Aline Aparecida dos Santos Silva
Dolores – um ensaio fotobiográfico
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
Novembro de 2014
Aline Aparecida dos Santos Silva
Dolores – um ensaio fotobiográfico
Dissertação
apresentada
ao
Programa
de
Mestrado em Letras da Universidade Federal de
São João del-Rei, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica
da Cultura
Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural
Orientadora: Adelaine LaGuardia
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
Novembro de 2014
A minha mãe, por toda a sua
luta solitária que me fez
chegar aqui.
A Luis Mauricio, que me deu
olhos para ver as luzes da
cidade-mundo.
AGRADECIMENTOS
A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a
esta pesquisa. Palavras não seriam o melhor caminho para tamanha gratidão.
A Manuel Graña Etcheverry, Manolo, mestre, amigo – o mais sábio entre os
sábios, com um carinho sem fim, em seus 98 anos.
À Adelaine LaGuardia, minha orientadora, pela confiança depositada em mim,
desde as pesquisas de Iniciação Científica, e por ter aberto meus olhos para
outros horizontes.
À Eneida Maria de Souza, por sua generosidade, seus ensinamentos e seu
permanente apoio.
A todos os professores do curso de Letras da UFSJ.
A Edmílson Caminha, pela entrevista a mim concedida e pelas excelentes
indicações de leitura.
À Eliane Vasconcellos, por suas preciosas pesquisas de mestrado e doutorado
compartilhadas comigo.
À Silvana Mendes, poeta de minha terra e minha mãe de coração.
A minha irmã, que soube entender minha ausência, durante todos estes anos
de estudos.
A meu pai, pela amizade que aprendemos a cultivar.
A Wesley, pelo auxílio técnico, tão útil a esta pesquisa, e pelas valiosas
indicações.
Aos amigos Aline Ângelo, Aline Silva, Deise, Denny, Edevaldo, Guilherme, Igor,
Josi e Laís, pelo companheirismo, pela força e pelas discussões, sempre ricas,
que mantemos.
À UFSJ e seus funcionários, por todo o apoio que me deram.
À Fundação Casa de Rui Barbosa e ao Instituto Moreira Salles, pelo cuidado
com a Memória de nosso país.
À CAPES, pelo compromisso com os pesquisadores e, em particular, pela
bolsa que me concedeu, sem a qual, este trabalho não teria sido possível.
RESUMO
Nesta dissertação de mestrado, apresentamos um ensaio fotobiográfico sobre
Dolores Morais Drummond de Andrade, mineira, nascida (aparentemente) no
último ano do século XIX, que passou praticamente toda sua vida no Rio de
Janeiro. Para a realização deste trabalho, que não pretende ser uma biografia
convencional, nos baseamos, principalmente, em documentos e entrevistas.
Analisamos todo esse material à luz dos estudos relativos ao trato de fontes
primárias e das críticas biográfica e feminista.
Palavras-chave: crítica biográfica; crítica feminista; Dolores Morais Drummond
de Andrade; fotobiografia; gênero
RESUMEN
En esta disertación de maestría, presentamos un ensayo fotobiográfico sobre
Dolores Morais Drummond de Andrade, mineira, nacida (aparentemente) en el
último año del siglo XIX, que pasó prácticamente toda su vida en Río de
Janeiro. Para la realización de este trabajo, que no pretende ser una biografía
convencional, nos basamos, principalmente, en documentos y entrevistas.
Analizamos todo ese material a la luz de los estudios relativos al trato de
fuentes primarias y de las críticas biográfica y feminista.
Palavras clave: crítica biográfica; crítica feminista; Dolores Morais Drummond
de Andrade; fotobiografía; género
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12
OS BASTIDORES DA PESQUISA ................................................................... 20
SÃO JERÔNIMO, SANTA BÁRBARA .............................................................. 32
DOLORES, DOLARES, DONDOLÔ................................................................. 47
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 104
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 109
ANEXOS .........................................................................................................114
ENTREVISTAS ............................................................................................115
CARTAS ..................................................................................................... 133
UMA HISTÓRIA EM FRAGMENTOS .......................................................... 150
DE CARLOS PARA DOLORES ............................................................... 151
DE DOLORES PARA CARLOS ............................................................... 157
Dolores – um ensaio fotobiográfico
Women will starve in silence until new stories are created
which confer on them the power of naming themselves.
Sandra Gilbert e Susan Gubar
A mulher e a casa
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.
Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,
uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.
Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;
pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;
pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas.
organizando-se dentro
em corredores e salas,
os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,
exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.
João Cabral de Melo Neto
Fig. 1 Retrato de Dolores feito pelo pintor russo D. Ismailovitch, 1943. Arquivo
da família.
INTRODUÇÃO
De cuanto fue nos nutrimos.
Gabriel Celaya
Eis aqui um breve ensaio sobre a vida de Dolores Morais Drummond de
Andrade, composto por fotografias, dados e algumas lembranças de pessoas
que a conheceram. Desde já avisamos que nem sempre os ordenamos
cronologicamente: não se trata de uma biografia convencional. O intuito é
expor episódios e imagens, para que, com eles, cada um elabore seu próprio
perfil de Dolores. Em outras palavras, os exibimos como se fossem pontos no
espaço; ao leitor, cabe uni-los para conformar sua própria “aproximação
poligonal” de algo altamente não linear como é a vida de uma pessoa. Cada
qual, com sua história e sua visão de mundo, comporá seu contorno particular
da nossa personagem. Como bem afirma Virginia Woolf, os fatos de uma vida
não são como os da ciência e estão sujeitos a mudanças de opinião e, por sua
vez, as opiniões, como os tempos, mudam.1
Advertimos também ao leitor do (quase inevitável) risco que corremos ao
longo do trabalho de, constantemente, vincular a pessoa de Dolores à de
Carlos Drummond de Andrade, seu companheiro de quase sete décadas. Na
medida do possível, tentamos evitar essa contingência, mas, como se
compreenderá, nem sempre o conseguimos, já que praticamente toda a
documentação existente sobre ela foi compilada por ele. Podemos garantir,
isso sim, que fizemos tudo o que ao nosso alcance esteve para que a figura de
Carlos não ofuscasse a de Dolores. Como afirma a pesquisadora australiana
Sue Mckemmish (2013), “a biografia só pode ser entendida – trazida à vida no
presente – quando seu ‘objeto singular’ é posto em relação com outras
pessoas – quando se define seu lugar nas redes intrincadas que compõem as
vidas de outras pessoas” (p. 29).
Tampouco podemos deixar de mencionar que analisamos a vida desta
mulher - possivelmente nascida no último ano do século XIX (vide p. 37) - com
1
A arte da biografia, In: O valor do riso.
12
a visão das relações de gênero dos dias de hoje. Seja como for, é necessário
ressaltar que nos esforçamos ao máximo por não cair na armadilha de tratar
nossa protagonista pura e exclusivamente com os critérios e valores
contemporâneos. O arcabouço teórico utilizado nesta dissertação é, em boa
parte, formado por trabalhos relativamente modernos da crítica feminista, com
ênfase na visão de gênero de Joan Scott (1995), para quem tal categoria “é
uma forma primária de dar significado às relações de poder e é [também] um
elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças
percebidas entre os sexos” (p. 86). Também nos beneficiamos, direta ou
indiretamente, dos estudos de Zahidé Muzart, Constância Lima Duarte,
Adelaine LaGuardia, Eliane Vasconcellos, Rose Marie Muraro, Cida Golin,
Regina Zilberman e Maria da Glória Bordini.
Entre as referências teóricas, nos respaldamos principalmente em
estudos sobre fontes primárias, relativos ao trabalho com arquivos literários.
Em um de seus artigos sobre as escritoras brasileiras do século XIX,
Constância Lima Duarte afirma que “a misoginia perdura, inclusive nos
arquivos literários” (2011, p. 241). Tal assertiva nos leva a pensar que a
memória, considerando-a como uma construção, compõe-se também de muitas
ausências. Como encontrar essas ausências nos arquivos? Como desvendar
se não os fatos, pelo menos seus indícios, no não-dito, no que não foi narrado?
Segundo Luciana Heymann (2013), o arquivo é uma “metáfora do cruzamento
entre memória, saber e poder; [é um] constructo político que produz e controla
a informação, orientando a lembrança e o esquecimento; e, nas palavras de
Foucault, como a lei do que pode ser dito” (p. 68). Ora, se buscarmos a figura
de Dolores no acervo que o próprio Carlos Drummond de Andrade doou ao
Arquivo-Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa, pouco
encontraremos. Tudo indica que o escritor, discreto como sempre foi, preferiu
preservar a vida conjugal nos limites do privado. Por outro lado, não se pode
deixar de notar o cuidado que o poeta itabirano teve de conservar e arquivar
documentos relativos à vida de sua companheira, lidando aí com a “intenção
biográfica”.
Acreditamos que são duas as perguntas que um “arquivista”, um “arconte”
faz, ao decidir tornar públicos eventos de sua vida, parte de sua história: por
13
que? para quem? A sociedade e as instituições normalmente não se
interessam pela vida do homem comum, de forma que, se queremos buscar os
pequenos eventos do cotidiano e a vida de pessoas mais discretas, anônimas,
primeiro devemos passar pela Lei das pessoas notáveis. O “monumento”, o
arquivo-fonte sempre encobrirá o “fragmento”, o qual só se deixa ver quando
dessacralizamos o arquivo, quando vamos além de sua assinatura. Sendo
Dolores uma personagem exclusivamente do mundo privado, por que torná-la
pública? Analisando-os pela própria lógica tradicional do arquivo, quais eventos
de sua vida mereceriam vir à luz? Como operar numa memória que se pauta
em dois grupos, o dos mortais e o dos imortais, privilegiando estes e
descartando aqueles? Para Fausto Colombo (1991), a seleção é
[...] o âmbito que poderíamos chamar de ativação preventiva do
esquecimento (cf. Botinelli-Colombo, 1983): trata-se, de fato, de
decidir, diante de um conjunto de dados, eventos ou
informações, quais devem ser privilegiados e quais podem ser
abandonados ao possível cancelamento (p. 89).
Assim, ao mesmo tempo em que se luta contra o esquecimento, o próprio
esquecimento é instaurado. Nas palavras de Philippe Artières (1998), “a
escolha e a classificação dos acontecimentos determinam o sentido que se
quer dar a uma história” (p. 3). É, pois, nessa classificação, na seleção de
acontecimentos que operam o biopoder, a biopolítica, na expressão
foucaultiana, nesse grande campo de forças que é o arquivo.
Durante esta pesquisa, o arquivo se mostrou como um espaço profícuo
para reflexões sobre as relações e representações de gênero. O primeiro
sintoma do esquecimento é o apagamento de algumas vozes, nos arquivos de
grandes personagens da história. No documentário O fazendeiro do ar, dirigido
por Fernando Sabino e David Neves, nos 11 segundos, que vão do minuto 2:54
ao 3:05, vemos Dolores, ao lado de Drummond, no sofá da sala de visitas. Ela
fala, mas não ouvimos sua voz; ali, quem fala é o poeta: é, unicamente, a voz
dele que deve ser deixada para a posteridade. A voz pública, que ecoa até nos
lugares mais recônditos. Mas entendemos que a ausência de memória também
é memória. E Dolores imprimiu seus rastros na vida de seu companheiro.
Como expõe Isabel Travancas (2013), “um arquivo, ainda que possa parecer
14
resultado de um esforço individual, raramente o é. Há anônimos que nele
participam, desde os membros da família até a própria equipe das instituições
que os abrigam” (p. 234). Essa voz de silêncio nos levou a buscar nossa
protagonista exatamente onde o arquivo se “anarquiva”. Foi como se ela
mesma nos afirmasse: “Onde não estou, aí existo. Busquem minha voz onde
ela se cala”. Diante de tal situação, é inevitável não mencionar o “mal de
arquivo” que nos acometeu. O texto derridiano é clássico, mas vale repeti-lo:
A perturbação do arquivo deriva de um mal de arquivo.
Estamos com mal de arquivo (en mal d’archive). Escutando o
idioma francês e nele o atributo “en mal de”, estar com mal de
arquivo, pode significar outra coisa que não sofrer de um mal,
de uma perturbação ou disso que o nome “mal” poderia nomear.
É arder de paixão, é não ter sossego, é incessantemente,
interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É
correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa
nele se anarquiva (DERRIDA, 2001, p. 118).
É, pois, esse “mal d’archive” que problematiza o próprio arquivo, o
desestabiliza e o indaga, em seus excessos ou em suas penúrias, embora
também turve a visão do pesquisador. E o filósofo francês esclarece os
sentidos que podem ser dados ao “mal de arquivo”, o que estaria ligado à ideia
daquilo que é, ao mesmo tempo, veneno e antídoto, pensamento presente na
sua obra:
Nada é tanta perturbação e nem mais perturbador. A
perturbação do que é aqui perturbador é sem dúvida aquilo que
perturba e turva a visão, o que impede o ver e o saber, mas é
também a perturbação dos assuntos perturbantes e
perturbadores, a perturbação dos segredos, dos complôs, da
clandestinidade, das conjurações meio privadas, meio públicas,
sempre no limite instável entre o público e o privado, entre a
família, a sociedade e o Estado, entre a família e uma
intimidade mais privada que a família, entre si e si. A
perturbação ou o que em inglês chamamos o “trouble” destas
visões e destes assuntos, eu os nomeio com uma palavra
francesa ainda intraduzível para lembrar ao menos que o
arquivo reserva sempre um problema de tradução.
Singularidade insubstituível de um documento a interpretar, a
repetir, a reproduzir, cada vez em sua unicidade original, pois
um arquivo deve ser idiomático, e ao mesmo tempo ofertada e
furtada [sic] à tradução, aberta e subtraída [sic] à iteração e à
reprodutibilidade técnica (p. 117-118).
15
Não podemos afirmar precisamente como esses dois sentidos para o mal de
arquivo nos afetaram. O fato é que a busca incessante pela figura de Dolores
nos conduziu até a formação deste novo arquivo, o ensaio fotobiográfico. Para
compô-lo, passamos também pela seleção, classificação e ordenamento,
trabalho que resultou no esboço de um sujeito, tal como já fora preconizado por
Roland Barthes: dividido, difratado, disperso, espalhado numa dança. A própria
pesquisa foi assim. Encontrávamos um pouquinho de Dolores aqui, um
pouquinho acolá. Por vezes, nada encontrávamos, enfrentando, desse modo, a
desordem, o vazio, o “arquivo do mal” de que trata Derrida. Mas de que outra
forma seria o arquivo dos comuns? Verdadeiro “habitáculo à deriva”, na feliz
imagem barthesiana, um vir a ser, rumo ao não lugar, sem promessa de fixação,
sem promessa de sempre ser e sempre estar.
Todo arquivo traz em si a ausência-presença de um povo menor, traz em
si pequenos gestos que giram ao redor do centro, onde se localizam os
grandes eventos, as medalhas de honra, as condecorações, diplomas, as
vaidades, as máscaras, por assim dizer, daquele que o organizou. Ora, quando
investigamos, por exemplo, uma cidade turística, seria justo e correto analisá-la
apenas por seu centro histórico e outras atrações já preparadas para os olhos
curiosos? Onde a periferia que corta a geografia dessa cidade? Onde o diálogo,
as negociações, os sacrifícios, as concessões dentro dessa cidade?2 Com o
trato de um arquivo literário não é diferente: ele é uma cidade letrada, de onde
emanam a ordem e a lei, mas, se avançarmos um pouco mais nesse labirinto,
2
Curiosamente, tempos depois de escrever esta introdução, nos deparamos com o texto El
advenimiento de Buenos Aires, de Jorge Luis Borges: “Me he referido ya a las dificultades que
ofrece una definición de Buenos Aires; buena prueba de ello es la perplejidad que sentimos
cuando llega un hombre de otro país y queremos mostrarle nuestra ciudad. ¿Qué ocurre
entonces, qué nos ocurre a todos? Inevitablemente, instintivamente, le mostramos lugares
inexpresivos o lugares que son típicos en sí mismos, pero no del alma general de Buenos
Aires. De todos los paseos y plazas le mostramos el menos íntimo: el parque de Palermo;
también le mostramos el centro, que es una suerte de tierra de nadie donde se congrega la
gente de todos los barrios. Finalmente, ya que por obra del tango el suburbio de Buenos Aires
ha logrado cierta nombradía en el mundo, le mostramos la Boca del Riachuelo, es decir un
barrio sui generis, que también para nosotros es forastero. Los otros arrabales de Buenos Aires
son casi iguales y poco importa su delimitación topográfica; están hecho de tierra, de llanura,
de mucho cielo y ante todo de soledad. Nada de eso mostramos al amigo que visita nuestra
república; lo llevamos a un suburbio muy populoso, a un suburbio movido, en el que hay algo
que no encontramos en ningún otro: delicados y melancólicos tintes de crepúsculo y de agua.
¿Por qué obramos así? Yo entiendo que lo hacemos porque nos consta que Buenos Aires es
incomunicable. Inútil sería mostrar el parque Lezama o tal o cual árbol memorable que hay en
la Recoleta o los casi infinitos barrios modestos que integran la ciudad” (2003, p. 29).
16
é certo que encontraremos traços, pegadas de vozes silenciadas no reino das
letras. E há que se instaurar um diálogo entre essas diversidades culturais que
aí se apresentam.
Façamos ainda uma ligeira análise de gênero sobre o que está nas
entrelinhas dos arquivos. Tomemos como exemplo de arquivo o livro O pai, a
mãe e a filha, de Ana Luisa Escorel. Nessa obra, a autora narra um gesto da
maior importância entre dois grandes intelectuais brasileiros. O pai de Ana
Luisa, Antonio Candido, recebe como presente das mãos de Sérgio Buarque de
Holanda a máquina com que escreveu Raízes do Brasil. Sobre esse ato,
Rachel Esteves Lima afirma, no artigo A máquina da memória em movimento:
Nas mãos de Candido, a máquina com que foi presenteado
funciona, pois, não apenas como um instrumento técnico para
a datilografia, mas também como uma espécie de “guardacostas” (KAUFMANN, 1997, p.113) que lhe confere a
segurança de trilhar, no campo da literatura, o mesmo caminho
que Sérgio Buarque de Holanda acreditou ser capaz de
conduzir à evolução do País, no terreno da política (LIMA, 2013,
p. 37).
Esse não é, de forma alguma, um gesto gratuito. Temos a máquina em que se
gerou a obra Raízes do Brasil, sendo doada de um intelectual a outro. Herança
cultural custodiada por varões. Teria dona Gilda de Mello e Souza usado
também essa mesma máquina para dar vida a seus trabalhos de pesquisadora
e grande pensadora que foi? Ao falar de Gilda de Mello, Lima ainda relata:
[...] a mãe nos é apresentada como uma pessoa extremamente
elegante, mas bastante recolhida e impaciente em relação aos
desejos da filha. Não obstante, o cuidado com a criança se
manifestava na dedicação com que ela se entregava a tarefas
como as de cachear-lhe os cabelos, de costurar com o maior
capricho as roupas que vestiam a filha e as suas bonecas, de
tomar para si a responsabilidade de passar a ferro as rendinhas
de seus vestidos, de levá-la às aulas de balé e de piano, de,
finalmente, enxergando na menina um talento precoce que a
levaria, no futuro, à profissão de designer, recolher e guardar
os desenhos que ela fazia e que hoje ilustram sua autobiografia.
Se o pai lhe transmitiu como legado o dom da palavra, é da
mãe, que se empenhara em pioneiramente conferir dignidade
intelectual a temas considerados de menor importância, como
a moda e a fotografia, que Ana Luisa Escorel herda a atenção
ao detalhe, a habilidade de costurar sua narrativa com
descrições minuciosas... (p. 43).
17
É do pai, portanto, que a filha herda o dom da palavra. À figura materna cabe
recolher os traços, os rabiscos soltos de Ana Luisa, o que não era palavra,
embora pudesse ser considerado como um discurso. Talvez, isso explique a
hierarquia do título desse livro-arquivo: o pai vem em primeiro lugar. A mãe,
mesmo sendo, como sabemos, uma intelectual reconhecida, está ligada mais
ao privado, ao cuidado das roupas, passando-as e costurando-as, “temas
considerados de menor importância”. Com Dolores não foi diferente, nem com
Mafalda Verissimo, nem com Leda Alves, Frigga Moog, Zélia Suassuna, Maria
Lúcia Dourado e tantas outras que acompanharam, desde os bastidores, a vida
de homens notáveis. Essas mulheres sempre estiveram em um canto, tecendo,
silenciosamente, a própria vida. E é aí que devemos procurá-las: do outro lado
das frestas, no dado escondido, no que foi calado entre “quatro paredes”, num
canto à meia luz, no entre-lugar do balanço de uma cadeira.3
O arquivo, mesmo com os seus riscos, suas armadilhas, pode ser
considerado uma representação das formas de vida em nossa sociedade.
Assim sendo, fica latente a vontade de um projeto maior, que englobe também
as relações de gênero, a serem analisadas dentro desse artefato cultural. Em
que situação encontraríamos os maridos anônimos de escritoras consagradas?
Algum deles se ocupou completamente de sua companheira, como o fizeram
as esposas dos escritores, como o fez Dolores? O arquivo pode nos insinuar
algumas respostas a esse respeito. Talvez, seja essa uma perspectiva para
novos estudos.4
Além desta introdutória, este trabalho consta de quatro seções. Uma,
contendo a motivação e os bastidores da pesquisa. Outra, em que expomos
3
Em entrevista concedida a Cida Golin, Ivone Montello, esposa do escritor Josué Montello,
afirma: “Participo da produção literária do Josué com o meu silêncio à sua volta, em primeiro
lugar, transmitindo a ele a paz e a tranquilidade de que necessita para escrever” (2002, p. 63).
Uma vez mais, temos a figura do escritor custodiado por sua mulher. Dona Ivone também
mostra como o papel das mulheres de escritores é multifacetado, ao fazer a seguinte
declaração sobre o marido: “Ele fica no gabinete trabalhando, sossegado; sempre que é
preciso ele me chama para resolver as coisas. Eu é que cuido de toda a vida dele,
secretariando o dia inteiro” (op. cit., p. 63). Além de cuidar dos afazeres domésticos, essas
mulheres se apresentam como secretárias, assessoras de seus esposos. Não deixa de ser
sugestivo o fato de que, na pequena biografia desse escritor, disponível no site da Academia
Brasileira de Letras, o nome de sua esposa não seja sequer mencionado uma única vez.
4
Aqui, nos parece apropriado citar o que afirma o intelectual uruguaio Hugo Achugar, em seu
livro Planetas sin boca: “Más que el palimpsesto, el fragmento. El fragmento o el ensayo nunca
terminado, nunca terminable, el ‘work in progress’, el eterno ‘ensayo en proceso’ de escribirse,
modificarse, corregirse” (2004, p. 14).
18
alguns episódios da vida de Dolores, no período que vai do seu nascimento até
1925, ano de seu casamento com Carlos. Uma quarta, dedicada aos anos que
vão de 1926 até sua morte, em 1994. E a última, de considerações finais, na
qual destacamos algumas das reflexões feitas ao longo do trabalho e
apontamos Dolores como uma figura que, preparando os bastidores para a
criação literária de seu marido, testemunhou, mesmo que tangencialmente, a
própria evolução de boa parte da literatura brasileira do século passado. Em
suma, salientamos que a vida desta mulher nos traz o retrato de sua época
(século 20), dos hábitos da sociedade de seu tempo e, enfim, a história de um
povo; fornece-nos ainda “subsídios para uma história privada da literatura”,
usando o título do livro de Cida Golin. 5 Ainda na seção das conclusões,
mencionamos a forma como tratamos o arquivo literário de CDA. Também
conformam esta dissertação três apêndices: um, com três entrevistas e os
outros dois com cartas trocadas entre Dolores e Carlos e uma pequena história
em fragmentos, composta por excertos retirados de toda a correspondência do
casal (de 1950 a 1979).
Avisamos que, em se tratando de um ensaio (i.e., de uma tentativa, um
"experimento"), por momentos, nos permitimos a liberdade de sair do prosaico
e incursionar no verso.
5
Segundo Cida Golin (2002), “Uma possível história privada da literatura [...] poderia se
expandir para além da obra final do escritor, da intimidade literária: são objetos que não vêm à
luz no texto final, os segredos da criação, a rotina da produção literária, os espaços criativos (o
gabinete, a casa, a mesa), os inéditos, as práticas de leitura e recepção individuais, as cartas
do autor, a opinião dos leitores. Os acervos literários tornam-se fontes privilegiadas desse
percurso. Trata-se de uma história de múltiplas vozes, a do escritor e seus coadjuvantes – sua
mulher, por exemplo –, investigando como a literatura, enquanto sistema simbólico, é vivido [sic]
no cotidiano, no ambiente íntimo” (p. 39).
19
OS BASTIDORES DA PESQUISA
Quando esta dissertação ainda era apenas um projeto, Pedro Augusto
Graña Drummond me mostrou uma das tesouras de sua avó, e mencionou a
Singer com a qual ela costurava para a família. Imediatamente, isso me
remeteu à vida de minha própria avó.
