavam em “possíveis reformas constitucionais”, com as quais
os juízes deveriam colaborar junto às autoridades políticas,
num “momento de reencontro do país com a plenitude
145
Conforme depoimento de Dalmo Dallari em entrevista concedida em 09 de
maio de 2008 e de Eros Roberto Grau em entrevista concedida em 12 de dezembro de 2008.
9
A esse respeito ver as resoluções do 2º. Encontro dos Presidentes dos Tribunais
de Justiça em Ribeiro (1985, pp. 59-63, 23-4). Ver também Chiarelli et al. (1985,
pp. 19-20), Velloso (1985), a edição de 6 de outubro de 1985 de Folha de S. Paulo e
os anais do IX Congresso Brasileiro dos Magistrados e do X Congresso Brasileiro
dos Magistrados, já mencionados.
8
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O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo
146
do direito e com as aspirações democráticas”10. O novo
presidente do STF, Moreira Alves, considerava o momento
“delicado”, pois o país ingressava em “nova fase política”,
na qual se apresentavam todo tipo de dificuldades, aspirações, expectativas. Ressaltava a excelência do STF e reafirmava a agenda das últimas décadas: o problema era a crise
do STF causada pelo número excessivo de processos, contra o qual as reformas adotadas teriam resultado positivo.
O STF tinha a visão integral do Judiciário, cujos problemas
“não se enfrentam com diletantismos, muito menos com
experimentações, jamais com os olhos postos no aplauso
imediato”11.
Em maio de 1985, o ministro Oscar Corrêa considerava injustificada a Constituinte, pois não havia ruptura
da ordem jurídica. Seria justificada apenas a reforma da
Constituição, pois o problema central não era o texto, mas
sim sua inexecução. A proposta de constituinte deveria
ser desmistificada, como um slogan com fins ideológicos
e demagógicos (Corrêa, 1985, pp. 33, 49-56)12. O ministro Néri da Silveira adotava a perspectiva da continuidade
ao lembrar que o STF poderia ser provocado para julgar
a legitimidade jurídica da convocação da Constituinte. O
Estado existente poderia se opor à elaboração de Constituição nova até esta que fosse promulgada, quando seria a
completa desconstituição de todos os poderes constituídos
(Ramos, 1985).
Os dirigentes políticos já mobilizavam o STF como recurso estratégico. No momento da promulgação da Emenda
Constitucional n. 26 de 1985, convocatória da Assembleia
Nacional Constituinte, Carlos Chiarelli, líder do PFL no
Discurso proferido por Sydney Sanches em fevereiro de 1985.
Discurso proferido por Moreira Alves em fevereiro de 1985.
12
Naqueles meses de abril a julho de 1985, em diversas solenidades, ele proferiu
discursos sobre a mudança do direito, a crise da Constituição, o STF e a Constituinte, que foram reunidos em volume (Corrêa, 1986).
10
11
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Senado, afirmava que recorreria ao STF se o Congresso não
funcionasse junto com a ANC. O presidente Sarney entendia
a questão da mesma forma13.
Nas sugestões que os ministros do STF enviaram à
Comissão Afonso Arinos, estes defenderam a continuidade da forma de organização e atribuições do STF, mas
também incorporaram as propostas dos magistrados pelo
fortalecimento institucional do Poder Judiciário e outras
alterações menos relevantes (Corrêa, 1987, pp. 149 e ss.).
O Anteprojeto Constitucional da Comissão Provisória de
Estudos Constitucionais, a Comissão Afonso Arinos, publicado no Diário Oficial em 26 de setembro de 1986 adotava
uma concepção comunitária de Constituição, com regime
semipresidencialista e ampliação dos mecanismos de participação popular direta. A respeito das instituições judiciais, os
dispositivos propostos por esse anteprojeto eram mais próximos da posição de “centro”, pois eram contrários à ampliação da legitimidade ativa para as ações de controle direto da
constitucionalidade, avançavam limitadamente no controle
das omissões constitucionais e não ampliavam a participação
popular no Judiciário. A respeito do STF, o anteprojeto mantinha tanto a posição institucional já ocupada pelo tribunal,
quanto a forma de organização e as atribuições múltiplas deste, que detinha o controle concentrado e difuso de normas.
Foi cogitada a criação de um tribunal constitucional, proposto de José Afonso da Silva, mas a Comissão afinal atendeu às
demandas e pressões dos ministros do STF1415.
147
13
Sobre o episódio, ver o relato de Flávio Bierrembach (1986), a análise de Rocha
(2009) e a edição de 25 de novembro de 1985 de O Globo.
14
Entrevista concedida por Gisele Citadino em 22 de agosto de 2008.
15
O anteprojeto foi apelidado de “anteprojeto dos notáveis”. A direita não criticou
a organização da cúpula do Poder Judiciário, mas a regra da aplicação imediata
dos direitos e garantias constitucionais e a inconstitucionalidade por omissão (artigo 10 e § 1°), considerando-a confusas e contrárias aos princípios da legalidade
e da separação dos poderes (Ferreira Filho, 1987, pp. 11-2; Prado, 1987, pp. 16-7).
Para comentários mais favoráveis, Pereira (1987).
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O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo
A Constituinte no STF
Em apreciação geral sobre o processo constituinte, Adriano Pilatti afirma que os conservadores foram capazes de
preservar suas posições intransigentes contra inovações,
quando as decisões da ANC foram tensionadas por fortes
agentes externos (Pilatti, 2008, p. 315). Ele exemplifica sua
tese com a reforma agrária e a duração de cinco anos do
mandato do presidente Sarney, aos quais podem ser acrescentados o papel das Forças Armadas e do STF. As pressões externas também foram importantes para a definição
dos poderes e normas de funcionamento da ANC. Nos
momentos críticos, os conservadores mobilizaram o STF
como recurso estratégico, o qual foi invocado nos principais conflitos: a respeito das relações entre a Constituinte
e os poderes constituídos; das regras internas da ANC e da
duração do mandato do presidente Sarney.
148
A Constituinte e os poderes constituídos: o debate na
instalação
Na sessão de instalação da ANC, o presidente do STF,
Moreira Alves, adotou a perspectiva da continuidade, que
vinculava juridicamente a Constituinte à ordem vigente.
Aquele momento significaria “o termo final do período de
transição com que, sem ruptura constitucional, e por via
de conciliação, se encerra o ciclo revolucionário” (apud
Paixão, 2012, p. 21)16.
Instalada a ANC, ocorreu o impasse sobre o Regimento
Interno (Rianc), em que se punha a questão dos poderes
da Constituinte em relação à ordem vigente. Em 4 de feveA esse respeito, ver ainda a edição de 1o. de fevereiro de 1987 de O Estado de S.
Paulo. Octavio Gallotti, em discurso proferido em março de 1987, referiu-se ao
discurso de seu colega como “admirável oração, fadada a figurar, na história e nos
anais do Parlamento, como notável contribuição do Poder Judiciário, conduzindo, no dia imediato, com segurança exemplar, os trabalhos da eleição da mesma
augusta Assembleia, ora reunida”.
16
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Andrei Koerner e Lígia Barros de Freitas
reiro de 1987, o deputado Maurílio Ferreira Lima (PMDB/
CE) apresentou o Projeto de Resolução n.1 de 1987 que
previa a adoção pela Constituinte de resoluções constitucionais para alterar as normas vigentes, inclusive a duração
do mandato do presidente Sarney, os decretos-lei, as medidas de emergência e o decurso de prazo. Contra a proposta, afirmava-se que os trabalhos constituintes eram limitados, pois a Constituinte fora convocada por emenda, sem
ruptura na ordem constitucional, com a missão específica
de elaborar a nova Constituição (Lopes, 2008, pp. 29-31).
Para o Planalto, a proposta era “absolutamente ilegal”, pois
entendia que era necessário respeitar o quórum qualificado e a votação para emendar a Constituição vigente17.
O STF foi mobilizado na controvérsia pela bancada do
PL que, em 5 de fevereiro, encaminhou consulta ao STF
para definir se os procedimentos vigentes de elaboração
e reforma constitucional deveriam ser observados até a
promulgação da nova Constituição. Segundo o deputado
Álvaro Valle, a consulta visava obter a interpretação do STF
dos limites da soberania da ANC. Por ser um procedimento inadequado, a consulta deveria ter sido arquivada pelo
presidente do STF, Moreira Alves, mas ele a enviou para
parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) com a
recomendação de que fosse devolvida com urgência para a
matéria ser examinada por aquele tribunal. O PL solicitou
ao presidente da República que a PGR deveria encaminhar
à apreciação judicial, com parecer favorável ou contrário,
qualquer arguição de inconstitucionalidade. O procurador-geral já afirmara que a ANC teria poderes para interpretar
a Constituição vigente, mas não para modificar seu texto18.
149
A esse respeito, ver a edição de 5 de fevereiro de 1987 de O Jornal do Brasil.
A esse respeito, ver as edições de 05 de fevereiro de 1987 de Jornal do Brasil e
de Correio Braziliense; de 06 de fevereiro de 1987 de Folha de S. Paulo e do Jornal de
Brasília e de 7 de fevereiro de 1987 de Correio Braziliense.
17
18
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O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo
O impasse foi contornado com a retirada do projeto
por seu autor e a incorporação parcial de sua proposta ao
preâmbulo do Rianc. A soberania da Constituinte foi afirmada, e ela poderia criar projetos de decisão para sobrestar
medidas que pudessem ameaçar seus trabalhos, decisões. A
soberania da ANC era defensiva; ela decidiria sem interferências externas, mas os projetos de decisão teriam caráter
meramente reativo (Pilatti, 2008, pp. 41, 50-1; Lopes, 2008,
pp. 33-4).
A reforma do regimento
150
A partir de agosto de 1987, os conservadores se unificaram em torno do Centrão para promover seus interesses.
Apresentado o Projeto de Constituição A da Comissão de
Sistematização (CS), atuaram para desqualificá-lo, provocar a reforma do regimento e apresentar um projeto
de Constituição alternativo (Dreifuss, 1989; Zaverucha,
1994). Sarney procurou aprofundar a crise, ameaçando
propor eleições gerais porque não aceitava a redução
do seu mandato e a mudança do sistema de governo
(Noblat, 1990, pp. 111-2). O consultor-geral, Saulo Ramos,
afirmou no programa Crítica e Autocrítica da TV Bandeirantes que o poder constituinte da ANC era derivado e
poderia ser controlado pelo STF19.
O Projeto de Constituição A da CS foi aprovado em
24 de novembro de 1987, mas até 27 de janeiro de 1988
as votações estiveram paralisadas pelas negociações sobre
a reforma do Rianc, contra o qual o Centrão insuflara o
ressentimento dos parlamentares ao taxá-lo como antidemocrático, porque eram necessários 280 votos para alterar
o texto aprovado por 47 membros da CS. Ulysses Guimarães pretendia fazer a tramitação paralela dos títulos do
Projeto A de Constituição na CS e em plenário, mas o iníConforme noticiado na edição de 16 de outubro de 1987 de Folha de S. Paulo.
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cio das votações inviabilizaria a alteração do Rianc. Com
o apoio do presidente Sarney, os porta-vozes do Centrão
ameaçaram recorrer ao STF contra a tramitação paralela, ou seja, caberia a esse tribunal decidir a controvérsia
acerca dos trabalhos internos da ANC. Em 4 de novembro
de 1987, Ulysses anunciou a desistência de seu intento e
repeliu qualquer relação com a ameaça, pois esta não teria
“qualquer fundamento jurídico, qualquer juiz de roça julgaria preliminarmente como inepta” a pretensão (apud
Pilatti, 2008, p. 205)20.
O mandato do presidente Sarney
A disputa a respeito da duração do mandato do presidente Sarney atravessa o processo constituinte e determina
a aprovação do presidencialismo com mandato de cinco
anos. Atores externos e internos à ANC, regras presentes
e futuras são inseparáveis no processo de decisão política. O STF está pareado às Forças Armadas, ministros e
militares se completam como os braços legal e armado da
manutenção da ordem e sustentação ao presidente, para
bloquear avanços na elaboração da nova Constituição e
projetar para o futuro a situação existente. Apresenta-se
a seguir apenas o principal momento crítico: a votação
em primeiro turno do sistema de governo e o mandato
presidencial.
Em janeiro de 1988, começaram as votações em plenário em primeiro turno, com pressões externas intensas.
Saulo Ramos reiterava que a ANC tinha poder constituinte
derivado e não poderia desconstituir os poderes constituídos (Pilatti, 2008, pp. 233-5)21. Bernardo Cabral respondeu
com um ensaio em que afirmava que a ruptura da ordem
legal ocorreria com a promulgação da nova Constituição,
151
A esse respeito, ver também edição de 1o. de dezembro de O Globo.
As teses foram publicadas em Ramos (1987).
20
21
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que superaria o vácuo de legitimidade popular criado pelo
Golpe de 1964 (apud Paixão, 2012, pp. 26-7)22.
O presidente e seus aliados invocaram novamente o STF
como parte das ameaças à ANC. Em 26 de fevereiro de 1988,
no programa semanal Conversa ao Pé do Rádio, transmitido
em cadeia nacional, ele advertiu contra supostas “minorias
radicais” e era cogitada a possibilidade de ele defender seu
mandato constitucional de seis anos junto ao STF. Para os
analistas, as críticas à Constituinte compunham a vertente
psicológica de um “golpe jurídico” em preparação. Depois
da votação, o presidente recorreria ao STF com o argumento de que o Congresso Constituinte não tinha poderes para
cortar seu mandato e os militares atuariam para proteger a
decisão da mais alta instância judicial do país23.
Ainda em 26 de fevereiro, Sarney solicitou sua certidão
de posse ao Senado, a qual poderia instruir seu pedido junto ao STF. Em 1o. de março, Jutahy Magalhães, primeiro-secretário do Senado, encaminhou a certidão ao Planalto
que atestava que o presidente Jose Sarney tomou posse no
dia 15 de janeiro de 1985 como vice-presidente de Tancredo
Neves, ex-presidente da República, para um mandato de
seis anos, amparado no artigo 77, parágrafo 1o. da Constituição. Para o senador, a certidão seria documento suficiente
para Sarney ingressar com ação no STF24.
Noutro movimento, o governo fortalecia seus apoios.
Paulo Brossard, ministro da Justiça, buscou o apoio dos
demais ministros; os quatro ministros militares apoiaram
publicamente o presidencialismo com cinco anos. Outros
ministros atuaram para fazer os governadores pressiona22
Paixão sublinha o caráter inovador dessa ênfase na ruptura pelo resultado do processo constituinte: o termo “constituição [...] passou a significar, de forma mais forte, o início de uma ordem constitucional, a partir da ruptura com o ordenamento
até então vigente, ao invés de manter-se no quadro semântico da transição, que
parecia ser dominante no início dos trabalhos constituintes” (Paixão, 2012, p. 30).
23
A esse respeito, ver a edição de 27 de fevereiro de 1988 de Folha de S. Paulo.
24
Ver edição de 02 de março de 1988 de Jornal do Brasil.
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rem suas bancadas no Congresso (Dreifuss, 1989, p. 205)25.
Cardoso Alves, depois de reunião com o presidente, declarava que este estava disposto a ir até as últimas consequências para garantir seu mandato de seis anos e que preparava
o contra-ataque, inclusive com o recurso ao STF26. Antônio
Carlos Magalhães alertava que as consequências de uma
ação judicial convenceriam os descontentes com o mandato
de cinco anos. Para o senador Jarbas Passarinho (PDS/PA),
a disposição do presidente Sarney de recorrer ao STF revelava a falta de uma solução negociada, mas lembrava que
“quando houver uma decisão do Supremo, as Forças Armadas serão obrigadas a mantê-la, já que têm responsabilidade
pela ordem interna do país”27.
Manoel G. Ferreira Filho afirmava que a Constituinte
poderia mudar o mandato dos futuros presidentes, pois
seus poderes não haviam sido restringidos pela Emenda
Constitucional n. 26 de 1985, mas o STF poderia, até ficar
pronta a nova Constituição, avaliar qualquer ato jurídico
segundo a Constituição em vigor. Saulo Ramos tinha a
mesma opinião e informava que o presidente Jose Sarney
entendia que não era da competência da Constituinte definir a duração de seu mandato (Carvalho Filho, 1988)28.
Os constituintes reagiram às ameaças, considerando-as
como parte de “uma escalada golpista” da Presidência.
Ulysses Guimarães descartava a interferência do Judiciário sobre os trabalhos constitucionais e defendia a atuação
dos constituintes, cujas decisões eram tomadas por maioria
153
25
A esse respeito, ver as edições de 1o. a 4 de março de 1988 de Folha de S. Paulo e
de Gazeta Mercantil.
26
Conforme noticiado na edição de 27 de fevereiro de 1988 de Folha de S. Paulo.
27
Os comentários de Antônio Carlos Magalhães e Jarbas Passarinho podem ser
encontrados nas edições de Folha de S. Paulo e Gazeta Mercantil de 27 de fevereiro
de 1988.
28
Outras menções à declaração de Saulo Ramos podem ser encontradas nas edições de 27 e 29 de fevereiro de 1988 de Folha de S. Paulo e de 28 do mesmo mês de
Jornal do Brasil.
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absoluta. Ressaltava que “todos têm que respeitar a Constituinte”, que estava “acima de todos os poderes, do Executivo e do Judiciário. [...] Ela [a Constituinte] está sob a
guarda do Supremo, que existe para guardá-la, e não para
estuprá-la”. Ele procurou o apoio dos governadores Waldir
Pires (BA), Wellington Moreira Franco (RJ) e Pedro Ivo
Campos (SC), lideranças da ANC, juristas e entidades da
sociedade civil. Estes afirmavam que o recurso ao STF partia de uma “hipótese golpista”, pois se supunha que uma
eventual decisão favorável seria respaldada pelas Forças
Armadas, com o argumento de que uma decisão da Justiça
tem que ser respeitada29.
No plenário da ANC, circularam cópias de uma decisão unânime do STF, que teria decidido que o Congresso
Constituinte tinha o caráter de “órgão instituído” e que
poderia legislar apenas para o futuro. O deputado Amaral
Netto (PDS/RJ) exibia a cópia da decisão no plenário
gritando “está aqui a garantia do mandato de seis anos
para o presidente Sarney”, enquanto o deputado Cardoso
Alves, em discurso afirmava que “o Poder Judiciário definiu que a Constituinte é órgão instituído”. Conforme
noticia o jornal Folha de S. Paulo em 29 de fevereiro, o
ministro do STF Djaci Falcão, relator do processo, desmentiu que o STF tivesse decidido sobre o caráter originário ou derivado da ANC, ou que ele tivesse se manifestado sobre o assunto.
Às vésperas da votação, as ameaças de golpe tornaram-se explícitas. Elas foram feitas por auxiliares do presidente
Sarney a parlamentares e empresários. Os ministros militares tomaram a iniciativa e advertiram o presidente da República e um elenco selecionado de lideranças políticas de
29
A esse respeito, ver as edições de 27 e 29 de fevereiro, 1o. e 12 de março de
1988 da Folha de S. Paulo, as edições de 3 e 4 de março de O Estado de S. Paulo, a
edição de 27 de fevereiro de Gazeta Mercantil e as edições de 27 a 29 de março de
Jornal do Brasil.
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suas intenções se o mandato de quatro anos fosse aprovado
(Dreifuss, 1989, pp. 205-6; Noblat, 1990, pp. 137-46)30. Em
22 de março, a ANC, pela primeira vez com seus 559 membros presentes, aprova o presidencialismo com mandato de
cinco anos, com 344 votos a favor, 212 contra e 3 abstenções
(em junho, na votação dos Atos das Disposições Transitórias, o mandato de Sarney é convalidado com 328 a favor,
22 contra e 3 abstenções) (Pilatti, 2008, pp. 250-4). Enquanto Sarney elogiava as Forças Armadas, tornava-se evidente
que os militares exerciam por conta própria a tutela sobre
o processo político (Dreifuss, 1989, pp. 205-6; Noblat, 1990,
pp. 143-4, 145-6; Zaverucha, 1994, p. 188)31.
Com a votação em primeiro turno, o problema da
duração dos mandatos presidenciais estava encerrado, pois
em segundo turno só caberiam emendas supressivas e a
matéria não poderia ficar fora da futura Constituição. Em
2 de junho, na votação dos Atos das Disposições Transitórias, foi aprovada por 328 votos a 222, a duração de cinco
anos para o mandato do presidente Sarney com expiração
prevista para 15 de março de 1990, e com eleições diretas
à Presidência da República em 15 de novembro de 1989
(Pilatti, 2008, p. 253).
Em toda essa movimentação, poucos consideravam que
a crise era falsa. Ricardo Noblat previa que Sarney “[n]ão
renunciará, não se suicidará e não será deposto e assim ir
às últimas consequências significa apelar ao Exército”. Para
ele, Sarney não iria à Justiça por seu mandato, se fosse, não
teria êxito e, se o tivesse, prevaleceria a decisão da Constituinte (Noblat, 1990, p. 136).
Seguramente, uma sentença do STF não seria condição
necessária para um golpe militar, mas conferiria legitimidade
constitucional à intervenção. Com a ameaça de uma ação no
155
Esses acontecimentos foram noticiados em 26 de março de 1988 em Jornal do
Brasil e em 05 do mês seguinte em O Estado de S. Paulo.
31
Sobre esse ponto, ver também a edição de 26 de março de 1988 de Jornal do Brasil.
30
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STF contra uma decisão da Constituinte, o governo antecipou sua intenção de extrapolar o conflito das negociações
com as lideranças políticas. Independentemente do uso efetivo e do resultado que seria obtido, a provocação ao STF foi
utilizada pelo presidente para afirmar sua pretensão de legitimidade constitucional e obter sustentação política.
Seria exagerado falar em “tutela judicial” exercida
pelo STF sobre a ANC, mas o tribunal deu sinais favoráveis às teses conservadoras. Com exceção da resposta do
ministro Djaci Falcão, os demais ministros mantiveram
postura discreta ao longo da controvérsia e não se manifestaram como opinantes constitucionais, diferentemente do
que fizeram a respeito de outras questões. De modo geral,
a pesquisa em jornais não encontrou declarações públicas
ou em off de ministros do STF que pusessem em questão a
viabilidade ou a probabilidade de sucesso de um recurso
ao tribunal contra decisão da Constituinte. Essa discrição
dos ministros do STF deixou em aberto as possibilidades
de mobilização estratégica do tribunal, nas quais ele aparecia como uma arena decisória favorável a Sarney e aos
conservadores. Como se verá a seguir, o STF não admitiu
pedidos que se antecipavam à decisão da Constituinte,
mas examinou o Rianc e limitou parcialmente seu campo
de aplicação32.
Durante o processo constituinte as ameaças de recurso
ao STF apareceram em outras ocasiões33. Porém, não alcançaram a mesma intensidade do que durante a votação no
primeiro turno.
Célio Borja, em entrevista concedida em 11 de dezembro de 2009, assegurou
que o STF não acolhia as teses das limitações à soberania da Constituinte.
33
No final das votações de primeiro turno, o círculo próximo a Sarney cogitava
zerar os trabalhos da ANC ou suspender as votações por um mês (Dreifuss, 1989,
p. 243). Conforme noticiou a edição de 19 de julho de 1988 do jornal O Estado de
S. Paulo, Saulo Ramos sugeria suspender os trabalhos por uma ação no STF para
declarar a inconstitucionalidade da Constituição como um todo, por ter a ANC
desrespeitado as regras da Emenda Constitucional n. 26.
32
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O STF como arena decisória: processos contra a ANC e
seus membros
Apesar das ameaças, as ações ingressadas e as decisões do
STF foram pouco numerosas. No entanto elas trazem indicações importantes sobre a orientação normativa dos ministros, que poderiam ser elementos para a predição, pelos
sujeitos, das decisões do tribunal. Os vínculos dos ministros
com as lideranças políticas permitem algumas conjecturas a
respeito da orientação deles em questões-chave como a do
mandato do presidente Sarney.
A pesquisa na página eletrônica do STF gerou doze
decisões relevantes34. Por um lado, ações contra decisões da
mesa da Assembleia – quatro Mandados de Segurança (MS)
e uma Petição (PET) – e, por outro, ações penais movidas
contra ANCs por crimes contra a honra – cinco inquéritos
(Inq) e uma ação penal (AP). Apresentam-se a seguir apenas as decisões relevantes para a análise.
Ações judiciais contra decisões da mesa da ANC
Nessas ações, os pedidos não foram acolhidos, pois o STF
foi provocado antes da votação definitiva da ANC, ou da
promulgação da Constituição. O MS 20.718 (relator Oscar
Corrêa, decisão de 5 de agosto de 1987) foi proposto pelo
prefeito de Nova Iguaçu, Paulo Antonio Leone Neto, con-
157
34
Foi feita pesquisa na página de busca de jurisprudência do STF, com a palavra
“Constituinte”, para todos os tipos de processo e decisão no período de 01 de fevereiro de 1985 a 05 de outubro de 1988. A busca gerou 25 resultados, dos quais:
6 em que “constituinte” era sinônimo de advogado; 2 recursos extraordinários
referiam-se à Constituição de 1967 e 4 representações, à Constituições estaduais.
Há um habeas corpus preventivo (HC 65.343/SP) da deputada Dirce Tutu Quadros
ameaçada de internamento em estabelecimento psiquiátrico. A base de dados do
STF inclui apenas decisões selecionadas e não retornou decisões monocráticas.
Então, não se trata das decisões em todas as ações impetradas no STF contra a
Constituinte. A Folha de S. Paulo refere-se a outros casos em 27 de fevereiro e em 12
de maio de 1988. As decisões do STF estão disponíveis na seção “Jurisprudência”
da página eletrônica do STF:
<www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>.
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tra a mesa da ANC para evitar a redução do seu mandato
de seis anos. Para o autor, como a comissão de poderes da
ANC fixou em cinco anos o mandato de Sarney, ele temia
que a decisão se estendesse aos prefeitos. O relator negou
seguimento à ação e o pedido de reconsideração foi negado pelo plenário por unanimidade, porque se fundava em
“pressupostos de fato e de direito inexistentes”, que era o
caso de uma norma do Projeto de Constituição.
O MS 20.828 (relator Sydney Sanches, dec. de 21 de
setembro de 1988) foi proposto por Oswaldo Teixeira
Luz contra o presidente da ANC, para obstar a discussão
e votação do artigo 37 das disposições transitórias, sobre o
pagamento de precatórios, com a alegação de que resultou
de inadequada fusão de emendas, o que implicava prejuízo
ao precatório a que tinha direito. A ação não foi conhecida
porque o STF considerava que o autor não tinha direito líquido e certo a que a ANC interpretasse o regimento
do mesmo modo que ele. Além disso, como no caso do
MS 20.718, a ANC ainda não havia aprovado o texto final.
Porém, se ela efetivamente o fizesse, o autor poderia vir a
invocar o fato no processo específico do precatório.
As decisões do STF nessas ações foram no sentido de
não intervir nas decisões da ANC35. O STF afirmou que as
votações da ANC não eram definitivas e que não existia ato
da autoridade, pressuposto para conhecer o MS. Enfim,
havia a jurisprudência antiga do STF de que não se admite
a oposição de direito adquirido contra texto constitucional,
fosse do Poder Constituinte originário ou derivado (por
exemplo, o Recurso Extraordinário n. 94.414/SP).
Licença prévia para processar membros da Constituinte
Os INQs de n. 273 e 307 são relevantes para a determinação, pelo STF, do alcance das normas regimentais da ANC.
Os outros casos foram: o MS 20.692, o MS 20.811 e a PET 254.
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Andrei Koerner e Lígia Barros de Freitas
Foi colocada a questão do alcance em face da Emenda
Constitucional n. 1 de 17 de outubro de 1969, dos dispositivos do Rianc (Resolução n. 2 de 1987) referentes à inviolabilidade e à imunidade dos membros da ANC. O artigo 32
da EC n. 1/1969 estabelecia a inviolabilidade para os atos
praticados no exercício de seus mandatos, com exceção dos
crimes contra a honra. Sobre a imunidade processual, se o
parlamentar fosse processado por crime comum, o processo
poderia ser sustado por decisão da Casa do Congresso. O
artigo 1º., parágrafo 2º. do Rianc estabelecia a inviolabilidade dos constituintes no exercício de suas funções, sem
excepcionar os crimes contra a honra. A imunidade processual era a de que eles só poderiam ser processados criminalmente – em qualquer tipo de acusação criminal – ou presos
com a licença da ANC, excetuadas as prisões em flagrante
por crime inafiançável.
Nos INQ de n. 273 DF e 307 DF, constituintes foram
denunciados no STF por atos praticados fora do exercício de
suas funções e configuravam crimes contra a honra. O INQ
de n. 273 DF foi iniciado por representação de um funcionário do Detran/RJ contra o deputado Brandão Monteiro
(PDT) por este ter atribuído àquele atos de corrupção. O
fato ocorreu em 3 de novembro de 1985, quando Monteiro
era secretário de Transportes do estado e deputado federal afastado, eleito em legislatura anterior36. O INQ n. 307
DF foi iniciado por representação do ministro da Fazenda,
Dilson Funaro, contra o deputado Amaral Netto, por este
ter, em discurso na Câmara, feito declarações injuriosas atribuindo-lhe atos criminosos.
O PGR, Sepúlveda Pertence, suscitou nos dois casos a
preliminar de que seria necessária a autorização da ANC para
159
36
O INQ 273 DF contra o deputado Brandão Monteiro tornou-se Ação Penal (AP)
n. 294, e a Câmara dos Deputados decidiu em 25 de fevereiro de 1988 sustar o processo, interrompendo a ação no STF (ver AP 294-QO RJ, relator Sydney Sanches,
dec. de 09 de março de 1988).
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que fosse iniciado o processo. Seu parecer distinguia o caráter originário ou instituído da Constituinte da questão das
franquias e extensão dos seus poderes. Segundo o PGR em
parecer anexo ao inquérito, a ANC não era originária, pois
não houvera ruptura na ordem jurídica vigente e foi convocada por emenda constitucional. A ANC, porém, era livre e
soberana para elaborar a Constituição futura, era organizada num corpo unicameral, distinto e independente em relação ao Congresso, e tinha sua própria finalidade, com liberdade em relação aos órgãos constituídos; os representantes
eleitos em 1986 receberam dois mandatos: o de parlamentares, membros do Congresso, para exercer suas funções legislativas ordinárias e o de constituintes, membros da ANC,
para elaborar a nova Constituição. Ao elaborar o Rianc,
prossegue o PGR, a ANC exerceu um poder distinto e necessário para atuar de modo livre e soberano, o que não era
compreendido pelas normas da EC n. 1/1969, que não previra um órgão desse tipo para realizar a completa revisão
da Constituição, ou seja, o Rianc não modificava as normas da
Constituição, pois seu domínio não era compreendido por
ela. Para o PGR, se os constituintes acusados não eram protegidos pela inviolabilidade tal como definida pela norma
do Rianc, pois seus atos foram praticados fora do exercício
de suas funções de constituintes e eram tipificáveis como crimes contra a honra, porém, eles eram protegidos pela imunidade processual, uma vez que o Rianc estabelecia a licença
prévia para que os seus membros pudessem ser processados
por crimes comuns, ao contrário do artigo 32. Por fim, concluía pela suspensão do processo e a demanda de autorização da ANC para processar os constituintes.
O parecer fazia o paralelo com a regra dos projetos de
decisão do parágrafo 7o. do artigo 59 do Rianc, segundo o
qual a ANC poderia votar projetos de decisão, destinados a
“sobrestar medidas que possam ameaçar” seus trabalhos e
decisões soberanas. A EC n. 26/1985 atribuiu à ANC os atriLua Nova, São Paulo, 88: 141-184, 2013
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butos de liberdade nas suas relações com os outros poderes
do Estado e soberania na criação da futura Constituição.
A liberdade da ANC inseriu-se no sistema constitucional
em vigor e ela compreendia o próprio poder de criar instrumentos para garantir sua efetividade. O funcionamento
concomitante do Congresso não subtraia da ANC o poder
de se outorgar salvaguardas para sua liberdade, sendo que o
exercício livre do mandato constituinte era protegido pela
própria regra constitucional da EC n. 26/1985. Assim, reconhecia o caráter constituído e não originário da ANC, bem
como sua soberania e liberdade, sem que suas decisões fossem subordinadas à revisão alguma.
Porém, os ministros do STF decidiram unanimemente
em sentido oposto, rejeitando a preliminar suscitada pela
PGR. O relator, Sydney Sanches, considerou que o Rianc
não poderia eliminar a exceção dos crimes contra a honra
estabelecida pela EC n. 1/1969 para a inviolabilidade dos
parlamentares. Senão, “a norma regimental (interna corporis) estaria exorbitando de sua estrita e eventual esfera de
incidência e operando em área, que se rege pela Constituição em vigor”. Esta estabelecia a exceção à inviolabilidade
nos casos de crime contra a honra e não conferia imunidade processual aos deputados. Nos crimes contra a honra não era exigida licença prévia das casas do Congresso e
“[m]enos ainda da Assembleia Nacional Constituinte, cujo
dispositivo regimental só procura proteger o Constituinte
no âmbito e no exercício do respectivo mandato”.
O INQ n. 273 DF que fora devolvido pela PGR no
dia 28 de outubro entrou em pauta e foi julgado no dia
seguinte, na véspera da votação dos destaques sobre o sistema de governo e mandato presidencial pela comissão de
sistematização37.
161
Os demais inquéritos foram julgados somente em 28 e 29 de setembro de 1988,
depois da aprovação do texto final da Constituição (que ocorrera em 22 de setembro). São eles os INQ n. 284, n. 327, n. 350 e n. 353.
37
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O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo
162
A preliminar da PGR representava uma tentativa de
fazer o STF se manifestar em sentido favorável aos poderes
da ANC em face da EC n. 1/1969, mas a decisão do tribunal
foi no sentido oposto. A PGR não defendia o caráter originário da ANC, mas sua soberania e liberdade. Porém, o STF
considerou que esses atributos da ANC limitavam-se ao estabelecimento de suas próprias regras internas, à medida que,
embora a ANC pudesse determiná-las, estas eram, por sua
vez, enquadradas pelas normas da ordem constitucional
vigente. Embora o STF não declarasse explicitamente, deixava aberto o campo para examinar e controlar os trabalhos
da ANC e para determinar o alcance das mudanças criadas
por esta em face dos poderes constituídos. A redução do
mandato do presidente Sarney poderia vir a ser declarada
pelo STF como uma extrapolação dos poderes da ANC.
Talvez fosse difícil o STF conceder liminar contra uma votação da ANC antes do encerramento do processo. Mas a maioria
dos ministros tinha orientação conservadora ou vínculos com o
presidente Sarney. Oscar Corrêa, Célio Borja e Carlos Madeira
tinham ligações pessoais e políticas com o presidente. Moreira
Alves, Octavio Gallotti e Djaci Falcão expressaram teses de
direita e contrariedade com os rumos da Constituinte. Sydney
Sanches, liderança histórica dos magistrados, expressava reservas a respeito do processo. O presidente Rafael Mayer, Aldir
Passarinho e Néri da Silveira, pareciam apostar no sucesso da
Constituinte, embora os dois últimos fossem bastante reservados. Francisco Rezek, que também parecia apostar no sucesso,
tinha vínculos com o ministro Leitão de Abreu38.
O STF como objeto da deliberação constitucional
Os ministros do STF foram importantes atores na Constituinte, construindo alianças com os parlamentares de cen38
A esse respeito, ver a edição de 27 de fevereiro de 1988 de Folha de S. Paulo e de
4 de setembro de 1988 de Jornal do Brasil.
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tro e centro-direita, para que apoiassem a preservação do
tribunal. A seguir, apresentam-se as decisões nas diversas
fases de deliberação da ANC a respeito da estrutura do STF
e os instrumentos para o controle da constitucionalidade de
normas, especialmente os legitimados para proporem ação
direta de inconstitucionalidade (por ação ou omissão) de
norma legal ou Ato Normativo em Tese (ADI)39.
Sobre a estrutura do STF, foram formuladas três propostas. Primeiro, a criação do tribunal constitucional ou
tribunal das garantias constitucionais, que foi apresentada,
discutida e aprovada em subcomissões diferentes com as
mesmas linhas gerais: um tribunal autônomo com atribuições exclusivas sobre questões constitucionais, com ministros temporários, ou escolhidos pelo Congresso Nacional,
ou pelos três poderes da República. Na subcomissão do
Poder Judiciário e do Ministério Público, o tribunal constitucional foi defendido por Vivaldo Barbosa (PDT/RJ)40,
com base na proposta da OAB41. Na subcomissão dos direitos políticos, dos direitos coletivos e das garantias, o tribunal das garantias constitucionais foi proposto pelo relator
Lysâneas Maciel (PDT/RJ) com base na ideia de José Paulo
Bisol, relator da comissão da soberania e dos direitos e
garantias do homem.
Uma segunda proposta era a criação no STF de uma
seção especializada para conhecer as questões constitucionais, composta por ministros temporários. O STF manteria
163
39
As informações desta seção são baseadas nas atas das comissões disponíveis na
página eletrônica <www.congresso.gov.br/anc88/> e nas atas das reuniões da CS
de 09 de abril a 24 de novembro de 1987 disponíveis na página eletrônica <www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf>, acesso em ago/2012.
40
O constituinte Vivaldo Barbosa não integrava a subcomissão do Poder Judiciário
e do Ministério Público, mas sim a subcomissão do Poder Executivo e foi o primeiro vice-presidente da comissão da organização e sistema de governo. Entretanto, esteve presente na subcomissão estudada desde o início das atividades desta e
apresentou emenda ao anteprojeto do relator, como será visto mais adiante.
41
José Lamartine Côrrea de Oliveira, além de conselheiro federal da OAB, era
professor titular de direito civil na Universidade Federal do Paraná.
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sua função unificadora da legislação federal, com ministros vitalícios. A proposta foi formulada pelos juízes paulistas da Apamagis e defendida na subcomissão por Michel
Temer (PMDB/SP) e apoiada pelo presidente José Costa
(PMDB/AL).
A terceira proposta era a continuidade do STF, que permaneceria como tribunal constitucional, federal e de cassação, com ministros vitalícios. A tese, defendida por Maurício
Corrêa (PDT/DF), apoiava os posicionamentos do próprio
STF, da AMB e do governo, expostos em audiência pública
pelo ministro Sydney Sanches, pelo jurista Milton dos Santos Martins e pelo ministro da Justiça, Paulo Bossard.
Nas subcomissões e comissões da ANC, os resultados
foram distintos. Na subcomissão dos direitos políticos,
dos direitos coletivos e das garantias e na comissão da soberania e dos direitos e garantias do homem, a criação do tribunal das garantias constitucionais e a ampliação das garantias constitucionais – notadamente o mandado de injunção
– prevaleceram em todas as fases.
Por sua vez, na subcomissão do Poder Judiciário e
do Ministério Público, as disputas políticas provocaram
mudanças no curso das votações. O primeiro relatório e
anteprojeto do relator, Plínio de Arruda Sampaio (PT/
SP), adotou o tribunal constitucional, conforme a orientação de seu partido e da OAB42. Para ele, a ampliação
dos direitos e garantias pela nova Constituição implicaria
na criação de um tribunal constitucional cujos membros
tivessem maior inserção política. O STF seria transformado em Tribunal Superior de Justiça e manteria suas outras
42
A subcomissão era assessorada por um grupo de promotores e juízes de São
Paulo, participantes de movimentos associativos (Maciel, 2002). Plínio de Arruda
Sampaio, na entrevista que nos concedeu em 26 de setembro de 2008, relata os
encontros promovidos por ministros do STF com membros da subcomissão. Eros
Grau, na entrevista que nos concedeu em 12 de dezembro de 2008, analisou o
significado político do insulamento institucional do Judiciário.
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atribuições. A proposta também era apoiada pelo líder do
PMDB, Mário Covas (PMDB/SP).
Mas os outros membros da subcomissão não receberam bem a proposta. Apresentaram 28 emendas e as negociações levaram à adoção da formulação de Michel Temer
(PMDB/SP): a criação de uma seção constitucional dentro
do STF43. A seção seria formada por oito ministros, indicados em igual número pelo Executivo e Legislativo Federal.
Haveria outros onze ministros vitalícios, indicados pelo presidente da República, dos quais ao menos quatro seriam
magistrados. A subcomissão aprovou a proposta, derrotando as emendas pela manutenção do STF (14 votos a 5) ou a
criação do tribunal constitucional (18 votos a 1).
O segundo tema polêmico na subcomissão foi o dos
legitimados ativos para propor ADI perante o STF. O governo e o STF entendiam que deveria ser mantida a exclusividade do PGR. Em audiência pública, o ministro da Justiça,
Paulo Bossard, alertou para os perigos de sobrecarregar o
STF com o fácil acesso a uma ação sem custo. A OAB e a
AMB defenderam a legitimidade para qualquer cidadão,
bastando referir-se que era titular do direito. Mesmo constituintes favoráveis ao continuísmo do STF apoiaram a
ampliação parcial da legitimidade ativa.
O relator Plínio de Arruda Sampaio incorporou a
ampliação da legitimidade ativa para ADI nos seus anteprojetos. O primeiro anteprojeto elencou como legitimados o presidente da República, as mesas do Senado, da
Câmara Federal, as assembleias legislativas, as câmaras
municipais, os tribunais superiores e de justiça, os parti-
165
43
Para Michel Temer, o acordo entre os que defendiam a permanência do STF e
os que propunham o tribunal constitucional, manifestou-se no aumento do número dos ministros vitalícios. Dessa maneira, a seção seria formada por oito ministros, indicados em igual número pelo Executivo e Legislativo Federal. Haveria
outros onze ministros vitalícios, indicados pelo presidente da República, dos quais
ao menos quatro seriam magistrados (Brasil, 1987a).
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dos políticos registrados, o conselho federal da OAB e os
promotores-gerais. No segundo, foi incorporada a emenda
de Plínio Martins (PMDB/MS), que incluía os conselhos
seccionais da OAB.
Outro importante instrumento para a eficácia dos
direitos, o mandado de injunção, não entrou na pauta
dessa subcomissão. A “arguição de relevância” nos recursos extraordinários, por meio do qual o STF exerce o
controle de constitucionalidade difuso, foi criticada pela
OAB pelo fato do exame desse pressuposto recursal ocorrer em sessões secretas. Mas não foi incluída no anteprojeto da subcomissão, por se entender que era matéria
regimental do STF44.
Na comissão da organização dos poderes e sistema de
governo foram aprovadas mudanças importantes no anteprojeto que consolidaram a combinação da continuidade
quanto à estrutura do STF e a ampliação do acesso ao controle direto da constitucionalidade de normas, proposta
pela centro-esquerda.
No primeiro anteprojeto do relator Egídio Ferreira
Lima (PMDB/SE), o STF voltou a ter a estrutura então
vigente, sem seção especializada constitucional, composto
por dezesseis ministros com mandato de doze anos, sem
recondução. Também foram modificados os legitimados a
proporem ADI, com o acréscimo do primeiro-ministro45 e
governadores, e com a exclusão da competência dos conselhos seccionais da OAB. O segundo anteprojeto do relator
acrescentou as confederações sindicais. Com as votações dos
destaques de emendas, o anteprojeto final da comissão rece-
44
A discussão voltaria em pauta na reforma do judiciário, quando foi instituído,
obrigatoriamente em sessões públicas e com julgamento motivado, o instituto de
“repercussão geral”.
45
A figura do primeiro-ministro foi acrescida pelo fato de ter o anteprojeto escolhido o parlamentarismo como forma de governo. Essa comissão era a competente
para tal matéria.
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beu mudanças importantes: os ministros do STF passaram a
ser vitalícios e os tribunais superiores e tribunais de justiça
foram excluídos dentre os legitimados ativos para a ADI.
Em audiência pública, participaram nessa comissão
Márcio Thomaz Bastos, representando a OAB, e Sydney Sanches, representando o STF. Bastos mencionou o consenso
entre os advogados a favor da criação da corte constitucional, do controle externo do Poder Judiciário e da motivação
obrigatória das decisões judiciais, particularmente nas decisões do STF acerca da arguição de relevância nos recursos
extraordinários46. Como noticiou a Folha de S. Paulo em 15
de maio de 1987, Sydney Sanches defendeu a preservação
das atribuições do tribunal, com a exclusividade do PGR
para propor ADI47 entre outros pontos. Essas posições eram
sustentadas publicamente por ministros e juristas, como
Néri da Silveira e Leitão de Abreu48.
Na comissão de sistematização49, os dispositivos polêmicos do STF começaram a sofrer modificações, com negociações entre a direção da Constituinte e o STF50. O ministro Oscar Corrêa publica O supremo tribunal federal, corte
constitucional do Brasil, no qual atribuiu a proposta de criação da corte constitucional a críticas injustas ao STF. Fez
também uma ameaça velada ao afirmar que os ministros
eram discretos porque o STF “poderia vir a ter que dirimir”
a controvérsia (Corrêa, 1987, p. VIII). Em 1º. de setembro
de 1987, o Jornal do Brasil noticiou que Antonio Marimoto
pediu o aproveitamento de emenda com 39 mil assinaturas
167
46
Essas manifestações de Bastos foram noticiadas na edição de 7 de maio de 1987
de Gazeta Mercantil e de 19 do mesmo mês de Folha de S. Paulo.
47
Sydney Sanches relatou que o tema foi muito polêmico no STF e sua opinião
particular era pela ampliação da legitimidade ativa para a ADI (Brasil, 1987b).
48
Para essas posições, ver as edições de 16 de maio de 1987 de Gazeta Mercantil e as
de 19 do mesmo mês de Folha de S. Paulo e O Globo.
49
O presidente desta comissão era Afonso Arinos (PFL/RJ) e o relator Bernardo
Cabral (PMDB/AM).
50
Essas negociações foram noticiadas em 10 de julho e 12 de agosto de 1987 em
Folha de S. Paulo e em 24 de junho do mesmo ano em Correio Braziliense.
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para que entidades, assembleias legislativas e partidos políticos pudessem arguir inconstitucionalidade junto ao STF.
No primeiro substitutivo do relator (Cabral 1), o
número de ministros do STF foi reduzido de 16 para
11, número mantido no segundo substitutivo (Cabral 2). O
projeto Cabral 1 incluiu a avocatória, tema polêmico desde a Emenda Constitucional n. 7 de 13 de abril de 1977.
Nelson Jobim (PMDB/RS) apresentou destaque para a eliminação do dispositivo, com o argumento de que se tratava de uma herança do regime militar que servira para
que os ministros do STF, estes escolhidos pelos presidentes
militares, controlassem a magistratura concursada. Michel
Temer (PMDB/SP) acrescentou que a avocatória feria os
princípios federativo e de autonomia do Judiciário, pois,
por meio dela, o STF exercia um controle direto sobre
os tribunais de justiça dos estados. O constituinte Paes
Landim (PFL/PI) defendeu a avocatória, porque o PGR,
de cuja provocação ela dependeria, ganharia a posição de
defensor da sociedade na nova Constituição. A emenda de
eliminação da avocatória foi aprovada por 51 votos a 38. No
projeto Cabral 2, constaram pela primeira vez dispositivos
acerca do mandado de injunção postos nos capítulos das
garantias individuais e do Poder Judiciário. Foi reservada
ao STF a competência originária nas matérias que competem ao presidente da República, a ambas as Casas do Congresso Nacional e outras autoridades federais.
A partir da vitória a respeito da organização do STF,
os políticos e juristas conservadores passaram a combater
outras propostas, como a de criação do STJ e do Conselho
da Magistratura51.
Nas votações da comissão de sistematização tornaram-se
mais claros os enfrentamentos políticos acerca da estrutu51
A esse respeito, ver as edições de 9 de setembro e de 10 de outubro de 1987 de
Jornal do Brasil e as de 06 e 17 de outubro de 1987 de Gazeta Mercantil.
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ra do STF. Os constituintes de centro-esquerda levantaram
dois destaques de emendas. O primeiro, de Nelson Jobim
(PMDB/RS), tinha o tribunal constitucional como modelo
e propunha alterar a composição do STF para 16 membros,
com mandato de oito anos: 5 indicados pelo presidente da
República; 6 pela Câmara Federal e 5 pelo STF. Essas últimas vagas seriam reservadas aos magistrados de carreira52. O
autor considerava necessários ministros temporários dado
que o tribunal era responsável pelo controle concentrado
e pelo controle difuso de constitucionalidade, enquanto os
juízes vitalícios só o exerciam nos países, como os EUA, em
que havia apenas o segundo tipo de controle. José Ignácio
Ferreira (PMDB/ES) apontou o problema de recolocar os
ministros após o fim do mandato, pois não seria razoável que
voltassem a instâncias inferiores ou fossem postos em disponibilidade. A emenda foi rejeitada por 60 votos contra 35354.
O segundo destaque, de Egídio Ferreira Lima
(PMDB/PE), propôs o aumento do número de ministros
para dezesseis. Paes Landim (PFL/PI) afirmou que não
seriam necessários novos ministros, pois a criação do STJ
reduziria as atribuições do STF. O número de ministros
fora aumentado pelos militares com o propósito de manipular as decisões do STF. A emenda foi rejeitada por 56
votos contra 28 e 1 abstenção.
Sobre a competência do STF, houve mais três propostas. Apenas uma delas, a de Bonifácio de Andrada (PDS/
169
52
Os projetos da comissão de sistematização dispunham que a escolha caberia ao
presidente da República.
53
Sobre esse ponto, ver as edições de 04 de novembro de 1987 de Folha de S. Paulo,
Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil e de O Estado de S. Paulo (deste último, ver ainda a
edição do dia seguinte, 5 de novembro).
54
O constituinte Aluízio Campos (PMDB/PB) propôs emenda para a criação de
um tribunal constitucional e a ampliação da legitimidade em ADI para associações comunitárias e pessoas individual ou coletivamente lesadas ou ameaçadas
de lesão por ato ou omissão inconstitucional e por ADI preventiva. Mas a emenda não foi posta em votação porque a Presidência não admitiu a desistência
parcial da proposta, solicitada por seu autor.
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MG), teve votação consensual. O destaque visava suprimir
o parágrafo que atribuía ao STF a possibilidade de determinar o momento de perda de eficácia da norma em tese
declarada inconstitucional, o que implicaria um retorno
ao sistema vigente. A justificação era a separação dos Poderes e que a segurança jurídica seria ofendida se a declaração de nulidade fosse retroativa. Nelson Jobim (PMDB/
RS) e o relator apoiaram a emenda, que foi aprovada por
74 votos a 2.
Dos destaques com votação polarizada, um deles foi de
Nelson Jobim pela supressão da competência do STF para
julgar recurso extraordinário de decisões do STJ, justificando-o pela necessidade de celeridade processual e porque,
se fosse o caso, poderia ser usado o recurso extraordinário
contra decisão que ofendesse a Constituição Federal. Egídio
Ferreira Lima (PMDB/SE) e Paes Landim (PFL/PI) opuseram-se à emenda, por entenderem que ela afastaria do STF
as questões da federação. O destaque foi aprovado por 72
votos contra 19, contra o encaminhamento do relator. O
outro destaque, proposto por Bonifácio de Andrada (PDS/
MG), fixava prazo para, nos casos reconhecidos pelo STF
de inconstitucionalidade por omissão, a autoridade competente editar a norma necessária55. A emenda foi aprovada
por 56 votos a 21.
Os resultados das votações a respeito do Judiciário
foram postos como exemplo pelo editor de O Estado de S.
Paulo, para quem a pressão da comunicação de massa sobre
os parlamentares, “veiculando grande número de doutas
opiniões favoráveis à manutenção do status quo vigente”, foi
55
O projeto Cabral 2 dispunha: “Declarada a inconstitucionalidade por omissão
de medida para tornar efetiva a norma constitucional, será assinado prazo ao órgão do Poder competente para a adoção das providências necessárias”. A emenda
propunha: “Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar
efetiva a norma constitucional, será dada ciência à Mesa do Poder competente
para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em 30 dias”.
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a razão da vitória do STF na comissão de sistematização.
O exemplo deveria ser copiado para outros temas: pressionar os representantes para mostrar-lhes que a opinião
pública “espera deles a elaboração e a promulgação de
uma Carta moderna”, voltada ao futuro, mas “afeiçoada à
índole e às tradições do povo a que se destina”. Ou seja,
deveria implantar um regime que consagre a liberdade
sem prejuízo da ordem56.
Em plenário, após acordo de lideranças57, foi aprovada a emenda substitutiva do “Centrão” sobre o Poder Judiciário, com 359 votos contra 10 e quatro abstenções. Essa
emenda trouxe algumas mudanças em relação ao Projeto
de Constituição “A”. Uma delas foi a necessidade de aprovação por maioria absoluta, no Senado Federal, do nome
indicado para ministro do STF pelo presidente da República. A outra alteração foi o acréscimo das entidades de classe de âmbito federal como parte legitimada para a ADI. A
emenda também trouxe de volta ao STF a avocatória.
Após a aprovação da emenda do Centrão, passou-se à
votação, em primeiro turno, dos destaques de emendas e
dos Destaques para Votação em Separado (DVS)58. Os destaques sobre o STF trataram de sua estrutura, da nomeação de seus ministros e de sua competência. Poucas dessas
emendas tiveram acordo de lideranças para votação, diferentemente de outros temas (Pilatti, 2008; Freitas, 2012).
Sobre a estrutura do STF, foi votado o destaque proposto por Jorge Hage (PMDB/BA), Nelson Friedrich
(PMDB/PR) e Anna Maria Rattes (PMDB/RJ) à emenda
de Uldorico Pinto (PMDB/BA), que propunha um tri-
171
56
As citações deste parágrafo foram retiradas do editorial da edição de 5 de novembro de 1987 de O Estado de S. Paulo.
57
Manifestaram-se nesse sentido: pelo PFL, Inocêncio Oliveira (PFL/PE); pelo
PDT, Vivaldo Barbosa (PDT/RJ); pelo PMDB, Robson Marinho (PMDB/SP); pelo
PTB, Gastone Righi (PTB/SP).
58
Segundo o DVS, a matéria destacada, para permanecer no texto do projeto constitucional, deveria receber ao menos 280 votos.
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bunal constitucional, com 16 ministros, com mandato de
oito anos: 2 indicados pelo Senado, 2 pela Câmara dos
Deputados, 4 pelo Conselho Nacional da Magistratura, 2
pela OAB, 2 pelo Ministério Público e 4 pelo chefe do Executivo. A emenda também propunha a suspensão de lei
inconstitucional a partir de sua decretação pelo STF, mas
foi rejeitada por 130 a 263 votos59.
Sobre os requisitos para a nomeação dos ministros,
foram votados dois destaques de emendas, ambos rejeitados. O primeiro, proposto por Nelson Jobim (PMDB/RS)
e Artur da Távora (PMDB/RJ), à emenda proposta pelo
primeiro, dispunha sobre a aprovação por dois terços do
Senado Federal das indicações dos ministros do STF, não
vitalícios, feitas pelo presidente da República, pela Câmara
dos Deputados e pelo STF. A emenda foi rejeitada por 232
votos a 196 e três abstenções.
A respeito dos critérios de nomeação, o outro destaque de emenda proposto por Miro Teixeira (PMDB/RJ)
à emenda de Plínio de Arruda Sampaio (PT/SP), propunha mandatos de doze anos para os ministros do STF,
excluindo, pois, a vitaliciedade. Para Aloysio Chaves (PFL/
PA), que encaminhou contrariamente ao destaque, havia
direta relação entre o sistema de governo e a vitaliciedade
dos ministros da mais alta corte: em regimes presidencialistas havia a necessidade de um Poder Judiciário forte e
com juízes vitalícios, garantia essencial da magistratura. A
emenda, rejeitada, recebeu 229 votos contrários, 162 favoráveis e três abstenções.
Os destaques de emenda acerca da competência do
STF foram em maior número: dos 5 destaques propostos,
2 tratavam de DVS: os de Plínio de Arruda Sampaio (PT/
SP), sobre a avocatória do STF, e o de Oscar Corrêa (PFL/
Votação noticiada nas edições de 7 de abril de 1988 dos jornais Folha de S. Paulo,
Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo.
59
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MG), que transferia a avocatória do STF para o STJ60, após
ter sido derrubada a avocatória do STF. O DVS de Plínio
Arruda Sampaio não obteve os 280 votos necessários para
permanecer no texto, recebendo 249 votos a favor e 176
votos contrários e 5 abstenções. O DVS proposto por Oscar
Côrrea, o qual teve encaminhamento contrário do relator,
ou seja, no sentido de não passar a competência da avocatória do STJ para o STF, também foi rejeitado (por não
alcançar 280 votos) com 255 votos contrários, 179 favoráveis e 12 abstenções.
Dos três destaques de emendas acerca da competência do STF, um deles era a fusão de emendas de Mário
Lima (PMDB/BA), Paulo Pimentel (PFL/PR), Messias
Góis (PF/SE), Ricardo Fiúza (PFL/PE), Walmor de Luca
(PMDB/SC) e Paulo Ramos (PMDB/RJ). A fusão propunha suprimir o inciso que atribuía competência originária
ao STF para a interpretação de lei ou ato federal e incluí-lo na competência originária do STJ. O destaque foi rejeitado. Outro, proposto por Maurício Corrêa, previa que o
STF fixaria o momento que a lei declarada inconstitucional perderia eficácia. Foi rejeitado por 249 votos a 182.
Somente o destaque de Jovanni Masini (PMDB/PR), para
voltar inciso sobre a competência do STF, inserido no Projeto de Constituição “A” e ausente na emenda do Centrão,
foi negociado entre as lideranças e aprovado por 338 votos
contra 1 e 3 abstenções61.
No segundo turno, o Projeto de Constituição B foi
aprovado por consenso, ressalvados os destaques. Só seriam
173
O artigo dizia: “Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I - processar e julgar,
originalmente: [...] g) as causas sujeitas a sua jurisdição, cuja avocação deferir, a
pedido do Procurador-Geral da República, quando ocorrer imediato perigo de
grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas, para que sejam
suspensos os efeitos da decisão proferida”.
61
O inciso dispunha sobre a competência originária do STF para “As causas e os
conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal ou entre esses e
outros inclusive as respectivas entidades da Administração direta”.
60
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admitidas emendas supressivas ou corretivas, e a aprovação destas deveria contar com 280 votos. Mas os destaques
foram previamente acordados, o que tornou as votações
muito pouco polarizadas. Como noticiou o jornal Folha de
S. Paulo em 26 de agosto, a avocatória foi suprimida, por
consenso, com 350 votos a favor. O Projeto de Constituição
C foi enviado para a comissão de redação e o texto final da
Constituição foi aprovado em 22 de setembro de 1988, em
turno único e votação global.
Desse modo, o substitutivo do Centrão aprovado em
primeiro turno foi mantido pela rejeição das emendas de
centro-esquerda que procuravam modificar a composição
e as atribuições do STF. A supressão da avocatória foi a
única modificação relevante introduzida pelas votações
em plenário.
Novas batalhas: o STF e a Constituição de 1988
174
Às vésperas da promulgação, eram grandes as incertezas
sobre a finalização dos trabalhos, os impactos das novas
normas e a fidelidade dos dirigentes às inovações da nova
Constituição. Os ministros do STF estavam no centro dessa incerteza, agentes da ordem constituída que participaram dos esforços para frear a Constituinte e que agora
interpretariam o texto constitucional. Eles voltam a atuar
como opinantes constitucionais, ao assumir o ponto de vista
de juízes que examinam as dificuldades da aplicação do
texto. Antes da aprovação do texto final, expressam suas
opiniões em declarações à imprensa, seminários62 e eventos promovidos pelo próprio STF63.
62
O II°. Fórum Jurídico “A Constituição Brasileira”, foi realizado entre 19 e 21
de setembro de 1988 e organizado pela Federação do Comércio Minas Gerais, a
Fundação Dom Cabral e a Academia Internacional de Direito e Economia (VVAA,
1988). Outro fórum jurídico foi organizado pelas mesmas entidades em 1989-1990
e publicado em [S.D.] (1990).
63
Sessão de comemoração dos 160 anos do STF em 20 de setembro de 1988, publicada em Ministério da Justiça (1988).
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Políticos e juristas assumem duas atitudes contrapostas
com relação à nova Constituição: de crítica, por conta dos
efeitos desta sobre a governabilidade do país, ou de otimismo moderado quanto aos potenciais de sua aplicação. Pela
tônica nos direitos sociais, nas regras a respeito da ordem
econômica e nas novas garantias constitucionais, os críticos
consideravam a nova Constituição inviável. Os constituintes
teriam sido marcados pelo voluntarismo – inconsciente ou
mal-intencionado –, ao tentar promover mudanças legais
que produziriam inevitáveis efeitos perversos: a ineficácia
do texto, conflitos sociais e a crise do Judiciário. A entrada
em vigor da nova Constituição traria riscos para a segurança
jurídica, devido ao “vácuo jurídico” criado pela revogação
imediata das normas vigentes; sem as leis necessárias para
dar eficácia às normas constitucionais, estas imporiam efeitos deficitários para orçamento público e custos econômicos
para as empresas, o que trataria risco de queda dos investimentos e de conflito social, decorrente da frustração das
expectativas da população alimentadas demagogicamente
pelos constituintes (VVAA, 1988)64. Para Moreira Alves, a
aplicação da Constituição traria “grandes problemas” ao
país por ser “muito inovadora” e exigiria muito esforço do
Judiciário para tornar o texto constitucional viável65.
Esses juristas conservadores exploravam as inconsistências do texto constitucional até que estas se tornassem contradições normativas, idealizações conceituais irrealistas ou
problemas práticos insolúveis. Concluíam com prognósticos
pessimistas sobre a nova ordem constitucional e, dada a descrença que tinham no Congresso, apostavam no trabalho
dos juristas para resolver as dificuldades de interpretação
ou “aparar as arestas” do texto, estimulando uma espécie de
175
64
A esse respeito, ver as edições de 9 de agosto de 1988 dos jornais Folha de S. Paulo, Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo.
65
Conforme noticiado em 20 de setembro de 1988 pelas edições dos jornais Gazeta
Mercantil e O Estado de S. Paulo.
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176
revanche da razão jurídica contra o voluntarismo dos constituintes. Outra aposta era na remoção dos obstáculos pela
revisão constitucional de 1993. Essas eram as análises de Ives
Gandra, Celso Bastos, Oscar Corrêa e Moreira Alves no II°.
Fórum Jurídico de Belo Horizonte (VVAA, 1988)66.
A respeito do STF, Moreira Alves, Oscar Dias Corrêa e Djaci
Falcão, adotando uma perspectiva de continuidade, retomavam a agenda anterior à Constituinte, a partir da qual viam
como negativas as inovações, tanto no que foi criado quanto
eliminado pela Constituição, e prognosticavam o aprofundamento da crise do tribunal (Ministério da Justiça, 1988).
Outros assumiam uma postura mais otimista. Para Rafael
Mayer, presidente do STF, o trabalho dos constituintes
tinha legitimidade e não havia “nada de tão exagerado que
possa pôr em perigo um país”; o STF estava preparado para
o aumento no volume de trabalho numa fase de reordenamento jurídico, na qual toda a legislação contrária à nova
Constituição seria revogada. Segundo ele, tratava-se de um
fenômeno comum em todo o ordenamento que se inicia e,
pois, não haveria propriamente “um vácuo”67.
A apreciação era compartilhada por Aldir Passarinho,
Néri da Silveira e Francisco Rezek. Outros ministros eram
menos claros. Célio Borja adotava a perspectiva da continuidade das duas ordens constitucionais. Esperava que, na
apreciação das ações de inconstitucionalidade, o STF viesse
a fazer uma interpretação mais constante e mais dinâmica da
Constituição. A ampliação do acesso à ação direta de inconstitucionalidade permitiria isso, pois não se dependia mais
da iniciativa do PGR. Haveria, então, maior presença político-constitucional do STF. Em seminários, Sydney Sanches
apenas expunha os artigos da nova Constituição, sem
66
A esse respeito, ver as edições de 9 de agosto de 1988 dos jornais, Folha de S. Paulo, Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo.
67
Declarações noticiadas nas edições de 16 de agosto, 2 e 10 de setembro de 1988
de Gazeta Mercantil e de 13 de agosto de 1988 de Folha de S. Paulo.
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comentários além da responsabilidade acrescida aos juízes68
(Carneiro, 1988; VVAA, 1988; Ministério da Justiça, 1988).
O otimismo moderado era compartilhado entre progressistas e liberais conservadores. Afonso Arinos (PFL/
RJ) refutava o argumento de que seriam necessárias leis
ordinárias para a aplicação dos direitos individuais previstos na Constituição. Os ministros do STF saberiam retirar
da Constituição os elementos necessários à eficácia desta
(Carneiro, 1988)69.
Ministros do STF e juristas, conservadores ou progressistas, passavam a afirmar que dispositivos da Constituição
não poderiam ter aplicação imediata, a depender de lei. Em
primeiro lugar, estavam a fixação da taxa de juros em 12%
e do valor do salário mínimo; o mandado de injunção; o
habeas data e os instrumentos coletivos70.
Os ministros do STF fizeram reuniões reservadas com os
dirigentes de outros tribunais para definir como aplicariam
os dispositivos controvertidos71. Temiam uma avalanche de
processos e as implicações de suas decisões. Em 6 de outubro, o STF decidiu que os mandados de injunção enviados
à corte seriam aceitos, protocolados e distribuídos, mas ficariam parados à espera de lei do Congresso Nacional. Para
os pedidos de habeas data, teriam como requisito a prova
de que a informação foi solicitada e não foi fornecida pelo
órgão competente. Em 19 de outubro, o STF indeferiu por
177
68
Comentários noticiados na edição de 4 de outubro de 1988 de Jornal de Brasília.
Não foram encontradas publicações de outros ministros, como Octavio Gallotti e
Carlos Madeira, no período.
69
Ver também a edição de 21 de setembro de 1988 de O Estado de S. Paulo.
70
Conforme noticiado pelas edições de 20 de setembro de 1988 de Gazeta Mercantil
e de O Estado de S. Paulo.
71
Um importante consenso dos ministros para a aplicação seletiva da Constituição
era a propugnada “interpretação flexível” da competência do Senado para suspender a execução de normas declaradas inconstitucionais pelo STF, de modo a não
compreender as decisões em ADI. Apesar de as proposições nesse sentido terem
sido derrotadas na ANC, os ministros ressuscitavam decisão do STF no Processo
Administrativo n. 4477, de 1972 (AMJ, 1988, pp. 28-9, 53-4).
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unanimidade a medida cautelar pedida pelo PDT contra o
despacho presidencial, que aprovou parecer do consultor-geral da República, Saulo Ramos72.
Em aliança com os conservadores, ministros do STF e
juízes foram bem-sucedidos em preservar o STF com muitos
poderes concentrados e papéis institucionais acumulados,
e em fortalecer o Poder Judiciário, acentuando seu insulamento institucional, sem controles ou participação externos. No pós-constituinte, os juízes passariam a inocular em
seus julgamentos as inovações políticas e sociais trazidas
pela nova Constituição. Julgavam segundo suas convicções,
ao mesmo tempo que retribuíam os apoios recebidos, no
momento que se iniciavam novas batalhas pela expansão e
efetividade dos direitos.
***
178
Foram analisadas as relações entre ministros do STF
e outros agentes políticos durante o processo constituinte
em duas perspectivas: o STF como objeto das deliberações
constitucionais e como instância normativa da ordem vigente, produtora do significado jurídico dos conflitos políticos
sobre o processo constituinte.
No período anterior à instalação da ANC, o STF começou a ser utilizado como recurso estratégico por políticos
de direita e centro-direita de modo a limitar as bases e o
escopo da futura Constituinte. Os ministros do STF manifestaram suas opiniões sobre o tema em confluência com
os políticos de centro à direita, ao apresentarem reservas
ou críticas à mudança constitucional, enquanto cerravam
72
A esse respeito, ver edições de 29 de setembro e 7 de outubro de 1988 de Gazeta Mercantil; de 28 de setembro de 1988 de Correio Braziliense; de 4 de outubro
de 1988 de O Estado de S. Paulo; de 29 de setembro e 9 de outubro de 1988 de O
Globo; de 8 de outubro de 1988 de Jornal do Brasil e de 10 de outubro de 1988 de
Folha de S. Paulo.
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suas fileiras para a manutenção do STF e o fortalecimento
institucional do Judiciário.
Durante os trabalhos da ANC, o STF foi mobilizado
pelos conservadores nos principais conflitos: a respeito das
relações entre a Constituinte e os poderes constituídos;
das regras internas da ANC e da duração do mandato do
presidente Sarney. Os ministros do STF por vezes manifestaram-se como opinantes constitucionais a respeito de temas
em discussão na ANC e tiveram intensa atuação junto aos
constituintes como representantes institucionais do Poder
Judiciário para evitar decisões desfavoráveis. Essa atuação
foi em grande parte bem-sucedida, pois foi mantida a posição institucional do STF como cúpula do Poder Judiciário
e como representante de um dos poderes da República, a
forma de organização do tribunal, com ministros vitalícios,
nomeados pelo presidente da República com aprovação
do Senado e sem vagas reservadas aos juízes de carreira.
Sobre suas atribuições, os ministros do STF tiveram sucesso
parcial, por um lado, ao se manter a combinação de instrumentos de controle concentrado e de controle difuso da
constitucionalidade de normas, com acesso parcialmente
ampliado, e, ainda, a não previsão do controle concentrado da legalidade de atos do Executivo. Porém, contrariando a posição desses ministros e acolhendo as demandas de
entidades e associações de juristas, a Constituinte decidiu
pela criação do STJ com poderes de garantir leis federais e
de uniformização da jurisprudência e pela eliminação dos
principais instrumentos de concentração de poderes no tribunal, criados pelo regime militar: a avocatória, a interpretação de lei em tese, a arguição de relevância e o Conselho
da Magistratura. Enfim, contrariando posições mais gerais
entre os conservadores, ampliou a gama de direitos fundamentais e criou novas garantias para sua eficácia.