Entre linhas, pontos, agulhas, fita métrica, nós e arremates, tentei tecer
o meu enredo, feito, todo ele, de retalhos. Sou neta de Maria Aurélia e também
da máquina Singer. Desde criança, o barulho que acompanha minha memória,
até hoje, até agora, no instante em que escrevo estas linhas, vem do contato
dos pés de minha avó com o pedal da máquina de costura. Todos os dias, às
sete da manhã, aquela mulher baixinha, ex-professora – abandonara o cargo
para se casar –, branca, de olhos azuis, sentava-se, incansavelmente, no
tamborete, e passava o dia costurando as fazendas de chita que revestiam os
colchões de capim feitos por meu avô. Eu, sempre ali, por perto, brincando com
os restos de pano que sobravam – eram muito úteis para que minhas bonecas
não ficassem nuas – furando meus dedos na agulha, ouvindo estórias,
escutando canções religiosas, que aquela costureira sempre cantava. Cresci
nesse quarto de costura de um velho casarão rosa.
No momento em que passei a entender um pouco mais as relações
familiares, notei uma coisa muito simples, mas que já, há algum tempo, havia
se revestido de valor para mim e transformado em fome de conhecimento, em
matéria de pesquisas. Vi os cabelos de minha avó embranquecendo naquele
trabalho de costura. Os colchões iam para as cidades próximas, a zona rural e
hospitais. O dinheiro, que era pouco e bem medido, corria direto para o bolso
do meu avô, sempre aquele que negociava com os clientes, na sala, depois da
ordem: “Maria, põe café aqui pro compadre”. Maria levava o café e saía,
silenciosa e discretamente. Para a neta, isso era uma tristeza, porque, se fosse
a avó-favo-de-mel quem administrasse as finanças, seria bem mais fácil
surrupiar-lhe as moedas de dez centavos para comprar doce de leite no
botequim da rua. Mas, com o dinheiro no bolso do avô, a situação se
complicava...
20
Há pouco tempo, estive em uma típica fazenda mineira, nos arredores
de minha terra natal, e meus olhos se arregalaram quando vi um colchão
revestido com aqueles panos coloridos que a vovó costurava. Qual foi minha
surpresa! Perguntei à dona quem o havia feito e ela respondeu, imediatamente:
“Foi o sô Jésus colchoeiro, ué, teu avô!”. Em um segundo, vi a imagem de
minha avó, da máquina, do tamborete, vi a metamorfose daquela mulher
costureira, a mais dócil, a mais paciente, mais discreta que já conheci, e o som
das pedaladas soou forte na memória. Ali, naquele produto de mercado, estava
o corpo da minha avó. No entanto, a “assinatura” era do senhor Jésus
colchoeiro.
Desculpe o leitor a pequena lembrança. Ela talvez explique muito de
mim e, espero, do tema que há algum tempo estudo: a história das
mentalidades femininas.
No ano de 2012, a Festa Literária Internacional de Paraty rendeu uma
maravilhosa homenagem aos 110 anos de Carlos Drummond de Andrade. Tive
a oportunidade de estar presente no evento. Depois de ter assistido a várias
apresentações, me dei conta de que, ao falar do escritor itabirano, apenas uma
vez citou-se, rapidamente, o nome de Dolores, sua mulher. Caminhando pela
cidade, comecei a pensar no papel das mulheres na formação da literatura
universal, na sua participação no campo das artes, em geral. Perguntas foram
se assomando ao pensamento. Em quê Nora Joyce teria contribuído para a
obra de James Joyce? Aliás, quem foi Nora, além da musa que alimentou as
fantasias eróticas daquele escritor Irlandês, como comprovam as cartas que ele
lhe enviava? De que se ocuparia, por exemplo, Zélia Suassuna, enquanto
Ariano estava concentrado em seu escritório? Parecia-me estranho que as
mulheres, as secretárias dos escritores, tão íntimas do cotidiano deles ficassem
assim às margens da biografia desses grandes homens.6 E quem foi Dolores
6
Há que se fazer menção ao livro “Carta a D. História de um amor”, do filósofo austríaco André
Gorz (2012), em que o autor traça um perfil de si e de Dorine, sua companheira ao longo de 58
anos. Logo no início da carta, Gorz faz uma pergunta: “Por que você está tão pouco presente
no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida?” (p. 5). Em
outras partes da carta, o escritor revela a contribuição que a esposa deu a seu trabalho de
escritório, como, por exemplo, no excerto a seguir: “[...] como em todos os empregos que tive
em seguida, você assumia a sua parte no trabalho que eu tinha a fazer. Volta e meia, ia até o
escritório, ajudar na tabulação e na classificação das dezenas de milhares de cartas que
tinham restado. Você participava da redação das circulares em inglês. Nós estabelecíamos
relações com os estrangeiros que vinham visitar o escritório, convidávamos para almoçar. Não
21
Morais Drummond de Andrade quando deixou de ser Dolores Dutra de Morais?
Quem foi esta mulher que passou 62 anos ao lado de um ícone da nossa
literatura? Era certo que tinha alguma história. Pelo dictum de Pascal,
“Ninguém morre tão pobre a ponto de não deixar alguma coisa.” (BENJAMIN
apud Didi-Huberman, 2011, p.133). Mas onde buscá-la? Se a encontrar, o que
fazer de sua história? Abri um dos livros de um poeta que muito me agrada,
Affonso Ávila, e pensei logo em Laís Correa de Araújo. Leio um e penso no
outro. O caso de Dolores é diferente. Transcrevo aqui o poema que li, em
Código de Minas (1963-1967), intitulado “Círculos familiares”:
o sogro na situação
o consogro na oposição
o genro na coligação
(na prebenda a parentela)
o irmão na câmara federal
o cunhado na câmara estadual
o concunhado na câmara municipal
(no cartório a parentela)
o tio no senado
o primo na cni
o primirmão na cemig
(no negócio a parentela)
o marido na presidência
o filho na previdência
o sobrinho na prefeitura
(na embaixada a parentela)
o padrastro governador-do-estado
o enteado ministro-de-estado
o meioirmão secretário-de-estado
(na empreitada a parentela)
o avô na reação
o pai na corrupção
o neto na subversão
(par-a-par a parentela) (p. 73-74).
estávamos unidos apenas em nossa vida privada, mas também por uma atividade comum, na
esfera pública” (p. 20-21). Com esse último livro, publicado na França em 2006, Gorz e Dorine
se despedem da vida e entram na história. Em 22 de setembro de 2007, ambos se suicidam.
Ao fazer essa breve autobiografia e biografia da esposa, em forma de carta, o filósofo nos
mostra o quanto as pessoas mais discretas, que povoam a inevitável solidão de intelectuais
notáveis, são importantes para que o trabalho do escritório possa ser levado ao público.
Compartilhar a história de vida também dessas pessoas é fazer jus ao muito que elas doaram
de si para o nascimento de obras nas quais habitam, ainda que de forma invisível.
22
Ao ler o poema, que muito veio a calhar, notei a obliteração da presença
da mulher (ela aparece, por trás do marido, apenas no primeiro verso da quarta
estrofe). Ora, é patente a crítica que o poeta faz ao sistema oligárquico de uma
Minas ainda revestida de tradicionalismo, onde assuntos sobre política eram
exclusivos de homens e o lugar da mulher era bem definido. No entanto, não
devemos nos esquecer das mulheres pioneiras, que, desde a Colônia,
trabalhavam no trato com o público e tiravam daí o seu sustento. Segundo
Luciano Figueiredo (2007):
“Negras de tabuleiro” foi a designação que acompanhou pelo
Brasil colonial aquelas mulheres dedicadas ao comércio
ambulante. Se aqui e ali há registro de que incomodavam as
autoridades, seja porque fugiam com facilidade às medidas
fiscalizadoras, seja porque sua conduta moral desagradava, foi
nas Minas do século XVIII que sua atuação alcançou
dimensões mais graves (p. 151).
Elas não só trabalharam no espaço público como também contestaram o
sistema, burlaram as leis. No século XIX, despontaram, no Brasil, inúmeras
escritoras que fizeram duras críticas à sociedade, como, por exemplo, Maria
Firmina dos Reis, autora de Úrsula, primeiro romance abolicionista e um dos
primeiros escritos por mulher brasileira (MUZART, 2000), Nísia Floresta
Brasileira Augusta, que reivindicou os direitos das mulheres, e tantas outras,
como nos mostram os três volumes sobre as Escritoras brasileiras do século
XIX, organizados por Zahidé L. Muzart. Escritos de Lima Barreto e Machado de
Assis apresentam mulheres que produziam os discursos a serem proferidos
pelos maridos, nos tribunais e em reuniões que versavam sobre política. Dessa
forma, ao longo da história, a atuação da mulher se deu também no espaço
público, apesar das duras críticas e repreensões que recebia, por romper com
a doxa.
Busquei logo depois o célebre ensaio Um teto todo seu, de Virginia
Woolf, e reli uma passagem na qual já havia feito inúmeras anotações. É
preciso transcrevê-la, para que o leitor não perca o fio da meada:
Com os olhos da imaginação, vi uma senhora muito idosa
atravessando a rua, apoiada no braço de uma mulher de meiaidade, sua filha, talvez, ambas tão impecavelmente calçadas e
23
recobertas de peles, que o vestir-se, à tarde, lhes deve ser um
ritual, e as próprias roupas devem ser guardadas em armários
com cânfora, ano após ano, durante todos os meses do verão.
Elas atravessam a rua no momento em que as lâmpadas se
acendem (pois o crepúsculo é sua hora favorita), como devem
ter feito ano após ano. A mais velha está perto dos oitenta, mas
se alguém lhe perguntasse o que a vida significou para ela,
diria que recordava as ruas iluminadas para a Batalha de
Bataclava, ou que ouvira os canhões dispararem no Hyde Park
pelo nascimento do rei Eduardo VII. E se alguém lhe
perguntasse, tentando definir exatamente a data ("Mas o que
estava a senhora fazendo em 5 de abril de 1868, ou em 2 de
novembro de 1875?"), ela faria uma expressão vaga e diria não
conseguir lembrar-se de nada. Pois todos os jantares foram
preparados; os pratos e os copos, lavados; as crianças,
mandadas para a escola e mergulhadas no mundo. Nada resta
de tudo isso. Tudo se evaporou. Nenhuma biografia ou história
tem uma palavra a dizer a esse respeito. E os romances, sem
que o pretendam, mentem de maneira inevitável. Todas essas
vidas infinitamente obscuras permanecem por registrar, disse
eu, [...]; e prossegui em pensamento pelas ruas de Londres,
sentindo na imaginação a pressão do mutismo, o acúmulo de
vidas não registradas, quer das mulheres nas esquinas com as
mãos nas cadeiras e os anéis incrustados nos dedos inchados,
que, ao falar, gesticulavam de um modo semelhante ao
balanço das palavras de Shakespeare; quer das vendedoras de
violetas e de fósforos e das velhas encarquilhadas paradas nos
vãos das portas; ou das moças errantes cujo rosto, como
ondas sob o sol e as nuvens, assinalam a chegada de homens
e mulheres e as luzes bruxuleantes das vitrinas. [...] E há
também a moça atrás do balcão — para mim tanto faz
conhecer a verdadeira história dela como a centésima
quinquagésima vida de Napoleão ou o septuagésimo estudo
sobre Keats e seu uso da inversão miltoniana, que o velho
professor Z e outros como ele estão agora redigindo (1985, p.
118-119).
Tudo isso me levava, inevitavelmente, a Dolores. No Rio de Janeiro, em
conversa com um de seus netos, mencionei a vontade de escrever algo sobre
ela, um ensaio biográfico. Perguntei se isso seria possível, se havia algum
material sobrevivente que falasse dela. A resposta foi favorável. Há cartas,
fotos, receitas de culinária, máquina de costura, tesouras, bilhetes, um quadro
lindo, pintado pelo russo D. Ismailovitch e... os bordados, as colchas no estilo
patchwork. Eis aí o arquivo de Dolores se abrindo. Voltei para Minas com o
pensamento borbulhando, imaginando o que poderia fazer com esse material.
Sendo uma iniciante, aprendiz de pesquisadora, receei não estar à altura das
circunstâncias. Apoiada pelos meus professores e, em especial, minha
orientadora, comecei formalmente a pesquisa para esta dissertação.
24
No segundo semestre de 2013, parti para o Rio de Janeiro, levando na
mala meu material de trabalho: um computador, um scanner, uma impressora,
caderno de anotações, gravador e máquina fotográfica. Ao chegar ao
apartamento da família Drummond, deparei-me com um material riquíssimo.
Eram 183 cartas, arquivadas em pastas, algumas escritas a lápis, em papel
manteiga, já mostrando a ação imperdoável do tempo. Tais missivas
começaram a ser trocadas entre Dolores e Drummond, em 1950, um ano após
o casamento de Maria Julieta, a filha do casal, com o escritor argentino Manuel
Graña Etcheverry, e seguiram até 1979, data da última viagem de Dolores a
Buenos Aires. Esse material é uma espécie de reportagem do cotidiano de
Dolores e a família (Maria Julieta e Manolo e, posteriormente, os três netos,
Carlos Manuel, Luis Mauricio e Pedro Augusto) na capital argentina, e de
Drummond, no Rio de Janeiro. Assim, Dolores atuou também como uma
biógrafa da própria família. Enquanto o marido narrava, muitas vezes, suas
atividades públicas, a vida de amigos escritores, Dolores narrava, em boa parte
das cartas, os acontecimentos familiares, de modo que, se, de um lado,
contava-se sobre a doença de Bandeira e os últimos dias de Cecília Meireles,
sobre a morte de algum literato e da vida política no país, de outro se falava da
gripe e dos estudos dos netos, de suas traquinices, do trabalho de Maria Julieta,
programas em família, enfim, o “tricô doméstico”.
Compunham também o arquivo algumas fotos de Dolores, bilhetes de
aniversário trocados pelo casal, colchas feitas por ela, cadernos de receitas,
tesouras que ela usava para costurar, enfim, fragmentos de uma vida, lampejos
de uma existência. No Arquivo-Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui
Barbosa, busquei pelo acervo de Carlos Drummond de Andrade, encontrando
aí, para minha grata surpresa, um fichário de receitas de Dolores, com seções
separadas por adesivos coloridos. Toda essa organização traz a letra do poeta.
Esse contato do escritor com os cadernos de culinária de Dolores e seus
trabalhos manuais, possivelmente, tenha dado origem a poemas como “Visão
de patchwork”, escrito em forma de receita, publicado no livro Viola de bolso III
e “Poema culinário”, da seção intitulada Patchwork, de Poesia Errante.
Ainda em busca de rastros, fiz uma pesquisa no Instituto Moreira Salles
do Rio de Janeiro, onde encontrei inúmeras cartas que os pais de Dolores
25
enviavam de Belo Horizonte à filha, que residia no Rio de Janeiro, além de
fotos da família e um Diploma de Economia do Lar, recebido por Dolores. Após
uma análise, encomendei a cópia do material ao Instituto. Passei, assim, à
digitalização das cartas do casal, organizando-as no computador e, depois de
alguns dias de investigação, prossegui com as entrevistas aos familiares e
conhecidos de Dolores. Voltei a Minas com todo esse material.
O trabalho com fontes primárias requer paciência e experiência. A
primeira me acompanha. A segunda, naturalmente, vai sendo adquirida, com o
passar do tempo– começou com a pesquisa, financiada pelo CNPq, que
desenvolvi, na graduação, sobre a obra da escritora Alfonsina Storni, durante
minha Iniciação Científica. No trato com o arquivo de Dolores, tive algumas
dificuldades; a pesquisa, com tempo marcado para terminar, se prolongava, a
cada vez que me sentava para transcrever as cartas: garatujas infindáveis, a
tinta da caneta, vencida pelo tempo, o papel manteiga, em que a escrita de
frente e verso se mistura, palavras que ainda recusam qualquer tentativa de
leitura, inclusive com o auxílio de tecnologia avançada. Mesmo assim, pude
transcrever e organizar todas as cartas, material imprescindível para esta
dissertação.
Para fazer este ensaio fotobiográfico, foi preciso buscar a figura de
Dolores nos “restos” do arquivo literário de Carlos Drummond de Andrade,
naqueles elementos marginais e inclassificáveis, que se configuram mais como
rastros, pegadas deixadas sobre esta “cidade letrada”, que é o arquivo, de
onde emanam a lei e a ordem. Tais “restos” são lampejos que surgem nas
trevas, as sobrevivências do arquivo. Segundo Didi-Huberman (2011), op. cit.,
Para conhecer os vaga-lumes, é preciso observá-los no
presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos
no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por ferozes
projetores. Ainda que por pouco tempo. Ainda que por pouca
coisa a ser vista (p. 52).
Talvez, esses fragmentos, que povoam a periferia do arquivo, em seus rápidos
lampejos, possam também lançar uma pequena luz sobre toda essa “cidade
das Letras”, ainda que suas possíveis revelações sejam lacunares, em trapos,
ainda que as luzes maiores os vençam.
26
Faz-se necessário observar que Dolores, sendo conhecida apenas como
a “esposa do poeta”, uma pessoa “comum”, não teve, em princípio, nenhuma
intenção em se arquivar, em guardar suas memórias. No entanto, como relata
Maria Esther Maciel (2009):
[...] não só os feitos, as conquistas e as tragédias das pessoas
notáveis fazem uma biografia interessante. Marcel Schwob, no
Prólogo ao seu livro Vidas Imaginárias (1896), já chamava a
atenção para a avareza dos biógrafos que, ao suporem que só
a vida dos grandes homens e mulheres pode nos interessar,
dão-se o papel de historiadores e negligenciam a vida das
pessoas comuns, discretas e anônimas (p. 400).
Graças às conquistas da Nova História e das teorias dela advindas, hoje nos
interessamos também pela escrita da vida do homem comum (DOSSE, 2009).
E de quantos “homens comuns” se compõe a vida dos notáveis? “Acaso, não
existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?”
(BENJAMIN, 1985, p. 226). No arquivamento da vida de um notável é possível
ouvir ecos de uma voz emudecida.
Sendo o arquivo de Dolores formado por fragmentos, não haveria outra
forma de esboçar seu perfil biográfico senão por essas partículas isoladas,
rápidos lampejos de vida. Toda a escrita deste ensaio seguiu um caminho que
a própria biografada nos sugeriu, com suas colchas no estilo patchwork. Um
retalho aqui, outro acolá, juntando-se eles para registrar ao menos uma
centelha de vida, um suspiro, uma lágrima. Tal método também nos foi
apresentado por Roland Barthes, ao trabalhar o conceito de biografema:
[...] termo relativo à teorização e à prática de escrita de Roland
Barthes, desenvolvida pelo autor em seu livro Roland Barthes
por Roland Barthes. Refere-se ao conceito que responde pela
construção de uma imagem fragmentada do sujeito, uma vez
que são abolidos do discurso da memória o estereótipo da
totalidade e o relato de vida como o registro de fidelidade e
autocontrole... É ainda o que se deve conceder, numa biografia,
aos detalhes, a “alguns gestos” e inflexões, manifestações
alheias a princípios de ordem permanente e universal...
(SOUZA, 2004, p. 34).
A vida narrada através de “unidades estruturais”, uma espécie de caleidoscópio,
onde, a cada vez que reorganizamos os mesmos fragmentos, temos uma nova
27
figura. Na impossibilidade de controlar a vida, em sua totalidade, optamos aqui
por apresentar a imagem fragmentada de Dolores, desviando-nos, assim, dos
princípios da ordem universal e de hierarquias.
Ainda no que concerne à elaboração deste ensaio, outras dificuldades
se apresentaram neste percurso. Segundo Eliane Vasconcellos (1999):
O ser humano do sexo feminino aparece sempre subordinado:
ela é esposa, filha, mãe e até mesmo a amante de algum
homem. Em uma representação sintática da sociedade, o
homem (marido, pai, amante) era sempre a oração principal e
as mulheres, as variadas orações subordinadas que o seguiam.
É no outro que é buscada a sua identidade (p. 121).
Tal assertiva ficou ainda mais clara para mim enquanto escrevia este ensaio. A
maior preocupação que tive neste trabalho foi a de evitar que a figura de
Drummond se sobrepusesse à de Dolores. (A própria Maria Julieta Drummond
de Andrade, após ter tido um poema de sua autoria atribuído ao pai em sua
coluna do jornal carioca O Globo, assina simplesmente “Maria Julieta” em seu
último livro). Naturalmente, durante a escrita, percebi que, para falar de Dolores,
era necessário falar de Carlos. A partir de 1920, data do início do namoro, a
vida dela começa a ser registrada por ele, um arquivista nato. Assim, na
maioria dos documentos relacionados a Dolores, temos a marca deixada por
Carlos (como se pode verificar nas fotografias usadas neste trabalho). Nas
fotos a que tive acesso – nem todas colocadas no ensaio –, quase nunca
Dolores está só; na maioria delas, Drummond está presente. Creio que, se
escrevêssemos sobre Zélia Suassuna ou até mesmo Zélia Gattai, figura que se
destacou publicamente, com suas obras literárias, teríamos que, em algum
momento, buscar as suas identidades, respectivamente, em Ariano Suassuna
ou em Jorge Amado.
É preciso observar que, se, por um lado, falar das mulheres de
escritores, sem falar deles, seria algo praticamente impossível; por outro, não
seria demais afirmar que falar deles, sem mencioná-las e dar-lhes o justo
reconhecimento, seria uma tarefa possível, porém inadequada. Sobre esta
questão, sempre no contexto dos séculos passados, Vasconcellos (op. cit.)
afirma:
28
Esta dependência feminina não termina nem depois da morte
do marido. Na viuvez, tanto ele quanto ela encontram-se no
mesmo estado, ambos se caracterizam pelo fato de terem
perdido o respectivo parceiro. Mas, mesmo depois de morto,
ele continua impondo a ela sua supremacia, pelo menos no
campo linguístico. É comum referirmos a uma mulher como a
viúva de X, mas só em situações muito raras, nós o
mencionamos como o viúvo de fulana, pois o homem é
identificado por seu próprio nome ou por sua atividade
profissional [...] (p. 136).
A todo o momento, tive em mente os riscos que correria, vendo-me sempre
forçada a vincular a imagem de Dolores à figura de Drummond – não
esqueçamos que, depois de namorar cinco anos, foram casados por mais de
seis décadas. Nas próprias entrevistas que fiz para esta dissertação – algumas
delas em anexo –, às vezes, o assunto se desviava da biografada e terminavase por falar de seu marido. Fato curioso é que essa dependência do nome do
esposo não se resume apenas às mulheres que atuaram somente no lar. Em
entrevista concedida a Rachel Esteves de Lima, publicada no livro Figurações
do íntimo - Ensaios (2013), a professora e pesquisadora francesa Françoise
Simonet-Tenant relata: “Quando acabei esse trabalho [sobre a relação entre
Valéry e a música], na França, começaram a falar de uma escritora que tinha
sido amante de Paul Valéry” (p.14-15). Posteriormente, a estudiosa cita o nome
de Catherine Pozzi, que, para o público, mais que escritora, foi amante de
Valéry... Como escapar a essa dependência? De minha parte, fiz o possível
para colocar Dolores sempre em primeiro plano. Espero tê-lo conseguido.
O leitor encontrará, nas próximas páginas, alguns coriscos de histórias,
anedotas que trazem apenas um perfil da Dolores, a partir do que me foi
contado por pessoas e pelo que encontrei em documentos. E, aqui, noto algo
bastante curioso. Nas biografias acadêmicas que conheço, quase nunca se vê
o “lado negativo” do biografado. Sempre me pergunto se esses seres de papel
seriam mesmo assim, perfeitos, sem mácula. Mas, ao ter a oportunidade de
lidar com a matéria, percebi que, raramente, os documentos de arquivos
mostram coisas negativas a respeito dos seus arquivistas; com as lembranças
daqueles que os conheceram, em geral, a situação não é diferente: selecionase o que é bom e o que se lembra de bom da vida das pessoas. Portanto, nem
os documentos do arquivo, nem as entrevistas que fiz me possibilitaram
29
mostrar certas facetas de Dolores. Porém, o leitor não é ingênuo e poderá
elaborar conjecturas, tirar suas próprias conclusões e, até mesmo, criar uma
nova versão sobre o que aqui está escrito.
Há ainda algo que devo mencionar, quanto ao uso das imagens.
Gostaria que estas fossem observadas também como citações, como aquilo
que está presente para reforçar o já dito, mas, bem além, deslocar o leitor para
outros espaços, talvez até mesmo para dentro de si, assim como fazemos,
diante das imagens de livros como Os Emigrantes, de Sebald, O Africano, de
Le Clézio, ou Clarice – fotobiografia, de Nadia Gotlib, obras que, de certa forma,
também nortearam esta pesquisa. É possível que as imagens selecionadas
falem mais do que o texto escrito. Não que as fotografias tragam de volta o
passado, pois elas são sempre um aqui e agora, um acontecimento novo aos
nossos olhos. Em seu livro A câmara clara (1984), Roland Barthes afirma:
A Fotografia não rememora o passado (não há nada de
proustiano em uma foto). O efeito que ela produz em mim não
é o de restituir o que é abolido (pelo tempo, pela distância),
mas o de atestar que o que vejo de fato existiu. Ora, esse é um
efeito verdadeiramente escandaloso. A Fotografia sempre me
espanta, com um espanto que dura e se renova,
inesgotavelmente. Talvez esse espanto, essa teimosia,
mergulhe na substância religiosa de que sou forjado; nada a
fazer: a Fotografia tem alguma coisa a ver com a ressurreição:
não se pode dizer dela o que diziam os bizantinos da imagem
do Cristo impregnada no Sudário de Turim, isto é, que ela não
era feita por mão de homem, archeiropoietos? (p. 123-124).
É dessa forma que devemos olhar as imagens aqui expostas, como se estas
fossem uma ressurreição, um acontecimento novo, uma revelação, a cada
momento. Fausto Colombo, em seu livro Os arquivos imperfeitos, relembra dois
conceitos importantíssimos de Barthes, em relação à análise das imagens, da
fotografia: o studium e o punctum, a saber:
[...] o studium é o percurso que a imagem preestabelece para a
leitura, o deslocamento do já acontecido, do já sido. Aceitar o
studium significa conhecer na origem da foto a realidade que
ela produz, deixar-se levar para dentro de uma lembrança
concretizada e bloqueada pelo ícone. O punctum, em
contrapartida, é o comparecimento do casual, do inesperado, e
como tal conduz para além do studium; mas esse além ainda é
30
o real, que se deixou ocasionalmente impressionar (COLOMBO,
1991, p. 48).
Para a seleção das fotos aqui utilizadas, os dois conceitos citados foram
levados em consideração. Gostaria que os potenciais leitores deste ensaio
pudessem também interpretar as imagens disponibilizadas, norteando-se pelos
sentidos dados ao studium e ao punctum. Que se deixem, acima de tudo,
impressionar pelo casual, pelo que vai além da fotografia, da pose (ensaiada?)
dos corpos ali presentes.
Em anexo, coloquei algumas (poucas) cartas de Dolores e Drummond.
Aquelas são uma forma de dar voz à remetente, pois configuram uma espécie
de diário, uma escrita de si e dos outros, e estas tampouco deixam de ser uma
fonte de informações a respeito dela.
Por fim, cabe frisar o aspecto político deste trabalho. Gosto de observar
as coisas mínimas, as pequenas formas de vida, a história miúda do cotidiano,
o povo menor que, em sua singeleza, revelam dados significativos de uma
sociedade numa época determinada.
Quanto ao teor desta narrativa, não posso precisar em que ponto saio
do real e parto para a ficção, tampouco sei onde ambos se cruzam, ou até se é
possível separá-los. Escolha o leitor os caminhos que lhe convierem. De minha
parte, fico, daqui em diante, com as palavras de Didi-Huberman (op. cit.):
Ver o horizonte, o além é não ver as imagens que vêm nos
tocar. Os pequenos vaga-lumes dão forma e lampejo a nossa
frágil imanência, os “ferozes projetores” da grande luz devoram
toda forma e todo lampejo – toda diferença – na
transcendência dos fins derradeiros. Dar exclusiva atenção ao
horizonte é tornar-se incapaz de olhar a menor imagem (p. 115).
Há aqueles que se alimentam de lampejos clandestinos. “Beleza siderante que
é a de ‘ver isso, ao menos uma vez na vida’” (ROCHE, 1982 apud DIDIHUBERMAN, idem, p.47).
31
SÃO JERÔNIMO, SANTA BÁRBARA
1900 (?) - 1925
Estas memorias o recuerdos son intermitentes y a ratos
olvidadizos porque así precisamente es la vida.
Pablo Neruda
Fig. 2 Foto de Dolores, sem data. Arquivo da família.
São Jerônimo, Santa Bárbara!!! São Jerônimo, Santa Bárbara!!! São
Jerônimo, Santa Bárbara!!!...
Apavorados, ajoelhados no chão, e de mãos dadas, inclinando o corpo
para frente e para trás, assim rezavam os filhos da família Dutra de Morais,
quando trovões e relâmpagos cortavam o céu de Mar de Espanha, pequena
cidade da Zona da Mata mineira. Entre essas muitas crianças, está Dolores
Dutra de Morais.
A modo de brevíssima introdução ao esboço de sua vida, eis aqui uma
sequência de palavras que sugerem um perfil de Dolores: Mulher, acima de
tudo. Filha de. Mãe de. Enfermeira. Costureira. Datilógrafa. Secretária de
fábrica de sapatos. Profissão oficial: do lar. Pequenina. Compreensiva.
Reservada. Silenciosa. Meiga. Tímida. Recatada. “Precavida, como a formiga
32
da fábula”. Constante. Fiel. Esposa do escritor. Força do poeta. Mulher ao lado.
“Sempre sua”. Companheira da vida inteira. Idade incerta. Livro de receitas.
Cozinha. Filas de açougues. Anjo do lar. Cadeira de balanço. Uisquinho.
Palavras cruzadas. Revista Burda. Máquina Singer. Tesoura. Agulhas. Linha.
Dedal. Penélope. Cinema de bairro. Música clássica. Mozart. E Beethoven. E
Baudelaire. Sogra de. Avó de. Doceira. Boa risada. “Dondolô”, “Dolares”.
Buenos Aires. Flâneur da Calle Florida. Antiquários. Santos antigos. São José.
Santa Rita. Tapetes turcos, chineses, persas. Reumatismo. Vista fraca.
Alheamento. O nada. Entre o nem ser, nem estar. Sábado, 2 de julho, 1994.
Silêncio.
Quarta-feira, 2 de julho, 2014, 20 anos depois. Por meio de substantivos
e adjetivos, desenha-se o ser de papel, frio e pálido, sem sangue, com a face
que nos olha, firme e sem expressão. Face manchada de tempo, de quem
existiu, com carteira, assinatura e impressão digital. Lampejos de uma
existência.
Fig. 3 Carteira de Identidade de Dolores Morais Drummond de Andrade.
Arquivo da família.
33
Como é de costume criar, para tudo, um começo...
Fig. 4 Dona Maria das Dores Morais (Sinhá) e o Senhor Sevanir Dutra de Morais. Pais
de Dolores, Ruy, Geraldo, Massilon, Álvaro, Galeno, José, Vitória, Maria, Ruth e
Conceição. Lembrança da Lua de mel, em Poços de Caldas, Minas Gerais – 1891.
Arquivo da família-Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro.
34
Mas o tempo e a vida e os rostos nos escapam...
Fig. 5 Dona Maria das Dores (Sinhá) e família, em Belo Horizonte, sem data. Arquivo
da família - Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro.
O que dizer da senhora, no centro da foto, cercada de filhos e netos –
carinhosamente chamada Sinhá? Redondinha e eficiente. Era sábia e ativa;
antes do almoço, entrava no galinheiro e, indiferente à confusão que produzia
entre as aves aflitas, ia agarrando galinha por galinha; tocava-as e separava-as.
Identificava sem hesitação as que estavam chocas, isolando-as num cercado
de arame, junto aos ninhos; recolhia os ovos e resmungava contra os galos de
crista empinada. Depois entrava na cozinha onde o feijão, já cozido, esperava
os temperos. Às onze horas, quando o alho e a cebola refogados recendiam, a
sirena da fábrica, pontual, cortava o ar e todos sabiam que o almoço simples
dos netos já estava pronto. Os adultos teriam também, às onze e meia,
ensopadinho de carne com batata, taioba, jiló ou quiabo. Jantava-se cedo, e a
comida, que se mantivera quente no forno, junto às brasas da manhã ainda
acesas, era servida em pratos feitos, sobre a mesa da copa, que nunca vira
toalha: apenas madeira de lei, usada, reluzente. Um último copo d’água do filtro
de barro e o relógio de pêndulo batia seis horas, seis e meia. Uma última
35
areada na tampa de ferro do fogão (parecia de prata), um gole de café
requentado. Só depois se acendia a lamparina que boiava num pequeno lago
de azeite e devia iluminar o Sagrado Coração da sala, durante a noite. Mais um
dia de dever cumprido, exato, regular, inglório, e tudo a postos para recomeçar
na madrugada seguinte, com os galos, indefinidamente.7
O afeto entre mãe e filha
Fig. 6 Dona Sinhá e Dolores, 18.01.1953, em Belo Horizonte. Arquivo da família.
7
Trechos das crônicas “Canto de galo” e “Antes, em Minas”, respectivamente dos livros O valor
da vida (1982) e Um buquê de alcachofras (1980), de Maria Julieta Drummond de Andrade.
36
Das Dores e Dolores pelas ruas de Belo Horizonte
Fig. 7 Dona Sinhá e Dolores, 23.04.1932. Arquivo da família.
Quando nasceu Dolores, 1900, 1902, 1903? Sabe-se apenas que foi em
um 19 de abril. Era Morais, era Moraes? Quem sabe?... (vide Fig. 3, p. 33, e
Fig. 11, p. 41). Branca, esbelta, olhos escuros, bem redondos e vivos, cabelo
ondulado e curto. Os primeiros capítulos de sua história foram, mais ou menos,
assim: datilógrafa e secretária de uma fábrica de sapatos, em Belo Horizonte.
37
Fig. 8 Dolores, 1922. Arquivo da família.
Ele, estudante do curso de farmácia, vivendo da mesada do pai. Magro, olhos
claros, elegante, de terno preto e chapéu. Frequentador do Bar do Ponto e do
Café Estrela. Apaixonam-se. Para o casal, tudo começa no ano de 1920,
quando o contato entre rapazes e moças era rigorosamente controlado pelos
pais ou os irmãos mais velhos delas, munidos de bengala, “coisa perigosíssima,
porque não era ornamento, era para bater, caso o sinal fosse avançado”.8
Mas, para Dolores, tudo começa, efetivamente, no dia 30 de maio de
1925, data em que a união dos dois se formaliza, no papel, perante a
sociedade (vide Fig. 9, p. 39, e Fig. 10, p. 40). Para a esposa, a garantia de um
lar, da “proteção masculina” e “respeito social”, num tempo em que, para a
mulher, “o matrimônio [...] se apresentava como a única perspectiva de vida”
(VASCONCELLOS, 1999, p. 120). Ao homem, a segurança de uma
companheira leal, obediente, a quem ele devia doutrinar9; em suma, alguém
8
Entrevista a Carlos Drummond de Andrade, por Leda Nagle, veiculada no “Jornal Hoje”, Rede
Globo de Televisão, em novembro de 1980.
9
É interessante ver qual era, na época, a discussão sobre a mulher, no meio masculino. Em
carta de 23 de agosto de 1925, Mário de Andrade escreve a Drummond: “Essa indulgência
mútua que você bem conhece como base de paz e de que me falou na sua última carta já é um
bom ponto de apoio. Mas você tem obrigação de ensinar isso a Dolores. Quer minha opinião
38
que se ocuparia, afinal, das coisas práticas do seu cotidiano. Uma época em
que o casamento era levado muito a sério e significava laço vitalício. No Brasil,
30 anos depois, o desquite, que não dissolvia os vínculos conjugais e não
permitia novos casamentos, era a única possibilidade de separação oficial dos
casais. O divórcio só passou a fazer parte das leis brasileiras na década de 70
(BASSANEZI, 2007).
Fig. 9 Bilhete de Carlos para Dolores, 30.05.1971. Arquivo da família.
sincera sobre a mulher? Acho a mulher o mais incomparável vir-a-ser que tem neste mundo. A
mulher é sempre um vir-a-ser até que encontre alguém que a faça ser. Isso quer naturalmente
dizer que num casal tudo depende do marido. (...) o homem registra sentimentos pela
inteligência pra cultivá-los (na arte, na filosofia, na vida) ao passo que a mulher registra os
sentimentos pra efetivá-los melhor. Efetivá-los melhor sempre dentro da vida dela. Enfim: me
parece que o homem é mais tardonho que a mulher ... e por isso adquire uma inteligência mais
crítica. Daí o viver buscando o sentido da vida, criando artes aparentemente desinteressadas,
filosofias e modos de viver. Ora a mulher tem mais instintivamente o sentido da vida não sei se
por inteligência mais rápida ou se por sentimentos mais intensos e por isso mais iluminadores...
Porém vem daí o ter uma inteligência mais aplicada e por isso eminentemente ativa, ao passo
que a inteligência masculina é mais passiva, mais desprática, eminentemente artística. Você
me conhece suficientemente pra saber que não estou fazendo literatura. É o que sinceramente
penso atualmente e me vem da minha experiência. Ora você faça sua mulher ser, trabalhe ela,
faça ela o quanto possível interessar-se ativamente na sua vida de dentro e de fora do lar e
sobretudo na vida intelectual e moral de você sempre sem se esquecer da indulgência grande
que sabe ter diante de si uma inteligência aplicada aos sentimentos.”
Parece-nos que essa questão de “doutrinar” a mulher, de educá-la, para que possa
acompanhar o trabalho intelectual de seu companheiro, é uma ideia da época, já que, como o
próprio Mário sugere, a educação das mulheres era para o cuidado do lar e a dos homens,
para a arte e a filosofia. E James Joyce, no dia 22 de agosto de 1912, em carta à sua
companheira Nora, diz: “Quando voltarmos para Trieste, serás capaz de ler livros, se eu tos der?
Então podíamos conversar os dois. Ninguém te ama como eu, e eu gostava de ler contigo os
mais diversos poetas, dramaturgos e romancistas, servindo-te de guia. Só te darei a ler o que
há de melhor na literatura.”
39
Fig. 10 Notícias sobre o casamento de Dolores e Carlos, 18.04.1925, 02.06.1925,
03.06.1925. Arquivo da família.
40
Fig. 11 Convite de casamento de Dolores e Carlos, 30.05.1925. Arquivo da família.
Fig. 12 Dolores e Carlos, 26.01.42. Arquivo da família.
Na época em que Dolores se casou, não era visto com bons olhos que a
mulher tivesse uma ocupação remunerada e menos ainda quando o próprio
41
marido se encontrava desempregado, sendo sustentado pelo pai, pois a função
de prover o lar cabia, exclusivamente, ao homem. Foi assim que Dolores, ao se
casar, abandonou o emprego.10 E não só isso. Ela, antes mesmo do casamento,
tomou uma providência que durou por toda a vida: omitiria sua verdadeira
idade. Tudo indica que era mais velha do que o marido, e isso também não era
socialmente aceitável. Desse modo, por uma questão de princípios, nunca
declarava sua real data de nascimento. No entanto, lá pelos anos 80, quando
teve que se operar de um nódulo frio na tireóide, acompanhada por Carlos,
num consultório, indagada sobre sua idade e vendo que o caso era sério, com
firmeza e dignidade, revelou ao médico o seu segredo, que ainda assim nos
escapa. Suspeita-se que nascera um ano antes do século XX.11
Fig. 13 Bilhete de Carlos para Dolores, 19.04.1970. Arquivo da família.
10
“Segundo depoimento da professora Clirian Alquéres, amiga da família Drummond de
Andrade, Dolores, esposa do poeta, abandonou o emprego (1925) para casar-se com Carlos
que se encontrava desempregado. O casal passou a viver à custa do pai de Carlos [...]”
(VASCONCELLOS, op. cit., p. 98).
11
Anexo I (p. 116-126): entrevista a Luis Mauricio Graña Drummond, no dia 04.12.2013.
42
O documento como ficção – um modo de subverter o que nos é apresentado
como real
Fig. 14 Verso da Carteira de Identidade de Dolores. Arquivo da família.
Documentos com datas fictícias, uma história de amor, sem data, sem
assinatura e sem fim, encontrada no arquivo de Dolores. A narrativa que
termina em vírgula, ou não termina, fazendo jus ao título que lhe foi dado.
Curiosamente, a moça da história é um ano mais velha do que o garoto e tem
os “olhos morenos”. Dolores?
43
44
Fig. 15 Documento sem data. Arquivo da família - Instituto Moreira Salles, Rio de
Janeiro. Transcrição na página seguinte.
45
História simples que recomeça...
Era pequeno, de cabelos amarelados e claros, já com uma indecisa
tristeza nos modos e um ar de alheamento, de ausência. Ela, ao contrário, mais
velha um ano, tinha, nos olhos morenos, duas fontes de alegria mal reprimida.
Brincavam muito. Eram amiguinhos, queriam-se para marido e mulher,
tinham sempre as mãos unidas, uma efusão ingênua.
- “Quando eu for homem... você casa comigo?...”
- “Caso, sim...”
E, numa ingênua efusão, tinham as mãos unidas, olhos nos olhos, como
bons amiguinhos.
Aquilo durou uma infância. No colégio, ele sentia um certo rubor ao
lembrar-se do idílio infantil e inconsequente. No colégio, ela rezava orações,
fazia belos desenhos, crescia.
Até que uma vez...
O encontro foi num domingo de dezembro, um dezembro de férias, na
casa de D. Mariazinha. Seria que os dois continuassem os mesmos? Não
continuavam, mas os olhos dele se abriram para os olhos dela, e, fitando-se, a
história recomeçou...
Ele era romântico, e, sobre as suas roupas escuras, a cabeleira clara,
em anéis, parecia uma coroa de ouro. Ela sabia versos, e a história se
complicou com versos e romantismo...
Regressaram aos estudos, cada um levando nozes, retratos. Os retratos
envelheceram na ternura dos dois, foram destruídos, como nozes...
Agora é de vez – pensaram.
Mas a historia recomeçou ainda uma vez, nova e diferente. Viram-se
numa grande cidade, dentro de um grande jardim, à beira de um pequeno lago.
Os pais estavam presentes,
46
DOLORES, DOLARES, DONDOLÔ
1926 - 1994
Mirar el río hecho de tiempo y agua y recordar que el
tiempo es otro río, saber que nos perdemos como el río y
que los rostros pasan como el agua.
Jorge Luis Borges
Fig. 16 Fotos de Dolores em diferentes datas. Arquivo da família.
Quando entrevistadas, as mulheres de escritores do século XX quase
sempre relatam histórias semelhantes. Maria Lúcia Dourado, em conversa com
Vera Regina Morganti (1994), revela que era a primeira leitora dos escritos de
Autran Dourado, servindo-lhe também como datilógrafa. Com Dolores, não foi
muito diferente. Segundo o próprio Drummond, ela, em 1924, datilografou os
originais de Os 25 poemas da triste alegria12 e a seguir encadernou o trabalho,
conferindo-lhe toda a aparência externa de um livro. Graças também a esse
trato cuidadoso que Dolores deu à obra, hoje é possível conhecermos o “tom”
12
Essa obra acabou se perdendo, reaparecendo mais de 80 anos depois, no acervo de um
bibliófilo carioca. Foi lançada em 2012, pela Cosac Naify, em edição fac-similar. As informações
aqui colocadas foram retiradas da apresentação do livro, feita por Antonio Carlos Secchin.
47
do “quase livro do pré-poeta” de 1924, bastante diferente do poeta de Alguma
Poesia.
Datilógrafa, noiva, esposa, companheira. Em 1926, tendo Carlos
conseguido um cargo de professor de Geografia, Dolores muda-se com ele de
Belo Horizonte a Itabira. Mas não gostou nada da ideia de abandonar a capital
mineira, assim descrita por Pedro Nava, em Beira-mar:
Belo Horizonte era uma capital profundamente quieta e bem
pensante. Amava o soneto, deleitava-se com sua operazinha
em tempos de temporada, acatava o Santo Ofício que
censurava por sua conta os filmes, suas moças liam Ardel,
Delly, a Bibliothèque de ma Fille, a Collection Rose, não
conversavam com rapazes e faziam que acreditavam que as
crianças pussavam [sic] nas hortas entre pés de couve,
raminhos de salsa, bertalha e talos de taioba. Havia uma
literatura oficial. Os discursos de suas excelências eram obras
antológicas [...] (1979, p.179).
No dia em que chegou à fazenda, adoeceu, horrorizada de ver aquela “vida
besta”, demasiado pacata. Voltou para a cidade, manifestando sintomas de
“gravidez extra-uterina”. De tão mal que estava, foi transportada em padiola até
Santa Bárbara, onde tomaria o trem para Belo Horizonte. Em carta de 31 de
agosto de 1926, Drummond escreve a Mário de Andrade, contando-lhe sobre a
doença de sua companheira: “trouxe Dolores para aqui, ela veio melhorando,
melhorando e agora já está boa, pelo menos aparentemente. O médico de
Itabira disse que era preciso operação, um segundo daqui disse: vamos ver, e
um terceiro, meu amigo, disse que não era preciso. Agora ela já se levantou e
sai a passeio comigo. Em Itabira esteve mal que você nem imagina: sem fala,
sem vista e resignada a morrer. Que filho custoso, Mário!”
De fato, a gravidez do primeiro filho foi bastante conturbada. No dia 19
de março de 1927, Dolores entra em um penoso trabalho de parto e no dia 21
dá à luz um menino, enorme e robusto, de nome Carlos Flávio. Asfixiado pelo
cordão umbilical, viveu apenas meia hora.
48
Fig. 17 Fotos de Carlos Flávio e seu túmulo, Belo Horizonte, 21.03.1927, 08.1977.
Arquivo da família.
O próprio nome Dolores, que em espanhol significa “dores”, já lhe antecipava o
sofrimento.
Quase um ano depois, no dia 4 de março de 1928, na Rua Silva Jardim,
número 117, nasce a única filha do casal, Maria Julieta, linda, quase robusta,
manhosa e risonha.
49
“Dos dias em que, se o sol era forte, comia-se a merenda ao ar livre, ao redor
da mesa comprida e baixinha. Aquela vez foi terrível: a mãe, sempre com
ideias modernas, prepara sanduíche de tomate, manteiga e açúcar, e o
pãozinho insólito, que ela pretendia mastigar com orgulho, acabou sendo
objeto de escárnio geral, até mesmo da professora. Chorou muito ao chegar
em casa, e no dia seguinte a mãe foi ao Jardim reclamar, mas já não era
possível extrair do episódio o fundo de vinagre.”13
Fig. 18 Fotos de Maria Julieta, Dolores e Drummond, 1929. Arquivo da família.
13
Trecho retirado de “Faíscas”, seção “Memória”, da obra O valor da vida (1982), de Maria
Julieta Drummond de Andrade.
50
“(Morangos com creme numa latinha redonda, supremo requinte materno,
alguns anos depois. Como os tempos eram outros, as colegas já lhe invejavam
a delícia rosabranca.)”14
Fig. 19 Maria Julieta e Dolores, 1932. Arquivo da família.
Sendo dona de casa, com a filha e o marido para cuidar, Dolores passa
a frequentar um curso da Escola de Economia no Lar 15 , promovido pela
Companhia Força e Luz de Minas Gerais. Como se pode ver, na reprodução da
página seguinte, eram aulas oferecidas especialmente para mulheres.
14
Idem
O primeiro curso de Graduação de Economia Doméstica surgiu em 1952, com a implantação
da primeira Escola Superior de Ciências Domésticas, na Universidade Rural do Estado de
Minas Gerais, hoje Universidade Federal de Viçosa. No segundo semestre de 2014, a UFV
passou a oferecer o curso de doutorado em Economia Doméstica, o único da América Latina e
o primeiro do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade. (Ver
https://www2.dti.ufv.br/ccs_noticias/scripts/exibeNoticia.php?codNot=20138).
15
51
O modo de sentar, bem comportado. Todas as damas de pernas cruzadas,
mãos apoiadas no colo, vestidos longos, sapatos de salto. A moda da época,
disciplinando os corpos.
Fig. 20 Dolores – em pé, a terceira, da esquerda para a direita –, Belo Horizonte,
02.09.1933. Arquivo da família - Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro.
52
Enquanto os homens recebiam seus diplomas de médicos, advogados,
farmacêuticos e subiam em palanques, para discursos eleitorais, as mulheres
recebiam diplomas como o de Economia no Lar. Segundo Vasconcellos (op. cit.,
p. 203),
A educação feminina, na virada do século [do XIX para o XX],
estava estreitamente relacionada com as atividades
desenvolvidas pelo ‘belo sexo’. A mulher da classe social mais
alta deveria aprender apenas algumas das chamadas prendas
de sociedade: tocar piano, falar francês, bordar, costurar. A
agulha se sobrepunha à caneta. Isto ocorria porque a mulher
era formada para casar e não para manter-se (p. 203).
Tal é o retrato da época. No entanto, vale lembrar que, já em 1879, algumas
(poucas) mulheres cursavam o nível superior, a partir do Decreto nº 7.247, de
19 de abril daquele mesmo ano, da reforma Carlos Leôncio de Carvalho, pela
qual se anexavam às Faculdades de Medicina as escolas de farmácia,
obstetrícia, ginecologia e cirurgia dentária (VASCONCELLOS, op.cit., p. 216).
“Facultava-se, então, nestas escolas, a inscrição para candidatos de ambos os
sexos, devendo as mulheres ocuparem [sic] lugares separados nas salas de
aula” (BERNARDES, 1983, apud VASCONCELLOS, op.cit. p. 216). Porém,
ainda de acordo com esta pesquisadora, as mulheres que estudavam recebiam
severas críticas da sociedade.