Nesse período, o STF foi provocado como arena decisória para se manifestar sobre os fundamentos constitucio-
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nais da Constituinte, em processos que tiveram os temas
polêmicos como objeto e em ações contra decisões da Mesa
da ANC. Outros casos foram dirigidos a temas correlatos,
para cuja resolução o STF teria de se posicionar sobre as
questões constitucionais fundamentais, como ocorreu em
alguns casos contra a Mesa e nos processos movidos contra os membros da Constituinte. O STF se manteve unido
nesses casos, pois, em decisões unânimes, evitou intervir
nas decisões da Mesa da ANC, mantendo-se à distância das
deliberações constitucionais. Porém, em processos contra
constituintes, num caso de abertura de processo por crime
contra a honra, o STF decidiu sobre o caráter derivado da
Constituinte e afirmou seu poder de examinar as decisões
da ANC. Essa decisão foi tomada num momento significativo, em que se iniciavam os embates na Comissão de Sistematização sobre o sistema de governo e a duração do mandato do presidente.
No final do processo constituinte, os ministros atuaram
como opinantes constitucionais, uma parte deles aliada a
conservadores que faziam prognósticos apocalípticos sobre
os efeitos da nova Constituição e que estariam na linha de
frente das reformas neoliberais nos anos seguintes. Outros
ministros adotaram um otimismo moderado e os demais,
uma atitude discreta. Mas concordavam com os conservadores sobre a não aplicação de algumas disposições constitucionais substantivas. No momento que antecede a promulgação da Constituição, o STF coordena sua ação com os
dirigentes dos tribunais sobre a forma de interpretar os dispositivos polêmicos, como o mandado de injunção e o habeas data, limitando a sua eficácia imediata. Assim, sua pré-compreensão da Constituição de 1988 caracteriza-se pela
perspectiva da continuidade política com o regime anterior, bem como a preocupação com a estabilidade social e a
governabilidade diante dos novos direitos e garantias e da
redefinição dos poderes governamentais.
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Enfim, a mobilização dos ministros para manter o
STF tal como existia e para bloquear outras inovações na
Constituinte pode ser entendida, por um lado, como parte da estratégia geral dos conservadores em manter intacta
a estrutura institucional existente e, assim, assegurar que a
ANC não ultrapassaria os limites de uma revisão constitucional. À medida que não houvesse a reorganização política
fundamental dos poderes constituídos, o caráter derivado e
limitado da Constituinte seria implicitamente confirmado.
A preservação do STF era a da própria ordem constitucional
moribunda de que era o intérprete supremo. Assim, a própria insistência dos ministros na manutenção institucional
do STF expressava sua aliança com os conservadores. Por
outro lado, o apoio dos conservadores à demanda dos ministros pela preservação do STF resultava da intenção destes de
frear as mudanças na Constituinte e era a contrapartida ao
apoio dos ministros à agenda que defendiam, especialmente
no que concernia ao reiterado uso estratégico que faziam do
STF para bloquear decisões que consideravam indesejáveis
por parte da ANC.
A transição brasileira é marcada pela capacidade dos
dirigentes do regime e os militares de limitarem o andamento e o alcance da redemocratização; pela permanência dos
quadros do regime em instâncias decisórias cruciais do Estado e pela renovação da aliança entre aqueles, políticos conservadores e empresariado ao longo do processo. A Constituinte é um momento crucial na transição, no que se faz
a ruptura simbólica ao se inaugurar uma nova ordem e ser
inovadora em matéria de direitos e organização democrática do Estado, mas também carrega as marcas do conservadorismo e do autoritarismo político. Essa combinação está
presente nas instituições judiciais, para a qual os juristas atuaram em aliança com todas as correntes políticas, enquanto
os ministros do STF e dirigentes de tribunais aliaram-se com
políticos de direita aos de centro.
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O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo
Andrei Koerner
é professor de ciência política na Unicamp, coordenador
do GPD/Ceipoc e pesquisador do Cedec e do INCT/Ineu.
Lígia Barros de Freitas
é doutora em ciência política e pesquisadora do GPD/Ceipoc e do Datapol-UFSCar.
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Processo constituinte e
arranjo federativo*
Jefferson O. Goulart
Comecemos por um enunciado amplamente aceito, para
não dizer axiomático: a Carta de 1988 é a mais avançada das
constituições republicanas brasileiras, tanto pela consagração de dispositivos democráticos quanto pela afirmação dos
direitos de cidadania. Ademais, edificou uma ordem federativa notabilizada pelo fortalecimento dos níveis subnacionais
de governo, cujas prerrogativas (e receitas) foram significativamente ampliadas. O consenso genérico, entretanto, não
deve obscurecer o fato de que ainda há muitas questões a
serem investigadas em relação ao processo constituinte em
geral e ao arranjo federativo dele resultante, em particular.
A dinâmica da constituinte não pode ser reduzida a sua
dimensão jurídica, pois é pautada por ritmos e interesses de
*
Versão original deste texto foi apresentada no V Congreso Latinoamericano de
Ciencia Política, organizado pela Asociación Latinoamericana de Ciencia Política,
realizado em Buenos Aires, de 28 a 30 de julho de 2010, e é resultado parcial da
pesquisa “Em busca do processo constituinte: 1985-1988”, desenvolvida no Centro
de Estudos de Cultura Contemporânea com apoio do CNPq. O autor é especialmente grato a Brasilio Sallum Júnior. por seus valiosos comentários, os quais atenuaram as imperfeições e insuficiências do artigo.
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Processo constituinte e arranjo federativo
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natureza política. Se, com efeito, a nova lei amplia direitos
individuais e coletivos, é também verdade que eles carregam a marca de seu tempo. Nessa perspectiva, em contraste com o positivismo do direito público mais tradicional, o
arcabouço constitucional é tomado como eminentemente político, na medida em que exprime os jogos e as relações de poder entre atores institucionais (Bercovici, 2008).
Ou seja, se é lícito supor que “só o direito pode limitar o
poder”, é igualmente válido afirmar que “só o poder pode
criar o direito” (Bobbio, 1986, p. 13).
Comparada às Constituições precedentes – as de 1946
e 1967, além da emenda de 1969 – a de 1988 revela-se, de
fato, avançada. Por outro lado, revela-se também curiosamente relegada após sua promulgação. Com a notável exceção de Ulysses Guimarães – que a transformou em plataforma eleitoral na frustrada disputa presidencial de 1989 –, ela
deixou de ser invocada como referência político-institucional chave pelas diferentes posições ideológicas.
Os exemplos dessa relativa renúncia são abundantes. À
direita, os conservadores condenaram o conteúdo excessivamente “detalhado” (supostamente matéria infraconstitucional), resistiram às conquistas sociais e desde sempre advogaram pela reforma constitucional sob o propósito de promover
ajustes e “flexibilizações”. A contrariedade com as inovações
constitucionais e as bases para afirmação de sua legitimidade foram anunciadas antes mesmo do início dos trabalhos,
assumindo a forma de contestação jurídica segundo a qual a
Assembleia seria apenas uma fonte de poder derivada, limitada por seu próprio ato convocatório: “estabelecida a premissa
de que a Assembleia Nacional Constituinte exerce poderes
constituintes secundários ou derivados, cumpre assinalar que
sofrem, eles, a incidência de certas restrições, que limitam sua
prática” (Ramos, 1987, p. 57). Essa argumentação doutrinária, bem se sabe, tinha como objetivo político primário assegurar o mandato integral do presidente Sarney.
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À esquerda, mesmo subscrevendo a constituição, o PT
fez ressalvas e votou contrariamente ao projeto global, sob
o argumento de que seus avanços eram tímidos1. Ao centro, o
antigo núcleo progressista do PMDB (origem do futuro
PSDB) uma vez no governo e mediante inflexão liberista promoveu reformas – na esfera social e, sobretudo, na
ordem econômica – que desfiguraram muitas das conquistas que ajudou a escrever e que antes unificavam a agenda
das oposições de centro-esquerda.
Ainda que a polarização ideológica entre progressistas
e conservadores tenha grande valor explicativo no cômputo geral e especialmente para as acirradas disputas de
ordem econômica (Pilatti, 2008), tal síntese sobre a dinâmica constituinte não dá conta de suas múltiplas dimensões e conflitos. Outras posições devem ser consideradas nesse mosaico. Do contrário, não é possível explicar
adequadamente o retrocesso em relação à reforma agrária (inseparável da grande mobilização liderada pela
União Democrática Ruralista), a ativa presença de atores
extrainstitucionais nesse processo decisório e outros resultados surpreendentes.
Enfim, é imperativo alargar o escopo analítico. Modelos explicativos herméticos oferecem pouca ajuda e não
vão além de fórmulas viciadas, cujas respostas são formuladas ex ante. No escopo das questões federativas, por
exemplo, não haveria espaço para problematizar a descentralização ou a assunção de prerrogativas pelos municípios, porque supostamente tais questões não integram
o repertório do federalismo original preconizado por
187
1
Por ocasião da votação do projeto final, Luiz Inácio Lula da Silva (1988, pp.
14313-4), então deputado e líder do partido, fez pronunciamento no qual argumentava que o PT “não trazia nenhuma ilusão de que poderia, através da Constituição, resolver todos os problemas da sociedade brasileira” e que “houve avanços,
é claro, mas muito aquém dos esperados. Entramos aqui defendendo uma jornada
de 40 horas semanais, ficamos com 44 horas, queríamos o dobro de férias, conseguimos apenas 1/3 a mais”.
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Madison, Jay e Hamilton – restrito às relações entre União
e estados e seus correspondentes freios e contrapesos. Instituições importam, mas é indispensável compreender por
quem e em quais circunstâncias foram engendradas. Regras
do jogo são determinantes, assim como os atores e seus
cálculos, que produzem essas mesmas instituições, mas o
contexto histórico-político e a ação política e social não
são variáveis desprezíveis.
Sem pretensão de formular um novo modelo analítico
ou de realizar uma exegese teórico-metodológica – mesmo
porque este ensaio tem caráter limitado e assumidamente
provisório –, tomamos como hipótese que uma abordagem
estritamente institucionalista é insuficiente para oferecer
explicações conclusivas sobre o processo constitucional.
A Constituição de 1988 não poderá ser compreendida adequadamente se não for inserida no contexto da
transição brasileira, ou seja, ela se inscreve em um processo de influências recíprocas em que a democratização
da sociedade e a mudança de regime político transcorrem de modo a influírem e a serem influenciados pelo
processo constitucional. Daí que uma análise criteriosa
precise necessariamente apreender o escopo e a complexidade de seu objeto. Em outras palavras, tomar as partes
(no caso, a questão federativa) em sintonia com o todo
(o processo constituinte), para então identificar relações
de interdependência entre elas e eventuais originalidades
da matéria. Esse percurso analítico abre possibilidades de
redefinição de enfoques de modo a oferecer explicações
convincentes sobre o geral e o particular, ou, pelo menos,
sobre alguns de seus aspectos.
O ensaio será desenvolvido em três etapas. Primeiramente, será problematizada a relação entre transição e processo constituinte. Em seguida, serão discutidas questões
relativas ao escopo federativo. Ao final, algumas pistas e
hipóteses explicativas preliminares.
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Transição, crise de hegemonia e processo constituinte
A transição sugere um componente valorativo subjacente,
isto é, supõe ritos de passagem com resultados predeterminados que obrigatoriamente implicariam a superação
do regime autoritário precedente e um ponto de chegada
necessariamente democrático. Mas a “democracia consolidada é apenas uma das possíveis consequências do colapso
de regimes autoritários” (Przeworski, 1994, p. 60). A advertência é duplamente valiosa: tanto porque desautoriza concepções deterministas da história, quanto porque repõe
desafios clássicos do pensamento político, dentre os quais
o estabelecimento de uma ordem razoavelmente estável
e amplamente aceita entre governantes e governados, ou
seja, um ordenamento legítimo.
No caso brasileiro, a literatura já demonstrou fartamente que os militares se dividiam basicamente em dois
campos: o primeiro, mais duro, defensor do endurecimento e da manutenção sine die do regime; o segundo, mais
moderado, que advogava a tese de sua progressiva institucionalização com manutenção da tutela fardada, controle
de áreas estratégicas do Estado e algum grau de partilha
do poder com as elites civis – linha sagrada vitoriosa com
a ascensão do presidente Geisel e do grupo castelista, ainda que não sem tensões. Mas como a história comporta o
acaso e a indeterminação, a transição assumiu contornos
complexos e imprevistos. Assim se estabelece “a dialética
da concessão, por parte do regime, e da conquista, por
parte da sociedade” (Stepan, 1986, p. 57). Inviabilizou-se,
inclusive, a distensão lenta, gradual e segura, cujos objetivos e desfechos não foram acordados: nem entre os próprios militares (sobretudo os setores instalados na comunidade de informações e nas instituições repressivas); nem
entre eles e a oposição política, que não aceitou seus limites; tampouco com a sociedade civil, que protagonizou
agitações singulares, como as que deram origem ao novo
189
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sindicalismo e ao maior movimento político-civil da história do país, a campanha “Diretas já”.
A partir da tipologia desenvolvida por G. O’Donnell e P.
Schmitter, e resgatada por Przeworski (1994), podemos sintetizar esquematicamente o desfecho da transição brasileira como o triunfo de um pacto entre posições moderadas:
um acordo que isola os “linhas-duras” do bloco autoritário
e das oposições para celebrar arranjos e instituições preconizados por “reformistas” de ambos os campos. Tal desenho
retrata com razoável fidelidade a trajetória brasileira e seu
momento decisivo (mas não último) representado pela
Aliança Democrática, consórcio que reuniu os dissidentes
do regime sob a forma da Frente Liberal e do PMDB, sob a
liderança do igualmente moderado Tancredo Neves.
Nessas circunstâncias, as ideias de um novo pacto e de
um novo sistema político ganham força no interior do regime militar, cuja erosão ganhou feição definitiva com o deslocamento de uma parte de sua antiga base de sustentação
parlamentar na disputa sucessória de 1984. Assim, o ritmo e
a correlação de forças da transição levaram à crescente aceitação da tese de uma nova Constituição – antes bandeira
quase privativa das oposições política e civil2. Nesses termos,
com destaque para a capacidade de organização e mobilização da sociedade civil, podemos incorporar a noção de que
a liberalização fugiu ao controle do regime militar e passou a
significar democratização (Sallum Jr., 1996).
O argumento merece ênfase: ainda em curso e sem
um desfecho definido, a transição marcará o ritmo e o
tom do processo constituinte, não só porque comporta
enorme multiplicidade de atores em disputa pela imposi2
Depois de um ciclo inicial mais frouxo, o regime autoritário brasileiro se distingue
pela alta institucionalização, o que certamente tornou a transição mais complexa,
inclusive do ponto de vista jurídico. Essa característica indica que, também no interior do regime, havia vozes em defesa de uma nova ordem constitucional, porém, a
bandeira de uma nova constituição democrática é basicamente oposicionista.
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ção de seus interesses (Executivo, Forças Armadas, governos subnacionais, partidos políticos, sociedade civil em
suas mais contraditórias formas de expressão), mas também porque a agenda constitucional não se circunscreve
à substituição de um regime político ou à correspondente
formatação jurídico-constitucional.
A agenda constitucional é complexa e multifacetada,
na medida em que versa sobre o modelo de Estado (tanto no sentido político, que se impõe pelas exigências do
Estado de Direito, quanto no econômico, que envolve as
estratégias de desenvolvimento) e todas as definições daí
decorrentes. Ademais, “assembleias constituintes são meios
preventivos para limitar e controlar o poder, preparando a
sociedade para a mudança política por meio de uma moldura jurídica, exatamente para evitar a ruptura revolucionária” (Faoro, 2007, p. 182). Tomando o argumento ao pé
da letra, o processo constitucional enseja uma pactuação
de alta complexidade, cujo objetivo consiste precisamente
em impedir uma solução de ruptura para a transição. Busca-se, então, a autoridade baseada na legitimidade, ou seja, uma
ordem legítima que supõe consentimento.
Mesmo que uma nova constituição tenda a assumir um
caráter fundacional, no sentido de que promova algum grau
de rompimento, anuncie um novo ordenamento e sintetize
a superação da antiga ordem – porque envolve soberania,
autodeterminação e a noção normativa de contrato (Faoro,
2007) –, há fortes razões para sustentar que nossa transição
só se completou na década de 1990, por ocasião da implantação do Plano Real e do governo de Fernando Henrique
Cardoso. Emerge, ali, uma nova hegemonia, que, para se
consumar, promove novas mudanças constitucionais. Expliquemos melhor:
191
A gestão FHC imprimiu um forte ritmo de reformas
porque identificou a raiz do problema da instabilidade
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econômica no Estado e, também, porque foi capaz
de tornar seu ideário liberalizante hegemônico na
sociedade, com correspondente maioria no Parlamento.
Tal prevalência de valores traduziu-se em reorganizar
o Estado, conjugando interesses os mais diversificados
que, para além dos benefícios alcançados através da
estabilidade, reuniram num mesmo lado o grande
empresariado do sistema financeiro e expressivos
segmentos do setor produtivo, amplas parcelas dos
desorganizados de baixo, assalariados e boa porção das
classes médias, a maior parte da mídia, investidores
internacionais etc. (Goulart, 2002, pp. 41-2).
192
O processo constituinte reorienta e reorganiza os
rumos da transição não apenas pelos resultados que
produz em termos institucionais, mas também porque promove realinhamentos políticos, redefine a correlação de
forças e a agenda do país. Ademais, “a nova ‘institucionalidade’ produzida pela Constituinte gerou dificuldades
adicionais para a finalização da transição política” (Sallum
Jr., 1996, p. 156), vale dizer, impasses jurídicos, políticos
e socioeconômicos, cuja resolução implicaria a existência
de uma nova hegemonia capaz de superá-los. Portanto, o
segundo aspecto distintivo da transição que incide decisivamente na dinâmica dos trabalhos constituintes diz respeito
à carência de um projeto hegemônico.
Os anos de 1980 são marcantes sob vários aspectos:
i) cenário econômico profundamente modificado a partir dos efeitos deletérios das crises do petróleo, na década
anterior, e da recessão que se instala na América Latina;
ii) mudanças mundiais que incidem diretamente sobre o
desempenho das economias da periferia do capitalismo,
seja no nível da (in)disponibilidade do fluxo de capitais, seja
no plano da competitividade, enfraquecendo-as ainda
mais; iii) crescente enfraquecimento político do regime
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militar, tendência agudizada no pleito de 1982 com a perda de maioria do PDS no Congresso Nacional e a eleição
de governadores de partidos de oposição nos principais
estados da federação (SP, RJ e MG); iv) simultaneamente
à crise do regime político, sinais de esgotamento do modelo desenvolvimentista de Estado que impulsionou o país
e, que, no essencial, não só não foi alterado como, sofreu
aperfeiçoamentos durante o regime militar.
Essa conjunção de fatores fracionou decisivamente o
regime, além de impor obstáculos gigantescos à governabilidade do governo civil instalado em 1985. Tais dificuldades
são essenciais para se compreender, de um lado, o insucesso dos planos de ajuste e das políticas macroeconômicas
e, de outro, a fragilidade política do governo da Aliança
Democrática, conduzido por José Sarney. Tentativas de
retomar o caminho do desenvolvimento se frustraram basicamente porque se assentaram sobre as mesmas bases do
paradigma em crise e porque faltava sustentação político-institucional e social. Nesses termos, o antigo pacto que
assegurou vantagens a diversos segmentos (empresariado, burocracia e funcionários de empresas estatais, classes
médias, trabalhadores qualificados de setores de ponta da
economia como o setor automobilístico etc.) não só ruiu,
como provocou tensões.
Do ponto vista estritamente numérico, maioria não faltou ao governo da Nova República, no processo constituinte: de um total de 559 cadeiras, o PMDB contabilizava 307
constituintes, enquanto o PFL tinha outros 134 parlamentares, perfazendo a bagatela de 78,8% da representação
partidária3. A despeito do enfraquecimento do governo, é
indispensável observar que as eleições de 1986 transcorreram sob o efeito político devastador do Plano Cruzado, o
193
Ao final dos trabalhos constituintes, PMDB e PFL tiveram suas bancas diminuídas (respectivamente para 234 e 126 parlamentares) em razão das migrações partidárias e, principalmente, do surgimento do PSDB.
3
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qual rendeu maciça vitória aos partidos governistas e efêmero prestígio para Sarney e seu governo. Assim, a maioria da representação da Aliança Democrática foi numérica,
domínio ampliado pela presença de um terço de senadores
biônicos face ao modelo adotado de Congresso Constituinte. Em tese, portanto, a situação tinha ampla e confortável
maioria para fazer valer suas preferências. A propósito,
quais prioridades? Aqui é imperativo fazer um registro político e uma distinção conceitual.
O PMDB sempre teve um caráter sabidamente frentista (catch all, partido-ônibus...). Sua pluralidade interna não
foi problema na oposição ao regime autoritário, porque
havia razoável unidade negativa em seu interior, isto é,
coesão em torno da rejeição ao arbítrio e de uma plataforma difusamente democrática. Na constituinte, porém,
confirmou-se a previsível dispersão político-ideológica
dessa diversidade. Vale frisar: “Fleischer aponta que, da
bancada do PMDB na Constituinte, 40 representantes
eram oriundos do PDS e 42 da antiga Arena”, números
que levaram Campello de Souza a sustentar que a maior
bancada da Constituinte não foi o PMDB, e sim a Arena
de 1979: “nada menos que 217 dos 559 constituintes atuais
tiveram passagem pela legenda que apoiou o autoritarismo” (Leme, 1992, p. 95). A tensão interna ao PMDB foi
permanente, atingindo pontos nevrálgicos: (a) na disputa pela liderança do partido na constituinte (vencida pelo
progressista Mário Covas contra Luiz Henrique da Silveira,
candidato centrista patrocinado por Ulysses Guimarães);
(b) na mudança regimental e na formação do Centrão, que
representou uma espécie de desautorização da liderança
partidária; e (c), finalmente, na consumação da cisão do
grupo que deu origem ao PSDB.
Maioria parlamentar, portanto, não é sinônimo de
hegemonia. Fruto do desempenho eleitoral das oposições, da experimentação e da incerteza próprias da tranLua Nova, São Paulo, 88: 185-215, 2013
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sição, “instaura-se no Brasil aquilo que Gramsci denominava de crise de hegemonia. O núcleo governamental
não consegue mais dirigir a aliança desenvolvimentista e
a sociedade como um todo. Os representantes dissociam-se dos representados”. As consequências desse cenário
são o fracionamento e a polarização ideológica e política,
determinando “a desagregação no interior do bloco dominante” (Sallum Júnior, 1995, p. 160). Para este intérprete
da transição, a crise terminal do pacto que sustentou o
Estado desenvolvimentista está na raiz do problema e se
refletiu nas frustradas tentativas de ajuste macroeconômico (malsucedidas precisamente porque tentadas em bases
obsoletas), mas é evidente que uma desagregação de tal
ordem não deixaria de se refletir na mudança de regime
político e também no processo constituinte. Alguns aspectos evidenciam essa fragmentação:
1)embora majoritário, o PMDB jamais forjou sólida unidade
política e programática, haja vista a inclinação da liderança de Mário Covas de se aproximar de posições à esquerda e do acirrado antagonismo ao governo, pela Aliança
Democrática. Com a mudança do regimento interno e o
surgimento do Centrão, o partido faz uma inflexão ao centro e à direita, influindo, obviamente, no conteúdo final
da Constituição;
2)a relação de forças resultante das eleições de 1982 e 1986
conferiu grande influência, aos governadores, sobre temas
nacionais, incluindo seu peso na campanha pelas eleições
presidenciais diretas, a escolha da chapa Tancredo-Sarney e
posições de veto em questões federais, em função da ascendência sobre as bancadas no Congresso (Abrucio, 1998);
3)em contraste com a tradição constitucional do país, a recusa tanto à esquerda como à direita em iniciar os trabalhos
tomando como base um anteprojeto de Constituição –
incluindo o desprezo inicial pelo produto da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, constituída em julho de
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19854 – traduziu elevada falta de consenso substantivo das
forças políticas;
4)a escolha de uma metodologia descentralizada (comissões
temáticas e subcomissões) contribuiu decisivamente para
gerar um modelo procedimental politicamente fragmentado,
estimulando a emergência de núcleos mais autonomizados e
considerável grau de polarização ideológica. Nesses termos,
formam-se dois grandes partidos – progressistas e conservadores –
que deram a tônica da disputa (Pilatti, 2008).
196
Assim, a inexistência de um projeto hegemônico capaz
de organizar o processo político significou a ausência de
controle da agenda da Constituinte ou, dito de outra forma,
fragilizou a possibilidade de um controle efetivo, em razão
da pulverização das forças políticas. Expliquemos.
Embora haja evidências de que os partidos tenham
sido capazes de organizar interesses, como ocorre em
qualquer democracia (Coelho, 1999); de que os procedimentos (estruturas decisórias, dentre as quais, comissões
e subcomissões) e o protagonismo do campo progressista
tenham influído decisivamente para o teor dos resultados
produzidos (Pilatti, 2008); de que a capacidade de organização da sociedade civil tenha logrado êxito no propósito
de fixar exogenamente suas próprias demandas (Brandão,
2011; Araujo, 2009; Michiles et al. 1989); ou ainda de que
se tenha superado impasses como o caráter congressual da
Constituinte e a mudança de regimento interno que limitou algumas conquistas do campo progressista, o ambiente de fragmentação conferiu um caráter mais suscetível e
4
Análises de juristas e relatos de protagonistas indicam que, já após o impasse
diante da primeira versão do projeto constitucional, o conteúdo da “Comissão
Arinos” foi invocado como alternativa de negociação. Na questão federativa – nos
enunciados básicos e no tratamento como cláusula pétrea (ausente do ato convocatório) –, o texto constitucional e o anteprojeto da “Comissão Arinos” são razoavelmente coincidentes.
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poroso à constituinte, cuja explicação reside precisamente
na incapacidade de se forjar um polo hegemônico5. Nesses
termos, se não se pode falar categoricamente em primazia
das partes, estamos autorizados a inferir que nenhuma força política tenha imposto seu projeto e sua concepção de
mundo, isto é, nenhum agrupamento (partidos, governo,
classe social etc.) formulou um projeto global para o país
a partir do qual pudesse polarizar a disputa constitucional.
Se, com efeito, havia consenso em relação à mudança de regime político, o mesmo não se pode dizer em
relação ao modelo de Estado. Os protagonistas desse
processo pareciam ter ciência da complexidade das perguntas que se impunham (sintetizadas na nomenclatura
das oito comissões temáticas), mas não ofereceram respostas abrangentes nem dispunham de ascendência política para enfrentá-las. Assim, liberais se empenhariam por
um Estado mínimo, socialistas por uma economia amplamente planificada e social-democratas por um sistema de
welfare. É notável que nenhuma dessas prescrições tenha se
apresentado de maneira pura ou triunfado de forma clara
e que, dessa forma, os resultados finais tenham comportado ingredientes de todas elas.
Nesse cenário politicamente dispersivo operou-se uma
inflexão na dinâmica política, espécie de esquerdização da
transição6. Como a correlação de forças não admitia rompimento com o status quo e a Constituinte era entendida
como imposição de uma solução pactuada em busca de legitimidade para uma nova ordem, prevaleceu uma quase-rup-
197
Embora o governo federal (através da “Comissão Arinos”) alguns partidos políticos e outras instituições tenham apresentado projetos constitucionais completos,
tais tentativas não foram suficientes para ensejar uma visão globalizante de Estado
e de sociedade, tampouco para tornar-se hegemônica na transição.
6
Como todo juízo requer critérios comparativos, assumimos a ideia de que a direitização se consagra com a derrota da emenda Dante de Oliveira e a composição da
Aliança Democrática, sob a influência da Frente Liberal e a liderança moderada de
Tancredo Neves. Assim se consuma a subtração do ingrediente popular da transição.
5
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Processo constituinte e arranjo federativo
tura: “[a constituinte] representou o processo mais radical
do período de transição no Brasil”7.
Arranjo federativo
198
A sintética descrição do cenário em que transcorreu o processo constituinte demonstra que: (a) a maioria construída em torno do governo da Nova República não se manteve coesa a ponto de formatar a nova Carta a partir de
um projeto hegemônico; e (b), a despeito da percepção
das elites políticas de que a reforma do Estado era crucial, o comportamento dos constituintes não se pautou
unicamente pelo corte partidário e menos ainda por alinhamento com o Executivo, obedecendo a lógicas diversas
– inclusive regionalistas e suprapartidárias8.
No plano institucional, uma das características marcantes do regime autoritário se revelava na intensidade com
que o poder era concentrado em seu nível superior, isto
é, no rigoroso controle exercido pela União e na restrita
permeabilidade do Estado relativamente à sociedade civil.
À medida que se ampliavam as demandas locais e regionais
e que crescia a influência dos governadores, colocava-se
em pauta a necessidade de restabelecer uma correspondente institucionalidade federativa – política e tributário-fiscal – capaz de atualizar-se frente às transformações da
sociedade brasileira e compatível com os compromissos
da Aliança Democrática.
Note-se que a agenda da descentralização emerge antes
mesmo do processo constitucional, a ponto de o “discurso
anticentralização adquirir expressão nacional, transformar-
7
Depoimento do deputado constituinte José Genoino Neto, entrevista ao grupo de
pesquisa “Em busca do processo constituinte: 1985-1988”, em 4 de julho de 2008.
8
Coelho (1999) argumenta de forma convincente que os conflitos ideologicamente radicalizados não ocorrem à revelia dos partidos políticos, mas desconsidera, de um lado, os atores extraparlamentares e, de outro, que arranjos pontuais
temáticos podem efetivamente transcender as identidades partidárias.
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-se em slogan de governadores, objeto de pronunciamentos
parlamentares e acumular propostas não só no plano partidário, como nas entidades e lideranças da sociedade civil”.
Um cenário em que a demanda por mais recursos para estados e municípios foi impulsionada, “no plano financeiro,
com o apoio de governadores, vereadores e de boa parte
dos deputados, preocupados em garantir mais recursos
para suas regiões e estados” (Leme, 1992, p. 48).
Para além das definições de natureza doutrinária de
maior visibilidade – como a ordem econômica, os direitos
sociais ou o ordenamento estritamente político –, a agenda federativa representava aspiração por descentralização.
Com a atmosfera democratizante do país, a desconcentração de poder também se traduziu em movimento de diástole, no sentido de tornar efetivo o aumento de prerrogativas
das unidades subnacionais. Em outras palavras, mais poder
e mais recursos para estados e municípios.
A descentralização não é particularidade da transição
brasileira. Expressa um movimento mais geral associado a
países como Espanha e França e ao restabelecimento de
regimes democráticos em países subdesenvolvidos, com
destaque para os da América Latina. Assim, a descentralização também se inscreve na reforma do Estado como
um recurso de mudança da cultura política hegemonizada
pelo autoritarismo e está associada, portanto, ao aprofundamento democrático. No caso brasileiro, além do clamor
democrático e da emergência dos movimentos sociais de
âmbito local, alguns aspectos permearam fortemente as
definições relativas à desconcentração de poderes. Dentre
eles, o conflito distributivo decorrente da crise fiscal e o
papel central desempenhado pelos governadores na reta
final da transição.
O movimento pela descentralização remonta ao ciclo
derradeiro do regime autoritário: “existe um conjunto de
evidências de que o processo recente de descentralização
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fiscal, que é uma tendência manifesta desde meados da
década de 70, antecede em muito o movimento da Constituinte [...]”, de sorte que “a União detinha, por exemplo,
66% dos tributos totais em 1980, 60% na média de 19851988 [e], agora sob o impacto da Constituição ficou com
54%” (Dias, 1995, p. 84). Essa tendência já fora registrada
por ocasião dos debates e da aprovação da Emenda Passos
Porto, em 1983, cuja marca era precisamente a maior desconcentração de recursos através da elevação da quota de
estados e municípios nos correspondentes Fundos de Participação (FPE e FPM). Em sua fase descendente, o regime
autoritário também identificava a busca por governabilidade, e mesmo por longevidade, à concessão de benesses aos
governadores, em razão de sua ascendência junto às elites
políticas estaduais e da influência que passaram a exercer
sobre as bancadas no Congresso, especialmente após as eleições diretas de 1982 (Abrucio, 1998). Fato é que o enfraquecimento da União é inseparável da débâcle do regime.
Há mais um ingrediente acerca do arranjo federativo
na Constituinte, que contrasta com outros temas: é assunto
que constitui agenda restrita às elites políticas. Ao contrário
de assuntos mais ideologizados e/ou vinculados a direitos
individuais e coletivos, os quais provocaram mobilização
social antes e durante o processo constituinte (Brandão,
2011), as questões federativas não são socialmente mobilizadoras. A propósito, seria surpreendente que, em um
cenário polarizado e complexo (com debates sobre regime
e sistema de governo, questões fundiárias e outros temas), a
temática federativa pudesse empolgar a sociedade.
Exemplos: de um total de 11.989 emendas de iniciativa popular encaminhadas no período inicial dos trabalhos,
quantidades relativamente modestas foram endereçadas
às subcomissões e comissões temáticas que tratavam direta e indiretamente de temas federativos. As subcomissões
da “União, Distrito Federal e Territórios”, dos “Estados” e
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dos “Municípios e Regiões”, que formavam a “Comissão
da Organização do Estado”, receberam, respectivamente
232, 186 e 328 propostas (totalizando 746), ao passo que a
“Comissão da Ordem Social” contabilizou 2.257 proposituras (Michiles et al., 1989)9.
No nível das organizações e da coleta e encaminhamento de emendas de iniciativa popular, o quadro se repete: o grupo de menor capacidade de agregação é justamente o que envolve instituições vinculadas aos poderes Executivo e Legislativo (associações de municípios, prefeituras
e legislativos municipais e estaduais etc.), que reuniu 17
entidades, recolheu 479.052 assinaturas e encaminhou apenas 6 emendas que cumpriram as exigências regimentais10.
Em termos substantivos, as propostas de escopo federativo
envolviam soberania territorial (cujo destaque foi a aprovação do estado de Tocantins, além da transformação dos
antigos territórios em estados11), bem como autonomia e a
critérios para criação de municípios, competências tributárias, gestão urbana etc.
Esse período de transição/democratização registra
enorme vigor da ação coletiva originária da sociedade civil.
Sua lógica é a da tentativa de obtenção de ganhos em um
cenário socioeconômico marcado por injustiças e conflitos
201
9
Não obstante, não se deve reduzir a efetividade da participação societária à
coleta de assinaturas para emendas de iniciativa popular. O peso da sociedade
civil organizada tem dois exemplos extraordinários no processo constituinte,
embora com orientações ideológicas distintas: de um lado, o Departamento
Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) na agenda trabalhista e social
e, de outro, a União Democrática Ruralista (UDR) nos temas do direito à propriedade e da estrutura fundiária. Essas entidades não só organizaram grandes
mobilizações sociais, como lograram amplo êxito em suas reivindicações, desempenhando grande protagonismo nas negociações com os atores institucionais (partidos, bancadas e governo).
10
Em contraste, o grupo de entidades sindicais amealhou, respectivamente, 121
entidades, angariou 6.081.248 assinaturas e protocolou 41 emendas em conformidade com o Regimento Interno (Michiles et al., 1989, pp. 108-9).
11
Outras propostas de divisão territorial envolveram pelo menos os estados da
Bahia, Minas Gerais e Pará.
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distributivos crescentemente radicalizados – a “década perdida”, inevitavelmente associada à estagnação econômica
e seus perversos efeitos sociais. Não é casual que, mesmo
em um país de modesta tradição de organização trabalhista
autônoma, tenham florescido incontáveis instituições associativas e se registre a ascensão do grande ciclo de greves (Noronha, 2009) – o maior da história.
Nesses termos, admitindo-se a noção de que “o poder
político do Povo está concentrado no voto” e que, diversa e
complementarmente, “[o poder] da Sociedade Civil [reside] na militância associativa”, difícil refutar a hipótese de
que, no cômputo geral, a transição brasileira e em especial o
processo constituinte sejam momentos em que “o polo dinâmico da democracia tende a ser a Sociedade Civil” (Araujo,
2009, p. 19). Não obstante o notável protagonismo da participação civil, imperativo destacar que especificamente no
tema do federalismo “não houve participação popular e a
sociedade civil teve um papel menos importante”12. Exceção digna de registro e que não deixa de confirmar a regra
foi a emenda de iniciativa popular sobre a reforma urbana,
que resultou no capítulo da Política Urbana (Artigos 182 e
183), cujo enunciado constitucional e posterior regulamentação infraconstitucional (LF nº 10.257, de 10 de julho de
2001, conhecida como Estatuto da Cidade) representaram
expressiva ampliação de prerrogativas dos municípios.
Em síntese, o cenário tem tendências fragmentárias em
razão da dispersão das forças políticas (ausência de projeto
hegemônico), o tema da descentralização antecede a dinâmica constitucional (remonta ao colapso do regime autoritário) e a agenda federativa é tratada essencialmente por
atores institucionais (governos, partidos e parlamentares).
Depoimento de Celina Souza, op. cit. A percepção é corroborada pelo exaustivo
levantamento de Brandão (2011), que também não identifica mobilização social
pela agenda federativa.
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Instituições e protagonistas
A caracterização do arranjo federativo presente na Constituição de 1988 como um modelo mais descentralizado, cooperativo e menos assimétrico repousa em pelo menos três
aspectos. O primeiro deles diz respeito à distribuição menos
desigual de recursos tributários e ao aumento da participação de estados e municípios no bolo das receitas, especialmente nos Fundos de Participação (FPE e FPM) com consequente prejuízo da União. O segundo aspecto revela-se
na concepção de entes federativos dotados de autonomia e
soberania, incluindo nesse escopo, além dos estados, o reconhecimento original dos municípios e do Distrito Federal.
O terceiro é o de ampliação de competências compartilhadas entre as três esferas de governo, de forma a conferir, aos
entes federativos, mais autonomia para implantar políticas
públicas (saúde, educação, cultura, habitação etc.)13.
As questões federativas foram tratadas no âmbito de
duas comissões temáticas e suas respectivas subcomissões.
Na comissão de “Organização do Estado”, (subcomissões de
“União, Distrito Federal e Territórios”, “Estados” e “Municípios e Regiões”) e na comissão do “Sistema Tributário, Orçamento e Finanças” (subcomissão de “Tributos, Participação
e Distribuição da Receita”). Seguindo os critérios da partilha que dividiu seu controle, PMDB e PFL compartilhavam,
respectivamente, a relatoria e a presidência de praticamente
todas as comissões e subcomissões.
Quanto ao quadro de forças, é emblemática, por exemplo, a composição da comissão de “Tributos, Orçamento
e Finanças”: de maioria peemedebista/ pefelista (26 e 15
parlamentares de cada partido, respectivamente), 27 dos 63
membros titulares (42% da comissão) tinham passagem por
203
O caso mais notável em termos de institucionalização parece ser o do Sistema
Único de Saúde (SUS), que, afora uma estrutura compartilhada entre os três níveis de governo, loca no nível municipal sua esfera gestora.
13
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executivos estaduais e municipais; entre eles, 4 ex-governadores, 2 ex-vice-governadores, 9 ex-prefeitos e 1 ex-vice-prefeito. Essa composição favorecia “fortalecimento financeiro
dos estados e municípios, pois como observa [José Roberto]
Afonso, ‘eles estavam ali pensando cada um em seu estado e em sua prefeitura, e pouca gente pensando no país’”
(Leme, 1992, p. 149). Composições igualmente referenciadas pelo recorte regional se espalham: “a região nordeste,
com 32,25% dos representantes da Constituinte, teve maior
representação na subcomissão dos ‘Municípios e Regiões’,
obtendo 40% da representação”, fenômeno que se repetiu
na subcomissão de “Tributos, Participação e Distribuição de
Receitas”, com 41,67% das vagas (Coelho, 1999, p. 170).
Desde as etapas das subcomissões e comissões temáticas já se esboçou o teor do novo arranjo. Embora tenham
sido registradas mudanças nos percentuais de transferências dos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios, ao fim e ao cabo a elevação favorável aos governos
subnacionais se tornou irreversível. Nem mesmo as etapas
subsequentes, da comissão de sistematização e das votações em plenário (em dois turnos), tampouco o surgimento do Centrão e a correspondente mudança de correlação
de forças em favor dos conservadores suprimiram o desenho favorável aos governos subnacionais.
Na dimensão fiscal-tributária, o “bode na sala” foi o
debate sobre o poder residual, incluído para beneficiar estados e municípios. Como a prerrogativa de criar novos tributos após a promulgação da nova Constituição seria restrita
às poucas unidades federativas com sólida base econômica,
tal prerrogativa acabou se transformando em moeda de troca na consolidação do aumento de transferências da União
para os estados. Em resumo, como assume o constituinte
Fernando Bezerra (PMDB/CE), relator da subcomissão de
“Tributos, Participação e Distribuição de Receitas”, as bancadas de regiões mais pobres (Norte, Nordeste e CentroLua Nova, São Paulo, 88: 185-215, 2013
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-Oeste) barganharam a autonomia tributária estadual pelo
aumento das transferências: “a gente precisava deles [bancada paulista] para diminuir o espaço tributário da União”
(Leme, 1992, p. 150).
O processo decisório transcorreu sob uma clivagem
ideológica mais diluída face aos interesses regionalistas que
ofuscavam as identidades partidárias. Em pronunciamento
emblemático na comissão de “Organização do Estado”, o
constituinte Davi Alves Silva (PDS/MA) sintetiza essa posição: “temos de defender o nosso ideal independentemente
de partidos. A questão não é partidária, é democrática, é o
sentimento de um povo que está sufocado por aqueles que
nunca respeitaram a liberdade”14. Os anais oferecem fartas
manifestações dessa natureza e predominam pactos políticos pontuais: na falta de hegemonia que pudesse orientar a
dinâmica constituinte no sentido de um projeto catalisador
e de uma correspondente maioria parlamentar, prevalecem
pactuações ad hoc.
Se parece difícil contestar que na temática social e, sobretudo, no capítulo da ordem econômica, prevaleceram clivagens ideológicas em razão da polaridade e da radicalização
desses temas (Pilatti, 2008), tal perspectiva não explica a totalidade do processo constituinte, notadamente no que concerne ao debate sobre o arranjo federativo e aos atores que o protagonizaram. Vale destacar: “não havia força política relevante
que defendesse os interesses da União. Nenhum agrupamento importante atuou segundo projeto de reorganização do
Estado em que a União tivesse papel relevante” (Sallum Jr.,
1996, p. 141). Assim prevalece uma dinâmica caracterizada
pela autonomização de múltiplos núcleos de poder (partidos
e facções partidárias, bancadas regionais, governadores, prefeitos etc.) em relação à União e à presidência da República.
205
14
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento); ata da reunião de 28
de maio de 1987.
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Também é digno de nota que o maior número de
parlamentares identificados com os espectros de direita
e centro-direita estivessem agrupados, respectivamente,
nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Inversamente, esquerda e centro-esquerda tinham mais expressão no
Sudeste15. Cruzando-se a representação partidária regional
com as respectivas localizações no contínuo direita-esquerda, obtém-se dados ilustrativos: no campo da esquerda,
enquanto a bancada do PDT, de 26 parlamentares, tem
ampla predominância gaúcha e fluminense, a representação petista não registra nenhum parlamentar eleito
nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. À direita, a
tendência é inversa: mais da metade da bancada do PFL
(51,5%) tinha origem no Nordeste e a soma desta fração
com o Norte e o Centro-Oeste totalizava 94 constituintes,
ou seja, 71,2% dos pefelistas. Ao centro, o PMDB expressava menor desequilíbrio regional e mantinha as feições
multi-ideológicas internas que se traduziriam na incorporação de seus membros a blocos antagônicos e em múltiplos alinhamentos (Goulart, 2002).
Nesse cenário, “quando o governo federal se dispôs a
participar da disputa em torno das receitas, encontrou as
alianças seladas e a partilha do bolo tributário previamente acertada entre as esferas subnacionais”, o que sinalizava
que a disputa federativa já havia sido concluída nos termos
do montante assegurado a estados e municípios, rejeitando
qualquer proposta que descentralizasse encargos. Em tais
circunstâncias, o governo federal, impotente “para romper
as alianças estabelecidas, assistiria à remontagem da estrutura em vigor desde meados da década de 1960, com o sinal
trocado, indicando ser ele agora o grande perdedor. E, com
ele, o equilíbrio federativo” (Oliveira, 1995, p. 89).
15
A propósito, ver a tabela de Autoidentificação Ideológica dos Deputados Constituintes por Partidos (Coelho, 1999, p. 118).
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Assim, na distribuição de receitas, foi consumada a
ampliação de transferências cuja dinâmica ensejou um jogo
de soma zero por não haver elevação de alíquotas. Tome-se como exemplo a partilha do Imposto de Renda, sobre
o qual a participação dos estados salta de 14% para 21,5%
(compondo o Fundo de Participação dos Estados) enquanto o naco dos municípios aumenta de 17% para 22,5%
(compondo o Fundo de Participação dos Municípios). A
parcela da União sobre este tributo sofreu regressão de
67% para 53%. Mudança similar ocorreu com a partilha do
Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI)16.
Há uma hipótese complementar que também não pode
faltar nessa avaliação: a agenda governamental tinha outras
prioridades na Constituição – como a definição do papel
das Forças Armadas, a manutenção do sistema de governo
e, sobretudo, a fixação do mandato presidencial –, de sorte
que as demandas federativas e mesmo regionais transformaram-se em espécie de moeda de troca. A despeito de tentativas frustradas mediante emendas modificativas, nestas houve flexibilidade do Executivo para a negociação, ao passo
que nas questões centrais prevaleceu maior rigidez.
Mas a descentralização obviamente não se resume à
divisão de receitas. O federalismo da Constituição de 1988
é aceito (sem contestação relevante) como mais cooperativo
também pela partilha de competências que ela define. A forma pela qual a legislação complementar estabelece as regras
de cooperação entre os entes federativos abre brechas para
que a União se imponha a estados, municípios e ao DF, uma
vez que ela detém o poder de iniciativa sobre eles. Essa proeminência se mantém pelo fato de que o estabelecimento de
normas gerais assegura vantagem à União, em que pese persistirem campos de autonomia nos níveis descentralizados.
207
16
Para uma comparação completa do quadro de partilha e distribuição de tributos
na Constituição de 1988, ver Oliveira (1995, pp. 121-2).
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Além de fixar 29 atribuições exclusivas para a União
(Artigo 22), são instituídas competências comuns a todos
os níveis de governo em 12 itens (Artigo 23) e legislação
concorrente em 16 incisos (Artigo 24), neste caso com com
exclusão dos municípios. Nesses termos, a cooperação seria
mais do que um suposto jurídico, um enunciado normativo. Supondo existir distinção entre coordenação e cooperação, cumpre considerar que a primeira é “um modo de
distribuição e exercício conjunto de competências no qual
os vários integrantes da Federação possuem certo grau de
participação”. Ou seja, se “a vontade das partes é livre e
igual, com manutenção integral de suas competências: os
entes federados sempre podem atuar de maneira isolada
ou autônoma” (Bercovici, 2003, p. 151). Tal autonomia
confere aos governos a prerrogativa de não serem necessariamente cooperativos. A cooperação depende dos incentivos oferecidos caso a caso.
A coordenação federativa assume sua face real na divisão de prerrogativas e atribuições concorrentes, de sorte que
todos “concorrem em uma mesma função, mas com âmbito
e intensidade distintos. Cada parte decide, dentro de sua
esfera de poderes, de maneira separada e independente,
com a ressalva da prevalência do direito federal” (Bercovici,
2003, p. 151). O formato dessa divisão e a primazia da esfera arbitrária em nível federal constam da Constituição: “a
superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende
a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”17. Tal
definição implica o caráter vinculatório da legislação federal, impondo uma hierarquia das normas constitucionais,
de sorte que “todo Direito relevante é um Direito federal.
Os estados acabam sendo quase apenas entes gestores do
Direito federal” (Souza, 2005, p. 111).
A esse respeito, ver Art. 24, § 4º da Constituição Federal de 1988.
17
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O efeito prático desse enunciado é que constituições estaduais, leis orgânicas municipais e demais normas do arcabouço jurídico subnacional precisam estar necessariamente em
conformidade com a Constituição Federal. No limite, disputas
diversas e Ações Diretas de Inconstitucionalidade serão arbitradas tendo como destino final o Supremo Tribunal Federal
(STF), cujas decisões levarão em conta o princípio geral da
primazia do Direito fundante, qual seja, o arcabouço federal.
Não se trata, contudo, de enunciado estritamente jurídico,
pois suas implicações também são político-institucionais.
Embora os mecanismos de regulação intergovernamental sejam anunciados, na prática cabe à União instituí-los da
forma que lhe for mais conveniente: a competência concorrente em termos de legislação não retira da esfera federal
o controle sobre seus resultados. A engrenagem mostra-se
ainda mais complexa ao se considerar que a mesma Constituição fortaleceu expressivamente as prerrogativas do
Executivo, afirmando um modelo presidencialista agudo o
suficiente para controlar a agenda legislativa. Esse arranjo
institucional determinará o padrão decisório que se seguirá à dinâmica constituinte. Fato é que, assim, “o governo
controla a produção legislativa e esse controle é resultado
da interação entre poder de agenda e apoio da maioria”.
Primazia nítida: “a Constituição confere ao presidente o
monopólio sobre iniciativa legislativa. A alteração do status
quo legal, nas áreas fundamentais, depende da iniciativa do
Executivo” (Limongi, 2006, pp. 25, 41).
Aqui há que se fazer uma distinção importante relativamente ao processo decisório: a inflexão no sentido de fortalecer o Executivo se dá em termos efetivamente democráticos, ao contrário do período autoritário precedente em que
o Legislativo foi inferiorizado, quando não suspenso. Um ótimo exemplo dessa diferença pode ser identificado na análise
comparativa entre os instrumentos do decreto-lei (DL) e da
medida provisória (MP). Embora a MP confira largo poder
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ao Executivo porque altera o status quo de forma unilateral, há regras que impõem sua apreciação e votação futuras
pelo Legislativo – procedimento de contrapeso próprio de
sistemas parlamentaristas (no caso brasileiro, inspirado pelo
modelo italiano). Já o DL facultava ao Executivo poderes
quase imperiais de baixar regras e impor leis, independentemente do Legislativo. Nesse sentido, a nova configuração
constitucional é efetivamente mais equilibrada, conquanto
favoreça o Executivo. Ainda assim, trata-se de uma alteração
institucional democratizante.
De todo modo, as prerrogativas do Executivo incluem atribuições exclusivas em políticas públicas, ainda que estas estejam sob a responsabilidade executiva e/ou operacional dos
níveis subnacionais: “os constituintes não apenas não pretenderam limitar a União em sua autoridade para legislar sobre
ações de estados e municípios como lhe autorizaram exclusividade para legislar sobre políticas que estavam sendo transferidas para estados e municípios” (Arretche, 2009, p. 391).
Inevitável, portanto, reconhecer a amplitude da autoridade
decisória da União. Todavia, essa assimetria difere do estágio
pré-constituinte, quando estados e municípios detinham pouca autonomia e cumpriam basicamente o papel de meros executores de políticas públicas definidas nas esferas superiores.
Na prática, as relações intergovernamentais passam a
ser regidas pela assimetria de prerrogativas. Mesmo quando
os entes subnacionais supostamente têm interesse em matérias vantajosas (gestão de políticas públicas ou transferências
extraconstitucionais), a tensão e a competição federativa
(seja entre os próprios governos subnacionais ou destes contra a União) não irão desaparecer, porque cada arranjo institucional implicará cálculos específicos. Isso explica, inclusive, a recusa ou o baixo interesse de estados e municípios em
assumir responsabilidades inicialmente vistas como atraentes.
***
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Souza (2005) assinala oportunamente que o arranjo
federativo da Constituição de 1988 não formatou mecanismos capazes de ensejar coordenação e cooperação intergovernamentais para inibir a prevalência de condutas concorrentes. Não se pode ignorar, no entanto, que em qualquer
modelo federativo, os dois eixos em torno dos quais as instituições operam são precisamente a cooperação e a competição. Em um país de tão fortes clivagens regionais não é de
se estranhar que a concorrência seja um traço recorrente,
tanto em nível horizontal (dos governos subnacionais entre
si) quanto vertical (destes com a União). Mais: por óbvio
que possa parecer, a conclusão de um processo constitucional não encerra as disputas entre os atores das diferentes
esferas governamentais, apenas delimita seu marco institucional de referência.
Diante da ausência de mecanismos mais simétricos de
coordenação e mesmo ampliando receitas e compartilhando prerrogativas com os níveis subnacionais de governo na
implantação de políticas públicas, o arranjo constitucional
fez com que estes ficassem privados de influir nas futuras
arenas decisórias. Embora o novo modelo tivesse perfil mais
cooperativo em relação ao precedente, a autoridade jurisdicional permaneceu concentrada no nível da União. Em
suma: “a CF 88 não produziu instituições políticas que tornariam o governo central fraco em face dos governos subnacionais” (Arretche, 2009, p. 411).
Assim se desenvolve uma descentralização provisória
no processo constituinte, seguida de período pródigo em
promover um revigoramento da União com proporcional
perda dos governos subnacionais. Embora a análise do período posterior à Constituinte não integre o escopo deste
ensaio, vale destacar sinteticamente que, sobretudo durante
o governo de Fernando Henrique Cardoso, foram processadas várias mudanças que reverteram alguns dos triunfos
constitucionais dos governos subnacionais, dentre as quais:
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o Fundo Social de Emergência (depois Fundo de Estabilização Fiscal), a “Lei Kandir”, a renegociação das dívidas
dos estados e intervenção em bancos estaduais, o contingenciamento orçamentário, as reformas constitucionais
estruturais, em especial a da Previdência, além da elevação
de alíquotas de tributos não compartilhados com estados e
municípios (Goulart, 2004).
O governo FHC radicalizou a abordagem da agenda
fiscal (Kugelmas e Sola, 2000) com medidas que pretendiam salvaguardar o Plano Real e manter a inflação sob
controle – pedra de toque da vitória política do governo.
Mudanças que efetivamente promoveram reconcentração
de recursos pela União e que anularam boa parte da precedente vitória de estados e municípios. Isso foi possível
por duas razões fundamentais: a União não perdeu o controle institucional sobre o arranjo federativo (monopólio
da iniciativa legislativa, primazia presidencialista etc.) e,
diferentemente da situação anterior, emergiu finalmente uma nova hegemonia capaz de impor sua agenda – no
caso, da liberalização e da estabilização.
No sentido do estabelecimento de um arranjo constitucional efêmero – cujo escopo aqui se circunscreve à questão federativa –, parece mesmo premonitória a análise de
que “Constituições adotadas apenas para reforçar vantagens
políticas transitórias, que não passam de pactos de dominação entre os vencedores mais recentes, duram apenas
enquanto permanecerem as condições que deram origem à
vitoria política mais recente” (Przeworski, 1994, p. 59). Agora a síntese analítica parece cristalina: o ritmo da transição e
a correlação de forças no processo constituinte impuseram
um resultado favorável à descentralização sem, contudo,
fragilizar institucionalmente a União. Sem bases políticas e
institucionais sólidas para sustentá-las de forma duradoura,
as conquistas que beneficiaram circunstancialmente estados
e municípios se revelaram relativamente provisórias. Não só
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não houve engessamento de normas e resultados, como a
própria forma como foi disposta a Constituição permitiu
mudanças que alteraram o status quo. Essa recentralização
posterior ao ciclo constitucional, contudo, não foi tão drástica a ponto de regredir aos patamares do regime autoritário, uma vez que governos estaduais e municipais passaram
a gozar efetivamente de um grau superior de autonomia.
Cumpre então aclarar minimamente o paradoxo: por
que uma Constituição que fortalece as unidades subnacionais comporta, simultaneamente, normas capazes de
lhes impor perdas futuras? Se as instituições são basicamente as mesmas, por que resultados tão distintos em
momentos diferentes?
A hipótese é a de que as razões não são exclusivamente
institucionais, embora haja evidências de difícil contestação
de que se fortaleceu o centro (aqui entendido como a União,
também sob o impulso presidencialista que lhe foi conferido). Como a dinâmica da competição federativa não pode
ser dissociada de seu contexto, a agenda macroeconômica
e a correlação de forças são variáveis fundamentais na medida em que indicam a força ou a fragilidade dos atores. E
é inegável que a União estava muito fragilizada naquele
momento delicado da transição, ao contrário do período em
que os governos de Fernando Henrique Cardoso, principalmente, promoveram alterações que implicaram revezes para
estados e municípios. Imperativo observar que nesse período a agenda é distinta porque já não comporta os múltiplos
constrangimentos da transição (sintetizados nos desafios de
uma nova ordem jurídica, de um novo regime político e
de um novo equilíbrio federativo).
A imposição de uma agenda, portanto, não depende apenas de parâmetros institucionais ou dos incentivos
que estes possam produzir. Trata-se de um triunfo que também está sujeito, de um lado, ao escopo temático que enseja
e, de outro, às escolhas das elites políticas e eventualmente
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Processo constituinte e arranjo federativo
de atores extrainstitucionais. Nesses termos, podemos avaliar melhor como a descentralização tem êxito em 1988, ao
passo que no ciclo seguinte triunfa a agenda do ajuste fiscal. Nada indica, porém, que as disputas federativas tenham
chegado a um final. Como se diz, a luta continua! Que o
digam as nervosas pugnas pelos royalties do pré-sal e outros
incontáveis combates por recursos de poder.
Jefferson O. Goulart
é professor do departamento de ciências humanas da
Unesp e pesquisador do Cedec.
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Constituinte e democratização
no brasil: o impacto das mudanças
do sistema internacional
Ademar Seabra da Cruz Júnior
Em entrevista à Veja, Raymundo Faoro preconizava, um tanto categoricamente, que “[...] todas as mudanças importantes ocorridas na história do Brasil resultaram de alterações
na ordem internacional. Foi assim com a própria Independência” (Faoro, 1976). Nessa entrevista, o autor de Os donos
do poder buscava assinalar que mudanças de rumo marcantes
na história do país – tais como, além da Independência, a
Revolução de 1930, a redemocratização incompleta de 1946
e a intervenção militar de 1964 – deitavam raízes mais profundas em aspectos sistêmicos da ordem internacional na
qual se desenrolavam. No caso de 1964, era evidente que a
investida dos tanques sobre a Guanabara, sob o comando
do general Olympio Mourão Filho, e a truculenta declaração de vacância da Presidência da República, em primeiro
de abril daquele ano (com o presidente João Goulart ainda
em território nacional), constituíam, em grande medida,
epifenômenos dramáticos do impacto da Guerra Fria sobre
a política brasileira.
A leitura de Faoro longe está de constituir uma interpretação isolada da política contemporânea do Brasil. A
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Constituinte e democratização no Brasil: o impacto das mudanças do sistema internacional
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análise das transformações sociais e políticas que culminaram na plena democratização nos anos de 1990 indica
que essas transformações guardam estreita relação com a
crise do modelo desenvolvimentista da era de substituição
de importações; tal crise está correlacionada, por sua vez,
com mudanças marcantes no padrão de acumulação do sistema capitalista internacional a partir da quebra do padrão-ouro, em 1971, e com a transformação do perfil produtivo
da Europa, EUA e dos países de industrialização recente,
nos anos de 1970 e de 1980. Durante os anos de 1970, o
Brasil passa gradualmente da condição de market maker do
mercado mundial de matérias-primas (chegando a concentrar 2,2% do fluxo mundial de comércio em 1952) a uma
participação inferior a 1%, ainda antes da crise econômica
de 1982 (Abreu, 2002, p. 32). Sallum Júnior (1996) também sustenta que fatores externos desempenharam papel
decisivo na precipitação, aceleração e superação da crise de
Estado que assolou o Brasil nos anos de 19801.
A análise neoinstitucionalista das crises do Estado, do
regime e do governo da primeira metade dos anos de 1980
enfrentaria dificuldades, dessa forma, ao localizar os fatores desencadeantes dessas crises em movimentos eminentemente endógenos do cenário político-econômico nacional.
Esses três grandes movimentos, distintos, mas inter-relacionados e interdependentes (ao fim do Estado desenvolvimentista e do regime de substituição de importações se
seguiram a abertura comercial com nova política industrial;
1
Sallum Júnior (1996, pp. 168-9) sintetiza da seguinte maneira essa dependência
da economia brasileira do cenário externo: “[...] os processos de transnacionalização foram adquirindo uma base tecnológica que tornou mesquinho o patamar de
produtividade alcançado pela indústria brasileira. Enquanto o Brasil completava
– a duras penas e aumentando extraordinariamente sua dependência em relação
ao mercado financeiro internacional – seu processo de industrialização dentro do
padrão tecnológico pertinente à segunda revolução industrial, as grandes corporações dos países centrais avançavam dentro de um novo padrão, o da chamada
terceira revolução industrial, no qual a eletrônica e a informática tinham papel
fundamental”.
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Ademar Seabra da Cruz Júnior
a transição do regime autoritário para a democracia; a instauração de um novo marco jurídico-político no país com
a convocação da Assembleia Nacional Constituinte (ANC)
de 1987-1988, que mudou drasticamente as regras para o
funcionamento do Estado e para a legitimação do poder),
são precipitados domesticamente no Brasil também graças
a constrangimentos sistêmicos do cenário internacional, observados anterior ou paralelamente à ocorrência dessas transformações no cenário político nacional2.
Pode-se, desse modo, decompor o processo de modernização da agenda político-econômica nacional (chamemos
assim o núcleo essencial definidor dessas três grandes transformações) em duas grandes camadas: a primeira, das instituições e processos políticos domésticos, que resultaram de
interações sociais crescentemente infensas à manutenção
do status quo político e econômico do regime militar (perda
de legitimidade política, com a transformação do perfil da
sociedade e da força de trabalho no Brasil; perda de apelo econômico, com a crise do modelo de substituição de
importações; disfuncionalidade crescente das instituições
do Estado e do aparato legislativo); o segundo patamar corresponde às grandes transformações econômicas e políticas mundiais que, em grande e crucial medida, impeliram
às mudanças no cenário doméstico. Sem a pressão política internacional (em seu sentido sociológico sistêmico) as
forças sociais internas estariam desprovidas de instrumentos essenciais para desencadear as transformações que conduziriam à modernização política dos anos de 1980; sem a
219
Na perspectiva do holismo metodológico durkheimiano, tais constrangimentos não configuram pressões sistêmicas irresistíveis sobre o comportamento dos
atores sociais – no caso, os Estados nacionais –, mas constituem um conjunto de
vetores de força que limitam, condicionam e modelam a ação social (Durkheim,
1987). Numa analogia ilustrativa da caracterização do holismo, Ferdinand de
Saussure recorre à distinção entre língua (langue) e palavra (parole), conforme
a qual a primeira seria um fato social e supraindividual, ao passo que a segunda
seria individual, heterogênea e real (Saussure, 1972, pp. 143-50).
2
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organização e a expansão da resistência doméstica ao regime militar, as pressões internacionais não teriam como se
infiltrar no cenário político nacional.
Assim, no quadro político da transição democrática
no Brasil, a fossilização e o descrédito crescentes da extinta União Soviética (que gradativamente deixava de constituir uma “ameaça”); a plena incorporação das bandeiras
da democracia às plataformas dos movimentos de esquerda
em nível mundial (o que facilitava o diálogo de setores da
esquerda brasileira com o regime no processo de transição)3;
a cruzada internacional pela promoção dos direitos humanos no Brasil; o gradual fortalecimento do multilateralismo
e do direito internacional; o avanço da integração na Europa
(que se contrapunha às desconfianças e hostilidades entre
regimes militares e antidemocráticos da América Latina) –
fenômenos aliados, no plano econômico, à difusão de novas
tecnologias e serviços nos EUA; à emergência dos países de
industrialização recente da Ásia-Pacífico e, por último, à passagem das economias baseadas em matérias-primas para as
assim chamadas economias do conhecimento, solaparam as bases
de sustentação do pacto industrial-tecnocrático-militar hegemônico, a partir de 19644. Passarei a apresentar mais sistematicamente, portanto, o impacto dos constrangimentos sistêmicos internacionais sobre as três fases da modernização
brasileira (abertura política, abertura econômico-comercial
e advento do Estado democrático de direito, com a promul Segundo o então líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva, a posição oficial do Partido dos Trabalhadores, em 1982, era de apoio ao sindicato polonês Solidariedade,
em luta contra a ditadura do General Wojciech Jaruzelski. Tal posição de apoio ao
Solidarnösc tornou-se mais firme e evidente à medida que avultavam os sinais de
desmantelamento do regime soviético, com o advento da abertura, da transparência
e da aceleração econômica na URSS nos tempos de Mikhail Gorbachev. A esse
respeito, ver Guattari (1982, pp. 25-6).
4
Os dois trabalhos que, emblematicamente, assinalariam as grandes transformações políticas e econômicas da ordem internacional no pós-Segunda Guerra Mundial foram publicados na segunda metade dos anos de 1980: Gorbachev (1988) e
Drucker (1986).
3
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gação da nova Constituição) nas seções a seguir, começando,
cronologicamente, pela abertura política. O objetivo geral e
principal deste artigo é o de recuperar, identificar e analisar, ainda que introdutoriamente, as pressões internacionais
desencadeantes das principais transformações políticas e econômicas brasileiras observadas nos anos de 1980.
Distensão, transição e o ocaso do regime militar – o
impacto do sistema internacional em transformação
Desde meados dos anos de 1970, passando pelos anos de
1990, até os dias atuais, o cenário político internacional e
doméstico dos países industrializados passou a experimentar
um processo de relativa “desideologização”: posições mais
extremistas ou de princípio, em termos de clivagens tradicionais esquerda-direita, foram perdendo sentido prático
nas campanhas eleitorais e nos debates políticos, principal,
mas não exclusivamente, nessas democracias avançadas de
mercado. Douglas Hibbs (1977) assinalava, em artigo que
foi influente entre os anos de 1970 e 1980, que a “grande
barganha” (trade-off) entre esquerda e direita na Europa
Ocidental, EUA e Japão, a partir da Segunda Guerra Mundial, resumir-se-ia à “curva de Phillips” (correlação histórica
inversa entre as taxas de desemprego e inflação na economia): enquanto liberais e social-democratas esforçar-se-iam
por reduzir as taxas de desemprego, às expensas da inflação,
conservadores e republicanos atacariam a inflação, com
prejuízos para os níveis de emprego. Joseph Lapalombara
(1966) sustenta, conhecido artigo, de modo semelhante
que os partidos europeus já vinham abandonando as clivagens ideológicas e de classe para transformarem-se em instituições menos ideologizadas, voltadas para a administração justa (“imparcial”), racional e eficiente dos recursos e
demandas da sociedade (partidos catch all).
Uma das consequências políticas mais marcantes para o
Brasil e para a América Latina das transformações do euro-
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comunismo, do reformismo e do programa dos partidos
de esquerda do Ocidente nos anos de 1960 e de 1970 foi a
ampla incorporação das bandeiras democráticas para o campo “progressista”, com o consequente abandono das estratégias de chegada ao poder pela via revolucionária violenta5.
O fato de a repressão no Brasil haver também incorporado e tolerado certa expressão oposicionista – o que levou,
por exemplo, à memorável vitória do MDB nas eleições
legislativas de 1974 (com votações invariavelmente expressivas para os candidatos “autênticos”, tais como Alencar
Furtado, Fernando Lyra, Francisco Amaral, Lysâneas
Maciel e Paes de Andrade)6 – desacreditou, em alguma
medida, a posição dos muitos que, particularmente a partir
de 1968, vislumbravam no levante armado a única forma de
derrubar o regime, restaurar o Estado de direito e construir
a democracia. Ampla e insuspeita literatura brasileira dos
anos de 1960, a começar por Prado Júnior (1966), passou
a denunciar de maneira sistemática a transplantação artificial de categorias marxistas-leninistas para uma realidade
social brasileira que se diferenciava substancialmente das
relações sociais e de produção mais específicas de economias
asiáticas pré-revolucionárias e europeias do século XIX7.
O descrédito da luta armada como instrumento de
transformação social; a revisão das estratégias da esquerda internacional (agora mais voltadas para o que seria um
5
Uma parcial e improvável exceção, nos dias atuais, seria a ação das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
6
Para depoimentos dos “autênticos”, ver o documento de Nader (1998).
7
“[...] tanto quanto a deformada visão da economia e das relações de produção
e classe no campo brasileiro [...] a ideia de uma ‘burguesia nacional’ progressista
e contrária ao imperialismo por sua posição específica de classe, causou à linha
política da esquerda os mais graves danos. Foi ela certamente um dos fatores que
contribuíram para levar as esquerdas por caminhos errados e cheios de ilusões
que deram no desastre de abril de 1964” (Prado Júnior, 1966, p. 112). Caio Prado
critica a ortodoxia de setores então hegemônicos da esquerda brasileira, que os
teriam impedido de negociar uma política de alianças com a ala mais moderada
dos movimentos conservadores no Brasil pré-1964.
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“evolucionismo bernsteiniano”)8; as vitórias e ocupação de
espaços pela esquerda progressista brasileira nos meandros
da sociedade civil e nas posições de Estado; o “código genético” básico do regime de que não deveria se manter indefinidamente no poder (expresso em sua própria predisposição de, contrariamente às ditaduras convencionais, limitar
mandatos presidenciais); a hegemonia da ala “castelista” no
aparato tecnocrático-militar, entre outras realidades políticas da época, fizeram com que o regime militar mantivesse
abertos certos canais institucionais de negociação com as
oposições, no âmbito do Estado, com o consequente arrefecimento da influência de setores mais radicais de direita.
No plano dos direitos humanos, as denúncias de violações no Brasil, formuladas pelas imprensas europeia e norte-americana, as críticas do governo Carter, as ameaças de
sanções – que nunca vieram efetivamente a se concretizar –
e os constrangimentos a que o próprio presidente Geisel foi
submetido em viagens ao exterior, certamente ajudaram a
animar e a impulsionar movimentos de abertura e distensão
e a fomentar o diálogo com setores da oposição no Brasil9.
223
8
A burocratização do comunismo soviético e do “socialismo real” como um todo
ensejou um amplo movimento de revisão e crítica, a partir da própria esquerda,
que passou a preconizar uma “terceira via” (que não se confunde com os postulados de natureza mais econômico-liberal de Anthony Giddens) entre o socialismo
real e o livre-mercado de cunho neoclássico. A esse respeito, ver Bahro (1980) e
Wilczynski (1972, pp.211-8).
9
Em visita oficial ao Reino Unido, em maio de 1976, o presidente Geisel foi forçado a enfrentar diversos protestos em seus três dias de permanência em Londres.
Os dois principais partiram da própria base do Partido Trabalhista na Câmara dos
Comuns: 60 deputados do grupo parlamentar de direitos humanos enviaram dura
carta ao presidente denunciando que “prisões políticas, torturas e desaparecimentos inexplicados de cidadãos brasileiros estão novamente acontecendo, em escala
alarmante”. Outras duas manifestações inesperadas de protesto partiram do arcebispo católico de Westminster, George Basil Hume, e do próprio primeiro-ministro James Callagham. Este último, em almoço com o presidente Geisel, provocou
dizendo que “Brasil e Reino Unido muito teriam a colaborar no campo da promoção dos direitos humanos” (Veja, 1976, pp. 19-20). A própria livre-divulgação de
tais críticas e constrangimentos, pela imprensa brasileira, é em si um fato que viria
a reforçar o processo de descrédito do regime.
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Diante das pressões do governo Carter para que o regime
militar passasse a condenar o uso da tortura e a observar o
respeito aos direitos humanos no Brasil, o grupo linha-dura
comandado pelo então ministro do Exército de Geisel, o
general Sylvio Frota10, teve ainda mais reduzidas suas chances de influir significativamente no processo sucessório de
Geisel sem recorrer a um novo “golpe dentro do golpe”, tal
como ocorrera em dezembro de 1968, com a decretação do
Ato Institucional n. 5.
Os constrangimentos vividos por Geisel na visita
ao Reino Unido em 1976 repetir-se-iam no ano seguinte, desta vez em Brasília e após a decretação do “Pacote
de Abril”. O presidente Jimmy Carter havia enviado sua
própria mulher, Rosalynn (a “Magnólia de Aço”), para
um périplo de duas semanas por sete países latino-americanos então assolados por regimes de exceção. Geisel,
que a despeito de sua grande relutância fora forçado a
receber uma representante norte-americana sem cargo
definido na estrutura do governo, foi diretamente confrontado sobre a situação dos direitos humanos no Brasil,
em jantar no Palácio da Alvorada, que se deu em 10 de
junho de 1977:
Quando se reuniram, Geisel ouviu-a recitar “o
compromisso decidido de seu marido com a causa dos
direitos humanos”: “a política exterior norte-americana
deve representar o que há de melhor nos Estados Unidos
e [...], por isso mesmo, não seria possível aceitar, fora de
suas fronteiras, o que tampouco aprovava internamente
(sic)”. Rosalynn admitiu que a posição americana
“poderia gerar certos mal-entendidos a curto prazo”,
10
Na Câmara dos Deputados, o chamado “grupo frotista” era coordenado pelo
deputado Sinval Boaventura, presidente da Comissão de Segurança Nacional, e
integrado por 113 deputados do partido governista, a Arena (Jornal do Brasil,
1977).
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mas mostrou-se convicta de que “acabariam por
prevalecer os princípios morais”11.
Outro episódio indicativo de como o regime militar era
particularmente sensível às críticas de governos e setores da
opinião pública dos países industrializados, notadamente
dos EUA, foi a força-tarefa, montada no segundo semestre de 1973, pela área econômica do governo Médici para
pressionar Paul Samuelson, professor do Massachussets
Institute of Technology (MIT), a retirar de sua celebrada obra
Economics a menção de que o Brasil estaria sendo “governado
por fascistas”. Ao menos Eugênio Gudin, Mário Henrique
Simonsen, Golbery do Couto e Silva e Roberto Campos foram
convocados para convencer o economista norte-americano a
retirar tal menção desairosa ao Brasil. Samuelson acabou por
aceitar as pressões para que se alterassem os trechos correspondentes na tradução brasileira da obra12.
No plano econômico, a estratégia do “ajuste mitigado” levada a cabo durante o governo Geisel na gestão do
ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen, acoplou-se
então ao conceito de “pragmatismo responsável” da política
externa, conforme o qual o Brasil necessitaria abrir novos
espaços e mercados para suas exportações, tanto para sustentar o projeto desenvolvimentista, quanto para contornar
os efeitos da crise do petróleo (e, mais tarde, já no gover-
225
Registro da conversa da Senhora Rosalynn Carter com o presidente Ernesto Geisel
por ocasião do jantar oferecido no Palácio da Alvorada, segundo anotações da
intérprete, Senhora Ulla Schneider, de 10 de junho de 1977 (apud Gaspari, 2004,
p. 393). Ainda durante a visita de Rosalynn ao Brasil, o deputado “autêntico” emedebista Alencar Furtado chegou a sugerir à visitante a adoção de sanções econômicas ao Brasil como forma de pressionar o regime a respeitar os direitos humanos. A bancada do MDB optaria mais tarde, entretanto, por não levar adiante a
iniciativa. Já em novembro de 1965, o senador norte-americano Bob Kennedy, em
visita ao Brasil, discursaria no sindicato dos metalúrgicos de São Paulo, criticando
a restrição às liberdades no país e manteria, por ocasião da viagem, conversas ásperas sobre o tema com o chanceler Juracy Magalhães e com o ministro da Fazenda,
Roberto Campos.
12
O episódio está narrado em detalhes em Gaspari (2004, pp. 264-8).
11
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no Figueiredo, os efeitos da crise da dívida). Esse binômio
impeliu o Brasil a tomar decisões no plano externo que apareceriam, à primeira vista, incongruentes com o discurso
de Geisel – expresso tanto na mencionada visita ao Reino
Unido quanto nas reuniões com Rosalynn Carter – de que
o Brasil possuía, em relação às motivações estratégicas dos
EUA, “características e necessidades próprias” para o enfrentamento do comunismo. Entre as decisões mais polêmicas
de política externa do governo Geisel, situa-se, como se
sabe, o reconhecimento diplomático da China de Mao Tsé-Tung (cujo regime teria sido responsável pelo extermínio
de mais de 70 milhões de pessoas em seu próprio país)
(Chang e Halliday, 2007, p. 3); o célere e pioneiro reconhecimento da independência de Angola e do regime do
Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA);
a decisão, tomada pessoalmente por Geisel, de considerar o
sionismo como “uma forma de racismo e de discriminação
racial”, em apoio à Resolução n. 3379 da Assembleia-Geral
das Nações Unidas, de 1975.
Embora, para caracterizar as causas principais que levaram
o Brasil a esses três movimentos surpreendentes de política
externa, seja difícil e desnecessário realizar uma separação
conceitual mais rigorosa entre pressões estruturais externas
e as decisões estratégicas domésticas de parte de um regime
autoritário “de direita”13, trata-se de um fato que a crise do
petróleo determinou pragmaticamente essa reorientação
externa por parte do regime na direção de alianças e mercados que pudessem mitigar a vulnerabilidade à crise energética e dar uma sobrevida tanto ao modelo desenvolvimentista e de fortes investimentos em infraestrutura quanto,
consequentemente, ao próprio regime. Nesse aspecto, ao
menos seis movimentos políticos marcantes combinaramIsto é, alinhado com os EUA na Guerra Fria, cerceador de liberdades democráticas e promotor de um modelo de capitalismo associado e dependente dos
principais centros financeiros e produtivos mundiais.
13
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-se para refrear a influência da “linha-dura” no regime e
preparar o caminho para a abertura política: a) a pressão
externa contra o regime militar, especialmente na questão
do desrespeito aos direitos humanos14; b) o ambiente político internacional menos propício, quando comparado aos
anos de 1950 e 1960, para o confronto bipolar e ideológico
direto (crise de Berlim, crise dos mísseis de Cuba, guerra da
Coreia)15; c) o arrefecimento do radicalismo da esquerda
brasileira após 1974, com a vitória do MDB e o recrudescimento da influência dos “autênticos”; d) a crise energética
dos anos 1970 e o “pragmatismo responsável” da política
externa; e) consequentemente, a aproximação do regime
militar brasileiro de teses de política externa mais condizentes com uma plataforma “democrática” e “de esquerda”16 e
f) o interesse de o regime militar brasileiro diferenciar-se de
regimes mais sanguinários e repressores da América Latina
dos anos de 1970, notadamente os da Argentina e do Chile.
É evidente que uma ampla mobilização da sociedade
brasileira, a partir de entidades da sociedade civil como a
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a igreja católica,
o novo sindicalismo surgido no anel industrial de São Paulo, jornais de grande circulação do eixo Rio de Janeiro-São
227
14
O então arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, chegou a enviar carta
ao presidente Jimmy Carter com o nome de 23 desaparecidos políticos, com pedido de que os EUA exigissem do Brasil informações oficiais sobre o seu paradeiro
(Folha, 1991a, p. 80).
15
Em novembro de 1983, ocorreria ainda a operação naval Able Archer da Otan,
que suscitaria enérgicas reações de Moscou, o qual chegou inclusive a considerar
a possibilidade de retaliação nuclear. Este teria sido, entretanto, o último episódio
mais grave de confronto direto entre as superpotências na Guerra Fria e o único
desde a Crise dos Mísseis de outubro de 1962. Diferencia-se dos confrontos anteriores por ter tido escassa cobertura e análise pela imprensa mundial da época,
tendo sido tratado com grande grau de sigilo pelas partes.
16
O Brasil reconheceu o governo da República Popular da China somente em
agosto de 1974, após o México e a Argentina, que o haviam reconhecido em fevereiro de 1972, dias antes do embarque do presidente Richard Nixon para sua
histórica visita à China (entre os dias 21 e 28 de fevereiro de 1972). Excelente
análise das motivações da aproximação dos países latino-americanos, e do Uruguai
em particular, com a China, está contida em Saus et al. (2007).
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Paulo, o movimento estudantil, setores do empresariado
e especialmente movimentos de expressão cultural como
o teatro do oprimido e a Música Popular Brasileira, foi
determinante para a resistência, a partir de uma perspectiva propriamente doméstica e interna. Uma característica
fundamental desse movimento de resistência foi o fato de
atuar no âmbito das regras da transição traçadas pelo próprio regime, ainda que talhadas sob o manto dos inumeráveis casuísmos que buscavam procrastinar o início efetivo
do processo de (re)democratização do país. Num contraste
pronunciado, a direita agrupada na linha-dura (favorável
ao controle pleno e indeterminado do Estado e do processo
político pela burocracia e pelo estamento militar) colecionava tragédias e fracassos, com a morte de presos políticos
em delegacias de polícia e centros de tortura, atentados
frustrados e ações patéticas como a perseguição a setores
da imprensa, o que servia para afastar definitivamente a
sociedade brasileira das tentativas de sobrevida do regime.
À medida que se tornava difícil fazer chegar à sociedade de
um modo geral a diferença entre “castelistas” e “costistas”
nas disputas de bastidores do regime militar, tais manifestações de repúdio manifestavam-se em derrotas eleitorais
acachapantes da Arena (acomodadas precariamente pelos
mesmos casuísmos); na decretação da Lei de Anistia; na
reforma partidária de novembro de 1979 e no início das
manifestações de massa e da sociedade para que o sucessor
do general Figueiredo fosse um civil eleito diretamente.
O fato, porém, de todos os regimes militares e autoritários da América Latina terem sucumbido a partir de
movimentos políticos, civis e sociais sincrônicos durante os
anos de 1980, indica a existência de uma coordenação mais
ampla, em nível sistêmico, que correlacionava movimentos
domésticos e internacionais em prol da democratização, e
que estes teriam sido um esteio para que aqueles viessem a
triunfar na luta pela abertura e pela democratização no Brasil
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e no continente de modo geral. Tal conjunção de fatores
sugeriria a um observador da primeira metade dos anos de
1980 que o regime estaria ferido de morte e que somente
uma brutal (e totalmente desnecessária e contraproducente) repressão poderia dar-lhe alguma sobrevida. Os resultados eleitorais de novembro de 1982 e, mais importante
ainda, o posterior início da Campanha Diretas Já, iriam corroborar amplamente esse vaticínio.
Tiveram ampla repercussão no Brasil e coincidiram
com o advento da globalização política – pela qual determinados princípios e valores deixaram de se restringir às
esferas domésticas para se transformarem em referências
mundiais, e vice-versa – a visita de Nixon à China em 1972;
o grande movimento de abertura econômica na direção
das reformas de mercado, após a morte de Mao (as “quatro modernizações” e a “política de portas abertas” de Deng
Xiaoping); o início da détente entre EUA e a URSS (e apesar
do recrudescimento da crise com a invasão soviética do
Afeganistão, em 1979); a ascensão do arquiliberalismo thatcheriano no Reino Unido e até mesmo os desafios lançados pelo Papa João Paulo II ao comunismo soviético. Ideais como paz, democracia e respeito aos direitos humanos
passaram a prevalecer nas relações internacionais, impondo
custos severos a países que, como o Brasil de então, não estivessem dispostos a sustentá-los.
Outro fator, entretanto, de ordem manifestamente econômica global, ajudaria a precipitar, juntamente com a crise
do regime, uma crise de Estado no Brasil, com o colapso do
modelo desenvolvimentista e o esgotamento do modelo de
substituição de importações. A década de 1980, tida como
“perdida”, testemunharia, no entanto, o vigoroso programa
de reformas políticas de fundo no Brasil, que foram também impulsionadas pela incapacidade de o regime responder convincentemente às crises mundiais e de propor um
modelo alternativo de inserção econômica internacional.
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Passarei a seguir à análise das causas internacionais – amplamente predominantes em relação às propriamente domésticas – da crise de Estado no Brasil.
Economia “retardatária” e os novos desafios globais
230
À medida que possamos admitir que processos como a convocação da ANC pelo então presidente José Sarney, por
intermédio da Emenda Constitucional n. 26, de 1985, a
democratização do país e a abertura política conjugam-se
com a crise de Estado da primeira metade dos anos de 1980
(crise essa, por sua vez, resultante do colapso do modelo
desenvolvimentista a partir dos anos de 1970). O passo
seguinte seria descrever e analisar os fatos correspondentes às pressões mais manifestamente internacionais sobre a
crise e, consequentemente, no plano da economia política,
sobre as transformações políticas internas cruciais desses
mesmos anos de 1980.
As origens internacionais da crise econômica dos períodos Figueiredo e Sarney podem ser agrupadas em três níveis
básicos de análise, que naturalmente não são estanques,
mas que fluem de um cenário macroestrutural mais amplo
para descer ao nível da conjuntura, até a chegada, por
exemplo, da missão Struckmeyer do FMI ao Brasil, ao final
de novembro de 1982 – quando já haviam sido apurados
os resultados das eleições gerais (menos para presidente) de
1982, as primeiras desde o golpe de 1964. O primeiro nível
refere-se às mudanças estruturais da economia internacional, que penalizaram particularmente países emergentes
da dimensão do Brasil, de economia intensiva em matérias-primas; um segundo nível, intermediário entre a estrutura
e a conjuntura, refere-se ao impacto das crises da dívida e
das duas do petróleo sobre os fundamentos da economia
brasileira, e o terceiro nível seria o impacto de ambos os
anteriores sobre o emprego, o consumo das famílias, a taxa
de inflação, a poupança externa, a produtividade geral dos
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fatores e o balanço de pagamentos do Brasil (indicadores
macroeconômicos). A conjugação desses níveis de análise
demonstra como se tornou insustentável para o regime militar a manutenção das metas dos II e III Planos Nacionais de
Desenvolvimento (esteios do “Estado desenvolvimentista”)
e seu projeto de legitimação via resultados econômicos favoráveis, em parte verificados no governo Geisel e, sobretudo,
durante o governo Médici alguns anos antes.
As mudanças na economia mundial
Como se sabe, o modelo de substituição de importações
(SI) trouxe importantes consequências benéficas para a
industrialização, a instalação da infraestrutura, da indústria
de base e da competitividade das exportações brasileiras,
modelo cuja mola-mestra baseava-se em quatro componentes essenciais: fácil acesso ao mercado internacional
de crédito e capacidade de endividamento externo para o
financiamento de políticas de desenvolvimento, por conta
dos juros baixos praticados por Bancos Centrais europeus
e pelo Federal Reserve dos EUA, diante da disponibilidade
de petrodólares e eurodólares (Silva, 2004, p. 457); tarifas
domésticas de importação elevadas (protecionismo tarifário); forte intervenção no mercado cambial, também com
vistas à correção dos fatores de competitividade das exportações e mercado internacional de produtos primários e
semimanufaturados aquecido. Como se viu anteriormente, essa combinação de fatores permitiu ao Brasil ocupar,
durante longo tempo, níveis superiores a 2% no conjunto
da corrente internacional de comércio e níveis médios de
crescimento de 7%, ao longo da década de 1970.
Mudanças estruturais da economia mundial demandam mais tempo para serem assimiladas, percebidas e sistematizadas pela análise científico-acadêmica que as mudanças de cunho propriamente político. No caso destas, o fim
da Guerra Fria e do sistema bipolar tiveram como epifenô-
231
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meno claramente discernível a Queda do Muro de Berlim,
em outubro de 1989. No caso das mudanças econômicas,
estas se processam de modo incremental, e normalmente é
mais difícil aos tomadores de decisão antecipar tendências
e desvincular-se das pressões do cotidiano, o que os leva a
gerar respostas e a executar políticas cujos resultados não
são plenamente previsíveis ou que, não raro, acarretam
consequências não pretendidas. Tais mudanças econômicas
incrementais são normalmente produzidas por mecanismos
evolutivos do capitalismo, que plasmam a competitividade
dos países e atores econômicos e criam barreiras para os
movimentos e tendências de transformação do perfil produtivo e da divisão internacional do trabalho de parte dos
países retardatários, ou late comers.
Das grandes transformações da economia internacional,
ao menos desde o pós-Segunda Guerra, porém, mais caracteristicamente, a partir dos anos de 1970, pode-se sintetizar,
seguindo Drucker (1986), como principais: a desvinculação
da produção de matérias-primas da produção industrial
e do preço do produto industrial; a separação do emprego industrial da produção industrial e a desconexão entre
comércio e finanças internacionais. Tais transformações
podem ser sintetizadas na fórmula simplificada “da passagem da macroeconomia do Estado-nação para a macroeconomia internacional” (Drucker, 1986, p. 769). Ainda que
este trabalho não comporte uma avaliação minuciosa desses
três fenômenos, indicarei, em níveis mais genéricos, como
impactaram a economia brasileira e as pretensões desenvolvimentistas dos governos Geisel e Figueiredo.
A desvinculação da produção de matérias-primas da
produção industrial teve efeitos bastante perversos, em
séries históricas longas, sobre a competitividade das exportações brasileiras a partir de meados dos anos de 1970. Se
nos anos de 1950, de 1960 e parte dos de 1970, o preço
internacional de produtos como o café, a soja, o milho e
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a carne bovina podiam financiar o processo de desenvolvimento, assegurar a formação de reservas, promover a industrialização e a montagem da infraestrutura nacional, esse
processo foi gradativamente refreado pelo impacto da evolução tecnológica sobre a produção mundial. Um exemplo,
citado pelo próprio Drucker (1986, p. 773), é a demanda
por cobre, que caiu drasticamente com o aproveitamento
industrial da fibra ótica (25 quilos de terminais de fibra ótica
têm o mesmo desempenho que uma tonelada de cobre, na
indústria das telecomunicações e da informação).
A segunda grande transformação derivou diretamente da primeira e gerou profundos impactos sobre a
estrutura produtiva brasileira. Numa economia agrário-exportadora, ou exportadora predominantemente de
bens e serviços de baixo valor agregado, a mão de obra
assalariada também terá forçosamente baixa qualificação,
o que, por sua vez, acarreta a formação de uma massa salarial achatada e de uma força de trabalho pouco competitiva. As dificuldades históricas da economia brasileira para
gerar setores terciários e quaternários de ponta (devido,
em linhas gerais, à baixa competitividade desta), impediram o país de alcançar a terceira revolução industrial
e de acompanhar os movimentos das economias recém-industrializadas da região da Ásia-Pacífico e da Europa,
nos anos de 1970, conforme também salienta Sallum
Júnior (1996, pp. 168-9) 17. Políticas de desenvolvimento produtivo baseadas na consolidação de uma indústria
pesada e pouco intensiva em conhecimento retardaram
ou impediram o catch up do Brasil com essas economias
recém-industrializadas, para não mencionar com os países
233
17
Sobre o desempenho geral das economias dos países emergentes e em desenvolvimento nos anos de 1960 a 1980, ver Kennedy (1993, pp. 193-211), especialmente o
capítulo 10; sobre as estratégias bem-sucedidas de desenvolvimento e industrialização
das economias recém-industrializadas da Ásia-Pacífico, ver Chang (2003, pp. 92-4).
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industrializados propriamente ditos18. Embora a economia brasileira já dispusesse então de um parque tecnológico razoavelmente diversificado, estava muito distanciado
do perfil das economias industrializadas (Carvalho e Lima,
2007, p. 17). É consenso na análise econômica dos anos
de 1980 no Brasil e na América Latina que, caso os termos de
intercâmbio do agronegócio e das commodities brasileiras e
dos demais países da região não tivessem experimentado a
deterioração do período 1975-1985, certamente não teria
sobrevindo a crise econômica que resultou na “década perdida” dos anos de 1980, ao menos não na intensidade e duração verificadas; o Brasil ter-se-ia industrializado em grande medida e a economia japonesa, por exemplo, ter-se-ia
estagnado (a estagnação japonesa chegaria de fato nos anos
de 1990, mas por motivos bastante diferentes). Na realidade, porém, o Japão passou a dispor de matérias-primas
abundantes e baratas no mercado internacional e o Brasil
não contou, por sua vez, com receitas de exportação que
permitissem estancar seu endividamento.
A crise internacional dos anos de 1980, que golpeou
severamente a economia brasileira, guarda relação causal
direta com o fortalecimento das oposições e da sociedade
civil, além do advento de movimentos políticos que tiveram
papel crucial no desmantelamento do regime e na precipitação da crise de Estado no Brasil. É sintomático, por
exemplo, que o movimento sindical do anel industrial de
São Paulo tenha surgido ao final dos anos de 1970, graças
à relativa modernização da economia brasileira que perExemplos de vozes que alertavam, no Brasil, durante o período de SI, sobre os riscos
de um modelo de industrialização baseado em vantagens comparativas estáticas
(fora da comunidade acadêmica de economia e além do pensamento da Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe das Nações Unidas/Cepal) foram as
do Almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva, primeiro presidente do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e do professor Luiz
Alberto Coimbra, fundador da Coordenação de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ).
18
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mitiu a transformação das relações de trabalho urbanas no
país. Pouca dúvida haveria quanto à correlação entre endividamento externo, aumento de 200% do preço do barril
de petróleo/FOB, aumento de 200% na taxa internacional de
juros, desemprego, inflação, recessão, arrocho salarial, maxidesvalorização e o recrudescimento do ativismo político-partidário e na sociedade em geral contra o regime militar.
Entretanto, por conta das desconexões assinaladas por
Drucker (1986) entre matérias-primas e produção industrial,
por um lado, e entre produção industrial e emprego industrial, por outro, as mais de 3 mil empresas do setor metal-mecânico que se localizavam nesse anel e que participavam
diretamente da cadeia produtiva do setor automobilístico,
foram reduzidas para menos de 300 nos tempos atuais (com
a produção de automóveis sendo cada vez mais internacionalizada e menos intensiva em matérias-primas e mais em componentes eletrônicos, softwares, patentes e novos materiais,
por exemplo). Esse dado ilustra claramente as raízes sociológicas e políticas do surgimento de um partido como o PT,
criado essencialmente numa “janela” histórica delimitada de
transição: entre o apogeu da industrialização resultante da
SI e o começo do declínio de um modelo de industrialização
incompleta ou interrompida (Furtado, 1992).
A terceira desconexão estrutural da economia mundial
deu-se com a desvinculação entre produção e mercados
financeiros. Se o comércio internacional até basicamente
os anos de 1960 guardava alguma relação com o nível de
investimentos e o estoque de capitais e reservas19, com o primeiro choque do petróleo vicejou um agressivo mercado de
derivativos e de papéis secundários, que começaram a ser
despejados numa economia promissora como a brasileira,
que, por meio de juros altos, continha a inflação e atraía
235
Segundo os neoclássicos, o nível de comércio exterior de um país é uma função
direta de sua disponibilidade de capitais; para os keynesianos, a disponibilidade de
capitais é uma função dos níveis de comércio praticados por um país.
19
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investimentos externos. Foi o início de um processo de privatização da dívida externa brasileira. Na primeira missão
do Fundo Monetário Internacional (FMI) ao Brasil do período militar, em fins de 1982, o país devia a 1.114 bancos
privados dos países industrializados, com um núcleo principal de 40 com os quais o governo negociava as condições
de pagamento, rolagem e amortização (Skidmore, 1988,
p. 452)20. Com a economia brasileira em crescente desconfiança, alimentada pela moratória mexicana de agosto de
1982, a taxa de investimentos externos declinou até o ponto
em que o estoque de reservas internacionais do país passou a ser tratado como “segredo de Estado” (Veja, 1982, p.
146). Com a deterioração dos preços das principais exportações brasileiras, a posterior fuga maciça de capitais e a perda da capacidade de financiamento do desenvolvimento,
a economia brasileira mergulhou em profunda recessão e
desemprego (inflação de 95% e recessão, em termos de PIB
per capita, de 4,3%, em 1981). Assim, com a migração dos
investimentos especulativos para economias mais sólidas
da Europa, EUA e Ásia-Pacífico, a defasagem tecnológica e
industrial entre as economias latino-americanas e as industrializadas e emergentes tornou-se ainda mais acentuada21.
Nos primeiros anos da década de 1980, sentia-se que a crise
econômica brasileira era ainda mais severa do que a que
havia acometido o país às vésperas do Golpe de 1964.
O ocaso do regime militar coincide e é precipitado,
assim, por mudanças drásticas e punitivas do padrão de
20
Para uma excelente síntese, inclusive com quadros sinóticos completos, sobre
o relacionamento do Brasil com o FMI e com o sistema de Bretton Woods, ver
Almeida (2002).
21
Empréstimos do governo norte-americano durante a crise, integralizados antes
das eleições de novembro de 1982, tiveram como contrapartida diversas concessões brasileiras, como a adesão do país ao código de subsídios do então Acordo
Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), que limitava os incentivos às manufaturas brasileiras, contribuindo para os baixos níveis de crescimento dos anos de 1980 e para
o advento da “década perdida” (Ricupero apud O Globo, 2012).
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acumulação da economia brasileira baseado em fatores espúrios de competitividade22, tais como mão de obra barata, baixos coeficientes de empregabilidade, legislação trabalhista
leniente com os empregadores, patrimonialismo, ausência
de marcos regulatórios e de sistemas de proteção ao consumidor, além da ocorrência de juros internacionais relativamente mais baixos e competitividade relativamente mais
elevada dos produtos primários.
A condição brasileira de país retardatário (late comer) –
assolado pela inflação, por sucessivos períodos de recessão,
de endividamento, de paralisia na capacidade de investimento e de déficit nas contas nacionais – compôs o quadro
da crise do Estado desenvolvimentista. Daí resultaram o
esgotamento do modelo de substituição de importações e
dos instrumentos de proteção social advindos do Estado
Novo. Se para a materialização desse quadro as transformações da economia mundial observadas na época desempenharam papel-chave, o impacto da conjuntura econômica
internacional (e não somente das mudanças estruturais)
também se somou para golpear as evanescentes pretensões
de legitimidade e de continuidade do regime militar.
237
A doutrina da contenção e seu impacto na economia
brasileira dos anos de 1980
Na avaliação dos fenômenos históricos, como os que causaram as profundas transformações na sociedade brasileira
nos anos de 1980, seria falso supor que tais mudanças do
22
Segundo Sutz (2000, p. 287), “[Nesse cenário,] a desigualdade estimula a adoção de opções fáceis do tipo competitividade espúria, baseada em salários baixos e
uso insustentável de recursos naturais, parca atenção a direitos trabalhistas, baixa
prioridade à formação e educação de trabalhadores e estratégias curto-prazistas
de maximização do lucro. Quando a grande maioria das empresas pode sobreviver e mesmo crescer dessa forma, isto é, evitando os desafios da competitividade
estrutural baseada no conhecimento e na aprendizagem, será difícil que as universidades sejam reconhecidas como parceiras potenciais no processo de desenvolvimento e de crescimento econômico”.
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modelo brasileiro de desenvolvimento decorreram apenas
de causas econômico-estruturais exógenas. Para a crise de
Estado brasileira e para a inviabilização do modelo econômico dos anos de 1980 concorreram, sobretudo, fatores
políticos, principalmente de origem internacional. Nesse
particular, a dinâmica da Guerra Fria, da bipolaridade ideológica e da doutrina da contenção EUA-URSS desempenharam papel determinante na crise brasileira, no solapamento
das bases de sustentação do regime militar e no consequente revigoramento das oposições e da esquerda democrática
no nível interno.
Após o êxito relativo da estratégia de ajuste mitigado
durante o governo Geisel, que permitiu ao Brasil crescer
a taxas médias anuais de 7%, o governo Figueiredo viu-se
forçado a tentar conciliar a manutenção desse desempenho
com a necessidade de controlar a inflação e corrigir os
desajustes no balanço de pagamentos. O desaquecimento
da economia global, puxado pela crise do petróleo, reduzia
a demanda global pelos produtos da pauta brasileira de
exportações e aumentava o déficit em transações correntes,
sobretudo, por conta da necessidade de prosseguir importando bens de capital.
O ministro Mário Henrique Simonsen chegara a cogitar
a revisão da estratégia de crescimento e de ajuste mitigado
consubstanciada no II PND. O resultado certo, porém, seria
a estagnação, acompanhada de desemprego, recuo generalizado da atividade produtiva e perda de competitividade
nas exportações, alimentando assim o ciclo do estancamento econômico. A opção de seguir com a política de crescimento estava estrategicamente associada ao gradualismo da
abertura política, da modernização e do projeto de democratização do país.
A crise no balanço de pagamentos e o endividamento
externo, consequências diretas da manutenção do modelo
de crescimento (que não pressupunha necessariamente
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o desenvolvimento), foram agravados durante o governo
Figueiredo. Os vultosos empréstimos externos contratados a
juros flutuantes pelo governo Geisel para financiar a instalação da infraestrutura energética, de transportes e de comunicações23, não tiveram como gerar retornos financeiros
já no governo Figueiredo (uma vez que pressupunham prazos de maturação longos), o que agravou ainda mais endividamento num contexto de falta de opções para a elevação
da competitividade da economia brasileira, a curto ou a
médio prazo.
O comprometimento definitivo das pretensões de crescimento econômico e de estabilização do balanço de pagamentos durante o governo Figueiredo veio com a explosão
do déficit norte-americano a partir do primeiro mandato
de Ronald Reagan. A invasão do Afeganistão pela URSS
no Natal de 1979 e o desafio imposto pela Revolução Islâmica no Irã, também em 1979 (inclusive com a invasão da
embaixada norte-americana por militantes da Universidade
de Teerã), motivou Reagan a ampliar consideravelmente os
gastos na área de defesa, em relação ao período de Jimmy
Carter. Essa expansão dos gastos norte-americanos – embora em termos de expectativas, e não de efetivo comprometimento orçamentário para o programa – chegou ao clímax
com a proposição da Iniciativa de Defesa Estratégica (SDI),
projeto que previa a alocação de 37,1 bilhões de dólares
para o quinquênio 1987-1991, valor que corresponderia à
totalidade dos recursos alocados à pesquisa e desenvolvimento do Exército norte-americano.
Para cobrir esse acréscimo extraordinário ao orçamento militar do país, o governo Reagan decidiu emitir
239
23
Os conhecidos exemplos dessa instalação, que requereram vultosos empréstimos
internacionais, foram, entre outros, a construção da usina de Itaipu, a ponte Rio-Niterói, os sistemas de metrô do Rio de Janeiro e de São Paulo, o financiamento
da usina nuclear de Angra e os projetos de siderurgia no âmbito do II PND, especialmente o de criação da Açominas.
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títulos do Tesouro norte-americano que, entretanto, não
viriam a ser cobertos pelo Federal Reserve pelo temor das
inevitáveis pressões inflacionárias. Diante dessa recusa, o
governo foi forçado a elevar exponencialmente as taxas
de juros para a captação de recursos no mercado, o que
veio a acarretar a elevação das taxas em todo o sistema.
Como resultado um tanto contraproducente dessa estratégia, cresceu o estoque da dívida pública norte-americana – ainda que as emissões dos títulos do tesouro tenham
logrado atrair eurodólares e petrodólares para os EUA
nesse contexto crucial de financiamento do seu complexo
industrial-militar24.
O impacto dessa brutal elevação de juros foi fatal para
os países latino-americanos e do Leste Europeu, estes
então na esfera de influência soviética. As consequências
mais visíveis foram o colapso das contas públicas em países como Polônia e Argentina e a moratória mexicana
de agosto de 1982. No Brasil, além das consequências
negativas sobre o balanço de pagamentos, a medida teve
como resultado: o início da recessão; o esgotamento
da capacidade de endividamento externo; o abandono
das pretensões de crescimento e o recrudescimento da
inflação. Diante da inevitabilidade da desvalorização do
cruzeiro, para tornar as exportações mais competitivas,
o país viu-se paradoxalmente forçado, no âmbito da
Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) a suprimir diversos subsídios e medidas de
apoio às exportações. Esse quadro levou o país a recorrer ao FMI, como já se viu, e a submeter-se ao pacote
com condicionalidades que impôs um alto custo político
ao governo. Os ingredientes conjunturais para a deflagração da crise de Estado e do modelo de substituição
A prime rate – taxa de juros média praticada pelos trinta maiores bancos comerciais norte-americanos –, que se situava em 6,25% ao final de 1976, havia saltado
para 21,5% ao final de 1980, primeiro ano do governo Reagan.
24
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de importações – que, conforme visto acima, comportavam aspectos sistêmicos, estruturais e que se relacionavam com os fundamentos pouco dinâmicos da economia brasileira – estariam então reunidos, sendo praticamente impossível ao regime, nesse contexto, manter o
apelo desenvolvimentista que caracterizou o período de
crescimento dos anos de 1970. Com isso, esvaneciam-se
também as escassas bases de legitimidade econômica do
ciclo militar brasileiro.
O marco político, econômico e institucional da
Constituinte (1986-1988)
A campanha de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, que
o guindaria à Presidência da República em janeiro de 1985,
vinha imbuída da tripla vaga de esperança de fazer do Brasil
uma democracia plena (em seus aspectos institucionais e normativos), de atenuar o impacto da crise econômica e de promover a justiça social num país assolado por desigualdades.
A morte de Tancredo não arrefeceu essas esperanças, que
viriam a ser renovadas com a decretação do Plano Cruzado,
um ano após que José Sarney tomou posse da Presidência.
Nessa linha de raciocínio que incorpora a esperança como
um elemento determinante da transição, pode-se estabelecer um contínuo entre as causas internacionais da crise
econômica brasileira, a vitória da Aliança Democrática no
Colégio Eleitoral, o resultado das eleições de novembro de
1986, a convocação da ANC e a promulgação da nova Carta,
em outubro de 1988.
Transcorrido um ano da posse de Sarney, as condições econômicas do país e os acordos políticos da transição fizeram com que se verificassem mais traços de
continuidade do que de descontinuidade entre o período militar e o início da Nova República, não obstante o
importante trabalho de remoção do “entulho autoritário”
realizado nesse período, basicamente com a passagem à
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legalidade dos partidos de esquerda até então proscritos25. Sem a legitimidade política de Tancredo e surpreendido à última hora com a Presidência, Sarney teve de
conviver com todos os indicadores econômicos negativos herdados do período militar, sobretudo com o agravamento da inflação e do desemprego, e a consequente
deterioração da situação social do país. A Nova República
mostrar-se-ia tão inepta quanto o último governo militar
para enfrentar as causas domésticas e internacionais da
estagnação e da crise de Estado, que não arrefecia, apesar – e talvez até por conta – dos leilões de privatização
do setor siderúrgico. O ciclo da substituição de importações simplesmente chegara ao fim e o Governo não dispunha nem de ideias nem de instrumentos para gerar um
novo modelo ou uma nova estratégia de desenvolvimento26. Seria legítimo indagar se o governo Sarney desejava efetivamente promover o desenvolvimento ou, muito
mais comodamente, optar por manter a estratificação
dos privilégios da tecnoburocracia e do capital, ainda
receosos do crescimento potencial das esquerdas com o
fim do período militar. Também nesse sentido, pode-se
afirmar que as continuidades ainda prevaleciam sobre as
descontinuidades, no tocante às relações entre a Nova
República e o período imediatamente anterior.
Com a continuidade do caos que se havia instalado na
economia brasileira e que rapidamente consumia o combustível da esperança abastecido na Campanha Diretas Já
e na vitória da Aliança Democrática no Colégio Eleitoral,
iniciou-se a era dos planos rocambolescos para se debelar a
25
A remoção do “entulho autoritário” começou, paradoxalmente, em pleno regime autoritário – já no Governo Geisel – com a suspensão parcial da censura à
imprensa, a aprovação da Lei da Anistia e a suspensão dos Atos Institucionais.
26
Uma importante novidade e exceção à ausência de uma estratégia nacional de
desenvolvimento terá sido a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT)
e da escolha do peemedebista Renato Archer para chefiá-lo.
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estagflação, o principal entre eles sendo o Plano Cruzado,
lançado em 28 de fevereiro de 1986. A característica básica
de tais planos era atacar as causas imediatas da inflação, de
modo a gerar efeitos impactantes e de curto prazo (quase sempre com propósitos eleitorais) e não enfrentar suas
causas remotas ou subjacentes, entre as quais assomavam o
patrimonialismo, a inelasticidade da oferta, os baixos índices
de competitividade econômica e de produtividade do trabalho, o protecionismo e a escassa integração do Brasil aos
eixos dinâmicos da economia internacional.
O Plano Cruzado gerou consequências econômicas
imediatas e efêmeras, mas que trariam dividendos políticos
duradouros e perenes. Com a inflação contida por decreto, passando a hibernar em cerca de 3% ao mês, contra
os insustentáveis 20% mensais de antes, os resultados em
termos de popularidade de Sarney e do PMDB foram espetaculares. O impacto do Plano Cruzado nas eleições de
1986 foi marcante e decisivo. O partido elegeu todos os
governadores do país, com a exceção de Sergipe, e montou
uma bancada, juntamente com o PFL, de 378 deputados,
que viriam a ser empossados como constituintes a partir
de 1o de fevereiro de 1987 e que correspondiam a quase
80% do total de 487 deputados eleitos. Passadas as eleições
e instalada a ANC, a crise e o caos econômico voltariam à
cena, com o governo Sarney vindo a decretar unilateralmente moratória junto ao sistema multilateral de crédito e
ao Clube de Paris, menos de quatro semanas após o início
dos trabalhos da ANC27.
243
27
A política econômica improvisada do PMDB da década de 1980 viria a cobrar
um alto preço nas primeiras eleições diretas para presidente, em 1989, com o
partido e seu líder, o deputado Ulysses Guimarães – o “Senhor Diretas”, baluarte
da luta contra o regime de exceção, que viria a ser abandonado por seu próprio
partido – sendo forçados a amargar desempenho pífio naquele pleito, que viria a
ser conquistado por um outsider.
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O fato, porém, de o PMDB ser uma grande frente
política, alimentada por amplos setores sociais descontentes ou opositores do regime militar – que o situou como
polo oposicionista num sistema bipartidário de fato (mesmo durante a segunda metade da década de 1980, após a
reforma partidária de 1979, com a divisão entre os “autênticos” e o “partido do Sarney”) –, traria consequências
inesperadas para o desdobramento dos trabalhos constituintes. Se muitos, como o próprio Sarney e diversos
parlamentares que mais tarde viriam a conspirar contra
o regimento da ANC, a partir da formação do “Centrão”,
representavam, em vários aspectos, o continuísmo em
relação ao regime anterior, houve tantos outros que propugnavam por mudanças mais radicais na estrutura política, econômica e social do país, por um efetivo rompimento com o passado e por uma integração do Brasil aos eixos
dinâmicos da economia mundial. Por circunstâncias que
foram esmiuçadas em outros trabalhos28, os progressistas
acabaram por assumir posições estratégicas nas comissões
e subcomissões da ANC, influindo nos resultados do processo e tendo um peso decisivo na aprovação final da Carta – o que mesmo a reação conservadora do Centrão não
foi capaz de evitar.
Cabe avaliar, porém, ainda que superficialmente, quais
seriam as relações mais diretas entre o contexto internacional da segunda metade dos anos de 1980 e os trabalhos
da ANC, inclusive no que concerne ao resultado final da
ação dos progressistas, este considerado desproporcionalmente favorável quando se tem em vista a real dimensão
de sua bancada.
Em termos metodológicos, não se trata do estabelecimento de diretas relações causais entre acontecimentos
internacionais e decisões políticas domésticas, da forma,
Ver Pilatti (2008), por exemplo.
28
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por exemplo, como as pressões das ONGs internacionais
suscitaram uma mudança drástica (para melhor) da política brasileira de direitos humanos no começo dos anos de
1990. Trata-se de mudanças estruturais do cenário internacional que, ainda que tenham tido impacto apenas indireto tanto na política e na economia brasileiras quanto nos
debates políticos que transcorriam ao tempo da Constituinte, nem por isso foram menos profundas ou marcantes, na
perspectiva holística e sistêmica a que este texto se filia. Em
termos um tanto gerais, além de situar-se num momento
crucial da crise de Estado brasileira, a Constituinte começava a sofrer os influxos da universalização de valores trazida à baila pela globalização política e pela formação de
um “sistema-mundo” articulado a partir de “sociedades em
rede” (Castells, 1996, p. 469).
No plano econômico, a Constituinte foi promulgada
num momento histórico de transição, entre o fim do período de SI e o advento da ampla liberalização capitaneada,
na América Latina, pelo Consenso de Washington29. Os
trabalhos em plenário ocorreram em momento de certa
dúvida e hesitação, sobretudo de parte das esquerdas, em
relação às plataformas que pretenderiam adotar, diante
dos acontecimentos internacionais que prenunciavam o
fim do socialismo-regime – de modo radical e dramático,
no caso da extinta URSS, e de modo mais gradual, no caso
da China –, do intervencionismo econômico estatal e das
ideologias de corte mais universalizante, como o próprio
245
Foi ainda promulgada na transição entre um modelo de dirigismo excessivo
(consubstanciado, por exemplo, no tabelamento constitucional da taxa de juros)
e outro de abertura econômica (instalado pouco mais de um ano a seguir) com o
advento das novas políticas industrial e de comércio exterior do governo Collor.
Para uma análise da política externa do governo Collor, ver Cruz Júnior et al.
(1993). No plano internacional, a referência ao dirigismo econômico relaciona-se
ao desmantelamento da antiga União Soviética, ao fim do bloco socialista europeu
e ao consequënte advento das economias de mercado nesses países.
29
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comunismo soviético ou algumas experiências autogestionárias do Leste Europeu30.
O amadurecimento das posições da esquerda durante
a Constituinte, no sentido de abandonar as referências ao
socialismo das “Internacionais”, romper definitivamente
com o estalinismo e passar a apoiar as reformas democratizantes e, até certo ponto, liberalizantes do então premiê
soviético Mikhail Gorbachev, tiveram ainda dois pontos
emblemáticos no Brasil, que ganharam força principalmente após o triunfo conservador nas eleições de 1989. No
primeiro caso, o deputado Federal José Genoíno, um dos
ícones da esquerda brasileira da década de 1980, anunciou
seu abandono do comunismo e do marxismo, proclamando-se como “não ortodoxo” e admitindo o lucro, o capitalismo e as relações descentralizadas de produção como
instrumentos mais eficientes para o desenvolvimento e
a geração de bem-estar social (Folha de S. Paulo, 1991b,
p. 12); o segundo caso pode ser localizado antes mesmo
da instalação da ANC, em pleno desenrolar do programa
de reformas na antiga URSS, em que o ex-secretário-geral
do PT, Francisco Weffort, afirmava que “hoje, no Brasil, o
sonho da revolução coincide com a luta pela democracia”
(Jornal do Brasil, 1985, p. 14). Mais tarde, ao regressar de
ano sabático no Helen Kellogg Institute of International
Studies da Universidade de Notre Dame, Weffort instilaria
grande controvérsia no debate político brasileiro ao declarar, em entrevista à Folha de S. Paulo – na mesma linha da
30
Havia diversas manifestações de dúvida, mesmo durante o processo constituinte,
em relação aos novos rumos da esquerda, com o fim do bipolarismo e da Guerra
Fria. No caso do PT, tais dúvidas foram refletidas num grande seminário realizado
pouco depois pelo partido, em abril de 1989, que resultou na publicação Weffort
(1989). Conferir especialmente Carvalho (1989). No caso do antigo PCB (hoje
Partido Popular Socialista/PPS), a resolução política do seu diretório nacional, de
primeiro de setembro de 1989, conclamava os militantes para o Congresso que iria
criar uma “nova formação política” e reconhecia a dificuldade da tarefa que teria
pela frente de “[...] buscar uma nova síntese teórica, democrática e humanista,
que fundamente um novo socialismo” (PCB, 1991, p. 2).
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anteriormente concedida por José Genoíno (Folha de S.
Paulo, 1991b, p. 12) – que o socialismo-regime nada mais
teria a oferecer ao Brasil31. Seria algo temerário conceber,
a partir desses e diversos outros exemplos, que os acontecimentos internacionais que precipitariam o final da Guerra
Fria não teriam impacto nos trabalhos da Constituinte e
no quadro político brasileiro mais amplo do final dos anos
1980, especialmente nas eleições presidenciais de 1989.
Uma questão política de fundo a se ressaltar no âmbito
dos trabalhos da Constituinte é a consciência de que
influente segmento das esquerdas e, mais importante do
que isso, as teses centrais que elas defendiam (alusivas,
por exemplo, à democratização e à cultura democrática, à
promoção de justiça e de inclusão social e à integração e
interdependência entre as nações no plano internacional)
ganhavam terreno em momentos obscuros da transição,
em que houve tentativas de fraudes nas eleições de 1982,
a rejeição da Emenda Constitucional das eleições diretas,
em abril de 1984, e a invasão militar da Companhia Siderúrgica Nacional, em novembro de 1988. Esse argumento
é tanto mais importante se concordamos com Florestan
Fernandes – e na linha do argumento exposto anteriormente – que a Nova República não representou ruptura de fato
com o regime militar32. Conforme o ângulo de análise a que
se queira dar preferência, a democracia plena ter-se-á con-
247
31
Cito de memória essa declaração de Weffort, proferida após seu regresso dos
EUA, embora, em textos subsequentes, ele tenha deixado claro sua desaprovação
ao socialismo-regime como alternativa política para a América Latina e o Brasil.
Em artigo de 1994, por exemplo, asseverava que “[...] não deveria surpreender
a ninguém que os socialistas, dada sua atual carência de alternativas econômicas
e de uma teoria social, devam abraçar nos próximos anos uma concepção do socialismo que não seja necessariamente vinculada a um sistema em particular, mas
definida, sobretudo, em termos de determinados valores” (Weffort, 1994, p.403).
32
"[As classes dirigentes] [...] usaram o Colégio Eleitoral como uma cidadela política, através do qual ‘elegeu’ os governantes da ‘nova’ República e deu continuidade à palavra de ordem da ditadura: ‘transição lenta, gradual e segura’" (Fernandes, 1989, p. 153).
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solidado com a posse do primeiro presidente diretamente
eleito após 1964 ou ainda somente depois, com a primeira vitória da oposição em eleições presidenciais no Brasil,
em 2002. De toda forma, a Constituinte representa o ponto
culminante da transição no Brasil e de uma vaga democratizante que havia arrastado praticamente todas as antigas
ditaduras da América Latina, correspondendo ao mesmo
tempo à primazia de uma tese sustentada pela maior parte
da esquerda e do campo progressista. A Constituinte e a
conclusão do processo de abertura política não corresponderiam, em absoluto – conforme preconizava o pensamento
conservador até bem pouco antes – um avanço do pensamento extremista de esquerda, em qualquer de suas vertentes, e isso devia ser atribuído, em grande medida, a um
novo contexto internacional marcado por mais democracia,
pluralismo e tolerância.
O âmbito negociador da Constituinte esteve, portanto,
associado a um cenário internacional marcado por novos
valores e princípios que deixaram suas marcas no próprio
processo político brasileiro, como anteriormente se indicou de forma mais geral. O contexto político da segunda
metade da década de 1980 é profundamente influenciado
pelas transformações radicais na ex-URSS, pelas políticas
de abertura, transparência e aceleração econômica empreendidas pelo então premier Gorbachev. A distensão da ex-URSS com os EUA havia chegado ao ápice com o acordo que previra a retirada, por ambas as partes, de todos
os mísseis estratégicos da Europa, assinado durante visita
de Gorbachev a Washington, em dezembro de 1987, e ratificado na visita de Reagan a Moscou, em junho de 1988.
Momento dramático da abertura patrocinada por Gorbachev foi quando telefonou pessoalmente para o físico e dissidente Andrei Sakharov, pouco antes da visita de Reagan a
Moscou, para anunciar que o exílio seu e da mulher Elena
havia acabado, com um pedido formal de desculpas. O
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casal foi então convidado a participar do jantar de gala em
homenagem a Reagan no Kremlin (Veja, 1988, p. 53).
Outro importante acontecimento que atraía a atenção
internacional no período dos trabalhos constituintes no
Brasil foi a decisão do Conselho Europeu de promover a
plena integração econômica, monetária, comercial, educacional, de trânsito de pessoas, serviços e mercadorias no
espaço comunitário, a partir de 1992. Tal medida apresentava um componente marcadamente ético e político, muito
além da dimensão econômico-comercial, diante do fato de
a integração ter sido anunciada para um continente rasgado por guerras que vitimaram dezenas de milhões de pessoas em passado não muito distante. Tal decisão ajudava a
compor um zeitgeist da segunda metade dos anos de 1980,
substancialmente distinto do que prevalecia menos de dez
anos antes, no quadro geral das relações internacionais e
do sistema internacional da Guerra Fria33.
As características do novo sistema internacional decorrentes do iminente fim da Guerra Fria produziriam forte
impacto, na perspectiva metodológica aqui adotada, nos
trabalhos dos constituintes. O temperamento geral prevalecente foi de diálogo e composição, a partir do descrédito das
doutrinas extremistas e universalizantes e com a primazia
de valores que seriam consubstanciados por John Rawls no
conceito de “fato do pluralismo” (Rawls, 1996, pp. 36-7).
Segundo esse conceito, os meios e as regras, a “primazia do
direito sobre o princípio” (right over the good) devem prevalecer lógica e racionalmente sobre ideais de corte finalístico.
A Constituinte tornava-se, desse modo, a suprema regra do
249
Um tanto sintomaticamente, o parágrafo único do artigo 4o da Constituição de
1988 preconiza que o Brasil “buscará a integração econômica, política, social e
cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade
latino-americana de nações”, ideal que, em certa medida, remonta ao período da
“política externa independente” dos anos de 1960 e exprime valores cosmopolitas
e internacionalistas.
33
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jogo pela qual toda atividade política e as relações sociais
do país teriam de se pautar. Tentativas de desqualificação do
processo constituinte, empreendidas, sobretudo, pelo Palácio do Planalto e pelo ministro do Exército, não foram
tomadas a sério nem pela sociedade brasileira, nem pelos
próprios constituintes, na figura do presidente da ANC,
Ulysses Guimarães. No plano internacional, as grandes,
crescentes e até então improváveis afinidades pessoais entre
Reagan e Gorbachev indicavam os contornos do novo sistema internacional, no qual o confronto e os extremismos
cediam o passo ao diálogo e à composição.
A substituição da “doutrina da contenção” da Guerra
Fria pelo “princípio da reciprocidade” (Rawls, 1996, pp.16,
49-50) do novo sistema internacional teve reflexos explícitos
na Constituinte e na nova Constituição. Isso fica claro quando se comparam os dispositivos do artigo 7o da Emenda
Constitucional n. 1, de outubro de 1969 (que mencionava
“conflitos internacionais” e “guerra de conquista”) com o
artigo 4o da Constituição de 1988, que elenca um rol de
princípios éticos que devem reger a política externa brasileira e as relações internacionais. Entre estes se encontram
o aludido princípio da integração latino-americana (como
emulação da tendência geral de integração política, comercial e econômica em diversas regiões do planeta); a ideia da
“cooperação entre os povos para o progresso da humanidade” (em contraste com a divisão do mundo em esferas de
influência durante a Guerra Fria e com a existência de ideologias extremistas e degeneradas como o nazismo, o fascismo, o estalinismo, o maoísmo, o franquismo, o macartismo etc.); o primado do multilateralismo e do direito internacional em relação ao isolacionismo e o unilateralismo
da fase anterior; o multipolarismo e a emergência de novos
atores internacionais, em relação ao sistema bipolar anterior; a prevalência de valores éticos como o respeito aos
direitos humanos e ao meio ambiente em relação à antiga
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supremacia da soberania territorial34 e, por fim, a ampliação
da agenda internacional, também a partir dos anos de
1980, com a inauguração da “era das conferências sociais”
das Nações Unidas, com o objetivo de tratar multilateralmente temas até então restritos à competência interna dos
países (meio ambiente, direitos humanos, saúde, combate à
pobreza, promoção do desenvolvimento sustentável, qualidade de vida nas metrópoles, direitos e saúde das mulheres
e crianças, combate à xenofobia, racismo e todas as formas
de discriminação, entre muitas outras). A adequação do
Brasil a esses novos valores internacionais foi a mais natural
possível, com a Constituinte e o artigo 4o da Constituição
tendo sido amplamente responsáveis por essa plena e rápida inserção política brasileira no cenário internacional, com
reflexos positivos visíveis que se prolongam nos dias atuais35.
O voo da borboleta e a Constituição do país governável
Na introdução de sua portentosa obra sobre Lukács, Ortega
y Gasset e Heidegger, Francisco Gil Villegas (1996, p. 13)
questionava, um tanto sardonicamente, se “por acaso não é
uma das características típicas do bizantinismo hermenêutico começar a procurar semelhanças onde as divergências
se presentam tão grandes e evidentes?”. Da mesma forma,
seria um exercício de “bizantinismo hermenêutico” buscar
causas internacionais remotas para fenômenos que, muitas
vezes, teriam raízes ali mesmo na esquina do tempo e da história? Como alguns exemplos possíveis, bastaria atinar para
a mobilização e a apresentação de emendas populares para a
Constituinte, as greves, a reação de militares, camponeses
251
34
O fim do regime do Apartheid na África do Sul em 1994 e a prisão do ex-ditador
chileno Augusto Pinochet em Londres, entre 1998 e 2000, exprimem a primazia
dos direitos humanos no sistema internacional e a relativização do conceito de
soberania, tal como expresso nas formulações clássicas de Jean Bodin e Hobbes.
35
Estudo pioneiro sobre o impacto potencial dos novos dispositivos da Constituição de 1988 sobre a política externa brasileira é o de Almeida (1990).
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e ruralistas durante aquele processo para perceber como
determinadas ações e resultados na Constituinte dispunham de causas mais imediatas e perfeitamente discerníveis
no tempo e no espaço – no caso, a agenda político-social
brasileira da politicamente movimentada e economicamente estagnada década de 1980.
Num outro diapasão, a busca de causas internacionais
para os processos políticos domésticos brasileiros poderia
radicar mais prosaicamente na teoria do caos do matemático norte-americano Edward Lorenz, que recorreu ao voo
de uma borboleta no Brasil para explicar a formação de tornados no Texas (Lorenz, 1972). Nessa teoria, os fenômenos
sociais estariam tão intimamente interconectados em escala
global que a tese do impacto das relações internacionais nos
trabalhos da Constituinte soaria, mais que bizantina, trivial.
O fato é que, entre os extremos da trivialidade e do
bizantinismo, há um meio termo, capturado por Raymundo
Faoro na afirmação citada no início deste artigo, que introduz causas internacionais diretas e indiretas em diversos episódios históricos e movimentos político-sociais brasileiros.
Até, grosso modo, o advento do Plano de Metas de Juscelino
Kubitschek, a economia e a sociedade brasileiras eram
fortemente tributárias desses influxos forâneos: Gilberto
Freyre ensinou sobre a presença decisiva e marcante dos
ingleses na cultura e na sociedade brasileiras do século XIX
e primeiras décadas do século XX; a literatura e a cultura
brasileiras da década de 1920 em diante dependeram fortemente das vanguardas artísticas europeias; o mesmo ocorrendo com a organização institucional militar, universitária,
acadêmica e educacional do Brasil nas primeiras décadas
do século XX. O advento da República foi inspirado em ideais e instituições adotados nos EUA36.
36
Tal como o foi, muito mais recentemente, a fixação do mandato presidencial em
quatro anos, com a possibilidade de uma reeleição sucessiva.
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O contexto da Constituinte foi marcado, contudo, por
um duplo movimento social: por um lado, o Brasil havia
se tornado mais maduro e socialmente independente para
refletir e agir de maneira autônoma em relação ao seu lugar
no mundo37; de outro, o fenômeno da globalização apenas
iniciava sua escalada vertiginosa rumo à homogeneização de
políticas macroeconômicas e de bem-estar social em escala
global. Se hoje verificamos que as políticas macroeconômicas de todos os países do mundo, particularmente os da
América Latina, são muito similares entre si, em 1987-1988
não havia clareza sobre os rumos a seguir, sobre o peso de
determinadas trajetórias econômicas de dependência e
de especialização produtiva, e sobre as opções políticas
que se descortinariam para os movimentos populares que,
de uma hora para outra, ficaram sem referências políticas
óbvias no cenário internacional.
Justamente por essa condição histórica peculiar, de limiar
entre duas eras e de estar situada na transição de um sistema internacional para outro, a Constituinte e a Constituição
de 1988 buscavam observar atentamente o que se passava no
mundo, com vistas a capturar os princípios, valores e tendências políticas que se firmariam nos anos e décadas a seguir. Por
observar atentamente esse cenário internacional, por antever
seus limites e possibilidades, a Constituição de 1988 não deixou
o país ingovernável, conforme ressoavam alguns maus augúrios palacianos da época. Ainda que tenha tido de se emendar por mais de quatro dúzias de vezes, a maioria dessas
alterações visava corrigir resquícios da era da substituição de
importações e do dirigismo estatal num modelo econômico
global marcado pela ação desimpedida dos mercados – com
reflexos muitas vezes catastróficos, conforme se pôde verificar
em oportunidades recentes –, particularmente financeiros e
253
A tese de doutorado de Maria Regina Soares de Lima (1986) situa os primeiros
momentos de maior autonomia da política externa brasileira, em relação ao conflito bipolar, durante os anos de 1970.
37
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Constituinte e democratização no Brasil: o impacto das mudanças do sistema internacional
oligopolizados. Por saber fazer a leitura correta e seletiva das
pressões estruturais de um cenário internacional complexo e
que se transformava com grande velocidade, a Constituição
de 1988 não só tornou o país plenamente governável, mas
estabeleceu os parâmetros da legitimidade democrática brasileira pelos tempos a seguir. Houve inúmeros desafios, e a
Constituição saiu-se bem em todos, de modo geral.
Ademar Seabra da Cruz Júnior.
é professor do Instituto Rio Branco (IRBr/Brasília) e pesquisador do Cedec.
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254
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The weight of history and the rebuilding
of Brazilian democracy*
Zachary Elkins
Nation-states, like their citizens, are dependent on their peers
for cues about what passes for appropriate behavior. With
respect to the evolution of political institutions, the result
is the proliferation of political fads among certain clusters
of countries, a process which scholars describe in terms
of “waves”, “contagion”, “isomorphism”, and “reflection”.
The idea that the adoption of a practice by one actor would
influence the probability of adoption by another (a useful
definition of the concept diffusion1) is an intriguing metasubject of inquiry within a variety of disciplines and a variety
*
This article was adapted from a paper presented at the “Symposium on Brazilian History and Society: Brasil/EUA – Novos Estudos Novos, Novos Diálogos”.
CPDOC/Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, June 20 and 21, 2006.
1
This usage of “diffusion” is paraphrased from Strang’s (1991) definition as any
“prior adoption of a trait or practice in a population [that] alters the probability
of adoption for remaining non-adopters”. There are a host of related phenomena
subsumed under this general concept (i.e., in addition to “waves”, “contagion”,
“isomorphism”, and “reflection”, we may include, “imitation”, “demonstration
effects”, “mimicry”, “emulation”, “spatial autocorrelation”, “Galton’s Problem”,
“dissemination”, “transfer”, and “signaling”).
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
258
of topics2. In recent years, scholars of democracy – noting the
symptoms of diffusion in their own phenomenon of interest
– have produced an inspirational set of studies on the process
(Starr, 1991; Markoff, 1996; O’Laughlin, Ward, et al., 1998;
Coppedge and Brinks, 1999). These studies provide much
needed confirmation, and in some cases, elaboration, of a
powerful mechanism of institutional change.
At this point in the research cycle, we can be confident
that institutional and policy transitions are highly
contagious. The intent of the analysis below is to document
the process of contagion at the level of the decision maker
in transitioning countries. While the study is grounded in,
and inspired by, evidence of contagion in democratization, we
turn our attention away from the choice of regime type –
a choice that is usually not debated publicly or concretely.
Rather, the analysis below focuses on a very particular, but
fundamental, institutional choice that confronts actors
in new democracies: whether to adopt a presidential
or parliamentary system of government. Anecdotal
evidence and intuition suggests that this decision is highly
dependent on the decisions of neighboring and otherwise
relevant governments. I examine the decision process in
Brazil, an important and recent case of democratization.
This country is especially interesting because of its historical
experience with both parliamentarism and presidentialism,
the comprehensive agenda of its recent constitutional
convention, and its strong ties to both the Americas and
Europe – two important regions with opposing systems
In political science, the work of Walker (1969) and Gray (1973) on the diffusion
of policy in the U.S. states prompted scholars to reconsider their assumptions
about policy evolution. Since then, a number of studies of policy – e.g., Collier and
Messick (1975) on social security and Tolbert and Zucker (1983) on civil service
reform – and conflict – e.g., Most and Starr (1980), Bremer (1992), Pollins (1989),
Siverson and Starr (1991) – have confirmed these insights. A parallel set of studies
exists in sociology with respect to institutional evolution – e.g., Meyer and Rowan
(1977), DiMaggio and Powell (1983), Strang (1991).
2
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of government. The analysis below reviews evidence
at both the cross-national level and the individual level that
suggests that 1. foreign experience and foreign models
are remarkably influential and relevant to the designers of
policies in new democracies; 2. high-achieving countries
as well as culturally similar countries make for influential
models; and 3. institutional choice is highly path dependent
and resistant to innovation.
The distribution of parliamentarism and presidentialism
worldwide
Systems of government are highly segregated by culture,
geography, and economic achievement. As the 1997 map in
Figure 1 demonstrates vividly, regions of the world tend to
be either parliamentarist or presidentialist but not both.
The only regions with much diversity are Asia and
Eastern Europe and even these are an overwhelming 70%
presidentialist and parliamentarist, respectively.
259
Figure 1:
The Geography of Presidentialism and Parliamentarism (1997)
System of Government
Presidentialist
Non Democratic
Parliamentarist
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Of course, geography is strongly related to cultural
characteristics like language, religion, and colonial heritage.
In fact, Table 1 suggests that diversity within regions can be
attributed to differences in colonial heritage, language,
and religion. For example, while the Americas are largely
presidentialist, the former British colonies in the region
are universally parliamentarist with the exception of the
United States. Similarly, Eastern Europe is predominately
parliamentarist except for the states of the former Soviet
Union, which are, to a country, presidentialist. Along with
language and colonial heritage, religion makes for an
excellent marker of cultural identity as well, and displays
the same degree of institutional homogeneity. Observe, for
example, the almost universal presidentialism among largely
Muslim nations. However, all this is not to say that religion
and blood are always thicker than geography. The former
British possessions in Africa look like their presidential
neighbors and not their former protector and patron. What
seems clear, without turning to more formal multivariate
analysis, is that systems of government are highly dependent
on geography and several markers of culture.
Parliamentarist and presidential governments differ
markedly also by their economic resources and achievements.
As Table 1 shows, parliamentary systems are, on average,
significantly more developed. Countries with parliamentary
systems have a higher Gross Domestic Product (GDP)
per capita, a higher degree of economic equality, a higher
life expectancy, and a higher credit rating than do those
with a presidential system. This discrepancy is even more
pronounced if we exclude the United States.
These profiles are not intended as historical evidence
on the diffusion of different systems across the globe.
Our interest at this point, however, is simply to document
the currently highly clustered nature of systems of
government in order to describe the unique setting in
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Table 1:
Characteristics of Presidential and Parliamentary Governments
Source: World Bank; Alvarez et al. 1999
Characteristic
Parliamentary Systems Presidential Systems
Number of Countries in
Anglo America
9
1
Latin America
0
19
Africa
5
53
Asia
12
4
Eastern Europe
7
16
Western Europe
19
1
South Asia
4
4
Catholic
17
28
Protestant
12
4
Muslim
5
36
Spanish colonies
1
20
British colonies
15
1
Number of Countries which are primarily
261
Number of Countries which are former
Average GDP per worker
19,301
13,769
Income Distribution (GINI)
42.9
35.6
Life Expectancy at Birth
71.6
65.8
B
C/D
Average Sovereign Bond Rating
(S&P)
N.B. Over the entire sample, GINI ranges from 19.4 to 63.2, GDP from 480 to
37,000, life expectancy from 33 to 73, and the S&P Bond ratings from A to G.
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which governments now operate. Nevertheless, it seems
safe to assert that the distribution of systems results from
a pattern of both imitation among peers and correlated,
but independent, decisions by governments with similar
histories and structural assets3.
Five propositions about continuity and change in systems
of government
262
What are the forces for, and against, institutional change
in an environment in which the distribution of choices is
highly clustered along cultural, economic, and geographic
lines? Our intuition is that such an environment, in which
there are clear policy signals from very cohesive reference
groups, provides strong incentives to conform to group
norms. The expectation is that these external influences are
at least as strong as any domestic impulses and calculations
for change. We begin with five propositions.
Proposition 1: Governments will be reluctant to deviate
from the practices of their cultural and geographic peers.
Why should neighbors and cultural peers be so
influential? One reason is that similar or adjacent entities
will interact more often. More contact and communication
results in more shared information about practices. Axelrod
(1997, p. 205) develops a model of the dissemination of
culture that abstracts from this fundamental principle to
say that communication is most effective between “similar”
people. His theory of the diffusion of ideas specifies
mechanisms of change for local actors in the absence of
any coordinating central authority. In his model, actors
3
On the one hand, the coherence within cultural blocks is due in part by
simultaneous, but independent, decisions on the part of countries with very
similar structural characteristics. For example, it was natural for the former British
colonies – all with experience with the parliamentary system – to adopt a similar
system. In other cases (for example, the adoption of presidentialism in Latin
America) there is clear evidence of actual imitation.
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are adaptive rather than fully rational: they follow simple
rules about giving and receiving influence, but they do
not necessarily calculate costs and benefits in a strategic,
forward-looking way. The result of Axelrod’s model are
pockets of ideational convergence, based on the number
of features that two neighbors share in common. In the
case of nation-states, increased information about foreign
practices translates into imitation in a number of ways.
For example, foreign models can encourage or expedite
adoption by inserting a policy on a legislature’s agenda,
by offering a ready-made answer to domestic pressure for
“change” and “innovation”, by legitimating conclusions
or predispositions already held, or by adding a decisive
data point in the evaluation of alternatives (Bennett
1991a, 1991b).
Increased communication among countries, however,
is not the only motor behind social influence. Culturally
similar entities, whether or not they communicate
extensively, constitute a relevant reference group with
an established code of behavior. As John Meyer and
co-authors argue persuasively, nations and organizations
are remarkably responsive to the need to conform to
these norms (Meyer and Rowan, 1977). Rosenau (1990)
terms these reference groups “cathectic”, suggesting that
decision makers have a strong cultural sense of whom
their nation should look like. In this sense, collectives
may adopt institutions for symbolic or ceremonial
reasons quite independent of efficiency criteria (Powell
and DiMaggio, 1991). In the case of presidentialism and
parliamentarism, in which the institutions are highly
clustered along cultural and geographic lines, the
expectation is that the mechanisms of communication
and conformity will be especially strong.
Proposition 2: Governments will be attracted to the
policies of more economically successful governments.
263
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One of the basic tenets of social influence is that
actors of lower social status emulate those of higher
status. Policy makers might emulate the policies of
successful, high achieving nations under the assumption
that these nations possess some degree of expertise or
even that their enhanced performance is in part due
to their superior institutions. Westney (1987) makes
this argument in her description of Japan’s adoption
of police, postal, and newspaper institutions from
the West in the 1800’s. In diffusion research, such
transfers fall under the concept of hierarchical diffusion
(see Lerner, 1964; Collier and Messick, 1975; Rogers,
1995). Since a strict class distinction between
presidentialists and parliamentarists makes it very clear
what the status structure will be, we expect the forces of
hierarchical diffusion to be strong.
Proposition 3: Among developing nations, there will be
some resistance towards the policies of a hegemonic or
imperial power.
The proposition adds an important qualifier to
proposition 2. Anti-imperialism is a strong feeling in
developing nations and political policies have very symbolic
power. While successful nations can serve as natural
showcases with alluring models, success can breed as much
resentment as it can admiration.
Proposition 4: Young states are more susceptible to
external influences, and thus policy transition, than are
older states.
Proposition 5: A government’s institutional choice is
dependent largely upon the generation of its birth.
These two propositions stem from the premise that
institutional choices are extremely path dependent
and, once adopted, hard to amend. A generation or
two in a continued policy state can build in citizens a
strong symbolic, and in the case of leaders, professional
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attachment, to their institution. This is a common
observation in the literature on the diffusion of innovations
and bears examination in the case of political institutions.
The crucial insight here is that a symbolic attachment to
institutions can thwart a transition to what experts may
agree are superior, or at least more appropriate, institutions.
The QWERTY typewriter and non-Metric systems are
two examples of inferior practices that continue largely
due to real or perceived costs of transition. This insight
leads us to two interesting expectations for political
institutions. First, it is fair to assume that in young states
the accumulated attachment to institutions is low, and so the
costs of removing existing structures and practices is
similarly low. It is, therefore, these young, embryonic
states that should be most sensitive to the influence of
their cultural, geographic, and economic peers. Second,
and consequently, we suggest that the evolution of a
government’s system of government is highly dependent
on the prevailing wisdom during the era of its birth. As
such, we should see distinct “generational” differences
among governments with respect to parliamentarism and
presidentialism, according the government’s date of birth.