Dolores, por sua vez, fez jus ao diploma. Futuramente, os três garotos,
seus netos, teriam o gosto de vestir calças, camisas e pulôveres feitos pelas
mãos da avó. Para o marido, em sua máquina Singer, fazia até as cuecas. De
suas mãos, saíam deliciosos doces de banana, de abóbora. E a sopinha de
feijão com macarrão, tão simples, mas ainda recordada pelo neto Luis Mauricio,
com os olhos brilhando e um sorriso leve: “... aquela sopa de feijão com
macarrão, que era ótima...”, ele diz. Certa vez, com mais de 30 anos, esse
mesmo neto se intoxicou e chegou vomitando e aos gritos à casa de Dolores. E
o fato é que “a vovó acordou, me deitou e me cuidou. No dia seguinte, ela fez
pra mim sopa de arroz batida no liquidificador e em 24 horas eu fiquei bom. Ela
cuidou de mim, acho que diria, melhor que uma mãe. Nos domingos, ela não
fazia jantar, mas fazia uns sanduichinhos. Pegava o pão de forma, tirava as
beiras e colocava um presuntinho e mais alguma coisa, enrolava tudo isso num
53
pano de prato úmido, colocava na geladeira e ficava bom; vinha acompanhado
por uma laranjada, ou alguma coisa que ela preparasse.”16
Dolores fazia também grandes colchas de retalhos, do tipo patchwork,
com figuras hexagonais ou quadradas. Algumas delas ainda estão com os
netos. Os objetos de vovó, guardados carinhosamente, permanecem como
uma lembrança familiar. Ao lado dos textos do avô, estão os tecidos da avó e
ambos aquecem a memória dos que ficaram. O próprio “método patchwork”,
usado em trabalhos manuais de Dolores, de certa forma é semelhante ao
procedimento adotado neste ensaio, composto de “retalhos”, fragmentos de
uma vida. Fotos, bordados, receitas, alguma breve informação no fim de uma
carta, entrevistas, bilhetes, coisas esparsas, que, juntas, tentam tecer uma
fagulha de vida, um sopro de existência, uma “colcha”. É justamente assim que
os norteamericanos costumam confeccionar as colchas de retalhos, obras de
memória, feitas com pedaços de tecidos que pertenceram à pessoa cuja vida é
relatada nesse trabalho manual. O tecido como forma de sobrevivência.
Observemos que, naqueles tempos, com frequência, essa atividade da
costura, exclusiva de mulheres, era realizada concomitantemente a uma
própria de homens: a da escrita ou da leitura.17 Enquanto as agulhas elaboram
produtos manuais, que futuramente serão passados às mãos de filhos, netos,
bisnetos, da máquina de escrever vai nascendo também um tecido outro, que,
em pouco tempo, será legado ao público, a uma nação, ao mundo. Enquanto
Penélope borda, Ulisses se entrega a aventuras, mais além, que serão
contadas para a posteridade. Em entrevista a Vera Regina Morganti (op.cit.),
Mafalda Veríssimo diz que fazia colchas de tricô enormes, enquanto Erico
escrevia, e também participou de um curso para bordar lençóis de linho, tendo
bordado todo o seu enxoval. Nydia Guimarães, mulher de Josué Guimarães,
afirma que estava sempre ao lado do marido, enquanto ele escrevia. Bordava
tapeçaria, para não conversar com ele. Dolores, por sua vez, chegou a eleger
16
Entrevista com Luis Mauricio Graña Drummond (p. 116-126).
Implicitamente, a imagem da mulher que tece, enquanto o homem lê, aparece na crônica “Na
varanda”, do livro Um buquê de alcachofras, de Maria Julieta Drummond de Andrade: “Um
casal de velhinhos se senta na varanda, num começo de tarde chuvosa, e conversa. Sobre quê?
Sobre tudo, sobre nada – não interessa. Estão sentados e conversam. Ela nem sequer faz
algum trabalho manual, uma blusinha de crochê para a neta, um paninho para colocar debaixo
da fruteira da sala; ele não tem nenhum jornal ou livro no colo” (p. 162).
17
54
uma cadeira de balanço 18 , para colocar no escritório de Carlos, ao lado da
mesa de trabalho. Lá, em silêncio, fazia seus serões de costura. Era, de fato,
como Mafalda e Nydia, uma espécie de anjo do lar, vivendo em seu cantinho,
discretamente, sempre atenta, sempre zelosa. Era ela quem, a passos leves,
entrava no escritório às dez da manhã, para levar uma laranjada, um café, um
pedaço de queijo ao marido, enquanto ele fazia o “tricô das crônicas”. (Certa
vez, Drummond chegou a declarar ao neto Luis Mauricio que não sabia fazer
um café, algo bastante natural para aquela geração).
Dolores enfrentava as enormes filas dos açougues e “era comum vê-la
fazendo feira, toda semana, caladinha, recatada, acanhada", como disse, em
entrevista, sua vizinha, dona Stella Pavan. Mesmo tendo empregadas – que
usualmente a chamavam de “Dondolô” –, ela jamais se descuidava da direção
do lar. Nenhum detalhe lhe escapava: disposição de móveis, adornos, quadros,
etc. Por uma questão estética, gostava de santos barrocos. Sua casa no Rio
tinha móveis antigos, os santos, uma virgem catalogada, comprada em Buenos
Aires – Santa Rita.
Fig. 21 Foto de Carlos Drummond de Andrade, ao lado de Santa Rita, sem data.19
18
Essa cadeira pode ser vista no início do vídeo O fazendeiro do Ar, disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=UP66vBqmiNE
19
Disponível em: http://editora.cosacnaify.com.br/blog/?tag=carlos-drummond-de-andrade.
Acesso: 20.06.2014.
55
Edmílson Caminha, um dos maiores estudiosos da obra de CDA, afirma
que “Dolores era muitas: mãe dedicada, avó compreensiva, dona de casa
eficiente, amiga prestimosa, mas também, e de maneira especial, esposa de
poeta, cumpridora do papel de coadjuvante de um homem público, de um
escritor permanentemente assediado pela imprensa e pelo público. Assim,
discreta e silenciosamente, soube viver à sombra do marido.”20
Fig. 22 Dolores, Edmílson Caminha e Drummond, Rio de Janeiro, 01.1984.
Foto por Ana Maria Caminha. Arquivo Edmílson Caminha.
Certamente, a recíproca não foi verdadeira: ele não viveu à sombra dela;
no entanto, é também incontestável que, sem o apoio constante de Dolores,
Carlos teria encontrado maiores dificuldades ao longo de sua carreira. 21 Por
exemplo, não foram poucas as vezes em que ela atendia o telefone ou
chegava à janela para dizer que ele não se encontrava. O marido estava, sim,
no escritório, fazendo seu trabalho, em paz, e na tranquilidade garantida pela
20
Anexo II (p. 127-129): entrevista com Edmílson Caminha, concedida a mim, em 10.12.2013.
Vejamos, por exemplo, o que o escritor Erico Verissimo fala sobre sua esposa, no livro Solo
de Clarineta: “Mafalda amadurecia, transformando-se numa companheira compreensiva que
me dava todo o apoio moral e o estímulo de que eu necessitava. Sem sua paciência, sua
tolerância, seu bom-senso e seu bom-humor, minha carreira de escritor teria sido muito mais
difícil do que foi ou talvez mesmo impossível” (1987, p. 264).
21
56
custódia da mulher. De fato, Dolores cuidava do tempo do marido. Não
escrevia, mas cuidava do que ele escrevia, entendia o seu ofício.22 E é curioso
o fato de que na obra dele existam apenas dois poemas para ela.23
Segundo seu genro, o escritor argentino Manuel Graña Etcheverry 24 ,
Dolores era muito econômica e, em tempos de inflação, sempre que podia
trocava cruzeiros por dólares, fazendo, assim, sua pequena economia. Carlos,
sendo também uma pessoa econômica, mas sem se importar com o assunto
dos
dólares,
se
divertia
com
a
preocupação da
mulher,
a quem,
carinhosamente às vezes chamava de “Dolares”.
“Dolares” costumava guardar dinheiro em fronhas e envelopinhos. (De
fato, após seu falecimento, os netos encontraram embrulhinhos com notas de
denominações já sem curso legal). Era ela quem cuidava das finanças miúdas
do lar, provendo as formas materiais de sobrevivência, e isso talvez explique
esse seu modo mais cuidadoso de lidar com o dinheiro. A propósito de
mulheres administrando o dia a dia de homens notáveis, nos permitimos
mencionar o seguinte caso, transcrito do livro O casaco de Marx, de Peter
Stallybrass (2012): “foi Marx quem escreveu sobre o funcionamento do dinheiro,
mas eram sua mulher, Jenny, e sua criada, Helene Demuth, que organizavam
as finanças da casa e faziam as visitas à loja de penhores.” E Dolores/Dolares,
em seu árduo vai-e-vem cotidiano, como ela mesma afirmava, era “precavida
como a formiga da fábula”.
22
Nesse sentido, o comportamento das mulheres de escritores se assemelha bastante. Dorine,
a esposa de André Gorz, dizia ter se “unido a alguém que não podia viver sem escrever, e
sabia que quem quer ser escritor precisa se isolar, tomar notas a qualquer hora do dia ou da
noite; que seu trabalho com a linguagem continua mesmo depois de largar o lápis, e pode se
apossar dele por completo, bem no meio de uma refeição ou de uma conversa. [Ela afirmava
que] amar um escritor é amar que ele escreva. ‘Então escreva!’” (GORZ, 2012, p. 21).
23
“Anoitecer”, do livro A Rosa do Povo e “A companheira”, em Poesia errante, derrames líricos
(e outros nem tanto, ou nada).
24
Anexo III (p. 130-132): entrevista com Manuel Graña Etcheverry, concedida a mim, em
11.11.2013.
57
Fig. 23 Bilhete de Drummond para Dolores, 25.12.1970. Arquivo da família.
Fig. 24 Bilhete de Drummond para Dolores, 19.04.1971. Arquivo da família.
58
Fig. 25 Página do caderno de receitas de Dolores. Acervo de Carlos Drummond de
Andrade, Arquivo-Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de
Janeiro.
59
A imagem inevitável da mulher na cozinha. Naquele tempo, era o lugar de onde
ela podia falar de si, colocando em prática o que lhe fora ensinado.
Fig. 26 Caderno de receitas de Dolores, Acervo de Carlos Drummond de Andrade,
Arquivo-Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.
60
Em boa parte dos Livros da Odisseia, Penélope não é vista; ela se recolhe.
Está, provavelmente, em algum canto, tecendo a sua vida, a sua própria
história, que é também a de outros. Tecer é uma forma de escrever a existência
com linhas aveludadas. Aracne, a jovem tecelã, não contava e arquivava
histórias por meio do que tecia? Aliás, texto é palavra variante de tecido... O
ponto dado com elegância, o arremate, os nós, a trama, o enredo, o fio da
meada, o novelo e a novela: a escrita elaborada de tantas outras formas...
Fig. 27 Os bordados de Dolores, leitora número 1 da revista alemã Burda, de corte e
costura. Arquivo da família.
“DASDORES (assim se chamavam as moças naquele tempo) [...] Dasdores e
suas numerosas obrigações: [...] velar pelos doces de calda, pelas conservas,
manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais exigem-lhe o
61
máximo, não porque a casa seja pobre, mas porque o primeiro mandamento da
educação feminina é: trabalharás dia e noite. Se não trabalhar sempre, se não
ocupar todos os minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode
vigiar sonhos de moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que
se formem. A total ocupação varre o espírito. Dasdores nunca tem tempo para
nada. Seu nome, alegre à força de repetido, ressoa pela casa toda. “Dasdores,
as dálias já foram regadas hoje?” “Você viu, Dasdores, quem deixou o diabo
desse gato furtar a carne?” “Ah, Dasdores, meu bem, prega esse botão para
sua mãezinha.” Dasdores multiplica-se, corre, delibera e providencia mil
coisas...”25
Fig. 28 Pano de mesa feito por Dolores. Arquivo da família.
25
Excerto do conto “Presépio”, do livro Contos de Aprendiz, de Carlos Drummond de Andrade.
62
Fig. 29 Dolores, 1930, Arquivo da família.
Em 1934, Dolores e a filha de seis anos permanecem em Belo Horizonte
por um tempo, enquanto o marido está no Rio de Janeiro, à espera de ser
nomeado no Gabinete de Gustavo Capanema, ministro de Educação e Saúde
Pública, e procurando alguma casa para alugar. No fim do ano, arrumam as
malas e partem para a capital.
63
Provavelmente, o Rio de Janeiro que encontraram...
Fig. 30 O bairro de Ipanema, 1928. Atrás dos fotografados, a Avenida Vieira Souto. Ao
longe, pode-se ver a Igreja de Nossa Senhora da Paz, recém-inaugurada. No fundo da
foto, o Sumaré e também os muitos morros baixos de Ipanema, que foram derrubados.
Arquivo de George dos Reis.
64
De Minas abissal para o mar aberto do Rio
E a cabeça da filha, buscando o colo da mãe.
Fig. 31 Drummond, Dolores e Maria Julieta, Rio de Janeiro, 1935. Arquivo da família.
A família levava uma vida simples, de hábitos frugais. Horário para almoço e
jantar. Comida mineira. Couve, um bifinho, ovo e o angu do marido que, como
ele mesmo dizia, era sempre bom porque, ao ser alimento insosso, nunca
estava ruim. E ela dava a ele um copo de leite, após o almoço. Mineiros...
65
Depois, a vida na casa da rua Joaquim Nabuco, 81 (segunda residência
da família na então capital da República). A falta de água26, que nunca era uma
novidade em Copacabana, e as goteiras, causadas pelos temporais de primeira
classe, recolhidas com pinicos e baldes. No dia seguinte, o sol, sempre a
postos, alheio a tudo o que se passou. Às cinco da manhã, a dona de casa já
se movimentava: o café, o bolo e até o feijão de molho, tudo bem arranjado e a
mesa pronta nos horários de costume.
Certo dia, por volta de 1945, a filha Maria Julieta, tendo que ir a um
acampamento de bandeirantes, deixa uns papéis com a mãe, com o rascunho
de uma novela que havia escrito. A garota tinha apenas dezessete anos.
Dolores, sempre atenta, sempre solícita, com sua perícia de datilógrafa, bateu
tudo à máquina. Foi a primeira leitora de A busca – assim se chama a obra.
Quando a filha voltou, mostrou os escritos ao pai, que os levou à Editora José
Olympio, onde Rachel de Queiroz, consultada, aconselhou a publicação.
Nasceu aí uma das mais jovens escritoras brasileiras. Dolores, nos bastidores,
uma vez mais, é testemunha de parte da criação de nossa história literária.
26
As duas primeiras crônicas que CDA publica no “Correio da Manhã”, em 9 e 10 de janeiro de
1954, “A pipa” e “Relações de água”, ilustram o problema sistêmico da falta de água na cidade
do Rio de Janeiro, em 1954, auge da crise de sua distribuição na capital, que só será sanada
com a construção da estação de tratamento do Guandu, por Carlos Lacerda, quando
governador do Estado da Guanabara (1960-1965).
66
Fig. 32 Dolores e Carlos, 1963. Arquivo da família.
Mas, entre mãe e filha, além do carinho, havia certa tensão, como
lembra o neto Luis Mauricio. Carlos e Maria Julieta tinham um mundo à parte, o
mundo literário, coisa deles dois. Dolores aí praticamente não entrava.
Segundo o genro Manuel Graña Etcheverry, Dolores nunca teria feito críticas
literárias a Carlos. Maria Julieta, sim, o fazia e, eventualmente, ele, o genro,
também o fez. No entanto, Dolores, em seu trabalho silencioso, de formiga, não
foi talvez (implícita) personagem de uma história literária? Não Dulcinéia do
Toboso, nem Beatriz de Dante, mas personagem de carne e osso. Acaso os
leitores e as mulheres dos escritores ou os maridos das escritoras, que
permanecem por ali, calados, próximos aos livros, não estariam bem acima do
patamar de uma nota feita às margens de um manuscrito, uma palavra riscada,
uma caricatura elaborada num momento de distração? Matéria para a crítica
genética.
Não era costume à época que a mulher questionasse o marido. E
Dolores era uma representante da geração brasileira a que pertencia, como
afirma Edmílson Caminha, em sua entrevista, na qual também relata, ao ser
67
questionado sobre a contribuição dela ao trabalho literário do marido: “Tenho a
certeza de que Dolores foi fundamental na vida de Carlos, como o porto seguro
de que ele necessitava, como ser humano e como artista. Sabiamente, ela o
compreendia nos seus múltiplos papéis – de marido, de escritor e de homem
que nunca perdeu a capacidade de amar. Inteligente que era, sabia dos
relacionamentos extraconjugais de Carlos, mas optou por suportá-los, em
nome da sobrevivência da família e da relação minimamente harmoniosa que
deve prevalecer entre marido e mulher. Não tenho dúvida de que uma
separação teria sido fatal para Drummond, pela ausência da pax domestica
sem a qual não conseguiria viver nem escrever. Assim, a convivência com
Dolores refletiu-se na obra de Carlos (não apenas pelo equilíbrio emocional
que lhe proporcionava, como acabo de dizer), mas explicitamente, também,
nos poemas em que faz alusão direta à companheira de toda uma vida.
Namorador impenitente (o que só depõe em favor dele...), Drummond não teria
conseguido viver sem Dolores.”27
Fig. 33 Maria Julieta, Dolores e Carlos, 1951. Arquivo da família.
27
Entrevista com Edmílson Caminha (p. 127-129).
68
Fig. 34 À esquerda, Manuel Bandeira; no centro, os noivos Pomona Politis e Thiago de
Mello; à direita, Dolores e Carlos, padrinhos do casamento, 1951. Arquivo da família.
Sobre as relações extraconjugais a que Caminha faz alusão, paira uma
vaga reminiscência de algo que haveria sido contado (por Dolores?). Ela teria
dito ao marido: “Pois sim, raparigas, raparigas... Fique com elas, mas não lhe
dou mais filhos!” Como dissemos, isto não se constitui sequer em lembrança,
nunca foi confirmado e, talvez, jamais o seja. O fato é que eles não tiveram
mais filhos. Há também uma versão (tampouco confirmada) da cena em que
um vaso de flores voa para cima do poeta, quebrando-lhe um braço... A filha,
Maria Julieta, algumas vezes também criticaria o pai por sua infidelidade, de
mais de 30 anos, em seu relacionamento com Lygia Fernandes, mulher mais
jovem, que o itabirano conheceu, na década de 50. Segundo conta José Maria
Cançado, em seu livro Os sapatos de Orfeu, quase todas as tardes, depois do
trabalho, Carlos comparecia ao apartamento da companheira. Alguns de seus
versos são dedicados a ela.
Naqueles tempos, em que ter uma amante, de alguma forma, era
socialmente aceitável (para os homens), tudo convergia para que não
69
houvesse mesmo a dissolução das famílias. E o que diziam as publicações das
revistas a respeito das aventuras extraconjugais?
Para o homem:
[...] que atitude deve tomar um marido que se sabe enganado?
Permanecer ao lado de quem o atraiçoa seria indigno de sua
parte [...] Mesmo porque não se pode exigir de um marido que
viva com uma mulher que lhe é infiel. Não pode haver
harmonia num clima de indignidade. Num caso desses o pai
tem que fazer da fraqueza das crianças a sua armadura de
coragem para enfrentar sozinho as responsabilidades que
deveriam ser desempenhadas a dois (O Cruzeiro, 28 de jan.
1956 apud Bassanezi, op. cit. p. 634).
Para as mulheres:
[Mantenha-se] no seu lugar de honra, evitando a todo custo
cenas desagradáveis que só servirão para exacerbar a paixão
de seu marido pela outra [...] [Esforce-se] para não sucumbir
moralmente [...] levando tanto quanto possível uma vida normal,
sem descuidar do aspecto físico [...] (O Cruzeiro, 04 de jun.
1960, apud Bassanezi, op.cit.. p. 635).
E ainda:
[...] sorrir e não fazer cenas para que o marido, a fim de fugir
dessas cenas, não caia nos braços de outra e abandone de
vez a casa (Jornal das Moças, 08 de mar. 1956, apud
Bassanezi, op.cit. p. 635).
Como vemos, a mulher que se separasse, ou que causasse a separação, não
receberia da sociedade a mesma complacência dada ao homem.
Conforme já foi dito, no ano de 1950, apenas o desquite era permitido, e
este não dissolvia o casamento. Guimarães Rosa, por exemplo, após seu
relacionamento extraconjugal com Aracy de Carvalho, teve seu desquite
legalizado em abril de 1943, durante sua estada na Colômbia. Os dois se
casaram por procuração no México, no dia 20 de agosto de 1948 (SCHPUN,
70
2011, p. 378-379). Nessa época, no Brasil, uma pessoa desquitada não podia
assumir oficialmente outro laço conjugal. Assim, tiveram que se casar em terras
estrangeiras.
Em 13 de março de 1960 28 , Drummond, em carta para Dolores, que
estava em Buenos Aires visitando a filha, dá a notícia da separação de Portinari
e sua mulher Maria nestes termos: “Só uma notícia triste e que me chocou
extremamente: Portinari e Maria se desquitando”. E Dolores responde, em
carta de 17 de março de 196029: “Fiquei sofrida com o caso Portinari, devia
esperar isto de todo casal, mas este tão amigo, tão eles mesmos.” Futuramente,
quando, em 1970, a própria filha Maria Julieta e seu marido Manolo se
separaram, Dolores, andando pela Avenida Santa Fe, em Buenos Aires, ao
passar por ele, virando a cara, finge não vê-lo. Mas, pouco depois, tudo se
acertou e reataram a amizade bonita e sincera que sempre tiveram.30 Não é
preciso mais para dizer que ambos eram contra a dissolução do casamento, da
família, etc. Um precisava do outro, ambos se apoiavam. Além disso, a esposa
mineira era um dos poucos elos que levavam o marido ao seu passado, tão
celebrado em sua poesia e na sua prosa, e ele também era ponte para o
passado de Dolores. Como afirma o neto Luis Mauricio: “Apesar das coisas, foi
um casal bem constituído, um típico casal da época, de classe média. Havia
essas desavenças, essas coisas que, hoje em dia, não seriam toleradas por
uma mulher, nem por um marido, enfim, mas era assim mesmo o tempo deles.
Foi assim. Nunca se separaram, nem creio que tenham cogitado sequer essa
ideia.”
Em entrevista concedida a Leda Nagle, em 1980, quando questionado
sobre a situação da mulher brasileira na época, o escritor não hesita em dizer:
“Acho que a minha filha Maria Julieta ilustra bem esse esforço da mulher no
sentido de ela se construir uma pessoa autônoma, independente, pensando
pela própria cabeça e influindo na sua própria vida. As mulheres estão fazendo
28
Anexo IV (p. 141).
Anexo V (p. 142).
30
Vale a pena mencionar o seguinte episódio para destacar o carinho constante que existiu
entre Manolo e seus (ex) sogros. Certa vez, ao final dos anos 70, ele foi a um congresso na
UFRJ apresentar um trabalho seu sobre o ritmo na poesia. Carlos e Dolores, um casal tão
reservado, que quase não recebia visitas em casa, lhe enviaram um telegrama dizendo: “Fique
conosco”. Mais ainda, como era costume nos tempos do casamento com Maria Julieta, eles lhe
cederam o próprio quarto.
29
71
um grande trabalho nesse sentido. O que eu acho muito simpático. Até então,
nós éramos proprietários da mulher. Hoje elas não são mais propriedades
nossa. Isso é ótimo.” E sobre os movimentos de libertação do homem nos
Estados Unidos, Drummond afirma: “Acho que o homem não precisa muito
desse movimento. O homem precisa ceder alguns dos privilégios que ele
sempre teve, para haver uma competição saudável, sobretudo no mercado de
trabalho, entre o homem e a mulher. Isso é o que eu acho, uma vez que ela
conquista a independência econômica, não se dobra mais a caprichos
masculinos, nem a gente vai domesticá-la como se fosse um bicho, um gato.
Acho que a coisa está caminhando para um equilíbrio bastante razoável nesse
sentido” (RIBEIRO, 2011).
72
E havia o exemplo dos pais de Dolores – casados há 60 anos.
A tradição não é uma vocação. É uma herança.
Fig. 35 Pais de Dolores, foto frente e verso, 09.06.1951. Arquivo da família –
Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro.
Em 1949, a filha Maria Julieta casa-se com o advogado e escritor
argentino Manuel Graña Etcheverry. A partir dessa data, Dolores passa a ir
regularmente a Buenos Aires, na maioria das vezes sozinha, pois o marido,
além de não gostar de viajar, tinha que ficar no Rio, já que era funcionário
73
público. No mês de maio de 1950, tendo viajado à Argentina, pela primeira vez,
ao saber da gravidez de Maria Julieta, Dolores já se põe a tricotar.31 Queria
presentear o primeiro netinho com uma boa produção de agasalhos, para que
ele enfrentasse garbosamente o frio cortante do inverno portenho. Todos os
anos, Dolores tirava suas férias conjugais e da labuta diária, indo a Buenos
Aires. Tal qual uma flanêuse, trocava pernas pela calle Florida, Avenida Santa
Fe e por onde pudesse encontrar santos barrocos32, tapetes persas, turcos,
chineses. Antiquários e leilões de móveis antigos: aí estavam ela e a filha.