In this paper, we merely note these propositions; our
evidence focuses on the first three.
265
Baseline Domestic Political Predictors of Institutional
Transition
While we are most interested in external influences on a
government’s choice of institution, we must also consider
internal forces unrelated to a government’s international
and generational environment. The assumption behind
such explanations is that decision makers are largely
unaffected by the influence of their peers. When crises
arise that precipitate a reconsideration of their policies and
institutions, they either look to the experience of their own
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nation or act purely from their own preferences and needs.
Their own preferences and needs have to do mainly with
the structure of their other political institutions.
There are at least three plausible structural reasons
for leaders to support one system over the other. First,
parliamentarism thrives in nation states that have strong
and unified national parties. Which characteristic leads
to the other is unclear, although it is probable that the
installation of parliamentarism leads to these strong parties.
It is also plausible that governments characterized by weak
parties will view presidentialism as a better fit than they
will parliamentarism. Second is the related finding that
very few large federal states have parliamentarism. While
parliamentarism is certainly possible in a federal state
(e.g., Germany), it is seems reasonable to think that
diversity and decentralization in such states makes it
difficult to build the strong and unified national parties
that parliamentarism requires. Third, the decision process
of some leaders will undoubtedly include an estimate of
the probability that either system will advance their
professional interests. Presumably, they would be in favor
of whichever system would be most amenable to electing,
as national executive, themselves or their preferred
candidate (or, conversely, avoiding the election of their
least preferred candidate). These domestic factors serve as
benchmark explanations by which we judge the strength
of the external influences.
Rates of transition between systems
The literature proliferating in the last decade on the
merits of presidentialism and parliamentarism has
a prescriptive flavor that implies reasonable odds of
transition between systems (Linz, 1990, 1994; Stepan
and Skach, 1993; Riggs, 1997). The reality is that such
transitions are rare. In fact, the records of one leading
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dataset (Alvarez et al., 1999) do not contain a single case
of transition between the two systems between 1950 and
1990 (the time period covered by the data)4. To some
degree, such continuity is a methodological artifact of the
Alvarez et al. (1999), which do not differentiate between
parliamentary and presidential systems in cases that they
deem non-democratic (a category which includes 60% of
the cases in the sample).
Notwithstanding the Alvarez et al. (1999) coding
decision, system-of-government transitions are a rare
event. A useful World Bank dataset, which covers the
period 1975 to 1987 and excludes far fewer nondemocracies (14.7% are coded non-democracies), shows
roughly one or two transitions a year in each direction.
Table 2 reports these transition probabilities for shifts
in each direction and identifies the cases of transition.
Note that these rates should be considered an upper limit
since some transitions, like that of Spain and Portugal to
parliamentarism, might be better understood as transitions
from authoritarianism than from presidential democracy.
Nevertheless, transitions in either direction (the rates of
which are less than 2%), are a rare event by most standards.
For comparison, they are similar to those for transitions to
democracy, which in the last fifty years average a little less
than 2%, and about half the rates of transitions to liberal
economic policies which tend to occur about 4 to 5 % of
the time (Simmons and Elkins, 2003)5.
267
4
See Alvarez (1998) for an interesting application of these data to questions of
parliamentarism and presidentialism.
5
These democracy transition rates are around 2% regardless of whether one
thinks of transitions as major changes in the level of democracy – and so uses a
graded scale of democracy – or as shifts in democracy over and above a certain
cut point – and uses a dichotomous measure like that of Alvarez et al. (1999).
Normally this is a critical methodological distinction (Elkins, 2000).
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
Table 2:
Transitions Between Presidentialism and Parliamentarism (1975-1997)
Source: World Bank
Year
Transitions to
Parliamentarism
1976
Bangladesh
1977
Thailand
1978
Spain
Grenada, Pakistan
1979
Panama
1980
Thailand
Zimbabwe
1981
Uganda, Zimbabwe, Nepal
Suriname, Turkey
1982
Honduras
Djibouti
1983
Portugal
Sri Lanka
1984
Turkey
1985
Grenada
1986
268
Transitions to
Presidentialism
Uganda
1987
Sudan
1988
1989
Panama
Losotho
Fiji
Pakistan, Suriname
1990
Sudan, Honduras, Suriname
1991
Germany
Zimbabwe
1992
Bangladesh, Suriname, Togo
Cape Verde
1993
Fiji, Niger
1994
Lesotho, Burundi
Niger
1995
1996
Ethiopia
1997
Israel, Burundi
Number of Countries
ever at Risk
108
73
Time at Risk
1880
1076
22
21
1.17
1.95
Number of Transitions
Transition Rate (%)
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Zachary Elkins
Parliamentarism and presidentialism in Brazil
Given the rarity of these transitions, there is much to be
gained by looking carefully at the decision process in a particular case where such a transition is under consideration.
Brazil makes for an intriguing case study for several reasons. The country is unique in the Americas in that it has
extensive experience with both presidentialism and parliamentarism. Immediately following independence from Portugal, Brazil existed with a semi-parliamentary system until
the deposition of emperor Dom Pedro II in 18896. At that
point, Brazil gravitated to a presidential republic fashioned
after the United States version7. Throughout the century,
6
Brazilian independence, itself, was a unique affair. Dom Pedro I, the son of the
Portuguese king, residing in Rio de Janeiro, himself declared Brazil’s independence. This irony was the result of the king’s having left Lisbon for Rio in order to
seek refuge from Napoleon, and then – comfortably ensconced in Rio and finding
it more and more difficult to rule Portugal remotely – cutting ties with Lisbon.
With respect to the system of government, this had unique consequences for Brazil. In order to accommodate a royal head of state, but still adopt a more representative system – as the powerful ideas from the American and French revolutions
demanded – Brazil adopted a semi-parliamentary system.
7
A stable parliamentary system continued in Brazil until Dom Pedro II’s deposition
in 1889. With the end of the empire, leaders convened a constitutional assembly to
devise a new set of rules. From the results of the 1891 Constitutional Assembly, it is
clear that the young United States served as the principal model for Rui Barbosa
and other founders of the Brazilian republic. The founders commissioned three
authors who, working independently, were to draft initial versions from which to
craft the final document. Not only did all three produce a presidential plan, but
also all three employed language from the US constitution to do so. Compare
Americo Brasiliense’s version “The exercise of executive power of the federation
will be conferred on a single person who will have the title of President of the
United States of Brazil; his mandate will be for four years” (Franco and Pilla, 1958)
with the United States version “The executive power shall be vested in a President
of the United States of America. He shall hold his office for the term of four
years” (Article II, Section I of the US Constitution). Even the new name of the
federation, United States of Brazil, was no accidental reference to the northern
US. The adoption process was as clear as could be. Upon receiving the “new”
constitution, one delegate wrote to a friend, “we all knew that it was not an original
work or any sort political experimentation. [The three drafters] presented us with
the text of the North American constitution, completed with a few lines from the
Swiss and Argentine documents” (Amaro Cavalcanti apud Franco and Pilla, 1958).
The turn away from Europe, or more exactly, towards the United States had been
a number of years in the making. Clearly, the young United States model had
269
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
however, parliamentarism has had adherents who have presented periodic proposals for its reinstatement8. Brazilian
leaders even reverted to parliamentarism for one brief stint,
in 1961, during a time of crisis9.
Brazil is an interesting case also because of its close
ties to both the United States and Europe – the world’s two
principal models of presidentialism and parliamentarism
respectively. Economically, Brazil depends upon the United
States for most of its trade and external capital. Politically
and culturally, however, Brazilians are very cognizant of
their European roots and often prefer European products
270
much to recommend it. Intellectually, it represented a fresh, progressive answer
for other countries in the hemisphere that did not yet have reason to resent
North American power and influence. To many it was still an irreverent answer to
centuries of European domination on the continent. More importantly, it was the
model adopted by each and every one of the newly independent Latin American
states. It was clear that Brazil was conscious of not fitting in with its neighbors. As
early as the middle of the century, Alberdi and others were attempting to steer the
direction of Brazilian politics towards that of its neighbors, including the United
States. In 1852, Alberdi complained bitterly, “nothing is more outdated and false
than the pretended antagonism between the political views between Brazil and the
other South American republics [...] Brazil is today a power essentially American”
(Franco and Pilla, 1958, p. 25).
8
These calls came from important political figures. Even Rui Barbosa, one of those
credited with founding a presidential Brazil, very famously became disenchanted
with his creation and joined the call for parliamentarism. Nevertheless, despite
legislative proposals that were presented every ten or fifteen years (the strongest
of them was Raul Pilla’s amendment in 1946), a presidentialist majority (often
enforced and financed by clearly defiant presidents) always prevailed.
9
Parliamentarism reentered Brazilian politics by political necessity in 1961 for
about 18 months. That year, vice president João Goulart, the left successor of a
right administration, assumed the presidency after frustrated President Jânio
Quadros stepped down. The military and the right found Goulart’s accession
unacceptable and began preparations for his removal. To prevent a coup, leaders
from the left and right reached a compromise in which Goulart would continue as
president in a parliamentary system. Stripped of nearly all power, Goulart began
almost immediately to press for the return of presidentialism. After 18 months of
economic and political confusion, he was able to sow enough doubt in the system
that the legislature organized a national plebiscite on the question. The Brazilian
mass public, as they have in subsequent surveys and in a similar plebiscite 30 years
later, voted overwhelmingly for presidentialism (nearly five to one). After the reinstallation of presidentialism (and with it the restoration of Goulart’s power), the
inevitable military coup occurred to remove Goulart, thus beginning twenty years
of uninterrupted military leadership in the guise of a presidentialist democracy.
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and styles. The result is an interesting tension between each
of these influences.
Another reason to focus on constitutional decisions
in Brazil is that its Constitutional Assembly in 1987-1988
and the parliamentarism-presidentialism debate within
the assembly marked a critical moment in the country’s
transition to democracy. Unlike the rather perfunctory
constitutional process of some of its transitioning neighbors
(e.g., Argentina), Brazil’s process was open to more
fundamental and comprehensive change in the structure
of government. Such a deliberate, thorough process
presents a good opportunity to understand how decision
makers incorporate foreign models when designing new
political institutions. Moreover, debate over the system of
government was easily the most important and fundamental
issue facing the delegates at the constitution. The subject
occupied a disproportionate amount of their time, inspired
over sixty books and countless articles, and its vote was the
only session that all 559 delegates attended. Indeed, for
some, the very reason for commissioning a new constitution
at all was to rethink presidentialism. Remember that
the military government had operated within a formally
democratic constitution (albeit modified to suit their needs
in 1969). Many Brazilian politicians – at least presidentialists
like Marco Maciel – argued that a new constitution
was unnecessary for the transition to democratic rule.
271
The odds on presidentialism and parliamentarism in the
Constitutional Assembly
From the day the Constitutional Assembly convened, the
adoption of a parliamentary system seemed inevitable.
There are four strong reasons to have expected such a
choice. First, a large majority of elites within Brazil had
converged on a preference for parliamentarism by the time
the convention opened. Intellectuals, for one, were (and still
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
272
are) overwhelmingly in favor. Virtually all of the opinion pieces
in the media and books on the subject are unequivocally
supportive of parliamentarism10. José Serra, in fact, claims
in his paean to parliamentarism that he can count on
one hand the intellectuals who support presidentialism.
Moreover, this group of pro-parliamentarist intellectuals was
well represented at the convention. Surveys of delegates11
consistently showed that more than 70% of the delegates
favored parliamentarism throughout the convention. Even
more importantly, the chair and rapporteurs of the relevant
committees (that is, the committee and its subcommittee
responsible for drafting the proposal and the integration
committee responsible for incorporating additions and
changes introduced by delegates in the general assembly)
were staunch parliamentarists.
Second, to the extent that policy makers had formally
evaluated the merits of the two systems, the results had
come back strongly in favor of parliamentarism. The most
important of these studies was one carried out in 1985
by a fifty-member commission headed by Afonso Arinos.
The commission, staffed largely by academics (including
Bolivar Lamournier and Helio Jaguaribe), recommended
a mixed parliamentary system like that of France. Fourth,
the political and economic context of the 1980’s seemed
to predispose legislators to parliamentarism. After twenty
years of military rule, marked by egregious displays of
executive dominance, the stage was set for a substantial
shift in power towards the legislature. Parliamentarism,
many argued, was exactly the right vehicle to accomplish
this delicate rebalancing. Moreover, and most importantly,
parliamentarism offered an excellent solution to the
problem of Executive transition during crises that had
The 1993 plebiscite provided the opportunity for academics and political
thinkers to produce a wealth of propaganda.
11
Like that in Veja newsmagazine on February 2, 1987.
10
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Zachary Elkins
seemed to plague Brazil and its neighbors. Many Brazilian
elites had lamented the inflexibility of presidentialism
and its unresponsiveness to changes in the political mood.
Nelson Jobim, in a critique of presidentialism, quipped that
the system had only three responses to crisis: 1. suicide in
1954; 2. renouncement in 1961, and 3. coup d’etat in 1964
(apud Pereira, 1993)12. Parliamentarism, of course, offers a
convenient and legitimate way to remove an unpopular or
ineffective Executive.
Such convenience and flexibility seemed particularly
salient during the drafting of the Constitution. Many
legislators were unhappy with José Sarney’s succession
after Tancredo Neves’ sudden infirmity and then death
in 1985. One year later, when the convention opened,
they were certainly amenable to a mechanism that
would remove him. This discontent with Sarney was only
exacerbated by hyperinflation and Sarney’s apparent
inability to resolve it. Moreover, anti-Sarney leaders
were not the only ones attracted to parliamentarism
as a mechanism for executive removal. So too were forces
on the right who feared a successful presidential run by
Lula or even Leonel Brizola. In short, parliamentarism
seemed to be a good fit at this time.
So how did Brazil wind up with presidentialism? The
use of eleventh-hour carrots and sticks by a still-powerful
and very presidentialist president seemed to carry the day.
A parliamentary constitution sailed through the three
committees only to be scuttled by a vigorous campaign
by Sarney, who doled out an estimated 100 million
dollars in pork in order to insure support (Fleischer,
1990). With the full assembly present – including many
delegates who had largely stopped attending the plenary
273
12
Jobim was referring to 1. president Getúlio Vargas’ suicide; 2. the compromise
decision to adopt parliamentarism in 1961, and 3. the military coup.
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
sessions – presidentialism won with 60 percent of the
vote. Parliamentarists were reportedly shocked at the
turn of events but, with the convention coming to a close,
were not able to overturn the decision. They managed to
salvage some hope by incorporating the question into an
already scheduled plebiscite in 1993 on the question of
monarchy v. republic. An appeal to the mass public was
almost certainly in vain. Throughout the century, Brazilian
citizens have consistently supported presidentialism when
polled or asked to vote. Sure enough, 1993 proved to be
no exception as presidentialism was confirmed by a margin
of three to one.
Evidence of diffusion in the Constitutional Assembly
274
To what degree and in what way did the practices and
experiences of other governments matter to the delegates?
We look for an answer in three sources of evidence: 1. what
delegates say in an interview; 2. what they argued during
the Constitutional Assembly; and finally 3. how they voted.
Together these three sources suggest the strong influence
of foreign models.
Deliberations within the Constitutional Assembly
The best, and most illustrative, way to understand the way
leaders make use of foreign experience is to read the text
of the lengthy debate in the Constitutional Assembly. Of
course, this gives us access only to the public discussion
of the issue, and no insight into backroom deals and
bargaining – a decisive arena in any political (including
constitutional) issue. Nevertheless, with respect to the
system of government question in Brazil, we are blessed
with an extraordinary amount of public discussion on the
issue. From the day of the first plenary session, February 14
of 1987, up until only days before the final draft was issued,
September 5 of 1988, delegates debated parliamentarism
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Zachary Elkins
and presidentialism. This discussion occurred in essentially
three settings: the plenary sessions, the committee on the
division of the three powers, and the powerful integration
committee (the group responsible for incorporating
the suggestions of the various committees into a draft of the
constitution).
In the plenary session alone, there were over 350
speeches delivered on the subject. Given the vast agenda
in front of the delegates, this represents a monumentally
disproportionate degree of attention to this issue. Indeed, an
unscientific comparison of my stack of photocopied systemof-government speeches with the 15 thousand or so pages of
plenary session transcripts, suggests that the delegates spent
at least 15% of their time discussing the issue.
I have collected information on 339 of these speeches.
While I suspect that the universe of speeches is greater than
350 (but less than 400), my sample is restricted to those
speeches that I was able to locate and identify as having to
do primarily with the system of government. I disregard
speeches that address the question only peripherally, as
well as those which address merely mechanical issues of the
debate such as vote calls and points of order.
Furthermore, I have sampled 80 of the 100+ speeches
on the question delivered in the three Powers committee.
As we may expect, the nature of these speeches, compared
with those in the plenary session, are on the whole more
refined and more substantive. These meetings convened
experts (political scientists and constitutional lawyers) and
commissioned a surprising amount of data and historical
records on comparative systems of government.
Not surprisingly, given the parliamentarist leanings of
most of the delegates, parliamentary speeches outnumber
presidentialist speeches by a 2 to 1 margin in the plenary
session (62% are parliamentarist, 32% are presidentialist, and
6% are unclear) and by a 9 to 1 margin in committee. This
275
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
reflects the overwhelming preference for parliamentarism
among those active and verbal during the assembly.
Salience of foreign experience to the delegates
So how relevant was foreign experience to the delegates?
Of the 339 speeches in our sample, 151 (44.5%) appealed
to foreign evidence in some way to make their argument
(Table 3). If we consider the 80 speeches in the three Powers
committee, the proportion of international arguments is
even higher (67%), suggesting outside information was
even more relevant to those deeply involved in the issue,
and perhaps, given the committees parliamentary leanings,
to those preferring parliamentarism.
Table 3:
Attributes and Arguments in System of Government Speeches
Plenary Session, Brazilian Constitutional Assembly 1987-1988
276
Speeches with
Any Foreign
Reference
Number
of
Speeches
(N =339)
% of 339
Total
Speeches
% of
those with
foreign
references
(n = 162)
% of
Parliamentarist
Speeches
(n = 201)
% of
Presidentialist
Speeches
(n = 103)
151
45%
100%
44%
42%
Speeches which mention countries in
Europe
87
26%
54%
43%
21%
The United States
53
16%
33%
26%
51%
Latin America
26
8%
16%
7%
18%
Speeches which argue
Parliamentarism
is more modern
121
36%
64%
62%
1%
Anti-imperialism
34
10%
21%
16%
2%
Brazil is most like
Europe
41
12%
25%
20%
0%
US Exceptionalism
13
4%
85%
7%
0%
Change is too
risky
23
7%
16%
1%
21%
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Zachary Elkins
In a speech rather early on in the convention, on April
23 of 1987, Atila Lira anticipated the parade of foreign
examples that would come before the delegates: “Much we
will drink – we delegates – of the fountain of experience and
wisdom of foreign politics, and from there take advantage
of a valuable contribution – making, of course, adaptations
which better conform with our cultural formation”.
Given that most wealthy, high performing democracies
are parliamentary governments, one might expect that the
parliamentarists would employ more foreign references
than would the presidentialists. Surprisingly, this was not the
case. A roughly equal proportion of parliamentarists and
presidentialists (44% and 42% respectively) cited foreign
evidence in their arguments (Table 3). Upon analysis,
however, it becomes clear that a significant number of
presidentialist examples are merely responses to the foreign
references cited by parliamentarists.
It would not be right to imply that the international
arguments dominated the debate. It is more accurate to
say that the delegates used a pluralistic approach, using
whatever evidence and logic at their disposal. Many
speeches (35%) drew directly on the Brazilian experience
with presidentialism and parliamentarism – a very
understandable approach given country’s long trials with
the two systems in the last two centuries.
In fact, there was some noticeable resistance to the idea
of importing practices from foreign soil:
277
We absolutely do not want simply the transplanting of a
constitutional model from another nation. What we want is
a system of government suited to our political, economic,
and social formation – one appropriate to the institutional
reality of Brazil13.
Excerpt from a speech delivered by Érico Pegoraro on April 9, 1987.
13
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
I think that it matters little the name that we give the system
of our government – whether it be neo-parliamentarist or
neo-presidentialist. What matters is that we do not recreate
the crazy experiences copied from foreign models14.
Presidentialism, then, satisfies a national aspiration. It
was not the fruit of ignorance but a conscious choice of
this nation [...] Our case, cannot be one in which we copy
foreign experiences15.
278
By way of introduction, it is also worth remarking
upon the level of sophistication at which the debate was
conducted. Both sides of the debate, but especially the
parliamentarists, were well versed in the substantive and
theoretical evolution and implications of each system of
government. The heavy hand of the social scientist was
visible throughout the debate. Delegates were not shy about
introducing the ideas of Duverger, Linz, or Sartori in the
plenary session, as if these authors were required reading.
Evidence of hierarchical emulation (proposition 2)
On a very basic level, proponents of parliamentarism in the
Constitutional Assembly made sure that delegates knew of
the correlation between modern, advanced societies and
parliamentarism. Of the 201 parliamentarist speeches,
121 (62%) made this argument. Some would just cite the
relationship; others would extend the logic to suggest that
parliamentarism is the more evolved, modern practice.
Delegates seem to sprinkle in this connection so frequently
that it became a stylized fact during the convention that
parliamentarism was the more “modern” system. Consider
a few examples:
Excerpt from a speech delivered by Mário Assad on June 3, 1987.
Excerpt from a speech delivered by Prisco Viana on August, 1987.
14
15
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Zachary Elkins
[...] [parliamentarism] is preferred by the civilized societies
of the world today16;
We know that the greatest countries of the world, with a
democratic tradition, with the accumulated wisdom of
centuries – as is the case in Italy, France, and England – have
adopted the parliamentary system17;
I support the implantation of the parliamentarist regime
since it is molded in the experience and tradition of the
countries with a highly civilized nature18;
The total structure of the presidential system is in the
process of bankruptcy. As such, the great majority of
developed nations, with the exception of the United States
and Finland, have already adopted the parliamentary form
of government19;
We want to decentralize power, create an effective
legislature, and modernize the country’s political
institutions – parliamentarism is the only way to do this20;
Presidentialism is the political portrait of frustrated and
backward democracy the world over21;
It has become clear that the parliamentarist majority in
this body will succeed in creating a modern system of
government for Brazil22;
In truth, Mr. President, fellow delegates, we need a modern
system like parliamentarism [...]23.
279
The connection between parliamentarism and
modernity was useful in several ways to the parliamentarists.
Excerpt from a speech delivered by Oswaldo Lima Filho on April 4, 1987.
Excerpt from a speech delivered by Joaquim Bevilacqua on April 15, 1987.
18
Excerpt from a speech delivered by Jorge Arbage on on July 3, 1987.
19
Excerpt from a speech delivered by Agassiz Almeida on August 20, 1987.
20
Excerpt from a speech delivered by Eduardo Bonfim on July 24, 1987.
21
Excerpt from an article by Carlos Castello Branco, as cited by the Victor Faccioni
on August 15, 1987.
22
Excerpt from a speech delivered by Nilson Sguarezi on September 24, 1987.
23
Excerpt from a speech delivered by Érico Pegoraro on April 9, 1987.
16
17
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
It enabled them to suggest that the system was a product of
more developed societies, implying that the choice of the rich
and successful must be superior. Societies that have produced
such greatness, they reasoned, would surely have the best
political institutions. However, some would extend the
argument even further to suggest that parliamentarism was
in part responsible for the development and success of not
only their democracy, but also a host of other achievements.
For example:
[...] we have perceived, with clarity, that the ideal system of
government – for all the countries that want to overcome
underdevelopment – is parliamentarism24;
On the other hand, nations consumed by the war – such
as Germany, France, Italy, and Japan – fortified and were
reborn under the parliamentary system, and transformed
into world powers of greatness, in economic, cultural, and
political terms25;
After the Second World War, parliamentarism was installed
in Italy, Germany, France, Portugal, Greece – practically in
all of Western Europe. If we look at those countries,
we note that there is liberty, union life, participation of
various parties, distribution of wealth, and an evolved and
developed society26.
280
Of course, there were those on the presidential side
who questioned such hopeful theses:
Without a doubt, we will not increase popular participation
and democracy by turning on our heels and imitating
advanced industrial Europe or Japan27;
Excerpt from a speech delivered by Sergio Spada on March 22, 1988.
Excerpt from a speech delivered by Joaquim Bevilacqua on April 15, 1987.
26
Excerpt from a speech delivered by Egídio Ferreira Lima on March 2, 1988.
27
Excerpt from a speech delivered by Florestan Fernandes on November 11, 1987.
24
25
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Zachary Elkins
Germany and France are cited as developed countries
of the industrialized world [...] in order to suggest that
parliamentarism is superior to presidentialism. It is a
matter of being part of the industrialized world. All with an
elevated cultural level, free of illiteracy and with a standard
of living two or three times that of Brazil. Their reasoning
is the same as if we were to cite the United States to say that
presidentialism was superior to parliamentarism28.
Evidence for the influence of cultural peers (proposition 1)
Clearly, one of the stronger arguments of the
parliamentarists is the prevalence of their system among the
more advanced and developed nations. However, as some
of the examples above suggest, much of this argumentation
is more cultural than it is economic, with their authors
implying that European practices are more appropriate
for Brazil than are North American practices. In fact, 41
speeches included this argument. For example,
281
With the proclamation of the Republic we looked,
incorrectly, to the United States, a model of presidentialist
government. Our cultural roots are European, and not of
North American origin. Why, therefore, import an alien
system, strange to our traditions, if we already had, here our
own model, originated from Europe, adapted and perfected
through successive administrations during the [Brazilian]
empire?29;
Why not follow, in a serious and definite manner, the
example of countries like ours [...] most recently, a country
that has the same origins as us, Spain, a country which
adopted a parliamentary system of the classic form [...]30;
Excerpt from a speech delivered by Arnaldo Martins on May 20, 1987.
Excerpt from a speech delivered by Victor Faccioni on March 27, 1987.
30
Excerpt from a speech delivered by Cunha Bueno on August 6, 1987.
28
29
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
It was parliamentarism in Portugal which dislodged the
military from the political process. That is our example!31 .
References to the Americas (propositions 1 and 3)
There were essentially three ways for the parliamentarists
to reconcile the supposed success of United States
presidentialism. One was to dismiss the United States entirely
as an imperialist power not worthy of admiration and
emulation. A full 16% of parliamentarist speeches included
such reasoning. Often these arguments mixed an affinity
for Europe with an antipathy to the United States and the
institutions it had inspired in the Americas.
[…] it has to be understood that this country needs a system
of government – and this system must be new, modern.
It can’t be a system, for example, from Mexico or from
the United States where they resolve crises by means of a
revolver [...] No, no it will not be Texas which inspires us
but instead the example of old Europe32;
[...] this institution [presidentialism] will represent yet
another pact with the North American devil33;
[…] imperialism is practiced with much more intensity
in presidentialist regimes, perhaps in its most gross
form, perhaps the most civilized form of United States
domination34.
282
A second method, however, was to suggest the
uniqueness of the United States and, accordingly, its
incomparability with the Brazilian system (and that of Latin
America more generally).
Excerpt from a speech delivered by José Fogaça on July 8, 1987.
Excerpt from a speech delivered by Walmor de Luca on July 17, 1987.
33
Excerpt from a speech delivered by Victor Faccioni on July 30, 1987.
34
Excerpt from a speech delivered by José Fogaça on August 8, 1987.
31
32
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Zachary Elkins
In the Brazilian presidentialism, badly copied from North
America, we see the centralization, the authoritarianism,
the paternalism, the inflexibility, and the rigidity of the
Brazilian system are accentuated and perpetuate the
worst of our national politics, which we need to eliminate
definitively in order to create a viable democracy and
institutional stability35.
Already I am very certain that the potential virtues of the
North American presidential system are virtues only [in the
United States]36.
We do not have the characteristics of North American
society, whose force of influence and participation controls
the power of government37.
[…] we adopted presidentialism [...] in an almost literal
imitation of the North American system, without attention
to our economic, social, and ethnic conditions which do not
compare with those of the United States38.
A third, and related, argument employed by the
parliamentarists was to suggest that presidentialism
practiced in Latin America is of inevitably a weaker – almost
unworkable – variety. Those who advanced this argument,
would imply that the adoption of presidentialism in Latin
America incorporated the negative, more autocratic,
tendencies of the system. In essence, another suggestion that
Brazil is not well suited to such a system for it exacerbates
the Latin American predilection towards authoritarianism.
“In addition, the presidentialism which spread through
Latin America is an artificial and poor imitation of the
American model. It is not built to last”39.
283
Excerpt from a speech delivered by Victor Faccioni on April 9, 1987.
Excerpt from a speech delivered by Nelson Aguiar on August 5, 1987
37
Excerpt from a speech delivered by Adhemar de Barros Filho on April 9, 1987
38
Excerpt from a speech delivered by Enrico Pegorano on April 9, 1987.
39
Excerpt from a speech delivered by Egídio Ferreira Lima on September 3, 1987.
35
36
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
Interestingly, Latin America – and its tradition of
presidentialism – is used only as a negative example.
Even the presidentialists do not invoke the tradition of its
neighbors to support their choice of regime.
The last twenty years of military government shows the true
face of presidentialism, translating what is really the typical
caudilhismo of South America, in which a leader castrates the
genuine path of nationality40.
I am convinced that the presidentialist regime, in its heart,
stimulates only those who nurture tyrannical and caudilhista
purposes. In Europe, presidentialism no longer exists, and
here in Latin America it feeds the determination of leaders
of groups which have throughout the years, perpetually
been in power41.
284
The presidentialists, likewise, did not use the United
States as a model to any great extent. Presidentialists on
the left understandably did not want to connect their
institutional choice to the US. The right was much less
vocal, but when pressed, would usually support their
statements with evidence from Brazil. For the most
part, their references were mostly reactive, trying to
disabuse the assembly of the European utopia described by
the parliamentarists.
Evidence of resistance to change and symbolic attachment
to presidentialism (propositions 4 and 5)
Certainly, many delegates expressed anxiety about adopting
an institution virtually unknown in Brazil for much of
the century. João Agripino’s on October 15 of 1987
statement is representative: “[...] in my opinion, if we adopt
Excerpt from a speech delivered by Paulo Marques on September 3, 1987.
Excerpt from a speech delivered by Leite Chaves on April 16, 1987.
40
41
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Zachary Elkins
parliamentarism in this Constitution, we will be making
a leap into darkness”. More than anything else, this
sentiment came out in expressions of uncertainty about
the foreign nature of parliamentarism. For example, “All
told, I would have to say to your Excellency that, in truth,
I do not share personally the idea that we ought to have
presidentialism. I am a parliamentarist, but it happens that
our culture will not absorb such”42.
Analysis of roll call votes
The argumentation used in the delegates’ meetings tells
part of the story. However, in the end, what mattered was
their vote. Indeed, the votes – combined with what we know
about the delegates – can be very enlightening.
We have argued that institutional choice often reflects
a predisposition towards certain cultural and intellectual
influences. The Brazilian case is characterized by a unique
tension between an attraction to policies of the Americas
and those of Europe. Consequently, it is true that there
should be some variation among delegates to the Brazilian
Constitutional Assembly in how sensitive they are to each
of these influences. If we understand the background of
the delegates, then we can make predictions about their
relative susceptibility to the policies from either sphere
of influence (that is, the United States or Europe).
If the delegates respond the way we expect given their
background, then we can claim even stronger evidence
about the overall influence of cultural assimilation in the
adoption of political practices.
Accordingly, I have generated three hypotheses, each
which makes a claim about a delegate’s predisposition
towards an American or European product.
285
Excerpt from a speech delivered by Alexandre Puzyna on August 21, 1987.
42
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
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Hypothesis 1: Delegates with work or educational
experience in Europe will favor parliamentarism; those
with such experience in the United States will favor
presidentialism.
This hypothesis derives directly from theory reviewed
earlier about the power of contact, communication,
and cultural norms. In order to test the prediction, we
have gathered information on both the educational
and work experience abroad by each of the delegates.
For educational experience abroad, we construct two
variables, US Education and European Education,
for which we code delegates 1 or 0 if they received a
degree in the region of interest. For work experience,
we have reviewed the professional profiles of delegates
and coded, again for two variables, whether or not
the delegate had worked in the United States or Europe.
We expect experience in either area to predispose a
delegate to the policy of that area.
Hypothesis 2: Delegates from the south of Brazil will tend
to favor parliamentarism.
This expectation derives from Brazil’s highly diverse
regional composition. Regions in Brazil are, in general,
more delimited than in most countries economically,
ethnically, socially, and politically. The Southern region
of Brazil, a region including the states of Rio Grande do
Sul, Paraná, and Santa Catarina, is largely populated by
immigrants from Europe. Moreover, these areas maintain
a strong attachment to Europe both emotionally and
economically. Therefore, we expect that Europe will
serve as a stronger reference group for delegates from
the south than it would for delegates from other regions.
Of course, these regions differ along important socioeconomic lines and it is essential to control for these
differences in order to isolate any cultural effects (see
our efforts to do this below).
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Zachary Elkins
Hypothesis 3: Those in academic or law professions will
favor parliamentarism; those in business professions
will favor presidentialism.
This hypothesis derives from the conventional wisdom
in Brazil (and much of Latin America) that business leaders
are more highly connected and inspired by the United
States, while lawyers and academics are similarly oriented
towards Europe. A second, and intensifying, rationale for
such a distinction stems from a diffusion thesis popularized
by Powell and DiMaggio (1991). These authors argue
that policy professionals and scholars will be more
amenable to policy innovations which promise to be
superior to existing policies. As we assert above, there was
in Brazil at the time a rough consensus among intellectuals
that parliamentarism was the superior institution. Our
assumption is that academics and those in the law would be
most susceptible to these opinions.
Domestic political explanations of vote choice
287
Of course, the alternative to these diffusion explanations
is that the system of government decision was one driven
by domestic political concerns. In order to control for
these factors, we include a number of political predictors
in the model. A first, most obvious, candidate is party
affiliation. In the best of times, party loyalty in Brazil is
notoriously weak (Mainwaring, 1995). Party loyalties during
the Constitutional Assembly were particularly fragile as a
multi-party system was in its infancy after thirty years of the
two party system organized by the military government43.
43
During the first year of the assembly, the majority of delegates (55%) were
organized into the catch-all PMDB – the legal opposition party during the military
years. A number of smaller, further left, parties accounted for another 6 or 7%
of the assembly that year. Towards the end of the Constitutional Assembly, a fair
number of delegates had left the PMDB to join or form smaller parties, most
notably the PSDB. The right, meanwhile, was concentrated in two parties, the PFL
(23% of the assembly) and the PDS (7%).
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
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Mainwaring and Pérez-Liñán (1997), in an authoritative
analysis of the more than 1 thousand roll call votes during
the assembly, find very little discipline with the exception
of the smaller parties on the left. Nevertheless, given the
importance of the system of government question during
the assembly, it is reasonable to think that parties adopted
official positions on at least this issue.
Furthermore, given the strong legacy of the
authoritarian years, it is reasonable to expect that the
loyalties defined by the previous two-party system would still
be intact to some extent44. Accordingly, we include the party
identification of delegates during the authoritarian years,
that is Arena (the military government party) and PMDB
(the opposition).
Including dummy variables for the parties assumes that
delegates receive cues from the party leadership. However,
the party identifications – which can be arrayed along an
ideological scale – also help us identify the ideological
leaning of the delegate. As I assert above, the system of
government question does not seem to have an obvious
ideological identity. However, it is reasonable to assume
that, like any other issue, many delegates perceived the
decision based on some calculation about where the two
positions fall along a left-right scale. Consequently, we use
Mainwaring and Pérez-Liñán’s adaptation of Maria Kinzo’s
ideological scale to order the delegates (by virtue of their
party identification) along a left-right scale45.
As I describe above, one of the most important
influences on the system of government vote was the arm
twisting and vote-buying of President José Sarney. Without
concrete information on phone calls from the presidential
44
See Power (2000) in order to understand the vestigial pull of cleavages from the
authoritarian era.
45
In future models, I hope to include a better predictor of ideology, calculated
from the delegates’ votes on highly ideological issues in the assembly.
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Zachary Elkins
palace and diversions of the federal budget, it is difficult
to measure this crucial variable. Fortunately, one piece
of information – the delegate’s average absentee rate –
helps us measure Sarney’s influence. The key to Sarney’s
lobbying success was to lure to Brasília those delegates
who had otherwise not participated (either physically or
intellectually) in the assembly. These were largely rightist
members who, for whatever reason, participated only
marginally in the constitutional process (Fleischer, 1990).
Consequently, the absentee rate makes for a very rough
approximation of Sarney’s influence.
Bivariate results
Which, if any, of these variables mean anything to the
vote on the system of government? Table 4 presents
the vote results for several of these groups of delegates.
A star indicates a rejection (at 5%) of the hypothesis
that the vote count for a category is different from
the vote count at large. The first block of rows shows
vote differences by party. As suspected, the largest party, the
PMDB, is entirely undisciplined with half the party voting
for parliamentarism and half for presidentialism. On
the other hand, the smaller parties on the left, and even the
rightist PFL to some extent, seem to have maintained a
marginal party line. These party differences appear to be
independent of ideology, albeit with a faint connection
between rightist groups and presidentialism. The lack of
both discipline and ideological coherence on this issue is
evident if we array the party results along an ideological
scale, like that suggested by Kinzo (1990). Parties on
either end of the spectrum are more disciplined but
entirely unpredictable by their position on the scale
(Figure not included).
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
Table 4:
Votes for Presidentialism by Category
Data Sources: Ames and Power (1990); Reportorio Biográfico (1988);
Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (1988).
Number of
Percent Voting for
Delegates
Presidentialism
558
61.8
PMDB
302
49.3*
PFL
131
84.7*
PDS
38
60.5
PDT
26
96.2*
PTB
17
64.7
PT
15
100.0*
PL
8
62.5
PCdoB
5
0.0*
PDC
6
50.0
PCB
3
0.00*
Category
All Delegates
Party
290
Old Party System
Legacy
Educational
Experience
Foreign Work
Missions
PSB
2
0.00
Other
2
50.0
Ex-ARENA
213
76.5*
PMDB or other
338
52.1*
Europe
23
39.1*
United States
17
58.8
Latin America
(excluding Brazil)
2
100.0
Europe
127
65.4
United States
110
71.8*
Latin America
99
61.2
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Zachary Elkins
Category
Occupation
Region
Absentee Rate
State’s Income
Agriculture
Number of
Percent Voting for
Delegates
Presidentialism
30
63.3
Business
87
72.4*
Engineering
49
65.3
Law
172
54.7*
Medicine
51
62.8
Academia
79
62.0
Journalism
28
60.7
Public Service
13
61.5
Military
8
75.0
Other
18
50.0
Southeast
179
64.2
South
85
43.5*
Northeast
177
63.3
North
61
82.0*
Centerwest
53
54.7
<.25
138
47.7*
.25-.50
139
53.3*
.50-.75
141
63.8
>.75
143
81.6*
<60,000
167
71.1*
291
* Statistically different from the overall count (5%)
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
292
As we suspected, the party lines from the military period
are also meaningful. There is a twenty-point difference
in the proportion voting for presidentialism between the
groups divided along the party lines as they were drawn
from 1964-1979.
The absentee rates, our measure of the carrot and
stick efforts of President José Sarney, demonstrate
some fairly dramatic differences. Those with higher
absentee rates – that is, those who we presume to have
been recruited by Sarney – voted overwhelmingly
for presidentialism. This effect, of course, is also an
indicator of our complementary theory that those absent for
most of the assembly were deprived of the parliamentarist
pitch that predominated the assembly.
And what of our variables relating to the three diffusion hypotheses described above? There we see mixed, but
hypothesis-supporting, results. Two groups of delegates –
those educated in Europe and those having missions to the
US – demonstrate political predispositions based on
their foreign experience. The European-educated voted
for presidentialism at a comparably low 39% while those
returning from missions to the US preferred presidentialism at a rate 32 points higher (71%). On the other hand,
education in the US and missions to Europe do not seem
to make any difference. Nor does travel within the Latin
American region.
Prospects look good for Hypothesis 2 as well. Delegates
from the south and north prefer parliamentarism and
presidentialism, respectively, at remarkably higher
numbers than do their colleagues from other regions.
There is reason to think that some of this effect is due
to correlated economic differences between the regions.
A measure of economic development, per-capita income
by state, suggests that representatives from poorer states
prefer presidentialism to a greater extent than their
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Zachary Elkins
colleagues. This difference, interestingly, parallels the
choice of presidentialism by leaders of less developed
states worldwide. Again, we can control for these wealth
effects in a multivariate model.
Finally, consider the vote totals by profession. We see
some encouraging results for Hypothesis 3 here. As predicted,
business professionals tend to support presidentialism while
law professionals support parliamentarism in greater numbers
relative to their counterparts. Surprisingly, academics show
no particular predilection for parliamentarism. I suspect
part of this non-effect is the result of an overly inclusive
categorization of academics which combines the scientists
with the social scientists.
Independent effects
Table 5 reports estimates of the change in the probability
of voting presidentialist associated with a shift in each
explanatory variable – most of which are dichotomous
– from their minimum to their maximum values. These
estimates are generated from a logistic regression
of 15 selected variables from Table 4 on the vote for
presidentialism46. The result is that most of the effects that
we witnessed in the bivariate table discussed above remain
after multiple regression.
293
46
There are 555 valid votes and three abstentions. Missing data on some of the
observations brings us down to a sample size of 533. The selected variables predict
25% of the variance. Clearly then, we have omitted some predictors of vote choice,
but those we have are meaningful enough. We employ the King, Tomz, Wittenberg
program Clarify, to produce these estimates. The estimates from Clarify’s Monte
Carlo simulation routine have the advantage of incorporating both fundamental
uncertainty and estimation uncertainty
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
Table 5:
Independent Effect of Select Variables on the
Probability of Voting for Presidentialism
294
Variable
Independent Effect on
Probability of Voting for
Presidentialism
PFL Affiliation
.31
.19
.40
PDT Affiliation
.33
.19
.41
Ideology (left to right)
..03
-.11
.08
Ex-ARENA affiliation
.20
.10
.29
95% Confidence
Interval
Education in Europe
-.36
-.54
-.13
Work in United States
.13
.02
.24
Business Profession
.04
-.09
.16
Law Profession
-.08
-.19
-.01
South
-.15
-.29
-.02
North
.17
.04
.28
Income
.07
-.08
.23
Absenteeism
.44
.30
.57
N= 533
15 Explanatory variables (12 shown above)
Pseudo R-squared = .27
N.B. Estimates are the change in the probability of voting for presidentialism associated with a shift in the explanatory variable from its minimum to its maximum,
all other variables held at their means. Calculated from logistic regression.
Hypothesis 1 receives strong support. The effect of
a European education and a foreign mission hold up
in the context of controls. This is especially true of the
European education, which seems to depress support for
presidentialism by 36 percentage points!
While we had expected multiple regression to deliver
a knockout blow to Hypothesis 2, its flagship variables – a
dummy variable for the North and one for the South – remain
standing with strong effects. Delegates from the South,
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the European-centric region, remain considerably less
likely to vote presidentialist (a full 15 percentage points
less likely). Those from North, comparably less European
than the rest of the country (which serves as the reference
group in the regression), are significantly predisposed
towards presidentialism. Crucially, the strength of these
effects remains in the presence of other variables, most
significantly a measure of each delegate’s state’s wealth.
There is moderate support for Hypothesis 3.
Businessmen, who we expected to use the US as a model,
are comparatively presidentialist but only marginally
(4 percentage points). Lawyers, who are sympathetic to
arguments for parliamentarism (for both European-centric
and professional reasons), are comparatively parliamentarist
but also marginally (8 percentage points).
As for our controls, they largely remain moderate
predictors of vote choice. Party affiliation matters a great
deal for members of the PFL, PDT, and the PT. The Ex-Arena
party faithful are indeed more likely to vote presidentialist
(to the tune of 20 percentage points). The effect of our
measure of ideology, however, seems to wash out, solidifying
our impression of this issue as almost irrelevant to ideology.
The remarkably strong effect of absenteeism on the vote
deserves emphasis. The delegate with the lowest attendance
record was a full 44 percentage points more likely to
vote for presidentialism than was the delegate with the best
record. As we suggest above, there are two complementary
interpretations of this effect. One is that President Sarney’s
campaign directed largely at absent delegates was very
effective. The second is the conclusion that those who
had tuned into the deliberations and the pulse of the
Constitutional Assembly had adopted the studied and learned
view that parliamentarism was the superior institution.
We illustrate the strength of these effects by creating
some simulated probabilities for delegates of various
295
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The weight of history and the rebuilding of Brazilian democracy
backgrounds (Table 6). Again, these are derived from the
logistic regression estimates above. We simply fix several
variables at one value or another, keep the others at their
means, and measure the model’s prediction. For example,
the first row simulates the probability of a presidential vote
for a delegate with several parliamentarist tendencies – a
lawyer from the South, educated in Europe, and with no
previous affiliation with the military party Arena. Given
these parameters the probability of a presidentialist vote is a
trifling 0.11. Modifying the profile in various ways produces
another set of probabilities. A delegate from the North,
involved in business, with trips to the United States, with a
high absentee rate is almost certain to vote presidentialist
(probability of 0.98).
Table 6:
Simulated Probabilities of Voting for
Presidentialism for Exemplar Delegates
296
Profile
Probability of Voting for
Presidentialism
95% Confidence
Interval
Lawyer from Rio Grande do
Sul. Never in the ARENA.
Educated in Europe.
.11
.04
.30
Businessman from Acre,
affiliated with ARENA,
attended only 15 percent
of the voting. Has been on
missions to the US.
.98
.86
.98
Doctor from Bahia. PMDB.
Educated in Europe. Has
not been to the US on a
mission.
.32
.25
.41
Professor from Sao Paulo.
PMDB with no ARENA
experience. Educated in the
US, with missions to both
the US and Europe.
.64
.53
.72
N.B. Estimates calculated from logistic regression. All other variables held at their
means.
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Zachary Elkins
Interviews with delegates
Argumentation on the floor of the assembly and the vote
behavior of the delegates provide indirect clues about how
constitutional framers use foreign experience. However,
the most direct method of understanding individuals’
motivations is to ask them. Accordingly, I conducted
interviews with 79 of the 559 delegates to the constitutional
convention as well as 68 bureaucrats who had been
employed in the federal government during this period.
My interview method included exploratory and
confirmatory elements. On the one hand, I treated the
conversations as opportunities to ask open-ended questions
which would elicit singular information about the delegates’
experience. So, for example, I asked respondents to
describe the evolution of any bills or amendments on which
they had worked, to describe the research process within
their committees, and to identify attributes of foreign
governments that they would like to reproduce in Brazil.
On the other hand, I also asked respondents to answer a
number of closed-ended questions with stipulated response
choices. Since self-determination and innovation tend to
be prized over emulation and conformity, the motives I
sought to uncover, I included as many experimental and
unobtrusive measures in the survey instrument as possible.
We concentrate here on the responses to interview
questions with particularly interesting insights about
propositions presented above. One component of the survey
included several very general invitations for the respondent
to discuss Brazilian institutions with respect to those
worldwide. While these questions were intended as mere
preliminaries, they yielded some interesting results. For
example, consider the question, “what is one thing that
is wrong with the Brazilian constitution that should be
amended?”. Answers understandably ran the gamut from
proposals to eliminate the constitution’s many social
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protections to those to reinstate the monarchy. What is of
interest to me was the high proportion of responses (48%)
which either compared the Brazilian constitution with those
of other nations, or justified a change with an appeal to the
practices of another nation. This offers strong support for
the saliency of foreign examples.
Upon direct questioning, however, most respondents
would dismiss or downplay the influence of foreign models
on their own decision process. I expected that some of
these responses were motivated by the socially desirable
bias against emulation that I mention above. By the fifth
interview, I began to vary elements of a question which
asked respondents to identify their motivations for their
system of government vote. In the open-ended question,
“How would you say that your choice of presidentialism/
parliamentarism was affected by your feelings towards the
United States and Europe”, I substituted “your colleagues”
for “your” for half of the respondents. While few would
suggested that their own choice amounted to a choice
between the institutions of the United States versus those of
Europe, nearly half of those asked to speculate about their
colleagues’ motivations suggested as much.
Apart from the salience of foreign models, a far
more basic issue concerns the level of information that
decision makers possess of foreign institutions. Indeed,
such knowledge is presumably a prerequisite for any
actual emulation. To verify their knowledge, I asked the
question, “Can you tell which countries you think of when
you think of presidentialism? And when you think of
parliamentarism?” The responses to the question testify to
Brazilian political elites’ understanding of the international
distribution of systems of government. All but one of the 79
delegates named correctly at least two countries with either
presidentialism or parliamentarism.
Finally, consider responses to the question, “Many times
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it is useful for governments to learn from the policies of
other governments. Which policies would you say are more
relevant to Brazil, those of the United States or those of
Europe?” Table 7 sorts the responses by several categories,
including choice of institution and region. The results here
support the conclusions from the roll-call analysis that a
predilection for the policies and institutions of either the
United States or Europe influenced the choice of system
of government. Of those who voted for presidentialism,
56% suggested that the United States was more relevant
compared with only 26% of parliamentarists. The responses
by region, similarly, lend some credibility to the hypothesis
advanced in the roll-call analysis that a delegates’ region
leads to a preference for either United States or European
products. Those from the South are more likely to find
European models more relevant (76%) than are those from
the North (60%).
299
Table 7:
Whose models are more relevant to policy
makers, the United States or Europe?
Universe: Delegates to the 1987-1988 Constitutional Assembly and
those employed by the federal government during 1987-1988.
“Many times it is useful for governments to learn from the policies of
other governments. Which policies would you say are more relevant
to Brazil, those of the United States or those of Europe?”
United States
Europe
Neither
Total
23 (34%)
43 (63%)
1 (1%)
68 (100%)
Those voting for
presidentialism
19 (53%)
17 (47%)
0 (0%)
36 (100%)
Those voting for
parliamentarism
11 (26%)
31 (72%)
1 (2%)
43 (100%)
South
4 (17%)
18 (78%)
1 (4%)
23 (100%)
Other
49 (40%)
74 (60%)
1 (1%)
124 (100%)
Bureaucrats
Constitutional Delegates
Region
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***
300
What have we learned? First, leaders are very attentive
to foreign experience and foreign models when designing
political institutions. Not only are their constitutional
proposals largely inspired by foreign models, but these
models serve as a large part of delegates’ justification for their
position. This is despite some understandable resistance to
the wholesale importation of a foreign policy, as well as a
wealth of relevant domestic experience to draw on. Second,
there is strong evidence that constitutional designers are
highly sensitive to the influence of cultural and, to a lesser
extent, geographic, peers. Third, it appears true that the
institutions and policies of economically and politically highachieving nations tend to be especially attractive models,
with the caveat that that of the United States elicits some
resentment. Finally, it is clear that political institutions show
some of the same evolutionary inefficiencies that we see in
market examples typified by the prevalence of the QWERTY
typewriter. Namely, when institutions become the industry
standard within certain peer groups, modifying or removing
them is exceedingly difficult.
There are certainly other interesting avenues to pursue
within these themes. For example, the tension in the
Americas between the attraction to the United States and
Europe intriguing. Historically, the United States served
as a compelling, young, irreverent, and vibrant model for
democracies evolving in the 1800’s. Today, likely because
of the substitution of the United States for Europe as the
“imperial” power as well as an increasingly poor fit between
the United States political structure and that of Latin
America, the European model appears more relevant. This
role reversal is worthy of more attention.
What are the implications of this study? There is reason
to believe the diffusion properties we describe in the Brazilian
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Zachary Elkins
case are generalizable to other cases – to both other countries
and other policies. In fact, it is quite possible that diffusion
effects will be even more intense in other settings. Other
policies, not as symbolic or basic as the system of government,
will likely be more amenable to change (and so, more
sensitive to external influence). Similarly, other countries
less conflicted in their cultural and political identities (for
example, those closer to either the United States or Europe
like Central America and Eastern Europe, respectively) may
demonstrate even stronger imitation effects.
Zachary Elkins
é professor associado do departamento de governo da Universidade do Texas.
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O poder constituinte do povo no Brasil:
um roteiro de pesquisa sobre a crise
constituinte
Gilberto Bercovici
Breves considerações teóricas sobre o poder constituinte
do povo
O presente texto não pretende ser mais do que um breve
roteiro de pesquisa sobre a questão do poder constituinte no Brasil. Esta pesquisa se faz necessária tendo em vista, passados 25 anos da Assembleia Nacional Constituinte
de 1987-1988, a permanência do tratamento acrítico, formalista e repetitivo da doutrina jurídica brasileira recente
concernente a este tema, central, em minha opinião, para a
compreensão das relações complexas entre Estado, constituição, soberania, democracia e política1.
A doutrina jurídica tradicional entende que o povo e
o poder constituinte não têm lugar no direito público, por
não serem “categorias jurídicas”. O que se esquece com esta
visão é o simples fato de que as questões constitucionais
essenciais são políticas. Tentar separar o conceito de consti-
Uma pesquisa mais ampla e aprofundada sobre as relações entre Estado, soberania, constituição, política, poder constituinte, democracia e Estado de exceção foi
publicada em Bercovici (2008).
1
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O poder constituinte do povo no Brasil: um roteiro de pesquisa sobre a crise constituinte
306
tuição do conceito de poder constituinte significa excluir a
origem popular da validade da constituição e esta validade
é uma questão política, não exclusivamente jurídica. A doutrina do poder constituinte é, antes de tudo, um discurso
sobre o poder constituinte, exercendo o papel de mito fundador e legitimador da ordem constitucional. Para utilizar a
expressão de Ernst-Wolfgang Böckenförde, o poder constituinte é um “conceito limite” do direito constitucional. Não
se trata da norma fundamental hipotética de Hans Kelsen
ou de direito natural, mas de uma força política real que
fundamenta a normatividade da constituição, legitimando-a
(Böckenförde, 1992a, pp. 92-4; Isensee, 1992, pp. 159-62;
Klein, 1996, pp. 89, 191-9; Müller, 1995, pp. 18, 23, 54-6,
65-8, 77-8; Henke, 1980, pp. 194-8, 204-8, 210-11; Palombella, 1997, pp. 21-38).
O poder constituinte é manifestação da soberania.
É um poder histórico, de fato, não limitado pelo direito.
Como tem caráter originário e imediato, o poder constituinte não pode ser reduzido juridicamente. Não pode ser
limitado, embora não seja arbitrário, pois tem “vontade de
constituição”. A titularidade do poder constituinte deve
corresponder ao titular da soberania. Historicamente, de
acordo com Nelson Saldanha (1986), isso significa indagar
como o povo chegou à pretensão desta titularidade e como
viabilizar esta pretensão, pois a soberania popular se refere
essencialmente ao povo como titular do poder constituinte. Desde a Revolução Francesa, o poder constituinte do
povo é visto como a verdadeira forma da soberania popular. Afinal, com a teoria do poder constituinte do povo
durante a Revolução Francesa, demonstrou-se que o povo
estava sendo chamado a decidir coletivamente sobre a sua
forma política, regenerando e constituindo novamente o
poder (Steiner, 1966, pp. 66-7; Saldanha, 1986, pp. 67-8,
72-7; Böckenförde, 1992a, pp. 94-100, 107-12; 1992b, pp.
293-5; Beaud, 1994, pp. 325-8).
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Gilberto Bercovici
O poder constituinte pode ser pensado em termos
diretamente fáticos, ou seja, como o povo, em sua totalidade e sem intermediários, cria a constituição para si e
permanece como instância decisiva para a manutenção,
alteração ou substituição da constituição, instituindo,
segundo Müller (1995), uma democracia plebiscitária sem
restrições2. No Estado constitucional, no entanto, o poder
constituinte nunca é pensado como um poder diretamente proveniente e exercido pelo povo, mas apenas em termos indiretos, representativos, como um poder exercido
de forma mediada pelo povo. Deste modo, a ideia de que
o poder constituinte originário está no povo é inseparável, historicamente, da ideia de representação em assembleia constituinte (Müller, 1995, pp. 23-4)3. No entanto,
quem convoca o poder constituinte, segundo Faoro, não é
o poder estatal. Este apenas instrumentaliza, sem subordinar, a vontade popular, restituindo o poder ao povo (Faoro, 1986, pp. 84-5, 89-90).
O poder constituinte do povo é visto por boa parte do
pensamento político e constitucional como, nas palavras
de Cantaro (1994), um “terribile potere”, do qual sempre se
desconfia, contestando sua plausibilidade, legitimidade
307
2
A crítica que também pode ser feita ao discurso do poder constituinte é a da utilização do povo no lugar de Deus para legitimar o poder. A representação unitária
do povo é harmonizadora, tentando justificar as contradições existentes. A constituição não é identificada com um grupo ou como um compromisso, mas como
oriunda do povo em sua totalidade (Müller, 1995, pp. 12-3, 15-6, 23-4, 34, 39-41).
Para a visão do povo como um conceito complexo, não unitário, ver Comparato
(1989, pp. 69-70).
3
Radicalizando esta linha de raciocínio, Klaus von Beyme afirma que o poder
constituinte é sempre mediado. A identidade entre assembleia constituinte e povo
é uma ficção; portanto, praticamente todas as constituições seriam de origem oligárquica (Beyme, 1968, pp. 7-11, 55). As funções não constituintes que as assembleias constituintes muitas vezes exercem, como, por exemplo, atuar como poder
legislativo ordinário simultaneamente à função constituinte, foram denominadas,
por Arnaud Le Pillouer, de “pouvoir instituant” (Le Pillouer, 2005).
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O poder constituinte do povo no Brasil: um roteiro de pesquisa sobre a crise constituinte
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e cientificidade. O direito tem dificuldades em entender
a produção jurídica como proveniente de um poder “de
fato”, extraordinário e livre na determinação de sua própria vontade. O poder constituinte contradiz as pretensões
do ordenamento jurídico de estabilidade, continuidade e
mudança dentro das regras previstas. A aversão dos juristas à soberania popular e à teoria do poder constituinte do
povo, segundo Cantaro (1994), vem de uma visão política
e filosófica que atribui as origens do totalitarismo à soberania popular. A democracia absoluta fatalmente degeneraria para a violência, o terror e o totalitarismo. E isso
teria ocorrido desde a aplicação da concepção absoluta de
soberania popular de Rousseau pelos jacobinos durante
a Revolução Francesa (Cantaro, 1994, pp. 139-45). Para
os positivistas, o poder constituinte é um poder natural
(näturliche Macht), um poder pré-jurídico ou metajurídico.
Como, então, o poder constituinte não é jurídico, não faz
parte das preocupações dos juristas. E a discussão atual
sobre poder constituinte limita-se a um debate sobre os
limites da revisão constitucional (Steiner, 1966, pp. 31-6;
Henke, 1968, p. 180; 1980, pp. 181-2; 1992, p. 276; Klein,
1996, pp. 115-21). Para Pedro de Vega García, é sintomático e revelador o fato de que a teoria do poder constituinte, enquanto máxima expressão do princípio democrático
e questão central da problemática constitucional, tenha se
convertido em tema menor para a doutrina constitucional
(García, 1998, p. 47).
A grande dificuldade dos juristas, na realidade, deve-se ao fato de que o poder constituinte é um poder sem
limites, que, portanto, não pode ser caracterizado juridicamente. Afinal, o direito não costuma operar com termos
absolutos, pois trata de limitação e relativização. A única
autolimitação do poder constituinte que é compatível com
sua condição de soberano é uma autolimitação procedimental, não material. Ou seja, podem ser criadas regras
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Gilberto Bercovici
sobre a formação da vontade soberana, mas não sobre o
conteúdo dessa vontade (Reyes, 1989, pp. 29-30, 34-5)4.
O poder constituinte, assim, não tem forma predeterminada de manifestação e carece de limites jurídicos. Se os
tivesse, não poderia criar uma nova ordem, mas se moveria
no marco da ordem preexistente, não seria constituinte,
seria constituído. A tese de que o poder constituinte deve
cumprir os valores da democracia liberal, segundo Alessandro Pace (1997), apresenta como jurídico algo que é político e confunde a constituição, fenômeno historicamente
condicionado, com o constitucionalismo, filosofia política.
Para Friedrich Müller (1995), o poder constituinte não está
vinculado normativamente, apenas culturalmente. Uma
determinada normatividade (como a do artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789) não
pode ser transferida para outra área de vigência de uma
cultura constitucional distinta, nem transcender o seu campo histórico de atuação (Müller, 1995, pp. 72-3; Pace, 1997,
pp. 105-8; Palombella, 1997, pp. 45-6).
O poder constituinte atua de forma permanente. Ele se
refere ao povo concreto, com autoridade e força para estabelecer a constituição, manter sua pretensão normativa e revogá-la. A manutenção ou erosão da normatividade constitucional está ligada à permanência do poder constituinte, fonte
da sua força normativa (Faoro, 1986, p. 90, 95; Böckenförde,
1992a, p. 100; 1992b, p. 295; Beaud, 1994, pp. 414-23; Bonavides, 1998 pp. 162-4; Müller, 1995, pp. 36-8; Palombella, 1997,
pp. 35-6 e Fioravanti, 1998, pp. 56-7).
Como já afirmei anteriormente, a maior parte da doutrina jurídica negligencia o poder constituinte. As próprias
constituições o mascaram, aparecendo marginalmente no
309
4
Na visão de Palombella, por sua vez, o poder constituinte não é uma simples
força extrajurídica, mas um conceito jurídico cujo conteúdo depende das suas
características democráticas. É a expressão da autolegislação popular, ou seja, do
ato de dar-se uma constituição (Palombella, 1997, pp.39-45, 47).
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O poder constituinte do povo no Brasil: um roteiro de pesquisa sobre a crise constituinte
310
texto constitucional. As constituições, como observa Müller
(1997, pp. 18-21), recorrem ao povo, mas não falam sobre
o seu poder. O objetivo dessa menção é sempre a legitimação do sistema político. No mesmo sentido, Comparato
afirma que a solenidade da fórmula “todo o poder emana
do povo” encobre o efetivo recuo histórico da soberania
popular, com a tentativa de eliminação de todo poder ativo do soberano (Comparato, 1989, pp. 68-9). Deste modo,
as constituições ignoram a centralidade do poder constituinte para o constitucionalismo moderno, como poder
onipotente, fonte primária e decisão política fundamental sobre a forma de dar unidade política a um povo. Para
Portinaro (1996, pp. 25-8), essa negação do poder constituinte pelo constitucionalismo mostra que a história do
Estado moderno é a história de um Estado legislativo que
progressivamente expropria o legislador. O poder constituinte seria real, para Friedrich Müller (1995, p. 16), se os
poderes constituídos fossem exercidos pelo próprio poder
constituinte. O Estado constitucional, no entanto, é contrário a isso. O povo utiliza seu poder para fundar os outros
poderes que, a partir de sua criação, passam a dispor sobre
o povo. Não há poder constituinte onde o povo é alienado
do poder (Beaud, 1994, pp. 210-20).
A reflexão sobre o poder constituinte do povo na doutrina
jurídica brasileira
O poder constituinte, que já foi, inclusive, denominado
“tema nebuloso” (Horta, 1999, p. 25), é tratado pela doutrina brasileira recente a partir da transposição da visão europeia, notadamente da experiência francesa. A monografia de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999, pp. 10-7) é
inteiramente baseada em parte da exposição de Sieyès. Raul
Machado Horta recupera, entre outros, Carré de Malberg e
Georges Burdeau (Horta, 1999, pp. 26-9). Paulo Bonavides,
por sua vez, embora tenha uma reflexão original, como
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Gilberto Bercovici
veremos adiante, destaca o poder constituinte a partir do
pensamento de Sieyès, Carré de Malberg, Eduard Laboulaye
e do alemão Egon Zweig, que, no início do século XX, fez
uma clássica análise da Assembleia Constituinte Revolucionária francesa (Bonavides, 1998, pp. 120-39)5.
Outros autores buscaram uma explicação teológica
de poder constituinte, comparando-o ao poder divino de
criação (Britto, 2003, pp. 5-28). Embora não esteja citado expressamente no trecho indicado, a semelhança desta
visão com a concepção decisionista da teologia política de
Carl Schmitt (1993, 1996) não parece ser apenas coincidência. O poder constituinte, para Carl Schmitt, é a origem concreta da forma política; é a própria exceção, sendo impossível de ser descrito em termos normativos. Seu
fundamento é a vontade política existencial, cujo sujeito,
na democracia, é o povo. A unidade política é formada
pela decisão política fundamental do poder constituinte,
que é preexistente enquanto ser concreto, mas que só vem
a existir efetivamente na decisão existencial. O povo, para
Schmitt, está acima e além da constituição, entendendo,
portanto, que o poder constituinte não se esgota, permanece existindo ao lado e acima da constituição, o que justifica a célebre distinção entre constituição e lei constitucional (Schmitt, 1996, p. 43; 1993, pp. 9-10, 20-5, 75-87, 91-9,
238; Hofmann, 2002, pp. 123-39; Breuer, 1984, pp. 50916; Pasquino, 1988, pp. 378-84; Cristi, 2000, pp. 1749-60;
Thiele, 2003, pp. 215-51)6.
311
5
Sobre Egon Zweig (1909), cumpre ressaltar que boa parte dos autores considera este seu livro, em conjunto com as obras de Robert Redslob (1912) e de Karl
Loewenstein ([1922] 1990) uma espécie de “trilogia” alemã sobre o poder constituinte (Klein, 1996, pp. 99-100).
6
Sobre as similaridades e diferenças das concepções de poder constituinte de
Sieyès e de Carl Schmitt, ver Steiner (1966, pp. 216-9), Galli (1996, pp. 582-3, 6089) e Thiele (2003, pp. 166-77). Para Schmitt, o povo é a instância última e suprema,
embora o termo “povo” seja ambíguo, pois se refere, ao mesmo tempo, ao sujeito
do poder constituinte e a um poder constituído (Schmitt, 1927, pp. 8, 32-3).
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Há, ainda, os que buscam entender o poder constituinte a partir da teoria discursiva de Jürgen Habermas7 ou
das concepções inspiradas em Spinoza do italiano Antonio
Negri. Para Negri (2002, pp. 8-24, 26-8, 37-9, 45-7, 54, 374-7,
384, 386-7, 391-414), o poder constituinte é ontológico, um
produto da descontinuidade radical, não podendo ser vinculado à soberania, que é o seu oposto. A soberania é poder
constituído, que busca bloquear e neutralizar o poder constituinte. O poder constituinte cria a democracia, o governo
absoluto da multidão, contraposto ao governo limitado do
constitucionalismo. A concepção jurídica de poder constituinte é, segundo Negri, contraditória, pois ignora seu caráter onipotente de potência da multidão. A democracia é a
negação do constitucionalismo como poder constituído. O
poder constituinte não esgota seus efeitos, é um movimento
ininterrupto de construção do novo. Para Negri, o poder
constituinte não vem depois da política, ele vem antes, é a
própria definição de política. O problema essencial da concepção de poder constituinte de Negri é a sua tentativa de
desvincular poder constituinte de soberania, que ele entende como contrapostos. O poder constituinte não é oposto
à soberania, pelo contrário, é a sua manifestação máxima.
Sem soberania, o conceito de poder constituinte de Negri
perde a base material de sustentação e se torna algo etéreo,
metafísico8.
Boa parte do debate recente em torno do poder constituinte no Brasil deu-se por textos ditos “de ocasião”, elaborados durante o processo de redemocratização e reconstitucionalização do país na década de 1980. Embora estes
textos muitas vezes tenham tentado trazer algumas questões
7
Marcelo Cattoni Oliveira (2006) tenta compreender o poder constituinte utilizando as categorias habermasianas.
8
Para outra crítica à teoria do poder constituinte de Negri, ver Agamben (1995,
pp. 50-1). A obra de Antonio Negri influenciou a reflexão de Francisco de Guimaraens (2004).
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pontuais interessantes ou inovadoras, estão demasiado circunscritos ao debate da convocação, instalação e discussões
da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 (Dallari,
1984; Bonavides, 1987; Grau, 1985; Ferraz Júnior, 1986; Bierrenbach, 1986; Comparato, 1986; Silva, 2000, pp. 17-113).
Aliás, uma grande lacuna é a falta de estudos sobre o processo constituinte brasileiro, em geral9. Há, ainda, aqueles
que, por afirmarem estar tratando do direito constitucional
positivo, sequer tratam do tema do poder constituinte, salvo
para mencionar o poder de reforma constitucional e seus
limites (Silva, 2000a, pp. 66-7)10.
Embora as influências teóricas sejam distintas, com
inegável supremacia francesa, podemos afirmar que, para
a quase totalidade da doutrina brasileira, não existe uma
reflexão sobre o poder constituinte do povo. Poder constituinte é “apenas” o poder do povo dar-se uma constituição,
como se a questão fosse tão simples de ser resolvida assim,
ainda mais no caso complexo do Brasil. O entendimento
brasileiro sobre poder constituinte parece dar razão à afirmação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que recomenda
o abandono da teoria do poder constituinte: “Deixe-se de
lado a teoria do Poder Constituinte, utópica e metafísica,
que aponta apenas um paradigma (rarissimamente seguido)” (Ferreira Filho, 1995, p. 142).
Da afirmação cética de Manoel Gonçalves Ferreira
Filho, no entanto, há um ponto fundamental a ser explorado: a teoria do poder constituinte aponta um paradigma,
rarissimamente seguido. É justamente este o problema da
visão brasileira sobre poder constituinte. O paradigma fran-
313
9
Uma das melhores pesquisas sobre os debates da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 é de um estrangeiro, Eugster (1995). Outro trabalho importante é a análise de Pilatti (2008). Merecem destaque, ainda, o levantamento
histórico de Wachowicz (2000) e a pesquisa sobre a participação popular na Constituinte desenvolvida por Barroso (1999).
10
Em sentido contrário, defendendo a importância jurídica do poder constituinte,
ver Tavares (2003, pp. 34-5).