Passava algum tempo lá, com a vida bem diferente da que levava no Rio.
Festas pomposas em navios brasileiros, cinema a qualquer dia, a qualquer
hora, sem aquele rigor do cineminha dominical de bairro, das 14 horas, com o
marido. Apresentações do mais alto nível no Teatro Colón33, no Grand Splendid,
jantares na Embaixada do Brasil, em casa de conhecidos, passeios pelos
arredores de Buenos Aires, exposições de arte.
Fig. 36 À esquerda, Maria Julieta, Dolores e Manolo, Buenos Aires, 1963. Arquivo da
família.
31
Anexo VI. Carta de 13 de maio de 1950 (p. 134).
Anexo VII. Carta de 16 de setembro de 1965 (p. 146).
33
Anexo VIII. Carta de 04 de agosto de 1957 (p. 138).
32
74
E os netos foram chegando. As mãos da avó, tecendo; cartas sendo escritas,
uma a uma, enviadas ao marido, no Brasil, iam relatando a infância das
crianças: um dentinho de leite que caía, uma gripe, um tombo, as notas
escolares, o desenvolvimento nas artes, nos idiomas, nada escapava àquela
avó atenta. Contava-lhes estórias divertidas. Fã dos desenhos do netinho mais
velho, mandava-os ao avô, dizendo: “É preciso aproveitar esse menino,
Carlos!”. Nas cartas, descrevia o olhar, a emoção e o sorriso de cada um, em
sua chegada ao aeroporto de Ezeiza34, um verdadeiro acontecimento para as
crianças. Nessas tantas missivas que voavam de Buenos Aires ao Rio de
Janeiro, Dolores tecia a história de sua família.
Fig. 37 Manolo, Dolores, Carlos e o cão Puck, 09.1951. Arquivo da família.
34
Anexo IX. Carta de 23 de agosto de 1958 (p. 140).
75
Com um olho em Buenos Aires e outro no Rio de Janeiro, Dolores
cuidava do Ministério Doméstico, como ela e Carlos brincavam de chamar a
própria casa.35 Pague o leite e o jornaleiro, na data tal, ela pedia. “Caso Manolo
queira trazer alguma coisa: as toalhas de banho estão em sua valise nova, no
porta-malas e ainda há dois lençóis e uma toalha de rosto numa caixa, no
armário de espelho de nosso quarto. Há também o travesseiro, que poderá vir
numa bolsa de papel que o Banco de Crédito Real nos deu e que está também
no mesmo armário embaixo, ao lado das gavetas. Há dois pares de sapatos
Vulcabras, embaixo, no mesmo lugar, em caixas. E principalmente os copos de
cerveja no bufê da sala de jantar. Se ele quiser trazer alguma coisa, poderá
escolher.” Tudo em perfeita ordem. Tudo bem explicado, preciso, para não
tomar o tempo do marido, que estaria ocupado com os trabalhos de escritório,
trabalhos estes que garantiam ao casal uma vida um pouco melhor, em termos
financeiros.
Fig. 38 Da esquerda para a direita, a pintora argentina Mary Graña, sua cunhada
Maria Julieta e Dolores, Buenos Aires, sem data. Arquivo da família.
35
Anexo X. Carta de 7 de julho de 1963 (p. 143).
76
Fig. 39 Carta de dona Sinhá para Dolores, 29.11.1952. (Depois da morte do marido, o
capitão Sevanir, dona Sinhá vai viver em São Paulo, onde estavam alguns de seus
filhos). Arquivo da família - Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro.
77
Fig. 40 Carta de dona Sinhá para Dolores, 23.07.1953. Arquivo da família - Instituto
Moreira Salles, Rio de Janeiro.
78
Geralmente, Dolores viajava em agosto, que era o mês do aniversário do
segundo neto, Luis Mauricio, e passava um mês em Buenos Aires. 36 Aquilo
tudo era uma festa só: ela levava presentes, normalmente, piorras, discos e
relógios, e as crianças gostavam dela, porque era boa e sempre carinhosa. Era
uma alegria, quando ela abria a mala e apareciam os brinquedos! Por outro
lado, botava medo nos meninos, enquanto dormia. “A vovó roncava alto.” Que
terror!
Fig. 41 Carlos Manuel, Drummond, Maria Julieta e Dolores, Buenos Aires, 1953.
Arquivo da família.
36
Anexo XI. Carta de 27 de agosto de 1964 (p. 145).
79
Fig. 42 Da esquerda para a direita, Luis Mauricio, Maria Julieta, Carlos Manuel e
Dolores, Buenos Aires, 24.09.1955. Arquivo da família.
Fig. 43 Da esquerda para a direita, Pedro Augusto, Dolores e Luis Mauricio, à porta da
casa da família, Arroyo 831, Buenos Aires, 1964. Arquivo da família.
80
No Rio, Dolores saía pouco e, quando o fazia, era em companhia das
primas Pitu e Maria. Carlos, sempre ocupado com seus escritos, reservava os
domingos para, religiosamente, almoçar com a esposa e ir ao cineminha de
bairro, das 14 horas. E, quando Manolo ia de carro ao Rio de Janeiro,
passeava com a sogra. Ela gostava de ver as construções de pontes e túneis
novos. Queria acompanhar a metamorfose da cidade grande. Certa vez, numa
Barra da Tijuca ainda pouco urbanizada, genro e sogra viram como se filmava
a queda de um automóvel no mar. Eram cenas de Diamantes a gogó (1967),
filme dirigido por Giuliano Montaldo.
Fig. 44 Dolores e Carlos, por Alair Gomes, Rio de Janeiro, 1978. Acervo de Carlos
Drummond de Andrade, Arquivo-Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Barbosa,
Rio de Janeiro.
81
No apartamento da rua Conselheiro Lafaiete, para onde se mudaram em
1962, pelas noites, programas televisivos e, em particular, novelas distraiam o
casal – ambos eram “noveleiros”, embora Carlos, geralmente, fosse um
espectador “tangencial”. Em carta de 17.7.79, estando Dolores em Buenos
Aires, Drummond narra parte da novela “Pai Herói”
37
, colocando sua
companheira a par de tudo o que havia se passado: “A novela do ‘Pai Herói’
está pegando fogo. Imagine você que André (Tony Ramos) foi preso sob a
acusação de haver matado e enterrado em lugar ermo sua mulher Karina. O
júri absolveu-o por falta de provas, exatamente como ao primo Leopoldo Heitor:
o cadáver encontrado não era o de Karina. Enquanto isso, esta, disfarçada com
óculos escuros, assistia ao júri do coitado, e ninguém a reconhecia... Afinal, ela
deu-se a reconhecer à primeira filha, no jardim público, aonde levara o filho de
André e as duas crianças ficaram amigas para sempre. Rosa Maria Murtinho, a
matusquela, apaixonou-se pelo malandro do Claudio Cavalcanti e resolveram
viver juntos. Como este não aparecesse, ela subiu ao telhado e lá de cima
começou a fazer uma porção de micagens, ameaçando atirar-se. Juntou gente,
e o Corpo de Bombeiros salvou a situação. Aí o Cláudio apaixonou-se deveras
pela maluca, e fez um filho em sua outra namorada, de puro entusiasmo pela
primeira. O César continua cada vez mais mau caráter, a ex-babá sente
remorso por haver abandonado a filha de Karina, mas promete não contar nada
a ninguém se César lhe arranjar emprego. E o Baldaracci começa a ficar
desmoralizado. Perdeu a demanda com o pai de Ana Preta, que agora está rico,
enquanto ele, Baldaracci, se entrega à farra rasgada, e seu pai Colasanti se
prepara para casar. Janette Clair é mesmo um gênio, né?”
37
Escrita por Janete Clair, exibida pela Rede Globo, de janeiro a agosto de 1979.
82
Sou mulher feita e refeita, fui triste, fui prisioneira, hoje
sou frágil, sou livre, coleciono lutas e abandonos na pele
cicatrizada.
Maria Julieta Drummond de Andrade
Fig. 45 Dolores, Rio de Janeiro, abril de 1981. Arquivo da família.
Amante de palavras-cruzadas e fiel leitora de O Globo, pedia aos netos,
assim que almoçavam depois da praia, para irem, ali mesmo, pertinho da
Conselheiro Lafaiete, buscar o jornal, que, na época, ainda era vespertino. Os
garotos, já cansados, curtindo as férias, se recusavam a fazer o que a avó
pedia, mas nunca saíam vitoriosos, pois, sistematicamente, eram submetidos a
uma certa chantagem psicológica: “Tudo bem, eu vou, mas se depois vocês
souberem de uma velhinha que apareceu morta aí na rua...” Não havia outro
remédio senão, é claro, atender ao pedido da vovó.
83
Fig. 46 Maria Julieta, Carlos e Dolores, no Hotel Fazenda Pedras Negras, em Rio
Bonito, RJ, 10.1982. Arquivo da família.
As fotos revelam certos detalhes, evocam momentos, fazem uma
espécie de congelamento e mudo recorte do tempo. Falam muito. Calam muito.
O retrato de outubro de 82 nada nos conta sobre uma história que, segundo
Pedro Augusto, aconteceu no dia em que ele foi feito. Quando Carlos
completou 80 anos, Dolores ficou comovida pela quantidade de homenagens
que o companheiro havia recebido. Os repórteres queriam uma entrevista, uma
palavra, ao menos. Fãs mandavam flores, doces, bebidas, presentes de toda
ordem – a filha Maria Julieta dedicou-lhe seu livro O valor da vida, publicado
nesse ano de 1982. Era a literatura em festa, em grande comemoração.
84
Fig. 47 Dolores e Carlos, na Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 05.11.1982. Arquivo
da família.
Na hora do almoço, a família sentada à mesa, para brindar o aniversário do dia,
e uma cena que ficou marcada na memória de Pedro: Dolores se põe a chorar,
dizendo que todos se lembravam do Carlos, todos procuravam por ele, queriam
falar com ele e ninguém falava dela, ninguém se lembrava dela. Poderia se
dizer que, nesse momento, Dolores revelou o sentimento da mulher que está
sempre ao lado, girando em torno do centro, o anjo do lar, que aparece aqui e
ali, sem que os outros percebam sua presença solitária. Um estar-ausente.38
38
Parece-nos que vem a propósito citar duas autoras. Simone de Beauvoir, no livro O segundo
sexo afirma: “Não é permitido à mulher fazer uma obra positiva e, por conseguinte, fazer-se
reconhecer como pessoa acabada. Por respeitada que seja, é subordinada, secundária,
parasita. A grave maldição que pesa sobre ela está em que o sentido mesmo de sua existência
não se encontra em suas mãos. Eis por que os êxitos e os malogros de sua vida conjugal têm
muito mais gravidade para ela do que para o homem: este é um cidadão, um produtor, antes de
ser um marido; ela é antes de tudo – e muitas vezes exclusivamente – uma esposa, seu
trabalho não a arranca de sua posição; é desta, ao contrário, que ela tira ou não seu valor”
(BEAUVOIR, 1990, p. 209-210).
E Eliane Vasconcellos (op. cit.) assevera: “a mulher deveria saber, inteligentemente, usar a sua
capacidade e seus dons, com discrição, em benefício do marido, respaldando-o nas letras e
artes ou simplesmente na profissão que exercia” (p. 121).
85
Dolores deu à sua época o que esta lhe pediu. Se sua identidade só se
(re)constrói a partir do sobrenome e da presença do marido, se sua existência
foi completamente vinculada à do esposo, sua figura, mesmo de forma não
explícita, deve ter deixado rastros na obra do poeta itabirano. É curioso
observar que, ao falar da vida e obra de Drummond, os estudiosos poucas
vezes citam o nome de Dolores. Vinte anos após sua morte, ela ainda continua
uma presença-ausente.
Fig. 48 Bilhete de Dolores para Drummond, 31.10.1979. Arquivo da família.
“Carlos, meu grande amigo do coração: ouça estes formidáveis concertos para piano
de Mozart e nunca se esqueça de sua companheira de todos os momentos. Um beijo
de Dolores. 31.X.79.”
Dolores apreciava os grandes compositores da música erudita e, como
nos narra Pedro Augusto, “ela os reconhecia ao escutar suas obras na Rádio
MEC”. E, conforme nos comenta Luis Mauricio, era leitora de Baudelaire
(“conservei a linda edição francesa, com sua própria assinatura, de Les fleurs
du mal, Payot & Cie; 10 x 7 cm, encapada em fazenda: um mimo!”). A avó dos
meninos conhecia bem o peso de um nome consagrado e possuía senso de
humor, como vemos no seguinte episódio. Certa vez, ao receber um amigo de
seu neto Pedro, pregou-lhe uma boa brincadeira. Havia, entre os adornos da
casa, a bela cabeça de um santo antigo. Sem cerimônia e com espírito
brincalhão, dando umas piscadelas para o neto, a anfitriã deslumbrou seu
jovem visitante, fazendo-lhe acreditar que era peça do Aleijadinho! E Dolores
86
era mesmo assim, subvertia a realidade, nas pequenas coisas. Referia-se a
Jorge Luis Borges com apenas um nome: “Jorges” e, assim, a seu modo,
mostrava ser também borgeana. Essa era, possivelmente, uma forma que tinha
de criticar certas facetas da existência. Quando os netos eram ainda pequenos,
Dolores lhes contava a história de Cafas-leão, mítico gigante que percorreu (e
ainda percorre) gerações e gerações da família Drummond39, e fazia com que
os garotos acreditassem que ela iria publicar nos Estados Unidos um livro
sobre esse personagem, a um tempo, simpático e desastrado. As crianças
levavam o caso muito a sério. E isso permanece no imaginário dos netos como
uma boa lembrança. Drummond, em carta de 16 de agosto de 195640, dirige-se
à companheira com estas palavras: “Dolores, onde estás, onde estás que não
respondes? Escreves o teu romance e por isso não tens tempo de mandar
algumas linhas para este velho companheiro?” A história ficou como uma
anedota, uma brincadeira, mas, quem sabe, podia sim ter sido um desejo
recôndito de Dolores. Porém, o que ela efetivamente usou para imprimir a
memória de sua existência foi a máquina de costura, a agulha e a linha; e, na
memória dos seus netos, a mesa posta, a decoração do lar, o seu carinho, por
fim, coisas miúdas, de todo dia, que as atas da História não se interessam
muito em arquivar. Como afirma Virginia Woolf (1985), no ensaio Um teto todo
seu: “todos os jantares foram preparados; os pratos e os copos, lavados; as
crianças, mandadas para a escola e mergulhadas no mundo. Nada resta de
tudo isso. Tudo se evaporou. Nenhuma biografia ou história tem uma palavra a
dizer a esse respeito” (p. 118).
Voltemos a Dolores. Como nos contam seus netos, era de um natural
bom humor, uma pessoa extremamente tolerante – “foi o único membro da
família que jamais me censurou”, segundo Luis Mauricio. Mas também tinha
caráter forte e seu lado, digamos assim, ranzinza. Na velhice, costumava
repetir muitas vezes a mesma coisa. Disso bem sabem os faxineiros que certa
vez limparam a fachada do prédio onde ela vivia: “Ô, moço, toma muito cuidado,
não vai quebrar meu vidro!” “Não, dona, fique tranquila.” “Olha lá, toma cuidado
com meu vidro, não vai quebrar, não!” Idem, idem, idem. Até que... só se viram
39
40
Vide o poema “Didática”, em Boitempo, de CDA.
Anexo XII (p. 136).
87
cacos de vidro pelo chão. Dolores, é claro, não podia deixar de acrescentar:
“Ah, tá vendo! Eu disse que vocês iam quebrar, eu disse!” Seus netos se
lembram também de uma curiosa superstição de Dolores: toda vez que entrava
em casa, tocava a carranca do São Francisco que ficava entre a porta do
elevador e a da própria casa.
Fig. 49 Dolores, Rio de Janeiro, circa 1980. Arquivo da família.
Testemunha da experiência humana, em 1969, Dolores reuniu-se com
Carlos, em frente à televisão, para ver a alunissagem de dois corajosos. Não
bastassem as aventuras terrestres, agora o homem buscava a lua. O ambiente
do lado de cá era de grande expectativa, com aquela transmissão ao vivo para
o mundo inteiro!
88
Fig. 50 Bilhete com autocaricatura de Carlos para Dolores, Natal de 1969. Arquivo da
família.
Fig. 51 Bilhete de Dolores para Carlos, 31.10.1972. Arquivo da família.
89
Mais de uma década depois, com seus netos, no seu apartamento da
Rua Conselheiro Lafaiete, Dolores assiste à primeira aterrisagem do ônibus
espacial. No momento crucial, o telefone começa a tocar; ela atende e, sem
prestar muita atenção ao interlocutor, lhe diz: “Ô, moço, não vê que estamos
assistindo ao homem espacial!!!”, encerrando assim, sem mais, a chamada
inconveniente.
Outro episódio engraçado de sua velhice pinta de corpo e alma seu
precavido espírito mineiro. Dolores, de formação católica, não foi praticante, na
idade adulta. No entanto, conservou alguns vestígios dessa educação. Certa
vez, quando soube da morte de um dos seus irmãos, pediu uma missa por sua
alma, à qual assistiu com Maria Julieta. Quando o padre cita o nome do irmão
falecido, também menciona o nome de outro irmão de Dolores, sumido do
convívio familiar, há muitos anos. Maria Julieta, atônita, pergunta à mãe: “ué,
ele também morreu?”, ao que Dolores responde: “Não, não sabemos, mas
pelas dúvidas...”
90
Dolor. Sentimiento de pena y congoja.
(Diccionario de la Real Academia Española)
Fig. 52 Maria Julieta e Dolores (atrás, o retrato de Carlos, feito por Portinari), Buenos
Aires, 1979. Arquivo da família.
Não há como deixar de frisar, uma vez mais, os rastros deixados por
Carlos nos documentos que nos levam a Dolores. Na foto acima, vemos o pai,
a mãe e a filha. A figura paterna aparece em destaque, no alto, como se
estivesse ali para proteger a família, desde um lugar privilegiado, desde um
espaço reservado só para si.
No fim da década de 70, quando a filha Maria Julieta começa a luta
contra o câncer, Dolores, incansável, como sempre, apronta as malas e,
sozinha, toma o avião para Buenos Aires. Mesmo com idade já avançada,
ainda podia oferecer sua companhia e seus préstimos. Antes de Carlos
também viajar à Argentina, ela o mantém informado, por meio de cartas.
Escreve sobre o estado de ânimo de “Bruxinha” – apelido que os pais deram à
filha – acompanhando a doente, passo a passo. Em carta de 26 de junho de
91
1979, Dolores descreve uma cena impactante, onde o corpo da filha aparece
nu e mutilado, diante dos olhos da mãe: “Sexta-feira, foi um dia horrível para
mim. Eu ainda não tinha visto a cicatriz: ela achava que me deveria mostrar
mais tarde, bem mais tarde. De repente, depois do banho, ela me chamou e,
abrindo a toalha, me disse: ‘Olha, olha bem!’ Nem sei como aguentei. Tudo
estava O.K., muito melhor do que eu esperava. Mas, quando vi o peito mutilado,
o mundo desabou sobre mim. Nunca passei por um momento assim. Mas reagi
instantaneamente. ‘Que tal, mãe? Que tal, mãe?’ ‘Ótimo?’ A voz custou a vir,
mas disse logo: ‘ótimo!’ ‘assim é que eu gosto de uma mãe durona como V.’
‘Que dor, meu Deus! Que desgraça!’”41
Em 1981, a saúde de Dolores já estava bastante debilitada. Após ter
passado por uma cirurgia de nódulo frio, não conseguia ir à rua; não
comandava as pernas endurecidas e sentia algumas vertigens. E janeiro de
1982 chegou com uma novidade nada agradável para ela: tendo a circulação
arterial afetada, andava com muita dificuldade. A compra de uma bengala foi
inevitável.
Fig. 53 Dolores e Plínio Doyle, o terceiro da esquerda para a direita, Rio de Janeiro,
05.11.1982. Arquivo da família.
41
Anexo XIII (p. 147).
92
No ano de 1983, Maria Julieta despede-se de Buenos Aires e de seu
trabalho no Centro de Estudos Brasileiros, instalando-se, definitivamente, no
Rio de Janeiro. Com a saúde um pouco frágil, devido ao tratamento a que se
submetera, a filha acompanha a rotina dos pais. Chega a comentar com um
dos filhos sobre alguns pequenos deslizes na memória de Dolores, que, às
vezes, se confundia com a própria mãe, dona Sinhá.
Fig. 54 Dolores, Maria Julieta e Carlos, Rio de Janeiro, 1984. Arquivo da família.
93
Como se não bastassem o peso da idade e seus problemas, a vida
ainda reservava um duro golpe a Dolores: a perda de sua única filha. No dia 5
de agosto de 1987, no Rio de Janeiro, falece Maria Julieta.
Fig. 55 Pedro Augusto, Dolores e Carlos, Rio de Janeiro, 5.08.1987, enterro de Maria
Julieta.42
Doze dias depois, estava Dolores, novamente, no Cemitério São João
Batista. Perdera a filha, e agora o marido. Sobreviveu aos dois. (A propósito,
Luis Mauricio relembra o humor do avô, que costumava dizer: “A velhinha ainda
me enterra!”). Dolores foi uma sobrevivente, em todos os sentidos que se pode
dar a essa palavra.
42
Disponível
em:
http://fotos.noticias.bol.uol.com.br/entretenimento/2012/08/16/carlosdrummond-e-tido-como-um-dos-maiores-poetas-do-seculo-20.htm#fotoNav=5.
Acesso:
25.06.2014.
94
A companheira
A companheira
da vida inteira,
que a meu lado
une o passado
ao novo dia
em harmonia,
a sempre forte
e meu suporte
quando vacilo,
porte tranquilo,
voz de carinho
no meu caminho,
leal, paciente
constantemente,
simples, discreta
força do poeta,
quero-a no instante
final – constante
com sua mão
acarinhando
em gesto brando
meu coração.
Carlos Drummond de Andrade
95
Após a morte do marido, a casa da família já não era tão procurada.
Como relata João, o porteiro do prédio onde Dolores viveu, era curioso ver
como as pessoas só chamavam pelo “senhor Carlos”. “A dona Dolores, quase
ninguém procurava, não.”
Fig. 56 Dolores e Carlos (de barba, devido a um herpes). Acervo de Carlos Drummond
de Andrade, Arquivo-Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de
Janeiro, 09.1980.
96
ALHEAMENTO
E tudo se torna esquecimento.
Apagam-se, pouco
a pouco,
as formas, na engrenagem do tempo
Fig. 57 Relógio de Dolores. Arquivo da família.
97
Os cheiros jamais se repetem,
nem palavras... vozes... sons de passos
pela casa
Fig. 58 Aniversário de Dolores, Rio de Janeiro, 19 de abril de 198? Arquivo da família.
A face encara, mil vezes,
o espelho.
“Quem é aquela a me perseguir?”
98
Mas que agulhas hão de coser,
se já os fios se perderam?
Fig. 59 Adorno para mesa, feito por Dolores. Arquivo da família.
Um vento sopra ligeiro,
levando,
minando tuas feições.
Dedos rabiscam no ar.
É assim que teces, agora,
tua mais fina obra.
E já não podes falar de ti.
Teus documentos gastos estão,
exaustos de apresentação.
99
Leveza imperiosa.
Primavera, outono, verão!
O que vêm a ser, senão
a notícia envelhecida
de que coisas acontecem,
indiferentes que são
a teu alheamento...
E, na doce concha dos sonhos,
nem ser, nem estar.
Nada a pesar nos ombros.
Dormes o sono dos gatos,
em profunda amizade
com os raios que pingam do sol.
AASS
100
“Muitos anos depois daquele 1984, voltei a ver Dolores, quando subi ao
apartamento 701 da Conselheiro Lafaiete, ao encontro de Pedro. Levou-me ao
quarto em que vivia a avó, aos cuidados de uma enfermeira. “Vovó, quem está
aqui é um amigo do Carlos, o Edmílson, que veio visitá-la...” Ela não disse
palavra, alheia a tudo e a todos, sequestrada de si mesma pelo mal que lança
o doente no abismo da solidão e do nada. Preferia não tê-la visto assim, e
guardar-lhe a memória da mulher pequenina, discreta e reservada, sem a qual
Drummond não teria sido quem foi.”43
“Depois ela foi ficando mais e mais “em órbita”, até o momento em que não
reconhecia ninguém; e foi triste porque terminou numa cama e, nos últimos
meses, sendo alimentada por uma sonda pelo nariz. Uma condição de vida
muito precária, ao ponto que, de vez em quando, ela caía e ligavam as
enfermeiras, acompanhantes ou quem quer que estivesse lá; e nós a
levávamos para a clínica; davam uns pontos na cabeça dela e aí o médico nos
dizia: ‘não vamos interná-la, porque, senão, ela vai viver mais nesse estado e,
claro, não queremos isso...’ De fato, quando ela morreu, foi um alívio,
sobretudo para ela. Certamente, mais para ela do que para nós. O Edmílson te
disse bem. Ela estava condenada ao nada.”44
43
44
Entrevista com Edmílson Caminha (p. 127-129).