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cês do século XVIII foi elevado a uma espécie de manual de
instruções de como se deve compreender o poder constituinte. A transposição da visão francesa para o Brasil gerou
uma discussão doutrinária estéril, sem qualquer vinculação
com nossa experiência política e constitucional.
A crise constituinte
314
As exceções a este quadro, com contribuições originais que
buscam compreender a realidade brasileira, são algumas das
análises de Nelson Saldanha e a concepção de crise constituinte, formulada por Paulo Bonavides. Nelson Saldanha,
após bem fundamentada análise sociológica do poder constituinte11, destaca o seu entendimento do poder constituinte como um poder “transconstitucional”, ou seja, que
prossegue através das constituições que gera, permanecendo latente, sem se transformar em poder constituído
(Saldanha, 1986, pp. 83-6)12. Este é um dos raros momentos de nossa doutrina em que se busca compreender a permanência e a descontinuidade do poder constituinte, para
além dos formalismos.
A interpretação mais original de poder constituinte, no
entanto, é de Paulo Bonavides. Para este autor, a constante
contestação da legitimidade do poder e da ordem social no
Brasil é um reflexo não da crise de constituição, mas da “crise constituinte”, que diz respeito à inadequação do sistema
político e da ordem jurídica ao atendimento das necessidades básicas da ordem social. O problema constitucional
brasileiro está fundado na contradição entre a constituição
formal e a constituição material. Esta contradição geraria
11
Para outras tentativas de análise sociológica do poder constituinte, ver Faoro
(1986), Dantas (1985) e Farias (1988). Em relação a Faoro (1986), sua fina argumentação ressalta a usurpação e a recuperação da legitimidade política pela
manifestação do poder constituinte do povo.
12
Marcelo Cattoni Oliveira afirma, corretamente, que o projeto constituinte está
sempre inconcluso, está sempre em construção permanente (Oliveira, 2006,
pp. 49-63, 88-9).
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uma crise permanente, pois não teria sido superada, formal e materialmente, por nenhuma de nossas constituições
(Bonavides e Andrade, 1991, pp. 5-12). O poder constituinte
do povo, na crise constituinte, é condenado a tornar-se um
mero símbolo formal, referendando, segundo Bonavides
(1998, pp. 169-71), os conteúdos constitucionais de outro
poder constituinte, o das forças reais de poder, para utilizarmos a expressão de Lassalle (1907, pp. 41-2, 45-6, 51,
68). Esta crise não se exaure com a adoção de uma nova
constituição, pois diz respeito ao próprio Estado e à sociedade, manifestando-se com a contraposição entre a constituição e a realidade social. A crise constituinte é uma crise
do próprio poder constituinte, que não se resolveu desde as
origens do Estado brasileiro (Bonavides, 1998, pp. 164-71,
346-52; 1999, pp. 40-4, 75-9, 157-63).
A concorrência histórica entre “poderes constituídos”
e “poder constituinte” que, para Bonavides (1998; 1999),
seria uma das causas da crise constituinte, não tem o mesmo sentido da velha e célebre distinção criada por Sieyès
(1989), ainda em 1789, entre pouvoir constituant e pouvoirs
constitués. Na realidade, trata-se do enfrentamento entre
poderes de exceção, dos poderes de fato (seja do poder
político “constituído”, seja do poder “constituinte”) entre si
e com as circunstâncias históricas, políticas, sociais e econômicas de cada momento específico.
O poder constituinte do povo é a grande manifestação
da soberania. Neste sentido, é um poder absoluto, o que
significa incontrolável, não necessariamente totalitário ou
autoritário (Beaud, 1993, p. 36). As limitações ao poder
constituinte não são fruto de concepções jusnaturalistas
(como determinados discursos sobre direitos humanos)13,
mas de ordem concreta e estrutural. O poder constituinte
315
13
Para uma defesa desta posição de limitação do poder constituinte originário pelos direitos humanos, com a qual não concordo, ver Pinto (1994, pp. 92-7, 139-51).
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do povo é um poder absoluto, mas exercido dentro das condicionantes culturais, históricas e materiais que encontra.
A questão na periferia está ligada aos limites históricos e estruturais que o poder constituinte encontra para se
manifestar plenamente como formação da vontade soberana do povo. O problema central, ignorado pela maior
parte de nossos doutrinadores, é o fato de que a soberania brasileira, como soberania de um Estado periférico,
é uma soberania bloqueada, ou seja, enfrenta severas restrições externas e internas que a impedem de se manifestar
em toda sua plenitude (Bercovici, 2004a, pp. 159, 163-166,
178-180; 2004b, pp. 267-77).
Quem percebeu a especificidade da manifestação do
poder constituinte do povo em um país como o Brasil foi,
em 1985, Nelson Saldanha (1986, pp. 15-23), que propôs
o debate e a reflexão sobre o poder constituinte em um
país no qual a soberania popular nunca havia se manifestado plenamente e que nunca possuiu soberania plena14.
Da mesma forma, Paulo Bonavides sustenta que a crise
constituinte costuma atingir os países subdesenvolvidos.
E, em minha opinião, Bonavides conseguiu sintetizar a
questão do poder constituinte e da crise constituinte na
seguinte afirmação:
Ela [a crise constituinte] é indicativa da inferioridade ou
da insuficiência de soberania das diversas Constituintes,
cujas limitações tácitas ou expressas nos conduzem
inarredavelmente a irretorquível conclusão de que,
em verdade, jamais tivemos uma Assembleia Nacional
Constituinte, dotada de liberdade, exclusividade e
plenitude de poderes, pelo menos daqueles com que a
teoria revolucionária do século XVIII sempre armara esses
Para Wachowicz (2000, p. 200), seguindo uma linha próxima às de Saldanha e
Bonavides, o “problema constituinte” brasileiro reside no ostensivo desrespeito à
soberania popular.
14
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parlamentos, a fim de que, providos da suprema vontade
da Nação, pudessem refazer as instituições desde os seus
fundamentos (Bonavides, 1998, pp. 351-52).
Crise constituinte, construção da nação e poder
constituinte do povo
A crise constituinte, portanto, está ligada aos bloqueios à
manifestação da soberania plena no Brasil. É possível, ainda, tentar relacionar a questão do poder constituinte do
povo com a interrupção da construção da nação, tese defendida por Celso Furtado (1992, 1999)15. Mas, antes, é preciso
definir o significado de nação para Celso Furtado, que não
tem relação alguma com a concepção de Sieyès.
Para Sieyès, assim como para boa parte dos autores do
século XVIII, como Adam Smith, a nação tem um significado econômico. A nação é composta por todos aqueles que
contribuem para o progresso econômico, produzindo bens
e valores para o mercado. A nação não é abstrata, sendo
definida como um todo social integrado pelo conjunto de
indivíduos dispersos que produzem e trocam no mercado
e que querem proteger suas relações econômicas. O que
unifica o Terceiro Estado é o interesse comum em realizar
e estender seus direitos, concebidos como meios de satisfazer as suas necessidades. A nação exclui os privilegiados,
que não participam no trabalho, como a nobreza, sendo
constituída pelo conjunto dos produtores de bens e valores.
Por isso, o Terceiro Estado é uma nação completa, autossuficiente e autônoma. O papel da nação é redigir uma constituição para manter a possibilidade de evolução do sistema
político em conformidade com os interesses econômicos
(Sieyès, 1989; Bastid, 1970, pp. 350-6; Rosanvallon, 2002,
pp. 85-6, 107, 115-8; Clavreul, 1987, pp. 48-50; Máiz, 1991,
317
15
Ainda sobre a concepção de Celso Furtado da construção nacional interrompida, ver Fiori (2000).
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318
pp. 53-6, 59; Negri, 2002, pp. 265-7, 273-4; Pasquino, 1998,
pp. 14, 55-6, 61-2)16.
Já Celso Furtado entende a construção da nação no
Brasil como um processo de internalização dos centros de
decisão econômica, com a inclusão da população e a garantia da homogeneização social17. A homogeneização social,
segundo Celso Furtado, é um elemento fundamental para a
cidadania e para a democracia, no mesmo sentido em que,
ainda em 1928, já havia destacado Hermann Heller (1992b,
pp. 427-31).
Feita esta distinção, como é possível vincular a constituição, fruto do poder constituinte do povo, com a construção da nação? A constituição tem vários significados e
funções, como bem demonstrou a exposição célebre de
Hans Peter Schneider (1974, pp. 68-75). Dentre estas,
no entanto, merece destaque a visão, fundada em Rudolf
Smend, da constituição como um símbolo da unidade
nacional18. Herbert Krüger (1973, pp. 247-9, 272) vai além
e entende a constituição como um projeto de integração
nacional, o que, no nosso caso, seria interessante para
compreender a ideia da constituição como um projeto
nacional de desenvolvimento.
Uma hipótese de trabalho seria a de tentar entender
se os Estados que buscam terminar a sua construção nacional, como o Brasil, adotam a ideia da constituição como
Sobre a influência dos fisiocratas em Sieyès e em sua definição econômica de
nação, ver, ainda, Bastid (1970, pp. 310-2).
17
Na definição de Celso Furtado: “O conceito de homogeneização social não se
refere à uniformização dos padrões de vida, e sim a que os membros de uma sociedade satisfazem de forma apropriada as necessidades de alimentação, vestuário,
moradia, acesso à educação e ao lazer e a um mínimo de bens culturais” (Furtado,
1992, p. 38). Em um sentido próximo, Hermann Heller afirmava que não poderia
haver comunidade nacional se não partisse da comunidade social de um povo
(Heller, 1992a, pp. 442, 466-8, 472-7, 501).
18
Para uma interpretação da constituição como símbolo da unidade nacional,
ver Scheuner (1978, p. 174). Rudolf Smend defendia, no célebre Debate de Weimar, a constituição como uma realidade integradora, permanente e contínua
(Smend,1994, pp. 189-96).
16
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um plano de transformações sociais e do Estado19, fundada
na visão de um projeto nacional de desenvolvimento. Esta
hipótese poderia explicar a concepção de constituição dirigente adotada pela Assembleia Nacional Constituinte de
1987-198820. E o corolário disto seria a visão de que a crise
constituinte brasileira seria superada com o cumprimento
do projeto constitucional de 1988, que concluiria a construção da nação21.
A grande questão, hoje, é a da possibilidade de concretização do projeto constitucional e da conclusão da construção da nação, em um contexto de estado de exceção econômico permanente a que estamos submetidos (Bercovici,
2004d, pp. 167-80; 2008, pp. 307-44). De qualquer modo,
é necessária uma nova forma de abordagem da questão do
poder constituinte do povo, a partir das contribuições originais de Nelson Saldanha e Paulo Bonavides, vinculando
a crise constituinte aos bloqueios da soberania periférica
e à interrupção da construção da nação. Pensar a especificidade da manifestação do poder constituinte do povo no
Brasil, distinguindo-a das suas congêneres europeias, pode
ser um primeiro passo para que, seguindo a constatação de
Friedrich Müller (1997, pp. 90-1), o discurso do poder constituinte do povo no Brasil deixe de ser um mero discurso de
legitimação da dominação.
Afinal, Raymundo Faoro destacou que nunca, na
história brasileira, o poder constituinte do povo conse-
319
Neste sentido da constituição como um plano, ver as considerações de Achterberg (1983).
20
Para o debate em torno da constituição dirigente, ver Canotilho (2001, pp. V-XXX, 12, 14, 18-24, 27-30, 69-71); Bercovici (1999, pp. 35-51); Streck (2004, pp.
114-45) e Bercovici (2004c, pp. 11-4).
21
Eu defendi este ponto de vista na conclusão de meu livro Desigualdades regionais,
estado e constituição (Bercovici, 2003, pp. 312-5). Neste sentido, poderíamos relembrar as concepções de Peter Häberle, para quem a constituição é expressão também de certo grau de desenvolvimento cultural, um meio de autorrepresentação
própria de todo um povo, espelho de sua cultura e fundamento de suas esperanças (Häberle, 1998, pp. 83-90).
19
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O poder constituinte do povo no Brasil: um roteiro de pesquisa sobre a crise constituinte
guiu vencer o patrimonialismo e o aparelhamento de
poder. No entanto, foram as investidas do poder constituinte democrático aquelas que efetivamente desafiaram
o establishment (Faoro, 1986, pp. 91-2). Para Faoro, este
malogro parcial do poder constituinte no Brasil apenas
reforça a luta para a sua revitalização como forma de tentar alterar as nossas problemáticas estruturas políticas e
econômico-sociais22.
Gilberto Bercovici
é professor titular da faculdade de direito da USP.
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O processo constituinte brasileiro,
a transição e o Poder Constituinte
Cicero Araujo
A experiência constitucional brasileira quase sempre suscita
complicados exercícios às teorias jurídicas que se valem do
conceito de “Poder Constituinte” e das distinções que dele
se seguem. Geralmente, as complicações começam assim:
que circunstâncias concretas justificam sua aplicação? Por que,
como e sob quais critérios empíricos se pode afirmar que há
um poder constituinte? Em vista da capacidade das cartas
modernas de receber revisões de maior ou menor envergadura, costuma-se distinguir, dentro do próprio conceito,
entre um “poder originário” e um “poder derivado”. A partir
daí, envereda-se para a discussão de critérios para reconhecer um ou outro, os quais apontam para questões de fato.
De modo que, para reivindicar um poder originário, há que
se constatar “ruptura institucional” ou “decadência” de certo regime político, credenciando os representantes desse
poder – dada sua natureza “ilimitada” e “incondicionada”1
–, a fazer virtualmente qualquer coisa, inclusive criar uma
1
Ilimitada: “o Poder Constituinte não tem de respeitar limites postos pelo direito
positivo anterior”; incondicionada: “o que quer dizer que a nação não está sujeita
a qualquer forma prefixada para manifestar a sua vontade; não tem ela que seguir
qualquer procedimento determinado para realizar a sua obra de constitucionalização” (Ferreira Filho, 2007, pp. 14-5).
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nova constituição. Fora essas situações muito especiais, só
haveria espaço para um poder derivado, isto é, de emendamento da constituição em vigor e, por isso, obrigado a
observar as normas que definiriam seus limites. Tais normas estariam, ainda, condicionadas a interpretação por um
tribunal constitucional (caso existisse) – o que significaria
a possibilidade de interferência desse órgão, nos termos,
normalmente muito vagos, previstos pela lei constitucional
antecedente, considerada “superior”.
Assim, além do ponto problemático de derivar de uma
simples questão de fato um ato de grande densidade normativa, um mesmo critério poderia justificar, e igualar,
gestos históricos muito diversos: desde um movimento de
desobediência civil generalizada até um golpe de Estado
promovido por uma casta militar. O rígido formalismo
dessas teorias só tende a torná-las cegas a essas diferenças, por vezes cruciais na história de um país. Insensíveis
ao conteúdo de valor que possa existir em tipos contraditórios de “ruptura” ou “continuidade”, “decadência” ou
“estabilidade”, acabam providenciando idêntica escora
jurídica a contestações políticas de sentidos diametralmente opostos, como as de teor autoritário ou democrático.
Mas também a continuidades institucionais das mais diversas tonalidades que, porém, dependendo de suas peculiaridades sutis, podem significar a diferença entre o entrave
e o desentrave de uma crise política.
Não se trata, no entanto, de criticar essas teorias em
suas minúcias. O que se pretende neste artigo é explorar
caminho alternativo e propor uma interpretação da experiência política brasileira que levou ao nosso último processo
constituinte e à promulgação da Constituição Federal em
1988. Assim se fará, tentando abarcar um espectro mais
amplo de questões conceituais, porém mais sensíveis às singularidades dessa experiência histórica e aos valores que
orientaram as iniciativas dos atores. Também não se trata de
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pôr em questão o próprio conceito de Poder Constituinte
que, ao ver deste articulista, ainda poderia servir como bom
candidato a ancorar, em momentos de transformação ou
inflexão de regimes políticos, o ideal de soberania popular
que está na base das teorias democráticas. Se não em todas,
ao menos o que está nas teorias chamadas “normativas”, isto
é, as que pretendem interpretar os regimes democráticos
existentes à luz de valores ético-políticos, como a igualdade
e a liberdade. Mesmo nesse campo, a reflexão que segue
pede algumas adaptações para que dê conta de contextos
fluidos, como os que caracterizam uma transição de regimes políticos.
O desafio é interpretar o conceito de Poder Constituinte de modo suficientemente moldável à contingência
dos eventos históricos e com um caráter mais difuso do
que se costuma fazer em termos de protagonismo, evitando sua fixação num agente privilegiado que venha a
pretender sua encarnação. Tal fixação é uma tendência
das teorias jurídicas a que se aludiu e recorrentemente dá
margem a apropriações autoritárias, como aconteceu logo
no advento do regime que se instalou no Brasil em 1964.
A análise dessa experiência e, depois, da transição à democracia até a abertura do processo constituinte, poderá ajudar a estabelecer esse ponto. Antes, porém, de tomar essa
questão, cabe recapitular a discussão jurídica que se deu
no início daquele processo.
329
Constituinte, Constituição e o debate jurídico brasileiro
Aceitemos, convencionalmente, que o último processo constituinte no Brasil tenha se iniciado com o debate sobre a
convocação da Assembleia Nacional Constituinte, proposta
pelo presidente da República e submetida ao Congresso, em
junho de 1985. Também convencionalmente tomemos como
seu encerramento a proclamação da Constituição Federal,
em outubro de 1988. Diz-se “convencionalmente”, pois essa
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demarcação temporal é algo arbitrária, uma vez que o debate
sobre o assunto é anterior ao projeto de emenda constitucional à Carta de 1967/1969, apresentado pelo presidente José
Sarney2, e com o qual se fez aquela convocação. Além disso,
a questão da forma definitiva da Constituição permaneceu
aberta ainda durante a década de 1990, por conta do processo
de revisão, previsto nas disposições transitórias do texto aprovado em 1988. Mas fixemo-nos nessa demarcação para não
ficarmos sem um quadro de referência.
Como não poderia deixar de ser, vários juristas foram
chamados, ou se sentiram chamados, a intervir no debate
de 1985. A história é bem conhecida: o que se convoca, por
que se convoca e como se convoca uma assembleia constituinte? Enfim, qual é a sua forma correta? O debate entre
os juristas, como dito, é anterior, ecoando algumas vezes no
Congresso Nacional3 e atingindo, de fato, a opinião pública
mais ampla, apenas a partir do momento em que Tancredo
Neves, eleito presidente da república, assume em seu programa de governo a tarefa de convocar a assembleia para
elaborar uma nova Constituição para o país. Com a morte
de Tancredo, seu sucessor José Sarney herda a tarefa.
Nas mãos dos juristas, o debate voltará a acionar as
teorias constitucionais em voga, notadamente nos termos
mencionados no início deste trabalho. Os que defendiam
que a assembleia a ser convocada deveria ser entendida
2
O projeto resultou na Emenda Constitucional n. 26, de 27 de novembro de
1985. Que o debate é anterior, se entrevê no pequeno ensaio publicado por Raymundo Faoro, em 1981. Para um retrospecto do debate, ver também a coletânea
de artigos de autoria de Miguel Reale (1985).
3
Como foi o caso da exposição feita por Afonso Arinos de Melo Franco (que na
época não era parlamentar), a convite da comissão de constituição e justiça do
Senado Federal, em agosto de 1981 (Franco, 1982). Sua proposta de que o Congresso aprovasse uma “resolução legislativa”, à revelia do Poder Executivo, para
convocar uma “Constituinte instituída” – isto é, autoatribuindo-se funções constituintes – gerou controvérsia no seio dos próprios juristas simpáticos à ditadura,
culminando numa polêmica pública entre Arinos e Miguel Reale, nas páginas do
Jornal do Brasil, em dezembro de 1982.
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como expressão de um “poder derivado”, e não de um
“poder originário”, levavam a óbvia vantagem de apontar, como questão de fato, a continuidade institucional: a
estrutura de governo que a convocava – o presidente da
República e o próprio Congresso, tendo na retaguarda o
Supremo Tribunal Federal – provinha da ordem constitucional posta até então. Embora sua origem fosse autoritária, as coisas seguiam mais ou menos conforme suas
normas, porém reinterpretadas. Longe de uma iniciativa
“revolucionária” e “rupturista”, portanto, o que se haveria
de fazer era uma ampla reforma da Constituição existente. Exatamente por isso, seus poderes e atribuições não
deveriam ser ilimitados. Nas palavras de um jurista que
apresentou uma defesa detalhada, e muito citada, dessa
posição: “a Nova República não nasceu de uma revolução,
surgiu do exato cumprimento da Constituição em vigor.
Não lhe é dado, em consequência, invocar o Poder Constituinte revolucionário. Não detém Poder Constituinte originário. E o terreno em que pisa é movediço demais para
que ouse quebrar a Constituição, visto que esta é seu título
ao Poder” (Ferreira Filho, 2007, p. 159)4.
Sem dúvida, houve juristas que, a partir de um campo
que poderia ser denominado “radical-democrático”, procuraram evidenciar outras questões de fato, que não a dicotomia continuidade/ruptura institucional. Essa é a linha
seguida por, entre outros, José Afonso da Silva – que terá
um papel importantíssimo na elaboração da futura Carta
–, ao enfatizar a não menos óbvia “decadência” do regime
de 1964 para justificar a presença de um poder constituinte “originário” no processo e não simplesmente de um
“derivado”5. Mais ou menos no mesmo sentido se dá a fina
331
Essa citação integra a parte IV do livro, capítulo único, onde está a discussão relevante.
Ver o artigo “Constituinte”, publicado por Silva (2000, pp. 66-81), escrito originalmente no início de 1986, como roteiro para os debates de que o autor participou naquele ano.
4
5
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argumentação de Raymundo Faoro, cujo ensaio de 1981
(mencionado em nota anterior) foi várias vezes reeditado
no período, e que sustenta a tese da assembleia constituinte
de plenos poderes com base não na ruptura revolucionária,
mas no fato da “decomposição de legitimidade” do regime.
No fundo, dizia ele, era para evitar tal ruptura, e não por
ser uma consequência dela, que se deveria convocar uma
assembleia constituinte6.
É evidente que, para além das filigranas jurídicas, a
linha de argumento dos advogados do campo conservador soava como um insulto a toda a luta que a oposição ao
regime autoritário havia travado no longo período antecedente, que culminou numa adesão de quase todas as forças políticas à campanha das “Diretas-Já” e, em seguida, na
eleição de um candidato de seu campo no colégio eleitoral
da ditadura. Uma Assembleia Nacional Constituinte, “livre,
soberana e exclusiva”, como dizia a militância democrática da época – isto é, sem a tutela da ordem constitucional
imposta pelo regime autoritário, mesmo a tutela dos políticos oposicionistas, que haviam feito suas carreiras durante
sua plena vigência – seria o desdobramento natural dessa
luta que, mesmo aos trancos e barrancos, havia sido vencida
pela oposição.
Enquanto discurso estritamente político, se consideradas as disposições da opinião pública predominantes no
período, nada favoráveis às persistências do antigo regime,
essa resposta parecia muito persuasiva. Contudo, no âmbito
jurídico, era um argumento que tinha mais dificuldade de se
assentar, especialmente diante da rigidez formal das teorias
6
“Não é a ruptura do poder que reclama a constituinte, para legitimá-lo, qualquer
que seja seu conteúdo. É a legitimidade em decomposição, agravada pela ineficiência, que desperta o Poder Constituinte de um povo” (Faoro, 2007, p. 219). [Esse
ensaio de Faoro foi publicado originalmente em 1981, com o título “Assembleia
Constituinte: a legitimidade recuperada”]. Ver também Bonavides (1985), capítulos XII e XIII.
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de poder constituinte aceitas, cujo critério decisivo tinha
por base exatamente as questões de fato antes mencionadas.
Argumentar nesse terreno, como o faziam também os juristas de oposição mais combativos – e estes o faziam porque
enxergavam a força emancipatória da ideia de poder constituinte, ideia curiosamente compartilhada por ambos os
lados da contenda, mas que o lado adversário não aceitava
aplicar nas circunstâncias brasileiras – argumentar nesse terreno, dizia-se, colocava esses atores/autores numa posição
um tanto embaraçosa e desorientadora. Embaraçosa porque, de partida não rejeitavam que o Congresso Nacional
vigente fosse a instância, senão inteiramente legítima, pelo
menos aceitável, para convocar a assembleia. Todavia, aquele Congresso – cujo senado ainda se compunha, no momento do debate, pelos famosos “senadores biônicos” (indicados pelo establishment civil-militar e não eleitos pelo povo) –
já não era, ele mesmo, uma persistência do antigo regime?
E desorientadora, porque a possibilidade do não endosso
de sua tese jurídica os levava a um tudo ou nada político:
ou a assembleia haveria de ser “livre, soberana e exclusiva”
para elaborar uma autêntica Constituição ou, ao contrário,
renunciando à representação de um poder constituinte pleno, nada mais poderia ser do que um arranjo para amordaçar esse último, com isso esvaziando de sentido democrático
tudo que resultasse dele, até mesmo a futura Constituição.
Em suma: aceita sua rigidez formal, teorias constitucionais
com essa feição pareciam desarmar aqueles que, a partir de
um campo inequivocamente democrático, pretendessem
influenciar os trabalhos de uma assembleia que, de um jeito
ou de outro, estava fadada a acontecer.
Mas tão logo se percebeu que esse evento, fosse como
fosse, se tornaria fato político de primeira grandeza, os atores mais engajados, também entre os juristas, deixaram de
insistir nesse formalismo, para enveredar em considerações
táticas ou estratégicas sobre a melhor maneira de participar
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daquele embate7. À primeira vista, a emenda constitucional
que aprovou a convocação da assembleia parecia beneficiar
mais um lado da disputa do que o outro: nas deliberações
parlamentares prevaleceu a tese de que o futuro Congresso,
cuja maioria dos representantes – exceto o terço de senadores eleito em 1982 – seria escolhida no pleito do ano seguinte, deveria funcionar ao mesmo tempo como órgão legislativo ordinário e como instância constituinte. Contudo,
essas mesmas deliberações reconheceram que a assembleia
haveria de ser “livre e soberana” para elaborar uma nova
constituição, o que pelo menos desmanchava a ideia de que
sua tarefa seria apenas “emendar” a ordem até então vigente8. Essas ambiguidades revelavam o quanto aquelas teorias
constitucionais, a despeito de suas divergências recíprocas
nos pontos acima assinalados, não conseguiam abarcar satisfatoriamente os interesses e os valores em jogo.
334
A relevância da transição
Até aqui não se discutiu como as peculiaridades da transição à democracia no Brasil, e as diferentes avaliações sobre
ela, influenciaram os debates. Certamente influenciaram e
muito. Mas é preciso insistir neste ponto: elas impactaram o
debate jurídico apenas como elemento subsidiário para fixar
aquelas mesmas questões de fato: ruptura ou continuidade,
decadência ou vigor, legitimidade ou ilegitimidade? Justamente em relação a esses pontos, o enquadramento teórico dificultava uma resposta nuançada, induzindo a opções
esquemáticas do tipo “ou uma coisa ou outra”. Contudo, a
transição brasileira, longa como foi, revelou-se tão cheia de
7
Para um relato, ver Michiles et al. (1989, pp. 37-59). Uma manifestação muito
rica desse debate pode ser encontrada na coletânea editada por Fortes e Nascimento (1987), em particular na segunda parte. A coletânea é resultado de um
colóquio ocorrido na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP, em maio de 1986.
8
Ver Emenda Constitucional n. 26, Art.1º, em www.senado.gov.br/publicacoes/
anais/constituinte/emenda26-85.pdf .
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zigue-zagues que dificilmente poderia ser reduzida a avaliações esquemáticas. Mesmo quem, ao fim e ao cabo, fizesse
uma avaliação essencialmente negativa do processo – negativa do ponto de vista democrático –, teria de resgatar certos aspectos positivos que, para o embate futuro, não poderiam ser desprezados. E isso tinha consequências diretas
na decisão de participar e intervir com ânimo na questão
constituinte, a despeito do fato de que a forma de sua convocação, aprovada pelo Congresso, pudesse reforçar a avaliação negativa.
Para os que faziam uma avaliação positiva, mesmo entre
os desapontados com aquela decisão do Congresso, a relevância e o entusiasmo para participar eram, obviamente,
imediatos, ainda que tivessem de pesar com muito cuidado
os “retrocessos” da jornada. As avaliações mais nuançadas,
às vezes divergentes entre si, tinham de inserir, entre o
negativo e o positivo, zonas de lusco-fusco que permitiam
maior ou menor flexibilidade na intervenção política. Na
verdade, esse último padrão de comportamento era induzido pelas ambiguidades da própria transição, em seus “avanços” e “retrocessos” – ambiguidades que sugeriam a todos
os atores um horizonte de indeterminação do processo. E
quanto mais indeterminado fosse, maior o empuxo para
participar dele, criticamente ou não.
Ainda não é possível precisar – se é que o será no futuro
– o quanto a comparação com as transições à democracia,
ocorridas em outros países mais ou menos na mesma época, influenciou essas diferentes avaliações. Colocando entre
parênteses essa informação, é no mínimo curioso indagar
como esse dado poderia nuançar ainda mais as avaliações
da experiência brasileira e até suscitar questionamentos a
respeito dos critérios factuais adotados no debate dos juristas. Para ficar apenas num exemplo: poucos anos antes, a
ditadura militar argentina havia virtualmente desmoronado, propiciando passagem muito rápida para um regime
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democrático. O ponto é que as negociações da transição e
o programa do novo governo – sufragado, ao contrário do
brasileiro, diretamente nas urnas –, não previam a convocação de uma assembleia constituinte. Ao invés de elaborar
uma constituição “novinha em folha”, os argentinos preferiram voltar à velha Constituição de 1853, naturalmente
recheada com atualizações. E isso se dá apesar do caráter
tão mais “rupturista” do processo argentino – em virtude da
completa desmoralização das Forças Armadas que se segue
à derrota argentina na Guerra das Malvinas –, o que, segundo as teorias constitucionais antes aludidas, justificaria,
melhor do que no caso brasileiro, a invocação de um poder
constituinte pleno, isto é, “originário”, livre da tutela de
qualquer legalidade antecedente9. De fato, a reforma constitucional argentina só entrou na pauta anos depois, envolvendo, aí sim, uma espécie de assembleia constituinte, mas
já em outra conjuntura – não mais de transição propriamente – e servindo a outros propósitos.
Mas por que, afinal, a transição dos brasileiros teve uma
constituinte e a dos argentinos, não? Teria sido por causa da
propensão “legisferante” dos brasileiros, com suas frequentes “diarreias constitucionais”, como afirmava o senador
Roberto Campos (1994, pp. 1183-90) (embora ele estendesse a crítica aos latino-americanos em geral)? Ou por causa
da reverência argentina às suas tradições fundadoras, que
têm na Constituição de 1853 um marco crucial, associada
como está à ultrapassagem da dicotomia federalismo-unitarismo que dilacerava o país até então (Coelho, 1999, pp.
107-8)? Pistas como essas, interessantes que sejam para nos
lembrar dos fatores de longa duração, podem, todavia, nos
distrair das circunstâncias especificas de cada processo,
notadamente de suas contingências. O presente trabalho
9
Para uma exposição do colapso da ditadura argentina e os eventos subsequentes,
ver Novaro e Palermo (2007), capítulo 7.
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arrisca uma hipótese que as leve em conta. Por sua relevância para a discussão prometida no início do texto, há que se
deter nela mais longamente.
A hipótese parte do seguinte dado: o regime autoritário brasileiro preocupou-se, muito mais do que o argentino,
com sua própria institucionalização, através de normas e
procedimentos que, para além da mera aparência de legalidade, servia a propósitos derivados da necessidade mesma
de regular seus conflitos internos, como se verá adiante. É
claro que nada disso retira o caráter essencialmente repressivo da ditadura que, através de instrumentos como o AI-5 e
de uma máquina semiclandestina de perseguição aos opositores, podia suspender, da noite para o dia, todas as normas
ou procedimentos e deixar qualquer cidadão à mercê de
uma violência extrema, cuja simples ameaça já poderia dissuadi-lo de pendores oposicionistas. Porém, e a despeito disso, tais propósitos institucionalizantes, quando fazia sentido
buscá-los com algum rigor, emprestavam à ditadura brasileira peculiaridades que a contrastavam com suas “primas”
do Cone Sul10. E se essa busca fez, de fato, algum sentido na
fase inicial do regime (antes da promulgação do AI-5), fez
mais sentido ainda na longa fase derradeira, quando seus
líderes passaram a se comprometer com um projeto de “distensão” ou “abertura” que, intencionalmente ou não, marca
o início da transição para a democracia.
Além da volta à democracia plena, entre as possíveis consequências não intencionadas, há que se registrar a seguinte:
ao manter o Congresso e seu calendário eleitoral e, ao mesmo tempo, criar um novo sistema partidário – primeiro em
fins de 1965, como resultado do Ato Institucional n. 2 (AI-2),
que levou ao bipartidarismo da Arena/MDB, e depois com a
reforma de 1979, que sancionou um multipartidarismo limi-
337
Até onde conhece o presente autor, a análise dessas peculiaridades e contrastes,
pulverizada na vasta literatura sobre transições políticas, ainda está por ser feita de
modo mais rigoroso e sistemático.
10
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tado – o regime permitiu o desenvolvimento de novas referências político-eleitorais. Estas encobriam, ou mesmo apagavam, as antigas referências nascidas do regime constitucional
de 1946, ajudando a desmanchar, de modo talvez muito mais
eficaz do que o puro e simples emprego do banimento e da
força, as resiliências da memória popular no que diz respeito
a seus velhos líderes e suas respectivas simbologias. A própria
criação induzida de uma nova liderança de oposição (o MDB,
e depois o PMDB e os demais partidos, particularmente
o PT) gerava um incentivo autopropelido para diminuir o
valor daquelas antigas lideranças. Ao contrário, os países em
que ditaduras simplesmente aboliram o regime eleitoral e
parlamentar, sem colocar nada no lugar, assistiram ao retorno das velhas agremiações partidárias, com seus símbolos e
seus líderes ou herdeiros diretos.
Não por acaso, já em 1967, de acordo com o precioso
estudo de Maria D’Alva Kinzo (1988, pp. 111-12) sobre o
MDB, a maioria desse partido se mostrava no mínimo relutante em cerrar fileiras com a Frente Ampla, que então unia
contra a ditadura três das principais personalidades do regime de 1946 (Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e Jango).
Esse comportamento não se explica apenas pela disposição
muito moderada do partido nessa época, mas também pela
necessidade de autoafirmação de uma nova safra de políticos profissionais que encontravam, no sistema partidário
recém-criado, uma brecha para florescer, a despeito de
todos os limites do autoritarismo11.
A natureza dual do regime autoritário e a dinâmica de
sua “distensão”
Ao longo do período autoritário, o MDB/PMDB tinha de
ostentar dupla face: era, por certo, um partido de oposi11
Para outra análise do papel das instituições eleitorais no regime autoritário, mas
não divergente desta, ver Lamounier (1988).
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ção ao regime, isto é, contra o “sistema”; mas era também um
partido de oposição do regime – uma “oposição consentida”,
como se dizia, obediente às regras estabelecidas, às quais
devia sua própria existência – um partido do “sistema”.
Com a primeira face, a agremiação tinha de lutar por seus
princípios e seu programa, os quais exigiam o pleno restabelecimento das liberdades civis e políticas e o fim da tutela
militar – quer dizer, exigia nada menos que a substituição
do autoritarismo em vigor por um regime democrático pleno. Com a segunda, porém, o partido atuava no sentido de
fazer com que as regras o beneficiassem, embora a ditadura
que as impunha, visasse exatamente ao oposto. Contudo, ao
reconhecer instituições eleitorais, parlamentares e partidárias, o regime inscrevia não só a possibilidade de eleger candidatos parlamentares, mas também maiorias oposicionistas
nas casas legislativas, inclusive no Congresso Nacional. Com
maior dificuldade – que crescia conforme sua importância
no plano nacional –, ele também previa a disputa do poder
executivo: prefeitos, governadores e até o presidente da
república; esse último, é claro, com chances ínfimas, por
seu papel de principal sustentáculo do autoritarismo em
sua expressão institucional. Em resumo, como partido de
oposição do regime, o MDB/PMDB podia ao menos aspirar
ao exercício do poder político conforme as regras estabelecidas; mas como partido de oposição ao regime, essa aspiração passava pela liquidação plena do autoritarismo, isto é, o
fim do regime vigente. Como se vê, eram dois lados de uma
mesma personalidade, porém nada fáceis de reconciliar.
Esses atributos, todavia, estavam longe de ser exclusivos
do partido de oposição. Na verdade, eram reflexo da natureza dual do próprio regime autoritário que se estabeleceu
no país. Dualidade por vezes recalcada, sem dúvida, mas
que era sua marca de origem e de tal modo persistente ao
longo de sua trajetória que, se a desprezássemos, seria muito difícil compreender não apenas sua longa duração, mas
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também a forma com que se gestou uma das mais poderosas alternativas de sua superação.
Como se sabe, o golpe de Estado que o impôs foi resultado de uma aliança entre parte da liderança civil do regime
de 1946 e da facção então majoritária da alta hierarquia militar. Essa aliança, embora unida no propósito de derrubar
o governo constitucional vigente, dividia-se a respeito de
suas pretensões futuras. Na liderança civil prevalecia a ideia
de um expurgo da Constituição de 1946, ainda que mantendo suas instituições básicas, em particular as eleitorais.
O golpe, desse ponto de vista, manteria o padrão do intervencionismo pontual das forças armadas nas instituições da
República, fosse para beneficiar uma facção de partidos,
fosse para beneficiar a adversária. Isso, também cabe lembrar, já havia acontecido algumas vezes durante o regime
anterior: em 1954, com o quase golpe que levou ao suicídio de Vargas; no ano seguinte, com a intervenção bem-sucedida do general Lott para garantir a posse de Juscelino
Kubitschek; em 1961, para impedir a posse de João Goulart...
Embora o expurgo de 1964 devesse ser bem mais profundo do que o de 1947, que colocou o Partido Comunista na
ilegalidade, a pretensão da maioria civil, especialmente dos
chefes partidários que visavam concorrer às eleições presidenciais seguintes, era antes deslocar as forças atuantes no
regime de 1946 do que propriamente eliminá-lo12.
Na alta hierarquia militar, no entanto, prevaleceu algo
bem distinto: em vez do padrão anterior das intervenções
pontuais (“cirúrgicas”), agora as forças armadas deveriam
exercer uma tutela contínua sobre a República, colocando-se definitivamente acima dela. Esse passo decisivo se
dá logo no primeiro ato institucional da ditadura (depois
12
Sobre os episódios anteriores a março de 1964, ver Skidmore (1976), capítulos
III, IV, VII e VIII. Sobre as tensões entre lideranças militares e civis do golpe, além
dessa obra mais antiga de Skidmore (1976, pp. 370-3), ver o recém-lançado livro
de Farhat (2012, pp. 175-214).
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designado AI-1), proclamado em 9 de abril de 1964: não
por acaso, feito por uma junta militar – sem dúvida, com
a assessoria de juristas de convicção autoritária – que se
autoproclamou o “comando supremo da revolução”, sem
qualquer participação das instituições republicanas. Com
efeito, essa participação não se deu nem por meio do presidente da república, Ranieri Mazzilli, que, como presidente da Câmara Federal, substituiu o presidente deposto, sob a (falsa) alegação de vacância do cargo e nem, o
que é mais significativo, por meio do Congresso Nacional,
que, nas intervenções anteriores, pelo menos teve preservado o papel de oferecer uma solução constitucional para
seus resultados e, portanto, manter a função de árbitro
final dos conflitos, sempre sob a pretensão da continuidade constitucional13. Dessa vez, porém, os chefes militares,
por meio de ato institucional, proclamavam unilateralmente uma ruptura, alegando encarnar a vontade nacional e
sua capacidade de invocar o “Poder Constituinte”, o que os
colocava acima das instituições estabelecidas e da própria
constituição. O AI-1, dizia, enfim, através de seus três únicos assinantes (o chefe de cada arma), que a corporação
militar não deveria se subordinar sequer ao presidente da
República, invertendo, assim, a hierarquia constitucional
tradicional, que reservava ao presidente a função de chefe
supremo das forças armadas.
A conciliação dessas duas pretensões divergentes sempre ocorreu precariamente, na base de improvisos. Mas o
próprio texto do AI-1 já indica algo no sentido dessa conciliação. Pois além de reivindicar o “Poder Constituinte” da
nação – a senha para as medidas ditatoriais propriamente
ditas –, o texto admitia ainda a autolimitação desse poder,
justamente a brecha que se abria para a institucionalização
341
13
Sobre o menosprezo do “Comando Revolucionário” militar ao presidente e ao
Congresso, na elaboração do AI-1, ver Gutemberg (1994, pp. 178-85).
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do novo regime. Nesse primeiro ato institucional, a base da
autolimitaçao ainda era a Carta de 1946, modificada pela
dilatação do Poder Executivo e o encolhimento do papel
do Congresso Nacional, além da fixação de um prazo para
aplicar as medidas de exceção, tais como cassar mandatos
parlamentares e direitos políticos de qualquer cidadão14.
Mais à frente, a Constituição de 1946 será definitivamente
abandonada, mas a ideia da autolimitação persistirá, com
a outorga da Carta de 1967. Note-se, porém, que os poderes excepcionais eram sempre atribuídos ao presidente da
Republica, o que apontava por onde deveria passar o equilíbrio entre as diferentes pretensões dos aliados. Se por um
lado, reconhecia-se a máxima autoridade de um cargo civil
– a presidência da República – por outro, agora ela devia
representar diretamente algo mais alto, a “revolução” encarnada nas forças armadas, sendo decorrência implícita a ocupação do cargo por um hierarca militar. Com isso salvava-se,
na aparência, a República, que requer a subordinação do
poder armado ao poder civil (representado pelo presidente), mas também a própria hierarquia militar, que requer
a subordinação de todos os oficiais, inclusive os chefes de
cada arma, a um comandante supremo15.
14
Ver o preâmbulo do AI-1, que a certa altura diz: “A revolução vitoriosa necessita
de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos
poderes de que efetivamente dispõe (...) Para demonstrar que não pretendemos
radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946,
limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente
da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a
ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar
o bolsão comunista […]. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se
acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso
Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato
Institucional” (www.acervoditadura.rs.gov.br/legislacao_2.htm).
15
É preciso lembrar que um dos fatos desencadeadores do golpe de 1964 foi a
percepção generalizada de quebra da hierarquia militar, alegadamente estimulada
pelo presidente João Goulart, em virtude de manifestações e protestos de suboficiais e praças, não autorizados por seus superiores e então transformados em
revoltas – o que em linguagem militar queria dizer “motim”. Sobre esses episódios,
ver Ferreira (2011), capítulos 8 e 9.
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Dois dias depois do AI-1, o Congresso elegia indiretamente – conforme previa a Constituição de 194616 – um
presidente da República que era também um marechal,
visto como líder, do lado militar, da aliança golpista. A
escolha do candidato, no entanto, significou também uma
solução de compromisso, desde que Castello Branco era
avaliado como um chefe militar mais sensível e respeitador dos rituais das instituições civis, inclusive as eleitorais.
Em seu discurso de posse, por sinal, ele prometia zelar pela
normalidade de todo o calendário eleitoral, sem exceção
do cargo que vinha a ocupar (Gaspari, 2002a, pp.119-20,
125). Como sabemos, isso não aconteceu nem para o presidente, nem para os governadores, mas se confirmou para
os mandatos legislativos. Derrotados, em outubro de 1965, os
candidatos da UDN (apoiados pelo governo) nas eleições
para governador na Guanabara e em Minas Gerais, o regime, através do mesmo Castello Branco, decide impor seu
segundo ato institucional (o AI-2). Este, além de extinguir
os velhos partidos, substituía a eleição direta dos governadores e do presidente pela escolha indireta num colégio
eleitoral. Com essa decisão, os militares apagavam de vez
a esperança dos antigos chefes partidários, mesmo os que
haviam apoiado o golpe de 1964, de concorrer às próximas eleições presidenciais: selava-se, então, a ruptura com
o antigo regime e sua constituição17.
Seria enganoso, porém, reduzir todas as tensões internas do novo regime a um conflito entre civis e militares. Se
é verdade que a liderança militar exigia poderes excepcionais para cumprir as metas da “revolução”, não é menos verdade que ela também intuía a necessidade da institucionalização do regime. Não só para satisfazer os aliados civis, mas
para preservar a identidade da própria corporação militar.
343
Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1946), art.79, §2°.
Mais sobre as circunstâncias que levaram à decretação do AI-2, ver Skidmore
(1988, pp. 93-100).
16
17
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Esta, embora pretendesse encarnar os ideais “revolucionários” do movimento de março/abril de 1964, estava longe
de funcionar como um partido revolucionário em sentido
próprio – não importando aqui sua orientação ideológica,
se de direita ou de esquerda –, com seus vínculos orgânicos
com a sociedade civil e os movimentos de massa, seus líderes carismáticos e sua intensa luta ideológica interna, definidora das carreiras de seus quadros. Não: mesmo assumindo
a cúpula do poder estatal, os militares brasileiros se pensavam como uma corporação estritamente burocrática, ciosa
de regulamentos e de modos previsíveis de ascensão de seus
oficiais. Em particular, receavam sua excessiva politização e,
com isso, as chances da emergência de um líder carismático
– mais à semelhança de um caudilho latino-americano do
que de um chefe revolucionário – que liquidasse sua dinâmica burocrático-corporativa. Mas essas chances cresciam, e
muito, precisamente na medida em que as forças armadas
assumiam diretamente o poder político. Pois, nesse caso, o
perigo que corriam era o de transformar o regime, autoritário que fosse, numa ditadura autocrática, tal como (ao ver
deles) havia sido a ditadura de Vargas. Se o regime haveria
de ser ditatorial, que fosse a ditadura de uma oligarquia (a
dos hierarcas militares) e não uma ditadura pessoal. Mas isso
requeria regras, leis escritas e não escritas, que limitassem
os ardis da autocracia; regras que teriam de se nutrir desse
insólito intercâmbio entre os regulamentos da hierarquia
militar e as leis da República.
Eis por que, do lado das instituições civis, a prática tradicional, anterior ao regime de 1946, de proibir a reeleição
do presidente, foi mantida. Por isso, também, do lado da
corporação militar, só generais da mais alta patente deveriam tornar-se presidentes – prática reforçada pela decisão,
tomada ainda no governo de Castello Branco, de transferir automaticamente para a reserva os generais de quatro
estrelas que estivessem exercendo essa função por um temLua Nova, São Paulo, 88: 327-380, 2013
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po considerado longo demais, isto é, suficiente para tentá-los a cultivar uma lealdade dos subordinados a suas pessoas
(Skidmore, 1988, pp. 104-5). Ainda do lado das instituições
civis: embora seja obviamente exagerado afirmar que a preservação do Congresso e das práticas eleitorais, inclusive as
de um partido de oposição, tenha sido decorrência exclusiva desses fatores, é certo, em contrapartida, que tal preservação não se resumia a mera fachada, apenas para satisfazer
constrangimentos diplomáticos e de política externa. Para
além das necessidades de legitimação interna do regime –
algo já bastante ressaltado pela literatura acadêmica, e que
não se pretende contestar aqui –, há que se cogitar a hipótese de que tais instituições também servissem ao propósito
de oferecer uma válvula de escape, ainda que estreita e muito controlada, para os conflitos internos da alta cúpula e de
outras entranhas do regime. Com isso, os militares podiam
manter e cultivar um canal de interlocução e, quando oportuno, de negociação, com as lideranças políticas civis que
emergissem da nova institucionalidade. Essas, como observado, seriam justamente as que tivessem aceito, mesmo a
partir do campo oposicionista, as novas regras do jogo e que
reconhecessem nelas, pelo menos parcialmente, o futuro
de suas carreiras: que se lhes admitissem, enfim, algum
valor positivo, a ser resgatado “aqui e agora” ou mesmo em
algum incerto futuro.
Dizer essas coisas não significa, absolutamente, esquecer
ou subestimar os vários conflitos que tais instituições tiveram com a cúpula do regime. Esses conflitos foram, sim,
graves e muito significativos. Entretanto, menos porque
revelassem divergências fundamentais entre civis e militares
ou entre o Congresso e o autoritarismo, ou mesmo entre a
oposição parlamentar e o autoritarismo. Revelavam, antes,
uma contradição interna ao próprio regime autoritário: a
contradição entre o “poder constituinte da revolução” –
que atribuía a seus porta-vozes um poder virtualmente ilimi-
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tado e incondicional, acima dos poderes da República – e
sua pretensão, que o presente artigo afirma ter sido real, e
não um mero disfarce, de se institucionalizar. Isso explica,
mais do que as medidas de punição aos dissidentes, os poucos, porém importantes, fechamentos temporários do Congresso, motivados pela sanha de punir, com a autorização
congressual, um de seus membros, tentando forçar decisões
tremendamente constrangedoras para a maioria situacionista. É que, em tais tentativas, o “Poder Constituinte” se
confrontava não só com a oposição, mas com todo o sistema
de partidos que o regime mesmo instituíra e que tinha na
corporação parlamentar um de seus sustentáculos. Mesmo
que fosse um membro da oposição o atingido, a questão
concernia não apenas ao MDB, mas também à Arena. Em
suma, ao conjunto do Congresso Nacional, que se via impelido a defendê-lo pelo simples fato de ser um integrante
daquela corporação18.
Importante insistir, porém,em que o conflito envolvia
igualmente, e de forma não menos significativa, o presidente da República em sua dual função de representar os
interesses maiores da “revolução” e de empunhar a máxima
autoridade da República. Foram inúmeras as vezes em que
a pessoa do presidente se viu entre essas duas funções, geralmente cedendo à primeira. Quando não o fazia, enfrentava
o risco de sua desestabilização ou contestação explícita por
algum chefe militar (via de regra, o ministro do Exército)
que o julgasse aquém de seus deveres revolucionários19. O
18
O fechamento do Congresso mais conhecido por esse motivo foi o que levou à
decretação do AI-5, em dezembro de 1968. Mas antes deste, e ainda no governo
Castello Branco, o Congresso foi fechado em outubro de 1966 por conta da resistência do então presidente da Câmara dos Deputados (da Arena) à cassação de
seis deputados federais da oposição (Skidmore, 1988, pp. 113-4).
19
Os quatro volumes da obra de Gaspari (2002-2004) são fartos no relato e na análise desses episódios. Mas eles podem ser encontrados, esparsamente, em quase
toda historiografia sobre a ditadura. Note-se que, com frequência, o ministro do
Exército era um pretendente ao cargo presidencial.
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problema ia além da tão falada, e pouco escrutinada, disputa entre a “linha dura” e a “linha moderada” no interior das
forças armadas. O fato é que todo suposto representante da
“linha dura”, tão logo se tornasse presidente da República,
se via levado a envergar os trajes de “moderado”. Não por
conversão súbita de convicção ou de personalidade, mas
porque assim impunha a tarefa crucial de improvisar um
equilíbrio entre aquelas duas funções. Naturalmente, se o
esforço redundasse impossível, passava, então, a ceder para
um lado ou para outro20.
Mas não importa à análise aqui esboçada entrar nos
detalhes dos acontecimentos examinados. O ponto central
é o que nos revelam sobre a virada do regime, a partir do
presidente Geisel, no sentido de sua “distensão” ou “abertura”. Costuma-se associar o projeto de distensão de Geisel
ao processo de transição à democracia, como se uma coisa estivesse intencionalmente ligada à outra. Sem dúvida,
sua firme disposição para abrir o regime é um dos fatores
que desencadeiam a transição, mas é difícil crer que o presidente e seus conselheiros mais próximos a quisessem. Da
perspectiva deste estudo, é mais plausível pensar a distensão
como uma tentativa de resolver as pressões contraditórias
da dualidade do regime, na direção de um reforço de seu
lado institucionalizante.
Pode soar estranho afirmar algo assim a respeito de um
governo que provavelmente tenha sido o que mais próxi-
347
20
Exemplo notório: o presidente Costa e Silva que, mesmo depois da decretação do AI-5, buscava um modo de retornar, ainda em seu mandato, a uma
normalização institucional (Skidmore 1988, pp. 191-2). É irônico constatar que
o general Médici, o presidente dos “anos de chumbo”, não fosse colocado em
nenhum dos lados dessa divisa. Embora o mais popular, talvez tenha sido também o mais burocrático e anódino dos presidentes militares. Não por mera
coincidência, ele fora literalmente escolhido por um “consistório” militar, antes
de seu nome ser homologado pelo Congresso Nacional (Skidmore, 1988, pp.
196-201; Gaspari, 2002b, pp. 110-24).
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mo chegou, no período autoritário, de uma ditadura pessoal. De fato, o estilo centralizador e impositivo de Geisel,
além do uso que continuou a fazer dos dispositivos do AI-5
– várias cassações de parlamentares e a imposição de legislação casuística via fechamento temporário do Congresso
(o chamado “pacote de abril”, de 1977) – projetou sobre
seu governo essa imagem, parcialmente verdadeira, mas
enganosa. Por mais paradoxal que pareça, esse estilo de
governar talvez tenha colaborado com a persistência com
que encaminhou seu projeto, mesmo quando este gerava
inéditas tensões nas entranhas do regime.
Falar de “entranhas do regime” ajuda a compreender
as razões e limitações da abertura que se pretendia realizar.
Com efeito, o “Poder Constituinte” invocado pelas forças
armadas, ao mesmo tempo em que autorizava medidas de
exceção (legalizadas) contra os dissidentes políticos, solicitava o erguimento de uma complexa engenharia de repressão – um braço executor que, mais importante até do que
as medidas punitivas, viabilizasse as ações tidas como “profiláticas”. Ou seja, demandava a construção de uma máquina
especializada em moer dissidentes, reais ou supostos. E sem
que fosse uma consequência necessária de qualquer ditadura – outras a construíram de modo diferente –, no Brasil
(e um par de outros países latino-americanos) isso se fez a
partir de dentro das forças armadas.
Havia, porém, um detalhe importantíssimo nessa construção. Todas as leis do Estado, mesmo os atos institucionais
que o regime militar decretou, deveriam de algum modo
atender ao princípio normativo da publicidade: serem
amplamente conhecidas pelos cidadãos. Trata-se de um
traço incontornável do Estado contemporâneo, enquanto
artefato jurídico, que nem mesmo as ditaduras ousaram
negar oficialmente e menos ainda um regime autoritário
como o brasileiro, com suas pretensões institucionalizantes.
Essa pressão normativa, no entanto, não podia valer exataLua Nova, São Paulo, 88: 327-380, 2013
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mente nesses termos para as operações da máquina repressiva, que, nesse sentido, tendia a tornar-se uma organização
semiclandestina.
Tome-se, por exemplo, as práticas de tortura: desde
pelo menos (senão antes) a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, elas não só são repudiadas pelo
direito internacional, mas seu repúdio integra o quadro
legal dos Estados nacionais que a endossam. Algo semelhante se dá com as práticas de escrutínio da vida privada
dos cidadãos com fins de intimidação e controle político, de
invasão de suas residências e de prisão sem o devido mandado judicial e tantas outras. Todas elas eram sabidamente
empregadas e rotinizadas pelos aparelhos repressivos dessas
ditaduras e também da brasileira. Porém, a despeito de sua
suposta eficácia na repressão, eram inapelavelmente incompatíveis com a própria legalidade do Estado autoritário. Eis
que tinham de operar de modo camuflado, à sombra das
instituições oficiais que lhes davam cobertura.
Tais práticas, como sabemos, não são absolutamente
estranhas nem mesmo aos Estados democráticos. Mas sob
as ditaduras elas tendem ao paroxismo, exatamente porque
autorizadas e incentivadas desde cima. A grande dificuldade
dos que as autorizam, no entanto, é preservar seu controle,
a fim de que não sigam além de certos limites, compatíveis
com a integridade mesma do Estado. Entre outros requisitos fundamentais, falta-lhes justamente os instrumentos da
legalidade, que a máquina repressiva tem, é claro, de dispensar, mas a que, em sua hipertrofia, começa a desafiar sistemática e arrogantemente, junto com as autoridades que
viessem a representar essa legalidade, fosse ela autoritária
ou não. É nesse ponto crítico que a criatura pode se voltar
contra o próprio criador.
Que essa criatura seja inimiga de morte das liberdades
básicas das instituições republicanas nem é preciso comentar. Menos óbvio é que ela se indisponha, como se indispôs
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no caso brasileiro, até mesmo com a corporação militar,
que afinal a patrocinou. E aqui se faz necessário retomar
o ponto, antes mencionado, da tradição eminentemente
burocrática dessa estrutura, com seu apego aos regulamentos e à hierarquia.
A pleno vapor, a máquina de repressão semiclandestina, desembaraçada das formas públicas de supervisão, vai
desenvolvendo uma espécie de hierarquia paralela dentro
da hierarquia oficial – um “duplo comando”, digamos
assim. Em vez de reconhecido por sua patente militar, o
soldado da repressão o é por sua importância na “comunidade” dos iniciados no combate aos dissidentes e por
sua lealdade, fanática ou oportunista, a esse propósito.
De modo que, ao dilatar-se, essa organização paralela
acaba corroendo os princípios estruturantes da própria
corporação militar, afetando, com grande desconforto, a
identidade coletiva de seus membros. Como revelam os
depoimentos colhidos pela historiografia do período, esse
problema foi muito sentido por diversos oficiais ciosos do
profissionalismo militar 21, especialmente nos tempos da
repressão mais furiosa.
O programa da distensão “lenta, gradual e segura” do
governo Geisel – depois metamorfoseado em “abertura” sob
o governo de seu sucessor (general João Figueiredo) – fazia
eco a esse sentimento difuso e a partir dele buscava apoio
dentro das forças armadas. Mas a questão não poderia se
restringir a uma iniciativa intracorporativa: se seu estopim
era um descontentamento de natureza legal-burocrática,
sua raiz tinha origem mais profunda e complicada, que chegava à arquitetura política do regime. Vale dizer: as relações
promíscuas que se estabeleceram entre a hierarquia militar
e os poderes da República.
21
Entre os depoimentos, cabe mencionar o do próprio general Geisel (D’Araujo;
Castro, 1997), em especial o capítulo 21.
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O problema da existência de uma máquina repressiva
semiclandestina, nascida dentro das forças armadas, não
era apenas o de fazer crescer um duplo comando na hierarquia militar. Esse fenômeno espelhava uma realidade
politica mais ampla: a existência de uma “câmara escura”
que, em nome das forças armadas – e se apropriando do
monopólio da violência que o Estado lhes garantia – pairava sobre todas as instituições civis, exercendo sobre elas
uma tutela contínua. Essa “câmara”, essa espécie de “conselho dos cavalheiros Jedi”22 da República brasileira, justificava sua existência pela necessidade de protegê-la de suas
próprias debilidades – na prática, o álibi para tolher
suas liberdades, até o ponto de torná-las uma mera caricatura. Esse trabalho corrosivo, como anotado, se fez sentir
desde as primeiras manifestações públicas do regime: já no
dia 9 de abril de 1964, apareceu na forma de um “comando supremo da revolução” e nas figuras oficiosas dos três
ministros das armas que, juntos, editam o AI-1, à revelia do
Congresso nacional e do presidente pro tempore (R. Mazzilli)
que substituía o presidente deposto (Jango). Alguns anos
depois, essa mesma câmara escura volta a se fazer sentir
subitamente, quando da incapacitação física do presidente-marechal Costa e Silva, em agosto de 1969. Naquela ocasião, a Constituição que seu antecessor, marechal Castello
Branco, através do Congresso, outorgara ao país (a Carta de
1967), estipulava a posse do vice-presidente, Pedro Aleixo,
político conservador e ex-udenista, então nas fileiras do partido situacionista. Impedido de tomar posse, Pedro Aleixo
foi ilegalmente mantido sob custódia em sua residência.
Enquanto isso, o país tomava conhecimento de que uma
junta militar, composta pelos três ministros das armas, através de um novo ato institucional – já se estava sob o AI-5 –,
351
22
O texto se refere ao roteiro do blockbuster de ficção científica criado por George
Lucas, “Guerra nas Estrelas”.
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governaria o país até que fosse escolhido um presidente da
república de sua satisfação, além de outorgar uma emenda constitucional que manietava a própria Carta de 196723.
Como em abril de 1964, esses atos eram baixados por uma
trinca de chefes militares, que os fazia em nome dos objetivos mais altos da “revolução”.
O fato de ter brotado como do nada em duas ocasiões,
não significa que essa câmara tenha existido esporadicamente e apenas nesses momentos mais dramáticos. Uma
“câmara escura” é exatamente isso: age contínua, mas veladamente. Como tal, seu alvo mais importante não é nem o
Congresso nacional, mas aquele que supõe ser seu representante direto nas instituições civis: o presidente da República. Por isso mesmo, era melhor que este fosse um camarada
da caserna. O que, porém, não bastava: mesmo militar, era
preciso que fosse colocado sob constante vigília, para obstruir qualquer veleidade de independência – para impedir,
em suma, que exercesse efetivamente a máxima autoridade
da República, sem exceção das forças armadas, e que se curvasse apenas ao poder civil e às leis.
Note-se que não tivemos precisão, até aqui, de falar em
democracia para escrutinar o que, afinal, estava implicado
nas contradições do regime autoritário brasileiro e o que o
projeto de distensão “lenta, gradual e segura” buscava, também contraditoriamente, resolver. É que de fato, como já
se aludiu, não estava em seu horizonte o pleno restabelecimento da democracia, mas antes a afirmação de um processo institucionalizador inscrito no próprio regime. Essa institucionalização, porém, esbarrava no “poder constituinte
da revolução”, com todas as suas consequências: além das
medidas de exceção (legalizadas), a máquina de repressão
(ilegal), e a tutela contínua, no mais das vezes invisível, da
23
Para os detalhes desse episódio, ver Gaspari (2002b, pp. 82-6) e Skidmore (1988,
pp. 192-6).
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“câmara escura” das forças armadas (acima da lei). Com
efeito, ainda que o horizonte da distensão estivesse aquém
da democracia, seus protagonistas eram obrigados a enfrentar o problema da autoridade da República, a começar a
autoridade do presidente. Sem esse enfrentamento, o projeto aberturista não poderia prosperar e com isso o governo
que o empunhava fracassaria por completo. Que essa iniciativa tenha levado a uma transição para a democracia e a um
processo constituinte é questão adicional analisada a seguir.
Por enquanto, concentremo-nos nos desafios intrínsecos ao
programa da institucionalização autoritária.
No governo Geisel, restaurar a autoridade do presidente significou em primeiro lugar restaurar sua capacidade
constitucional de chefe supremo das forças armadas. E ao
fazê-lo, o presidente desmoralizava (embora não desmantelasse) o poder de pressão velada encrustado no interior da
corporação militar. Isso, a despeito de que ele mesmo fosse
um militar. Irônica e contraditoriamente, essa origem profissional agora se fazia em benefício do fortalecimento de
uma instituição civil (a própria presidência da República):
sua condição e experiência de militar talvez até o qualificasse, melhor do que a um paisano naquela conjuntura,
para fazer o embate, pois conhecia por dentro o estado de
espírito e a distribuição de forças da tropa. Mesmo assim,
não era coisa das mais simples, naqueles tempos, substituir
comandantes (como o do II Exército, em São Paulo) que
não obedeciam as ordens presidenciais de enquadrar o Doi-Codi sob sua jurisdição ou demitir um ministro do Exército
que pretendia sobrepor-se à sua autoridade24.
Mas esse, outra vez, era apenas um dos desafios da
distensão, ainda que crucial. O outro, bem mais delicado
politicamente, era restabelecer os demais poderes da Repú-
353
Para os detalhes desses episódios, ver Gaspari (2004), partes II e IV. É ele quem
observa que, tendo saído vitorioso desses embates, Geisel “restabelecera a autoridade constitucional do presidente da república sobre as Forças Armadas” (p. 481).
24
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blica. Delicado porque implicava devolver autonomia às
instituições eleitorais e ao regime de partidos – quer dizer,
deixar que as regras próprias a essas instituições seguissem
livremente seu curso. Quanto a esse ponto, a questão não
era sequer aceitar que um partido de oposição assumisse
as rédeas do país; antes, o que estava em jogo era a ideia
mesma de um governo de partidos: que seus representantes, a
começar pelo partido situacionista, assumissem plenamente
sua aspiração ao poder político. Pois, sob tutela militar, tanto o MDB quanto a Arena, estavam na prática impedidos
dessa aspiração, mesmo que em tese as regras institucionalizantes do regime a previssem. Assim, enquanto partidos
do regime, e a despeito de suas divergências eleitorais, MDB
e Arena tendiam a formar uma aliança tácita nesse terreno. Por sua vez, o governo, se queria impulsionar seu projeto aberturista, tinha interesse em cultivar as aspirações de
empoderamento desse campo, a fim de torná-lo interlocutor relevante na negociação das reformas constitucionais
necessárias à implementação do programa governista.
A distensão, todavia, teria de ser “lenta, gradual e segura” e é precisamente nessas qualificações de ritmo e prudência que podemos encontrar sua grande contradição.
Pode-se dizer mesmo que essa era uma contradição especial dentro da contradição maior encravada na manutenção
de um regime autoritário pela via da institucionalização.
Ou, se quisermos sublinhar o difícil e novo equilíbrio que
se buscava: era o problema de instaurar uma República
“semiautoritária” ou “semidemocrática” – se se tratava do
primeiro adjetivo ou do segundo, dependia de quem quisesse salientar a metade vazia ou a metade cheia do copo.
Não importa: nenhuma das duas poderia ser, nem pretendia ser, uma candidata à altura dos valores de uma República democrática. Restava saber se algo assim pela metade
seria viável na prática, em vista das contingências nacionais
e internacionais. Mais do que isso: em vista das aspirações
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democráticas adormecidas nos interstícios da sociedade
brasileira e que poderiam despertar com a própria abertura
do regime. É nesse contexto que a agenda da transição e do
processo constituinte começará a ganhar sentido – sem
que tenha sido planejada pelos arquitetos da distensão – e,
então, a colocar em xeque a sobrevivência do regime, mesmo sob sua pretensa nova roupagem.
Processo de democratização e processo constituinte
Não é fácil definir em abstrato o que seriam a “democracia”
e as “aspirações democráticas” a que se tem aludido no texto
até este ponto. Em geral, as teorias democráticas costumam
estabelecer o conceito que lhes é central (o regime democrático) a partir de tipos ideais e sem considerar contextos
específicos. O mesmo ocorre com os conceitos contrastantes
(o negativo da democracia), tais como “ditadura” e “autoritarismo”. Em princípio, não há nada de errado ou criticável em fazer isso, em vista do caráter generalizante e típico-ideal das abordagens que, assim, conferem abrangência
e rigor a seus conceitos. Contudo, essas virtudes cognitivas
não raro são pagas ao preço da rigidez. Como a vida real
dos regimes políticos, com suas historicidades específicas,
frequentemente nos apresentam situações intermediárias,
lusco-fuscos ou zonas cinzentas, o resultado é que situações
assim acabam se tornando pontos cegos dessas teorias.
Todavia, essa é uma das dificuldades mais sérias a se
enfrentar quando estudamos a política brasileira na conjuntura histórica tratada pelo presente artigo e que envolve justamente dar conta de um processo de transição de regimes
políticos. Como a palavra mesma sugere, ela aponta para
um lusco-fusco, uma zona cinzenta.
355
A questão de fundo da qualidade “lenta, gradual e segura” que se pretendia imprimir à distensão – uma abertura
rigorosamente controlada – é que ela exigia que as regras,
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procedimentos e práticas apropriados à meta da institucionalização do regime produzissem os resultados esperados
por seus condutores e no timing que lhes fosse conveniente.
Em termos de conteúdo, institucionalizar o regime autoritário significava então “legalizar a revolução”, constitucionalizar o “Poder Constituinte” cujos propósitos haviam sido a
razão de ser do golpe de 1964, transformando em cláusulas
pétreas sua legalidade: segurança nacional; rédeas curtas e
firmes sobre todos os grupos sociais, associações, movimentos e demandas específicas ou universais; veto a cidadãos
e correntes políticas consideradas subversivas e assim por
diante. Além disso, a própria fúria repressiva do regime,
com sua “guerra suja” aos dissidentes, gerou o problema da
imunidade a seus executores e mandantes, o que a abertura
almejada também teria de contornar.
Operacionalmente, a distensão “lenta, gradual e segura” implicava calibrar as regras, procedimentos e práticas
de mediação da luta pelo poder político, de modo a: 1)
favorecer, ou tornar mais prováveis, os resultados eleitorais
desejados, obviamente para beneficiar o partido situacionista no Congresso e nas demais casas legislativas, os candidatos a prefeito ou governador e, mais decisivamente, o
candidato a presidente apoiado pela cúpula do regime e
2) ir alargando o conteúdo e o campo de validade das próprias regras e procedimentos, num ritmo compatível com
seu controle a partir dessa cúpula25. Envolvia, portanto, a
manutenção de um poder político suficientemente concentrado, capaz de resguardar a iniciativa governamental
a cada novo lance do processo.
Mas em que sentido, então, esse modo de institucionalizar poderia se chocar com a questão democrática? Por certo,
a democracia também implica uma institucionalidade – cerEsse ritmo não precisava ser linear, mas, se necessário, podia evoluir à maneira
de uma sanfona, tal como indicou a famosa metáfora das “sístoles” e “diástoles”,
empregada pelo general Golbery.
25
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tas regras, procedimentos e práticas compartilhadas, consistentes com seus valores básicos. Porém, da perspectiva da
presente análise, o problema central não é contrapor, digamos assim, dois modelos “estáticos” de institucionalidade
– o do regime democrático e o do regime autoritário, ou
mesmo de um regime autoritário como o brasileiro. Mais
esclarecedor no que diz respeito ao que estava em jogo, é
contrapor dois processos, dois modos divergentes de realizar
a institucionalização de regras, procedimentos e práticas,
com a seguinte peculiaridade: é possível que certo processo
de institucionalização comece de um modo e acabe sutilmente se transformando num outro modo, não só distinto,
mas divergente do anterior. A inflexão ou mutação do processo, por sua vez, tem efeito decisivo sobre o conteúdo
da institucionalização, afetando seu caráter autoritário ou
democrático. Assim, modo de institucionalizar e conteúdo
da institucionalização definem-se reciprocamente.
Ao ver do presente autor, foi aproximadamente isso
que se deu na passagem do autoritarismo para a democracia no Brasil, ao longo da quadra histórica aqui enfocada.
Trata-se, portanto, de se falar antes de democratização do que
de democracia e de articular conceitos que explorem não
tanto os pontos extremos e mais nítidos do processo, mas a
passagem ela mesma, isto é, a transição.
Contudo, o que assinalaria a inflexão de um processo
como o da distensão – aquele pretendido pela cúpula do
regime autoritário – rumo a algo como uma democratização? Precisamente aquilo que poderia subverter os intentos
da distensão: que os resultados desejados se tornassem indesejados ou que o esperado se tornasse inesperado, e que
o ritmo de alargamento do conteúdo e campo de validade
das regras fosse diferente daquele que a cúpula do regime
queria manter estritamente sob seu controle. Em síntese, a
mudança da determinação para a indeterminação do processo é
o que faz o país marchar rumo à sua democratização, de tal
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maneira que, a partir de certo momento, difícil de indicar
com precisão, nenhum ator ou agência relevante e nenhum
dos lados em confronto ou competição se mostraria capaz
de definir unilateralmente tanto os resultados quanto o ritmo do processo.
Escrutinando os principais fatos relativos a essa inflexão no caso brasileiro, pode-se observar que a discreta
passagem da distensão para a democratização ocorre justamente com a perda gradativa de iniciativa política do regime – vale dizer, a perda de sua capacidade de concentrar
poder político suficiente, a partir da cúpula, para operar
sua própria institucionalização. Essa perda, ademais, corresponde a um deslocamento da própria indeterminação
do processo, da periferia para o centro nervoso do Estado, movimento que se dá em zigue-zague, intercalado por
avanços e recuos. Para apontar sumária e esquematicamente a sucessão dos fatos: ela começa com a derrota da Arena
para o MDB na eleição do Senado, em 1974; passa pela
crescente incapacidade dos governos autoritários – de Geisel a Figueiredo – de enfrentar a seu modo a crise econômica e os conflitos sociais dela resultantes; pela derrota dos
candidatos do regime nas eleições para os principais governos estaduais e a perda de sua maioria na Câmara Federal,
em 1982; até culminar com a campanha oposicionista das
eleições diretas e a consequente perda da capacidade do
regime de fazer unilateralmente seu sucessor presidencial,
em 1984-1985. É nesse contexto que, então, se abre oficialmente o processo constituinte, cujo desfecho, isto é, a Carta de 1988, marca também o final da transição, ou, pelo
menos, a realização de sua principal tarefa: a superação
definitiva do regime autoritário.
Para a compreensão do processo constituinte, em particular, segundo o quadro analítico e conceitual exposto,
cabe voltar a considerar os processos de distensão e democratização a partir da perspectiva dos demais atores relevanLua Nova, São Paulo, 88: 327-380, 2013
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tes, para além da cúpula do regime autoritário. Em primeiro lugar, o partido situacionista (a Arena, depois PDS): é
óbvio que o horizonte da distensão lhe interessava eminentemente, uma vez que reunia as maiores chances de ser o
principal beneficiário das regras vigentes de exercício do
poder político, especialmente (mas não só) o modo indireto de eleger o presidente da República. Em princípio, era
possível fazer isso sem precisar negociar com o partido de
oposição, bastando garantir sua unidade interna. Com o
desencadeamento da democratização, porém – e na medida
em que fica mais claro que as coisas seguem esse rumo –
o partido vai improvisar mudanças de comportamento, a
fim de se adaptar à crescente instabilização de seu futuro e
manter acesa sua aspiração ao poder político. Para começar,
um estudado distanciamento em relação ao governo que
devia sustentar no Congresso; distanciamento que cresce na
mesma proporção em que aquele se vê obrigado a adotar
medidas impopulares para enfrentar a crise econômica e
social26. Tratava-se, pois, de realizar a dificílima manobra
de guardar essa prudente distância do governo, que lhe era
conveniente, sem que isso ferisse, no essencial, a sustentação ao regime, afinal sua melhor esperança de exercício do
poder político.
Ao fim e ao cabo, a manobra se revelou impossível, desde
que as sucessivas dificuldades do governo no Congresso
reforçavam a perda de iniciativa política do regime para
operar sua própria institucionalização e, por conseguinte,
para garantir os benefícios mais estratégicos e de longo prazo que o partido poderia esperar de sua sustentação. Como
vimos, se a manutenção da iniciativa política implicava o
poder político concentrado, a perda gerava, ao contrário,
sua fragmentação. Essa última, por sua vez, prenunciava a
359
26
Sobre o impacto da crise econômica e social, especialmente a partir do governo
Figueiredo, ver Couto (2010, pp. 255-73).
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implosão da unidade do partido situacionista, seu principal trunfo para garantir exclusivamente para si a eleição do
próximo presidente. Prova dessa comunidade de destino
de governo e partido se dá antes mesmo da campanha pelas
eleições diretas, quando o presidente da República, general
Figueiredo, também presidente de honra do PDS, abandona a tarefa de conduzir sua própria sucessão, entregando-a
inteiramente ao partido (Rodrigues, 2003, p. 37). Tão logo
se confirmou a falta de coluna vertebral do PDS para exercer a autonomia outorgada, esse “lavar as mãos” do presidente deu a senha para que suas divergentes correntes e
lideranças se sentissem liberadas para seguir seus próprios
caminhos. E o sucesso popular da campanha das diretas
ofereceu à parcela mais substancial delas a justificativa de
escape e uma alternativa de sobrevivência, ainda que ao
preço de exercer um papel mais subalterno na condução
dos rumos futuros do país.
Antes de considerar essa espécie de sobrevivência do
antigo regime – que se chamou inicialmente de Frente
Liberal, transformada depois em Partido da Frente Liberal (PFL) – é preciso recuperar o fio da análise do partido
ao qual se associou: o MDB/PMDB. Como se observou, ao
longo da vigência do autoritarismo, o MDB teve de conviver com a ambiguidade de ser um partido de oposição do
regime e de oposição ao regime. Nos anos mais ferozes da
ditadura, essa ambiguidade lhe foi muito cobrada, desde
que havia pouco o que fazer entre simplesmente colaborar
e simplesmente rejeitar o regime como um todo – ainda
mais enquanto a oposição armada se oferecia como uma
competidora mais heroica, mesmo que condenada ao
fracasso. Com o deslanche da distensão, no entanto, essa
dupla face do partido se lhe tornou conveniente por oferecer espaços para denunciar o autoritarismo a partir de
dentro do próprio “sistema”, conferindo dividendos eleitorais e as correspondentes brechas institucionais (cadeiLua Nova, São Paulo, 88: 327-380, 2013
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ras parlamentares e prefeituras), sem que essa mesma dualidade interna se transformasse, inicialmente, em dilemas
práticos. Mesmo que o caráter estritamente controlado
da distensão acarretasse reveses – pois as vitórias parciais
oposicionistas levavam o regime a mudar subitamente as
regras do jogo através de uma sobrelegislação imposta e
casuística – os recuos de curto prazo acabavam produzindo avanços no médio e longo prazo, na medida em que o
casuísmo só fazia expor à opinião pública os limites autoritários da abertura, causando mais e mais desgaste ao
estoque de legitimidade do regime, com os subsequentes e
deletérios efeitos eleitorais.
Precisamente essa estratégia bem-sucedida do partido
– sua capacidade de pôr em xeque os limites da institucionalização autoritária –, no entanto, vai colocá-lo em seguida
perante dilemas práticos graves, expondo o ser ou não ser
de sua identidade dual. Note-se que as derrotas eleitorais do
regime, mesmo quando amenizadas pelos casuísmos, eram
um dos fatores de sua perda de iniciativa política. Em tese,
a capacidade de iniciativa perdida poderia deslocar-se para
o partido oposicionista. Mas se essa possibilidade, por um
lado, aguçava sua aspiração ao pleno exercício do poder
político, ainda que num prazo incerto, por outro, impunha-lhe fardos imediatos quanto à divisão de parte da responsabilidade – primeiro no Congresso, depois nos governos
dos mais importantes estados brasileiros – para enfrentar os
graves problemas do país, em particular a crise econômica
e social. Porém, em que direção exercer esse deslocamento de iniciativa? Para acuar o regime até que não houvesse
alternativa, senão sua derrocada ou substituição? Ou para
continuar explorando os espaços oferecidos pelas regras do
jogo, instáveis que fossem, alargando seus limites até que
pudesse alcançar o centro nervoso do “sistema”? (Neste último caso, não tanto para pura e simplesmente “derrubar” o
regime, mas para exercer o poder político que lhe era de
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direito segundo as regras vigentes, na condição de um partido político e aspirante a um governo de partido).
Mas adotar qualquer um desses dois caminhos distintos, firme e inequivocamente, era por demais arriscado.
Radicalizar o combate ao regime, como pedia a esquerda
do partido, poderia expô-lo a tensões internas insuportáveis
– exatamente por ter um pé bem fincado no terreno institucional disponível –, a ponto de sua implosão, o que já devastaria as chances de vitória dessa estratégia. Mas agir exclusivamente dentro das regras oferecidas também era um salto
no escuro: quanto mais penetrasse nas entranhas do Estado
autoritário, mais apertado ficaria o funil que levava à cúpula do poder – atingindo máximo estreitamento no colégio
eleitoral previamente esculpido para a escolha do candidato presidencial situacionista – e, portanto, mais incerta ou
improvável sua vitória.
Dado que nenhuma dessas alternativas poderia responder a contento seus respectivos e previsíveis impasses, a saída natural para o dilema seria encontrar um meio termo,
quando algo assim estivesse disponível – e se viesse estar. De
fato, a oportunidade apareceu, tão logo ficou claro que a
vitória obtida nas eleições de 1982, por si só, não daria ao
partido força suficiente para galgar a próxima e decisiva
escala da hierarquia do regime: a própria sucessão presidencial. Daí a forte adesão interna que vai ganhar a ideia
de uma campanha popular em prol de uma emenda constitucional, restabelecendo as eleições diretas para presidente
da república27. Provisoriamente pelo menos, ela satisfazia
as expectativas das alas divergentes do partido: ao mesmo
tempo em que continuava a explorar os espaços institucionais disponibilizados – e no sentido de alargar seus limites
–, a proposta significava, em si mesma, um golpe mortal no
27
Para uma exposição do xadrez político que leva o conjunto das oposições à campanha das “Diretas-Já”, ver Rodrigues (2003, pp. 15-38).
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regime, desde que curto-circuitava sua estratégia gradualista e abria a agenda da democratização a partir de um cargo
crucial, fosse para freá-la, fosse, ao contrário, para acelerá-la
– como certamente ocorreria, com a vitória de um candidato oposicionista por essa via. Além disso, a campanha
propiciava interação positiva e intensa com um conjunto
de atores que ajudava a emprestar alta legitimidade à atuação oposicionista, especialmente entre uma eleição e outra:
a sociedade civil. Aliar-se a ela numa campanha popular
aumentava o poder de pressão sobre o Congresso nacional,
instância oficial de resolução da contenda. Porém, mesmo
que a emenda constitucional não fosse aprovada – o que
todos sabiam ser o mais provável, dado o quórum elevado
que exigia – o efeito colateral da campanha seria imenso,
tanto no sentido de alterar a correlação de forças do futuro
colégio eleitoral, quanto no de tornar aceitável a participação de um candidato oposicionista nesse espaço, se ela servisse para impor uma derrota irreparável ao regime.
Desnecessário narrar aqui o desfecho bem conhecido
desse capítulo da transição. Cabe apenas salientar dois pontos que muito interessam a este trabalho. Primeiro, que a
essa altura o país já estava inteiramente mergulhado no processo de democratização: o simples processo de abertura do
regime tinha ficado definitivamente para trás28. Segundo,
que a vitória do candidato presidencial do PMDB no colégio eleitoral, Tancredo Neves, não resolvia de vez o dilema
anterior do partido – antes, o empurrava para frente e de
certa forma o aprofundava.
Como assim? É que o partido, mais uma vez, vencia por
dentro do “sistema”, mesmo contra a vontade da cúpula
do regime. Mais do que isso: em aliança com parte de seu
componente situacionista, atraindo para seu campo largas
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28
Embora seja muito difícil, como foi dito, indicar quando exatamente a etapa
democratizante começou a acontecer.
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hostes da antiga Arena/PDS. Não era pouca coisa, mas também algo que revelava seu compromisso com o passado –
não propriamente com o passado autoritário, mas de qualquer modo com seu passado. Parágrafos acima, falou-se da
dissidência do PDS que se unira ao PMDB – sob uma nova
legenda, o PFL – como uma “sobrevivência do antigo regime”. Mas não seria exagerado dizer que o PMDB também o
era, embora carregasse dentro de si o “vírus” democrático
que contraditoriamente o propelia para fora do regime.
Evidentemente, o partido, assim era não como um endossador do autoritarismo, mas como um ente que brotara de
seu interior e conseguira crescer em tensa coexistência com
ele, alargando os limites impostos até o ponto de seu trincamento: nesse preciso sentido, o PMDB era um herdeiro
do “sistema”. Por isso mesmo, essa herança não poderia ser
pura e simplesmente renunciada, sob pena de estiolar uma
personalidade, por dupla que fosse, conservada por tantos
anos a duras penas.
A aliança com os dissidentes do antigo partido situacionista não era, pois, apenas plausível e realista estrategicamente, mas reforçava os laços do presente com seu
passado – sua identidade coletiva – por maior que fosse
o constrangimento, perante a opinião pública e perante seus adversários, de se apresentar de mãos dadas com
um antigo adversário eleitoral e de princípios programáticos. Acontece que os momentos de confronto recíproco
eram os mais conhecidos de público. Menos conhecidos,
porém não menos importantes, foram os momentos – talvez
bem mais numerosos durante os intervalos eleitorais – em
que se dispuseram a colaborar e a negociar, especialmente
no Congresso, para evitar uma crise institucional, deslanchar uma lei de interesse comum etc. – em suma, criando
uma espécie de amizade corporativa. Olhando desse ângulo, a convergência naquele contexto decisivo de passagem
de regime parecerá menos estranha e surpreendente.
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O PMDB, portanto, tendo assim assentado sua dupla
personalidade, tenderia a continuar com ela, mesmo
após a vitória definitiva sobre o regime: o “sistema” já
não existia mais enquanto constrangimento externo a
seu agir, mas algo dele estava internalizado, lado a lado
com seus tradicionais princípios em prol de um regime democrático, porém de feições ainda muito incertas. A consequência inevitável disso era a persistência
de seus dilemas fundamentais, para os quais só restava
administrar da melhor maneira possível. Poder-se-ia afirmar então que a abertura do processo constituinte era
simplesmente o próximo encontro do partido – após a
eleição presidencial de Tancredo Neves – com seus próprios dilemas, agora avolumados com seu novo aliado?
Assim seria, se aceitássemos, sem mais, que uma agenda
constituinte, e apenas uma, estava posta irrecorrivelmente. Por certo, uma ampla reforma constitucional teria de
ser feita. Mas por que não fazê-la aos poucos, conforme
as necessidades, desmantelando em cada nova etapa os
andares e alicerces do edifício autoritário e colocando
novos, democráticos, em seu lugar? Não fora assim –
relembre-se – que havia feito a Argentina, bastando para
tanto tomar como plano de apoio uma velha constituição (a de 1853)? Por que o esforço concentrado, politicamente dispendioso e, ademais, tendente à volatilidade, de uma assembleia constituinte?
A assembleia constituinte, no entanto – e a maneira muito peculiar como foi convocada – apresentou-se como uma
saída de meio termo para evitar que o partido agora governante, e a coalização que formara para sustentar o governo,
se estiolasse entre alternativas muito divergentes entre si.
Era um modo de contorná-las, evitando sua confrontação
direta. Uma dessas alternativas seria tomar a pauta constitucional como que a partir do zero, desprezando o substrato institucional anterior, inclusive o Congresso nacional.
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Em termos simbólicos, mas nada desprezíveis, significava
renunciar sem ambiguidades à herança institucional do passado; em termos práticos, era a proposta de uma assembleia
constituinte “livre, soberana e exclusiva”, calçada no conceito de um Poder Constituinte ilimitado e incondicionado
– o Poder Constituinte “originário”, como foi explicado no
início deste artigo. A alternativa exatamente oposta era a de
fazer uma grande emenda à constituição vigente (a Carta
de 1967, modificada em 1969), usando as regras de emendamento por ela previstas. Isso levava, na prática, a nada
além do que colocar o Congresso existente em regime de
reforma constitucional, definitivamente limitada, no entanto, por uma constituição viciada pelo autoritarismo. Como
se recorda, era o resgaste de uma proposta que teve sua
origem nos tempos da abertura do regime, oferecida, com
algumas variações – como aquelas disputadas entre Afonso
Arinos de Melo Franco e Miguel Reale, já citadas – por juristas mais ou menos simpáticos ao status quo institucional.
Simbolicamente, significava um balde de água fria sobre as
altíssimas expectativas democratizantes – inclusive de participação – da sociedade brasileira naquela conjuntura.
Tendo as duas alternativas opostas encontrado forte
ressonância no interior do PMDB e da coalizão governista, a saída de seus líderes foi buscar uma solução que,
na forma, se assemelhava à encontrada para lidar com
a sucessão presidencial do general João Figueiredo. Ou
seja, incentivando, outra vez em aliança com a sociedade civil, uma ampla campanha popular em favor de uma
nova constituição. A campanha, porém, para que tivesse
alguma chance de sucesso, teria de construir para si um
foco e uma arena apropriados. Um foco, isto é, um embate não disperso, mas concentrado no tempo, com começo, meio e fim e uma arena, vale dizer, um espaço bem
definido para a encenação dos embates, não fragmentado espacialmente. Em suma: uma assembleia nacional
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constituinte29. Porém, uma assembleia institucionalmente
enquadrada, que não rejeitasse de partida a herança institucional ambígua do passado. Modificada ou construída
pelo regime autoritário, é verdade, mas que a oposição
havia logrado alterar e alargar, intervindo de dentro do
“sistema”, o que lhe dava latitude para reivindicar como
uma obra igualmente sua e não apenas do autoritarismo.
Era isso que o Congresso e o regime de partidos – em
mutação desde a reforma de 1979, que instaurou um multipartidarismo controlado – representavam e que a agenda
constituinte poderia preservar, em nome dessa história.
Assim, para aplacar seus dilemas internos (e tal como
na campanha das “Diretas-Já”), a liderança do ex-partido
de oposição propunha mais uma vez, para a tarefa constitucional à frente, uma intervenção por dentro do quadro institucional vigente, com vistas a ultrapassar seus
limites. Eis a fórmula final: uma nova constituição, feita
pelo Congresso nacional transformado em uma assembleia constituinte, por seu turno, pressionada por uma
campanha popular.
Mas se não é de modo algum acidental que a sociedade civil tenha se preparado para intervir no processo
constituinte – acabando por fazê-lo com grande eficácia,
em parte por ter aproveitado a brecha aberta por uma
estratégia partidária –, não se pode desconsiderar que
esse conjunto de atores, ao longo do enfrentamento à
ditadura, foi acumulando grande prestígio e autoridade moral em todo país, atingindo seu clímax na campa-
367
29
Para a indicação de evidências empíricas sobre a construção dessa estratégia pela
liderança do PMDB, ver Martinez-Lara (1996, p. 38), que registra: “A assembleia
constituinte era vista como uma garantia de que a eleição indireta [de Tancredo
Neves] não teria efeitos desmobilizadores. O senador do PMDB Mario Covas afirmava que a assembleia constituinte fora proposta porque ‘ela seria o motor para
estimular a participação da sociedade na politica’. [...] Uma simples emenda constitucional não poderia produzir o mesmo efeito”.
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nha pelas eleições presidenciais diretas. Essa autoridade
moral se devia, entre outras razões, ao desprendimento
com que grande parte de sua massa diversa de associados
e de seus líderes pelejava pelas causas democráticas mais
amplas, sem a expectativa de retorno em termos de um
exercício futuro do poder político – como era de se esperar, ao contrário, das lideranças partidárias. E no passado autoritário o faziam, ademais, expondo-se a riscos de
retaliação de um aparato repressivo, infinitamente maiores do que um eleitor que votasse na oposição correria,
protegido que estava pelo voto secreto. Ademais, se dispondo a pagar por conta própria os chamados “custos
de participação”, também maiores do que o gesto de selecionar um partido ou candidato e dirigir-se a uma urna
para escrutiná-lo. É certo que, em plena vigência do regime democrático, a militância da sociedade civil tende
a banalizar-se e mesmo desgastar-se. Contudo, durante
um processo de democratização – numa transição –, seu
valor ético-político é dos mais elevados e reconhecidos,
certamente maior que a atuação partidária profissional,
ainda que oposicionista30.
Dado esse prestígio, também não é casual que os atores da sociedade civil pudessem se apresentar como uma
expressão direta da vontade do próprio povo. Sabemos que
essa sinédoque se presta a profundos equívocos e manipulações, mas que na passagem do autoritarismo para a democracia produzia efeitos práticos consideráveis. E de fato
produziu ao longo do processo constituinte, contribuindo
fortemente para alterar a correlação de forças da assembleia
que elaborou a constituição, à primeira vista desfavorável às
pautas apresentadas pelos militantes da sociedade civil, se
fôssemos levar em conta apenas a distribuição de cadeiras
entre os partidos. Há, pois, boas razões para afirmar que,
Para uma análise mais extensa desse ponto, ver Araujo (2009).
30
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sem sua participação intensa, a Carta de 1988 não teria sido
a mesma que afinal foi promulgada31.
A experiência constituinte como um todo, enfim, ajudou a prolongar a indeterminação do processo democratizante, indeterminação que naquele momento já poderia
estar chegando ao fim – não fossem as peculiaridades aqui
examinadas –, em beneficío da nova aglutinação de forças
que passara a governar o país.
À guisa de conclusão: o que é e por que
Poder Constituinte?
Resta, para finalizar, tecer algumas considerações sobre
a questão do Poder Constituinte, discutida na primeira
parte do texto, agora com o benefício da análise da transição brasileira e seu impacto na pauta constitucional
que a desfechou.
Como se frisou no início, este artigo não pretendeu
colocar em xeque a validade normativa do termo, tampouco
sua importância para uma concepção democrática de construção de uma nova ordem política. Mas o trabalho procurou pontuar – mesmo sem ter sido esse seu principal objetivo
–, através de um quadro sintético da experiência brasileira
369
31
A distribuição dessas cadeiras resultou das eleições parlamentares de 1986, realizadas num clima bastante favorável à coligação governista (PMDB-PFL), graças,
em particular, à ampla acolhida popular (até então) do Plano Cruzado. Convertidos os votos em cadeiras, o PMDB, com a primeira bancada, obteve sozinho um
pouco mais do que a maioria absoluta do Congresso (logo, da constituinte). O
PFL obteve a segunda bancada. Mas se o PMDB tinha a bancada mais numerosa,
tinha também a mais dividida quanto às questões substantivas da futura constituição. Já os partidos nitidamente de esquerda não chegaram a somar 10% das
cadeiras. Algumas pesquisas da época, que buscavam calcular a distribuição de
forças segundo a clivagem ideológica prevalecente entre os representantes da assembleia, davam conta de que cerca de 70% deles pendiam para posições que iam
do centro para a direita, o que fazia prever uma constituição de conteúdo bastante
conservador. Essa previsão, como é sabido, não se confirmou. Ver Pilatti (2008),
especialmente capítulos 1 e 2 e Martinez-Lara (1996), capítulo 4. Não obstante,
ver também Coelho (1999), capítulos 3 e 4, para uma visão distinta sobre o peso e
a coesão interna dos partidos para explicar os resultados do processo.
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que vai do golpe de 1964 ao início do mais recente processo constituinte de nossa história, em 1985, certos modos
como “Poder Constituinte” foi empregado e interpretado
por divergentes correntes políticas e ideológicas. De especial interesse, é o fato de tê-lo sido, com muita insistência e
até sistematicidade, pelos que contribuíram para instaurar
e, depois, para tentar manter inflexivelmente, um regime de
orientação autoritária e conservadora. Surpreende, portanto,
que depois de vinte anos em que nunca estivera ausente do
léxico político, nem mesmo do oficial (pelo contrário, como
se viu), o conceito de “Poder Constituinte” continuasse a ser
amplamente empregado – as raras exceções apenas confirmam a regra – sem revisões críticas mais profundas sobre
seu significado, abrangência, especificidades etc.
Encarcerado pelas teorias constitucionais excessivamente preocupadas com o formalismo jurídico do processo então em curso – algo que contaminava não apenas
as correntes de inclinação autoritária, mas também as de
inclinação democrática e, como se chamou aqui, radical-democrática –, o conceito pouco ajudou a distinguir, em
termos substantivos, os campos em disputa e, principalmente, o que estava concretamente em jogo na batalha pela
nova constituição. Se é verdade que do debate emergiu
uma divergência entre esses polos, sobre a oportunidade de
seu emprego naquela específica conjuntura nacional – em
princípio importante, por seus efeitos práticos –, essa divergência foi se diluindo rapidamente nas disputas subsequentes do processo. Instaurada a assembleia, como seria de se
esperar, as questões de conteúdo da futura Carta é que passaram a ganhar mais e mais relevância.
O exame detalhado dessas etapas mais avançadas do
processo constituinte não é objeto do presente trabalho.
O ponto a salientar nesta conclusão é outro e não depende de nenhuma análise adicional de fatos, além da que já
se fez anteriormente.
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Linhas acima, voltou-se a acusar o formalismo jurídico
que cativou os debates, no início do processo constituinte.
Mas, para além de sua pouca sensibilidade para com as sutilezas e sinuosidades da política concreta, haveria algo de
errado no campo propriamente doutrinário que estivesse
ligado a esse problema? Vejamos. As teorias do Poder Constituinte são geralmente pensadas como expressão jurídica
da teoria (política) da soberania popular32. Em consonância
com esse vínculo, os manuais de direito constitucional costumam dizer que o povo é o “titular” do Poder Constituinte. O que isso significa? Primeiro, que “o povo” é a fonte
última de legitimidade de uma constituição. Segundo que,
ao se visar à construção de uma ordem política, visa-se a
uma prioridade ou escala de poderes, na qual o povo ocuparia uma posição “superior” ou “suprema” a que as demais
deveriam se subordinar. Essa hierarquia equivale à oposição
entre “poder constituinte” e “poder constituído”, atribuída
ao padre Sieyès (como esses manuais também nunca deixam de mencionar), que a lançou na aurora da revolução
para defender a capacidade de o Terceiro Estado – identificado com “a nação” – dar uma constituição à França.
É curioso que, a despeito de sua origem profundamente democrática, desde muito cedo na história do constitucionalismo moderno surgiram interpretações autoritárias
acerca do Poder Constituinte. Note-se, porém, que a oposição entre visões jurídicas democráticas e autoritárias não
corresponde necessariamente à oposição esquerda e direita: vale lembrar que, ainda durante a revolução francesa, as
correntes jacobinas fizeram um uso autoritário do conceito
371
32
Alguns autores assinalam uma sutil diferença entre “soberania nacional” e “soberania popular”. A nação refere-se ao conceito de uma comunidade “em sua permanência no tempo”, enquanto o povo é essa comunidade no tempo presente, aqui e
agora. A primeira parece remeter a algo mais abstrato, intangível, ao contrário do
segundo. Ver Ferreira Filho (2007, p. 23) e Bonavides (2006, pp. 153-7). Para uma
exposição do contexto francês dessa questão, ver Bercovici (2008, p. 134 e ss.).
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(Baker, 1989, pp. 882-95)33. Naturalmente com mais atraso,
algumas interpretações autoritárias, mas de inclinação conservadora, se mostraram, ao longo do século XX, capazes
de se ajustar aos tempos, assimilando o Poder Constituinte
junto com o princípio da soberania popular. Essa conversão
também aconteceu no Brasil, pelo menos desde os anos de
1920 (mas principalmente desde os anos de 1930) e deixou
uma escola bastante influente34.
Contudo, é típico das práticas inspiradas na vertente autoritária se apropriar dessas ideias a fim de legitimar
apenas seus primeiros passos, para em seguida realizar
uma operação de substituição, na qual reduzem “o povo”
a uma agência compacta, ágil e de mais fácil controle, em
geral uma organização fechada e estritamente hierarquizada, fazendo dela seu porta-voz exclusivo. Na Europa, assim
o fizeram a esquerda comunista e a direita fascista, sempre
que as oportunidades apareceram, através de seus partidos
altamente disciplinados. No Brasil, essa primazia coube a
uma direita autoritária não propriamente fascista, mas conservadora, através ou de uma elite civil em aliança com a
hierarquia militar, na qual esta aparecia numa posição mais
ou menos subordinada; ou o inverso, como ocorreu em
1964, quando os líderes militares da “revolução” tentaram
transformar as próprias forças armadas – logo, a escala de
seus oficiais – numa espécie de encarnação da vontade do
povo, porém com as tensões internas, que o presente trabalho procurou analisar.
33
Nesse texto, Baker expõe o desenvolvimento do conceito de soberania durante
a revolução, mas chama atenção sobre como o pensamento de Sieyès é absorvido
e reelaborado pelas correntes jacobinas.
34
Entre as concepções autoritário-conservadoras que surgiram na Europa nas
primeiras décadas do século XX, cabe mencionar a teoria constitucional de Carl
Schmitt. Essa concepção fez discípulos no Brasil, entre os quais o jurista Francisco
Campos – autor da constituição outorgada por Getúlio Vargas em 1937 e conselheiro do primeiro ato institucional do regime de 1964. Para um perfil, ver Bonavides (1985), cap. XXVII.
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Mais tarde, já durante a transição e antes do desmantelamento do regime, grupos civis, dentro e fora do partido situacionista, percebendo o fiasco da continuidade
da tutela militar, tentaram mobilizar visões jurídicas autoritárias, porém mais amenas, para orientar uma reforma
constitucional limitada. Por diversas razões, ainda não muito claras para esta pesquisa, o esforço não prosperou35. De
qualquer forma, algo semelhante retornou no início do
processo constituinte. A semelhança estava em que, em vez
de invocar o poder constituinte para justificar uma legislação extraordinária, como fizeram os militares através dos
atos institucionais, a invocação se fazia com fins defensivos, isto é, para propor uma reforma dentro da estrutura
constitucional, positivada por esse mesmo poder nos anos
autoritários. A ênfase recaía agora sobre a legalidade, e não
sobre a legitimidade, e se valia do fato de a oposição, que
passara a governar o país e se comprometera com a ideia
de uma nova constituição, ter derrotado o regime através
dessa legalidade.
E o que dizer das visões jurídicas adversárias, que se
pretendiam democráticas, nesse mesmo período? Delas é
preciso destacar, em primeiro lugar, a clara recusa daquela
operação de substituição que transformava “o povo” numa
agência fechada e hierarquizada, que então se tornava
seu porta-voz exclusivo. Se, por razões práticas, admitiam
a representação do povo numa assembleia constituinte,
faziam-no insistindo na necessidade de que houvesse espaço
para que o povo pudesse contestá-la, se assim achasse conveniente, de modo a preservar, no essencial, sua soberania36.
373
35
Um dos propósitos do pequeno ensaio de 1981, de Faoro, em defesa de uma
assembleia constituinte, mencionado na segunda nota deste artigo, foi justamente
denunciar essa tentativa.
36
Algumas vertentes mais rigoristas desse campo chegavam até a defender a tese
do referendo popular para concluir corretamente um processo constituinte, mesmo depois que uma assembleia de representantes do povo tivesse aprovado o texto constitucional (Silva, 2000, pp. 75-8; Bonavides, 1985, pp. 260-2).
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Embora essas questões apontassem para importantes
divergências teóricas e práticas com as concepções autoritárias, havia duas proposições de sentidos equívocos no
conceito clássico de Poder Constituinte, que permaneciam
intocadas mesmo nas visões mais democráticas – aliás, intocadas por ambos os campos em disputa. Cabe discriminá-las
a seguir, visando também fazer-lhes algumas observações
críticas que, porém, não têm nenhuma pretensão de novidade: algo mais ou menos na mesma direção já circulava
nos meios acadêmicos, em particular a partir de uma literatura internacional proveniente de centros e autores europeus e norte-americanos37. Entretanto, em vista de sua pouca ressonância no debate jurídico aqui enfocado, é preciso
resgatá-las, mesmo que sumariamente.
A primeira proposição é que o povo, “titular” do Poder
Constituinte, reúne um “poder superior ou supremo”, ponto
que, no debate, embasava a tese de que a autoridade para
elaborar uma constituição, derivada desse poder, era “ilimitada e incondicional”. Em termos práticos, isso presumia que
o Poder Constituinte – ou, sendo impossível dispensá-los,
seus representantes – teria legitimidade para propor ou
realizar qualquer coisa, podendo desconsiderar qualquer
limite normativo e fazer tábula rasa da institucionalidade
antecedente. A segunda é a suposição mesma da existência
de “um povo”, como se a identidade dele consigo próprio
estivesse desde sempre resolvida, a despeito de sua natureza
coletiva. O mesmo vale para sua vontade, entendida como
expressão dessa identidade. Nesse sentido, a autêntica vontade do povo só poderia ser una, assim como o próprio
povo é “um” e a tarefa fundamental de seus representantes,
em sua pluralidade, seria, quando não fosse autoevidente,
encontrar essa vontade e mantê-la inviolada. Representar
Para citar um exemplo eminente, já bem conhecido no campo democrático de
esquerda: a obra de C. Lefort. Parte importante dela começa a ser traduzida no
Brasil durante os anos 1980. Conferir, entre outros, Lefort (1983).
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“verdadeiramente”, portanto, seria representar essa vontade, dada de antemão.
Vamos às observações críticas. Não é difícil perceber
que essas ideias, a despeito de suas intenções democráticas, deixam ampla margem para apropriação ou usurpação
autoritária. Pois, a menos que como um corpo coletivo, sem
exceção de nenhum de seus membros, ele pudesse “presentificar-se” e, ainda assim, de modo uníssono, como saber
com certeza qual é a vontade do povo? Essa operação vai
requerer um intérprete, que terá de assumir que existe uma
vontade do povo a ser descoberta e pronunciada – como se
vê, porém, esse mesmo intérprete será seu potencial usurpador. Um democrata rigoroso, nesse caso, teria de recusar preventivamente o papel de intérprete e permanecer
indecidido sobre o que fazer, até que o povo, ele mesmo,
lhe indicasse sua vontade. Porém, ainda que houvesse algo
como um povo que pudesse se tornar assim presente, por
que supor que seja redutível à unidade, em vez de, ao contrário, assumir sua pluralidade incontornável?
Por outro lado, maior ainda é a possibilidade de usurpação autoritária, se se admite sem mais o caráter supremo do
Poder Constituinte e sua capacidade de derivar autoridade
ilimitada e incondicional para elaborar a lei máxima de um
país. É como se as propriedades formais do soberano, nas
teorias absolutistas de soberania, pudessem ser transferidas,
ipsis literis, para o princípio da soberania popular. Mas, se o
que orienta o conceito de Poder Constituinte é seu propósito
de instaurar um regime democrático, há que interrogar de
que modo se evita que tal formalismo se sobreponha à substância do conceito. Exatamente por conta disso, a aceitação
ou invocação de um Poder Constituinte tem de estar condicionada a um exame dos valores ético-políticos inscritos
na experiência política coletiva prévia que possibilitou
aquele poder. O que importa considerar, antes de tudo, na
sua emergência, não são suas propriedades formais (ilimi-
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tação, incondicionalidade ou o que for), mas se de fato a
experiência política de que emerge está saturada de valores democráticos. A necessária incorporação desses valores
para que se reconheça um Poder Constituinte, no entanto,
já produz a demanda de submeter esse poder a um quadro
normativo que, ao fim e ao cabo, redunda em limites para
sua agência. Em outras palavras: o Poder Constituinte, ou
seus representantes, não está autorizado a fazer qualquer
coisa; em particular, não está autorizado a propor ou produzir leis que contradigam os valores em nome dos quais foi
reconhecido e invocado como tal.
Por fim, os problemas relacionados ao conceito mesmo
de “um povo”. Este não poderia apresentar-se como se fosse
o conceito relativo a um ente natural, um ser que existe ou
não existe, independente da ação humana. O povo é um
artefato, construído em sucessivas e contraditórias deliberações e ações coletivas, porém sem uma identidade prévia.
E assim como nenhuma deliberação e ação coletiva prescinde de princípios, regras e práticas aprendidas ao longo
de gerações, inclusive as da representação, o processo de
construção de um povo requer um mínimo de institucionalidade. Falar de um povo não é falar de um ser originalmente “desvestido”, que depois é “vestido” com princípios, regras etc., como se pudesse permanecer o mesmo a
cada nova roupagem. Ao contrário, o povo é construído no
mesmo compasso em que é “vestido”, e se transforma nessa
trajetória. Sua identidade mutável se faz por conflito e cooperação entre seus membros, seus cidadãos em potencial,
numa peleja constante de indivíduos e grupos – e é por
conta disso, em primeiro lugar, que o jogo da representação se faz. Antes de representar “um povo”, representa-se
na verdade esse movimento divergente e plural de conflito
e cooperação entre suas partes. A representação, portanto,
não vem “depois” da identidade de um povo, mas é elemento integrante de sua busca, mesmo que nunca concluLua Nova, São Paulo, 88: 327-380, 2013
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ída. Enfim, se não se trata de afirmar uma unidade prévia
e dada do povo, não se trata também de negar de antemão a possibilidade de um processo de unificação, a ser
entendido, porém, dinamicamente: um processo que se faz
e se desfaz, para depois se refazer e assim por diante, como
uma história de continuidades e rupturas.
Entretanto, como assinalado, todas essas observações
críticas a respeito de “um povo”, que deveriam rebater no
conceito de Poder Constituinte, assim como as observações
anteriores sobre o caráter ilimitado e incondicional que
dele emanaria, parecem não ter ressoado no debate jurídico descrito neste artigo. Ao contrário, cada campo permaneceu encravado em seus pontos de partida: ou a preservação do status quo institucional, por um lado, ou a rejeição
total desse status quo, por outro. Ambos, porém, reivindicando um “Poder Constituinte” – e ambos com qualidades
formais semelhantes, como se indicou – para justificar essas
alternativas opostas. Uma polarização que poderia ter travado seriamente o desenvolvimento da luta política, na época
enredada não apenas nos desafios da reconstrução institucional, mas também numa gravíssima crise econômica e
social, ainda indiferente às transformações de regime em
andamento. Todavia, resta o fato de que a disposição majoritária do país era para que o processo constituinte seguisse
seu curso. E assim se fez.
Mas o que, subjacente ao processo mesmo, empurrava para frente o embate por uma nova constituição, era o
impulso democratizante que então animava a sociedade
brasileira. Em vista da experiência política aprendida nos
anos anteriores, as forças políticas que combatiam as tentativas de preservar o status quo institucional – em operação
dentro e fora do novo governo, fosse no campo partidário, fosse no campo da sociedade civil – se sentiam muito
confiantes para ultrapassar esses obstáculos, empregando a
mesma estratégia e caminhando no mesmo terreno pelos
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quais o próprio regime autoritário havia sido ultrapassado.
Movimentando-se, em suma, em compasso com o lusco-fusco da transição. Pelo mesmo motivo, dificilmente estancariam perante o “tudo ou nada” da rejeição completa do
quadro institucional posto, em vista do alargamento já
alcançado e das amplas chances de sua ulterior mutação, se
nele se conseguisse concentrar o impulso democratizante
antes mencionado. A razão para essa aposta, outra vez, era
a mesma que havia levado o país da distensão “lenta, gradual e segura” para a democratização: que nenhum ator político relevante controlava unilateralmente o desdobramento do jogo. A corporação militar continuava influente, mas
há tempos não mais exercia tal controle; o ex-partido de
oposição, embora forte e numeroso, também não o exercia, por sua própria dualidade interna; enfim, tampouco a
sociedade civil, pelo fato mesmo de não consistir de “um”
ator, mas de uma pluralidade contraditória de atores. Em
suma: ainda vivia-se a indeterminação do processo. Se havia
naquele momento um Poder Constituinte em operação,
essa era sua fonte.
Cicero Araujo
é professor titular de teoria política do Departamento de
Ciência da FFLCH-USP, e pesquisador do Cedec e do CNPq.
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O essencial e o acidental: Bodin (e Hobbes)
e a invenção do conceito moderno de
constituição*
Bernardo Ferreira
I
Depois do que dissemos sobre a soberania e sobre seus direitos
e suas marcas, é preciso ver quem são aqueles que em toda
república detêm a soberania, para avaliar qual é o estado
[estat]. Quando a soberania reside em um só príncipe, nós o
designaremos de monarquia; se o povo tem parte nela,
nós falaremos que o estado é popular; no caso de somente uma
parte do povo, podemos avaliar que o estado é aristocrático.
E usaremos essas palavras para evitar a confusão e a
obscuridade que advêm da variedade dos governantes bons e
maus, os quais deram ocasião para que muitos apresentassem
mais de três tipos de república. Mas, se essa opinião tem lugar
e o estado das repúblicas é apreciado com base nos vícios e
nas virtudes, haverá um mundo deles. Ora, é certo que, para
*
Este trabalho é fruto da pesquisa “Em busca do processo constituinte: 19851988”, financiada pelo CNPq (Edital Universal 15/2007), e também se beneficiou
de apoio da Faperj. Agradeço a Jaime Fernando Villas da Rocha pelas sugestões e
conversas em torno dos temas deste artigo.
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O essencial e o acidental: Bodin (e Hobbes) e a invenção do conceito moderno de constituição
que tenhamos definições verdadeiras e resoluções em todas as
coisas, não basta que nos detenhamos nos acidentes, que são
inumeráveis, mas, antes, nas diferenças essenciais e formais.
De outro modo, poderemos cair em um labirinto infinito, em
que não cabe ciência. [...] Uma vez que a qualidade não
altera a natureza das coisas, nós diremos que só existem três
estados, ou três tipos de república, a saber a monarquia, a
aristocracia e a democracia (Bodin, 1583, pp. 251-2)1.
382
O trecho anterior pertence ao capítulo de abertura do
Livro II de Les six livres de la République (1ª edição de 1576),
de Jean Bodin, intitulado “Des toutes sortes de Républiques
en general et s’il en a plus de trois” [Sobre todos os tipos
de república em geral e se há mais do que três]. Um leitor
minimamente familiarizado com a história do pensamento
político ocidental não terá dificuldade de identificar aqui a
reiteração de um dos mais constantes e repetidos topoi herdados da tradição clássica: a distinção entre as formas “constitucionais” de acordo com o número dos governantes2.
Bodin, porém, ao retomar a diferenciação entre monarquia, aristocracia e democracia, recusa um critério que também fora legado e consagrado pela tradição clássica. Para
ele, a distinção entre “constituições” justas e injustas, retas
e desviadas, ou seja, a diferenciação segundo o modo como
são exercidas as funções públicas, não é relevante. Esse critério, afirma o jurista, introduz uma modulação qualitativa
1
Cito a partir da edição de 1583, que, na ausência de uma edição crítica do livro,
é, segundo Julian Franklin (1992, pp. xxxv-xxxvi), a edição mais comumente utilizada pelos especialistas em Bodin, tendo servido de base às traduções italiana e
alemã do livro. Traduzo a palavra francesa “estat” por “estado”, com letra minúscula, pois no texto de Bodin a noção que designa algo próximo ao nosso conceito
de Estado seria République. Como observa Simone Goyard-Fabre (1989, p. 140), o
termo estat remete à noção latina de status, a qual não designa a unidade política,
mas a sua condição, como ocorre, por exemplo, na expressão status rei publicae
(Ver Senellart, 2006, p. 24).
2
Sobre a classificação das constituições entre os gregos, pode-se consultar Romilly
(1959).
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na análise, que desvia a atenção dos aspectos essenciais para
os acidentais e, no fim das contas, multiplica indefinidamente as possibilidades de classificação.
Bodin reintroduzirá essa distinção qualitativa por intermédio da diferenciação entre estat (“estado”) e gouvernement
(“governo”), apresentada no capítulo 2 do Livro II. O primeiro termo, como a citação anterior deixa entrever, remete às
diferentes formas que a república pode assumir, a depender
do número daqueles que são os portadores da soberania. Já
a noção de “governo” é menos precisa3. Bodin emprega a
palavra, por um lado, para designar os agentes responsáveis
pela execução da vontade do soberano. Nesse caso, existiriam
três tipos distintos de governo: popular, caso todos os súditos participem do governo; aristocrático, se apenas uma parcela privilegiada participa; e harmônico, quando se dá uma
combinação das duas formas anteriores. Ao mesmo tempo, a
noção de governo pode assumir uma feição mais francamente qualitativa e se referir ao modo de exercício da soberania,
resultando em três modelos: real ou legítimo, senhorial ou
despótico e tirânico. No primeiro caso, os súditos obedecem
às leis do soberano e esse último exerce o poder em conformidade com os ditames da lei natural; no segundo, a república é
governada à semelhança do governo da casa e o soberano age
em relação ao seu reino e seus súditos como o pai de família
dispõe dos bens pessoais; no terceiro, o soberano despreza as
leis da natureza e de Deus e abusa de seu poder, reduzindo
súditos livres à condição de escravos (Bodin, 1583, p. 273).
A distinção entre “estado” e “governo” tem um alvo
polêmico e permite a Bodin extrair importantes consequên­
cias teóricas e políticas a respeito dos limites do poder
soberano. Mais especificamente, ela está a serviço de uma
controvérsia em que o autor de Os seis livros da república se
383
Acompanho aqui as observações de Barros (2001, pp. 299-331). Para uma abordagem da distinção entre estado e governo em Bodin, tendo em vista o contraste
com os teóricos da “razão de Estado”, ver Foisneau (2009).
3
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opõe ao constitucionalismo protestante, surgido na sequência do episódio da Noite de São Bartolomeu, em 1572, e
à ideia de “constituição mista”4. A exploração mais detida
dessas questões exigiria encaminhar minha análise numa
direção que escapa aos objetivos do presente trabalho. Ainda assim, talvez valha a pena assinalar, de forma breve e
inevitavelmente muito simplificada, um ponto que, acredito, permite ilustrar algumas das consequências políticas da
recusa de Bodin em abordar as formas de república a partir
de uma perspectiva qualitativa. Refiro-me, mais especificamente, a sua discussão sobre a tirania e a resistência ao tirano. A esse respeito, gostaria de fazer duas rápidas observações. Em primeiro lugar, graças à separação entre “estado” e
“governo”, Bodin pode considerar a tirania como um modo
de exercício da soberania observável em todos os tipos de
república, sejam estas monárquicas, aristocráticas ou democráticas5. Dessa forma, a tirania não precisa ser considerada,
como queria a tradição, uma forma degenerada da monarquia. Como assinala Mario Turchetti (2001, p. 454), essa
perspectiva é “nova sob diversos aspectos”. Isso lhe permite,
e esse é meu segundo ponto, preservar, simultaneamente,
a noção da tirania como um modo injusto e desvirtuado de
exercício de uma função pública e rejeitar como ilegítima
a resistência aberta dos súditos ao governo tirânico6. Isso
4
Para a análise da crítica de Bodin ao tema da “constituição mista” e seu confronto com o constitucionalismo protestante que se desenvolve a partir da Noite de
São Bartolomeu, pode-se consultar: Franklin (1969, 1973); Spitz (1998); Skinner
(2006); Barros (2006); Mesnard (1951).
5
Como observa Bodin (1583, p. 273), “a mesma diferença se encontra no estado
aristocrático e popular: porque tanto um como o outro podem ser legítimos, senhoriais ou tirânicos da maneira como disse. E a palavra tirania se usa também em
relação ao estado turbulento de um povo furioso, como disse muito bem Cícero”.
6
Para efeito de simplificação da exposição, não estou levando em conta a diferença que Bodin estabelece entre a tirania resultante do abuso de poder e a tirania
devida à usurpação de poder. Essa diferença retoma a distinção do jurista medieval Bartolo de Sassoferrato entre a tirania por exercício e a tirania por deficiência
de título. Somente em relação ao primeiro caso, a tirania por abuso de poder,
Bodin rejeita a resistência dos súditos.
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porque, com a separação entre “estado” e “governo”, Bodin
dissocia, pelo menos em parte, os títulos jurídicos de legitimidade de que o soberano está investido – ou seja, o seu
direito exclusivo e perpétuo de dar a lei e de revogá-la –
do exercício efetivo de seu poder. Sendo assim, ao discutir
o direito de resistência em relação a um monarca tirânico
(Livro II, cap. 5), Bodin afirma que:
Se o príncipe é absolutamente soberano como são os
verdadeiros monarcas da França, da Espanha, da Inglaterra,
da Escócia, da Etiópia, da Turquia, da Pérsia, da Moscóvia,
cujo poder não é colocado em dúvida, nem a soberania
repartida com os súditos, nesse caso não cabe a um súdito
em particular, nem a todos em geral atentar contra a honra,
nem contra a vida do monarca, seja pela via de fato, ou
pela via da justiça, ainda que ele tenha cometido todas as
maldades, impiedades e crueldades que se possa conceber.
Porque, no que se refere à via da justiça, o súdito não possui
jurisdição sobre seu príncipe, do qual depende todo poder
e autoridade de comando e o qual pode não apenas revogar
todo o poder de seus magistrados mas também na presença
de quem cessa todo poder e jurisdição de todos os
magistrados corpos e colégios, estados e comunidades. [...]
E se não é lícito ao súdito julgar seu príncipe, ao vassalo seu
senhor, ao servo seu mestre, em resumo, se não é lícito proceder
contra seu rei pela via da justiça, como ele poderia proceder
pela via de fato? Porque não está em questão saber quem é
o mais forte, mas apenas se é lícito em direito e se o súdito
tem o poder de condenar seu príncipe soberano
(Bodin, 1583, pp. 302-3).
385
Seria equivocado imaginar que a separação realizada
por Bodin entre as “maldades, impiedades e crueldades”
cometidas no exercício do poder soberano e o que é “lícito em direito” em relação à soberania implica redução do
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direito à norma legislada. Como observei há pouco, a dissociação entre os títulos jurídicos de legitimidade do soberano
e o exercício efetivo do seu poder é parcial. Ignorar esse
ponto implica desconsiderar o papel que, no pensamento
do jurista francês, as leis de Deus e da natureza desempenham como limites normativos ao exercício da soberania.
Como observa Bodin, “é uma incongruência em direito dizer que o príncipe pode coisa que não seja honesta,
visto que seu poder deve sempre ser medido de acordo com
justiça” (Bodin, 1583, p. 156)7.
Para o jurista, como se sabe, a superioridade do soberano
em relação à lei se exerce no campo da lei civil, jamais em
relação às leis da natureza, de Deus ou do reino. As leis da
natureza, em particular, constituem princípios de equidade
natural, normas invioláveis, às quais o príncipe se encontra
obrigado em sua atividade legislativa. Ainda que essa obrigação não se traduza em controles “constitucionais” fortes
e claramente institucionalizados, ela não se reduz, como
observa Jean-Fabien Spitz (1998, pp. 19-20), a um imperativo “‘simplesmente moral’ em qualquer sentido coerente
do termo, uma vez que se trata de uma obrigação em face
de uma norma que não é pensada como exterior às coisas,
mas como inscrita no universo ordenado”. Não por acaso,
é a própria noção de lei natural que está na base da definição de tirania proposta por Bodin (Livro II, cap. 4): o tirano
é, em primeiro lugar, um violador da lei da natureza. Por
essa razão, embora afirme ser ilícita a resistência aberta dos
7
Nesse sentido, o trabalho anteriormente citado de Jean-Fabien Spitz (1998, p.
18) busca oferecer um contraponto a uma visão da obra de Bodin que tende a
acentuar o seu papel de inaugurador de uma concepção moderna do direito, na
qual a importância da lei natural é esvaziada em benefício do direito legislado.
Como observa o autor, “se o príncipe é legislador, ele só pode exercer essa função
de posição de normas comuns para a manutenção e a salvaguarda de normas anteriores a toda posição humana, o que tem como efeito submeter a própria atividade legislativa a uma normatividade não positiva que a precede e que invalida os
desdobramentos contrários a esse direito obrigatório anterior”.
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súditos a uma monarquia tirânica e recuse categoricamente o tiranicídio contra um monarca que não seja um mero
usurpador, Bodin considera não só legítimo, como também
louvável, que um príncipe estrangeiro se volte, inclusive pela
via das armas, contra um governante desse gênero8.
Não obstante, ao distinguir entre essencial e acidental,
Bodin coloca em segundo plano, do ponto de vista dos critérios
de classificação das formas de república, a superioridade hierárquica dos princípios objetivos de justiça encarnados na
lei da natureza. Isso o conduz a uma definição das formas
de república que, simultaneamente, se nutre das referências do pensamento “constitucional” da tradição clássica
e medieval e, ao mesmo tempo, se afasta delas. Chamo a
atenção para esse ponto, pois gostaria de sustentar uma
tese: a de que essa separação entre o essencial e o acidental, proposta por Bodin, representa um passo decisivo na
construção do moderno conceito de constituição. Essa afirmação não é evidente e, diria mesmo, tem algo de contraintuitivo. E isso por algumas razões. Em primeiro lugar,
pelo dado cronológico: há certo consenso a respeito de
que a noção moderna de constituição date do século XVIII
e se consolide em definitivo com as Revoluções Americana e Francesa. Em segundo lugar, uma das características
das constituições modernas está na tentativa de regulação
e controle do exercício do poder político pelo estabelecimento de um conjunto de normas positivas tidas como
fundamentais e superiores em relação às demais normas
resultantes da atividade legislativa ordinária (Grimm, 2006,
pp. 46, 49, 50; Stourzh, 2007, p. 98).
387
8
“Há muita diferença entre dizer que o tirano pode ser licitamente morto por
um príncipe estrangeiro ou por um súdito. Assim como é muito belo e apropriado
que alguém, quem quer que seja, defenda pela via de fato os bens, a honra e a vida
daqueles que se encontram injustamente oprimidos, quando a porta da justiça
está fechada, [...] da mesma forma é algo muito belo e magnífico que um príncipe
tome em armas para vingar um povo injustamente oprimido pela crueldade de
um tirano” (Bodin, 1583, p. 300).
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Ora, Bodin, como se sabe, concebe a soberania em termos absolutos, ou seja, como uma capacidade exclusiva e
indivisível de dar e de revogar a lei civil. O soberano, nesse sentido específico, é legibus solutus, não está submetido
à lei que ele mesmo estabeleceu e tampouco a qualquer
outra autoridade pública, pois, se assim fosse, estaria sujeito
à capacidade legislativa de outrem. Portanto, ao definir
os tipos de república em termos da noção de soberania,
Bodin recusa a possibilidade de controles “constitucionais”
positivos sobre o soberano no exercício de sua capacidade
legislativa. Essa é uma das razões pelas quais Bodin, a partir
da distinção entre o essencial e o acidental, rejeita categoricamente uma forma mista de “estado”, embora, ao mesmo tempo, admita uma forma mista de “governo”. A combinação de formas distintas na atividade “governamental”
não afeta as prerrogativas legislativas do soberano, apenas
o exercício das funções administrativas. Quando reconhece limites jurídicos positivos, e esse é meu terceiro ponto,
Bodin o faz com referência às “leis concernentes ao estado
do reino” (Bodin, 1583, p. 137). Essa noção remete à ideia
das leges fundamentales [leis fundamentais], característica
do pensamento “constitucional” anterior ao final do século
XVIII, embora Bodin não chegue a usar a expressão “lei
fundamental” (Grimm; Mohnhaupt, 2008, p. 57). Voltarei
mais adiante à noção de lex fundamentalis. Por ora basta indicar que as premissas intelectuais desse conceito são inteiramente distintas da ideia moderna de constituição como “lei
fundamental”, que se consagra em fins do século XVIII.
Essas objeções, como afirmei anteriormente, têm algo
de intuitivo, uma vez que elaboram uma percepção mais
ou menos imediata de que a reflexão jurídico-política
de Bodin é, em linhas gerais, estranha à ideia moderna de
constituição. Seria ingênuo, acredito, ignorar essa percepção. Basta levar em conta o papel que, a partir da Revolução
Americana, a noção de direitos individuais fundamentais
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teve na definição das constituições modernas para dimensionar o quão distante Bodin se encontra em relação a estas
últimas9. Por outro lado, parece-me que, embora corretas,
essas objeções apreendem apenas um aspecto do problema.
Sendo assim, para sustentar meu ponto recorrerei à história do conceito de constituição, com o objetivo de pôr em
evidência algumas das premissas intelectuais que, a meu
ver, seriam definidoras do moderno conceito de constituição. Gostaria de fazê-lo explorando os contrastes entre este
conceito e noções cronologicamente anteriores que lhe
são próximas. Em primeiro lugar, recuperarei elementos
da história da ideia moderna de constituição, com ênfase
na distinção entre a noção tradicional de lex fundamentalis
e a constituição como uma “lei fundamental”. Em seguida,
retomarei alguns aspectos da formação histórica do conceito grego de politeia, visando assinalar o vínculo entre a
constituição moderna e certa compreensão da natureza da
unidade política que vem a ser por ela ordenada.
Antes de prosseguir, porém, creio ser necessário fazer
uma breve distinção relativa ao modo como a palavra constituição e o adjetivo correspondente serão utilizados ao
longo do texto. Por um lado, constituição será empregada
como categoria heurística. Nesse caso, o termo pretende ter
um alcance geral, desvinculado de uma situação histórica
específica e se refere ao problema da ordem no âmbito da
“cidade” e suas implicações quanto à organização das funções públicas e às condições de seu exercício. Por outro,
a palavra se referirá a um conceito particular, surgido nas
sociedades ocidentais a partir, sobretudo, do século XVIII.
Nesse caso, o termo constituição se apresenta como uma
categoria histórica que, para empregar o vocabulário do
historicismo, se define por sua individualidade e, em última
389
Sobre a importância da noção de direitos individuais fundamentais na definição
das constituições modernas, podem ser consultados os trabalhos de Gerald Stourzh
(1977, 1979, 1988, 2007).
9
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O essencial e o acidental: Bodin (e Hobbes) e a invenção do conceito moderno de constituição
análise, por sua incomensurabilidade em relação a outros
conceitos “equivalentes” como politeia e lex fundamentalis.
II
A consolidação da ideia de constituição moderna no final do
século XVIII na América e na França implicou a passagem
de uma noção de características descritivas para um conceito
prescritivo. Dieter Grimm (2006, pp. 27-8) sintetiza as linhas
gerais desse desenvolvimento nos seguintes termos:
O termo constituição [...] foi inicialmente um conceito
empírico, que passou do âmbito da descrição da natureza
ao da linguagem jurídico-política para designar a situação
de um país, a forma pela qual este se configurou mediante
as características de seu território e seus habitantes, sua
evolução histórica e as relações de poder nele existentes,
suas normas jurídicas e instituições políticas. No entanto,
com o esforço de limitar o poder do Estado em benefício
da liberdade dos súditos, que penetrou desde meados do
século XVIII na doutrina do direito natural, o conceito
de constituição se estreitou progressivamente, eliminando
gradualmente os elementos não normativos, até que
a constituição apareceu unicamente como a situação
determinada pelo direito público. Somente com as
revoluções de fins do século XVIII na América do Norte e
na França, que aboliram pela força a soberania hereditária e
erigiram uma nova sobre a base da planificação racional e a
determinação escrita do direito, se consumou a transição de
um conceito do ser a um do dever-ser.10
390
O sentido mais preciso dessa passagem do plano do ser
ao do dever-ser torna-se mais claro se considerarmos alguns
aspectos do desenvolvimento histórico do conceito.
Para a caracterização dessa passagem, ver também Grimm (2006, pp. 49-50, 107-108).
10
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Nos séculos XVI e XVII, a palavra constituição – ao contrário do que se poderia esperar, considerando-se a posição que,
hoje, ela ocupa no nosso vocabulário político-jurídico – não
era empregada como equivalente ao termo grego politeia11.
Nas línguas inglesa e francesa, outros vocábulos eram utilizados para verter a palavra grega: res publica, commomwealth,
policy, polity, government, république, police, gouvernement. A
palavra constituição era estranha ao vocabulário político,
ao que tudo indica, até pelo menos a passagem do século XVI para o XVII. Uma consulta a dicionários franceses
dos séculos XVII, e mesmo do XVIII, revela os significados
predominantemente vinculados à palavra12. Em primeiro
lugar, constituição se refere à condição, estado, composição
de alguma coisa, como a “constituição de um corpo”, a
“constituição do céu”. Esse sentido da palavra aparece frequentemente associado à medicina e, portanto, à qualidade
e condição de um corpo humano, ou seja, a sua “constituição física”. Outra acepção do termo possui conotação mais
especificamente jurídica, oriunda do vocabulário do direito
romano, no qual constitutio era uma designação para decretos imperiais. No direito canônico, a palavra, normalmente
empregada no plural, adquire o sentido de normas, regulamentos eclesiásticos escritos, à diferença de convenções ou
do costume. Algo de semelhante se observa no âmbito do
direito inglês, em que o termo constitutions referia-se a regulamentos de nível inferior e, normalmente, de caráter local
(Stourzh, 2007, p. 93).
A incorporação do termo constituição ao vocabulário
público se deu por intermédio de progressiva extensão
391
11
O termo politeia, ao qual retornarei mais adiante, é frequentemente traduzido
nas línguas contemporâneas por constituição ou regime. Para o que se segue,
minhas principais referências serão os seguintes textos: Stourzh (1988, 2007);
Beaud (2009); Grimm; Mohnhaupt (2008); Grimm (2006). Também consultei
Böckenförde (1999), Fioravanti (1999) e MacIlwain (1991).
12
Para essa referência específica aos dicionários, ver Valensise (1987) e Grimm;
Mohnhaupt (2008).
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O essencial e o acidental: Bodin (e Hobbes) e a invenção do conceito moderno de constituição
392
desses significados para o domínio da política. Em primeiro lugar, pela analogia, não raro com conotações médicas e biológicas, entre os corpos físicos e os corpos políticos. Dessa forma, ao longo do século XVII, no âmbito da
língua inglesa tornou-se possível falar da constitution of
the commonwealth, constitution of the kingdom, constitution
of government13. Por se referir à condição de um objeto específico, a palavra constituição não é normalmente empregada de forma isolada, ela requer a indicação de um referente
e, não raro, de um complemento qualificativo. Fala-se, portanto, da “boa/antiga/natural constituição da república/
do reino/do governo”. A história do termo, sobretudo no
século XVIII, corresponde, como observa Olivier Beaud
(2009, p. 9), a uma “autonomização de seu significado político”. O uso reiterado da palavra constituição para descrever
a qualidade de determinado corpo político permitiu, com
o tempo, prescindir da analogia explicativa com os corpos
naturais. Com isso, estabelece-se uma aproximação entre
a ideia de constituição e certa ordem da vida estatal e das
relações políticas, de modo que a palavra, no fim das contas, pôde ser empregada isoladamente, sem a referência ao
objeto (o reino, a república, o governo), cuja condição lhe
caberia descrever. O termo constituição, portanto, tenderá
a se desvincular da associação, de cunho descritivo, com a
qualidade de um objeto determinado, passando a designar
um objeto em si mesmo, ou seja, certa disposição e organização das instituições públicas.
Por essa via, constituição veio a adquirir o status de
um conceito político e pôde ser utilizada para se referir ao
modo como se ordenam as funções públicas no interior
da cidade, ou seja, àquilo que nos termos da tradição do
pensamento político aristotélico corresponderia a uma politeia. No século XVIII, esse uso eminentemente político da
Para exemplos, ver Stourzh (1988, 2007).
13
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palavra constituição se difunde em primeiro lugar na Inglaterra14. No continente, Montesquieu desempenhará um
importante papel na fixação conceitual desse significado
político, ao usar constituição com um sentido próximo ao
de politeia15. Esse também é, em linhas gerais, o sentido da
importante definição de constituição proposta pelo jurista
suíço Emer de Vattel em um livro amplamente difundido
na segunda metade do século XVIII, Le Droit de Gens, de
1758, em que se pode ler nos parágrafos 27 e 28 do Livro I:
[…] a regulação fundamental que determina a maneira
pela qual a autoridade pública deverá ser exercida é o que
forma a constituição do Estado. Nela se vê a forma sob a qual
a nação age na qualidade de corpo político, como e por
quem o povo deve ser governado, quais são os deveres e
o direito daqueles que governam. Essa constituição, no
fundo, não é outra coisa que o estabelecimento da ordem
na qual uma nação se propõe a trabalhar em comum
para obter as vantagens em vista das quais a sociedade
política se estabeleceu. [...] É, portanto, a constituição
do Estado quem determina sua perfeição, sua aptidão
para preencher os fins da sociedade e, por conseguinte, o
maior interesse de uma nação que forma uma sociedade
política, seu mais importante e primeiro dever em relação
a si mesma é escolher a melhor constituição possível e a
mais adequada às circunstâncias.
393
14
Veja-se, por exemplo, a definição de constituição que Bolingbroke oferece do
termo em 1733: “por constituição entendemos, sempre que falamos com propriedade e exatidão, essa reunião de leis, instituições e costumes, derivada de certos
princípios fixos da razão, dirigida a certos objetos do bem público, que compõe o
sistema geral, de acordo com o qual a comunidade aceitou ser governada” (apud
Stourzh, 2007, p. 92).
15
Essa é a posição de Olivier Beaud (2009, p. 11), segundo a qual “Montesquieu
elevou a palavra constituição à dignidade do conceito, e o fez ao fazê-la endossar
um sentido que, então, era próximo da antiga politeia”.
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O essencial e o acidental: Bodin (e Hobbes) e a invenção do conceito moderno de constituição
Ainda segundo Vattel,
[…] as leis que são feitas diretamente em vista do bem
público são as leis políticas; e, nessa classe, aquelas que
dizem respeito ao corpo mesmo e à essência da sociedade,
à forma do governo, à maneira como a autoridade pública
deve ser exercida; aquelas, em uma palavra, cujo concurso
forma a constituição do Estado, são as leis fundamentais.
(Vattel, 1758, pp. 31-2)
394
Duas rápidas observações a respeito das definições propostas por Vattel. Embora referida à noção tradicional de
corpo, não creio ser difícil reconhecer que esta definição
não se esgota na simples descrição de um certo estado de
coisas. A autonomização do sentido político de constituição,
sua aproximação com a ideia clássica de politeia permitem
introduzir na palavra um ingrediente normativo. Vattel não
se refere apenas à composição e à ordem concretas dos
Estados particulares. Ele também concebe a constituição –
diga-se de passagem, em inteira sintonia com a tradição
clássica – como a melhor ordem a ser instituída. Com isso,
o conceito adquire dupla valência, que permite a passagem
do plano empírico para o prescritivo. Em segundo lugar,
ao conceber a constitution de l’Etat como um conjunto de
leis fundamentais, Vattel remete sua definição a um conceito
herdado dos debates político-jurídicos do Antigo Regime
a respeito dos limites da autoridade pública. Dessa forma,
o autor suíço associa, ao termo constituição, um componente jurídico que é estranho à noção clássica de politeia.
Este componente, como veremos, será central na formação
da ideia moderna de constituição como lei fundamental, surgida
no final do século XVIII. No entanto, apesar desse vínculo entre constituição e leis fundamentais, seria equivocado
procurar em Vattel uma espécie de antecipação do conceito consagrado na época revolucionária. Como observa
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Heinz Mohnhaupt (1988, p. 156), a ideia de constitution de
l’Etat proposta pelo jurista não se apresenta como “um texto constitucional independente, fechado em si, mas ainda
está conceitualmente ligada a uma pluralidade de leis fundamentais individuais designadas em termos de conteúdo e
as reúne em si numa unidade significativa”16. Vejamos com
mais atenção esse ponto.
A noção de lex fundamentalis – ou, para ser mais exato,
leges fundamentales, pois o termo era normalmente empregado no plural – se forma no interior das controvérsias
políticas e religiosas da França da segunda metade século
XVI17. O termo se refere a um conjunto de normas invioláveis e vinculantes, que constituiriam o fundamento da
ordem pública. Nesse sentido, as leis fundamentais pressupõem uma diferenciação, no interior do próprio direito,
entre dois tipos de normas particulares de caráter positivo:
aquelas que se apresentam como fundamento da ordem
pública, sendo, por isso, permanentes e inalteráveis, e
aquelas passíveis de modificação, por estarem submetidas
ao arbítrio do governante. No caso da monarquia francesa,
um exemplo característico da ideia de lei fundamental,
invocado tanto por partidários da monarquia absoluta
como pelos defensores da sua limitação, é a “lei sálica”,
que estipularia a obrigatoriedade da descendência masculina do trono real.
395
16
Outro aspecto muito importante a ser destacado na definição de Vattel é o papel
que ele atribui à ideia de nação. Para Vattel, é a nação que estabelece sua própria
constituição e é exclusivamente ela quem tem o direito de alterá-la. As instâncias
legislativas ordinárias não possuem essa prerrogativa, pois devem sua existência à
própria constituição. O tema da nação e, em particular, da nação constituinte –
que, creio ser possível dizer, se anuncia na reflexão de Vattel – ocupará um lugar
decisivo na elaboração do moderno conceito de constituição, sobretudo a partir
dos debates políticos da França revolucionária. Não pretendo ignorar esse aspecto
do conceito, no entanto, tendo em vista a discussão que desenvolvo neste texto,
não me ocuparei dele de maneira mais detida.
17
Sigo aqui as indicações de Mohnhaupt (1988); Grimm; Mohnhaupt (2008).
Também utilizei Seelaender (2006).
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O essencial e o acidental: Bodin (e Hobbes) e a invenção do conceito moderno de constituição
396
O conteúdo da noção de leis fundamentais não é fixo,
variando de um lugar para outro, e, desse modo, seu caráter
é sempre particular e concreto, ainda que seja possível
identificar alguns temas recorrentes: a inalienabilidade
do patrimônio público, a obrigatoriedade do respeito aos
vínculos contratuais entre o governante e os estamentos, a
preservação da forma de governo etc. A despeito da recorrência de alguns conteúdos, importa enfatizar a natureza
eminentemente concreta da noção de leges fundamentales:
as leis fundamentais de um Estado dizem respeito àquele
Estado específico, mesmo que uma formulação equivalente possa ser encontrada em outro lugar. Por outro lado,
embora as leges fundamentales refiram-se a normas inalteráveis que impõem limites à autoridade pública, isso não significa que elas tenham sido sempre usadas politicamente
no sentido de uma limitação “constitucionalista” do poder.