Entrevista com Luis Mauricio Graña Drummond (p. 116-126).
101
Fig. 60 Certidão de óbito de Dolores. Arquivo da família.
102
“Quando vim, fiz um sortimento muito grande. Sempre precavida como a
formiga da fábula...”45
Fig. 61 Dolores, por Pedro Augusto Graña Drummond, Rio de Janeiro, 1981. Arquivo
da família.
45
Anexo XIV. Carta de 20 de agosto de 1956 (p. 137).
103
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Qualquer um que tenha vivido uma vida, e deixado um
registro dessa vida, não merece uma biografia?...
Virginia Woolf
Através de fotos, documentos, cartas e depoimentos de pessoas que a
conheceram, tentamos aqui traçar um perfil de Dolores Morais Drummond de
Andrade. Esta mineira, que praticamente nasceu com o século XX, o percorreu
em sua quase totalidade: da província à cidade grande, Dolores acompanhou,
de ponta a ponta, a evolução de um Brasil mormente rural ao país urbano dos
nossos tempos. Ou seja, chegou a viver dias próximos aos da abolição da
escravatura, anteriores aos do início da aviação, em que tempestades ainda
aterrorizavam
crianças,
assim
como
os
da
liberação
feminina,
da
aeronavegação comercial, da corrida espacial e até os do computador pessoal
e a internet.
Não seria exagerado afirmar que foi uma mulher ousada, já que, nos
anos 20, época em que o trabalho feminino era praticamente restrito ao lar, ela
chegou a ser enfermeira e secretária em fábrica. Educada sob os rígidos
cânones finisseculares, como as mulheres de sua geração, foi basicamente
preparada para o casamento e os afazeres domésticos e, a seu modo, ocupou
o papel (secundário) que a elas cabia no matrimônio. O seu, com Carlos
Drummond de Andrade, durou 62 anos. Dando o indispensável suporte
cotidiano ao companheiro, silenciosamente, testemunhou o processo de
criação literária do poeta e, também, mesmo que tangencialmente, a própria
evolução de boa parte da literatura brasileira do século passado.
Dolores foi aquela que, anos a fio, preparou os bastidores e o cenário
que levaram seu marido ao reconhecimento do público. Seu projeto exclusivo
de vida, como o de muitíssimas mulheres daqueles tempos, foi viver para a
família e dedicar-lhe seu tempo integral. Firme em suas convicções e de
temperamento quase estóico, além de entender as necessidades de Carlos,
como homem de escritório que era, como figura pública, assediada
constantemente, teve que suportar as suas infidelidades. Seria difícil imaginar
104
tal situação se invertêssemos os papéis. Nunca se ouviu dizer que Cecília
Meireles, Clarice Lispector ou Cora Coralina, apenas a título de exemplo,
houvessem tido relações extraconjugais. Isso era inimaginável e inaceitável
pelo pensamento corrente na época. A infidelidade conjugal masculina era uma
prática comum e até aceita na sociedade, reafirmava a hombridade e
praticamente conferia ao marido o ar de boêmio e galanteador.
Observamos, nesta dissertação, que os rastros da vida de Dolores estão
dispostos de forma esparsa em fotografias, cartas, bilhetes e lembranças. E só
pelas coisas pequenas o leitor terá acesso a essa personagem. Tal é o espólio
deixado por ela, além de algum dinheiro guardado em fronhas, já sem valor
corrente. A economia do lar, tão cara ao doutrinamento das mulheres, se
resumiu em uma moeda que não paga nada, que não é aceita no mercado;
mas a impressão digital de quem a guardou ficou gravada nela, como a marca
das mãos do oleiro, em um jarro de cerâmica.
Neste trabalho, não pontuamos nenhum grande evento, não revelamos
nenhum segredo escandaloso, tal como apetece aos curiosos. A vida de
Dolores foi absolutamente comum, de hábitos frugais e de uma rotina muito
bem disciplinada. É claramente por isso que crítico algum dedicou-lhe um
pouco de atenção, nem sequer para obter informações sobre Carlos. Em julho
de 2014, completaram-se 20 anos de sua morte, mas, até o momento, esse
fato não despertou a curiosidade de ninguém. Sua pequena “herança” aguarda
por “herdeiros” que aceitem recebê-la. Como afirma Hugo Achugar (2004), em
Planetas sin boca:
Suele ocurrir, sin embargo, que hay herencias que se rechazan,
que hay legados que despojan, que hay tradiciones que se
cambian, que, en lugar de memorias, hay olvido. Entre otras
cosas, por la sencilla razón de que el testamento supone la
existencia de un sujeto – individual o colectivo – que lo enuncie
y también, la existencia de un heredero – individual o colectivo
– que acepte ser interpelado por el mencionado testamento (p.
30).
Esta pesquisa quis mostrar-se também como um gesto. Desejamos que
seu valor esteja no flash-back, no sentido de trazer perguntas e possíveis
respostas sobre o passado, e no flash-forward, para usar uma expressão criada
por Silviano Santiago (2006), apontando uma proposta para o futuro, a fim de
105
que se questione, de forma mais profunda, as culturas hegemônicas que ainda
têm se mostrado resistentes a certos temas sensíveis, patentes na
contemporaneidade. Não há centro sem margens, não há margens sem centro;
ambos se cruzam, dialogam e, sobretudo, se digladiam.
Ora, em termos das mencionadas culturas hegemônicas junto às
minorias que elas determinam (e condenam), o trabalho aqui realizado talvez
ajude a mostrar como ainda é difícil pensar o outro, este outro que é
explicitamente negado, por meio da obliteração, da indiferença, da violência.
Como falar de alteridade em um país que, em 1500, abrigava quatro milhões
de índios, dos quais restam, hoje, aproximadamente 900 mil, vivendo no
abandono, em condições paupérrimas, à mercê de uma política que fecha os
olhos para tal realidade? Em que termos podemos pensar as relações de
gênero, se ocupamos o sétimo lugar entre países com elevado número de
vítimas de violência doméstica, sendo que, só na década passada, 45 mil
mulheres foram assassinadas? Confiando ou não nas estatísticas, sabemos
que esses números passeiam, sim, em nossa realidade e devem ser somados
a outras cenas de violência que não constam nos dados oficiais. Nos meios de
comunicação, todos os dias, nos deparamos com notícias sobre ataques
homofóbicos e discursos que ferem a dignidade humana. E apesar dos
esforços em nome da democracia, a globalização chegou apenas para alguns,
melhor dizendo, para aqueles que têm poder aquisitivo para sustentá-la. Pregase muito que vivemos em um mundo sem fronteiras, quando ainda nos vemos
diante delas, a todo o momento. E o que está em jogo, diante dessas fronteiras,
é a vida, a vida do cidadão comum, que não pode se proteger por trás de altos
muros com cercas elétricas, a vida dos discretos, dos anônimos que habitam a
periferia da periferia. O “arquivo” desta parte periférica do mundo onde vivemos
é perpassado por todas essas questões. Mas, sendo ele um campo de luta
política, diversas forças atuam para construí-lo, escamoteá-lo, camuflá-lo.
Como afirmaria Derrida (2001): “O arquivamento tanto produz quanto registra o
evento” (p. 29).
Falar de Dolores, por meio de rastros ligeiros deixados por ela, por meio
do apagamento de sua voz, nos fez chegar aos temas expostos acima. Sua
própria vida nos foi “narrada” por outro. Inicialmente, foi Carlos quem apontou o
106
caminho que nos conduziu à imagem que ele quis deixar de sua companheira.
De acordo Leonor Arfuch (2009), pesquisadora argentina:
O arquivo demonstra, admiravelmente, que o ‘direito de
propriedade’ sobre a vida – como Sylvia Molloy argumentou
recentemente em uma conferência em São Paulo – é relativo;
que outros sempre terão sobre ela o direito, de palavra ou do
olhar, do arquivamento ou da ficcionalização. Demonstra
também que uma biografia, não somente a dos notáveis, oscila
sempre num umbral difuso entre público e privado; entre o
encobrimento, no sentido freudiano, e a revelação, tal como é
perceptível no registro mais simples da conversação cotidiana
(p. 378).
As ideias de Arfuch e Molloy nos remetem ao conceito de “biopoder”, o poder
sobre a vida, o controle da vida. Se os “subalternos” não falam, outros falam
por eles. Agendas repletas de temas políticos são compostas, esforçam-se
para trazer à baila o silêncio do outro, para quebrá-lo. Mas há que se perguntar
o motivo desse silêncio; para quem os subalternos falariam?, quem os ouviria?
Alguma instituição arquivaria suas vozes? É possível falar, alçar a voz, desde
as margens? Reconhecemos que também nós estamos falando por alguém
que não respondeu por si e, assim sendo, devemos ter incorrido em algum
deslize.
Podemos dizer que a nossa protagonista, de alguma maneira, atuou no
processo de formação da história da literatura brasileira e quase diretamente
na própria criação literária de um dos maiores escritores do século XX. Mas
como saber sua opinião, seus sentimentos em relação a isso? Restam-nos
algumas especulações, conjecturas apenas. Possivelmente, ainda seja
necessário buscar por Dolores em outros cantos; Talvez, o que logramos aqui
foi trazer apenas uma sombra dessa mulher. Como afirmou Borges, diante de
um cemitério:
Aquí bajo los epitafios y las cruces no hay casi nada. Aquí no
estaré yo. Estarán mi pelo y mis uñas, que no sabrán que lo
demás ha muerto, y seguirán creciendo y serán polvo. Aquí no
estaré yo, que seré parte del olvido que es la tenue sustancia
de que está hecho el universo (2007, p. 537).
Todo ensaio biográfico tenta alcançar “o outro”, este ser que sempre nos
escapa por entre as linhas. Mesmo se tivéssemos pesquisado além do que
107
estivemos em condições de investigar, teríamos conseguido alcançar Dolores?
E quem estaria em condição de fazê-lo? Ela não continuaria sendo “parte do
esquecimento que é a tênue substância de que está feito o universo”? De
qualquer modo, esperamos, ao menos, que este trabalho e as dúvidas que ele
despertou possam abrir algum caminho para estudos vindouros que deem
conta de analisar as diversidades culturais presentes nos arquivos, bem como
as relações travadas entre os corpos que os habitam.
Ao longo dos meses desta pesquisa, a vida de Dolores, uma mulher
comum, forte e sensível a um tempo, nos resultou sempre instigante.
Esperamos que ela também tenha despertado o interesse do leitor.
108
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113
ANEXOS
114
ENTREVISTAS
115
Com Luis Mauricio Graña Drummond (gravação, 04.12.2013; transcrição
de AASS)
Nascido em Buenos Aires, em 1953. Foi fotógrafo e apicultor. É matemático e
trabalha na Universidade Federal do Rio de Janeiro; publica artigos de
pesquisa sobre assuntos de Otimização, sua área de interesse.
LMGD: Dolores ia para o meu aniversário e ficava um mês. Pra nós, que
éramos crianças, era uma festa, porque a gente gostava dela, porque ela era
muito
boa,
carinhosa
e,
além
do
mais, levava
presentes.
Normalmente, levava o que ela chamava de piorra, um trompo (pião). E
também relógios pra nós. E, além do mais, roupas que ela própria fazia pra
nós, pro Carlos. Pra nós, ela chegou a fazer calças, camisas, pulôveres e pro
Carlos, até cuecas. Fazia colchas de retalhos (eu tenho duas aqui, do
tipo patchwork). Eu acho que essa colcha que tem figuras hexagonais, se você
observar, não tem duas repetidas. Outra coisa que eu lembro daquelas viagens
é que nós tínhamos medo, porque ela roncava muito. Eu me lembro de outra
coisa, já muito depois, pouco antes da morte dela, eu me intoxiquei, aqui no
Rio de Janeiro, isso deve ter sido lá pra 85, 86, num verão que eu vim aqui, e
eu passei muito mal, vomitei pela rua e cheguei lá, na casa deles, vomitando
aos gritos, no banheiro; aí veio o Carlos Manuel e me disse: “¡boludo, los vas a
despertar!” E eu disse: “¡¡¡Me estoy muriendo!!!”. O fato é que “a vovó acordou,
me deitou e me cuidou. No dia seguinte, ela fez pra mim sopa de arroz batida
no liquidificador e em 24 horas eu fiquei bom. Ela cuidou de mim, acho que
diria, melhor do que uma mãe.
Lembro-me, por exemplo, no período hippie, aquele drama, 1970, 69 e tal, e
ela dizia assim “isso é uma bobagem, coisa de adolescente, coisa de jovem, é
uma bobagem...” Ela tinha uma atitude muito mais liberal. Era muito
compreensiva. Eu nunca briguei com ela, acho. Nenhum de nós três. Talvez,
no fim, quando ela já estava meio em “órbita”, houve alguma desavença,
assim, mas, quando ela estava lúcida... Bom, com mamãe havia alguma briga,
de vez em quando, mas com netos, nunca. E ela nos mimava, dava presentes,
fazia bolo. Pra mim, tinha doce de banana, doce de abóbora e, de noite, tinha
pra gente aquela sopa de feijão com macarrão, que era ótima, e meio-dia, eu
116
me lembro que a gente chegava pregado da praia, almoçava e, lá pelas duas,
se não me engano, saía O Globo, naquela época, era vespertino. E ela nos
pedia pra gente ir, não precisava nem atravessar a rua, já estava na
Conselheiro Lafaiete, pra comprar jornal. E nós estávamos exaustos de praia e
tudo, e dizíamos que não. Aí, ela dizia: “Tudo bem, eu vou, mas se depois
vocês souberem de uma velhinha que apareceu morta aí na rua...” Aí, a gente
dizia: “Tá bom, vó, a gente vai”. Ela fazia sempre essa chantagem. E aí ela
pegava o jornal e fazia as palavras-cruzadas dela. Era uma coisa de que ela
gostava e era boa nisso, muito boa. Outra coisa que ela fazia era assistir
novelas, de noite. Aí, o Carlos acompanhava, mas ele, assim, dava um pulo, de
um minuto, voltava pro escritório. Com isso, ele sabia, mais ou menos, o que
estava acontecendo. Já nos últimos anos, ele passou a ser mais carinhoso com
ela. Ele a cobria com cobertor, quando ela adormecia assistindo a novela. É...
não se via muito carinho entre eles... eu não me lembro muito.
AASS: Mas, pelas cartas...
LMGD: Pode ser, mas Carlos era pouco efusivo, e, sei lá, eu me lembro, por
exemplo, de uma história de Dolores, parando um táxi, sendo que,
aparentemente, alguém havia dado o sinal antes, e o Carlos: “Que isso,
Dolores, que isso Dolores!” Tinha essas coisas. E, na recíproca, tampouco
havia muito. Eu me lembro que, quando o Carlos morreu, no escritório dele,
minutos depois de ele morrer, ela disse: “Que homem extraordinário!” Acho que
foi a única vez que eu escutei um elogio. E ela velou o corpo dele toda a noite.
Pedro e eu não aguentamos e fomos dormir no carro.
AASS: “Ela ficou sozinha?”
LMGD: Tinha um bêbado uruguaio, que dizia: “¡Drummond, te nos fuiste!” e
segurava a mão do cadáver e dizia poemas e queria puxar o caixão. Nós não
deixamos. Nem conhecíamos ele. Depois, chegou um pessoal aí, com a
bandeira do Vasco, pra colocar. Não deixamos. E também com a bandeira da
117
Mangueira. É, o Carlos gostava do Vasco e também da Mangueira, porque ele
ganhou com a Mangueira, mas não era pra colocar o...
AASS: E ela contava histórias também...
LMGD: Ela, de noite, nos contava as mesmas histórias que vinham da família
do Carlos, do “Cafas Leão”.46 Ela e ele nos contavam. E eram tão gostosas as
dela quanto as dele. E, no entanto, as poucas de que me lembro são as que o
Carlos contava. Mas ela contava histórias, com o mesmo espírito, do gigante
surrealista, meio atrapalhado, meio porco, e nos fazia acreditar que ela ia
publicar um livro sobre Cafas Leão, nos Estados Unidos. Nós éramos crianças
e acreditávamos.
AASS: E ela ia mais a Buenos Aires do que o Carlos, não é?
LMGD: O Carlos deve ter ido 5 vezes e ela talvez 20, não sei. Ia pro meu
aniversário, ficava um mês.
AASS: Pelas cartas, me parece que ela já chegou a ficar 3 meses lá.
LMGD: Não acredito que Carlos ficasse três meses sem ela, não. Não, isso
não acredito.
LMGD: O que eu me lembro é que o Pedro levou lá [na casa de Dolores e
Carlos] um amigo, esse Andrés, que esteve aqui, que mora na Suíça, que é
músico; e aí ele viu uma cabeça de santo que tem lá na casa do Pedro, que era
dela, e ela o fez acreditar, possivelmente brincando com o Pedro, que sabia da
história, que era uma peça do Aleijadinho. E o cara ficou fascinado, porque,
mesmo sendo muito jovem e da Argentina, ele sabia quem era o Aleijadinho.
Dolores, convincentemente, enganou ele. Eu acho que ela deve ter dado umas
piscadas de olho pro Pedro.
46
Refere-se ao gigante do poema “Didática”, de CDA.
118
AASS: Você via Dolores lendo?
LMGD: Olha, talvez, um pouco. O jornal, certamente. Palavras-cruzadas,
certamente. Eu tenho o livro dela Les fleurs du mal, numa edição pequenininha,
muito bonita, assinado por ela. Eu acho que ela sabia francês. E ela lia os livros
do Carlos, certamente. Sim, eu não sei o que ela lia. Pena que mamãe não
está aqui. Também não sei que ideias políticas ela tinha. Não sei. Eu não diria
que seria de esquerda, mas o que o Edmílson Caminha diz é verdade. Ela
devia ter em mente ideias de justiça, de justiça social e tudo, apesar de que ela
vinha de uma geração que estava muito próxima da Lei Áurea, de 88, de
maneira que uns vestígios devem ter ficado, sobre negros e brancos, aquela
coisa toda. Mas era uma pessoa com sentido de justiça. Isso, sim. O que não
sei é se ela seguia o Carlos. O Carlos, por exemplo, teve um período de
esquerda e tal, acompanhou o comunismo. Não sei se Dolores... Não sei se ela
era um ser politizado. No fundo, mamãe também não era muito, nem papai que
foi até deputado e tudo. A política não era uma coisa essencial, não fazia parte,
digamos, da conversa na mesa, com as crianças, pelo menos.
AASS: E a relação entre mãe e filha?
LMGD: Havia certa tensão. Carlos e mamãe tinham um mundo à parte, que era
um mundo literário, coisa deles dois. Dolores aí não entrava muito. Mas o que
você pergunta ao Edmílson [Caminha] sobre a participação dela na obra do
Carlos certamente não era só de caráter prático a importância. Em primeiro
lugar, já que falamos de caráter prático, ela era a única que podia entrar no
escritório do Carlos, quando ele estava escrevendo crônicas, de manhã. Isso
era três vezes, por semana [na época do JB]. Ela entrava com um café, uma
laranjada, um pedaço de queijo, alguma coisa, para entregar a ele. Ou seja, ela
era uma esposa que se ocupava do marido... Ele, um dia, me disse que não
sabia fazer um café. Ela se ocupou da casa. Eu acredito que, na questão dos
móveis e tudo mais, era ela quem decidia: se colocava, onde, inclusive os
quadros, é possível que fosse ela. O Carlos gostava dos quadros que Portinari
tinha dado a ele e tal, mas eu acho que a questão estética possivelmente
119
ficasse por conta dela. Talvez, o Carlos comprasse, ela tivesse dito “compra
esse sofá, ou isso ou aquilo”, mas eu tenho a impressão de que -como era o
caso da mamãe, em casa- era ela quem ordenava. O Carlos não era um sujeito
prático. Agora, ele, no escritório dele, sim, ele tinha uma foto da Cecília
Meireles, do pai dele, a chave, isso deve ter sido ele que colocou. Ela se
ocupava da casa, das empregadas e de toda a parte prática que o Carlos não
tinha a menor ideia.
AASS: Ela dava o suporte a ele...
LMGD: Sim, mas o que eu estava para te dizer é que havia muito mais do que
isso. Ela foi a mulher dele por tantos anos e, mesmo ele tendo sido infiel
como parece que foi, ele nunca se separou e eles chegaram a viver tempos em
que as pessoas já se separavam, de maneira que podia ter passado pela
cabeça dele ou dela. De fato, meus pais se separaram, mas eu acho que o
Carlos escolheu ela pra mulher dele e porque era a mulher adequada pra ele e
acho que ele não teria se encontrado bem sem ela. E se ele gostava de outra
ou de outras, não teriam sido certamente para viver com ele. E, ao parecer, ela
terminou aceitando as coisas como elas foram. Eu não sei muito bem se é
verdade, mas eu tenho em mente que alguém me disse duas coisas: uma, que,
em algum momento de briga, pelas raparigas e tal, ela teria quebrado o braço
dele com um vaso que lhe jogou em cima. E outra é que ela teria dito a ele:
“tudo bem, mas não te dou mais nenhum filho.”
AASS: E aquelas lembranças que ela tinha de Mar de Espanha, da infância
dela?
LMGD: Não sei bem de que família era, socialmente. Acho que menos que a
família do Carlos. Mamãe ia passar férias com qual família?
AASS: Com a família de Dolores
120
LMGD: Ah, é? Ela [Dolores] nos contava que, em dias de chuva forte, as
crianças ficavam com medo e se ajoelhavam no chão, de mãos dadas, e
ficavam assim, como aqueles, que avançam e recuam o corpo, no muro das
lamentações: “São Jerônimo, Santa Bárbara, São Jerônimo, Santa Bárbara,
São Jerônimo, Santa Bárbara”. E eu sei essa história de que ela teria sido uma
das primeiras mulheres a trabalhar, senão a primeira a trabalhar fora de casa.
Ela foi enfermeira, durante a primeira Guerra Mundial, ou trabalhou numa
fábrica de sapatos. Isso eu não sei direito.
AASS: E a questão da idade dela...
LMGD: Bom, há documentos dela, com várias idades, todas menores ou
iguais do que a do Carlos, porque, na época, não pegava bem que a mulher se
casasse com um homem mais novo. Mas parece que, uma vez, lá nos anos 80,
o Carlos conta numa carta - a gente pode procurá-la -, ele conta,dizia, que a
acompanhou ao médico; a coisa era séria e o Carlos conta algo assim
como que “essa mulher, que, durante tantos anos, guardou esse segredo, com
toda a dignidade, disse pro médico, firme, a verdadeira idade dela”. A
conclusão, segundo a mamãe - e eu acredito nela - é que ela é de 1900.
AASS: E aquele caso engraçado que você me contou sobre a vidraça?
LMGD: Bom, ela abria a casa, lá para as 5:30 da manhã; já começava a
colocar o feijão de molho e acho que, às 7, a casa já estava fechada, de novo.
Certo dia, cedo, uns operários estavam fazendo a limpeza do prédio, do lado
de fora. Estavam pendurados nos andaimes, ela apareceu e disse: “ô, moço,
toma muito cuidado, não vai quebrar meu vidro!” E eles: “não, dona, fique
tranquila.” E, depois, ela atacou, de novo: “toma cuidado com meu vidro, não
vai quebrar, não!”. Tantas vezes ela fez isso que, afinal, os caras se
atrapalharam e acabaram quebrando a vidraça dela. E ela disse: “Ah, tá vendo!
Eu disse que vocês iam quebrar, eu disse!”.
121
Lembro-me da primeira vez que o ônibus espacial aterrissou – antes os
americanos amerissavam, com paraquedas; e os russos, também com
paraquedas, caiam na Sibéria. Nunca tinha havido uma nave espacial que
pousasse como um avião. Era o primeiro pouso e seria televisionado para o
mundo todo. Estávamos todos assistindo, Pedro, ela (já bem velhinha) e eu; aí
o telefone toca e ela diz: “ô, moço, não vê que estamos assistindo ao homem
espacial!” E desligou o telefone na cara do sujeito.
Uma história que eu me lembro da minha infância é a seguinte. Eu devia ter
uns quatro anos, lá na calle Arroyo, desci e encontrei na calçada um envelope,
com um monte de dinheiro, acho que eram 400 pesos, que devia ser muito
dinheiro, nos anos 50 e poucos, 57 por aí. Aí, subi e me disseram que era da
vovó. Pode ter sido, porque era muito dinheiro e eu não tinha condição de
mexer com essa quantidade, ou porque, de fato, era dela, coisa de provinciana
que guardava dinheiro num envelope... pode ter sido dela. Ela escondia
dinheiro e parece que, depois de morta, foram encontradas denominações que
já não tinham mais valor. E o Carlos a chamava de Dolares, porque ela
comprava dólares. Mas essa coisa de esconder dinheiro, como algo
compulsivo, assim, deve ter sido já da velhice avançada, porque ela já,
segundo a mamãe, nos últimos tempos da vida da mamãe, ou seja, já com 86,
87, às vezes Dolores já achava que era a própria mãe dela. Eu discutia com a
mamãe e dizia que eu via a Dolores completamente lúcida, mas é possível que
ela tivesse umas escorregadas, sim. Bom, depois ela foi ficando mais e mais
”em órbita”, até o momento em que não reconhecia ninguém. E foi triste porque
terminou numa cama e, nos últimos meses, sendo alimentada com uma sonda
pelo nariz. Uma condição de vida muito precária, ao ponto que, de vez em
quando, ela caía e ligavam as enfermeiras, acompanhantes ou quem quer que
estivesse lá; e nós a levávamos para a clínica; davam uns pontos na cabeça
dela e aí o médico nos dizia: “não vamos interná-la, porque, se não, ela vai
viver mais nesse estado e, claro, não queremos isso...” De fato, quando ela
morreu, foi um alívio, sobretudo para ela.Certamente, mais para ela do que
para nós. O Edmílson te disse bem. Ela estava condenada ao nada.