A partir das décadas finais do século XVI, tanto os partidários da causa absolutista, quanto os defensores de um regime limitado recorrerão ao conceito (Beaud, 2003, p. 135;
2009, pp. 14-7).
O conceito de “leis fundamentais” tem, portanto, um
sentido jurídico que a palavra constituição, num primeiro
momento, desconhecia. A aproximação entre os dois termos permitiu, por conseguinte, trazer a ideia de constituição para o âmbito do direito, atribuindo-lhe um alcance
jurídico-normativo. Ou seja, a constituição, como vimos a
propósito da definição de Vattel, pôde ser encarada como
um conjunto de normas jurídicas que compõe o fundamento da vida do Estado. Um dos caminhos que conduziu a essa direção foi retraçado por Gerald Stourzh, no
âmbito de língua inglesa, a partir do uso no debate político do século XVII da expressão fundamental constitutions.
Segundo o autor, o surgimento da expressão foi o resultado
do resgate da palavra constitution, derivada do termo jurídico latino constitutio. A palavra é retomada no debate polítiLua Nova, São Paulo, 88: 381-426, 2013
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co do século XVII em associação com a ideia de fundamental
laws, adquirindo, com isso, um novo valor. No entanto, o
passo decisivo do ponto de vista da formação do moderno
conceito de constituição como “lei fundamental” não se
encontra ainda nessa nova construção verbal, nem tampouco, já assinalei esse ponto, na identificação estabelecida por
Vattel entre constituição e um conjunto de leis fundamentais. É preciso dirigir a atenção para a interpretação particular que, no mundo anglo-saxão, foi dada para a ideia de lei
fundamental e para seus desdobramentos nos debates jurídico-políticos do período da independência norte-americana.
Na Europa continental, como vimos, a noção de leis
fundamentais remetia a normas objetivas relacionadas à
ordem do Estado (regras de sucessão, inalienabilidade do
patrimônio público etc.) ou a regras relativas aos laços contratuais entre o monarca e os estamentos e, portanto, aos
direitos dos estamentos e corporações em face do soberano. Já na Inglaterra – e, por extensão, em suas colônias –,
a mesma noção foi esvaziada, ao longo do século XVII, de
seu conteúdo prioritariamente estamental e corporativo,
passando a ter como principal referência um conjunto de
direitos individuais dos ingleses18. Daí a possibilidade de se
falar igualmente de fundamental laws, fundamental rights ou,
apenas, fundamentals (Stourzh, 1979, p. 351).
Durante o processo de independência norte-americano, a imagem de que esses “direitos fundamentais” estavam
sendo violados pelo arbítrio do Parlamento inglês e de que,
logo, precisavam de proteção, desempenhou um papel
decisivo na formulação da ideia de constituição moderna.
Como observa Gerald Stourzh, para os americanos do final
do século XVIII, a constituição veio a ser algo mais do que
um modo de organização e distribuição das funções públi-
397
18
Sobre essa especificidade do mundo inglês, ver Mohnhaupt (1988, pp. 150-1) e,
sobretudo, Stourzh (1977, 1988, 2007).
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cas no interior do Estado. Ou seja, algo mais do que os significados político-institucionais herdados da noção grega de
politeia. Nesse sentido, a defesa de uma constituição durante
a Revolução Americana não se esgotou na demanda por
certa forma de organização da vida política, mas também trouxe consigo o problema da proteção dos direitos
individuais. Essa questão se apresenta com toda a clareza
numa afirmação contida nas resoluções do town meeting de
Concord, de 1776:
[…] nós entendemos que uma concepção apropriada
de constituição compreende um sistema de princípios
estabelecido para garantir ao súdito a possessão e o desfrute
de seus direitos e privilégios contra quaisquer abusos da
parte do governo (apud Stourzh, 1988, p. 166).
398
Dessa forma, a partir da Revolução Americana, a constituição foi imaginada como um instrumento público de
proteção dos direitos subjetivos dos cidadãos de um Estado.
O resultado foi que, para desempenhar o papel de garantia
de direitos fundamentais, a constituição veio a ser concebida como a lei fundamental. Diferentemente, porém, da
ideia tradicional de lex fundamentalis, que implicava a referência a um conjunto de normas particulares e concretas,
essa natureza fundamental da constituição decorre de uma
característica jurídico-formal. Tentando ser um pouco mais
claro: o que torna uma constituição, compreendida nesses
termos, uma lei fundamental é, antes de tudo, sua superioridade formal no interior de um sistema de normas jurídicas,
ou seja, o fato de que ela se apresenta como uma lei suprema, anterior a todo governo constituído e capaz de invalidar qualquer ato legislativo que lhe seja hierarquicamente inferior. Ao serem acolhidos no interior de uma ordem
jurídica desse gênero, isto é, ao serem constitucionalizados,
os direitos fundamentais passam a estar revestidos por essa
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condição de superioridade formal, não podendo ser revogados por qualquer ato legislativo ordinário. No debate
jurídico-político americano essa novidade foi sintetizada de
modo exemplar pelo juiz John Marshall, na Suprema Corte
norte-americana, em 1803:
[…] certamente todos aqueles que elaboraram constituições
escritas consideram que elas formam a lei suprema e
fundamental da nação e, por conseguinte, a teoria de
todo governo desse tipo deve ser que um ato do legislativo
contrário à constituição é nulo (apud Stourzh, 2007, p. 98)19.
É importante assinalar que a supremacia da constituição não resulta apenas da novidade de que, a partir de
agora, ela se apresenta como um documento escrito no
qual se estabelecem princípios centrais da vida pública.
É verdade que a redação de um documento, ao firmar
por escrito uma série de preceitos jurídicos, confere a
estes preceitos uma espécie de objetividade. Porém, seu
caráter de “lei fundamental” é, em primeiro lugar, fruto de sua separação formal em relação às leis ordinárias.
Nesse sentido, como observa Olivier Beaud (2009, p. 24;
2003, p. 135), o conceito consagrado pela Revolução
Americana implicou uma “juridicização da constituição”.
O sentido dessa observação torna-se mais claro quando
se considera a diferença entre a ideia tradicional de lex
fundamentalis e a nova imagem da constituição como a
“lei fundamental”. No primeiro caso, já assinalei esse
ponto, o caráter fundamental das leges fundamentales
decorre de que estas se apresentam como um conjunto
de normas particulares e concretas, às quais se atribui
uma validade objetiva e, por isso, um caráter obrigatório.
399
A ideia de constitucionalização dos direitos fundamentais é desenvolvida por
Gerald Stourzh em diversos dos seus textos anteriormente citados, mas encontra
uma formulação mais detida em Stourzh (1988, 2007).
19
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400
Sua força prescritiva é, portanto, inseparável da ideia de
que essas normas fazem parte da “constituição” jurídica
de um Estado específico, ou seja, de um estado de coisas
juridicamente constituído.
Não é indiferente, portanto, que, no debate político
em torno das leis fundamentais de um Estado, o recurso
à história para fundamentação de sua validade tenha
desempenhado papel central. Em última análise, a força
normativa das leges fundamentales tem como pressuposto a
afirmação da existência empírica de uma norma intangível e vinculante. Não é esse o caso da nova ideia de “lei fundamental”. Sua intangibilidade tem, comparativamente,
um caráter muito mais abstrato e formal. A proteção, por
exemplo, que é assegurada aos direitos individuais no
interior de uma ordem constitucional não resulta apenas
da afirmação do seu caráter objetivamente intangível,
mas de uma operação jurídico-formal que os incorpora
no texto escrito de uma lei superior, capaz de tornar inválidas todas as normas contrárias aos seus preceitos. Nesse
contexto, “a expressão lei fundamental ganha o sentido
especificamente jurídico de lei suprema” (Beaud, 2009,
p. 24). Essa supremacia, gostaria de reafirmar, é fruto
de um procedimento jurídico e, portanto, o que confere superioridade a uma constituição é sua forma jurídica. Nesse sentido, a constituição moderna não se refere
a certo estado de coisas, mesmo que esse seja, como no
caso das leges fundamentales, um conjunto de leis que compõem situação jurídica de um Estado particular. Como
assinala Dieter Grimm (2006, p. 49), ela já não designa
“uma condição juridicamente configurada”, mas “a própria norma jurídica que a cria”. Ao se apresentar como
a “lei fundamental”, a constituição moderna estipula as
condições jurídicas de validade da própria ordem pública, independentemente de sua realidade empírica ou de
sua conformação histórica.
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Parece-me claro que, caso queiramos compreender as
fontes históricas do que estou denominando de caráter
abstrato das constituições modernas, devemos voltar nossa
atenção para o papel desempenhado pelo universalismo
dos princípios jusnaturalistas na elaboração dos seus conteúdos. Com efeito, a noção moderna de direitos subjetivos
pressupõe um sujeito abstrato, o ser humano individual,
que, no fim das contas, não existe em lugar algum. Gostaria, entretanto, de chamar a atenção para outro aspecto
desse mesmo problema. No conceito moderno de constituição, a força constitutiva desses princípios jurídicos
individualistas não resulta apenas do universalismo e da
abstração de seus conteúdos, mas também de sua constitucionalização, ou seja, de sua inscrição no interior de uma
lei concebida, em termos jurídico-formais, como superior.
Sendo assim, a natureza abstrata do conceito moderno de
constituição deriva, em grande medida, de um procedimento jurídico que, por assim dizer, entroniza (uso o termo de forma deliberada) determinados princípios como
constitucionais. Esse procedimento, portanto, estabelece
in abstracto – em outros termos, como um dever-ser que, sob
muitos aspectos, prescinde do reconhecimento da evidência empírica de uma norma historicamente consolidada
ou da validade objetiva de um preceito universal – as condições de legitimidade da própria ordem pública. Dito de
forma simplificada, a constituição já não indica o que é a
ordem pública e quais são as suas bases jurídicas; ela estipula os fundamentos jurídicos sobre as quais essa ordem
deve se assentar.
A “juridicização da constituição” implicou, portanto,
um movimento graças ao qual “progressivamente a noção de
constituição afasta de si os seus componentes não jurídicos,
se concentra no modo de ser jurídico do Estado e [...] vem
a coincidir com a lei que regula a instituição e o exercício
do poder estatal” (Grimm; Monhnhaupt, 2008, p. 111).
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Esse movimento, que desemboca numa ampla codificação
da vida pública nos termos do direito, conduz, do ponto
de vista da elaboração linguística da ideia de constituição, a
uma consequência central: “o conceito não se define mais
a partir de um objeto, mas se torna linguisticamente o próprio objeto, se autodefine” (Grimm; Monhnhaupt, 2008,
p. 111). Os desdobramentos políticos dessa mudança são
igualmente significativos. Enquanto a constituição pôde
ser concebida como a designação de determinado estado
de coisas – ou, dito em outros termos, enquanto a palavra
implicou a remissão a um referente empírico –, não era possível imaginar uma ordem política à qual não correspondesse, mal ou bem, determinada constituição. A qualidade de
uma constituição poderia ser objeto das lutas políticas, mas
não sua existência.
A partir do momento em que a constituição passa a
ser pensada em termos predominantemente prescritivos
– ou seja, a partir do momento em que a noção se torna autorreferente em termos normativos –, ela adquire
uma força política adicional. Ela se desvincula, por assim
dizer, da experiência histórica, de tal modo que a variedade das constituições “nacionais” e das leges fundamentales
cede lugar, agora, à constituição e à lei fundamental. Desde então, só o ordenamento que cumpre determinados
requisitos normativos, materiais e formais, pode ser considerado uma constituição (Grimm; Monhnhaupt, 2008,
p. 111; Grimm, 2006, p. 49). Torna-se possível imaginar
uma ordem política que seja ilegítima, simplesmente porque não possui uma constituição. Tal possibilidade fica evidente quando consideramos o artigo 16 da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “toda sociedade
na qual a garantia dos direitos não está assegurada nem a
separação de poderes determinada não tem constituição”.
Creio que já temos condições de passar à discussão
sobre o conceito de politeia.
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III
O termo grego politeia é frequentemente traduzido nas línguas modernas por “constituição”. Essa tradução não esgota, porém, os sentidos da palavra no grego antigo. Como
observa Mogens Hansen, politeia
[…] significa, antes, a estrutura política total de uma
polis: a ‘alma’ da polis, como podia ser metaforicamente
denominada. E, uma vez que a polis é, primariamente, seus
cidadãos, politeia também podia em contextos adequados
significar ‘direitos de cidadania’, ou a atividade política
de um cidadão individual, ou o conjunto do corpo dos
cidadãos como uma entidade. [...] O conceito de politeia era,
por natureza e origem, muito mais amplo do que aquilo que
nós entendemos por ‘constituição’. Todavia, na prática ele
era usado de forma mais restrita para designar aquilo que,
de um modo especial, ligava os cidadãos em uma sociedade:
mais especificamente, as instituições políticas de um Estado,
e, num sentido especializado, a estrutura dos órgãos de
governo do Estado (Hansen, 1999, p. 65).
403
Para uma compreensão adequada sobre o tipo de
ordem constitucional que a noção de politeia implica, é preciso levar em conta como alguns desses sentidos, a despeito
de sua diversidade e aparente dispersão, se articulam entre
si. Em particular, é preciso ter em vista que a unidade do
conceito resulta do fato de que, segundo Bordes (1999, p.
65), “politeia aparece como o resultado final da tomada de
consciência progressiva da unidade polis-politai”20. Vejamos
esse ponto com mais atenção, explorando brevemente a história do conceito na Grécia dos séculos VI e V a.C.
Segundo Christian Meier (1984, 1989, 1990), a noção
de politeia surge no contexto de significativa transformaA palavra politai é o plural de polites, cidadão.
20
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O essencial e o acidental: Bodin (e Hobbes) e a invenção do conceito moderno de constituição
404
ção dos conceitos gregos, ocorrida no século V a.C. Do ponto de vista das noções constitucionais então disponíveis, essa
mudança teria sido o resultado da passagem de um conjunto de conceitos referidos à ideia de nomos para outro conjunto estruturado em função do campo semântico de kratos.
O século V a.C. teria presenciado, portanto, uma transição
de conceitos nomísticos para conceitos cratísticos. As noções
constitucionais do século VI a.C. – eunomia, disnomia e isonomia – remetiam a um ideal de justiça e de ordem que encontrava sua principal referência na ideia de nomos. A categoria
central, nesse contexto, era a eunomia como a realização
concreta desse nomos. A eunomia significava, portanto, a efetivação prática de uma ordem com conotações religiosas e
de alcance totalizante. Ela designava a boa ordem do todo,
em conformidade com uma ordem divina, e englobava
a vida econômica e social, a organização da vida política e a
realização de princípios éticos. Do ponto de vista conceitual, essa reflexão só conhecia dois polos extremos, sem qualquer alternativa intermediária entre eles: a eunomia, como
realização de um ideal de justiça que se presumia dotado
de existência objetiva, e seu oposto, a disnomia. Dessa forma, esse ideal não era concebido “a partir de uma instância
terrestre de poder” (Meier, 1984, p. 32). Mais precisamente:
[…] no século VI, a questão de saber quem reinava era
apenas uma questão entre outras. O funcionamento dos
tribunais, as relações de propriedade, as possibilidades
econômicas, o caráter dos homens no poder, as relações
entre as classes sociais, tudo isso era, no mínimo, igualmente
importante para o estado da cidade. [...] Tudo parece
indicar que o conceito de ordem política não existia ainda:
a partir de que, com efeito, ele poderia ter se formado? A
política e as relações entre os cidadãos como cidadãos não
constituíam um fato independente, que se pudesse abstrair
do conjunto dos acontecimentos sociais. Ou, então, apenas
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como o terreno de afrontamentos pelo poder entre os
membros da nobreza. [...] No domínio da política não há,
antes de tudo, outra coisa a não ser a alternativa entre a
tirania e o poder da nobreza (Meier, 1984, p. 30-1).
Nesse contexto, a noção de isonomia, surgida na passagem do século VI para o V, possui um papel de transição.
Por um lado, ela está associada à emergência da democracia
e associa o problema da ordem constitucional a um valor
eminentemente político, a igualdade; por outro, seu horizonte continua a ser o do princípio da eunomia, pela incorporação do tema da igualdade ao antigo ideal da justa
ordem. Com isso, observa Christian Meier (1990, p. 162), o
elemento propriamente político da igualdade entre os cidadãos não chega, com o conceito de isonomia, a se tornar o
fator determinante na definição da ordem constitucional.
Nesse sentido, é revelador que a ideia de isonomia tenha
sido empregada contra o que se considerava o arbítrio da
tirania e não contra o governo dos nobres.
A novidade dos conceitos que se formam a partir do
século V – oligarquia, democracia, aristocracia etc. – reside
no fato de que, com eles, o elemento político é projetado
para frente da cena21. Torna-se possível pensar a ordem da
cidade em termos das relações políticas que os cidadãos mantêm entre si. Daí a centralidade assumida por conceitos constitucionais “cratísticos”, cujo eixo se encontra nas noções de
arche e krathos, ou seja, expressando-me de forma um tanto
frouxa, cujo eixo está no problema do poder. A importância
que esses conceitos assumem na definição da ordem da cidade está diretamente associada ao surgimento da democracia.
Quando o demos adquiriu voz ativa no plano político e, além
405
21
Os conceitos de monarchia e tyrannis são anteriores e já podem ser atestados no
século VI. No entanto, em suas primeiras aparições, esses conceitos “não caracterizam a ordem da cidade, mas apenas a repartição de poder no seio da nobreza”
(Meier, 1984, p. 29).
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disso, se consolidaram canais institucionais regulares e permanentes para sua participação na vida pública, a “questão
do poder [...] pôde se tornar um critério essencial – e, inclusive, rapidamente, o único critério – para reconhecer e diferenciar os tipos de ordem política” (Meier, 1984, p. 33). A
ascensão da democracia representou um desafio ao domínio
político, até então relativamente inconteste, da nobreza. Desse modo, foi possível formular as alternativas a respeito da
ordem da polis tendo como ponto de referência o problema
do governo. Dito em outros termos, essas alternativas acabaram por ser formuladas a partir da pergunta “quem deve
governar: os nobres ou o povo?”
O surgimento dos conceitos cratísticos torna manifesta a
possibilidade, que se abre a partir do século V, de distinguir
as poleis em função de diferentes formas de governo. O problema da ordem da polis ganha, assim, um novo significado.
Ele se concentra na esfera do político e nas relações que os
membros da cidade mantêm entre si na condição de cidadãos. Esse novos conceitos constitucionais, quando comparados com as noções anteriores referidas a um nomos ideal,
têm um alcance muito mais reduzido e implicam uma
concepção de ordem muito mais restrita. Por outro lado,
é justamente essa restrição que permite imaginar a ordem
como algo que se encontra “à disposição dos cidadãos”
(Meier, 1990, p. 163). No âmbito dos conceitos nomísticos, a
justa ordem da vida coletiva se apresentava como um ideal a
ser buscado pela ação dos homens, mas que, em última análise, era independente da sua deliberação. Quando o problema da ordem na cidade se concentra no plano do político e
passa a girar em torno da pergunta sobre quem deve governar, o quadro de referência muda integralmente e um novo
horizonte se abre para a ação humana. A natureza específica
da ordem da vida coletiva depende, a partir de agora, das
escolhas dos próprios cidadãos e, portanto, de instituições
deliberadamente estabelecidas.
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Para Christian Meier (1984, 1990), a posição central
que o plano do político assume na definição dos conceitos
constitucionais do século V seria, na verdade, expressão de
uma tendência mais ampla no sentido de uma politização,
fruto da ascensão da democracia. O sentido dessa ideia se
torna um pouco mais claro quando se considera o lugar da
noção de igualdade no interior da democracia antiga. Nas
sociedades modernas, a igualdade política encontra um
suporte, por assim dizer, fora do âmbito da política, ou seja,
na ideia de uma igualdade prévia de todos os seres humanos. Na antiguidade, a afirmação da igualdade política exigiu o estabelecimento de um espaço de relações específico,
artificialmente constituído, no qual a equivalência entre os
cidadãos pudesse ser efetiva. Dessa forma,
[…] abriu-se uma fratura entre a ordem social e
a ordem política. Enquanto a sociedade, com todas as
suas desigualdades, manteve-se basicamente inalterada,
desenvolveu-se ao lado dela, separada dela e protegida por
suas próprias instituições, a nova esfera política na qual
todos eram iguais (Meier, 1990, p. 145).
407
Assim, a esfera da política teria ganho autonomia em
relação aos demais âmbitos da existência coletiva, desembocando numa “mudança na estrutura das filiações sociais”
(Meier, 1990, p. 165). Isso implica dizer que no plano
das relações políticas, o fator que define a identidade dos
membros de uma cidade é a sua condição política de cidadãos, e não as posições e os papéis que eles assumem em
outros campos de sua vida. Segundo Christian Meier (1990,
p. 144), a invenção da democracia num mundo que até
então desconhecia a possibilidade de uma organização
democrática da vida política não se restringiu a essa separação do político em face da vida social. É preciso levar em
conta outro dado fundamental: “a cidade estava fundada
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nos seus cidadãos, não em um aparato estatal autônomo.
Os cidadãos constituíam o Estado”.
Desse modo, a institucionalização da igualdade entre
os cidadãos não se resolve com a montagem de uma estrutura institucional. Ela requer um engajamento na vida
política que preserve, por intermédio da própria atividade
dos cidadãos, a autonomia desse espaço de igualdade política. Trata-se, portanto, de institucionalizar uma “presença
cívica”22 e de fortalecer os laços de uma identidade política baseada nas relações que os membros da cidade mantêm entre si em virtude de sua condição política de cidadãos. A tendência à politização seria uma consequência da
prioridade que essa identidade política teria assumido na
conformação das relações sociais no interior da democracia grega. A sustentação da democracia teria exigido que
o conjunto das relações dos cidadãos como cidadãos – ou
seja, sua identidade política – assumisse prioridade sobre
os demais vínculos da vida social. Sendo assim, a ideia de
politização busca apreender
[…] a tendência central de uma mudança coletiva que
fez da política a matéria mesma da vida cívica – na qual a
comunidade encontrou sua identidade coletiva no voto e
no processo decisório, no desempenho de funções públicas,
na supervisão e na efetivação da ordem pública; na qual o
político foi destacado como uma área autônoma, não de
uma sociedade que opõe seus valores em relação ao Estado,
mas de uma comunidade que foi literalmente identificada
com o Estado, uma comunidade na qual a constituição
(no sentido político do termo) foi colocada à disposição
dos cidadãos. Esse tipo específico de politização ocorreu
nas isonomias e nas democracias; ao mesmo tempo que
22
Christian Meier desenvolve a noção de “presença cívica” no artigo “Cleisthenes
and the institutionalizing of the civic presence in Athens” (Meier, 1990, pp. 53-81)
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remodelou a compreensão que os homens tinham de todo
mundo político-social (Meier, 1990, p. 166-7).
Nesse contexto, a noção de politeia, observa Meier (1990,
p. 172), representaria a “culminação”, no plano dos conceitos, dessa tendência geral à politização. Por quê? Retomemos,
por um instante, alguns dos significados de politeia que expus
anteriormente: cidadania, comunidade dos cidadãos e ordem
constitucional. O último desses sentidos apresenta-se por volta
de 430 a.C. e, com o tempo, politeia toma o lugar de outras
expressões que, previamente, também eram empregadas para
designação da ordem institucional da cidade. Os significados de
politeia, também já assinalei o ponto, embora distintos,
estão estreitamente ligados uns aos outros. Em particular,
a definição abstrata da natureza da ordem constitucional é
inseparável da determinação da composição concreta da
comunidade dos cidadãos. Isso porque, no quadro político e
intelectual das poleis gregas do século V, a ordem pública da
cidade não é pensada apenas como uma organização institucional e uma estrutura de órgãos de governo independentes
do conjunto dos cidadãos. A pergunta sobre a natureza dessa
ordem está, no fim das contas, associada ao reconhecimento
de uma identidade eminentemente política entre a polis e seus
cidadãos, uma experiência que teria adquirido pleno sentido
com a ascensão da democracia. Dessa forma, as noções de
polis, polites e politeia estão estreitamente interligadas. Isso se
torna claro quando colocamos lado a lado duas definições de
politeia que Aristóteles oferece no livro III da Política:
409
A constituição é uma certa ordem instituída entre as pessoas
que habitam a cidade. Mas, uma vez que a cidade faz parte
dos compostos, assim como qualquer dos todos formados
de muitas partes, é claro que é preciso, em primeiro lugar,
realizar uma investigação sobre o cidadão. A cidade, com
efeito, é um conjunto determinado de cidadãos.
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O essencial e o acidental: Bodin (e Hobbes) e a invenção do conceito moderno de constituição
Uma constituição é, para uma cidade, uma organização de
diversas magistraturas e, sobretudo, daquela que é soberana
em todos os negócios. Em todos os lugares, com efeito, o
que é soberano é o governo da cidade, mas a constituição
é o governo. Quero dizer, por exemplo, que nas cidades
democráticas o povo é soberano, ao passo que nas cidades
aristocráticas é o pequeno número23.
410
Num sentido geral, a constituição, aqui, é uma determinada ordem da cidade. Mas, como nos diz Aristóteles, a cidade é, ela mesma, um composto de cidadãos e, desse modo,
a constituição acaba por ser uma ordem dos próprios cidadãos. Ao mesmo tempo, essa ordem nos é apresentada como
certa organização das funções públicas e das instituições
políticas. Uma organização que determina quem, na cidade,
ocupará uma posição de governo. Porém, numa comunidade
de cidadãos como as poleis gregas dos séculos V e IV a.C., a
integração à vida coletiva se dá prioritariamente pelo acesso
aos direitos políticos de cidadania, ou seja, o elemento definidor do pertencimento à cidade é a identidade dos indivíduos como cidadãos. Assim, participar do governo é, essencialmente, desfrutar da condição de cidadania. O acesso à
politeia, entendida como os direitos de cidadania, significa
poder participar da politeia, entendida como a estrutura das
funções públicas e como o governo da cidade. Dessa forma,
ao contrário do que à primeira vista pode parecer, a comunidade de cidadãos não é o pressuposto prévio da noção de
politeia, a matéria, por assim dizer, que será organizada institucionalmente. A constituição, ao estabelecer uma estrutura
23
Acompanho a tradução de Pierre Pellegrin (Aristóteles, 1993, pp. 205-6, 225). As
passagens citadas pertencem a Pol. III, 1, 1274b, e III, 6, 1278b, respectivamente.
Como observa Mogens Hansen (2006, p. 110), “a análise de Aristóteles de polis,
polites, e politeia está em inteira sintonia com nossas outras fontes, atenienses e não
atenienses, e o uso nas fontes de polis, polites, e politeia como três termos fundamentais conectados mostra que o autêntico núcleo do conceito de polis era o corpo dos
cidadãos entendidos como participantes nas instituições políticas da cidade”.
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de funções públicas e de órgãos de governo, não ordena uma
comunidade de cidadãos preexistente. Ela define quem são
os cidadãos com plenos diretos, ou seja, a própria composição do corpo dos cidadãos.
Há uma inevitável circularidade nesse modo de expor a
questão: a constituição define a composição da comunidade
dos cidadãos e a composição da comunidade dos cidadãos
define a natureza da constituição. Essa circularidade não
deriva apenas do fato de que a noção de politeia pode ter
o duplo sentido de ordem constitucional e de comunidade dos cidadãos. Ela é, em grande medida, resultado da
natureza politicamente concreta da polis grega. Nesta última,
vale insistir, a comunidade dos cidadãos constitui a própria
ordem política, ou seja, a ordem não se apresenta como
um dado que lhes é exterior, como uma estrutura institucional dotada de uma fixidez e de uma continuidade que
parecem prescindir dos seus portadores concretos. O tipo
de ordem pública que decorre da noção de politeia não se
esgota, portanto, em um arranjo institucional, mas, antes
de tudo, refere-se à pergunta a respeito da composição e da
extensão da comunidade dos cidadãos.
411
Em Atenas e em outros lugares se percebeu que a
maneira mais efetiva de alterar uma constituição era
ampliar ou restringir o número daqueles que desfrutavam
de plenos direitos de cidadania ou vincular certos direitos
políticos a uma qualificação em termos de propriedade
ou algum outro tipo de exigência. Desse modo, foi
possível assegurar que a questão decisiva era “quem são
os cidadãos?” (Meier, 1990, p. 171)24.
24
Na coluna 1034 de Meier (1989) ainda podemos ler “na formação dessa palavra
[politeia], se expressava o fato de que a cidade tornara-se idêntica à comunidade
dos cidadãos e que a delimitação e a particularidade da comunidade dos cidadãos
haviam-se tornado, com isso, a marca central da sua ordem”.
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Essa pergunta, imagino que esteja claro, pressupõe
a compreensão da ordem constitucional em termos especificamente políticos, pois envolve pensá-la em função do
acesso aos direitos políticos que asseguram a participação
na vida pública e no governo da cidade. Nesse sentido, as
instituições representam, antes, um meio pelo qual a comunidade dos cidadãos se faz politicamente presente. Enfim,
a ordem da polis e a comunidade dos cidadãos não podem
ser concebidos separadamente porque os cidadãos não se
encontram em face da polis, eles são a própria polis.
Aristóteles, mais uma vez, nos oferece uma ilustração
muito esclarecedora desse ponto quando se pergunta, ainda
no livro III da Política, se uma cidade permanece a mesma
quando muda a sua constituição. A pergunta surge da tentativa de identificar o critério a partir do qual seria possível
conceber a identidade e a continuidade de uma cidade no
tempo. Segundo ele, não é o território, nem a composição
da população que determinam a natureza específica de
uma polis. Sua resposta é conhecida:
[…] se a cidade é uma comunidade determinada, e se
ela é uma comunidade de constituição entre os cidadãos,
quando a constituição se torna especificamente outra, ou
seja, diferente, pode-se afirmar que necessariamente a
cidade não é mais a mesma, como de um coro, quando ele
é cômico ou trágico, nós dizemos que não é o mesmo, ainda
que seja frequentemente composto das mesmas pessoas
(Aristóteles, 1993, p. 214)25.
A afirmação de Aristóteles se torna mais compreensível quando consideramos como nela os conceitos de polis
e politeia (no duplo sentido de comunidade de cidadãos e
de constituição) estão mutuamente remetidos. Se a constiA passagem citada corresponde a Pol. III, 3, 1276b.
25
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tuição se confunde com a composição da comunidade de
cidadãos com plenos direitos e se a polis é, ela mesma, uma
comunidade de cidadãos, a natureza da cidade, em última
análise, não se separa da composição concreta da comunidade dos cidadãos. Dessa forma, o conceito de politeia, ao conjugar os sentidos de ordem constitucional e comunidade
dos cidadãos, dá expressão ao fato de que “a politeia não
é simplesmente a constituição, que muda conforme as circunstâncias, de um Estado que se mantém o mesmo (como
pessoa jurídica), mas precisamente a comunidade dos cidadãos” (Meier, 1989, col.1036)26.
É possível afirmar, então, que os sentidos de politeia,
embora semanticamente diferenciáveis entre si, apontam,
na verdade, para aspectos distintos de uma mesma questão. Falar de politeia como “comunidade de cidadãos” ou
como “ordem constitucional” é, de certa forma, contemplar
o mesmo problema a partir de perspectivas diversas, mas
não divergentes: caso a ênfase esteja colocada na conformação institucional da cidade, prevalece o segundo sentido;
caso esteja na composição da cidadania e, em particular,
na composição do grupo dos cidadãos com plenos direitos,
predomina o primeiro. Ainda que ao preço da repetição,
não custa reiterar que essa diferença semântica se esmaece
quando reconhecemos que os arranjos institucionais não
possuem independência em relação aos cidadãos que exercem, eles próprios, as funções de governo na cidade.
413
26
Essa observação de Christian Meier tem como referência precisamente a passagem de Aristóteles anteriormente citada. Veja-se também a seguinte observação:
“Uma vez que na ordem política não se dependia mais tanto das instituições e das
relações entre elas quanto da comunidade dos cidadãos ordenada, o conceito de
politeia se sobrepôs às expressões mais antigas usadas para designar a instituição
da cidade. Quando o traduzimos por ‘constituição’, apreendemos um sentido essencial; todavia, para a compreensão da palavra assim como das representações
subjacentes, é importante ter em vista que, para os gregos, comunidade dos cidadãos [Bürgerschaft] e constituição significavam amplamente a mesma coisa. A
comunidade dos cidadãos era antes a constituição do que tinha uma constituição”
(Meier, 1989, col.1035).
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Na noção de politeia, portanto, a separação e a autonomia do plano do político em relação às demais esferas da
vida social e, por conseguinte, a politização dos conceitos
constitucionais se tornam patentes. Se a comunidade dos
cidadãos se confunde com a própria ordem constitucional,
a definição da natureza dessa ordem passa a depender da
resposta que se dá a uma questão cujo centro de gravidade é político: “quem deve governar?”, ou ainda, “quem são
os cidadãos?” e, em particular, “quem são os cidadãos com
plenos direitos?”. Nesse plano, o problema da ordem da
cidade depende das escolhas e das ações humanas e pode
ser objeto de uma reflexão autônoma. Sendo assim, penso
poder afirmar que o conceito de politeia contém in nuce o
problema que, segundo Leo Strauss, será a questão central
da filosofia política clássica, isto é, o tema da melhor constituição, da ariste politeia (Strauss, 1986, pp. 128-35).
Podemos retornar, por fim, a Bodin e a sua distinção
entre o essencial e o acidental.
IV
Bodin formula sua análise sobre as diferentes formas de estat
à luz da questão da soberania. Ao adotar essa perspectiva,
o autor, coerentemente, rejeita a abordagem qualitativa das
formas constitucionais. Para ele, apenas os elementos referentes à determinação da soberania são essenciais. Todo
juízo sobre a qualidade do exercício do poder é acidental
e se refere ao âmbito do governo, ou seja, a um aspecto da
ordem de uma república que, do ponto de vista das premissas do seu argumento, tem uma posição secundária. Isso
porque o problema da soberania, tal como Bodin o formula,
não diz respeito ao modo como se exerce uma função
pública, mas às condições de possibilidade desse exercício.
Em Les six livres de la République, estas condições de possibilidade são, antes de tudo, jurídicas. Aqui, a soberania se
apresenta como um lugar de comando supremo, estruturaLua Nova, São Paulo, 88: 381-426, 2013
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do juridicamente a partir de um conjunto de direitos exclusivos e permanentes. A definição de soberania proposta no
capítulo 8 do livro I é, nesse sentido, exemplar: “soberania
é potência absoluta e perpétua de uma república” (Bodin,
1583, p. 122). De modo breve e preciso, ela busca identificar as características formais que determinam a condição de
supremacia da posição de poder daquele que é soberano: a
natureza última dos seus direitos de mando – ou seja, o fato
de que estes direitos não derivam de outrem – e sua permanência no tempo – ou seja, sua duração não prefixada ou
passível de suspensão repentina. Assim, o reconhecimento
de quem é concretamente o soberano tem, como pressuposto anterior, a determinação formal das condições jurídicas
que definem a posição de soberania.
Nesse contexto, a questão da qualidade deixa de ter um
papel primordial no estabelecimento dos tipos de república,
porque, para a definição da natureza do poder soberano, as
condições formais que asseguram sua existência assumem
prioridade conceitual sobre o modo efetivo do seu exercício. Trata-se de firmar os pressupostos da institucionalização de uma vontade como pública; uma vontade que será
pública e suprema, ou melhor, pública porque, em termos
jurídico-formais, suprema. Daí o modo particular como
Bodin aborda o tema das “marcas da soberania” em sua
análise sobre o poder soberano. Em lugar de definir a
supremacia do príncipe ao modo tradicional – ou seja, pela
enumeração de um catálogo de direitos que distinguiriam
sua posição de comando – ele procura, primeiramente,
estabelecer de maneira analítica os pressupostos jurídicos
que conferem a essas marcas seu caráter soberano (Skinner,
2006, p. 559). Estas “marcas” constituem as prerrogativas
que o soberano detém de forma absoluta e perpétua e que
lhe conferem, no interior da ordem pública, uma posição
de supremacia e, por isso, “não são comuns aos outros súditos, porque, se fossem comuns, não haveria príncipe sobe-
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rano” (Skinner, 2006, p. 212). Das prerrogativas de que dispõe um soberano, uma delas, na perspectiva do jurista, é
a mais importante de todas e, em última análise, contém
todas as outras: “a potência de dar a lei a todos em geral e a
cada um em particular” (Skinner, 2006, p. 221), sem o consentimento de quem quer que seja.
Desse modo, Bodin não só descarta o problema da qualidade na discussão sobre as formas de república, mas também,
em certo sentido, coloca uma pergunta prévia. Uma pergunta que se refere às condições institucionais sem as quais
uma república sequer existiria. Esta pergunta prévia,
quero crer, o conduz no sentido de uma integral redefinição
dos termos da reflexão constitucional. E, ao fazê-lo, Bodin
coloca algumas das bases intelectuais do conceito moderno
de constituição. Com efeito, como vimos anteriormente, na
noção de politeia o tema da ordem constitucional tem um dos
seus eixos na pergunta “quem deve governar?” e, por extensão, “qual a melhor constituição para a cidade?”. Na resposta que se oferece a essa pergunta, a definição de uma
estrutura institucional e a composição da comunidade cívica caminham juntas, pois na polis os cidadãos constituem a
própria ordem política.
Repito esses pontos visando chamar a atenção para um
aspecto que até agora não enfatizei e que, de certo modo,
está implícito nessa discussão: no conceito de politeia, os
temas da ação e do agente desempenham um papel fundamental. Se a noção de politeia está associada a uma consciência da unidade polis-politai, é porque a ordem da cidade
se apresenta como uma atividade do conjunto da cidadania,
antes de ser uma estrutura com que os cidadãos se defrontam. Bodin, por pensar as formas de república a partir do
problema da soberania, formula outra pergunta: “quais são
as condições graças às quais o governo e a própria cidade
vêm a ser possíveis?” Gostaria de fazer algumas considerações
em relação a esta pergunta. Em primeiro lugar, ela impliLua Nova, São Paulo, 88: 381-426, 2013
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ca deslocar o eixo da atenção para a estrutura jurídica que
constitui o poder soberano e que, por assim dizer, fixa as
premissas institucionais da ordem pública e da obrigação
política. Tal estrutura é concebida como um dado anterior
ao tema das formas de república e possui, no fim das contas, independência em relação a ela. Assim, a ênfase na articulação institucional da vida política adquire precedência
e prioridade em relação ao ponto de vista da ação e do
agente. Como resultado, a natureza politicamente concreta
da ordem da politeia cede lugar a uma organização constitucional que tem como pressuposto a distinção entre Estado e sociedade. Numa ordem fundada nessas premissas, a
constituição torna-se, ela mesma, uma forma de organização institucional ou, para ser mais preciso, uma forma de
regulação normativa das instituições públicas. Como observa Dieter Grimm (2006, p. 51):
[…] em sua qualidade de regulação completa e unitária
da organização e do exercício do poder, a constituição
dependia da existência de um objeto que permitisse tal
intervenção concentrada e normativa. [...] Só um poder
político distinto e diferenciável da sociedade podia
oferecer o ponto de partida para um trabalho de regulação
expressamente dirigido à organização e ao exercício do
poder e à sua concepção unitária; anteriormente à reunião
dos direitos de soberania dispersos e a sua concentração
no poder estatal pleno [...], não havia possibilidade de que
existisse constituição moderna alguma.27
417
Uma importante vertente atual da historiografia do direito e das instituições políticas tem insistido na tese de que essa organização unitária dos Estados modernos
é muito mais tardia do que tendemos a supor. Ela teria sido, antes, resultado do
processo de ordenação jurídica desses Estados, ocorrido a partir do final século
XVIII, com o surgimento das constituições modernas. Não ignoro esse ponto. No
entanto, para efeito de minha discussão, interessa-me destacar como a concepção
moderna de constituição pressupunha, do ponto de vista conceitual, um objeto unitário, passível, nos termos da citação acima, de uma “regulação completa e unitária”.
27
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Nesse sentido, a consolidação da ideia de Estado como
pessoa jurídica pública – ou seja, como estrutura institucional
juridicamente definida, dotada de unidade, permanência
e continuidade para além dos seus portadores concretos –
é uma condição prévia da constituição moderna. Esta última é, em primeiro lugar, uma ordem do Estado. Ela constitui o exercício do poder estatal e, pode-se dizer, partilha de
sua condição de exterioridade em face da vida social. Acredito, porém, ser possível levar adiante o argumento. Do
ponto de vista de seus pressupostos conceituais, a ordem
institucional do Estado moderno representa algo mais que
uma condição prévia, ela define a linguagem a partir da
qual se elabora o conceito de constituição surgido no final
do século XVIII. Isso porque, ao buscar uma regulação do
poder estatal, a constituição moderna parte da mesma linguagem que estruturou historicamente este poder, a linguagem do direito.
Com efeito, tanto o soberano da ordem estatal moderna, quanto o indivíduo titular de direitos fundamentais das
constituições modernas são, acima de tudo, “seres legais”28.
Eles se apresentam como sujeitos de determinadas capacidades jurídicas, ou seja, como portadores de títulos jurídicos
que os qualificam, nas relações que mantêm com os demais
membros da coletividade. Tais títulos os habilitam a fazer
determinadas coisas e a exigir, com um grau variável de
eficácia coativa, certos tipos de comportamento, em face
de outros sujeitos igualmente definidos em termos jurídicos.
A ordem que tem, nesses “seres legais”, seus principais protagonistas envolve, por um lado, um esforço de regulação
das relações que os agentes portadores de direitos estabe-
Emprego, num contexto algo diferente, a expressão que J. G. A. Pocock (1995, p.
34) utiliza para designar, por contraste ao “ser político” que teria sido o cidadão na
Grécia clássica, a concepção de cidadania derivada da tradição do direito romano.
28
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Bernardo Ferreira
lecem entre si e, por outro, o reconhecimento institucional
de suas capacidades jurídicas29.
Nesse sentido, a entronização jurídica de determinados princípios como parte da constituição do Estado foi
precedida pela constituição jurídica do próprio “trono”
estatal. Em outras palavras, a primazia do lugar de poder
associado à soberania estatal e a supremacia da constituição moderna como lei fundamental resultam, igualmente,
de sua forma jurídica. A superioridade da posição do soberano e a intangibilidade da constituição dependem, no fim
das contas, de certas condições jurídico-formais. É verdade
que, politicamente, essa supremacia apresenta, em cada
um dos casos, desdobramentos opostos. A posição do soberano se caracteriza pelo fato de que ele é legibus solutus,
isto é, detentor, em condições de exclusividade e permanência, de uma capacidade legislativa. A constituição,
inversamente, implica um esforço de controle e regulação
jurídica do exercício dos poderes públicos, por meio do
estabelecimento de uma “lei fundamental”. A ênfase nessa
diferença, no entanto, não deve nos impedir de reconhecer
o quanto a construção conceitual da constituição como
“lei suprema” é tributária de uma estruturação jurídica da
ordem pública, na qual a ideia de supremacia desempenha um papel decisivo. Esta ideia é o eixo de articulação
e ponto de referência último a partir do qual o todo da
ordem vem a ser pensado30.
419
29
Nesse sentido, parece-me que Luc Foisneau tem razão ao afirmar que Bodin
“[inaugura], a seu modo, a longa série das declarações de direitos que irão marcar
a modernidade política. No mínimo, pode-se considerar que sua invenção – a declaração dos direitos de soberania – [...] prefigura na sua forma a declaração dos
direitos do homem e do cidadão” (Foisneau, 2009, p. 57).
30
Nessa discussão, deixei de lado, propositadamente, o fato fundamental de que
a questão da soberania se repõe na história das constituições modernas por intermédio da ideia dos poder constituinte do povo. Interessa-me, aqui, destacar como
a ideia de supremacia da constituição moderna tem suas premissas na construção
conceitual do Estado moderno como uma entidade articulada em torno de uma
noção jurídico-formal de supremacia.
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O essencial e o acidental: Bodin (e Hobbes) e a invenção do conceito moderno de constituição
420
Nesse sentido, a tendência à “juridicização” que marca a
história do moderno conceito de constituição é inseparável
da conformação jurídico-institucional das relações políticas que, por sua vez, marca a formação do Estado moderno. Essa primazia dos vínculos jurídico-institucionais, que
se observa na análise de Bodin sobre os tipos de república, resultará no fim das contas num esvaziamento do tema
das formas constitucionais herdado da antiguidade clássica.
Esvaziamento que será o resultado de uma redefinição, na
linguagem do direito, do problema da ordem na cidade.
Acredito que esse ponto pode se tornar um pouco mais
claro a partir de uma consideração rápida e inevitavelmente superficial sobre a reflexão constitucional que Thomas
Hobbes desenvolve no Leviatã.
Hobbes considera, no capítulo 19 do Leviatã, de modo
semelhante a Bodin, que a distinção entre os tipos de
república resulta exclusivamente das diferenças na composição numérica do soberano. Sendo assim, só existem,
para ele, três formas de governo: monarquia, aristocracia
e democracia. As versões supostamente desviadas desses
regimes “não são nomes de outras formas de governo, mas
das mesmas formas quando detestadas” (Hobbes, 2005,
p. 147). Algumas das consequências conceituais e políticas dessa perspectiva se evidenciam, mais adiante, quando Hobbes se confronta com a tradicional pergunta sobre
qual desses três tipos de república seria preferível. Para
efeito da minha discussão, a resposta que ele oferece
para essa questão é menos importante do que os termos
em que o problema é formulado:
[…] a diferença entre esses três tipos de república não
consiste na diferença de poder, mas na diferença de
conveniência ou aptidão para produzir a paz e segurança do
povo, fim para o qual eles foram instituídos (Hobbes, 2005,
p. 149).
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Duas observações a propósito dessa distinção entre
diferença de poder e diferença de conveniência. Em primeiro lugar, se a diferença entre as formas de governo não
diz respeito ao poder, é porque o tema do poder, assim
como em Bodin, é anterior ao das formas de governo. Mais
exatamente: as formas de república são secundárias em
relação àquilo que torna possível a existência da própria
república. À luz da questão do poder, portanto, os diversos
tipos de repúblicas são equivalentes entre si. Dessa maneira,
o problema fundamental em termos da ordem da cidade
não está mais na decisão por uma das formas de governo,
mas no estabelecimento de uma estrutura institucional que
crie as condições do governo, fundando a autorida­de pública e a obrigação de obediência numa racionalidade
jurídico-formal31.
Em segundo lugar, ao transformar a distinção entre os
tipos de república em uma questão de conveniência, Hobbes
reduz a diferença entre as formas de governo a um ponto
de vista instrumental. Monarquia, aristocracia ou democracia são despojadas de valor em si e vêm a ser avaliadas como
meio para se alcançar a segurança e a paz do povo. Quando
concede primazia ao tema do poder e reduz as diferenças
entre as formas ao ponto de vista da conveniência, Hobbes
realiza, por assim dizer, um movimento oposto àquele
que teria caracterizado a formação do conceito de politeia
na Grécia antiga. Ele despolitiza a discussão em torno das
formas constitucionais, fazendo da opção por uma delas
um problema de cálculo estratégico. Com isso, a pergunta
sobre a melhor constituição se vê esvaziada de grande parte
421
31
A distinção, proposta por Alessandro Biral (1991) e amplamente explorada
por Giuseppe Duso (1999), entre os conceitos de poder e de governo – o primeiro como o objeto por excelência do pensamento político moderno a partir de
Hobbes e o segundo como o eixo da política antiga –, embora corra o risco de um
certo esquematismo, fornece alguns elementos para pensar essa depreciação do
tema das formas constitucionais.
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O essencial e o acidental: Bodin (e Hobbes) e a invenção do conceito moderno de constituição
do seu significado político, pois, a rigor, a questão fundamental a respeito da ordem pública já teria sido resolvida
com o estabelecimento de uma estrutura de poder institucionalmente sólida. Em Hobbes, portanto, esse esvaziamento tem como pressuposto a primazia de uma racionalidade
jurídico-institucional sobre a natureza substantiva das escolhas políticas.
Último ponto. Em Hobbes, essa primazia de uma racionalidade jurídico-institucional se desdobra na maneira
como a ideia de lei fundamental será apresentada no capítulo 26 do Leviatã. Segundo ele,
422
[…] uma lei fundamental em toda república é aquela que,
sendo eliminada, a república sucumbe e é completamente
dissolvida, como um edifício cuja fundação é destruída.
Portanto, uma lei fundamental é aquela pela qual o
súditos são obrigados a sustentar qualquer poder que se
deu ao soberano, seja ele um monarca ou uma assembleia
soberana, sem o que a república não pode subsistir, tal é
caso do poder de paz e guerra, de judicatura, de escolha de
funcionários e de fazer o que considerar necessário para o
bem público (Hobbes, 2005, p. 228).
A imagem da lei fundamental como uma fundação,
um alicerce sobre o qual se ergue o edifício público não é
nova. Hobbes, na verdade, está reproduzindo uma espécie
de lugar-comum a respeito do tema. As leis fundamentais,
normalmente, eram associadas às metáforas do organismo
e da arquitetura32. Se a metáfora é convencional, o mesmo, penso, não se pode dizer da definição aqui proposta.
A definição que Hobbes apresenta tem um viés claramente
polêmico e está dirigida contra os defensores de uma inter32
Sobre esse ponto, com exemplos correspondentes, ver Mohnhaupt (1988,
pp. 125-8).
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pretação das leis fundamentais como limites ao exercício
do poder político e, em particular, como limites resultantes
de vínculos contratuais entre o governante e os governados
(Thompson, 1986, p. 1114-5). Do ponto de vista conceitual,
essa ênfase polêmica tem um importante desdobramento:
no lugar da imagem das leis fundamentais como um conjunto de normas particulares, resultantes das singularidades
da constituição de um determinado Estado, Hobbes propõe
uma concepção abstrata. A lei fundamental se transforma
em uma exigência normativa unitária dirigida à preservação
da posição de poder do soberano. Sua definição, portanto,
não pressupõe um estado de coisas constituído, ou seja, não
remete às leis fundamentais de uma república específica.
A partir da premissa de que a posição de poder do soberano constitui a condição de existência da própria república, Hobbes estipula uma prescrição de natureza geral. Sua
caracterização da lei fundamental implica um movimento
de abstração em face do dado histórico concreto e um
esforço de elaborar o problema em função das condições
possibilidade da própria ordem pública.
Assim, Hobbes formula uma noção de lei fundamental
de caráter abstrato, unitário e geral, cuja força prescritiva
deriva, em primeiro lugar, das exigências formais de uma
racionalidade jurídico-institucional autorreferente33. Imagino que a essa altura o leitor já tenha se dado conta das
possíveis aproximações entre essa noção de lei fundamental
proposta no Leviatã e algumas das características do conceito moderno de constituição anteriormente discutidas. Não
pretendo, com isso, afirmar que Hobbes antecipa a moderna
compreensão jurídica da constituição como lei fundamental,
o que seria, para dizer o mínimo, um equívoco em termos de
análise histórica. Por outro lado, o que, a meu ver, autoriza
423
Como observa Michel Foucault (1984, p. 284), “a finalidade da soberania é circular, isto é, remete ao próprio exercício da soberania. O bem é a obediência à lei,
portanto o bem a que se propõe a soberania é que as pessoas obedeçam a ela”.
33
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O essencial e o acidental: Bodin (e Hobbes) e a invenção do conceito moderno de constituição
essas aproximações é, vale repetir, o reconhecimento de que,
em ambos os casos, o problema da ordem da cidade é pensado em função de uma lógica jurídica que articula o todo a
partir de uma posição de supremacia formalmente determinada. Nesse particular, a noção moderna de constituição não
pode ser concebida fora do horizonte intelectual que está na
base da “constituição” do poder do Estado moderno.
Bernardo Ferreira
é doutor em ciência política pelo Iuperj e professor de ciência política do Departamento de Ciências Sociais da Uerj.
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O STF E A AGENDA PÚBLICA NACIONAL: DE OUTRO
DESCONHECIDO A SUPREMO PROTAGONISTA?
Joaquim Falcão e
Fabiana Luci de Oliveira
As relações entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a sociedade têm se intensificado à medida que o tribunal passa a
decidir cada vez mais sobre questões relevantes ao dia a dia dos
cidadãos. Com a criação da TV Justiça e a expansão das redes
sociais, a garantia das liberdades de expressão e de informação
e a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), intensificaram-se o interesse e o conhecimento de segmentos da popu­
lação acerca do STF, assim como a presença deste na mídia.
A presença do STF na mídia vem crescendo consideravelmente nos últimos anos, como podemos observar pelos
dados no Gráfico 1. Analisando as páginas eletrônicas de
notícias1, assim como o jornal impresso Folha de S. Paulo,
constatamos que, do período de 2004-2007 para 2008-2011,
o número total de notícias sobre o tribunal quase dobrou,
aumentando em 89%. E se considerarmos apenas o ano de
2012, o volume de notícias é ainda maior, sendo 1.603 na
página eletrônica da Folha e 3.338 em O Globo2, volume
1
Foram consultadas as páginas eletrônicas da Folha (www.folha.uol.com.br/), da
Veja (veja.abril.com.br/) e de O Globo (oglobo.globo.com/).
2
Utilizamos o termo de busca “STF” dentro do intervalo temporal de 01/01/2012
a 17/10/2012.
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
que se deve em grande parte ao julgamento da Ação Penal
470 (conhecida como o caso “mensalão”).
Gráfico 1
Número de notícias sobre “STF”
10000
9000
8000
7000
6000
5000
4000
3000
2000
1000
0
2004-2007
2008-2012
9153
6828
5989
5909
4708
1337
1461
132
Folha.com
Folha de SP
O Globo
Veja
Fonte: Pesquisa realizada em janeiro de 2012 nos site da Folha de S. Paulo, Folha.
com, Veja e O Globo, utilizando como termo de busca “STF”, considerando o lapso temporal de 01/01/2004 a 31/12/2011.
430
Estamos cada vez mais distantes do final da década de
1960, quando o então ministro do STF, Aliomar Baleeiro
(1967) chamava a atenção para o estado de ignorância e
desconhecimento da sociedade e da opinião pública brasileira em relação ao Tribunal.
Um dos loci nos quais mais se têm encontrado a sociedade e o STF é na interpretação constitucional, isto é, na
disputa e produção do sentido exigível da Constituição,
convertida agora, mais do que nunca, em espaço público (Habermas, 1997) e arena decisória (Falcão, 2006).
Um dos resultados desta intensificação é a ampliação do
conceito de intérprete da Constituição, indo mais além
do próprio STF e dos demais intérpretes formais, isto é,
daqueles que, por deterem um saber técnico, são elencados por lei como partícipes habilitados no processo decisório jurisdicional – como o juiz, o advogado e o procurador, por exemplo.
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
O STF tem o monopólio da interpretação exigível, mas
os intérpretes não seriam mais apenas aqueles que detêm
uma habilitação profissional para fazer valer essa exigibilidade, mas todos os envolvidos na tarefa de dar vida à Constituição, o que inclui os cidadãos (Häberle, 2002). Numa
democracia, todos são potencialmente cada vez mais intérpretes da Constituição, sendo variáveis a qualidade, o grau
de conscientização e os diferentes modos e finalidades de
participação na interpretação.
A multiplicação dos intérpretes decorre da necessidade
de expansão quantitativa e aprofundamento qualitativo da
democracia. A participação dos cidadãos na interpretação
da Constituição é tão importante quanto nas eleições, nos
plebiscitos, ou nos processos de formulação e implementação de políticas públicas3. Os cidadãos, os agentes políticos,
a mídia, as entidades da sociedade civil, atuariam, assim,
como forças produtivas da interpretação, como pré-intépretes da Constituição (Mendes, 2002, p. 9).
Esses pré-intérpretes são de múltiplas naturezas, com
múltiplas competências e diferenciada participação na disputa do sentido constitucional. Não nos interessa aqui fazer
uma tipologia dos procedimentos e dos intérpretes constitucionais. Basta assentar que, de uma maneira ou de outra,
conscientemente ou não, nas democracias contemporâneas
deliberativas, os cidadãos participam cada vez mais da interpretação constitucional. Eles não detêm poder coercitivo,
mas detêm dois outros poderes: (a) de influenciar, provocar, informar e criticar a produção da interpretação coercitiva pelo STF, isto é, o poder da influência difusa e (b)
de aplicar sua própria interpretação constitucional em seu
dia a dia até ser essa interpretação confirmada ou revertida
pelo STF, isto é, o poder da interpretação rotineira.
431
3
Sobre a participação dos cidadãos na interpretação da Constituição no processo
de formulação e implementação de políticas públicas, ver Chaves (2012).
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
432
A evidência da participação dos cidadãos como pré-intérpretes da Constituição fica mais palpável quando
admitimos que o STF e os cidadãos brasileiros estão inseridos numa relação, além de jurídica e política, também
comunicativa. Assim, entendemos STF, cidadãos e a sociedade em geral como sujeitos que emitem mensagens, agem
e reagem a mútuos estímulos comunicativos (Ferraz Júnior,
1990). A interpretação constitucional, à medida que sentidos antagônicos da Constituição estão em disputa, é quase
sempre uma arena comunicativa.
Partindo do argumento da intensificação das relações
comunicativas entre STF e cidadãos, entre STF e opinião
pública, buscamos explorar fatores potencialmente explicativos desse fenômeno e mensurar em que medida a sociedade
conhece o STF, acompanha e legitima a atuação do tribunal.
Para isso, o artigo se divide em duas partes distintas.
Na primeira, com um viés histórico qualitativo, identificamos os fatores que poderiam ajudar a explicar a recente
intensificação das relações entre STF e sociedade; trata-se
de fatores de estratégias comunicativas, que se alocam na
interseção entre a dogmática e sociologia jurídicas, da ciência política e da comunicação.
Na segunda, com um viés quantitativo, indagamos
como a população brasileira percebe e reage à presença do
STF no cenário público nacional. Para discutir essa questão nos valemos de dois levantamentos quantitativos de
opinião pública (surveys). O primeiro, de âmbito nacional,
entrevistou 1.400 brasileiros que têm a partir de 18 anos
de idade, com foco no conhecimento do STF4. Buscamos
4
Os dados foram coletados em pesquisa realizada pelo CJUS (Centro de Justiça
e Sociedade) da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro,
entre os dias 04 e 20 de fevereiro de 2011. Foram entrevistadas 1.400 pessoas com
idade acima de 18 anos nas áreas urbanas de todas as regiões do país. A amostra
seguiu o perfil da população brasileira, de acordo com gênero, idade, classe socioeconômica, e situação de trabalho (população economicamente ativa ou não),
conforme os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD 2009).
Disponível em: http://direitorio.fgv.br/cjus/projetosandamento/stf-op.
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
mensurar o quanto a população conhece o STF e o que
sabe sobre o tribunal em termos de suas funções.
O segundo levantamento consistiu em 1.200 entrevistas com usuários da internet e leitores de jornais e de
portais de notícia (aos quais nos referiremos tão somente como internautas), nas cidades do Rio de Janeiro e de
São Paulo, com foco na percepção desse público acerca do
Poder Judiciário e das decisões do STF sobre a liberdade
concedida a Cesare Battisti, o reconhecimento da união
homoafetiva e a autorização para a realização da “marcha
da maconha”5.
Nosso interesse em relação a esse segundo survey está
em entender a legitimidade que o público que acompanha
o noticiário político6 atribui à participação do STF no processo político ao decidir acerca de questões polêmicas.
Como argumentam diversos autores, entre os quais
Murphy e Tanenhaus (1968), a posse de legitimidade pública é central para a manutenção do poder dos tribunais.
Aplicando os pressupostos da teoria da legitimidade aos tribunais, esses autores argumentam que o Judiciário é excepcionalmente dependente de legitimidade pública, porque
tem poucos meios institucionais para assegurar o cumpri-
433
5
Os dados foram coletados em pesquisa realizada pelo CJUS em parceria com a
Hello Research. A pesquisa foi realizada entre os dias 14 e 20 de julho de 2011.
Foram entrevistados 1.200 cariocas e paulistas, acima de 18 anos, seguindo o perfil
de distribuição por gênero e classe socioeconômica nas duas cidades, de acordo
com dados do IBGE (Censo 2000 e PNAD 2009). Metade deste contingente de
entrevistas foi realizada face a face, em pontos de fluxo das duas cidades. A outra
metade foi feita com pesquisa digital, via internet.
6
A opção por focar no público que procura se informar e acompanha o noticiário político semanalmente se deu à medida que nosso interesse não era mensurar
conhecimento, mas sim entender a reação do público à participação do STF na
esfera política. Assim, o público alvo é aquele que acompanha minimamente os
acontecimentos políticos do país. E o critério adotado para determinar tal público
foi o tempo de navegação na internet (ao menos 2 horas semanais) e de leitura do
noticiário político, de blogues ou de páginas eletrônicas sobre política (ao menos
uma vez por semana). Embora limitada a duas capitais do país, a pesquisa fornece
indícios relevantes sobre o posicionamento do brasileiro acerca da participação do
STF na esfera política.
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
mento de suas decisões7. E, uma vez que goze de legitimidade, há a presunção de que suas decisões, mesmo as impopulares, serão aceitas e respeitadas. Os tribunais também
dependem de legitimidade pública para não serem tomados como mais um entre outros poderes políticos; tal legitimidade permite aos cidadãos distinguir entre as decisões
dos ministros da Suprema Corte e as decisões dos outros
poderes políticos (Easton, 1975; Gibson e Caldeira, 1992).
Uma relação comunicativa
434
A relação comunicativa do STF com os cidadãos é um processo contínuo. Para fins analíticos, pode iniciar, por exemplo, quando o STF, como sujeito-emissor, envia mensagens
aos cidadãos que, como sujeitos-receptores, as captam. Em
seguida, os cidadãos reagem, enviam mensagens e passam
a ser sujeitos emissores. O STF capta tais mensagens como
sujeito receptor. Não se trata, pois, de relação de mão única, nem estática. A relação comunicativa é um processo
interativo e temporal, isto é, histórico, de múltiplas ações e
reações, sequenciais ou concomitantes. Um diálogo de perguntas e respostas, como preferiria Ferraz Júnior (2010).
Figura 1
Processo da Relação Comunicativa
Mensagem ação
Decisão jurisdicional
Supremo Tribunal
Federal
Sociedade
cidadãos
Sujeito Emissor/receptor
Sujeito Emissor/receptor
Mensagem ação
Legitimação pública
7
Como afirma Hamilton et al. (2003, p.470) “o Judiciário não tem influência nem
sobre a espada nem sobre a bolsa”.
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
A mensagem-ação do STF e a mensagem-reação dos
cidadãos podem ser de diversas naturezas. A mais importante mensagem-ação do STF, embora não única, é a decisão jurisdicional. A mais importante mensagem-reação dos
cidadãos, embora não única, é a legitimação da decisão.
Como temos observado, por exemplo, no recente julgamento acerca das cotas raciais ou da lei de ficha limpa,
as múltiplas reações dos cidadãos podem vir a influenciar
o próprio STF em suas futuras decisões jurisdicionais. A
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 342/2009 de
autoria do deputado Flávio Dino (PCdoB/MA), a qual
propõe novos critérios de escolha de futuros ministros e
nova duração para seus mandatos, e a PEC 3/201 de autoria do deputado Nazareno Fonteneles (PT/PI), a qual
propõe a limitação dos efeitos da própria interpretação
constitucional – isto é, da própria competência do STF
–, são alguns exemplos de como as múltiplas reações dos
cidadãos podem vir também a influenciar outros intérpretes da Constituição e a estimular os legisladores a mudá-la.
De ambas as maneiras, as mensagem-reação dos cidadãos
afetam a legitimação pública do STF8.
As mensagens originadas do STF decorrem dos múltiplos papéis que ele pode exercer na relação comunicativa.
Enumeramos quatro principais para nosso argumento.
Primeiro, o sujeito emissor é o ministro do STF enquanto agente político que produz decisões jurisdicionais. Essas
decisões são produzidas e comunicadas dentro dos autos,
no exercício e dentro dos limites legais, e podem ser escritas ou orais: liminares, votos, despachos etc.
Segundo, o sujeito emissor é o STF enquanto instituição (em geral o plenário), que também toma decisões e
envia mensagens diferentes daquelas dos votos individuais dos ministros, normalmente, como resultado de uma
435
Página eletrônica da Câmara Federal.
8
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
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votação no exercício de seu dever constitucional como
instituição e também dentro dos autos.
Em ambos os casos, as mensagens emitidas são de conteúdo técnico-jurídico e estritamente reguladas, inclusive quanto à forma, periodicidade, linguagem, publicidade e mesmo
suporte comunicativo, a saber, o Diário Oficial da União.
Terceiro, o sujeito emissor é o ministro, que atua
profissionalmente, mas fora dos autos, ao enviar múltiplas mensagens técnico-interpretativas, doutrinárias e
argumentativas por meio de livros, revistas, artigos, opiniões, palestras e conferências.
Por fim, o sujeito emissor é o ministro que atua como
indivíduo ao expressar opiniões – jurídicas ou não –, mas agora fora dos autos. Lembremos que a Constituição exige, além
do notável saber jurídico, reputação ilibada. E essa reputação – que deve ser entendida como um dever a ser cumprido
antes, durante e depois de ele tomar posse do mandato de
ministro do STF –, se consubstancia em atos, fatos e imagens,
captadas principalmente pela cobertura da mídia do dia a
dia da Corte e se expressa no interesse por seus ministros.
Diz respeito, por exemplo, à personalidade individual, sua
formação, sua estética, sua vida privada que se torna pública,
suas relações sociais, suas preferências intelectuais e políticas
– sendo que a atividade política propriamente dita é proibida
pela própria Constituição (Falcão, 1998).
Figura 2
Sujeitos da Relação Comunicativa
Ministro como decisor individual
(jurisdicional)
Profissionais jurídicos
Ministro como ator individual
(cidadão)
Beneficiados diretos ou indiretos
Ministro como jurista
(técnico)
Opinião pública
Supremo como colegiado
Eleitores
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
As mensagens fora dos autos atuam mais no terreno das
emoções e percepções do que da técnica e do entendimento. As manifestações emocionais são inevitáveis e cada vez
mais frequentes9. Muitas vezes, sequer depende da intenção e vontade do ministro emissor se seu comportamento
produz reações, interfere na resposta, nas percepções e atitudes de confiança-desconfiança por parte dos cidadãos e,
assim, incide no processo de legitimação dos ministros e da
própria instituição.
Por sua vez, os cidadãos, como receptores das mensagens do STF, também enviam múltiplas e diferenciadas
mensagens de acordo com os papéis que exercem (estes
nem sempre separáveis a não ser para fins analíticos) e
podem ser basicamente: (a) as partes do processo jurisdicional, elencados pela lei; (b) os profissionais jurídicos; (c)
os beneficiados indiretamente pela decisão jurisdicional, os
cidadãos difusos que se enquadrariam nas hipóteses decisórias mesmo sem ter participado da lide; (d) os eleitores
capazes de pressionar o Congresso em matérias constitucionais; (e) o conjunto da opinião pública.
Este é nosso arcabouço analítico, a partir daí tratamos
apenas dos fatores potencialmente explicativos da recente intensificação comunicativa entre STF e sociedade. São
múltiplos esses fatores que produziram um novo comportamento do STF, enquanto sujeito emissor. Além dos já mencionados pronunciamentos e comportamento dos ministros
fora dos autos, temos a criação da TV Justiça, a implantação
da agenda temática e a criação do CNJ.
437
São exemplos disso casos como a discussão entre os ministros Marco Aurélio
Mello e Joaquim Barbosa, no julgamento de um habeas corpus decorrente da chamada “operação Anaconda” (Consultor Jurídico, 2008); entre os ministros Gilmar
Mendes e Joaquim Barbosa ao discordarem dos argumentos utilizados ao julgar
dois embargos de declaração sobre a modulação de efeitos de ADINs decididas
pelo tribunal (Consultor Jurídico, 2009) e entre os ministros Joaquim Barbosa e
Cezar Peluso que trocaram críticas em entrevistas concedidas a veículos de comunicação de massa (Consultor Jurídico, 2012).
9
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Esses fatores alteraram a estratégia comunicativa do
próprio STF com os meios de comunicação de massa. A
nova estratégia não chega a se constituir num ativismo
comunicativo ou midiático, mas pelo menos se distancia
do argumento que o ministro Carlos Thompson Flores,
presidente do STF entre 1977 e 1979, utilizava para justificar “este desconhecido”, ou seja, “a aversão dos ministros
a qualquer tipo de publicidade”. Afirmava, então, o ministro que tal desconhecimento
[...] não deve ser debitado, apenas, a um possível
desinteresse ou descaso dos juristas e historiadores pátrios,
tendo como consequência a escassa literatura sobre o órgão
máximo da Justiça brasileira; grande parcela cabe, também,
à própria Corte, em razão das características que pautaram,
sempre, a atividade de seus ministros, avessos a qualquer
tipo de publicidade (Flores apud Lens, 2011, p. 22).
438
Um movimento contrário a essa aversão à publicidade, que era então dada como natural e até necessária à
liturgia do cargo, tentava estimular em um dos pré-intérpretes – a mídia – uma maior difusão das decisões judiciais votadas no plenário e nas turmas do STF, movimento este que se intensificou na década de 1980. O ministro
Xavier de Albuquerque, durante sua presidência no tribunal, na década de 1980, chegou a convocar um encontro com proprietários de jornais e jornalistas, a fim de
estabelecer um acordo que visava aproximar o STF da
opinião pública (Oliveira, 2012). O ministro dizia, nessa
convocação, que a nação não poderia mais suportar o distanciamento existente entre a opinião pública e o Poder
Judiciário e propunha resgatar o STF “das páginas mais
modestas da imprensa para as mais destacadas e condizentes com a sua importância institucional”. (Albuquerque apud Oliveira, 2012, p. 128).
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Um representante dos jornalistas se referiu ao encontro
como um “marco histórico e necessário: a aproximação do
STF com a Nação e com o povo brasileiro” (Oliveira, 2012,
p. 128). O ministro Xavier de Albuquerque estaria convidando a imprensa a preencher o espaço vazio provocado
pelo distanciamento entre o STF e o cidadão, distanciamento em parte dado pela ausência de um vínculo direto de
representatividade entre estes e aqueles.
O Estado de S. Paulo publicou em 14 de abril de 1982
notícia que elogiava essa iniciativa:
A pretensão do ministro Xavier de Albuquerque não
consiste em transformar a atividade do Tribunal em
manchete jornalística; o que lhe parece oportuno é prestar
contas do funcionamento da Corte [...] a fim de que o povo
se aperceba da importância de que se revestem as decisões
votadas no plenário e nas turmas do STF – importância que
cresce de significação quando se busca reconstruir a ordem
jurídica demolida em dez anos de governos autoritários, que
se autoconferiram o poder de baixar atos de exceção cuja
apreciação foi vedada ao Judiciário, derrogadas as garantias
constitucionais que distinguem em toda parte o exercício da
magistratura (apud Oliveira 2012, p.128).
439
A TV Justiça
Um momento decisivo desse movimento de aproximação
entre STF e mídia foi a criação da TV Justiça (Lei 10.461,
de 17 de maio de 2002), por iniciativa do próprio tribunal.
O canal, que iniciou suas atividades em agosto daquele mesmo ano, por decisão pessoal do então presidente ministro
Marco Aurélio Mello, transmite ao vivo as sessões do plenário
do STF e revolucionou as relações do STF não somente com
a mídia, mas, por meio dela, com a própria opinião pública.
Além de noticiar as ações que dão entrada no STF, de
ter uma programação voltada à explicação de questões traLua Nova, São Paulo, 87: 429-469, 2012
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
tadas nos principais processos, de divulgar o currículo e as
atividades dos ministros, a TV Justiça transmite também
programas de interesse jurídico-social e aulas de Direito. O
canal é administrado pela secretaria de comunicação social
do STF, com o auxílio de um conselho consultivo, e tem
como objetivo principal, de acordo com texto veiculado
em sua página eletrônica, “ser um espaço de comunicação
e aproximação entre os cidadãos e o Poder Judiciário, o
Ministério Público, a Defensoria Pública e a Advocacia”.
Sobre a necessidade de dar maior publicidade às atividades do STF, o ministro Marco Aurélio de Mello assim
se posicionou:
440
Pedagogicamente, a Carta preceitua, no inciso IX do artigo
93, que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário
serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob
pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o
exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias
partes e a seus advogados, ou somente a estes”, norma da
qual se extrai ser regra a publicidade desses procedimentos,
correndo à conta da exceção a reserva do conhecimento e
existência dos atos processuais. Essa publicidade, porém, não
é apenas aquela oficial, relacionada com a circunstância de os
julgamentos serem públicos e acessíveis a todos, nem aquela
ligada à publicação dos atos no Diário da Justiça; abrange
também a divulgação, de maneira geral, de notícias sobre
atos e julgamentos não cobertos pelo segredo de justiça,
sobressaindo, assim, o relevante papel das estações de rádio,
da televisão e dos jornais. Sim, o acesso de toda a população
brasileira aos trabalhos do Judiciário, Poder ao qual cumpre
precipuamente preservar a paz social e a segurança jurídica,
pressupõe a atuação da mídia. Contudo, diante de eventuais
dificuldades ocasionadas pelo inevitável jargão que acompanha
todas as profissões, é imprescindível, para que esse objetivo
seja atingido, que os operadores do Direito – magistrados,
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membros do Ministério Público, defensores públicos e
advogados – coloquem-se como interlocutores privilegiados, já
que dominam as matérias, muitas vezes extremamente técnicas
e por isso áridas ao leigo, com a finalidade de explicitar, em
verdadeira e impositiva prestação de contas, os acontecimentos
forenses, a valia dos atos que compõem a rotina da Justiça
nacional. É tempo de aproximar-se não o povo do Judiciário,
mas este, daquele, o que só se concretizará, efetivamente, com
a total transparência do que vem sendo realizado neste Poder
(Mello, 2001, p. 4).
Lemos (2005) nota que essa estratégia é bem diferente daquela adotada pela Suprema Corte norte-americana,
uma vez que esta busca manter um maior distanciamento
da mídia. As sessões em que os justices deliberam não são
abertas ao público, por exemplo. Mas esse distanciamento
não é absoluto, pois, como a maior parte das questões com
as quais lidam as supremas cortes são complexas e muito
técnicas, o público depende em grande parte da mídia para
compreender essas decisões, que traduz o jargão jurídico
para a linguagem comum. Assim, o sucesso da comunicação
das cortes com o público, passa primeiro pela relação destas
com a mídia (Staton, 2010). Staton (2004) constata que, no
ano de 2004, mais de 70% dos tribunais constitucionais na
Europa e nas Américas produziam comunicados de imprensa em que anunciavam resoluções-chave jurisprudenciais10.
441
10
Segundo Staton (2004), dos países analisados, os que produzem comunicados
de imprensa são: Albânia, Áustria, Azerbaijão, Bielorrússia, Bolívia, BósniaHerzegovina, Brasil, Canadá, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, França,
Alemanha, Honduras, Hungria, México, Paraguai, Peru, República Dominicana,
Romênia, Eslovênia, África do Sul, e Estados Unidos. Além desses países, a Corte
Europeia de Direitos Humanos, Corte Interamericana de Direitos Humanos
e Corte Internacional de Justiça também produzem comunicados. Os que não
produzem são: Argentina, Chile, Croácia, República Checa, Espanha, Irlanda,
Itália, Panamá, Portugal e Eslováquia. Com relação a Bulgária, Dinamarca,
Estônia, Islândia, Israel, Polônia, Rússia e Turquia, o autor não conseguiu levantar
informações suficientes para classificar em um dos grupos.
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A produção de informação para a mídia favorece a circulação e recepção, pelo público em geral, das decisões das
supremas cortes.
O STF, além de produzir comunicados de imprensa,
disponibiliza, na página eletrônica do tribunal, notícias e
informações voltadas para o grande público, além de possuir perfis em redes sociais como twitter e veicular decisões
via TV Justiça e Rádio Justiça.
A agenda temática
442
Outro ponto que intensificou recentemente a comunicação
entre STF e sociedade foi a organização da agenda temática. Com a Constituição de l988 e o término da função
do Ministério Público como gatekeeper do STF, foi ampliado, por meio de ações diretas de inconstitucionalidade, o
acesso a esse tribunal. Com isso, a sociedade civil organizada passou a ter voz no STF. Logo no início da década de
1990, o ministro Sepúlveda Pertence já afirmava a mudança
da situação do tribunal em comparação aos anos da década
de 1960. “Estamos cada vez mais longe da imagem de bons
velhinhos do Supremo” (Pertence apud Oliveira, 2012, p.
143). Nessa direção, afirmava-se em matéria veiculada em O
Estado de S. Paulo, em 1990:
O fato de estar julgando ações de inconstitucionalidade
movidas por diferentes setores da sociedade faz com que
os ministros, segundo Pertence, sintam-se mais por dentro
do cotidiano do país. O STF já declarou inconstitucional,
depois da posse de Collor: – a MP 190, que suspendia
os aumentos salariais em dissídios coletivos, – o decreto
99.300, que reduzia os salários dos funcionários públicos
em disponibilidade e suspendeu, na última quarta-feira, o
recesso dos parlamentares, impedindo a decisão do senador
Nelson Carneiro, de devolver a LDO ao governo, sem
aprovação do Legislativo (apud Oliveira, 2012, p. 143-4).
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
O STF foi progressivamente ganhando relevância no
cenário político nacional, o que justificou até mesmo a utilização do termo “supremocracia”, por Oscar Vilhena Vieira,
para referir-se à autoridade do tribunal em relação às
demais instâncias do Judiciário e em detrimento dos demais
poderes da República.
É difícil pensar um tema relevante da vida política
contemporânea que não tenha reclamado ou venha a
exigir a intervenção do Supremo Tribunal Federal. Já foram
decididas, ou encontram-se na agenda do Tribunal, questões
como: pesquisa com células-tronco, quotas nas universidades,
desarmamento, aborto (anencéfalos), demarcação de terras
indígenas, reforma agrária, distribuição de medicamentos,
lei de imprensa, lei de crimes hediondos, poder da polícia de
algemar, direito de greve, etc (Vieira, 2008, p. 451).
Essa relevância qualitativa tem o suporte dos dados
quantitativos. Como demonstra Falcão et al. (2011) 11, em
1988, a quantidade anual de processos era de 10.096 e,
em 2009, esse número saltou para 76.090.
Para entendermos a relevância da pauta temática temos
que levar em conta que o Judiciário é poder reativo: só pode
entrar em ação e decidir sobre determinado tema quando
acionado pelas partes. Mas, uma vez que determinada questão chega até o STF, quando entra na pauta para ser julgada? Como o STF decide o que e quando julgar, ou seja,
como a pauta das sessões é organizada e decidida? Quais
os critérios que determinam a entrada ou não de um processo na pauta de julgamento? Essa questão tem suscitado
443
11
Falcão et al. (2011, p. 22) dividem os processos em três tipos de competência,
em três personas do STF: constitucional, ordinária e recursal. Em 1988, havia
4.721 processos na corte recursal, 5.310 na corte ordinária e 65 na constitucional. Em 2009, a distribuição era de 9.880 na corte recursal, 14.557 na ordinária
e 1.653 na constitucional.
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
444
diversos questionamentos e debates12, visto que mais do que
o eventual impacto comunicativo, o poder de agenda, de
definir a pauta, é um dos principais momentos de exercício
do poder (Abramovay, 2012).
Esse poder de pautar é dividido entre relator e presidente do STF. Dita o regimento interno do tribunal que o
relator do processo solicite ao presidente data de julgamento (art. 21, seção X). De acordo com o artigo 13, III do regimento, é da competência do presidente do STF “dirigir-lhe
os trabalhos e presidir-lhe as sessões plenárias, cumprindo e
fazendo cumprir este Regimento” (STF, 2012, p. 27).
Assim, à medida que os ministros finalizam suas relatorias, enviam-nas para a secretaria, que as coloca em pauta. Às vezes, por ordem de chegada. Outras vezes um ou
outro ministro, ou a própria Presidência, a pedido de uma
ou outra parte, pede prioridade. Às vezes, usa-se o critério
legal de prioridades, como nos casos previstos no artigo 145
do regimento: habeas corpus e extradição, por exemplo 13.
Outras vezes, o próprio Poder Executivo, ao avaliar sobretudo as consequências de planos econômicos e de decisões
de maior impacto financeiro para o Tesouro Nacional, faz
chegar formal ou informalmente à Presidência do tribunal
as eventuais consequências jurídicas e políticas de se apressar ou de se retardar um julgamento.
Até recentemente, na maior parte das vezes, inexistia
maior preocupação com a eventual conveniência e oportunidade da decisão, com o eventual timing político da deci12
Sobre o tema, ver Dimoulis e Lunardi (2012). A principal crítica desses autores
é a de que “na atualidade, o regimento interno do STF e a legislação não estabelecem prazo vinculativo: o relator e a presidência do STF exercem o poder de
determinar a pauta conforme critérios pessoais, não explicitados e imprevisíveis”.
13
“Art. 145. Terão prioridade, no julgamento do Plenário, observados os arts. 128
a 130 e 138: I – os habeas corpus; II – os pedidos de extradição; III – as causas criminais e, dentre estas, as de réu preso; IV – os conflitos de jurisdição; V – os recursos
oriundos do Tribunal Superior Eleitoral; VI – os mandados de segurança; VII – as
reclamações; VIII – as representações2; IX – os pedidos de avocação e as causas
avocadas” (STF, 2012, p. 101).
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
são do STF, ou com o impacto da interpretação constitucional além das consequências nas partes processualmente
envolvidas. A agenda era uma decisão discricionária da Presidência, que detém ampla margem de liberdade. Esta não
era exercida de maneira estratégica e parece ter permanecido como rotina burocrática até a gestão do ministro Nelson
Jobim (2004-2006), que modificou esta dinâmica. Normalmente, a inclusão na pauta para julgamento era decidida
pela secretaria da Presidência, sem um critério pré-definido, ou então pela relevância das teses jurídicas em questão, a pedido de um ou outro advogado ou ministro. Jobim
começou a utilizar outro critério: selecionar para integrar
a pauta da sessão, dentre os processos já conclusos para
julgamento na secretaria, aqueles que corresponderiam ao
momento político-jurídico, sendo que teriam prioridade os
casos em que houvesse maior expectativa ou demanda da
opinião pública. A partir daí, os sucessivos presidentes buscaram maior sintonia entre agenda do STF e a agenda da
opinião pública.
O relatório “Fortalecendo o sistema das Nações Unidas: as Nações Unidas e a sociedade civil”, coordenado por
Fernando Henrique Cardoso, inicia sublinhando a importância da opinião publica para as decisões dos governos no
século XXI: “A opinião pública tornou-se um fator chave
influenciando ações e políticas governamentais e intergovernamentais” (ONU, 2004). Esse fenômeno é inevitável
e decorre do aprofundamento em todo o mundo tanto da
democracia deliberativa local quanto da expansão global.
Com isso, temas de interesse direto da cidadania ganharam
um novo incentivo na pauta do STF, o que contribuiu ainda
mais para intensificar as relações comunicativas do tribunal
com os cidadãos14.
445
14
Nesse sentido, a iniciativa do ministro Nelson Jobim abriu caminho para maior
participação da opinião pública na interpretação constitucional.
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
Ainda no que se refere à agenda temática, mais recentemente, em 2012, o ex-presidente do STF, o ministro Ayres
Britto, causou controvérsia ao revelar seu desejo de julgar
semanalmente um caso relevante até a data de sua aposentadoria no tribunal. Um dos ministros teria dito, segundo
a Folha de S. Paulo15 que “não é prudente colocar na pauta
uma final de Copa por semana”.
O Conselho Nacional de Justiça
446
Para fechar esta primeira parte, não podemos deixar de mencionar um fator que indiretamente intensifica a comunicação do STF com a opinião pública: a criação do CNJ e a consequente ascensão ao STF das demandas por moralidade e
eficiência na administração da justiça. Explicaremos melhor:
Antes da criação do CNJ, as questões concernentes à
administração judicial não costumavam chegar ao STF e,
quando chegavam, diziam respeito a uma só causa e a um
só tribunal, isto é, elas só chegavam ao STF como questões
individualizadas, de interesse de um juiz, de um cidadão
ou de um tribunal. Agora, chegam como questões sobre a
administração judicial enquanto política pública.
Antes, a repercussão, não somente jurídica, mas também comunicativa ou midiática, da decisão do Supremo era
restrita e de interesse apenas das partes. Mas, com o CNJ, o
STF ganhou competência constitucional recursal para rever
as normas que regulam o sistema de administração judicial
em seu todo, como, por exemplo, normas que estabeleceram teto para os salários dos juízes, acerca da proibição de
nepotismo, de controle cotidiano da moralidade dos tribunais e dos magistrados. Essas questões são hoje de grande
interesse da opinião publica e de crescente impacto político
e orçamentário.
15
Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/46766-stf-resiste-a-pressa-de-ayres-no-mensalao.shtml.
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
Embora não tenha “inundado” o STF com recursos, o
CNJ deu maior visibilidade à presença do STF na opinião
pública como “decisor último” e gestor do sistema de administração da justiça estatal (Falcão et al., 2011)16.
Essa visibilidade chegou a um momento culminante
quando das discussões acerca da competência concorrente do CNJ para investigar juízes17. Essa discussão teve
grande repercussão na mídia e ganhou até mesmo status
de trending topic em redes sociais (Falcão, 2011) – mais um
indício da intensificação da relação comunicativa entre
tribunal e cidadãos, num movimento de aproximação.
Esses três recentes fatores – TV justiça, agenda temática, e
Conselho Nacional de Justiça –, intencionalmente ou não, acabaram por constituir uma nova e ampliada comunicação entre
o STF e a sociedade, entre seus ministros, a mídia e cidadãos.
Os brasileiros e o conhecimento do STF
Sobre a intensificação das relações comunicativas entre STF e
o cidadãos, eis nossa primeira pergunta: quanto os brasileiros
conhecem sobre o STF? Quando se faz essa indagação uma
preocupação é pensar como mensurar tal conhecimento.
Há uma crítica aos estudos que abordam o conhecimento
que as pessoas têm a respeito das altas cortes a partir de questões abertas acerca da lembrança de fatos e de dados específicos18. Gibson e Caldeira (2009), por exemplo, concluíram
que questões abertas subestimam a extensão em que pessoas
comuns conhecem a Suprema Corte norte-americana.
447
16
“[...] de 2005 a 2009, o STF recebeu um número relativamente pequeno de casos envolvendo o CNJ: 485, ou seja, apenas 0,1% das 420.975 ações que chegaram
ao Supremo neste período” (Falcão et al., 2012, p. 52). Outro dado importante é
que, entre 2005 e 2011, foram apenas 32 Ações Diretas de Inconstitucionalidade
(ADI) nas quais o CNJ era o requerido.
17
ADI 4.638, ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) contra
Resolução 135 do Conselho Nacional de Justiça, no que se refere à uniformização
de normas relativas ao procedimento administrativo disciplinar aplicável aos magistrados.
18
Ver, por exemplo, Gibson e Caldeira (2009, p. 430).
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
448
Neste estudo procuramos, porém, tratar o conhecimento a respeito do STF a partir de uma estratégia mista de pesquisa, que utiliza questões fechadas e abertas – sendo que,
nestas últimas, tivemos o cuidado de abordar o conteúdo
do que os entrevistados sabem sobre a instituição e não fatos
e dados específicos que lembram.
Ao serem perguntados se conheciam ou já tinham
ouvido falar sobre o STF, a maioria dos entrevistados respondeu afirmativamente à questão. Sendo que, quanto
mais alta a escolaridade, a renda e a classe socioeconômica, maior o conhecimento declarado. Os homens também
tendem a conhecer mais o tribunal do que as mulheres,
e os moradores dos grandes centros urbanos, um pouco
mais que os moradores das localidades do interior.
Mas ter ouvido falar e saber da existência do STF não
implica necessariamente a aproximação que intencionava o
ministro Xavier de Albuquerque na década de 1980, no sentido de que a população se apercebesse da importância das
decisões do tribunal. Então, para os brasileiros que afirmaram
conhecer o STF, perguntamos se eles saberiam dizer o que faz
esse tribunal, ou seja, qual é a função dessa instituição.
Gráfico 2
Percentual de entrevistados que declarou conhecer ou
já ter ouvido falar do Supremo Tribunal Federal
120
69
65
71
67
60
96
87
80
77
69
60
58
46
47
E
74
D
80
100
94
100
40
TotalGênero
Local
Escolaridade
Renda
C
B
A
Alta
Média
Baixa
Alta
Média
Baixa
Interior
Capital/RM
Fem
0
Masc
20
Classe
Fonte: Pesquisa CJUS/ População Nacional. Base: 1.400 entrevistas (total)
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
Mais da metade dos entrevistados não soube responder a essa questão. Com isso, apesar da maioria dos brasileiros já ter ouvido falar do STF (69%), somente uma
minoria deles (45% dos 69% que já ouviram falar, ou seja,
cerca de 30% do total de entrevistados), de fato, tem ideia
do que é e o que faz o STF. Quanto maior a escolaridade,
a classe socioeconômica e a renda, maior o conhecimento dessas funções. Há também uma grande diferença de
gênero: a maioria dos homens soube citar alguma função
do tribunal, o que não ocorreu entre a maioria das mulheres entrevistadas.
Considerando apenas os entrevistados que declararam conhecer o STF, a função mais citada foi a de freio
e contrapeso (checks and balances): 19% dos entrevistados
apontaram que cabe ao STF controlar e julgar os atos do
Legislativo e Executivo19. A segunda função mais mencionada foi a de última instância do Poder Judiciário, lembrada por 16% dos entrevistados. E, em terceiro lugar, sua
função de revisão judicial (judicial review), com 10% dos
entrevistados declarando que a principal função do tribunal é decidir se as leis são válidas e estão de acordo com
a Constituição. Essas respostas constituem na verdade a
essência da interpretação constitucional.
449
É importante pontuar que as respostas à pergunta foram registradas de forma aberta, em seguida, foram agrupadas de acordo com a divisão em três funções: (1) Controla/fiscaliza atos do Legislativo e do Executivo; (2) É a última
instância do Judiciário; (3) Julga a constitucionalidade das leis/decide se leis
são válidas. A vasta maioria citou apenas uma função, sendo que os poucos
entrevistados que citaram mais de uma função foram contabilizados de acordo
com a primeira menção.
19
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
Tabela 1
Conhecimento sobre o que o Supremo Tribunal Federal faz, ou seja, qual é a função dele (resposta espontânea)
Masc
16%
Fem
12%
15%
Baixa
11%
15%
19%
Média
29%
16%
25%
28%
Alta
65%
7%
11%
16%
Baixa
47%
12%
19%
21%
Média
-
46%
31%
23%
Alta
16%
16%
40%
28%
A
40%
12%
23%
24%
B
59%
10%
13%
18%
C
74%
6%
7%
9%
D
88%
-
-
12%
E
Classe
21%
11%
7%
54%
Renda
19%
20%
9%
65%
Escolaridade
Controla/
fiscaliza atos do
Leg. e do Exec.
16%
11%
63%
Gênero
É a última
instância do
Judiciário
10%
46%
Total
Julga contitucionalidade das leis
56%
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Não sabe
Fonte: Pesquisa CJUS/ População Nacional. Base: 964 entrevistas (conhecem ou já ouviram falar no STF)
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
Para os entrevistados que disseram conhecer o STF, perguntamos ainda o quanto confiam no tribunal. As pessoas
de escolaridade e renda alta, pertencentes à classe A, são
as que mais confiam no tribunal20. Também os entrevistados
que conhecem alguma função ou atividade da instituição
(ou seja, sabem o que o STF faz) confiam mais no tribunal
do que aqueles que não conhecem. Ou seja, quem conhece
o STF, confia mais nele.
Gráfico 3
Confiança dos entrevistados no Supremo Tribunal Federal
Confia
Não Confia
31
35
38
31
Não
Sabe
#
4
4
15
28
37
22
27
40
25
34
37
47
40
53
36
30
32
29
27
37
32
32
38
28
27
22
59
56
Total Gênero
Escolaridade
Renda
Classe
25
38
451
Não
22
Sim
31
E
38
D
B
A
41
C
54
Alta
41
Média
36
Baixa
37
50
Alta
35
Média
36
Baixa
40
Fem
38
Masc
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Sabe o que o
STF faz
Fonte: Pesquisa CJUS/ População Nacional. Base: 964 entrevistas (conhecem ou
já ouviram falar no STF)
Esses dados indicam que, apesar do STF continuar sendo “o outro desconhecido” para a maioria da população,
existe sim um percentual significativo de brasileiros que
conhece a instituição e, entre estes que conhecem alguma
função do tribunal, há maior confiança e valorização dele.
20
Os níveis de escolaridade foram classificados da seguinte forma: (a) alta: ensino superior completo ou mais; (b) média: ensino médio completo ou superior
incompleto e (c) baixa: até ensino médio incompleto. Os níveis de renda foram
classificados da seguinte forma: (a) alta: mais de 8 salários mínimos; (b) média:
mais de 2 e até 8 salários mínimos e (c) baixa: até 2 salários mínimos. Para a classificação de classe econômica, utilizamos o Critério Brasil (CCEB) da Associação
Brasileira de Estudos Populacionais (Abep).
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
452
Os dados sugerem que, também no Brasil, é aplicável a conclusão a que chegaram Gibson e Caldeira (2009, p. 437)
acerca da Suprema Corte norte-americana, de que conhecer a corte é valorizá-la (“to know the court is to love it”).
Indica um corpo considerável de conhecimento e pesquisa de diversos países (Estados Unidos, Alemanha, Canadá
e África do sul, por exemplo) que um maior conhecimento
das instituições judiciárias está associado a uma predisposição maior de atribuir legitimidade institucional a elas. E,
falando especificamente da Suprema Corte norte-americana,
Gibson e Caldeira (2011) afirmam que os cidadãos que mais
a conhecem são os mais propensos a apoiá-la. Muitas vezes o
maior conhecimento da instituição está associado com maior
atenção dada a ela e, concomitantemente, com maior exposição aos símbolos legitimadores tipicamente ligados aos tribunais. E esses símbolos implicam aprender que a mais alta
corte é diferente de outras instituições políticas, e, portanto,
muitas vezes mais digna de confiança, respeito e legitimidade para decidir sobre questões de importância na agenda pública do país. Mas, ao mesmo tempo, chamam atenção para o fato de que seria razoável supor que uma maior
exposição ao Judiciário e à Suprema Corte estaria associada
a uma visão mais realista de como funcionam os tribunais
e como decidem os juízes. Atentar para isso seria entender
que os juízes têm poder discricionário quando tomam decisões, que estes fazem muito mais do que aplicar mecanicamente a lei aos fatos, que há sim a influência de seus valores
pessoais nesse processo. Portanto, os juízes não seriam tão
diferentes dos demais atores políticos. Mas os autores concluem que, paradoxalmente, as evidências disponíveis indicam que um maior conhecimento da corte está associado
a uma visão menos realista de como os tribunais realmente funcionam (Gibson e Caldeira, 2011, p. 201). Os autores concluem, assim como em estudos anteriores (Gibson
e Caldeira, 1992; 2009) que o processo de conhecimento da
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
corte é um processo de aprendizagem social em que os cidadãos passam a entender e valorizar o papel desempenhado
pelo Judiciário no sistema político do país.
É importante frisarmos aqui que conhecimento é diferente de experiência – os cidadãos podem conhecer o Judiciário a partir de informações que recebem sobre esse ator
(principalmente através da mídia) e podem conhecer a partir da experiência que têm com o Judiciário, ao utilizarem os
tribunais (seja como autores de ações ou réus em processos).
Estaria também esse processo de aprendizagem em curso
no Brasil? Nesse trabalho, nos limitamos à variável “percepção”: optamos por explorar essa questão a partir da percepção de um público mais bem informado – internautas
que acompanham o noticiário político pelo menos uma vez
por semana, via jornais impressos e/ou blogues e páginas
eletrônicas de notícias. E, considerando que as pessoas nos
grandes centros urbanos tendem também a conhecer o STF
ligeiramente mais que os moradores do interior, elegemos
dois grandes centros urbanos para a pesquisa: Rio de Janeiro e São Paulo, nos quais entrevistamos 1.200.
453
O STF e agenda pública nacional
Como esse público bem informado percebe a presença
do Poder Judiciário em geral, e mais especificamente do
STF, no cenário político brasileiro? A primeira pergunta
aos entrevistados foi se alguma notícia ou acontecimento
envolvendo o Poder Judiciário chamou a atenção deles nos
últimos meses. Do total de entrevistados, 38% afirmaram
não ter visto notícia que tenha chamado sua atenção nesse
tema. Para os que afirmaram terem visto notícia que chamou sua atenção, solicitamos que a descrevesse (pergunta
com resposta espontânea e aberta).
A decisão do STF mais citada foi a que reconheceu a
união estável para casais do mesmo sexo (união homoafetiva), mencionada por 23% dos entrevistados; em seguida,
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
aparece a que concedeu liberdade ao italiano Cesare Battisti,
citada por 13% e, em terceiro lugar, a que autorizou as passeatas conhecidas como “marchas da maconha”, mencionada por 7%.
Quadro 1
Notícia sobre a justiça que mais chamou atenção nos últimos meses
454
Total (N)
% sobre
total
% considerando
apenas os que
declararam ter visto
notícia
União homoafetiva
172
14%
23%
Cesare Batistti
96
8%
13%
Marcha da maconha
53
4%
7%
Caso Palocci
42
4%
6%
Alteração leis do processo penal
35
3%
5%
Caso do goleiro Bruno
34
3%
5%
Greve dos bombeiros
21
2%
3%
Corrupção política
27
2%
4%
Julgamento políticos - ficha limpa
13
1%
2%
Decisões do STF (sem especificar)
12
1%
2%
Corrupção no Judiciário
12
1%
2%
Juízes que não cumprem a lei da união
homoafetiva
11
1%
1%
Caso Pimenta Neves
9
1%
1%
Novo código florestal
7
1%
1%
Morosidade da justiça brasileira
7
1%
1%
Greve na justiça do trabalho
8
1%
1%
Corrupção na polícia
4
0%
1%
Sobre o novo estádio do Corinthians com
verbas públicas
5
0%
1%
Não lembra
125
10%
17%
Não viram notícia
458
38%
-
1200
1200
742
Base (N)
Fonte: Pesquisa CJUS-Hello Research / Internautas.
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Ou seja, as notícias que mais marcaram os entrevistados, no que se refere ao judiciário, foram diretamente relativas à atuação do STF. Note-se que outras notícias foram intensamente veiculadas nessa época, como a
demissão do então ministro Palloci, acusado de corrupção, e o suposto assassinato de Eliza Samudio por Bruno,
goleiro do Flamengo. Considerando também as menções
vagas a decisões recentes da corte, 45% dos entrevistados
citaram casos em que o STF é emissor principal da notícia.
Assim, podemos afirmar que a agenda pública brasileira,
em temas relativos ao Poder Judiciário, vem sendo ditada
preponderantemente pelo STF.
O poder de agendamento da pauta do STF se reflete na
mídia que exerce sobre o leitor grande impacto, ao optar
por noticiar e dar destaque a alguns fatos e não a outros.
De acordo com a teoria de agendamento (agenda setting),
para explicar, por exemplo, porque um caso técnico como
o do italiano Cesare Battisti ganhou tamanha repercussão,
enquanto outros casos do STF – como, por exemplo, a decisão sobre a impossibilidade de estados concederem isenção
ou redução de ICMS, que colocou fim à guerra fiscal, ou
ainda aquela sobre as novas regras para o pagamento de
aviso prévio proporcional a trabalhadores demitidos – não
chamaram a atenção dos entrevistados, teríamos que observar o destaque dado a estes temas pela mídia.
Uma simples pesquisa na página eletrônica de um jornal de grande circulação nacional, a Folha de S. Paulo, entre
janeiro a julho de 201121, ajuda a lançar um pouco de luz
sobre o assunto. A busca pelos termos de pesquisa listados
abaixo, associados a STF, resultaram nos seguintes números:
Cesare Battisti: 130 notícias; união homoafetiva: 40 notícias;
marcha da maconha: 40 notícias; aviso prévio proporcional:
7 notícias; ICMS: 5 notícias.
455
Pesquisa realizada no dia 19/03/2012.
21
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
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Os três temas de maior destaque na fala dos entrevistados
foram os que resultaram em maior número de notícias. É evidente que este é apenas um dado preliminar e parcial, e seria
necessário realizar pesquisa mais ampla e detalhada sobre o
tema, que não é o foco do presente artigo. Aqui chamamos
apenas atenção para a necessidade de considerar os possíveis e
potenciais efeitos entre o poder de agendamento do STF, a correspondente cobertura da mídia e a percepção da população.
Em seguida, solicitamos aos entrevistados que classificassem seu conhecimento e familiaridade com relação às
atividades do STF. Cerca de 57% declararam conhecer bem
ou conhecer um pouco a atuação do tribunal e 43% declararam conhecer só de ouvir falar ou não conhecer nada das
atividades da instituição. Novamente, pessoas de escolaridade, renda e classe econômica mais alta são as mais familiarizadas com o STF.
Depois desse primeiro mapeamento sobre acompanhamento de notícias a respeito do judiciário e da justiça em
geral, entramos no tema de interesse específico da pesquisa,
perguntando aos entrevistados se eles acompanharam ou não
a decisão do STF que reconheceu a união estável para casais
do mesmo sexo (união homoafetiva). A maioria dos entrevistados respondeu afirmativamente – 86%. Sendo que as pessoas com maior escolaridade e renda e as que conhecem o STF
(ou seja, declararam que o conhecem bem ou um pouco)
foram as que mais disseram ter acompanhado essa decisão.
A maioria dos entrevistados declarou que concorda
com essa decisão do STF, sendo que as pessoas de maior
escolaridade e renda tendem a concordar mais do que as de
baixa escolaridade e menor renda. A religião também aparece como fator de distinção: as pessoas que não seguem
uma religião concordam mais com a decisão do que as pessoas que seguem alguma religião. E quem conhece o STF
tende a concordar mais com a decisão do que quem não
conhece. Os mais jovens também concordam mais.
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
Gráfico 4
Nível de conhecimento declarado sobre o STF
TotalGênero
Idade
32
36
8
7
36
11
46
38
25
12
8
10
Tem religiãoClasse
27
41
37
26
3
Renda
45
47
39
15
9
23
5
Alta
8
29
49
11
35
Baixa
10
43
34
Média
11
38
35
33
19
R$9.000 ou +
6
34
40
3
11
R$4.000,01 - R$9.000
9
35
10
Conhece bem
até R$1.000
11
36
43
5
R$1.000,01 - R$4.000
7
39
43
18
C
28
42
38
39
14
AB
9
47
42
16
Conhece um pouco
Sim
0
Masc
20
39
25
50-59
47
40
35
36
13
40-49
36
14
25-29
60
42
14
16
30-39
11
18
Fem
15
80
18-24
100
Conhece de ouvir falar
Não
Não conhece
Escolaridade
Fonte: Pesquisa CJUS-Hello Research /Internautas. Base: 1.200 entrevistas (total)
Indagados sobre a quem deveria caber a decisão em casos
como este, 40% dos entrevistados apontam a própria população, via plebiscito. Na sequência, o mais legitimado para decidir seria o STF, indicado por 24% dos entrevistados. Sendo
que, entre os que conhecem o STF, ele é o mais citado como
principal responsável para esse tipo de decisão (41% das menções para o STF frente a 30% para plebiscito). Não podemos,
pois, afirmar que existe uma percepção social de que o STF
está interferindo com competências do Poder Legislativo.
457
Gráfico 5
Percentual de entrevistados que declarou ter acompanhado
a decisão do Supremo sobre a união homoafetiva
Sim
Não
C
AB
Sim
Não
50-59
40-49
30-39
25-29
18-24
Fem
80
TotalGênero
Idade
85
81
Tem ClasseConhece
religião
bem STF
80
Renda
Alta
83
Baixa
85
84
91
86
Média
87
R$9.000 ou +
87
86
R$4.000,01 - R$9.000
87
R$1.000,01 - R$4.000
85
86
90
até R$1.000
86
88
92
91
91
Masc
94
92
90
88
86
84
82
80
78
76
74
Escolaridade
Fonte: Pesquisa CJUS-Hello Research /Internautas. Base: 1.200 entrevistas (total)
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
Gráfico 6
Concordância dos entrevistados com a decisão do Supremo
de reconhecer a união estável para casais do mesmo sexo
33
33
32
60
56
56
62
18-24
56
Fem
20
Masc
40
62
13
34
53
12
40
49
9
22
68
49
47
Discorda
9
41
50
8
32
10
Não sabe
10
2
28
39
37
60
51
53
C
11
3
Não
38
6
50-59
9
35
4
40-49
80
7
AB
Concorda
100
12
43
7
40
8
28
45
16
6
40
10
23
45
63
69
5
20
76
53
40
53
67
TotalGênero
Idade
Renda
Alta
Baixa
Média
R$9.000 ou +
R$4.000,01 - R$9.000
até R$1.000
Tem ClasseConhece
religião
bem STF
R$1.000,01 - R$4.000
Sim
Sim
Não
30-39
25-29
0
Escolaridade
Fonte: Pesquisa CJUS-Hello Research /Internautas. Base: 1.032 entrevistas (acompanharam decisão sobre união homoafetiva)
458
O terceiro colocado, no que concerne à responsabilidade para este tipo de decisão, é o Legislativo, com 18% das
indicações e, por último, aparece o Executivo, com 11%. Os
dados mostram que, entre os Poderes instituídos, o Judiciário,
via STF, é quem goza de maior legitimidade decisória para
casos com esse teor.
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18
40
Congresso
Nacional
População
(plebiscito)
6
41
18
9
25
Masc
8
40
17
12
24
Fem
8
42
14
12
24
6
42
19
11
21
7
38
16
10
28
6
41
21
11
21
12
37
17
6
28
4
34
22
13
27
8
8
4
30
44 39 42 42
6
19
16 19 16 18
9
6
9
12 11
9
41
Não Sim
23 27 22 21
C
Tem
Conhece
Classe
bem STF
religião
18-24 25-29 30-39 40-49 50-59 Não Sim AB
Idade
13
41
14
16
16
até
R$1.000
7
44
13
10
25
R$1.000,01R$4.000
6
36
24
10
24
2
35
31
2
29
14
40
9
18
20
7
43
16
11
23
3
36
25
6
29
Média Alta
Escolaridade
R$4.000,01- R$9.000,01
Baixa
R$9.000
ou +
Renda
Fonte: Pesquisa CJUS-Hello Research /Internautas. Base: 1.032 entrevistas (acompanharam decisão sobre união homoafetiva)
7
11
Presidencia
da República
Não sabe
24
STF
Total
Gênero
Tabela 2
Opinião dos entrevistados sobre quem deveria ser o responsável pela decisão de
casos como esse, do reconhecimento da união de casais do mesmo sexo
Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
459
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
460
Outra decisão do STF de grande repercussão, ocorrida em 8 de junho de 2011, foi conceder liberdade ao
italiano Cesare Battisti. Perguntamos aos entrevistados
se eles acompanharam ou não essa decisão e 63% responderam afirmativamente22. Há uma diferença expressiva quando se considera o gênero dos entrevistados: os
homens declararam ter acompanhado mais do que as
mulheres. E quanto mais alta a classe socioeconômica, a
renda e a escolaridade, maior a proporção dos que declararam ter acompanhado.
Indagados sobre sua opinião com relação a essa decisão do STF, a grande maioria se declarou contrária, discordando do tribunal. A desaprovação da decisão do STF é
grande entre todos os perfis, de classe, renda e escolaridade, mesmo entre os que conhecem o tribunal.
O STF ratificou decisão anterior do então presidente
Lula, a de negar a extradição de Battisti para a Itália. O
entendimento vencedor foi o de que esse caso era um “ato
de soberania nacional” que não poderia ser revisto pelo
STF. A reprovação da população à decisão do STF pode ser
lida também como uma reprovação à decisão do ex-presidente Lula, sendo ainda um indício de reprovação à recusa
do STF em se posicionar e decidir.
22
Vale notar que caso muito parecido com o de Cesare Battisti ocorreu em 2007,
quando o Supremo julgou pedido de extradição do padre colombiano Olivério
Medina, considerado ex-integrante das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia), e julgou o processo extinto, concedendo assim liberdade a Medina.
Na página eletrônica da Folha de São Paulo, em uma busca por notícias na qual se
relacionou STF a Olivério Medina, no intervalo de tempo correspondente ao ano
do julgamento (janeiro a dezembro de 2007), encontraram-se apenas 2 notícias,
muito menos que as 130 encontradas em uma busca na qual se relacionou o STF
a Cesare Battisti (janeiro a julho de 2011), na mesma página.
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
Gráfico 7
Percentual de entrevistados que declarou ter acompanhado a
decisão do Supremo sobre a liberdade a Cesare Battisti
86
55
66
63
63
66
60
82
63
59
60
48
R$9.000 ou +
R$4.000,01 - R$9.000
até R$1.000
Tem ClasseConhece
religião
bem STF
R$1.000,01 - R$4.000
Sim
C
Não
AB
Sim
Não
50-59
40-49
30-39
25-29
Fem
18-24
43
TotalGênero
Idade
77
68
Renda
Alta
55
62
Baixa
64
Média
63
74
71
Masc
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Escolaridade
Fonte: Pesquisa CJUS-Hello Research /Internautas. Base: 1.200 entrevistas (total)
Gráfico 8
Concordância dos entrevistados com a decisão do
Supremo de conceder liberdade ao italiano Cesare Battisti
TotalGênero
Idade
23
19
21
20
18
71
56
74
33
16
19
27
20
Tem ClasseConhece
religião
bem STF
Renda
68
10
12
67
64
20
25
Alta
33
67
13
Média
67
60
21
Baixa
65
17
R$9.000 ou +
67
10
R$4.000,01 - R$9.000
20
70
7
16
até R$1.000
19
58
7
R$1.000,01 - R$4.000
17
15
Não
30
63
Não sabe
C
14
66
15
AB
26
74
12
Sim
21
56
56
19
Discorda
11
Não
0
Masc
20
67
10
50-59
65
16
40-49
66
40
15
30-39
60
19
9
25-29
80
14
18-24
9
Fem
13
Sim
Concorda
100
461
Escolaridade
Fonte: Pesquisa CJUS-Hello Research /Internautas. Base: 756 entrevistas (acompanharam decisão sobre Cesare Battisti)
Por fim, exploramos junto aos entrevistados a decisão do
STF do dia 15 de junho de 2011, que autorizou a realização
das passeatas que reúnem manifestantes favoráveis à descriminalização das drogas, conhecidas como “marchas da maconha”. A grande maioria dos entrevistados declarou ter acompanhado essa decisão do tribunal (80%), sendo que homens
declararam ter acompanhado mais do que as mulheres; quem
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
conhecia o STF mais do que quem não conhecia, e quem tem
escolaridade alta, mais do que os de escolaridade mais baixa.
A opinião da maioria dos entrevistados é contrária à
decisão do Supremo: 51% dos entrevistados declararam
que discordam dessa decisão. No entanto, essa questão é
bastante polêmica; com relação a ela, há uma divisão marcante entre entrevistados de diferentes gêneros, idades e
orientações religiosas. Metade dos homens concorda com
liberação das passeatas, enquanto apenas 32% das mulheres concordam. A maioria dos jovens de até 24 anos concorda, enquanto maioria dos entrevistados acima de 24
discorda. A maioria dos religiosos discorda, enquanto a
maioria dos que não segue religião concorda com decisão.
A posição também é divergente entre pessoas de baixa
e alta escolaridade e renda – quem tem escolaridade e renda mais alta tende a concordar e quem tem renda e escolaridade mais baixa tende a discordar.
462
Gráfico 9
Percentual de entrevistados que declarou ter acompanhado
a decisão do Supremo sobre a autorização para a “marcha da maconha”
TotalGênero
Idade
Tem ClasseConhece
religião
bem STF
Renda
79
Baixa
84
Alta
77
Média
R$4.000,01 - R$9.000
75
R$1.000,01 - R$4.000
Sim
87
85
74
R$9.000 ou +
87
72
até R$1.000
79
C
81
Não
83
AB
50-59
Não
74
74
Sim
88
78
40-49
82
30-39
Fem
75
25-29
88
85
18-24
80
Masc
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Escolaridade
Fonte: Pesquisa CJUS-Hello Research /Internautas. Base: 1.200 entrevistas (total)
Essa decisão do STF traz à tona uma discussão mais
ampla: a da legalização das drogas. Na opinião de 39% dos
entrevistados (que acompanharam a decisão do STF sobre a
marcha da maconha), a decisão sobre a legalização das droLua Nova, São Paulo, 87: 429-469, 2012
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
gas deveria se dar via plebiscito. Em segundo lugar, como o
mais legitimado a decidir sobre legalização das drogas aparece o STF, com 19% das menções, tecnicamente empatado
com o Legislativo, com 18%. E, por fim, o Executivo, com 13%
das menções. Outra vez, nesse caso, não podemos afirmar
se existe a percepção de interferência, ainda que legítima,
do STF no âmbito do Congresso Nacional.
Gráfico 10
34
37
TotalGênero
Idade
55
64
56
38
31
39
58
Tem ClasseConhece
religião
bem STF
7
52
62
Renda
7
31
6
64
55
29
38
6
39
53
Alta
39
10
Baixa
C
Não
44
5
5
Média
38
55
4
39
R$9.000 ou +
38
54
8
R$4.000,01 - R$9.000
45
58
9
36
até R$1.000
36
53
9
Não sabe
R$1.000,01 - R$4.000
54
50
8
Sim
54
AB
32
Fem
0
Masc
20
58
49
41
8
Não
50
59
40
6
50-59
42
9
Discorda
6
6
40-49
51
44
Concorda
8
5
30-39
60
5
25-29
80
7
18-24
100
Sim
Concordância dos entrevistados com a decisão do
Supremo de autorizar “marcha da maconha”
463
Escolaridade
Fonte: Pesquisa CJUS-Hello Research /Internautas. Base: 960 entrevistas (acompanharam decisão sobre marcha da maconha)
Considerando essas três decisões do STF (união homoafetiva, caso Cesare Battisti e marcha da maconha), notamos que
duas delas foram contrárias à opinião da maioria dos entrevis­
tados. Trata-se da função contramajoritária; esse tribunal
algumas vezes precisa decidir contra a opinião pública. Nesse
cenário, para que ele possa manter sua legitimidade mesmo
após decisões contrárias aos desejos da população e da opinião pública e, mais ainda, garantir que suas decisões sejam
respeitadas e seguidas, é preciso que a corte tenha uma espécie de “estoque” de confiança pública, ou lealdade. Gibson
et al. (2003) afirmam que as atitudes mais importantes dos
cidadãos comuns com relação a instituições como as supremas cortes têm mais a ver com lealdade institucional do que
com o desempenho dessas instituições em casos específicos.
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
Tabela 3
Tem
Conhece
Classe
bem STF
religião
Renda
Opinião dos entrevistados sobre quem deveria ser o responsável por decidir sobre a legalização das drogas
Idade
Escolaridade
Fem
24
14
14
17
13
21
37
18
15
19
14
46
12
8
20
11
39
17
12
20
11 10 12 16
39 38 41 41
18 18 17 11
14 13 14 16
18 21 17 16
6
38
23
12
21
13
34
15
25
13
até
R$1.000
10
43
15
13
19
R$1.000,01R$4.000
12
35
21
11
20
10
37
33
5
15
16
33
13
19
20
10
41
15
16
19
11
40
25
6
17
Gênero
Masc
18
13
19
36
12
Total
19
17
18
44
14
Média Alta
19
10
17
39
8
R$4.000,01- R$9.000,01
Baixa
R$9.000
ou +
STF
13
19
34
6
Não Sim
Presidencia
da República
18
45
14
C
Congresso
Nacional
39
7
18-24 25-29 30-39 40-49 50-59 Não Sim AB
População
(plebiscito)
11
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Não sabe
Fonte: Pesquisa CJUS-Hello Research /Internautas. Base: 960 entrevistas (acompanharam decisão sobre marcha da maconha)
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
O STF decidiu contra a opinião pública no caso Battisti
e no caso da marcha da maconha, e ainda assim conta com
o suporte do público – sendo apontado como o mais legitimado dos Poderes instituídos a tomar decisões em casos
delicados e importantes, como a união homoafetiva –, e
tem o mesmo nível de legitimidade que o Congresso para
casos como a legalização das drogas. Notamos assim importantes indícios de que o STF goza tanto de uma reserva de
boa vontade, quanto de alguma lealdade do público.
***
O STF continua desconhecido pela maioria dos brasileiros.
Mas, desde a Constituição de 1988, passou a ser protagonista
ativo no debate de questões relevantes para a agenda pública
nacional e nas decisões sobre importantes políticas públicas. Sua própria estratégia de comunicação com a sociedade mudou. Quatro foram os fatores principais: a disposição
dos ministros de falarem fora dos autos, a adoção da agenda
temática, a criação da TV Justiça e a criação do CNJ. O STF
está, assim, cada vez mais conhecido por uma parcela significativa da população, sendo que, quanto maior a renda e a
escolaridade, maior o conhecimento do tribunal.
A presença cada vez maior do STF na mídia, especialmente escrita, leva ao aumento da atenção voltada para
esse ator nos diversos segmentos da sociedade, sobretudo
naqueles mais informados (ou seja, os que acompanham o
noticiário político), intensificando dessa maneira a relação
comunicativa entre o STF e a sociedade brasileira23.
Com isso, o STF continua desconhecido para a maioria,
mas determinante na configuração da agenda pública brasileira, em especial em temas relativos ao Judiciário. Como
vimos no relato de pessoas que, segundo nosso recorte, são
465
Ver Gráfico 1.
23
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
informadas sobre política, os temas mais lembrados quando
se trata da justiça são os que estão sendo debatidos e decididos no STF. Sem dúvida o STF se transformou em arena
privilegiada para o debate e a decisão de conflitos e assuntos polêmicos, constituindo-se em um importante veto player.
O STF tem se destacado e se popularizado por suas
decisões que interessam e impactam no dia a dia da população. É curioso perceber a repercussão que o caso da marcha
da maconha ganhou, com o movimento utilizando a decisão do tribunal como legitimador de sua atuação, como fica
manifesto a seguir nos cartazes e foto:
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Joaquim Falcão e Fabiana Luci de Oliveira
Outro ponto relevante que os dados indicam é que, quando se trata de decidir temas polêmicos, como a união homoafetiva e a legalização de drogas, os cidadãos querem ser diretamente ouvidos: instados a indicar quem deveria ser o principal responsável por decidir sobre esses temas, em primeiro
lugar, respondem o plebiscito, isto é, existe uma demanda por
maior participação e ampliação da democracia.
Mas quando se trata de delegar poder, o STF é o ator
que goza de maior legitimidade pública entre os Poderes
constituídos, com uma proximidade muito grande ao Congresso no caso da legalização das drogas.
Os dados indicam que parte considerável dos cidadãos
brasileiros entende e valoriza o papel desempenhado pelo
Judiciário no sistema político do país (69% dos brasileiros
declararam que conhecem ou já ouviram falar do STF e
30% da população soube citar ao menos uma função do
tribunal). A escolaridade é fator determinante nesse conhecimento e nessa percepção das atividades e do papel Supremo, assim como na avaliação deste. Esses dados permitem a
afirmação de que, quem conhece o STF e acompanha sua
atuação no cenário político, confia mais na instituição do
que aqueles que não a conhecem.
467
Joaquim Falcão
é professor e diretor da Escola de Direito do Rio de Janeiro
da FGV.
Fabiana Luci de Oliveira
é professora do departamento de sociologia da Universidade Federal de São Carlos.
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O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
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Resumos / Abstracts
Socialismo e democracia no marxismo de Carlos
Nelson Coutinho (1943-2012)
Marco Aurélio Nogueira
Ao recordar e homenagear o pensador político brasileiro Carlos Nelson Coutinho, o texto procura destacar a centralidade que os temas da democracia e do socialismo tiveram
em seu marxismo, lapidado ao longo do tempo por um criativo diálogo com a obra de Lukács e Gramsci. O ponto principal do artigo enfatiza a importância que o ensaio A democracia
como valor universal teve na configuração da obra do autor e
no panorama político e intelectual das esquerdas brasileiras.
Resumo:
Palavras-chave:
Marxismo; Socialismo; Democracia; Esquerda.
Socialism and Democracy in Carlos Nelson
Coutinho’s marxism (1943-2012)
Abstract: To remember and pay tribute to the Brazilian political
thinker Carlos Nelson Coutinho, the text seeks to highlight the
centrality that the themes of democracy and socialism had in his
marxism, polished over time for a creative dialogue with the works
of Gramsci and Lukács. The main point of the article emphasizes
the importance that the essay The universal value of democracy
had on the work of the author and in the political and intellectual
landscape of the Brazilian left.
Keywords:
473
Marxism; Socialism; Democracy; Left.
GENEALOGIA DA CONSTITUINTE: DO AUTORITARISMO À
DEMOCRATIZAÇÃO
Antônio Sérgio Rocha
Este artigo trata de três questões relativas à política brasileira contemporânea: era possível a volta do país
Resumo:
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Resumos / Abstracts
à democracia sem os trabalhos da Assembleia Nacional
Constituinte de 1987-1988? Por que o formato adotado foi
o de um Congresso Constituinte? Como entender o resultado de suas atividades? Argumentamos que a reiterada
constitucionalização das normas antidemocráticas e das
medidas de exceção por parte dos militares e dos seus aliados civis, conjugada ao déficit de legitimidade da ordem
autoritária, tornaram incontornável o recurso a uma
Assembleia Constituinte. Busca-se evidenciar os momentos
críticos dessa longa, complexa e sinuosa jornada rumo à
transformação do regime, encadeando e integrando eventos, atores e contextos de decisão a partir de episódios
ordinariamente tratados de forma separada: autoritarismo, transição política e Constituinte.
Assembleia Nacional Constituinte (19871988); Transição Política no Brasil; Constituição Federal de
1988; Regime Militar; Nova República; Instituições Políticas
Brasileiras.
Palavras-chave:
474
GENEALOGY OF THE CONSTITUENT: FROM
AUTHORITARIANISM TO DEMOCRACY
This article discusses three questions regarding
contemporary Brazilian politics: how necessary was the National
Constitutional Assembly (1987-1988) to have the country return to
a democratic regime? Why was a Constitutional Congress the chosen
format? How are we to understand the final results of its workings?
We argue that the constitutional framework the military regime had
created, alongside the legitimacy deficit of an authoritarian order,
made the calling of a Constitutional Assembly an unavoidable
necessity. The constitution-making process is traced back from the
dynamics of the political transition as to try to highlight its critical
junctures and its end results.
Abstract:
Keywords: National Constitutional Assembly (1987-1988); Political
Transition in Brazil; Brazilian Constitution of 1988; Military
Regime; New Republic; Brazilian Political Institutions.
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Resumos / Abstracts
O DEBATE CONSTITUINTE: UMA LINGUAGEM DEMOCRÁTICA?
Tarcísio Costa
Resumo: O
artigo discute a natureza democrática do discurso
constituinte. Em linha com a reflexão desenvolvida por teóricos como Jürgen Habermas e Bernard Manin, assume que
a legitimidade democrática deve ser fundamentada não em
uma vontade geral previamente definida, mas na qualidade
da deliberação que pauta o interesse coletivo. Para a análise
do debate constituinte, o autor lança mão dos arquétipos
retóricos estudados por Albert Hirschman em A retórica da
intransigência. Conclui que o discurso político brasileiro no
final dos anos de 1980, a julgar pela representativa experiência constituinte, estava ainda impregnado, à direita e à
esquerda, de vícios autoritários. Não prevalecia a compreensão da democracia como um processo deliberativo autônomo, indeterminado e sem guias ou tutores.
475
Palavras-chave: Assembleia Nacional Constituinte, Discurso
Político Brasileiro, Democracia, Deliberação.
THE CONSTITUENT DEBATE: A DEMOCRACY-FRIENDLY
DISCOURSE?
Abstract: This article assesses the democratic nature of the constituent
discourse. In line with the reflection developed by names such as
Jürgen Habermas and Bernard Manin, it is assumed that democratic
legitimacy rests not upon a previously defined general will, but on the
quality of the deliberation that ascertains the collective interest. For the
analysis of the constituent debate, the author resorts to the rhetorical
archetypes Albert Hirschman addresses in The rhetoric of reaction.
He comes to the conclusion that, as far as the representative constituent
exercise indicated, the Brazilian political discourse in the late eighties
was still pervaded, on both sides of the ideological spectrum, by
authoritarian traits. Democracy was not understood by the majority as
an autonomous, open-ended and untutored deliberative process.
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Resumos / Abstracts
Brazilian Constituent Assembly; Brazilian Political
Discourse; Democracy; Deliberation.
Keywords:
O SUPREMO NA CONSTITUINTE E A CONSTITUINTE NO
SUPREMO
Andrei Koerner
Lígia Barros de Freitas
O presente artigo analisa as relações entre ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e outros agentes políticos durante o processo constituinte. Adotam-se
duas perspectivas: a do STF como objeto da deliberação
constitucional em que se enfocam os projetos, embates
e negociações políticas ao longo do processo constituinte, a fim de determinar as posições e alianças dos agentes
que definiram as características do STF na nova Constituição, e a do STF como “produtor” da nova Constituição,
pois, como jurisdição constitucional, tinha a capacidade
de decidir sobre as modalidades do processo constituinte. Combinadas, as perspectivas permitem verificar como
o STF foi investido e projetado no processo constituinte
e como seus ministros, em aliança com outros agentes,
atuaram durante as deliberações, contribuindo assim para
orientar os debates e decisões do processo constituinte.
O objetivo é colaborar para a compreensão do sentido
político da atuação dos ministros do STF nesse processo,
bem como no resultado deste, em termos do formato institucional da jurisdição constitucional na Constituição de
1988, e dos pressupostos implícitos de sua compreensão
normativa da Constituição.
Resumo:
476
Justiça Constitucional; Análise Institucional;
Processo Constituinte; Pensamento Jurídico; Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave:
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Resumos / Abstracts
THE “SUPREMO” IN THE CONSTITUENT ASSEMBLY AND THE
CONSTITUENT ASSEMBLY IN THE “SUPREMO”
Abstract: This
article analyzes the relations between ministers of the
Brazilian Federal Supreme Court (STF) and other political agents
during the constituent process (1987-1988). Two perspectives are
adopted. Firstly, the STF is analyzed as an object of constitutional
deliberation. Such an analysis is focused on the projects, clashes
and political negotiations occurred during the constituent process,
in order to determine the agents positions and alliances by which
the characteristics of the STF in the new Constitution have been
defined. Secondly, the STF is analyzed as one of the “producers”
of the new Constitution, since, as a constitutional jurisdiction, it
was empowered to decide the modalities of the constituent process.
Together, these perspectives allow us to verify how the STF was
designed and projected in the constitutional process and how its
ministers, in alliance with other agents, acted during deliberations,
contributing to the guidance of the discussions and decisions.
The aim is to contribute to understand the political sense of the
STF ministers’ actions during the constitutional process, as well
as the result of this process, in terms of the institutional format of
constitutional jurisdiction in the Constitution of 1988, and finally
the implicit assumptions of their normative comprehension of the
Constitution.
477
Keywords: Constitutional Justice; Institutional Analysis; Constituent
Process; Legal Thought; Federal Supreme Court.
PROCESSO CONSTITUINTE E ARRANJO FEDERATIVO
Jefferson O. Goulart
Resumo: O
texto aborda as relações entre transição, processo
constituinte e arranjo federativo. O consenso de que se consumou uma ordem mais descentralizada, cooperativa e favorável às esferas subnacionais na Constituição de 1988, impõe
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Resumos / Abstracts
uma reflexão abrangente acerca das razões que teriam determinado esse resultado, isto é, devem ser considerados o cenário de ausência de hegemonia, a ação de atores extrainstitucionais, a fragilidade conjuntural da União e a prevalência
de uma agenda descentralizadora. Como resultado, tem-se “a
primazia das partes”, ao contrário da polarização ideologizada direita-esquerda que predominou em outros temas. Essa
abordagem permite observar o paradoxo de que a mesma
Constituição que fortaleceu as unidades subnacionais também comportou normas capazes de futuramente atenuá-las.
Palavras-chave:
Federalismo; Constituição de 1988; Transição.
CONSTITUTIONAL PROCESS AND FEDERATIVE ARRANGEMENT
This paper addresses the relationship between transition,
federal arrangement and constitutional process. The consensus
about the consummation of an order more decentralized, cooperative,
and favorable for the subnational levels in the 1988 Constitution,
imposes a comprehensive reflection on the reasons that may have
determined this result, namely, it must consider the scenario of
absence of hegemony; the action of actors non-institutionals; the
cyclical weakness Union, and the prevalence of a decentralization
agenda. The result, was “the primacy of the parties”, unlike the
left-right ideological polarization that has prevailed on other
topics. This approach allows to observe the paradox that the same
Constitution that strengthened subnational units also behaved
rules able to diminish them in the future.
Abstract:
478
Keywords:
Federalism; 1988 Constitution; Transition.
CONSTITUINTE E DEMOCRATIZAÇÃO NO BRASIL:
O IMPACTO DAS Mudanças DO SISTEMA INTERNACIONAL
Ademar Seabra da Cruz Júnior
Resumo: O objetivo deste artigo é o de identificar e analisar as pressões internacionais (“constrangimentos estruLua Nova, São Paulo, 87: 473-485, 2012
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Resumos / Abstracts
turais”) desencadeantes ou indutoras das principais
transformações políticas e econômicas observadas no
Brasil nos anos de 1980. O novo sistema internacional
surgido com o fim da Guerra Fria impactaria significativamente os rumos da política e da economia brasileira.
O artigo busca identificar a estrutura geral e as manifestações do nascente sistema internacional sobre a política e a economia brasileiras. Nesse aspecto, fica claro ter
havido um continuum entre as transformações internacionais dos anos de 1980 e o processo de modernização do
Brasil – esgotamento do modelo de substituição de
importações, crise do regime militar e advento da cena
política da democratização.
Palavras-chave: Sistema Internacional; Guerra Fria; Economia Internacional; Política Brasileira; Democratização;
Constituinte.
CONSTITUENT ASSEMBLY AND DEMOCRATIZATION IN BRAZIL:
THE IMPACT OF THE CHANGED INTERNATIONAL SYSTEM
479
The aim of this paper is to identify and characterize the
international pressures (“structural constraints”) that led to the
main political and economic changes observed throughout the
eighties in Brazil. The new international system brought about
by the end of Cold War bore a significant impact on the course
and shape of Brazilian economy and politics. The paper seeks to
identify the overall structure and manifestations of the upcoming
international system over Brazilian politics and economics. In
this regard, there is a clear continuum between the changed
international system of the late eighties, the wane of the import
substitution strategies, the end of the military rule and the advent
of democratization in Brazil.
Abstract:
International System; Cold War; International
Economics; Brazilian Politics; Democratization; 1987-1988
Constituent Assembly.
Keywords:
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Resumos / Abstracts
THE WEIGHT OF HISTORY AND THE REBUILDING OF
BRAZILIAN DEMOCRACY
Zachary Elkins
Abstract:This
paper assesses the role of antecedent constitutional
models in the deliberation over institutional choices in the Brazilian
constitutional assembly of 1987-1988. In particular, it evaluates
the expectations of theories of diffusion, which would suggest that
such choices were distorted by the attention to external models of
constitutional design. It analyzes transcripts from the plenary
sessions of the assembly as well as roll call votes.
Diffusion; Constitutional Models; Brazilian
Constitutional Assembly (1987-1988); Presidentialism;
Parliamentarism.
Keywords:
480
O PESO DA HISTÓRIA E A RECONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA
BRASILEIRA
Este artigo pondera a respeito do papel que modelos constitucionais prévios tiveram nas escolhas institucionais que foram deliberadas pela Assembleia Constituinte
brasileira de 1987-1988. Em particular, avaliam-se as expectativas das teorias de difusão, que sugerem que tais escolhas
seriam distorcidas pela observância de modelos estrangeiros
de projetos constitucionais. O artigo analisa as transcrições
das sessões do plenário da Assembleia, bem como as das
votações nominais.
Resumo:
Palavras-chave: Difusão; Modelos Constitucionais; Assembleia
Constitucional Brasileira (1987-1988); Presidencialismo;
Parlamentarismo.
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Resumos / Abstracts
O poder constituinte do povo no Brasil: um roteiro
de pesquisa sobre a crise constituinte
Gilberto Bercovici
O presente texto oferece um breve roteiro de pesquisa sobre a questão do Poder Constituinte no Brasil. Essa
pesquisa se faz necessária tendo em vista, passados 25 anos
da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, a permanência do tratamento formalista e repetitivo da doutrina
jurídica brasileira recente concernente a este tema, ignorando as relações complexas entre Estado, Constituição,
soberania, democracia e política.
Resumo:
Palavras-chave: Poder Constituinte; Soberania Popular; Demo-
cracia; História Constitucional Brasileira.
The constituent power of the people in Brazil: a
research guideline about the constituent crisis
481
Abstract: The present text aims at providing a brief research guideline
about the issue of the Constituent Power in Brazil. The relevance of
such research derives from the fact that, 25 years after the National
Constituent Assembly of 1987-1988, we still observe the permanence
of the formalist and recurrent approach of the Brazilian legal
studies about this theme, neglecting the complex relations among
State, Constitution, sovereignty, democracy and politics.
Constituent Power; Popular Sovereignty; Democracy;
Brazilian Constitutional History.
Keywords:
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Resumos / Abstracts
O PROCESSO CONSTITUINTE BRASILEIRO, A TRANSIÇÃO E O
PODER CONSTITUINTE
Cicero Araujo
Este artigo discute o processo constituinte (19851988) à luz de um quadro analítico da experiência política brasileira que abrange desde o advento do regime autoritário em 1964 a uma longa e muito peculiar
transição à democracia que culmina na instalação de
uma assembleia constituinte. Em particular, o texto faz uma
discussão sobre “Poder Constituinte” – tema que polarizou o debate jurídico no início do processo que levou
à elaboração de nossa atual constituição – procurando
oferecer uma interpretação do conceito que reflita apropriadamente a fluidez institucional que caracterizava o
país, na época.
Resumo:
482
Processo Constituinte (1985-1988); Transição
do Autoritarismo à Democracia; Poder Constituinte.
Palavras-chave:
THE BRAZILIAN CONSTITUENT PROCESS, THE TRANSITION
AND THE CONSTITUENT POWER
The article discusses the constituent process (19851988) out of an analytical framework of the Brazilian
political experience from the authoritarian regime (1964) to
a long and very peculiar transition to democracy and then
to a constitutional convention. Particularly, the article takes up
the issue of the “Constituent Power”, which polarized the legal
debate at the beginning of the process that led the Brazilian
society to its current Constitution, proposing an interpretation of
that concept flexible enough to capture the institutional fluidity
of the country at that time.
Abstract:
The Constituent Process (1985-1988); The Transition
from Authoritarianism to Democracy; The Constituent Power.
Keywords:
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Resumos / Abstracts
O ESSENCIAL E O ACIDENTAL: BODIN (E HOBBES) E A
INVENÇÃO DO CONCEITO MODERNO DE CONSTITUIÇÃO
Bernardo Ferreira
O artigo pretende discutir algumas das premissas
intelectuais do moderno conceito de constituição, tomando
como ponto de partida a classificação dos tipos de República proposta por Jean Bodin em Les six livres de la République.
Para tanto, explora os contrastes entre o moderno conceito de constituição e noções cronologicamente anteriores e
que, ao mesmo tempo, lhe são próximas. Em primeiro lugar,
são recuperados elementos da história da ideia moderna de
constituição, com ênfase na distinção entre a noção tradicional de lex fundamentalis e a constituição como uma “lei fun­
damental”. Em seguida, retomam-se alguns aspectos da formação histórica do conceito grego de politeia, visando assinalar o vínculo entre a constituição moderna e certas características da unidade política a ela associada, o Estado moderno.
Resumo:
483
Constituição; Lei Fundamental; Politeia; Jean
Bodin; Estado Moderno.
Palavras-chave:
THE ESSENTIAL AND THE ACCIDENTAL. BODIN (AND
HOBBES) AND THE INVENTION OF THE MODERN CONCEPT OF
CONSTITUTION
Abstract: The article intends to discuss some of the intellectual
premises of the modern concept of constitution, taking as a starting
point the classification of types of Commonwealth proposed by Jean
Bodin in Les six livres de la République. For that purpose, it
explores the contrasts between the modern concept of constitution and
chronological previous notions that are, at the same time, close to this
concept. In the first instance, elements of the history of the modern idea
of constitution are recovered, highlighting the distinction between the
traditional notion of lex fundamentalis and the constitution as a
“fundamental law”. Further on, some aspects the historical formation
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Resumos / Abstracts
of Greek concept of politeia are retrieved, aiming to establish a
link between the modern constitution and certain particulars of the
political unit associated to it, the modern state.
Constitution; Fundamental Law; Politeia; Jean Bodin;
Modern State.
Keywords:
O STF E A AGENDA PÚBLICA NACIONAL: DE OUTRO
DESCONHECIDO A SUPREMO PROTAGONISTA?
Joaquim Falcão
Fabiana Luci de Oliveira
O artigo trata da presença do Supremo Tribunal
Federal (STF) no cenário público nacional. Argumenta-se
que o STF deixou de ser o outro desconhecido a que
se referia Aliomar Baleeiro na década de 1960 e passou a ser
protagonista da agenda pública por meio de temas ligados
ao Judiciário, sobretudo na mídia e entre internautas. Aborda-se enquanto comunicativa a relação entre STF e opinião
pública; explora-se os potenciais fatores explicativos para a
intensificação dessa relação e demonstra-se que, apesar do
STF continuar distante e desconhecido para grande parte da
população, há um percentual significativo de brasileiros que
o conhece – os de maior renda e escolaridade. Analisa-se,
em especial, a percepção e a reação de internautas cariocas
e paulistas a três decisões do STF: união homoafetiva, caso
Cesare Battisti e marcha da maconha. Conclui-se que a
agenda pública brasileira em temas relativos ao Poder Judiciário vem sendo ditada preponderantemente pelo STF e
que, quando se trata de questões polêmicas, o STF, entre os
poderes constituídos, é o que tem maior respaldo público e
legitimidade para decidir.
Resumo:
484
Supremo Tribunal Federal; Agenda Pública;
Opinião Pública; Relação Comunicativa; Legitimidade.
Palavras-chave:
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Resumos / Abstracts
THE SUPREME FEDERAL COURT AND THE NATIONAL
PUBLIC AGENDA: FROM UNKNOW OTHER TO SUPREME
PROTAGONIST?
Abstract: The article is about the presence of the Supreme Federal
Court (STF) in the public scenario. It argues that the STF ceased
being an stranger to the public, as Aliomar Baleeiro argued in the
1960’s, to becoming a protagonist of the public agenda through
issues related to the Judiciary, especially in the media and among
internet users. It addresses the relationship between public opinion
and STF as communicative; explores potential explanatory factors
for the observed enhancement of this relationship, and demonstrates
that, despite STF continuing to be distant and unknown to most
of the population, there is a significant percentage of Brazilians
who knows the court – the ones with highest levels of income and
education. It analyzes in particular the perception and reaction of
internet users in Rio de Janeiro and Sao Paulo to three decisions of
the STF – “gay marriage”, “Cesare Battisti case” and “marijuana
march”. It concludes that the Brazilian public agenda on issues
relating to the judiciary has been dictated mainly by the STF, and
that when it comes to controversial issues, the STF, among the State
Powers, is the one with greater public support and legitimacy to
decide.
485
Keywords:Supreme Federal Court; Public Agenda; Public Opinion;
Communicative Relation; Legitimacy.
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VIEIRA, C.; LOPES, M. 1994. “A queda do cometa”. Neo Interativa, n. 2,
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VIEIRA, C.; LOPES, M. 1998. “Crimes da era digital”. Net, Rio de Janeiro,
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