AASS: Com Manolo, ela se dava muito bem...
122
LMGD: Ela gostava muito do papai e ele gostava muito dela; havia uma
simpatia recíproca, um carinho. E o papai, depois de separado da mamãe,
quando as coisas se acertaram – havia já passado a raiva que, num primeiro
momento, Dolores teve –, quando vinha ao Brasil, eles mandavam um
telegrama pra ele, dizendo “fique conosco”. E é bem possível que, como nos
tempos do casamento, eles cedessem até o quarto pro papai. Eu não tenho
dúvida.
AASS: Dolores gostava de tomar uísque, não é?
LMGD: Esses foram hábitos que papai incorporou na família Drummond. Ele
incorporou o uísque, a cervejinha, o vinho e certas culinárias, “los fiambres”,
essas coisas que o papai gostava (e ainda gosta). Porque, digamos, eles eram
moderados. Era uma comida saudável, mas sem muito brilho. E o papai
incorporou alguns pequenos prazeres desse tipo, que foram (bem) aceitos. Eu
cheguei a ver até o Carlos alto de álcool, no último ano novo que passamos
juntos, se não me engano, de 86 pra 87. Ele deve ter começado com a cerveja,
talvez tenha havido um vinho na mesa. Não, talvez uísque e uma cerveja, no
jantar, e um champanhe e ele ficou meio bêbado. A gente saiu. Fomos à praia.
E eu ia atrás dele, intuindo que ele ia cair, e todo mundo viu que ele estava
bêbado, ao ponto que ele atravessou, meia noite e meia, devia ser, atravessou
a Rainha Elizabeth, passando a Bulhões de Carvalho, atravessou ela correndo,
no meio de um trânsito infernal e caiu na rua. Mamãe deu um grito, ficou
desesperada, mas ele se levantou, continuou correndo e nada aconteceu. E os
automóveis passavam a 80, 100 por hora. Mamãe ficou tão aborrecida que,
quando voltamos da praia, chateada, ela foi embora com o Otávio [Alvarenga].
Aí, o Carlos, lá pelas 3 da manhã, estando eu na copa, chegou e me disse: “sei
que eu estava um pouco alto, mas tudo estava sob controle”. Na verdade, não
creio que estivesse tão sob controle... Ele estava andando, assim, vacilante,
meio claudicante. Eu estava atrás dele, sentindo que ele ia cair a qualquer
momento.
123
Quando Dolores morreu, uma senhora negra, dona Maria, que trabalhava no
quinto andar e ia lá em casa – era amiga das empregadas, conversava comigo,
com Dolores –, quando Dolores morreu, dizia, a dona Maria chegou para
aquele quadro do Portinari, o retrato bonito de um negro, olhou pro Pedro e pra
mim e disse: “Agora, que sua avó morreu, eu queria tanto ficar com esse negro
aqui. Ele é tão bonito!”
Tem um retrato da Dolores, feito por Ismailovitch. Você podia usá-lo. Ele fez
um quadro do Carlos, que talvez esteja com a Lygia47 ou com uma irmã da
Lygia, agora que ela morreu, e um da Dolores. Muito bonito. Você pode usar
ele. É raro. Ninguém conhece.
AASS: Você acha o meu trabalho pertinente?
LMGD: Não vi teu trabalho. Eu acho que a ideia é boa. A ideia é um pouco
audaciosa, mas está bem. Me chama a atenção que pra um curso de Letras...
Mas está bom. Por que não? Por que tem que ser o escritor, sempre, né?
AASS: Ele não se faz sozinho, não é?
LMGD: Não. Ela deu o suporte prático, para que tudo acontecesse. E, além do
mais, o carinho, a filha, e o filho, que morreu prematuramente, o que viveu
meia hora, né? A vida inteira. Apesar das coisas, foi um casal bem constituído,
um típico casal da época, de classe média. Havia essas desavenças, essas
coisas que, hoje em dia, não seriam toleradas por uma mulher, nem por um
marido, enfim, mas era assim mesmo o tempo deles. Foi assim. Nunca se
separaram, nem creio que tenham cogitado sequer essa ideia e, de fato,
quando papai e mamãe se separaram, pra vovó deve ter sido uma coisa
chocante, porque ela, num primeiro momento, passou a não falar mais com o
papai. Inclusive, eles se cruzaram, na Avenida Santa Fe, um dia aí qualquer, e
ela fingiu estar olhando pra outro lado. Mas isso, por sorte, rapidamente se
recompôs, sobretudo porque a relação entre papai e mamãe foi muito
47
Mulher com quem o Carlos se relacionou por mais de 30 anos.
124
amistosa, depois. Eles até viajavam, iam pra Europa e tal, de maneira que o
Carlos e a vovó48 viram que o papai continuava sendo o bom pai de sempre e
que mamãe e papai se precisavam, para terminar de criar os filhos, e ficaram
amigos. De fato, mamãe, no leito de morte, sempre dizia que o homem bom
que ela tinha conhecido era o papai.
AASS: Dolores, antes de se casar, era uma mulher independente já, não?
LMGD: Não sei se independente. Eu sei que ela teria trabalhado, fora de casa.
É possível. É possível que tivesse uma vida não muito usual pra uma moça da
época, de 20 anos, naquele tempo. Carlos a conheceu no ano 20 e se casaram
em 25. E ela já trabalhava, etc. E o Carlos nem sequer era independente.
Dependia do pai. Possivelmente, ele tenha pedido para ela parar de trabalhar,
essas coisas próprias da época. Eu acho que ela era uma pessoa com
inquietações.
AASS: Era religiosa?
LMGD: Eu acho que ninguém mais era religioso. Todos eles tiveram religião na
sua infância e depois, digamos, vestigialmente, talvez, como os brasileiros, de
uma maneira um pouco supersticiosa. Não sei. Ela gostava de santos barrocos.
Mais por estética, porque eram bonitos. A casa dela tinha objetos bonitos.
Mesas antigas, esses santos. Uma virgem catalogada. Era uma pessoa
também que se dedicava muito a questões de culinária. Pra nós, fazia bolos,
doces e tal. Ela, entre outras coisas, foi dona de casa. Fazia roupas para netos
e pro marido. E pro marido, até as cuecas. Ela fazia na Singer dela. Era legal,
quando ela abria a mala e apareciam os presentes. Quando chegávamos aqui,
em dezembro, tinha o presente de chegada e o presente de natal.
Eles levavam uma vida simples, horário para almoço e jantar. Uma comida
simples, mineira. Tinha o angu do Carlos, que ele dizia que era bom, porque,
como não tinha gosto, nunca estava ruim. Couve, um bifinho, ovo. E ela dava a
48
Vale observar a forma carinhosa que os netos usam para se referir a Dolores. Com o avô,
usavam (e usam) o primeiro nome.
125
ele um copo de leite, depois do almoço. Tinha o copo da Dolores, na geladeira,
coberto com o pratinho, que era para o copo estar sempre geladinho. Era o
copo dela, pra beber água. Aos domingos, ela não fazia jantar, mas fazia uns
sanduichinhos. Pegava o pão de forma, tirava as beiras e colocava um
presuntinho e mais alguma coisa, enrolava tudo isso num pano de prato úmido,
deixava na geladeira, e ficava bom; vinha acompanhado por uma laranjada ou
alguma coisa que ela preparasse.
A Dolores falava espanhol, mais que o Carlos. Ela se aventurava. Eu me
lembro que, em vez de dizer Borges, ela dizia Jorges. Ela era mais audaciosa
que o Carlos, que devia ter certo pudor. O Carlos falava em castelhano
imitando o papai, o que era muito engraçado.
126
Com Edmílson Caminha (e-mail, 10.12.2013)
Escritor, jornalista e professor de literatura brasileira, Edmílson Caminha
nasceu em Fortaleza (CE). Foi, durante 22 anos, consultor legislativo da
Câmara dos Deputados, em Brasília (DF). A amizade com Carlos Drummond
de Andrade e Dona Dolores, que por diversas vezes o receberam no
apartamento da Rua Conselheiro Lafaiete, estendeu-se a Maria Julieta, a
Manuel Graña Etcheverry e aos filhos Carlos Manuel, Luis Mauricio e Pedro
Augusto. Entre os livros que publicou, destacam-se "Drummond, a lição do
poeta" (2002) e "Em memória de Drummond" (2012).
AASS: Socialmente, como você definiria o jeito de Dolores? (Cordial, amável,
gentil, conversadora/lacônica, simpática, etc.?)
EC: Era, sim, cordial, amável, gentil, não muito simpática (devido à timidez,
acho), e, também por consequência, de poucas palavras. Quando, em janeiro
de 1984, minha mulher (Ana Maria) e eu visitamos o casal no apartamento da
Conselheiro Lafaiete, ela quase não falou, limitando-se a acompanhar nossa
conversa com Carlos. Se tivesse, porém, de destacar-lhe uma só virtude,
escolheria a discrição. Mais do que tudo, pareceu-me discreta, ciente da
condição de esposa de um grande escritor, um poeta importante, uma
celebridade, pode-se dizer.
AASS: Lembra-se do que Ana Maria e você conversaram com ela? Diria que,
na presença do Carlos, ela participava menos da conversa com vocês?
EC: Como já disse, ela praticamente não se manifestou: à minha direita, no
aconchegante sofá da sala de visitas, mais ouviu do que falou, atenta à longa
entrevista que o poeta me concedeu. Talvez, na intimidade da família, sem a
presença de estranhos, ela se sentisse mais à vontade para participar das
conversas, para dizer o que pensava.
AASS: Na sua opinião, do ponto de vista prático, qual foi a contribuição de
Dolores para o trabalho literário do Carlos? Como conhecedor da obra de CDA,
127
de que modo você diria que essa convivência, de mais de 60 anos, se refletiu
na obra dele?
EC: Tenho a certeza de que Dolores foi fundamental na vida de Carlos, como o
porto seguro de que ele necessitava, como ser humano e como artista.
Sabiamente, ela o compreendia nos seus múltiplos papéis – de marido, de
escritor e de homem que nunca perdeu a capacidade de amar. Inteligente que
era, sabia dos relacionamentos extraconjugais de Carlos, mas optou por
suportá-los, em nome da sobrevivência da família e da relação minimamente
harmoniosa que deve prevalecer entre marido e mulher. Não tenho dúvida de
que uma separação teria sido fatal para Drummond, pela ausência da pax
domestica sem a qual não conseguiria viver nem escrever. Assim, a
convivência com Dolores refletiu-se na obra de Carlos (não apenas pelo
equilíbrio emocional que lhe proporcionava, como acabo de dizer), mas
explicitamente, também, nos poemas em que faz alusão direta à companheira
de toda uma vida. Namorador impenitente (o que só depõe em favor dele...),
Drummond não teria conseguido viver sem Dolores.
AASS: Qual a sua impressão geral sobre Dolores? (Era uma dona de casa,
uma “esposa de poeta”?)
EC: Era muitas: mãe dedicada, avó compreensiva, dona de casa eficiente,
amiga prestimosa, mas também, e de maneira especial, esposa de poeta,
cumpridora, como já afirmei, do papel de coadjuvante de um homem público,
de um escritor permanentemente assediado pela imprensa e pelo público.
Assim, discreta e silenciosamente, soube viver à sombra do marido.
AASS: O que diria de Dolores em relação às mulheres do tempo dela?
Politicamente, você acha que Dolores pensava como o Carlos?
EC: Ao mesmo tempo em que me pareceu uma típica representante da
geração brasileira a que pertencia – de mulheres educadas para o matrimônio
(e para a submissão ao marido), para a maternidade e para os afazeres
128
domésticos –, Dolores também se punha à frente do seu tempo. Segundo me
contou o neto Pedro Augusto, foi das primeiras mulheres a trabalhar fora de
casa, em Belo Horizonte, sob os olhos de uma sociedade conservadora, plena
de discriminações e de preconceitos. Quanto à política, não faço ideia,
sinceramente, das opiniões de Dolores. Creio que, assim como Carlos, era
defensora da dignidade humana, das liberdades individuais, do direito que
todos os homens e mulheres têm à vida, à saúde, à educação, ao trabalho e à
cidadania plena.
Muitos anos depois daquele 1984, voltei a ver Dolores, quando subi ao
apartamento 701 da Conselheiro Lafaiete, ao encontro de Pedro. Levou-me ao
quarto em que vivia a avó, aos cuidados de uma enfermeira. “Vovó, quem está
aqui é um amigo do Carlos, o Edmílson, que veio visitá-la...” Ela não disse
palavra, alheia a tudo e a todos, sequestrada de si mesma pelo mal que lança
o doente no abismo da solidão e do nada. Preferia não tê-la visto assim, e
guardar-lhe a memória da mulher pequenina, discreta e reservada, sem a qual
Drummond não teria sido quem foi.
129
Com Manuel Graña Etcheverry (gravação, 11/11/2013; transcrição e
tradução de AASS)
Nascido em Córdoba, Argentina, em 1915. Advogado, deputado nacional aos
30 anos, filólogo e escritor. Há mais de 60 anos traduz e publica a poesia
brasileira.
MGE: Dolores cuidava muito do tempo do Carlos. Assim, por exemplo, quando
alguém o chamava, por telefone, ela sempre dizia: “Carlos não está. Está
viajando, ainda que já se soubesse que Carlos não gostava de viajar. Desse
modo, ela preservava o tempo dele, de maneira que ele podia trabalhar
tranquilo sem interrupções. Evidentemente, Carlos atendia pouco a Dolores, de
maneira que, quando fui... Eu gostava de levá-la pra passear, muitas vezes
sozinho, eu com ela; a levava de carro. Ela gostava muito de ver as pontes e
os túneis novos que eram construídos no Rio. Assim, uma vez, vimos como se
filma a queda de um automóvel desde uma altura até o mar. Um filme que se
chamava algo assim como Diamantes... Diamantes a gogó. O certo é que eu,
nesse sentido, fiz muito pela satisfação de Dolores. Ela não se animava a sair
nunca sozinha, sem Carlos, e Carlos não podia atendê-la, porque estava em
seus escritos. Eu, nesse sentido, tenho gosto de dizer, de tê-la entretido
bastante. Uma vez, inclusive, quando eu fazia pequenas viagens, podia ir com
Dolores e assim a levei a Ouro Preto, onde estava Pedro, e saímos do hotel e
ela passou a noite em frio, porque não conseguiu fechar a janela, não tinha
força e, além disso, não animou a me chamar, nem a alguém que pudesse
ajudá-la. Saímos com ela, de manhã, para caminhar e... quando nós vivíamos
já na Rua Arroyo, ela, um dia, estava gripada, doente, resfriada e eu lhe
preparei uma bebida que consistia em vinho fervido com açúcar e canela e com
um pouco de conhaque. Quando já estava bem espesso, isso lhe faria suar
toda a noite, ia lhe fazer bem, ela estava na sua cama e eu me sentei ao lado
dela, para lhe dar o líquido e não sei que diabos fiz que entornou no peito da
pobre Dolores. Um dia, me ocorreu, não sei por que diabos, eu tinha pescado
esses moluscos que se tiram as pernas no mar, e me ocorreu fazê-los,
cozinhá-los, na casa de Dolores, e Dolores ficou furiosa, porque disse que eu
havia bagunçado a cozinha toda. Eu fiquei com raiva, querendo voltar pra
130
Buenos Aires. Outra coisa mais que podia dizer dela... Quando eu me separei
de Maria Julieta, eu também era um pouco inocente, porque pensei que o fato
de que eu me separasse não afetava o resto da família, como, em definitiva,
não afetou, mais tarde. Mas aí estávamos na Rua Santa Fé e, quando ela me
viu, virou a cara, eu fiquei profundamente ferido, mas, depois, pouco a pouco,
ainda que Maria Julieta e eu estivéssemos separados, éramos amigos e muito
ligados, de tal modo que Carlos fazia questão de que, se eu fosse ao Rio, tinha
que me hospedar na casa dele.
Dolores, como Carlos, todas as semanas escrevia uma carta a Maria Julieta e
era sempre a Juju, filhinha e Manolo. Tinha uma letra muito clara e boa.
AASS: Como Dolores pode ter contribuído para a obra de CDA?
MGE: Cuidando do tempo dele. Ela não escrevia, mas cuidava do que ele
escrevia. É curioso porque Carlos só fez um poema para Dolores. Dolores era
muito econômica e, como na época, havia inflação, no Brasil, sempre que ela
podia trocar “cruzeiros” por dólares, ia fazendo sua economia, comprando
dólares. E Carlos se divertia com isso, que não lhe importava, ainda que fosse
muito econômico. Não chamava Dolores de Dolores, senão Dolares. Dolores
tinha uma vida perfeitamente normal, mesmo que tivesse... Parece-me que
Carlos não foi um marido muito fiel, não. Mas o que passou entre eles não
transcendeu, de maneira que, se houve problemas entre o casal, te digo que
não chegava até nós, mas Maria Julieta se deu conta das cosas que Carlos
fazia e o repreendia. Carlos ficava envergonhado, sem dizer absolutamente
nada. Aguentava a repreensão, que Maria Julieta defendia a mãe, nesse
sentido. Dolores se preocupava muito por Maria Julieta. Sempre que havia
algum viajante de Rio pra Buenos Aires, ela mandava algo, mandava comida,
objetos, louças, vestidos, uma quantidade de coisas. Preocupava-se muito com
o cuidado das crianças.
AASS: Como era a relação de Maria Julieta com Dolores?
131
MGE: Parece-me que Maria Julieta foi um pouco injusta com Dolores.
Evidentemente, Maria Julieta preferia o pai e não a mãe. Parece-me que isso
era visível. Nós, muitas vezes, comentamos isso de que ela cuidava mais de
Carlos. Que eu saiba, Dolores nunca fez críticas literárias a Carlos, isso o fazia
Maria Julieta e eventualmente eu também o fiz. Dolores era muito afetuosa,
nunca a vi repreendendo nem a Carlos, nem a Maria Julieta.
132
CARTAS
¿Qué mejor modelo de autobiografía se puede concebir que el
conjunto de cartas que uno ha escrito y enviado a destinatarios
diversos, mujeres, parientes, viejos amigos, en situaciones y
estados de ánimos distintos?
Ricardo Piglia, Respiración artificial
133
Rio, 13 maio 1950.
Minha mulherzinha distante:
Talvez pela sugestão da intensa vida social que V. está levando em
Córdoba, vou por minha vez ensaiando os passos no mundanismo. Hoje à
noite, jantarei em casa dos Gondim de Oliveira, da direção do “Cruzeiro”, em
companhia de outros ilustres intelectuais, para tratar da fundação de uma
revista infantil que a dona da casa financiará. A direção da revista caberá a
Lucia Machado, e há grandes projetos e esperanças49. O que houver contarei a
V. Pela manhã, fui ver a defesa da tese de Afonso Arinos, na Faculdade
Nacional de Direito. Examinador: Casasanta, Sampaio Dória, Valadão e outros.
Verdadeira sessão de tortura, em que os examinadores, vestidos de preto
como abutres, dão bicadas na carne do candidato, o qual se senta num local
parecido com o banco dos réus. O suplício durou 5 horas, e o Afonso Arinos
saiu-se bastante bem, apesar de ter passado a noite em claro, de nervosia. A
nosso lado entre as espectadoras, Hannah tinha as mãos geladas e pensava
em quebrar a cara dos examinadores. O resultado só se saberá depois de
examinados (ou torturados) outros candidatos, entre os quais o Aguinaldo
Costa.
Gostei muito de receber ontem uma carta de V. e outra hoje. É uma boa
medida esta sua, de não esquecer o companheiro distante. Ontem à noite a
Rádio do Ministério transmitiu o conto do túmulo e da flor, e achei a irradiação
bem boa, chegando às vezes rir como se tratasse de coisa feita por outra
pessoa e que achasse engraçada. Tive que fazer um bocado de força durante
o dia para que meus admiradores da Rádio, ao apresentar o conto, não
falassem na pedra do caminho; eles achavam isso indispensável, mas afinal
desistiram.
49
No dia 4 de junho de 1950, Carlos escreve, em seu diário, já citado: “Almoço em casa dos
Gondim de Oliveira, da revista Cruzeiro. Projeto de criação de uma revista moderna, dirigida
por Lúcia Machado de Almeida. Sinto o interesse de ganhar a vida fora do círculo paternalista
da burocracia. Mas a dona de casa mantém comigo uma conversa de caráter moral e religioso
que me deixa pensativo. Acho que não será propriamente do meu gênero fazer uma revista
assim.”
134
E nossa querida Bruxinha, como vai depois da confirmação do bebê?
Está suficientemente compenetrada? Não era preciso dizer que V. está fazendo
tricô para o futuro neto, pois V. havia de fazê-lo mesmo sem essa expectativa.
E de saúde – tudo bem? Responda-me se está necessitando de um suprimento
financeiro, para que eu dê um jeito. Muitos abraços a Manolo, merci pelos
retratinhos de Bernardo (os negativos que mandei revelar seguirão depois do
dia 18) e a ternura profunda do seu velho e nostálgico
Carlos
135
Rio, 16 agosto 1956.
Dolores, onde estás, onde estás que não respondes? Escreves o teu
romance e por isso não tens tempo de mandar algumas linhas para este velho
companheiro? Ou aderiste aos programas sociais do casal Graña, e todo
tempo é pouco para as parties?
Um punhado de notícias: Estamos sem leite, sem açúcar, com pouco
pão e alguma água. O governo, de braços cruzados, espera que a situação se
normalize sem aumento de preço. – Fui à casa de Capanema pelo aniversário;
reunião melancólica de poucos amigos do ex- leader. – Coisica- ***, vista em
casa de Aníbal, tem uma cara estranhíssima de freira espanhola, e deixou-se
ficar sentada no escritório, enquanto a nova geração se esbaldava. – Manir, de
passagem pelo Rio, telefonou. – O maestro *** ofereceu-me em embrulho de
presente, o seu método de piano encadernado. As 50 crônicas deram-me um
telegrama misterioso de Araxá, assinado “Niopaulo”, que acabei identificando
como Niomar e Paulo. Vou fazer um texto para um calendário da Ford, sobre
um domingo no Rio, e mais 6 legendas de estampas, por 10 mil cruzeiros, que
tal?
Nada de S. Paulo em matéria de livros. Continuo aguardando instruções
sobre os já chegados. Guilherme Figueiredo vai para aí, mas em setembro.
Espero V. no fim do mês? Abraços e afetos para Bruxinha, Manolo, Toto e
Abissa (está aqui o quadro de Reis Jr., à espera de portador). A saudade (meio
triste, por falta de notícias) do teu
Carlos
136
Baires – 20.8.56
Está terminando sua paz, Carlos. A viajante já prepara a mochila para o
regresso: Dia 1° de setembro, sábado, pela Cruzeiro do Sul. O almoço será a
bordo e a aterrissagem será às 3 horas, mais ou menos. V. se queixa da falta
de cartas e elas têm ido bem frequentemente. Agora, não as ponho mais nos
buzones 50 : Vou à agencia de Esmeralda com Charcas. – Hoje, cedinho, lá
estive para deixar duas cartas com desenhos para V. e para Seu Reis,
presentes de Carlos Manuel. O garoto está desenhando febrilmente e eu, que
sou sua fã número 1, fico encantada com os debuxos do pintorzinho. Veja só
como é extraordinário “A Arca de Noé”. Faz tudo com uma rapidez atômica.
Hoje, no Jardim da Infância, vai começar a aprender a ler e a escrever, coisas
de sua maior ambição. – O irmãozinho está em casa, resfriado, e com uma
pontinha de febre. – Já lhe contei como foi recheada a semana passada com
cinco feriados: circo, cinemas, teatros, museus, parques, etc. – Estou
horrorizada com a miséria carioca. Quando vim, fiz um sortimento muito grande.
Sempre precavida como a formiga da fábula... Enfim, tenhamos fé em Deus e
no nosso grande general. A temperatura está ótima e os agasalhos são quase
dispensáveis. Maria Julieta continua dando milhões de aulas no Centro. Tola
como alguém que conheço a longos anos. Não adianta falar, nem lhe mostrar o
espelho. À parte de tanto trabalho tem uma vida bem agitada – doméstica e
social. Agora, com o fato de ela ter que cuidar dos meninos todas as manhãs e
duas tardes por semana, ela está bem mais perto deles e resolve muito bem e
com mais paciência e humanidade todos os problemas infantis. E tudo segue o
ritmo habitual sereno e agradável. Manolo está bem e muito preocupado com
os quilos a mais que adquiriu, libertando-se do fumo. Trabalha pela manhã e à
tarde e vai ao golf, aos sábados e domingos. – Espero que os honorários da
Ford sejam fraternalmente repartidos. Que tal?
Os Graña lhe enviam carinhos e saudades e eu o meu longínquo abraço.
Dolores
50
Plural de “buzón”, caixa colocada em lugares públicos, onde as pessoas depositam suas
correspondências.
137
Baires – 4.VIII.57
Carlos querido:
Outro dia chegou sua boa e noticiosa carta. Deus queira que tudo corra
bem aí: V. com saúde, pensando na gente e a casa em ordem.
O povinho portenho vai muito bem. Todos saudáveis e sempre com
saudade de V.
Carlos Manuel, quinta-feira, tirou o primeiro dente. O outro já estava
grandão, atrás. Dei um puxãozinho e pronto. Sem sangue e sem choro. À noite,
pôs o dente numa almofada para “El Rei Ratón51” vir buscá-lo para o castelo
encantado. O rei veio e deixou os pesos, como se usa na terra. O garoto
quando, manhãzinha, encontrou as cinco notinhas novinhas ficou deslumbrado
e dava gritos de alegria.
Quarta-feira houve a festa de aniversário do filho de Fernando. À tarde
para as crianças; à noite para os pais. Uma reunião muito agradável, com
quase todo o mundo da Embaixada.
Khachaturian 52 , ontem, no Colón, regeu suas próprias composições,
comum sucesso extraordinário.
Conte-me de V., da sua vidinha, de seus trabalhos e da casa. Convém
dizer a Clair para ter muito cuidado quando lavar os cristais, limpar os armários
e encerar a casa. Não retirar nem a televisão, nem a vitrola do escritório e
colocar mesinhas em pé e não deitadas, como ela tem feito.
Os Graña sempre ativos em trabalhos e em sociedade. Os meninos
saíram agora, 10 ½ horas, com Catalina. Foram à festa de aniversário do irmão
da Babá e só regressarão logo à noite. Saíram loucos de prazer cada um
levando cuidadosamente seu regalo53 para o aniversariante.
O frio de quinta-feira, 1,8 abaixo de zero foi uma coisa horrível. Que
ardor e que dureza nos pés, santo Deus!
Hoje, à noite, jantar num bodegón e sexta-feira os Graña recebem, num
jantar americano, vários casais amigos, em homenagem aos Guirand, que
seguem para a Europa, dia 11.
51
Trata-se da lenda do “Ratoncito Pérez”. Quando a uma criança lhe caía um dente, este era
jogado no telhado, levado pelo “Rey Ratón” e trocado por algumas moedas.
52
Compositor armênio do século XIX.
53
Em português, significa “presente”.
138
Todos lhe enviam carinhos. O meu é o maior e a minha saudade
também é muito grande.
Sua de sempre
Dolores
139
23.VIII.58
Carlos:
Este bilhete ligeiro é para dizer-lhe que o voo foi tranquilo e a
aterrissagem à hora exata.
A família Graña compareceu ao aeroporto alegre e bem disposta. Os
garotos estavam encantados e os presentes foram recebidos debaixo da maior
alegria. Os olhos de C.M. ao receber o relógio brilhavam de uma maneira rara.
Abissa ficou tão emocionado que se pôs triste com o presente fechado na
mãozinha direita. Ambos estão ótimos; Maria Julieta e Manolo também.
O dia está morno e cheio de sol e o apartamento muito acolhedor.
Todos lhe enviam muitas saudades.
Deus queira que seus achaques estejam terminados.
Um grande abraço de
Dolores
140
Rio, 13 de março 1960.
Dolores querida:
espero que a estas horas uma carta de V. esteja cruzando os ares para
me contar como foi a viagem e dando notícias daí. É tão grande o silêncio da
casa e tão vazia anda ela, que só uma cartinha boa poderá animá-la. Conte-me
como vai o nosso povinho e como é a cara do jovem Pedro; também quero
saber se os olhos e o reumatismo vão melhorando.
Eu nada fiz até agora de especial, e me limitei a pôr em ordem as
gavetas e estantes. Ainda vejo e ouço os dois capetinhas trançando pela casa
e lembro o que há de bom na presença de crianças. Tem caído uma chuva
tristonha, as ancilas se portam com discrição, e nada há mais a registrar. Só
uma notícia triste e que me chocou extremamente: Portinari e Maria se
desquitando54. Parece que a petição já entrou em juízo, e que a indefectível
Pomina deu notícia na sua seção. Rodrigo, a par do assunto, disse-me que o
motivo da separação foi o João Cândido55, que ao completar 21 anos, mandou
procuração para se casar com uma jovem carioca. Maria se opunha
energicamente a isso, enquanto o Candinho seria mais tolerante. Comentando
o caso, Rodrigo me ponderou que a situação de Maria é mais triste que a de
Portinari; este ainda tem os irmãos que lhe são devotados, enquanto ela ficará
sem marido e sem filho. É realmente uma coisa de amargurar a gente.
Quando V. volta? Gostaria que não demorasse, para recomeçar logo o
tratamento e fazer companhia ao velho rabugento mas que lhe quer um grande
bem, e que lhe manda um beijo com toda a ternura.
Carlos
54
Segundo o Museu Casa de Portinari, “após 30 anos de casamento, Portinari separa-se de
Maria, que, assumindo mais que o papel de esposa, ajudava-lhe com os problemas do
cotidiano, deixando-o livre para dedicar mais tempo ao seu trabalho. Mesmo separados, Maria
continua a prestar-lhe assistência.”
Para mais informações, ver: http://museucasadeportinari.org.br/candido-portinari/linha-dotempo/de-1958-a-1962
55
Filho do casal Portinari.
141
17-III-60
Carlos, my dear
Hoje, chegaram suas cartas. Todos aqui vão bem e saudosos de V.
Pedrinho56, o assunto da temporada, está gordinho e esperto, com seus
olhos claros e seu cabelo cor de cenoura. Ontem começou com um novo
horário – comida de 4 em 4 horas, cinco vezes ao dia. Sai todas as manhãs à
praça e dorme bem às noites.
Toto já recomeçou a vida escolar. Agora sai mais tarde e volta mais cedo.
Está muito entusiasmado com os novos livros e a nova professora.
Abissa 57 , que recebera o irmãozinho com encantos especiais, de
repente se pôs agressivo, ameaçando de bater no pobrinho. Vivia dentro do
carrinho e usando tudo que era dele. Afinal, confessou ao Pai que “tudo agora
é para o Pedro e ninguém me liga mais.” Hoje, está mais acessível, depois da
conversa que Manolo e Bruxinha58 tiveram com ele.
Quanto às brigas***. Por determinação materna, enérgica e prepotente, as
prebendas e as pancadas acabaram-se por encanto, graças a Deus, as
revistas passam pelas quatro mãos, sem protesto.
Fiquei sofrida com o caso Portinari, devia esperar isto de todo casal,
mas este tão amigo, tão eles mesmos.
Marcarei minha ida na próxima semana e logo lhe comunicarei.
E V. como vai? Está trabalhando muito? E as crônicas?
Um abraço de nós seis. O coração inteirinho da sua
Dolores
56
O terceiro neto de Dolores.
Apelido do segundo neto, Luis Mauricio.
58
Apelido que os pais colocaram em Maria Julieta.
57
142
7.VII.63
Querido Carlos:
Fiquei verdadeiramente comovida com o poema de Abgar. Que coisa
linda, hein?
O seu gesto carinhoso com a família do 6° andar também me pôs
orgulhosa do marido cavalheiresco que me tocou.
Pedrinho já está bem, graças a Deus. Esteve dez dias com febre, foi
uma gripe muito forte. E nesses dias da doença do garotinho nossas andanças
tiveram uma trégua.
Sexta-feira, foi o ato cívico dos escolares do país, comemorando o nove
de julho59. Foi antecipado pela semana de férias que vem agora. Uma coisa
simples e rápida. Terminou com a oração de C.M. Estava muito bem feitinho o
trabalho e o diretor gostou bastante. O garoto foi treinado no colégio e em casa.
Falava claro, alto e pausadamente. Mas na hora, o pobre falou baixo e
depressa. Claro que foi muito aplaudido, principalmente pelos colegas de turma
que não cessavam de aplaudi-lo. O pior foi quando fomos cumprimentar o
orador. O professor elogiou como sendo um ótimo aluno, “pena que dissesse
tão depressa o discurso”. Isto bastou para mortificar o pobre menino. Tentamos
convencê-lo de que estava tudo muito bem, quando ele nos disse: “Eu tinha a
impressão que estava sonhando alto, e estava com muita vergonha, no
sonho...”
O puchero 60 de ontem estava muito bom e muito bem. 6 casais
brasileiros e mais a Sra. Dolega. O apartamento está uma beleza com sua
nova decoração. O tapete da sala de jantar, comprado no turco, onde comprei
os meus, é uma coisa linda. Persa antigo, rosado com *** floridos dos lados e
em toda a volta, mede 3x4 e custou apenas 300.00 em nossa moeda. Foi uma
compra excelente que Bruxinha fez.
Hoje, é um dia morto pelas eleições61: tudo fechado.
59
Data em que se comemora a proclamação de Independência da Argentina.
Prato à base de carne, cenoura, batata, cebola, milho, linguiça, repolho e ovos.
61
O vencedor dessas eleições foi Arturo Illia, da Unión Cívica Radical del Pueblo (UCRP),
também derrocado por um golpe militar, em 1966.
60
143
Amanhã, a grande festa a bordo, com um programa cuidadosamente
escolhido. Caviar russo, vinhos franceses e grandes prazeres para os
convidados.
Gostei de ver a sua sociabilidade, recebendo os poucos amigos.
Continue, meu caro.
A temperatura tem estado agradável. Com o termômetro tangenciando
os 20°.
Já lhe disse que os dois fardos com as compras seguiram sexta-feira
pelo Loide. Não conseguimos saber o nome e o endereço do comandante.
Logo que o tenha lhe direi.
Os castiçais já estão prontos, só faltam as cúpulas que mandei fazer de
pergaminho. As armações irão comigo.
A medida do pote de vidro é para a florista preparar umas flores secas
para colocar dentro. É de um efeito lindo, imitando os enfeites da era vitoriana.
Quero ver mais algumas coisinhas, se o dinheiro der.
E V. como vai de saúde? E os trabalhos, as saídas e o ministério
doméstico?
Dê saudades a Pitu, Maria e Ruth.
Todos mandam abraços para V.
Um beijo e todo coração de sua
Dolores
144
Meu querido Carloca tão distante.
Ontem, foi o início da festa de aniversário de Luis Mauricio, com seu
telegrama chegando cedinho. Manhãzinha, foi o café com bolo e uma vela
enorme, ao som de “Parabéns a V.” Houve um almoço na sala nobre, com a
presença de Tia Mary. Sábado a reunião de 12 amigos, com lanche e
brincadeiras.
O tempo aqui é que está muito camarada, com um sol aconchegante e
uma temperatura de 22°.
Tenho saído sempre com Bruxinha – de manhã e a tarde, pela cidade e
pelos antiquários.
V. conseguiu fazer o pagamento das ações do Belgo Mineiro? Já recebi
os 105.000 cruzeiros, convertidos a pesos, que já estão sendo gastos.
Um cisco no olho direito de Carlos Manuel foi retirado, logo, no Hospital
Alemão. Estava incomodando demais ao pobrezinho.
Agora, me conte de V. – de sua saúde, do trabalho, da casa, da vida. E
Lita tem olhado direito tudo? Como foi a ida da passadeira?
Ando muito bem de saúde: gripe, olhos e tudo mais curado.
Todos aqui vão bem e mandam saudades a V.
Um beijo e todo o amor de sua
Dolores
27.VIII.64
145
16/9/65
Carloca muito amado.
Semana calma, com carta chegada ontem. Manolo foi a Concepción e a
Córdoba. Saiu domingo, à tarde, e chegou hoje tarde da noite. – Pedro
novamente com a garganta tomada, pobrezinho. Hoje, tem médico para
resolver o problema – se opera ou não as amígdalas. Logo, irei à Cruzeiro para
marcar minha viagem. Esta Cia. e a Varig fizeram um convênio e mudaram
todos os horários. Vejamos qual o dia da semana que tem Convair para o Rio.
Falo logo, em seguida. – Fiz a primeira compra e fiquei reduzida a zero. Uma
peça boa, que, certamente, V. vai gostar: uma Sta Rita, peça de catálogo, que a
acompanha. O tapete ficará para a próxima “estação de águas”. O que vimos
com as medidas mais ou menos, Bukaro, bonito mesmo. Saía pela bagatela de
400 dólares. Bruxinha me empresta, mas não tenho coragem de semelhante
investimento! E foi o mais barato. Aí, talvez custaria o dobro, conforme os que
Gilda adquiriu. – V. como vai? A saúde, o trabalho, a casa e tudo mais? O
quinteto portenho envia saudades a V. – Nem sei por que o dr. Mitchell não
telefonou. Ele foi tão gentil oferecendo os préstimos. E depois ele já esteve
duas vezes aí em casa. Será que ele não vai trazer os copos? Tem um
apartamento pequeno em Figueiredo Magalhães com Copacabana, um prédio
novo. Eu quero muito bem a V. Mando-lhe carinhos, abraços, beijos e todo o
meu coração cheiinho de saudade. Sua de sempre
Dolores
146
147
Ver transcrição na página seguinte.
148
Querido Carlos:
Tudo aqui vai marchando direitinho. Bruxinha vai melhorando, mas se
cansando bastante com as suas idas diárias aos médicos. E ela é quem guia.
Dura, durona.
Sexta-feira, foi um dia horrível para mim. Eu ainda não tinha visto a
cicatriz: ela achava que me deveria mostrar mais tarde, bem mais tarde. De
repente, depois do banho, ela me chamou e, abrindo a toalha, me disse: “Olha,
olha bem!” Nem sei como aguentei. Tudo estava O.K., muito melhor do que eu
esperava. Mas, quando vi o peito mutilado, o mundo desabou sobre mim.
Nunca passei por um momento assim. Mas reagi instantaneamente. “Que tal,
mãe? Que tal, mãe?” “Ótimo?” A voz custou a vir, mas disse logo: “ótimo!”
“assim é que eu gosto de uma mãe durona como V.” Que dor, meu Deus! Que
desgraça! Mas a doente reage perfeitamente, se movimentando, dando ordens,
trabalhando. Aquelas crises depressivas vão escasseando, felizmente. O
cobalto, as massagens, o remédio e os carinhos que recebe de todos muito
contribuem para suas melhoras. Mas sobretudo é a ficha da pobre menina. Tem
feito vida normal, dando ordens telefônicas ao Centro 62 , olhando a casa e
atendendo as inúmeras chamadas ao telefone. – o resultado do Papa-Nicolau,
só no fim da semana que vem. – Domingo saiu para jantar fora com o amado,
toda linda, linda mesmo, inclusive com os dois peitinhos postiços que arrumou
a última hora. E se sentiu “divina”.
Greta63 perdeu o 3º filhinho, que era mofino e que ela rejeitara. 48 horas
depois da faceta, teve um sétimo. Grande, mas morto. O veterinário chamado
disse que é normal: é que ela teve contato com o gato por duas vezes, e na 2ª
conseguiu se fecundar um ausente. Agora, no apartamento ela e os bichinhos
são os preferidos.
E V. como vai? O trabalho, as andanças? Lemos sua crônica sobre as
professoras. Muito boa. – Manolo tem sido extraordinário. Um beijo e o grande
carinho de Dolores.
26/ VI / 79
62
Dolores refere-se ao Centro de Estudos Brasileiros, mantido pelo Itamarati, em Buenos Aires,
instituição onde Maria Julieta dava aulas e que, posteriormente, dirigiu.
63
Gata da família Graña Drummond.
149
UMA HISTÓRIA EM FRAGMENTOS
150
DE CARLOS PARA DOLORES
Encontrei-me com seu marido e, embora ele não confessasse, estava com cara
de ter saudades.
Carta de 22 de abril,1950
Depois que V. se mudou do Brasil, o que aconteceu de melhor, para mim, foi a
sua carta.
Carta de 25 de abril, 1950
Mande-me uma carta boa e longa, com muito carinho, o que será um modo de
estar presente.
Carta de 25 de abril, 1950
Aqui, há muitas saudades, Dolores. Vicejam pela casa toda, e eu próprio sou
um canteiro delas.
Carta de 3 de maio, 1950
Os bichinhos iniciaram uma temporada de sono hibernal, e dormem por todos
os cantos da casa; é uma forma de ter saudades.
Carta de 3 de maio, 1950
Sinto muita falta de V., de nossos serões no escritório, de nossos cineminhas e
de nossas rusgas.
Carta de 5 de maio, 1950
E adeus, dona Dolores dos meus pecados e dos meus carinhos.
Carta de 5 de maio, 1950
151
Eu imaginava que a vida não me reservava mais desses momentos intensos,
em que tudo se transfigura, e o mais íntimo vem à tona, quando de repente
recebo uma notícia que me deixa completamente comovido e bobo.
Carta de 7 de maio, 1950
Venha imediatamente, porque a falta é enorme, e triste a vida do solteirão.
Carta de 7 de maio, 1950
Confio muito no velho tacto de enfermeira, assistente social e grande criatura
humana de minha mulher.
Carta de 10 de maio, 1950
Estamos modorrando por aqui, à espera do seu regresso (V. voltará ainda este
mês? duvido...)
Carta de 10 de maio, 1950
Querida, mande um beijo para seu velho fan e companheiro, para amenizar
este mundo de saudades.
Carta de 10 de maio, 1950
É uma boa medida esta sua, de não esquecer o companheiro distante.
Carta de 13 de maio, 1950
Não era preciso dizer que V. está fazendo tricô para o futuro neto, pois V. havia
de fazê-lo mesmo sem essa expectativa.
Carta de 13 de maio, 1950
Estava tão mal acostumado com as cartas frequentes que, segunda e terça,
vendo o carteiro de mãos vazias, me senti roubado.
Carta de 18 de maio, 1950
152
Se V. se fizer muito envaidecida com a confissão de que estou com muitas
saudades, então fique.
Carta de 18 de maio, 1950
A casa toda é uma grande saudade de você. A poltrona do escritório, que V.
elegeu para os serões de costura, anda erma e desconsolada. E a gatinha que
providenciei para encher estas férias conjugais não é a mesma coisa, embora
também arranhe às vezes.
Carta sem data
Sou um animal doméstico e só me entendo bem com os velhos afetos. Pode
tomar isto como uma declaração de amor, é.
Carta de 23 de agosto, 1955
Está um frio úmido lá fora, e eu quero me aquecer um pouco em sua
companhia.
Carta de 28 de agosto, 1955
Divirta-se bastante, querida, para suportar depois com paciência a misantropia
deste seu velho companheiro, que vive por aqui roendo as saudades.
Carta de 28 de agosto, 1955
Já me habituei a ser um solitário a dois, e a outra parte da minha solidão me
faz muita falta.
Carta de 4 de setembro, 1955
Aqui não há novidades, só que tudo é um pouco chato na sua ausência.
Carta de 24 de julho, 1956
Fico lembrando nossos serões domésticos, às vezes perturbados por brigas
em torno da T.V., mas afinal de contas de uma rotina tão agradável.
Carta de 28 de julho, 1956
153
Dolores, onde estás, onde estás que não respondes? Escreves o teu romance
e por isso não tens tempo de mandar algumas linhas para este velho
companheiro?
Carta de 16 de agosto, 1956
Saudades aqui são mato, mas a vida é normal.
Carta de 8 de agosto, 1957
Dolores, sou um bobo que não sei ir ao cinema sozinho.
Carta de 11 de agosto, 1957
Aqui está o seu velho companheiro, a remoer o realejo das saudades – única
notícia que tenho para te dar.
Carta de 16 de agosto, 1957
Esta semana, ofereci-me (em homenagem também a V.) a 5a sinfonia de
Beethoven, pela Filarmônica de Hamburgo, regida por um dr. Joseph Keilberth,
e espero adquirir a 9a para festejar devidamente o seu regresso.
Carta de 18 de agosto, 1957
E V., querida, tem mesmo sentido falta das implicâncias deste seu velho
companheiro, e de nossos serõezinhos tranquilos? Eu tenho V. na lembrança e
fico esperando que este agosto comprido acabe de passar, para que voltemos
a ser um só.
Carta de 18 de agosto, 1957
Li com alegria aquele trecho de sua carta: “amanhã, preparativos para o
regresso”. A folhinha está mesmo reclamando essa providência, e posso
assegurar que V. será recebida com carinho.
Carta de 22 de agosto, 1957
154
Saudades de uma certa senhora, dona do meu coração, que há um mês, está
longe de mim, e a quem espero com ansiedade abraçar carinhosamente até o
fim de agosto.
Carta de 22 de agosto, 1957
Escrever para V. tem sido uma de minhas raras distrações, na casa vazia e no
dia trivial, em que não acontece nada, além do trabalho miúdo.
Carta de 11 de setembro, 1958
Que bom você estar de volta ao lar brasileiro, onde há um grande vazio difícil
de suportar! Mais uma vez verifiquei que sou homem de solidão a dois, não de
solidão absoluta.
Carta de 21 de setembro, 1958
Saudades, muitas saudades de minha mulherzinha, a quem, com todas as
minhas implicâncias e rabugices de Drummond e de velho, quero um bem
infinito.
Carta de 30 de junho, 1963
Eu, em matéria de doença, tenho apenas a da saudade, no coração vazio.
Carta de 3 de julho, 1963
Há muitas saudades andando por este 7° andar, e o objeto delas é você.
Carta de 11 de julho, 1963
Para você o imenso carinho do seu rabugento mas amoroso velhote, que te
ama por toda a vida.
Carta de 6 de setembro, 1964
Sábado que vem estarei recebendo o meu amor com toda a ternura; talvez
você não me reconheça, tão roxo que estou de saudades!
Carta de 25 de janeiro, 1965
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Tenho pensado com muito carinho na boa companheira distante. O beijo de
velha ternura de seu jovem namorado.
Carta de 27 de agosto, 1965
Você já se imaginou esposa de um poeta com nome de rua, ou de uma rua
com nome de poeta?
Carta de 5 de setembro, 1965
Este nosso papinho postal ainda é a melhor maneira de vencer a saudade.
Carta de 10 de setembro, 1965
Neste sétimo andar, a notícia única é a falta de companheira do poeta, que
torna a vida silenciosa e saudosa.
Carta de 27 de setembro, 1967
A gente está sentindo falta de uns serões diante da TV e dos nossos uisquetes.
Companheira de mais de 50 anos não se esquece de uma hora para outra, viu?
Carta de 14 de março, 1978
Você é ainda sempre uma grande companheira humana e dedicada, com
admirável capacidade de ação na hora certa.
Carta de 7 de julho, 1979
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DE DOLORES PARA CARLOS
Tenho sentido muitas saudades do meu violeiro.
Carta de 12 de setembro, 1955
Está terminando sua paz, Carlos. A viajante já prepara a mochila para o
regresso.
Carta de 20 de agosto, 1956
Quando vim, fiz um sortimento muito grande. Sempre precavida como a
formiga da fábula...
Carta de 20 de agosto, 1956
Todos lhe enviam carinhos. O meu é o maior e a minha saudade também é
muito grande. Sua de sempre.
Carta de 4 de agosto, 1957
O seu santo nome é citado aqui a granel. Sinto uma grande saudade de V.
Carta de 7 de agosto, 1957
Que delícia V. sentir saudades de sua velha!
Carta de 13 de setembro, 1959
Suas cartas têm causado um grande bem a esta sua companheira.
Carta de 21 de setembro, 1959
Carloca, amado mio: ando com saudades de V. e sentindo falta de nosso
convívio.
Carta de 26 de junho, 1963
Gostei de ver a sua sociabilidade, recebendo os poucos amigos. Continue, meu
caro.
Carta de 7 de julho, 1963
157
Chegou agorinha sua carta do dia 5. V. é um amor, é o amor dos amores.
Carta de 12 de julho, 1963
Sou insaciável – sem dinheiro e vendo coisas desvairadamente.
Carta de 12 de julho, 1963
V. fará isto para mim, meu benzinho de candura, amarrado pela cintura?
Carta de 30 de agosto, 1965
Marido muito amado e todo o meu bem querer: o que me importa que V. pese
um pouco mais, um pouco menos. De qualquer forma eu gosto muito de V...
Carta de 5 de setembro, 1965
Veja só o assanhamento de sua velha companheira.
Carta de 5 de setembro, 1965
Eu quero muito bem a V. Mando-lhe carinhos, abraços, beijos e todo o meu
coração cheiinho de saudades.
Carta de 16 de setembro, 1965
De mim, V. tem o coração inteirinho, a grande ternura e todo o carinho.
Carta de 21 de setembro,1965
Tome cuidado com a saúde, durma cedo e trabalhe parcimoniosamente.
Carta de 11 de setembro, 1967
Todos mandam saudades para V. e eu todo o meu amor e o meu melhor
pensamento, para o muñeco ausente e sempre presente.
Carta de 21 de setembro, 1967
Eu, meu velho amigo, dou para V. o meu coração inteirinho, a saudade vasta e
toda a minha ternura.
Carta de outubro, 1967
158
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Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio